Celuzlose 05

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celuzlo se Revista

Literรกria

05 ~ Junho 2010


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Índice

Entre ? ! vista

Ricardo Domeneck

BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Érica Zíngano Érico Nogueira Floriano Martins

Lígia Dabul Marcelo Hilsdorf Marotta Mariel Reis

36

GEO

20

Literatura sem Fronteiras

Anila Resuli (Albânia / Itália) Fabiano Alborghetti (Itália / Suíça)

Caderno

Paulo Vieira Prisca Agustoni

Stefano Raimondi (Itália) Sylvia Beirute (Portugal)

44

Crítico

Elogio da síntese - por Carlos Felipe Moisés

Edson Cruz (Organizador) Jairo Pereira

BIO

?

O que é

?

?

52

poesia?

Joana Ruas Nelson Guerra

60

Vida & Obra

Stéphane Mallarmé - por André Dick e Nicole Cristofalo

82

LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

Arnaldo Antunes

celuzlo se # 05 ~ Junho 2010 Expediente Editor: Victor Del Franco Projeto Gráfico, Diagramação e Revisão: Victor Del Franco

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Colaboraram com esta edição: André Dick / Anila Resuli Arnaldo Antunes / Carlos Felipe Moisés Edson Cruz / Érica Zíngano Érico Nogueira / Fabiano Alborghetti Floriano Martins / Jairo Pereira Joana Ruas / Lígia Dabul Marcelo Hilsdorf Marotta / Mariel Reis Nelson Guerra / Nicole Cristofalo Paulo Vieira / Prisca Agustoni Ricardo Domeneck / Stefano Raimondi Sylvia Beirute

Contato: celuzlose@gmail.com

Os textos e imagens desta revista poderão ser usados para fins não comerciais, desde que sejam citados os nomes dos autores, o nome da revista e o link correspondente.


Editorial O pulso ainda pulsa Na trajetória das artes, mas em uma referência particular à Literatura, são muitos os exemplos de poetas (ou grupos de poetas) que, além do desenvolvimento de uma linguagem específica, também tiveram (e ainda têm) a preocupação de refletir sobre o fazer poético e o diálogo possível entre gerações e estilos. Essa reflexão é um dos temas abordados na entrevista com Ricardo Domeneck que, desde o início de seu trabalho, sempre procurou pensar a poesia em seus diversos contextos e formas de apresentação (oral, escrita ou em vídeo). Na continuidade da seção O que é poesia?, organizada por Edson Cruz, o calidoscópio segue em seu giro constante com outras respostas para esse questionamento; há também o início da seção BIO com textos e traduções de André Dick e Nicole Cristofalo sobre a vida e a obra de Stéphane Mallarmé e, para completar a edição, uma breve coletânea de poemas visuais e videopoemas de Arnaldo Antunes. O pulso ainda pulsa. Boa leitura. Victor Del Franco Editor

Nesta edição, a revista Celuzlose completa 1 ano e gostaria de expressar aqui o meu cordial agradecimento a todos que, desde o primeiro número, colaboraram com a realização deste trabalho. Vida que segue, muito obrigado! Pulso, pulso, pulso, pulso, pulso.

Celuzlose 04 Clique aqui a para ler a 4 edição http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_04

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Foto: Amos Fricke

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É

e st04 Celuzlose 05 - Junho 2010

reflexão

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ricar-

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Poeta, tradutor e editor. Nasceu em Bebedouro (SP) e atualmente mora em Berlim onde trabalha e desenvolve alguns projetos paralelos, entre eles SHADE inc (http://shade-inc.de) e Hilda Magazine (http://www.hildamagazine.com). Livros de poesia publicados: Carta aos anfíbios (Bem-te-vi, 2005), a cadela sem Logos (Cosac Naify, 2007) e Sons: Arranjo: Garganta (Cosac Naify, 2009). Escreve com frequência em seu blog Rocirda Demencock (http://ricardo-domeneck.blogspot.com). Nesta entrevista, entre outros assuntos, ele fala de sua relação com a oralidade na poesia, o seu pensamento reflexivo sobre est-É-tica e o seu trabalho de tradutor e editor.

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Na ideia referente ao VERBIVOCOVISUAL, você dedica uma atenção muito particular ao VOCO. O que isso representa efetivamente na sua poesia? Minha pesquisa sobre a oralidade foi um desenvolvimento do que venho chamando, desde o meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (2005), de aterro de trincheiras e borrar de dicotomias, neste caso específico questionando certas implicações do cartesianismo que ainda parece reger certos aspectos da nossa cultura, como parte da separação entre o corporal e o espiritual. Eu estava interessado, em primeiro lugar, na pesquisa de uma corporalidade poética, resgatar o corpo. Trabalhei por algum tempo como dançarino, com um grupo de pesquisa das técnicas do coreógrafo mineiro Klauss Vianna (1928 - 1992), decidi que partiria sempre do meu próprio corpo, mesmo quando praticando a escrita. Muito da imagética de meus livros vem da minha própria fisiologia. Há aqui também uma decisão ética, do que já chamei de "biominimalismo", partir do que o seu próprio corpo pode fornecer. Foi apenas natural que isso me levasse a pesquisar o aspecto oral e de performance do poeta, saindo da tradição literária e estudando poetas como os trovadores occitanos, os griots africanos, os minnesänger germânicos, os bardos celtas, os skalds islandeses, até chegar aos nossos cantautores/songwriters contemporâneos. Comecei a perceber como era estranho que o "país do carnaval", o país que se gabava de sua corporalidade, ainda tivesse preconceitos tão grandes contra a cultura oral, assim como uma relação neurótica com o corporal. Me espanta, por exemplo, que o Brasil não tenha produzido muita performance no pós-guerra. Hegemônica foi a estética construtivista, abstrata, e aqui podemos falar sobre o verbivocovisual dos poetas concretos que, na verdade, de "voco" nada tinham... o vocal nos poemas concretos é sempre suprimido (com a exceção de

certas peças posteriores de Augusto de Campos) para privilegiar o gráfico-visual. O Brasil tem uma tradição poética oral muito potente, mas esta e a tradição literária parecem completamente divorciadas. Mesmo quando se casam, como na obra de João Cabral de Melo Neto, isso acaba silenciado pela crítica. É por isso que houve pouca experimentação com poesia vocal e sonora no pós-guerra brasileiro. Ainda temos uma tradição forte de trovadores, como Tom Jobim, Caetano Veloso, Sérgio Sampaio, Itamar Assumpção, entre outros, mas apenas com poetas como Antônio Risério, Philadelpho Menezes (1960 - 2000) e Ricardo Aleixo passamos a ter um questionamento sistemático das hierarquias poéticas entre práticas distintas. Apesar de se falar muito sobre sincronia histórica no Brasil, a verdade é que nossa tradição ainda tem uma visão militarista de vanguarda e evolução literária. Não compartilho da ojeriza ativista que Paul Zumthor, por exemplo, nutria contra a transformação que a poesia literária trouxe à prática poética. Ainda me considero, primordialmente, um poeta-escritor. Mas eu creio firmemente que os poetas-escritores ganhariam muito se mantivessem sua atenção também voltada para estes aspectos da prática poética, assim como creio que os poetas orais e trovadores contemporâneos brasileiros ganhariam muito se atentassem mais para a textualidade de seu trabalho oral e em performance. Em meu trabalho, isso tem assumido o caráter de uma pesquisa da poesia como "arte textual", não importando se essa textualidade se manifesta no papel, em um vídeo ou em um arquivo de som. Isso tem me levado a querer borrar as fronteiras entre prosa e poesia, por exemplo, e entre literatura e performance. Isso vai se manifestar em um livro como a cadela sem Logos (2007), com o desaparecimento de muitas das características mais reconhecidamente poéticas, e em vídeos como Garganta com texto (2006), com a tentativa de fusão entre o dizer e o fazer do poeta.

Foto: Jonas Lindstroem

“Em meu trabalho, isso tem assumido o caráter de uma pesquisa da poesia como ‘arte textual’, não importando se essa textualidade se manifesta no papel, em um vídeo ou em um arquivo de som.” 06 Celuzlose 05 - Junho 2010


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Eu diria que no vídeo de sua performance na Espanha para as Six songs of causality você demonstra muito mais a sua relação poética com a oralidade. Uma relação efetiva e que vai além daquilo que você expõe no vídeo Garganta com texto. Mas aproveitando a citação do vídeo Garganta com texto, no final dele você lança no ar duas perguntas como se fossem bumerangues: A quem seu poema serve? A que grupos o seu poema serve? Talvez em minha performance oral para a série das Six songs of causality haja realmente um nível mais interessante de conjunção entre escrita e oralidade, assim como minha busca pelo que venho chamando de “poesia tesa”, mais que “densa” ou “concreta”. Mas há diferenças estruturais entre os dois trabalhos, que me ajudam já a responder sua pergunta sobre o vídeo Garganta com texto. Este último foi pensado como “ensaio” e também como intervenção, parece-me importante lembrar o contexto em que o vídeo foi produzido, para o programa Entrelinhas da TV Cultura, que o levou ao ar em dezembro de 2006. Minha tentativa foi a de unir o “dizer” e o “fazer” neste vídeo, como também me interessava a ideia de produzir um ensaio crítico que fosse, ao mesmo tempo, performance. Não apenas argumentar, mas desempenhar o conceito a ser defendido. Ensaio mesmo. Num momento histórico em que a hegemonia crítica defendia conceitos como “pós-utópico” e “trans-historicidade”, suprimindo completamente o contexto em que o poeta compõe seu trabalho, assim como o retorno de ilusões de universalidade, era realmente uma provocação insinuar constrições ideológicas no trabalho de

Six songs of causality

http://www.youtube.com/watch?v=dvN8Bv0lBWc

todo poeta. O que importa primordialmente é o texto literário, mas me parece ilusório acreditar que uma crítica formalista esgote a compreensão de um texto, se esta ignora por completo o contexto em que um poema se insere. O poema opera entre mundo e linguagem, nutre-se dos dois, influindo e confluindo neles. Eu já havia tratado de algumas destas ideias naquele mesmo ano, no ensaio “Ideologia da percepção”, publicado na revista Inimigo Rumor número 18. No ensaio, retorno a certas questões bastante espinhosas, como as condições contextuais, biográficas, históricas e ideológicas de todo trabalho textual, questionando ainda, de forma até ativista, as ilusões de universalidade que muitas vezes mascaram a hegemonia de grupos bastante específicos, dos que estão no poder e definem as regras. Terminar o texto com aquelas perguntas sugeria a existência de trincheiras, e eu sei que não se trata de uma ideia agradável, mas que me parece necessário discutir. Eu sei que este talvez seja o aspecto do meu trabalho crítico que mais incomoda algumas pessoas, mas não se trata de polêmica pela polêmica. Em uma sociedade dividida e segregada como a nossa, ignorar estas questões, quando se trabalha com a linguagem, parece-me impensável. Muitos acham bonito poder acreditar em valores universais, incondicionados por ideologias ou por uma Weltanschauung específica, mas isso não apaga também as diferenças que nos tornam muito mais interessantes? Defender o “universal” de forma cega, apenas idealizada e romântica, não acaba por defender, nos dias de hoje, também o uniformizado? Eu lanço a pergunta no ar como provocação, mas também para mim mesmo.

Garganta com texto

http://www.youtube.com/watch?v=sZwFos5meBU

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Toda estética pressupõe uma escolha est-É-tica? Como você avalia esses conceitos? Eu preciso deixar claro que, quando menciono esta ideia de uma “est-É-tica”, não estou me referindo a qualquer moralismo formal. Não se trata de dividir os poetas entre mocinhos e bandidos, ou investigar suas vidas para questionar ideologias e escolhas políticas. Não se trata, como alguns têm entendido (e mal) de defender poesia engajada, daquela maneira reducionista e dualista que costumava opor forma e conteúdo ou outras bobagens felizmente superadas. Trata-se da crença de que o trabalho do poeta tem consequências sobre o mundo e está ligado a ele, seja a curto, médio ou longuíssimo prazo, por trabalhar diretamente na linguagem com a qual o apreendemos. O material do poeta é a linguagem, um bem comum, algo que ele compartilha com a sua comunidade. O trabalho primordial do poeta está na materialidade da linguagem, mas esta materialidade não deve ser apenas gráfica e idealizada. Assim como a função poética, nos termos de Jakobson, não cancela as outras funções da linguagem e o poema opera na fronteira entre transparência e não transparência do signo, o poeta é, ao mesmo tempo, independente em suas criações e conectado ao seu momento histórico. O trabalho do poeta vive entre os polos extremos de duali-

dades puras, construindo pontes. Penso no poeta como um artesão e ao mesmo tempo um interventor. É um mito recente, a partir do Romantismo, o do poeta como outsider, como marginal, algo que precisou ser inventado para lidar com as transformações sociais ocidentais após a Revolução Francesa, quando o poeta perde em grande parte sua base social de cortesão e precisa repensar suas alianças e seu público. Em Baudelaire, como um dos primeiros grandes poetas depois destas transformações, esta relação contraditória de poeta aristocrático em meio às massas e multidão é muito clara. É ingênuo pensar ou mesmo esperar que o papel do poeta permaneça imutável em meio a grandes transformações históricas, políticas, sociais ou até mesmo científicas. As convoluções políticas e históricas do século XIV, por exemplo, incluindo a Grande Peste de 1348 – 1350, dizimaram o mundo que sustentava o sistema de produção e recepção dos trovadores medievais viajantes que operaram entre a França e a Itália por 4 séculos, ligados às comunidades e reinos pequenos que se transformaram, dando lugar aos reinos onde passa a operar o poeta letrado, que vive na corte e depende de seu mecenato. Penso também no brilhante ensaio de Ezra Pound sobre Guido Cavalcanti (1255 – 1300) e sua lindíssima canzone “Donna me prega”, em que Pound demonstra como Cavalcanti tinha conhecimento dos estudos científicos de sua época.

Donna me prega, – per ch'eo voglio dire d'un accidente – che sovente – è fero ed è si altero – ch'è chiamato amore: s' chi lo nega – possa 'l ver sentire!

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Os textos de Cavalcanti estão entre os maiores exemplos do que gosto de chamar de “poesia tesa”, ele é um dos meus mestres favoritos. Pois bem, Maiakóvski sabia que o trabalho do poeta precisa responder ao seu momento histórico, mesmo que se ligue a uma tradição milenar, ele que estava em meio à Revolução Russa. Não há contradição nisso. Quando citamos sua famosa declaração de que “sem forma revolucionária não há arte revolucionária”, geralmente nos concentramos nesta ideia de “revolução”, na esteira dos poetas da revista Noigandres, por estarmos bitolados nesta ideia militarista de vanguarda como processadora de novas formas, como meras novidades. Por isso tenho dito que o MAKE IT NEW de Pound precisa hoje em dia ser ligado a um MAKE IT NECESSARY. São frases de efeito e perigosas, já fui alertado, mas é uma maneira de chamar a atenção para estas questões. Veja bem, não estou defendendo utilitarismos para a poesia. A poesia deve continuar “inútil”, como queria Leminski, mas precisamos compreender que essa inutilidade da poesia é justamente em relação ao contexto histórico do utilitarismo capitalista. Não vejo contradição quando digo que a poesia deve ser inútil para esse sistema, até mesmo como resistência, e ao mesmo tempo buscar resguardar as funções milenares que sempre exerceu. Em minha opinião, o interessante na declaração de Maiakóvski é sua crença na ligação entre a sua arte e seu momento histórico e o mundo em que esta se inseria. Era a recusa da poesia como mero bibelô cultural, produto. Nisso, Maiakóvski e Pound se unem, na crença de que a poesia é um trabalho importante e essencial para uma comunidade, seja um reino, uma república ou uma tribo. É a ligação milenar do poeta com sua comunidade, não a seu governo, é importante ressaltar. Nisso, podemos até mesmo retornar a Mallarmé, quando este diz que o trabalho do poeta é manter puras as palavras da tribo. Poderíamos questionar o que seria esta noção de pureza, mas está claro que ele acreditava na ligação entre seu trabalho e seu momento histórico e comunidade. A leitura de Mallarmé como mestre de uma poética da negatividade, da pureza, do desligamento entre linguagem e mundo é questionável e altamente ideológica. Infelizmente, “autonomia poética” tem sido lida nestes termos, como em Hugo Friedrich, pelo desligamento entre a poesia e o que chamaríamos, com muito cuidado, de realidade. Mas essa leitura equivo-

cada, em minha opinião, de autonomia poética como uma separação entre poesia e mundo, não se sustenta mesmo em poetas que são muitas vezes eleitos como seus mestres. Críticos como Paul de Man já demonstraram como, mesmo em Mallarmé, a materialidade da linguagem não oblitera a referencialidade. Poderíamos dizer o mesmo sobre Homero, Safo, Catulo, Arnaut Daniel, Luís de Góngora ou Guiseppe Ungaretti. Quando falo sobre “est-É-tica”, muitos vêem isso, por traumas talvez dos tempos da ditadura, como uma tentativa de cerceamento da liberdade artística. Não se trata disso. Não sou marxista, mas leio com grande prazer críticos como Walter Benjamin e chego a ter vertigens e calafrios ao ler e reler as suas “Teses sobre a filosofia da História”, com a aparição daquele Anjo que me fascina e obceca mais que o de Rilke. Há aqui, é claro, minha própria estrutura mental pessoal, de quem cresceu em um ambiente extremamente religioso e responde em ressonância imediata ao pensamento messiânico de Benjamin. Estou ciente disso. Mas respondo também a essa crença na historicidade do fazer poético. Para mim, o dito de Pound de que poesia é “news that stays news” deve ser traduzido como “notícia que permanece notícia” e não “novidade que permanece novidade”, na ambiguidade extrema da grande poesia e sua longevidade, sua capacidade de adaptar-se a contextos alheios aos de sua criação. Portanto, minha grafia de “est-É-tica” não é uma defesa de engajamento no sentido estreito de conteúdo político ou filiação partidária e ideológica. Trata-se de estudar formalmente, em primeiro lugar, a textualidade dos poetas, mas seguir no estudo, buscando entender como essa textualidade opera em um contexto específico. Começa, por exemplo, na proposição de Wittgenstein em suas Investigações filosóficas (1953), de que “o significado de uma palavra é seu uso na língua”, muito mais até que no trecho do Tractatus Logico-Philosophicus (1922), quando ele afirma que “ética e estética são uma só”, pelas implicações daquela primeira proposição mencionada, questionando essencialismos idealizados, fora de contexto, como muitos insistem em tratar o texto poético, crendo assim defender sua autonomia. O poema opera na fronteira entre transparência e não transparência do signo, entre semântica, sintaxe e contexto, entre linguagem e mundo. Isso, em minha opinião, é “est-É-tica” e difere e varia em todo poeta, que deve sim permanecer independente e livre, mas consciente das implicações de seu trabalho. Celuzlose 05 - Junho 2010 09


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Você se refere ao poeta como artesão e interventor, no entanto, você também faz uma ressalva em um texto no seu blog dizendo que estes são “dois extremos de uma estrela de muitas pontas”. Gostaria que você falasse um pouco sobre o seu artesanato e as suas intervenções. São dois lados da mesma moeda ou você pensa cada um deles de forma distinta? Refiro-me a polos extremos entre os quais se balançam e equilibram, de formas muito variadas e distintas, os trabalhos dos poetas, de épocas e áreas diferentes ou mesmo os contemporâneos e conterrâneos. Isso nos leva ao próprio questionamento da natureza plural da poesia em suas variadas encarnações e funções ao longo dos tempos. A poesia carrega em seu bojo, de certa maneira, todas as funções que já exerceu em momentos e lugares distintos, que chegam aos nossos dias através da tradição, mas não apenas a literária. Cada trabalho exige uma leitura específica. O problema é que sempre estamos buscando uma regra, uma essência, algo que abarque todas as práticas poéticas, algo que geralmente acaba suprimindo muitas de suas características originais. É por isso que me parece imprescindível estudar os poetas que produziram em momentos de equilíbrio. Para

nós ocidentais, encontramos isso de forma clara na poesia medieval dos trovadores, quando havia um verdadeiro equilíbrio entre escrita e oralidade, por exemplo, entre forma, função e performance, assim como uma relação direta com o público. Eu estava tentando sugerir algo como uma escala, uma gradação, não de valores, entre o trabalho formal do poeta e seu trabalho funcional e contextual. Como na ideia de uma “est-É-tica”, em conjunção, assim como tenho falado sobre um aterrar de trincheiras, tento manter unidos em meu trabalho a ideia do poeta como artesão e interventor, mas certamente isso se dá de forma diferente em cada trabalho. Tento não permitir que o trabalho com a performance e a oralidade sejam desculpas para um trabalho literário fraco, o que infelizmente ocorre às vezes no Brasil. Tenho tentado pensar no trabalho poético, como já disse, a partir da ideia de “textualidade” e de “poesia tesa”, para que meus textos possam funcionar como Literatura e como oralidade. Tenho buscado essa conjunção a partir do trabalho poético como formal, funcional e contextual. Se eu creio na necessidade de aterrar certas trincheiras, isso tem que começar na escrita do texto, mas depois também na maneira como ele será divulgado ou publicado, seja na página ou na voz.

Foto: Amos Fricke

“Tenho buscado essa conjunção a partir do trabalho poético como formal, funcional e contextual. Se eu creio na necessidade de aterrar certas trincheiras, isso tem que começar na escrita do texto, mas depois também na maneira como ele será divulgado ou publicado, seja na página ou na voz.” 10 Celuzlose 05 - Junho 2010


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Há algum tempo, você disse que os livros Carta aos anfíbios, a cadela sem Logos e Sons: Arranjo: Garganta formam uma trilogia. Isto representa o final de um ciclo e o início de outro? Não foram pensados desde o início assim. Ocorreu que, ao terminar o terceiro, senti que encerrava ali um ciclo do meu trabalho, em que trabalhei, de forma quase obsessiva, com o questionamento de certas dicotomias, buscando o aterro de certas trincheiras, como entre o sagrado e o profano, objetividade e subjetividade, concreto e abstrato, corporal e mental, nacional e estrangeiro, escrita e oralidade, etc. Quanto aos dois últimos, lançados pela coleção Ás de colete, da Cosac Naify, foram realmente escritos de forma paralela e simultânea, como um álbum duplo. Gosto de brincar que, guardadas as devidas proporções, a cadela sem Logos e Sons: Arranjo: Garganta são meu Kid A / Amnesiac. Os meus poemas mais recentes têm caminhado por outras direções, por vezes até retornando à poesia lírica de Carta aos anfíbios.

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O seu trabalho de tradução vai um pouco além do que se convencionou chamar de transcriação. É algo que você define como transcontextualização. Qual é o parâmetro adequado para se fazer uma transcontextualização sem que isso descaracterize a versão original do poema de uma maneira excessiva? Hoje em dia tenho passado a usar o prefixo “trans” com muito cuidado, por ser um dos críticos mais frequentes de um conceito equivocado, em minha opinião, como o de “trans-historicidade”. Portanto, uso-o como na ideia de transporte, não na tentativa de elidir ou ignorar a historicidade. Quando passei a usar a expressão “transcontextualização”, pela qual argumento no ensaio Tradução, contexto e migrações possíveis, publicado na revista Germina em 2006, o prefixo explicitava minha busca de diálogo com o conceito de “transcriação” de Haroldo de Campos, certamente o mais consistente teórico da tradução poética que o Brasil teve, mas também o teórico da “trans-historicidade” e do “pós-utópico”, que tanto tenho criticado e questionado nos últimos anos. Minha tentativa não era a de suplantar o conceito de Haroldo de Campos ou o trabalho de tantos importantes teóricos da tradução com o meu próprio conceito apenas. Minha intenção era justamente a de questionar a tentativa de criar técnicas e conceitos genéricos para a tradução linguística das flexíveis textualidades poéticas do mundo. Na verdade, comecei a me ocupar com o trabalho tradutório, não tanto por querer traduzir poemas estrangeiros para o português. Morando fora do país, alguns aspectos que passei a tratar em meu trabalho de tradução foram sugeridos, na verdade, pela leitura de poemas brasileiros traduzidos para outras línguas, como o inglês, espanhol e alemão. Vou dar um exemplo bastante específico: lembro-me da primeira vez que li traduções para outras línguas do poema E agora, José?, de Carlos Drummond de Andrade, em que os tradutores frequentemente mantêm o nome “José”, criando um efeito que eu chamaria de “exotizante”, em textos que, no original, não possuem este efeito. Cito outro exemplo: parece-me um grande equívoco que o título do grande romance de Machado de Assis, Dom Casmurro, seja invariavelmente mantido no português em suas publicações no exterior. Eu sempre pensava: “Ora, mas o trabalho irônico de Machado começa já naquele título, é importante que os leitores estrangeiros sejam expostos a isso desde o princípio”. Em minha opinião, isso desmascarava um certo desejo incontido de “exotizar” a literatura bra12 Celuzlose 05 - Junho 2010

sileira. Um leitor americano não tem acesso ao que Drummond realmente fez em seu poema se o lê como “What now, José?”. Ele teria melhor acesso a isso se lesse “What now, Jack?”. É apenas um exemplo simples para introduzir o problema. Como escrevi naquele ensaio, nem todo texto pede isso. É necessário que cada poema seja analisado, para sabermos o quanto ele depende do contexto em que foi produzido. Creio que minhas melhores transcontextualizações são as que fiz de poemas do austríaco H.C. Artmann, mas creio que seria melhor ilustrar isso com dois poemas: um do americano Gregory Corso (1930 - 2001) e outro do argentino Cristian De Nápoli (n. 1971). O original de Corso lê: Last night I drove a car Last night I drove a car not knowing how to drive not owning a car I drove and knocked down people I loved ...went 120 through one town. I stopped at Hedgeville and slept in the back seat ...excited about my new life. Escolhi (o verbo “escolher” é importantíssimo aqui) transcontextualizar o poema, mais que o traduzir, recorrendo ao linguajar da região onde cresci, o interior de São Paulo, já que Corso usa o vernáculo americano de poeta nova-iorquino. Eu realmente acredito que um leitor brasileiro se aproxima mais daquilo que Corso fez em sua língua e tradição com uma contextualização: Ontem à noite guiei um carro Ontem à noite guiei um carro sem saber guiar sem possuir um carro guiei e derrubei feito boliche pessoas que amava ... a 120 sobre o piche. Parei em Atibaia e dormi no banco traseiro ... excitado em minha nova vida.


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No poema-em-série de Cristian De Nápoli, creio que isso se torna ainda mais claro. Na versão abaixo, intercalo o “poema argentino” (não o chamaria mais de “original”) e o que eu também não chamaria mais de tradução, mas de “poema brasileiro”:

56.

59.

Vodka, ginebra, Buenos Aires en otoño, la costanera.

En Helsinki, en Baires, vos viste el infierno que no se hunde. 58.

Vodca, gim-tônica, São Paulo em maio, o litoral. 57. El sol, los puestos de revistas usadas. Parque Lezica. O sol, as bancas de revistas usadas. Largo da Batata.

Recuerdo cuando Roxana vino a Baires. La trataron igual. Lembro-me de quando Angélica leu em Sampa; A reação foi a mesma.

Em Berlim, em Sampa, purgaram o inferno que não desaba. 60. La patria es hampa, el extranjero trampa. ¿Un tercer lado? O nacional: quadrilha, o estrangeiro: armadilha. Terceira opção?

Como escrevi no ensaio em que defendo esta possível leitura tradutória, não se pode nem se deve fazer isso com todo texto. Há poemas que até mesmo proibiriam tal tentativa, como é o caso dos poetas sobreviventes do Holocausto, Paul Celan sendo apenas o mais célebre. Na verdade, no caso de poetas como Celan, tenho insistido até mesmo que não se pode “usar” ou “empregar” suas técnicas de forma leviana em qualquer contexto. Ou seja, aqui a “contextualização” assume um caráter negativo, de certa forma. Tenho ironizado (como crítica est-É-tica) a prática de certos poetas contemporâneos, que se lançam sob a influência de Paul Celan, escrevendo em Ipanema como se estivessem em Auschwitz. Não preciso dizer que isso me parece um dos grandes exemplos da leviandade trans-histórica dos dias de hoje. Portanto, busco apenas introduzir, no conceito de “transcriação” de Haroldo de Campos com sua ênfase na forma poética, também a preocupação com a função das técnicas empregadas e sua operação no contexto em que se insere. Forma, função e contexto. Material, uso e historicidade. Seja na escrita do próprio trabalho ou na tradução do texto alheio. Se o tradutor atenta para todos estes aspectos ao ler um poema, não apenas seu “trabalho formal”, mas também de que maneira o poeta o emprega e os efeitos que busca em seu contexto e tradição, então ele saberá o quanto terá que fazer o mesmo em/através/com sua língua, tradição e contexto histórico. Celuzlose 05 - Junho 2010 13


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A revista Modo de Usar & Co., da qual você é um dos editores, possui uma versão impressa e outra digital que você costuma chamar de franquia eletrônica. Gostaria que você falasse um pouco sobre o seu trabalho de editor e, também, como você avalia a relação entre esses dois formatos? Vejo o trabalho como editor de uma revista de poesia como complemento, de certa forma, do trabalho crítico. Publicamos até o momento dois números impressos da revista, que passaram por um longo período de discussão e seleção entre os 4 editores, trabalho que faço com meus queridos companheiros Angélica Freitas, Fabiano Calixto e Marília Garcia. Tenho sido o editor

mais frequente daquilo que venho chamando de “franquia eletrônica”, mas temos convidado vários poetas e críticos para os debates críticos, ultimamente, como Dirceu Villa, Érico Nogueira e Roberto Zular, entre outros. Os dois modelos permitem possibilidades distintas. Na revista impressa, é possível publicar textos e ensaios mais longos. Nela, temos também nos concentrado na publicação de poetas-escritores jovens, do Brasil e de fora. A franquia eletrônica nos permite usar vários portais eletrônicos para divulgarmos a poesia sonora, em vídeo e em performance, mostrando diferentes propostas poéticas nas mais variadas possibilidades. A relação entre os dois formatos é complementar, pesquisando poéticas contemporâneas entre o literário e o vocal.

Clique aqui para conhecer a franquia eletrônica da revista Modo de Usar & Co. http://www.revistamododeusar.blogspot.com

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Foto: Amos Fricke

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“Vivo em Berlim há quase dez anos. Em muitos aspectos, estou completamente em casa, em outros, não importa quanto tempo passe, serei sempre um estrangeiro.”

Por que você escolheu Berlim (ou Berlimbo, como gosta de se referir à cidade) para morar? Já está inteiramente familiarizado ou ainda se sente um estrangeiro? Vivo em Berlim há quase dez anos. Em muitos aspectos, estou completamente em casa, em outros, não importa quanto tempo passe, serei sempre um estrangeiro. Gosto deste jogo e está muito ligado ao meu trabalho, a minha obsessão

por dualidades e uma possível mistura dos extremos. Considero Berlim, além do mais, uma janela privilegiada para observar o mundo, cidade que serviu de tabuleiro para o jogo sangrento entre tantas dualidades. Há vários aspectos interessantes na poesia e arte produzida aqui, que têm tido um impacto grande sobre o meu pensamento. Figuras como Benjamin, Brecht e do núcleo alemão do dadaísmo são centrais para o meu trabalho crítico e poético.

Nas 4 páginas seguintes, poemas de Ricardo Domeneck. Celuzlose 05 - Junho 2010 15


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EU Concentro-me demais no chão. Minha carteira de identidade de bolso, o mais próximo da mão com que escrevo, meu registro geral que nada mais é que instância de discurso. O amor, matéria de hidráulica. Incha-se a memória, se estuma o inverno como se fosse pupa. No inverno quando e onde é você o que o vapor circunda. Mas meu hipotálamo, ou o que quer que em mim balbucia o que pensa, é inútil entre as 12 e as 18 horas. Notívago e diuturno, sinto-me como a ojeriza que a atmosfera dedica ao vácuo ou o dicionário ao que está à ponta da língua, enquanto cinco dedos à esquerda contabilizam à direita minha herança.

Minha língua entre dentes não se quer pantera entre grades. Digo "aqui" e ponho os pés no chão; "eu", e a cabeça entre as mãos; "hoje", enchendo até doer de ar os pulmões. Certeza, não de meio-dia ou meia-noite, mas endereço de avião em voo, latitude e longitude como se o meridiano fosse uma bolha, de pus ou de sabão. Prefiro descarrilhar a saber, já na estação, a caixa postal do destino, este latifúndio. Se a dor não é o dente, restam-me as respostas a perguntas há muito esquecidas, e apenas a vontade de seguir as pegadas em trilha oposta, como se alguém acoplasse aos calcanhares os dedos. Maciez de pedra perdida em meio ao algodão, existo com rochas, digerindo com antas e a adorar com anjos, e faço do meu nome o mundo, meio do ente em ato da matéria, isto ou aquilo.

(Poema inédito) 16 Celuzlose 05 - Junho 2010


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O DONO DO CORPO a Verônica Veloso entre veia e espinho o diálogo é explícito mesmo o cadafalso exige da minha perna a perfeição, do meu passo o preciso à iminência do penhasco é mais atento o metacarpo e o rosto encolhe perante a navalha a terra não se furta a cobrir-me nem hesitaria em esmagar -me usando meu próprio peso o refúgio de ao menos uma única relação justa entre dois corpos entre os pés e o solo não há espaço para dúvidas minha mão toca meu peito: eu passo, então, a existir em dois pontos, como se um rio fosse a soma de uma superfície e duas margens? meus ossos não são inquebráveis e o júbilo é um improviso difícil

(Carta aos anfíbios) Celuzlose 05 - Junho 2010 17


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O ANJO DA REPRISE

num voo sobre o atlântico espera-se muita água mas abre-se a janela aleatoriamente para ver uma ilha vulcânica “no meio do nada” alguém ousaria dizer não se tenta o acaso o nascimento desce e as águas espalham-se pelo chão para merecer um nome ele diz que beberia as águas do atlântico no café-da-manhã tanto sal impede o nascimento o mundo simpático não há ironia no acaso só na vingança da vontade o chão é fértil demais para o acaso assim ele jorra por todos os cantos detenham-no vontade nome grito

(a cadela sem Logos)

Fé cega no informe dos olhos, os dedos de Tomé pela ferida do prego, distância, bússola e intransigência do horizonte, pela cabeça da mulher de Ló talvez apenas a certeza de não ser capaz do olvido: o único inominável é o long forgotten ou, cego de ciúmes, o medo de ter à cama um monstro define o que se troca entre os olhares de uma Psiquê erotizada e um Eros psicótico no instante à vela e agora vejo-te em parte e aguardo sentado pelo relatório de Medeia sobre a lição de quem arrisca urrar "meu reino por um amante", já que nessa novela não veremos o rosto de Jasão sem filhos jazer em divórcio sobre as folhas enrodilhado ou de joelhos, a barba de três dias e o sol queimando as unhas, o quotidiano longe dos olhos ou o anjo que volta o rosto sempre à espera das facas às costas.

(Sons: Arranjo: Garganta) 18 Celuzlose 05 - Junho 2010


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2 videopoemas e 1 work in progress

Pequeno estudo sobre os ciúmes http://www.youtube.com/watch?v=ghpTOhUi8rA

Hap http://www.youtube.com/watch?v=Ee4km97ik9U

A educação dos cívicos sentidos http://www.youtube.com/watch?v=Ag0hI7D4eN8

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Érica Zíngano Mantém o blog 1000 e 1 notas (genéricas) - http://mileumanotas.wordpress.com A série "minha coleção de poemas" é uma série aberta. Talvez, no final da minha vida, eu organize os poemas que terão surgido até lá, numerando-os, para assim criar algum encadeamento entre eles. Talvez não. Talvez eu abandone a ideia de colecionar poemas. Talvez simplesmente eu perceba que não terei mais tempo para colecionar e consequentemente organizar poemas. Talvez eu pare de escrever poemas de uma hora para outra, sem ter organizado nada. Não, não, talvez eu pare quando já estiver com 1000 e 1 poemas. Talvez eu morra antes de dar cabo aos 1000 e 1 poemas, não sei. Talvez os críticos especializados em organizar poemas irão propor inúmeras organizações possíveis e eu não terei que organizar nada. Talvez, de fato, eu não sei.

MINHA COLEÇÃO DE POEMAS

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Érico Nogueira É poeta e tradutor. Venceu a primeira edição do "Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura" (2008) na categoria Poesia com O livro de Scardanelli, sua coletânea de estreia. É colunista do Terra Magazine, colaborador da Dicta & Contradicta e, como bolsista do CNPq, atualmente mora em Roma, onde realiza estágio de doutorado na Università degli Studi di Roma "La Sapienza". Seu próximo trabalho, Dois, tem lançamento previsto para agosto de 2010. Blog: www.ericonogueira.blogspot.com

O BAÚ DE CAVAFY

DOIS CAVALOS O herói tombou: e logo na medula seus cavalos sentiam a desdita enquanto a mão – tão douta, tão exata – os deixava, dois barcos, à deriva. Ao grito estrídulo de escudo e espada, os animais choraram sem destreza: sem consolo, brutos, indomáveis, renegaram, pisando, o rés-do-chão. Vendo-o Zeus (tão cativo da beleza), sentiu pequeno o coração, maciço, e “meus cavalos, por que chorar, por que”, falou, “se lei mortal vos não oprime?” Mas os cavalos, meio por prazer, cheios de sombra e pó nas ferraduras, insistiram no sangue, pele e músculos da beleza mortal – delícia e logro.

LE RÉFUS Passam como sombra, alguns; a outros chega o dia da grande escolha, irrepetível, do “sim” ou do “não” – sem recurso nem volta. A maioria diz “sim”, a fronte erguida entre louros e pâmpanos, sem remorsos, e correm a meta prescrita na lei. Mas quem diz “não” – ai – está sempre em litígio; tem réu e juízes no foro mais íntimo; definha entre os autos – sem luz nem sentença.

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NO MEIO DOS BÁRBAROS

O POETA E A CIDADE

Não foi explosão demográfica nada: a turba vulgar – natureza inquieta – notou que os melhores, na urbe, eram poucos e menos ainda no império vazio.

Na foz do Nilo velho, o cais cheirando podre – a boca da cidade e suas prostitutas –, eu quis um outro Nilo, em luta com outro mar, e longe do deserto, além, outra cidade.

Primeiro a assembleia, o senado, a coroa o vulgo, infestando, estuprava a matéria; depois o cinzel, o tinteiro e o púlpito: então o impalpável – a forma – estuprava.

Meu cérebro fundi, cortei do pulso as mãos, e o músculo cardíaco, ai, atrofiei; sem livro e sem farol, vivendo embalsamado, fugi de Alexandria em busca de outro deus.

Ao lado de alguma ametista, tão rara, há montes de vidro sintético, espúrio; querer que o proclamem ao mundo – mas como? Mas como – se vidro confundem com joia?

De pórfiro e de mármor toda construção, entrei numa cidade toda matemática: “Fileiras paralelas, nada irregular; parece um cemitério – sim, parecem lápides.”

Um grego queria um jardim e, severo, cuidou de um canteiro que o deus descuidava; nasceu-lhe uma orquídea – uma só – não secou; viceja no Olimpo, divina, dileta.

E vi que não há fuga, a vida é uma ruína, a morte um edifício alvíssimo e correto. “Não sei qual o pior; – mas e Jerusalém?” E o vento vem e vai, o vento além, lá cima.

DISSIMÉTRICO Patético o corpo que se embalsamasse no auge da forma, e num túmulo hermético se trancafiasse, coroa-de-rosas e olor de jasmim temperando a figura. Estéril a voz que trincasse o cristal, vencesse o ouvido e sumisse da goela sem antes dizer todo o bem, todo o mal, e o núcleo de nós, tão vazio e secreto. Histérico, enfim, o desejo de glória, de corpo, de voz, de porquê, de remédio, que mata de enfarte, não mata de tédio, e quando, soberbo, possui, joga fora.

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Floriano Martins Fortaleza, 1957. Poeta, editor, ensaísta e tradutor. Criou e coordena o Projeto Editorial Banda Hispânica (Fortaleza, Brasil), que inclui a revista Agulha Hispânica. Dirige, juntamente com Maria Estela Guedes, a Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências (Lisboa, Portugal), e com Soares Feitosa o Projeto Editorial Banda Lusófona. Coordena a coleção Ponte Velha de autores portugueses da Escrituras Editora (São Paulo, Brasil). Organizou algumas mostras especiais dedicadas à literatura brasileira para revistas em países hispano-americanos: Narradores y poetas de Brasil (Blanco Móvil, México, 1998), La poesía brasileña bajo el espejo de la contemporaneidad (Alforja, México, 2001) e Poesía brasileña (Poesía, Venezuela, 2006). Também organizou a mostra Poesia peruana no século XX (Poesia Sempre, Brasil, 2008), ao mesmo tempo em que foi corresponsável pelas edições especiais Poetas y narradores portugueses (Blanco Móvil, México, 2003), Surrealismo (Atalaia Intermundos, Lisboa, 2003) e Poetas y prosadores venezolanos (Blanco Móvil, México, 2006). Esteve presente em festivais de poesia realizados em países como Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, El Salvador, Espanha, México, Nicarágua, Panamá, Portugal e Venezuela. Trabalha ainda com fotografia, colagem e design, tendo realizado exposições e capas de livros. Curador da Bienal Internacional do Livro do Ceará (Brasil, 2008), e membro do júri do Prêmio Casa das Américas (Cuba, 2009). Professor convidado da Universidade de Cincinnati (Ohio, EUA, 2010). E-mail: floriano.agulha@gmail.com

ALICE Teus beijos ensaiam uma alegoria em meu dorso. Eu os sinto como árvores dançando, flamejantes pétalas, constelação de árvores em plena colheita a sussurrar: todo homem é uma recriação. Apontas uma cidade longe em minha vertigem. Vendaval de migalhas, ilhas cegas, velhos mapas que não contavam com teu desamparo. O amor gira sempre em torno de si mesmo. Passa por aqui a galope o teu sexo emocionado, tua piedade de Deus bicada de remorsos. Um castelo agitado repleto de males menores e o vestido de baile de tua primeira ilusão. Passam máscaras como um pranto de roedores e luzes afogadas em poços da mais meiga solidão. Um único personagem em ti se atreve a falar e me acusa de jamais haver saído do poema. Aqui estou eu desfeito em verso, mal recriado, e sem saber como evitar voltar a ser o que sou.

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Poemas inéditos que integram o livro La efigie sospechosa (A efígie suspeita), com edição bilíngue (Espanhol/Português) prevista para 2010 (Ediciones Andrómeda, San José, Costa Rica). A tradução para o espanhol é de Marta Spagnuolo.


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ÂNGELA

OLÍVIA Eu roubo os declives crispados da luz na cavidade de teu abraço, audácia de suores com que interrogas certos pontos encobertos na brenha de vícios que renascem em teu corpo. Não há melhor saída para o indício que queres instigar em minhas águas. Embaralho tuas quedas incompletas, suas hipóteses rompidas entre beijos. Erras de um extremo a outro da pena, revelando tuas máscaras insuspeitas nos tecidos dissipados da escrita. Refaço tuas dores enquanto pensas que o fogo não me queima dentro de ti.

Teu corpo e o meu caindo sobre o mundo: noite saqueada por uma caravana de relâmpagos. Despojos do tempo foragido de sua fonte, minando abismos à deriva, perdas flutuantes. O rosto deformado da beleza que as ruínas cultuam, linguagem extraviada ao querer entrar em si. Teu corpo e o meu em sua queda mais secreta. Um labirinto que fosse um deserto e um deus ciente que dali não há retorno. Fuga de trevas. Os disfarces fatais da memória ante o infinito. Indetíveis sombras caindo sobre o mundo. Teu corpo e o meu: o que resta de um no outro.

ZENAIDE

SELMA Teu incêndio forma uma cadeia de labirintos, despojos aflitos com seus rios queimados. Um corpo remando contra os delitos prolongados numa margem e outra, ritos carregados de súplicas e negras portas. Alfabeto de pedras a recolher seus espectros, como um estoque de dores em armários [suspensos, tudo ali parece queimar em modos distintos: furor de salmos com passos descontrolados, cinzas maltratadas sem saber onde cair. Teu incêndio funda uma reserva de tumultos. Um corpo imerso em lágrimas vulcânicas, violando os nomes que dedico a seus rostos, cada um abrindo as covas de seu testemunho.

A tua caligrafia vibra em meu corpo, suspende as distâncias, recria portas, a desgastar-me de tanto entusiasmo. A meiguice de tua escrita me esvazia. Eu me lavo com tuas palavras, e navego a insensatez de suas virtudes: falam através de mim em impetuoso idioma. Por onde viajo há mil anos me eleges, sempre o mesmo homem relendo sombras, como se em transe a pele fizesse aflorar uma outra agonia, vômito de vertigens, um novo hóspede de teu fogo, anjo tremente com seu manuscrito arrebatado e sutil. De um súbito naufrágio em teu ser renasço.

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Lígia Dabul Vive no Rio de Janeiro, onde nasceu. Tem poemas publicados em antologias, revistas e jornais literários, impressos e virtuais, do Brasil e de outros países. Publicou o livro Som (Editora Bem-Te-Vi, 2005) e a plaquete Algo do Gênero (Arqueria Editorial, 2010). Em 2007, recebeu da Biblioteca Nacional bolsa para escritores com obras em fase de conclusão. O livro Nave (Lumme) encontra-se no prelo. É antropóloga, professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense, onde trabalha com antropologia e sociologia da arte. Tem diversos trabalhos publicados nessa área.

VÃO CENTRAL Habito animais agora. Meu bico atravessa flores presas a pernas compridas até pétalas eriçadas como penas – o vento passa pela ponte a muitos metros por hora. De dentro da coleira persigo outros deles lambendo a língua negra escorrida por trás do último bloco. No canteiro não há ninguém. E eu sou só isso – o que vejo – uns bichos – da janela.

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TRADUÇÕES Na amurada dá ordens a peixes abissais. Da outra vez domesticou as ondas. Pirata que protege. O tesouro nunca esteve no fundo do oceano. * Guardo a arca com os vestígios – lente, tridente, panos. Ouro onde a vista não alcança.

CEDIMENTO Magra. Osso e arame farpado. O cavalo ferido em frente inquieto. Ela não espera. Abre o tecido engomado com os óleos que ainda insistem. São cores pálidas de fibras. Quase uma investida essa demora. Está furioso. O varal rasga inteiro. Uma dor do bicho se entrega.

LAMPEJO Despencou daquela altura porque quis. Estava bem ferida. Sangrava há horas. Podia acabar ali mesmo, sozinha no alto do prédio, a respiração difícil despregando, a escuridão entrando pela boca. Talvez quisesse experimentar o voo de asas vermelhas que nunca vira.

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Marcelo Hilsdorf Marotta Nasceu em 1972 em Piracicaba, SP. É formado em Ciências Sociais pela UNICAMP e é Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, onde defendeu dissertação sobre a iconografia do encontro entre Ulisses e as Sereias nas urnas cinerárias etruscas. Atualmente desenvolve pesquisa de Doutoramento em História da Arte na UNICAMP sobre o retrato antigo. Também é professor de História da Arte e Arqueologia Antiga, particularmente junto ao Projeto Cultura, SP. Começou a escrever poemas ainda no ginásio, sendo que os dois poemas aqui figurados fazem parte de um pequeno livro ainda não publicado, e que se chama De Vinha Comédia: o Álbum Negro, Musgo e Carmim, que contém poemas escritos, nos últimos 20 anos, tanto em português como em inglês juntamente com desenhos digitais feitos pelo autor. Outro poema do mesmo livro citado acima, O Canto Híbrido da Pedra, foi publicado na revista Ciência e Cultura, ano 62, no 2, abril/maio/junho de 2010.

A FOICE DE OURO A falta transitando o oco Faz no corte profundo e lodo Do veio intumescido e todo O expelido jorrar-se dentro E o estanque tornar-se fora. A falta transformada em ouro Faz ouvir na fenda o canto - eco e puro De silêncio solto Em urro Por ferro ungido em sangue E sumo fugido ao meio. E a falta transpirando exangue Faz deitar com berro o mote - de vida e de morte Que pela tez fingida veio De profano tombo e corte No outro sagrar-se seio.

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À LAGUNA MOVEDIÇA Densa, mas vagarosamente, Ecoam nos mil platôs das musgo-rochas movediças Os lúgubres cantos dos pássaros Que revoam pesadamente ao pálido ocaso. Um Adagio crepitar crepúsculo-ovular de larvas Corrobora intimamente A autoindiferença dos plátanos partidos Num lânguido ímpeto, crescendo. Geram no festim viscoso, Arremedo de cetim doloroso, Um refluxo prateado - Brumoso - , Reflexo da incompreensão Na qual jazem as águas podres De minha solidão. Desperta em silêncio, Uma lágrima arredia Rumina em revelia, E desce cediça Seu caminho de perdição À laguna movediça De severa sanção. Nessa grande arena deserta almejo, Do peito, um último grande fonema. Mas dos meus lábios apenas entrevejo Um lesto poema Cujo tom faz ceder o passo - Só mais um traço! – E pronto! Já me desgraço...

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Mariel Reis Carioca nascido em 1976. Cursou Letras na UERJ e já publicou nos seguintes periódicos: Jornal Rascunho, Panorama da Palavra, Rio Letras, Ficções no 11, Cult, Outros Baratos (Revista do Sebo Baratos da Ribeiro). Possui trabalhos publicados nos seguintes sites na internet: Paralelos, Patife, Panorama da Palavra, Germina, Cronópios, Confraria do Vento, Dubito Ergo Sum, Revista Maria Joaquina e Pitanga. Participou das seguintes antologias: Paralelos - 17 Contos da Nova Literatura Brasileira (Editora Agir), Prosas Cariocas: Uma Nova Cartografia do Rio (Casa da Palavra), 4 Contos (Editora da Palavra), Como Se Não Houvesse Amanhã (Record). Livros publicados: Linha de Recuo e outras estórias (Editora Paradoxo), John Fante Trabalha no Esquimó (Calibán, 2008) e Cosmorama (Paradoxo, 2009). Experimenta novas maneiras de divulgar a literatura participando do projeto Na Tábua, organizado por Paulo Scott, através de contos-cartazes. Blog: Cativeiro Amoroso e Doméstico http://cativeiroamoroedomestico.blogspot.com

ABSOLVIÇÃO

Todas as famílias felizes se parecem, NÃO ESPERAVA TOMAR A FACADA. NÃO DELA. NÃO POSSO DIZER QUE A GENTE SE AMAVA QUE NÃO BRIGÁSSEMOS. MAS CHEGAR AO EXTREMO COMO AGRESSÃO FÍSICA, NÃO DOUTOR. SE ELA ME ESTOCOU, NÃO ME AMAVA? NÃO POSSO RESPONDER. MAS PERDI A CABEÇA, PERDI MESMO. TOMEI A FACA DA MÃO DELA. EU SANGRAVA COMO UM PORCO. MAS ESTAVA COM UMA PUTA RAIVA, UM TROÇO ME QUEIMAVA POR DENTRO, MINHA CABEÇA SÓ PENSAVA EM FUDER AQUELA FILHADAPUTA. ELA CORREU PARA SE TRANCAR NO QUARTO. ARROMBEI A PORTA. COMEÇOU A JOGAR AS COISAS PARA CIMA DE MIM. AH, A COISA NÃO PRESTOU. TUDO POR CAUSA DE UMA CONVERSA MOLE, TAL E COISA, DE QUE EU DAVA EM CIMA DA FILHA DELA, UMA MULHER JÁ, SEU DOUTOR. CORPO FEITO, TUDO NO LUGAR. SÓ ANDAVA PELA CASA DE SHORTINHO CURTO ENFIADO NO RABO. A CARNE É FRACA, MAS ME SEGURAVA. TEVE UM DIA QUE A GAROTA NÃO SE CONTEVE. FALTA DE PICA, SABE COMO É? EU TAVA ASSISTINDO UM JOGO DO FLUMINENSE, TIME DO CORAÇÃO, TOMAVA A MINHA CERVEJA E ELA COMEÇOU, PEDIU PARA SENTAR DO MEU LADO NO SOFÁ. FALEI PRA ELA: TU NÃO GOSTA DE FUTEBOL. VOU TORCER PRO TIME DO MEU PADRASTOZINHO. AÍ ELA INVENTOU DE FICAR NO MEU COLO. TUDO BEM. NÃO MALDEI. ERA BOM QUE A GENTE TIVESSE UM RELACIONAMENTO BACANA, NÃO POSSO TER FILHO, A MÃE DELA SE QUEIXAVA SEMPRE DE QUE A GENTE NÃO SE ENTROSAVA E COISA E TAL. ELA PEDIU UM POUCO DA MINHA CERVEJA. SÓ NÃO FALA PARA SUA MÃE, SENÃO DÁ MERDA. A MINHA ENTEADA COMEÇOU A SE SOLTAR. A BEBIDA SUBIU PARA A CUCA DA MENINA. A ESFREGAÇÃO DA MÃO DELA NO MEU PAU. EU NÃO SABIA COMO CONVERSAR COM ELA. PEDI: PARA COM ESSA PORRA. SOU HOMEM. AÍ DOUTOR, SABE O QUE ELA ME DISSE? É ISSO QUE EU QUERO VER. ME COME COMO VOCÊ COME A MINHA MÃE LÁ NO QUARTO. VOCÊ FICA ESPIANDO A GENTE, É? ESPIO, RESPONDEU A PUTINHA. NÃO AGUENTEI.

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DESCARREGUEI UM ESPORRO. MAS ELA NÃO SE EMENDAVA. ME XINGA, SEI QUE VOCÊ GOSTA DE CU. VEM COMER O MEU, VEM. DOUTOR, A CARNE É FRACA, QUEM NO MEU LUGAR NEGARIA FOGO, QUEM? LARGUEI A TELEVISÃO LIGADA, O JOGO ROLANDO, A CERVEJA SOBRE A MESA E ARRASTEI A VAGABUNDINHA PARA O QUARTO. E COMI. ELA GOZOU MESMO. GRITAVA: ME FAZ GOZAR, FAZ. EU METIA. PERDI A CABEÇA. AÍ MINHA MULHER CHEGOU. ELA ANDA QUE NEM GATO, DOUTOR. NÃO FAZ BARULHO QUANDO PISA. SURPREENDEU A GENTE PELADO, TREPANDO. EU E A FILHA DELA. IMAGINA A MERDA. FICOU VENDO A GENTE SE REGALAR NA TREPADA, NÃO FALOU NADA. SÓ DE BICO FECHADO. FOI ATÉ A COZINHA, PEGOU A FACA E DEU NA MERDA QUE DEU. GOLPEOU A PRÓPRIA FILHA. A MENINA CAIU ENSANGUENTADA. DEPOIS VEIO PARA CIMA DE MIM. ME ENFIOU A FACA. ME SANGROU COMO SE EU FOSSE UM BICHO, UM PORCO. ELA, TUA FILHA, QUE QUIS ME DAR. COMI PORQUE É MINHA OBRIGAÇÃO. SOU HOMEM, PORRA. FUI CARINHOSO COM ELA COMO SOU CONTIGO, DISSE. A MULHER SE QUEIMOU MAIS. SE PUDESSE ME MATAR ALI, ME MATAVA. DOUTOR, DEPOIS QUE BOTEI ABAIXO AQUELA PORTA, ENFIEI A PORRADA. BATI DE MÃO FECHADA PRAQUELA FILHADAPUTA NÃO ESQUECER, MAS ME ARREPENDI. É MINHA MULHER, NÉ. LARGUEI ELA DESMAIADA NO QUARTO, CORRI PARA RUA, PEDI AJUDA. LEVARAM A GENTE, EU E MINHA ENTEADA, PARA O HOSPITAL. REZA PRA TUA FILHA VIVER, OUVIU DIREITO, SENÃO TE ACERTO LÁ FORA. TUA BRONCA ERA COMIGO, RESOLVIA COMIGO. METER A FACA NELA NÃO FOI CERTO. VOU TE FUDER, MINHA MULHER ME DISSE, SEU DOUTOR. DIZENDO ALI NA MINHA CARA. VOU TE METER NA CADEIA, COMEU A MINHA FILHA, FUDEU A MINHA VIDA. SE HOJE ESTOU EM CANA, AGRADEÇO A ELA. MAS O TROCO É O MELHOR. QUANDO FUI PRESO, MINHA ENTEADA ESTAVA RECUPERADA, TEVE ALTA DO HOSPITAL. ACOMPANHOU OS CANAS ATÉ A DELEGACIA, VIU ME BOTAREM NA GAIOLA. ESTEVE NO MEU JULGAMENTO, PEDIU AO JUIZ PARA QUE ME ABSOLVESSE. MAS NÃO TEVE APELAÇÃO. as infelizes o são cada uma a sua maneira. AGORA AS DUAS VÊM ME VISITAR. A MENINA É MINHA SEGUNDA MULHER. A MÃE SEGUROU AS PONTAS NA BRONCA DA GAROTA, ACEITOU DIVIDIR SUA PARTE E AS DUAS SE ENTENDEM. FALEI PARA ELAS QUE SE DER QUALQUER MERDA, MANDO AS DUAS PARA A PUTA QUE PARIU. MULHER É QUE NÃO FALTA NO MUNDO. MAS SE ME ARRUMASSEM MAIS PROBLEMAS, NÃO ATURARIA. PREPARAM JUNTAS AS COMIDAS, COMPRAM MEU CIGARRO, ME TROUXERAM A TELEVISÃO PARA VER O MEU JORNAL. AQUI NÃO ME FALTA NADA. CUIDO PARA NÃO FALTAR NADA PARA ELAS TAMBÉM. COSTURO BOLAS AQUI NA CADEIA. O DINHEIRINHO QUE ISSO RENDE, MANDO PARA ELAS. A SACANAGEM MELHOROU BASTANTE. AS DUAS ENTRAM NO CLIMA E EU ME DOU BEM À BEÇA. MAS, AGORA É NÓS DOIS, DOUTOR. O RECURSO DEU RESULTADO? QUANTO TEMPO MAIS VOU FICAR NESSA ESPELUNCA? DOUTOR, VOCÊ TEM ALGUMA NOVIDADE PARA MIM?

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Paulo Vieira Poeta, escritor e engenheiro florestal. Nasceu em 1978, na Amazônia. Estreou em 2004 com o livro de poesia Infância Vegetal, ao que se seguiram Orquídeas Anarquistas (2007), Livro Pescaria com Linha de Horizonte (tinta, braile, Ilustrado por D'Arcy Albuquerque, 2009), Livro para Distração na Tragédia (2009), este último de prosa. Atualmente tem no prelo o livro Retruque e o disco Retoque (baseado em poemas do livro, musicados por Henry Burnett). Colaborou com a revista Poesia Sempre da Biblioteca Nacional, teve poemas selecionados por Benedito Nunes para a Revista de Estudos Avançados da USP, entre outras. Participa da coleção Roteiro da Poesia Brasileira no volume Anos 2000. Recebeu duas vezes o Prêmio IAP de Literatura, foi destaque no prêmio literário da Casa de Cultura Mário Quintana, venceu a primeira edição do Prêmio Dalcidio Jurandir de Literatura na categoria Crônica, e, mais recentemente, ganhou a Bolsa Funarte de Criação Literária. Vive em Belém. Blog: http://vieiranembeira.blogspot.com, e-mail: pauloforest@gmail.com

ANTECEDENTES tudo que nas entranhas celestiais se (irr)adia são estrelas com viço de sementes

DESACALANTO o morcego míope abraça a tarde falecida em teu peito e com asas surdas te mostra suas ramagens sombrias além dos desfiladeiros e do interior das cavernas mas não chores não que os vermes operários, destarte, comovidos, se dispersam do trabalho e as colunas de gelo que sustentam as tendas da madrugada se dissolvem contumaz, o dia oculta-se nervoso enquanto a brisa domina seus penhascos mas não chores não que minhas árvores não resistem ao incêndio de teus olhos

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TRAMA deves tramar o poema enquanto há sereno e teu relógio líquido se derrama nas ramagens da campânula deves ouvir os passos saber a imagem da mulher te seguindo (seus braços de treva erguendo a foice minguante sobre tua cabeça) deves sentir o sangue derramado ao pé do cipreste deves tramar o poema & nadar (contracorrente) enquanto o coração não entende as rodas dágua atropelando peixes no marnoturno deves tomar de minhas mãos este cálice devastado e na fronteira entre o meu e o teu país deves erguer uma fogueira

CIO IN PELO tua voz muda enquanto falo (silên) cio in (do) pelo ralo

NA ASA DO MORCEGO BRANCO

ENIGMAX M ou essa noite me devora ou defloro a

a noite abriu-se feito ferida enegrecida na asa do morcego branco e do ombro da tempestade um rio escorre e a cachoeira desce por corredeiras de nuvens até às represas do crepúsculo sob subterrânea miragem (o rancoroso espantalho do amor a emplumar secos pássaros de trigo) planto em teu pátio um arvoredo retorcido para celebrar os desejos do vento

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Prisca Agustoni Nasceu em Lugano (Suíça), 1975. Morou muitos anos em Genebra, onde fez pintura, teatro e, para manter os estudos, trabalhou como secretária executiva, professora, recepcionista, representante de chocolate e revisora. Desde 2003, mora entre o Brasil (Minas Gerais) e seu país. É poeta, prosadora e tradutora. Escreve em italiano, francês, português e espanhol, sendo a convivência entre os vários idiomas “seu destino e sua danação”, como diria Baudelaire. Colabora com diferentes artistas plásticos e fotógrafos, realizando projetos a quatro mãos. Suas mais recentes coletâneas de poesia são La morsa (Lugano, Alla Chiara Fonte, 2008), A recusa (Lisboa, Pasárgada, 2009) e A morsa e outros poemas (BH, Sans Chapeau, 2010). Tem no prelo sua estreia poética em francês.

1. : é alguém que bate à minha porta quando ela está fechada. é outro este que se aproxima no dia seguinte: seus cabelos são agulhas que conjuram o espanto

2. (a recusa é o único diálogo possível entre nossos desejos que erram como dois órfãos e umedecem as palavras)

: permanece por dias entre a escuridão e a soleira quase entrando

3. Aquela reiterada partida várias vezes simulada pelos trens move-se sem prumo na memória e é minha a mão assassina que esmaga o coração como o rastro sobre a neve.

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5.

4. uso uma língua de respiração incerta, pois não percorre nem a medula nem a torção do verbo

Se, como você diz, ninguém é mais flor do que eu, por que minhas pétalas são sílabas que se tornam palavras úlceras entre as mãos ao invés de imitar o lento abrir-se de uma rosa?

: já não sabe amputar os rostos ainda vivos nos retratos e deserta em mim a voz

7.

6. Escorrem os minutos em parcimoniosa sucessão: a tarde é um arrepio de lycra, minha collant cor de conhaque torna-se uma máscara sutil e vingativa.

A indiana envolta no tule passou por mim e me sorriu. Porque eu também sou de outro lugar, e estou relativamente bem nesta cidade de ninguém.

É tarde demais até para as instruções.

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Literatura sem Fronteiras

Anila Resuli Nasceu na Albânia em 1981 e mora na Itália desde 1997, perto de Milão, onde estuda língua chinesa e japonesa. Colaborou com vários poetas italianos contemporâneos, além de ter traduzido poesia albanesa contemporânea. Gerencia o projeto de publicações Ebook da Clepsydra Edizioni. Mantém um site pessoal (www.anilaresuli.com), onde são encontrados os seus e-books: Parodia a scale; Petali vorticanti; L'io in calce; Anagramma di un mondo; Tichettio distante e Veglia segreta.

e toda a noite, me explique, como uma teia segue uma única vítima, um só corpo ao qual pertence: eu hoje renego-me e amanhã me quero inteira, toda num talo curto de uma magnólia, toda numa planta sem raízes como minha sombra; o ornamento muitas vezes abre-se até apagar-se com a sombra pendurada no frágil caule, seja de morte ou de vida.

e tutta la notte, spiegami, come una ragnatela segue una sola vittima, un solo corpo a cui appartenere: io oggi mi rinnego e domani mi voglio tutta, tutta un gambo corto d'una magnolia, tutta una pianta senza radice come la mia ombra; l'ornamento spesso si spiega al punto di cancellarsi con l'orma appesa all'esile stelo, che sia di morte o vita.

não me deixe aqui como amante, mas como carne silenciosamente suspensa para ser agarrada e atormentada: o jogo está no sacrifício; o surdo da palavra não nega a sílaba, a côncava parede que dá ao som e a ordem das cordas que muda. o quarto talvez se esquece onde fomos uma anca e uma porta fechada, uma parede circular sobre as cabeças petrificadas no escuro.

non lasciarmi qui da amante, ma da carne silenziosamente appesa per essere presa e tormentata: il gioco sta nel sacrificio; il sordo della parola non nega la sillaba, la conca parete che dà al suono e l'ordine delle corde che muta. la stanza dimentica forse dove fossimo un'anca e un uscio chiuso, una parete circolare sulle teste pietrificate al buio.

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nossas mãos sabem quanto se pertencem nos nervos descobertos que o tempo lacera e consome: o lamento corrige até o som na boca, o perfume da pele que inquieta até o sonho. misturados à alma, esqueço de ser outra, um corpo (lar que se ajusta) que de ti se enfeita.

le nostre mani sanno quanto appartenersi nei nervi scoperti che il tempo lacera e consuma: il lamento corregge pure il suono alla bocca, il profumo della pelle che tormenta anche il sogno. mescolati all'anima, dimentico d'essere altra, un corpo (dimora assestante) che di te s'adorna.

firma minha pele sobre tua boca e faz dela um galho como osso de árvore que se quebra e se contém; rege aqui um pouco do teu olho surpreso pelo meu cheiro. se você soubesse quanta espera exige o amor; se você soubesse como eu, longa, desde meu ventre até seu joelho me surpreendo outra. pequena, embora grave, a chama encaixa na sua boca e no seu dente, forte, e muda-se.

sostieni la mia pelle sulla tua bocca e fanne un ramo come un osso d'albero che si lacera e si trattiene; volgi qui un po' del tuo occhio sorpreso del mio odore. sapessi quanto aspettare richiede l'amore; sapessi come io, lunga, dal mio ventre al tuo ginocchio mi sorprendo altra. piccola ma greve, la fiamma s'incastra alla tua bocca e al tuo dente, forte, diviene ancora.

(Tradução: Prisca Agustoni) Celuzlose 05 - Junho 2010 37


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Fabiano Alborghetti Nasceu em Milão, Itália (1970) e mora em Paradiso (Lugano, Suíça). Publicou Verso Buda (2004), L'opposta Riva (2006) que foi traduzido para o inglês pela Marick Press de Detroit, e Registro dei fragili (2009) que está em fase de tradução para o francês. É consulente editorial, criou e dirige o único programa de difusão da poesia numa web-rádio na suíça, escreve para revistas, sites e muito mais. Site pessoal: www.fabianoalborghetti.ch

Tenho vinte anos de faíscas ele me dizia mas sou um corpo qual estação sem salvação: peço pouco apenas o justo para tocar a vida mas não basta. Outra coisa não lembro para ter as palavras: me dê outra coisa que não o dinheiro, me dê um senso...

Ho vent'anni di scintille mi diceva ma sono un corpo che stazione senza scampo: chiedo poco giusto il giusto per campare ma non basta. Altro non ricordo ripeteva per avere le parole: dammi altro che il denaro dammi un senso…

O êxodo tem menos ultraje do sepulcro acredite em mim, assim a ausência sepulta mas só na memória: aos corpos sumidos não pesa o lugar vacante como a quem cava...

L'esodo ha meno oltraggio del sepolcro credimi, così l'assenza seppellisce ma solo nella memoria: agli scomparsi corpi non pesa il luogo vacante come a chi scava...

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O vinho todo se assemelha mas é a ocasião que dá senso ao beber: antes brindava às comunhões ou com os conhecidos mas agora parece xingamento levantar o vidro ao lábio, para quem bebo ele dizia para quê? Quem perde tudo não festeja. Nem a salvação. Qual coragem à leveza tem quem é sepultado qual peso cada singelo gole para quem fica?

Il vino si somiglia tutto ma è l'occasione che rende senso al bere: prima brindavo alle comunioni o coi conosciuti ma adesso sembra bestemmia alzare il vetro al labbro, per chi bevo diceva per cosa? Chi perde tutto non festeggia. Nemmeno la salvezza. Quale coraggio alla leggerezza ha chi è sepolto quale peso ogni singolo sorso a deglutire per chi resta?

Agora recomeça o conflito como a traição: onde deixei assim encontro ele dizia assim como você vê meu rosto sem jeito. Após a explosão o atentado, olha para o fim a matéria de loucura que governa o nada a não ser a conta dos vencidos. Quem se rende primeiro não sei dizer mas como você vê e o que agora? Como duvida o espaço e o homem que desconfia de quem chega, de quem foi?

Adesso ricomincia il conflitto come il tradimento: dove ho lasciato così ritrovo diceva così come tu vedi il mio viso fuori luogo. Dopo l'esplosione l'attentato, guardalo il fine la materia di pazzia che governa il niente se non la conta dei vinti. Chi arrende prima non so dire ma come vedi e cosa adesso? Come dubita lo spazio e l'uomo che diffida di chi arriva, di chi era?

No livro L'opposta Riva, Alborghetti dá voz aos clandestinos africanos e do leste europeu que moravam em “guetos” (Campos de Permanência Temporária) na Itália entre 2001 e 2004, com os quais o autor conviveu. (Tradução: Prisca Agustoni) Celuzlose 05 - Junho 2010 39


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Stefano Raimondi Nasceu em Milão, Itália (1964), poeta e crítico literário, formado em Filosofia. Publicou Invernale (Lietocolle, 1999); Una lettura d'anni, (nos cadernos de poesia da editora Marcos y Marcos, 2001); La città dell'orto (Casagrande, 2002); Il mare dietro l'autostrada (Lietocolle, 2005); Interni con finestre (La Vita Felice, 2009). Também publicou ensaios literários, dedicados à obra de Vittorio Sereni, René Char e Paul Celan. É um dos fundadores da revista de filosofia Materiali di estetica.

O inverno desce na garganta. Umas poucas orações apenas passam sem gear até sobre os dedos entre os olhos e a pele. “Tudo se mantém sobre as costas – diz – sobre a espinha que não é de osso e sim de sangue”.

L'inverno scende nella gola. Solo poche preghiere passano senza gelare fin sopra le dita tra gli occhi e la pelle. “Tutto si regge sulla schiena – dici – sulla spina dorsale che non è d'osso ma di sangue”.

...afora nos aproximamos das amêndoas cerradas, muito rápido, pela estação Um só beijo me convenceu e não sei, agora, qual história contar para fazer um tempo verdadeiro, o que dizer. Orla e cílio cinza e braseiro olho e pupila: o que nós vimos por enquanto é um bem estranho.

...fuori ci si avvicina alle mandorle chiuse, troppo in fretta, dalla stagione. Un bacio solo mi convinse e non so, ora, quale storia raccontare per fare un tempo vero, cosa dire. Orlo e ciglio brace e braciere occhio e pupilla: quello che abbiamo visto finora è un'ammenda strana.

No livro La città dell'orto o autor “conversa” silenciosamente com um pai presente e ausente, personificado na cidade de Milão. 40 Celuzlose 05 - Junho 2010


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Essa noite separa e cai. Traz uma estranha escuridão de clepsidra: desce fio a fio, devagar, como um sussurro que traz a cura. Que estranho quando as palavras da vida começam a tremer quando nem basta o eco de uma espinha para juntar todas as noites. Empurrar o silêncio até ele cair não é suficiente. Não há bem que mantenha de pé uma palavra sozinha. Estar entre a lasca e a dor muda.

Questa notte separa e cade. Porta un buio strano di clessidra: scende a filo a filo, piano, come un sussurro che porta guarigioni. Che strano quando le parole della vita iniziano a tremare quando non basta neppure l'eco di una spina dorsale a tenere tutte le notti insieme. Prendere a spallate il silenzio Fino a farlo cadere, non basta. Non c'è bene che tenga in piedi una parola sola. Stare tra la scheggia e il dolore cambia.

As pedras param no silêncio, fazem um distrito de paz. Chega de palavras oblíquas as postas de lado as que não se dirão mais. A maior frase não acaba parece perder-se entre tudo. Os motivos tremem. Agora tua notícia dá a volta nas veias.

Le pietre sostano al silenzio, fanno un circondario di pace. Basta con le parole oblique quelle messe su un fianco quelle che non si diranno più. La frase più lunga non finisce sembra perdersi tra tutto. I motivi tremano. Ora la tua notizia fa il giro delle vene.

(Tradução: Prisca Agustoni) Celuzlose 05 - Junho 2010 41


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Sylvia Beirute É natural de Faro, Portugal (1984). Estuda cinema e teatro. Escreve poesia para mudar o seu mundo e diz-se a favor do Acordo Ortográfico na versão de 1945. Tem colaborações dispersas em revistas literárias de Portugal, Brasil, Espanha e Alemanha. Integra o grupo literário texto-al www.texto-al.blogspot.com e é autora do blog uma casa em beirute www.sylviabeirute.blogspot.com

POEMA DE BENEFICÊNCIA introduza um colapso numa dúvida. recolha-a por elementos. coloque perguntas ao redor. as respostas situam-se entre tempos verbais. um detalhe apaga-se para dar lugar a outro. a memória como um todo. qualquer força para medir é uma inexpressão na arte. não há um só caminho aberto em direcção a um caminho aberto. imperdibilidade é um modo feio de beleza. as coisas mais belas são decíduas porque não assíduas. como aquele fragmento de biografia sem palavras que procura corporalidade no texto. o seu instinto difásico é como um diálogo em que as duas linguagens se friccionam e encontram como que numa orla central em que tudo o resto se autopune até à morte, ficando um quadro de órgãos estrelados. quem entrou aqui introduziu um colapso numa dúvida, recordo. quem tem dúvidas não morre verdadeiramente. recolher elementos de dúvida é uma ocupação como qualquer outra. os ocupados não morrem. a estética escultural do olfacto é mais importante do que as autoestradas. por isso, vá a pé na imaginação férrea do silêncio. cheire a paisagem que se absorve lentamente ao fundo e que rasga com ternura a ternura do céu de outono. não ande demasiado. quanto mais andar mais esperança surge. surgir esperança é surgir um espelho, e um espelho é difuso apenas na interioridade. intimidade. é como o poema. o poema que mudou. que se deslocou até aqui porque fez uso das possibilidades, probabilidades, matemáticas e deslumbres que a arte oferece. ontem, quando o visitei, o poema era literatura. hoje é mistificação das bases. e ter um pensamento único, convenhamos, é a fruição da vanguarda. a vanguarda converte porque gera metades de tudo o resto. e tudo o que é metade se perde.

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DESEJO INFINITESIMAL {que horas eram quando o tempo acabou?} {que horas eram quando deixaste de poder reproduzir clandestinamente a explicação da conclusão do desejo infinitesimal?} {que horas eram quando a razão de espírito substituiu a de ciência na ocupação do abraço?} {que horas eram quando te adiantaste à felicidade no dia que dilui na percepção multiforme da multidão?} {que horas eram quando a boca simulou o silêncio com princípios aleatórios?} {que horas eram quando deixaste que a alma somasse corpos e subtraísse outros?} {que horas eram quando viver era deixar morrer e a solidão incomunicável?} {que horas eram quando o tempo acabou? que horas eram?}

O BEIJO DE RODIN não quero fazer filhos sobre desejos adicionais e tardios, desejos sobre a tela tardia [da tarde, desejos sobre o azul infindável de boas razões indesejáveis. não quero desejos de desejos, desejos que retiram desejo a desejos de tempo raso e de feitio de auto-pertença e leves contradições sem alarme [e gafanhotos. não é em vão que o beijo de rodin é de pedra.

AÇÚCAR-MATÉRIA já ter acontecido: à falta de um vício, ser-me proposto um exemplo de não exemplo, o projecto de ser uma mulher de açúcar, e reverberar a personagem no meu rosto. e nos anti-corpos da pré-exibição ver um piazzolla, um piazzolla também de açúcar e uma composição instantânea, o tango de uma escalada em condição de cristal. sim, já ter acontecido, já ter acontecido muitas vezes: sermos feitos de açúcar, porque assim que a dança começa, piazzolla, sempre os corpos desabam.

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Elogio da síntese* por Carlos Felipe Moisés

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Elogio da síntese? Nada mais fácil: a síntese é uma unanimidade. Todos nós, que lidamos com poesia, seríamos mais felizes se os poemas que nos cercam privilegiassem o espírito de síntese, isto é, se se limitassem ao indispensável, abrindo mão do supérfluo. Não conheci, até hoje, um só poeta ou leitor que defendesse o contrário. Dispensar o dispensável, também, não é difícil, exceto para o poeta prolixo, que ignora a distinção e não dispensa nada, e para quem a receita exposta a seguir será de pouca valia. A receita prevê que você escreva, à vontade, sem se preocupar com método, técnica, estilo, gênero, modelo etc. Passe para o papel, com serenidade ou sofreguidão, tanto faz, tudo o que lhe vier à mente: nenhuma inibição, nenhuma barreira, nada de autopoliciamento. Escreva tudo. Em seguida, comece por eliminar os sinais de pontuação, que não expressam nada, apenas balizam o itinerário, caso você tenha um só. Como convém ter mais de um, melhor não pontuar. Depois corte os artigos, os pronomes, as preposições e as conjunções, que não chegam a ser palavras propriamente ditas, só servem para conectar umas às outras, de forma explícita, as palavras que de fato contam. Mas isso pode ser feito de outro modo: o recorte dos versos, a diagramação, a virtualidade semântico-sintática do espaço em branco etc. Em seguida desfaça-se não de todos (é preciso não radicalizar), mas do maior número possível de adjetivos e advérbios, palavras insidiosas, quase sempre subordinadas, respectivamente, aos substantivos e aos verbos, mas que, diriam os gestores da qualidade total, não agregam valor a estes ou àqueles. Por fim, converta o maior número possível de modos, tempos e flexões verbais ao infinitivo impessoal. Se o que sobrou não fizer sentido, verifique se a reposição de uma ou outra, só uma ou outra, das palavras eliminadas resolve. Se não resolver, jogue tudo fora. Exemplo: caso lhe ocorra iniciar um poema com um verso que diga "Todos os dias, de manhã logo cedo, ao acordar eu canto", talvez fosse melhor ficar só com "manhã" e "cantar", não lado a lado, formando uma falsa frase, mas uma palavra aqui, outra ali. Recomece o poema, deste ponto. Caso isto não lhe agrade, e você prefira continuar como começou, releia o parágrafo anterior.

* A primeira parte deste ensaio é o texto da comunicação apresentada na mesa-redonda “Elogio da síntese”, I Fórum das Letras, Ouro Preto, MG (12/11/05) tema proposto por Alice Ruiz e Rodolfo W. Guttilla. A segunda parte data de 2006 e é inédita.

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No primeiro caso você estará sendo prolixo; no segundo, sintético. Síntese é isto: o antídoto mais seguro contra a prolixidade. Mas repare que não é uma questão de estilo ou de forma, não se trata de uma técnica. É uma questão de sentido. O poema concebido sob a égide da síntese registra apenas os núcleos de sentido essenciais, não perde tempo com os subentendidos, os atalhos, as implicações, as repetições, os ornamentos etc. Que são “núcleos essenciais”? Cada qual sabe dos seus. (Se você está em dúvida, melhor não escrever). O poema prolixo se compraz na proliferação de irrelevâncias, à procura dos tais núcleos – no caso, vagos e difusos, isto é, falsamente “profundos” ou inexistentes. Contra o vago e difuso, a solução é a clareza, que, longe de ser atributo exclusivo de matemáticos e engenheiros, ou de arquitetos, como diria João Cabral, também interessa a poetas imbuídos do espírito de síntese. Em vez de clareza, você pode pensar em precisão, como faz T.S. Eliot: “Falamos como se o pensamento fosse preciso e a emoção, vaga. Na realidade, existe emoção precisa, assim como existe emoção vaga. Toda emoção precisa segue no rumo de uma formulação intelectual”. Desde que não sejam confundidas com “lógica”, clareza ou precisão correspondem à palavra justa. Você a encontrou? Caso não, é desaconselhável sair atrás dela, no papel. Limite-se a observar com mais atenção o que você tem a dizer – a não ser que lhe agrade brincar de palavra-puxa-palavra. Mas, nesse caso, quando o milagre do contágio produzir a aparição da palavra que você vinha buscando, elimine as anteriores, que só serviram de exercício preparatório. A chave é não se entusiasmar, para não se distrair. Mas saiba que “o inútil duelo jamais se resolve”, como adverte Drummond, “e a luta prossegue nas ruas do sono”. Se não é uma questão de estilo, síntese é então sinônimo de concisão, vale dizer condensação, concentração de sentido. Como tal, também não oferece dificuldade: basta prestar atenção ao que você tem em mente. Só não é fácil (a rigor, é quase impossível) para o poeta prolixo, que não se dá conta da sua prolixidade, seja porque considera de suma importância todas as palavras, e até as vírgulas, que ele for capaz de colocar no papel, o que não lhe permite distinguir o indispensável do supérfluo; seja porque seus núcleos essenciais, caso existam, ainda não chegaram ao nível da clareza e da consciência. A prolixidade não é fruto da deliberação (ninguém é prolixo de propósito), mas da inadvertência, e, no geral, pelo menos em poesia, radica na hipertrofia do ego, isto é, na presença de uma voz balbuciante, a buscar, sem rumo, a autoidentidade perdida. O espírito de síntese é uma impossibilidade, também, para o leitor distraído, que não atina com os momentos fortes do poema à sua frente, caso estes existam, e deixa-se conduzir pela quase sempre aliciante cantilena do poeta prolixo e, a exemplo deste último, confunde poesia com devaneio.

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Poesia, antes de ser devaneio, é imaginação ou ficção. Todos, menos o poeta prolixo, o sabem, desde que Fernando Pessoa o definiu: O poeta é um fingidor. Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. “Fingir”, “fingidor” e “fingimento” provêm do latim; “ficção” e “fictício” também – não da forma infinitiva, mas do particípio do verbo fingo, is, finxi, fictum (aí está!), fingere. Poesia é imaginação concentrada, sem tempo a perder com os devaneios autocomplacentes do poeta à procura do seu inefável self. Ou do poeta incapaz de imaginar algo interessante a dizer – interessante, bem entendido, para nós, seus leitores, já que, para ele, tudo o que lhe venha à mente será interessantíssimo. Como se vê, privilegiar a síntese resulta em elogiar o leitor. É só reparar que, além de se contrapor à prolixidade, a síntese se contrapõe também à análise. Mas aí o caso é outro: as incursões analíticas não podem ser simplesmente eliminadas, como eliminamos as superfluidades, segundo a receita da abertura. No poema vazado em estilo analítico, aos núcleos essenciais vão-se agregando, em sequência, naturalmente (se a análise for de boa qualidade), as deduções, os corolários, as inferências, os desdobramentos e por aí vai. Vale dizer tudo exposto, explicado e justificado pelo poeta, como se se tratasse de uma dissertação acadêmica, reduzindo o leitor à condição da mais deplorável passividade. Já o poema sintético oferece ao leitor a possibilidade de intervir. (Lembre-se: enquanto não migrar para a consciência do leitor, o poema ainda não existe). O leitor distraído nem se dá conta de que isso é possível; o desavisado acredita que pode ler, nos versos à sua frente, o poema que bem entenda, multiplicado ao infinito – para satisfação, aliás, dos desconstrucionistas. Já o leitor atento sabe que sua intervenção é bem-vinda, e necessária, mas não lhe é facultado enxergar, no poema lido, os infinitos poemas que quiser, e, sim, tão somente os três ou quatro (bem, pode ser um pouco mais, um pouco menos), latentes nos núcleos essenciais dos versos efetivamente anotados pelo poeta. Se a liberdade de leitura fosse infinita, para que precisaríamos do poema? Só para nos inspirar, enquanto leitores? Ou para ensejar que Fernando Pessoa acrescentasse, não sem mágoa, à definição famosa, o desdobramento quase sempre esquecido: E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem Não as duas que ele teve Mas só a que eles não têm. A receita que recomenda cortar quase tudo lida com a síntese que só aparece na linha de chegada, mas é preciso cogitar também da síntese que já se instala no ponto de partida, como dimensão integrante do processo de concepção: cortar/condensar o pensamento ou a intenção, em vez de apenas eliminar depois, no papel, os excessos da escrita. A síntese da linha de chegada corre o risco de ser confundida com brevidade, isto é, com a extensão, como se todo poema curto fosse necessariamente sintético ou conciso; a do ponto de partida garante a concisão, seja o resultado (rimemos) breve ou não.

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Síntese não é uma questão de tamanho, mas de densidade ou concentração ideativa. A entronização da brevidade, como alvo a ser buscado em si e por si, resulta em maneirismo: dois ou três versos, meia dúzia de palavras e pronto!, aí temos o poeminha da moda minimalista – muitas vezes prolixo, aliás, não obstante diminuto. No outro extremo, poemas imensos, exemplarmente concisos, dos quais só algum celerado sugeriria eliminar, por supérfluo, um verso sequer. Você já reparou na “Tabacaria”, esse despropósito de 167 versos? Que tal cortar, por exemplo, aquelas passagens que já estão entre parênteses, como a que começa “Come chocolates, pequena”? Apesar disso, não sejamos radicais: o elogio da síntese pode sem dúvida abrigar uma discreta e secundária homenagem à brevidade. O poeta que se imponha a disciplina de escrever pouco (os quatorze versos de um soneto, as dezessete sílabas do haicai, uma quadrinha, um dístico), desde que não burocratize nem torne mecânico o intento, desfrutará de vantagens consideráveis: estará mais próximo do espírito de síntese; reduzirá os riscos da prolixidade; e, por fim, resistirá com brio à vertigem da página em branco, à atração da abundância desmedida e à sedução do infinito. Cumpre estar atento ao fato de que o bom poema se concentra em torno de um ou outro achado feliz. Por isso, há que ser implacável, também, com o caso, a seu modo benigno, da prolixidade parcial, seja a do tipo ainda-não, seja a do tipo já-não-mais. Se, depois de páginas e páginas de decassílabos muito duros, ou muito frouxos, o poeta afinal conseguir um verso que diz “Tanto era bela no seu rosto a morte”, por que não se livrar de toda a versalhada anterior, que só serviu de andaime e ainda não era poesia propriamente dita, era só aquecimento, antes da entrada em cena? Se o poeta em causa assim procedesse, o Uraguai não teria cinco caudalosos cantos, mas quem sabe um só; Basílio da Gama teria sido ignorado pelos contemporâneos, mas figuraria hoje, ao lado de Sousândrade e Kilkerry, como um dos pioneiros. Do lado de lá, se certo poema famoso se limitasse à primeira estrofe (a que começa: “Eras na vida a pomba predileta”), seguida talvez de alguns dos 168 versos restantes, Fagundes Varela não precisaria ter diluído, ao longo de uma dezena de estrofes, nas quais a poesia já não mais está presente, a emoção densa, precisa e suficiente dos doze versos iniciais. Nos dois casos, os ortodoxos da contextualização farão severos reparos. Pondere então que nenhum bom leitor teria dificuldade em contextualizar. E acrescente que para o mau leitor não há bons e maus poemas: é tudo igual. Em matéria de prolixidade, enfim, toda condescendência é excessiva. E, para rematar este excurso inicial, nada melhor que um exemplo de boa síntese, extraído de uma das odes horacianas de Ricardo Reis – exemplo especial, pois, além de conciso e breve, traz também uma referência indireta à possível matriz epicúrea daquela síntese que se consubstancia já no ponto de partida: Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada É livre; quem não tem, e não deseja, Homem, é igual aos deuses.

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A clássica definição de Edgar Allan Poe, segundo a qual o poema longo não passa de uma sucessão de poemas curtos, tem sido encarada como antevisão da poética dominante no século XX, não obstante seja (ou exatamente por ser) uma definição que, levada às últimas consequências, supervaloriza o poema curto, fazendo recair sobre o poema longo a suspeita de fraude ou falsificação. Se a "arte poética" formulada na metade do século XIX pelo escritor norte-americano não se aplica à poesia do seu tempo, tendo sido por isso repudiada por seus contemporâneos, por outro lado parece aplicar-se muito bem à poesia moderna ou modernista. Que o digam este outro precursor, Baudelaire, que tanto apreço devotou à obra e ao pensamento de Poe, assim como este legítimo representante da modernidade, Ezra Pound, que não hesitou em endossar aquela definição, quer porque a considerasse generalizável, isto é, aplicável a qualquer poema longo, quer porque esta se ajustasse como uma luva ao processo de criação por ele adotado nos Cantos. Se, alertados pela provocadora definição de Poe, percorrermos o mapa geral da poesia que se produz dos últimos anos do XIX até meados do XX, logo nos daremos conta (uns com surpresa, os mais atentos não) não da inexistência, mas da escassez de poemas longos, nesse período. O que predomina é a composição breve, quando não fragmentária, em sintonia, sobretudo nos anos 10 e 20 do século passado, com o primado da velocidade e o ritmo nervoso imposto à grande urbe industrializada. Naquela altura, "poema" queria dizer: notação rápida, não raro esgarçada e inconclusa, de uma sensação ou impressão; uma lembrança, uma fantasia, um sentimento ou uma ideia, quer isolados, quer mesclados em diapasão simultaneísta e interseccionista - tal como o visionara a premonição de Poe. Essa vertente atravessa as décadas e sobrevive até o XXI, ora com mais, ora com menos prestígio. A moda minimalista, recente, é só um revival da performance dos pioneiros de quase um século atrás - revival pretensioso e equivocado, na medida em que se propõe como um passo adiante, inovação radical. De fato, na linhagem que se desenvolve a partir dos pioneiros vanguardistas, parece não haver espaço para o poema longo - o que daria razão tanto a Poe quanto a Ezra Pound: com alguma habilidade e algum talento, junte-se um punhado de poemas curtos, simule-se algum encadeamento e o resultado será o falso poema longo. Em última instância, a definição de Poe remete a um dos núcleos densos do embate travado entre o formalismo das poéticas tradicionais, como a parnasiano-simbolista, baseada na ideia clássica da criação poética a partir de padrões ou modelos genéricos, predefinidos pela retórica, pela gramática, pelo consenso etc., e o informalismo da poética modernista, que repudia todo e qualquer padrão. (Tal embate prossegue, ainda, ou seria uma querela obsoleta?). Numa das trincheiras, acomoda-se o poeta que adere ao repertório de umas formas ditas "fixas", cuja função, entre outras, é determinar a priori a extensão do poema a ser escrito, como por exemplo os quatorze versos do soneto. Ainda que opte, neste mesmo exemplo e para o mesmo fim, pelo terceto extra, por isso mesmo chamado "estrambote", o poeta estará submetido a outro padrão, previamente estabelecido, sabendo, de antemão, quantos versos deverá somar, ao final, o seu esforço. Já na variante representada pelo soneto "inglês", composto de três quartetos e um dístico, a extensão não se altera. Quando não se tratar da extensão do poema, o poeta da tradição ainda estará atrelado à fatura do verso bem medido e escandido, a fim de não incorrer no pecado capital do verso "quebrado"; ou ao número de versos por estrofe, para que esta venha a ser reconhecida como legítimo terceto, quarteto, sexteto, oitava e por aí afora.

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A coroar o processo, a obrigatoriedade da rima: ou bem o verso é branco, espécie ainda prestigiada no tempo de Poe, entre os românticos, mas francamente desencorajada pelos parnasianos, ou bem todos os versos rimam, segundo um esquema previamente definido, baseado em simetria e repetição. Na trincheira oposta situa-se o poeta de vanguarda, como Pound, que se rebela contra estas e outras coerções, instaurando a liberdade de criação e o informalismo como seus guias. Daí, mas só então, a procedência da designação "verso livre", que só será genuinamente "livre" se o poeta souber de quê pretende livrar-se. Fora dessa circunstância, muito específica, e datada, o verso livre tenderá a ser não mais que verso frouxo - pseudoverso ou pseudopoesia. A previsibilidade e o aparente imobilismo das formas convencionais não teriam como resistir. O resultado será, no século XX, a ilimitada multiplicação das formas poéticas, que não devem mais se repetir e, portanto, nunca virão a compor um novo repertório de tipo apriorístico, em substituição ao tradicional. A vanguarda libertária rompe com a ideia da criação a partir de modelos fixados a priori e, sempre em princípio, não admite a possibilidade de novos modelos virem a ocupar o lugar dos antigos. Assim, a variedade que passa a prevalecer será imensurável, podendo abrigar, também em princípio, tantas espécies quantas o apetite e o talento individuais permitirem: uma nova forma ou uma nova poética para cada poema de cada poeta. Caso decida amoldar sua criação a qualquer modelo preexistente, o poeta será inapelavelmente taxado de obsoleto, conservador e reacionário. Salvo, claro está, se o princípio do não-modelo se converter em maneirismo, podendo já então ser imitado e reproduzido ad nauseam, como outro modelo qualquer. Por isso não é de estranhar que a maioria dos poetas que, nas primeiras décadas do século XX, pugnaram por “todos os ritmos, sobretudo os inumeráveis”, tenham voltado, mais cedo ou mais tarde, a rimar e a contar as sílabas; a recortar simetricamente versos e estrofes; e até a este gato escaldado, de sete vezes sete fôlegos: o velho soneto. Isto é, desistiram de “todos os ritmos”, passando a dar preferência a alguns deles, os “numeráveis”. Refiro-me, já se vê, aos grandes, como Mário, Drummond, Murilo, Vinícius, Cecília, além do próprio Bandeira, responsável pelo preceito, e a alguns outros, sobre os quais não pesa, que se saiba, a pecha de “renegados”, “traidores” ou “desistentes”, pelo fato de terem readquirido algum senso de medida e disciplina e de terem retomado umas tantas formas fixas, às quais imprimiram a marca invulgar de suas personalidades. Mas não incluo aí o anacronismo daqueles que, em meados dos anos 40 do século passado, repudiaram os ritmos inumeráveis, insistindo em fazer crer que, em matéria de poesia, tudo continuava a ser só uma questão de números. Não é de estranhar, também, que alguns dos grandes marcos do período sejam representados por poetas que buscam a palavra justa, a concisão e a medida, o senso de construção e a disciplina, como João Cabral e seus modelos estrangeiros (Valéry, e.e. cummings ou Mariane Moore, por exemplo), sobre os quais também não pesa a acusação de serem menos “modernos” que seus antecessores, os vanguardistas, introdutores do informalismo e da liberdade plena.

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Por aí se vê a que altas paragens pode conduzir a boutade de Poe, onde se insinua o juízo relativo à falsidade de todo poema longo. Meu intuito, porém, ao retomar o tema neste apontamento, não era chegar a tanto (nosso foco ainda é o elogio da síntese), mas só chamar a atenção para uma exceção, isto é, um poema genuinamente longo, que não é mera sucessão de poemas curtos. Penso no invulgar “Tabacaria”, de Fernando Pessoa, datado de 1928, cujo conhecimento teria levado seu contemporâneo Ezra Pound a reformular ou a não endossar tão placidamente a definição de Poe. O desgastado clichê “toda regra tem exceção” seria pouco para dar conta da inexcedível performance do heterônimo engenheiro naval Álvaro de Campos, que consegue sustentar o mesmo amplo fôlego, a mesma densidade e a mesma surpreendente unidade, ao longo dos célebres 167 versos, que começam com “Não sou nada” e terminam, sem nenhuma ruptura, com “e o Dono da Tabacaria sorriu”. Poe, afinal, não poderia adivinhar que, tantas décadas depois, alguém viria a escrever poemas longos, de fato poemas e de fato longos, como este, de Fernando Pessoa, que aliás nutriu pelo autor de “O corvo” indisfarçável apreço. O que me interessa destacar é o dilema vivido pelo poeta moderno, enredado nas armadilhas do embate atrás delineado: de um lado, o primado do fragmentarismo e do poema como notação esgarçada, que então se impõe; de outro, a gloriosa conquista da liberdade “plena”, que o leva a se defrontar, mais cedo ou mais tarde, com a angústia do infinito, tempo e espaço ilimitados, desde que se disponha a escrever um poema que só o seu arbítrio decidirá quando termina. Se assim for, todo poema estará condenado a se converter em fala interminável... Daqui a séculos, quando uma vaga poeira for o único simulacro de luz que terá restado, a se depositar entre os seus artelhos quase enrijecidos, o poeta ainda estará a compor o único poema possível. Na verdade – a verdade relativa que escapou à radicalização de Poe – o poema será longo ou breve não em razão da arbitrariedade de qualquer novo ou velho formalismo, mas na medida do fôlego de origem que o anime. A proeza de Álvaro de Campos, na “Tabacaria”, é um dos mais flagrantes exemplos de poema longo bem sucedido, para se contrapor à espasmódica sucessão de haustos breves, como sugere a antiga e outrora avançadíssima ideia do falso poema longo. Meu interesse, afinal, converge tão só para a questão da identidade do poeta moderno, o poeta obrigado a encarar o infinito e o ilimitado, a cada poema; esse poeta colocado à margem dos trabalhos da urbe, desde que Platão o expulsou da República, condenando-o a um exílio exemplarmente definido por Álvaro de Campos, ainda no primeiro terço da “Tabacaria”, por meio do recurso à imagem da mansarda: “...sou, e talvez serei sempre, o da mansarda”: O mundo é para quem nasce para o conquistar, E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo. Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela...

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O poeta moderno parece ter encontrado nessa intrigante “mansarda” o seu lugar, desde sempre buscado. Derivada do francês mansarde (“água-furtada” ou “sótão”), a palavra designava, de início, um estilo de telhado – uma vertente vertical, outra quase horizontal – concebido no século XVIII, pelo arquiteto francês François Mansart. O objetivo era prover as residências de um modesto cômodo a mais, improvisado no piso superior, a ser utilizado como depósito de trastes semiabandonados, quinquilharias de pouco uso. No século XIX, no bojo da segunda revolução industrial, tendo sido as cidades invadidas por levas de camponeses em busca das oportunidades oferecidas pelo meio urbano em franco desenvolvimento (a semelhança com o inchaço das nossas metrópoles, hoje, está longe de ser mera coincidência), a mansarda se presta bem a acomodar os recém-chegados. Estes então se sujeitam ao desconforto da “habitação miserável” (é o sentido que a palavra passa a ter), enquanto não encontrem pouso melhor. O modesto cômodo inventado por monsieur Mansart passa a integrar, funcional e simbolicamente, a lógica burguesa e capitalista da mobilidade social, primeiro como solução prática e econômica para uma emergência, em seguida como símbolo da condição inferior, marginal, mas provisória, dos que anseiam pela ascensão que a nova ordem lhes propicia ou vagamente promete. Não assim na autodefinição de Álvaro de Campos, para quem a condição de inferioridade e marginalidade, embora crivada de orgulho, é permanente, seja pelo acréscimo do “e talvez serei sempre”, seja sobretudo pela concessão do “ainda que não more nela”. Só situando-se à margem da sociedade, mas imiscuído nela, e do alto, é que o poeta pode sentir-lhe a pulsação plena, a de dentro e a de fora, como alguém que é “de casa” mas continua a ser um estranho, ou como alguém, enfim, capaz de dedicar a todas as coisas um olhar ao mesmo tempo familiar e estrangeiro. Mas só atinará com esse rumo o poeta dotado de legítima inquietação filosófica, como é o caso de Fernando Pessoa, e igualmente dotado do fôlego necessário para diagnosticar, na sua prospecção lírica, a miséria e a grandeza, a opacidade e o fulgor da condição humana atual. O poema que daí resulte será natural e genuinamente longo, a compor o mais radical elogio da síntese que eu seria capaz de imaginar – a larga distância da precária sucessão de poemas curtos, da premonitória definição de Edgar Allan Poe.

Carlos Felipe Moisés é poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta. É mestre e doutor em Letras Clássicas e Vernáculas (USP). Entre alguns de seus livros publicados estão: Noite nula (poemas, 2008), Lição de casa & poemas anteriores (poemas, 1998), Poesia e utopia (ensaios, 2007) e Alta traição (traduções, 2005).

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Foto: Giorgio Rocha

O que é poesia?

Edson Cruz (Ilhéus, BA, Brasil) é poeta, editor e revisor. Estudou Psicologia, Música e Composição e, atualmente, estuda Letras na Universidade de São Paulo. Foi um dos fundadores do portal de literatura Cronópios (www.cronopios.com.br) e editor até maio de 2009. Livros publicados: Sortilégio (Demônio Negro/Annablume, 2007) e O que é poesia? (Confraria do Vento/Calibán, 2009). Blog: http://sambaquis.blogspot.com E-mail: sonartes@gmail.com 52 Celuzlose 05 - Junho 2010


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Calidoscópio da poética contemporânea A poesia é, de longe, a linguagem de maior potência de significação – “a mais condensada forma de expressão verbal”, no dizer de Pound –, e não é de espantar a variedade de leituras, de idiossincrasias, de práticas que permeiam a poética contemporânea e, evidente, a sua recepção. Tão diversas como o são os próprios seres e seus interesses. Ainda que todas as artes tenham a sua especificidade e complexidade, os poetas acreditam que a sua seja a mais complexa e inescrutável de todas. Bafejados pelas musas, os poetas são os seres mais suscetíveis do planeta. Eles carregam a responsabilidade, ou a pretensão, de serem as antenas da raça. E, cá pra nós, alguns realmente o são. Isso posto, perguntar-lhes à queima-roupa “o que é poesia?” poderia soar como provocação, ou, no mínimo, como um erro de avaliação e de foco. E, de fato, alguns assim o entenderam. No entanto, muitos poetas decidiram encarar o desafio da pergunta. Assim surgiu o projeto, no blog Sambaquis (http://sambaquis.blogspot.com), que instaurou o diálogo entre gerações, tradições, poetas e poéticas de forma despretensiosa e instigante. A consequência desse projeto é o livro O que é poesia?, editado pelos jovens valorosos da Confraria do Vento em parceria com a editora Calibán. No primeiro volume foram selecionados 45 poetas (de nacionalidade, calibragem e quilometragem diversas), porém, ainda há muitos outros que, possivelmente, farão parte de um segundo volume. Os poetas que agora integram esta seção da revista Celuzlose são alguns daqueles que, por motivos editoriais, não se fizeram presentes no primeiro volume do livro. Confira as respostas dadas por Jairo Pereira, Joana Ruas e Nelson Guerra a esse velho e, ainda, legítimo questionamento.

Edson Cruz Organizador

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Jairo Pereira Nasceu em Passo Fundo - RS (1956). Vive e trabalha em Quedas do Iguaçu - PR há mais de vinte anos. Editou sete livros: O artista de quatro mãos (contos), O antilugar da poesia (manifesto poético), Signo de minha prática (poesia), Meus dias de trabalho (poesia), O abduzido (romance/ensaio), Capimiã (livro-poema) pela Editora Medusa - Coleção Ruptura Réptil e ESPIRITH OPÉIA (poesia) pela Editora dos Recusados. Tem ensaios e artigos publicados em várias revistas e jornais como: TANTO, EM TEMPO, A ARTE DA PALAVRA, BLOCOS, VERBO 21, COYOTE, PALAVREIROS, ONTEM CHOVEU NO FUTURO, ZUNÁI, CRONÓPIOS, CAPITU e outras. E-mail: jairopereiraadv@hotmail.com Site: www.jairopereira.com.br

O que é poesia para você?

Até tempos atrás sustentava que poesia era produto do pensamento, extrato de experiências cósmicas... extrema liberdade das linguagens. Hoje fujo de qualquer definição da dita. Na verdade, poesia é mistério apreendido por um milagre das linguagens. Nem sempre acontece, mas com técnica o milagre tende a se repetir inúmeras vezes. Poesia supera a filosofia na inauguração dos novos espaços do pensar e acata a dinâmica das linguagens que sempre se renovam.

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O que é

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O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

Considerar a poesia quase como um ofício do qual não se pode esperar retorno financeiro. É missão na vida do sujeito criador. Missão de fé e descoberta das linguagens. Ninguém se mantém poeta porque quer, mas algo misterioso o faz poeta pra toda vida.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

Angusto dos Anjos que me marcou com sua poesia forte. Não pela forma, mas sempre pelo conteúdo. Edgar Allan Poe, pelo poema “O corvo” que lia e relia abismado. Manuel Bandeira que me emocionou quando li na escola o poema “A última canção do beco”. Os poetas que cito, apenas me chamaram a atenção pra poesia, numa época em que sequer escrevia poemas, dos 17 aos 21. Comecei a escrever poesia somente aos 24 anos, embora já tivesse alguns manuscritos bem amadores.

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Joana Ruas Portugal, 1945. Publicou os seguintes romances: Corpo Colonial (Centelha, 1981), O Claro Vento do Mar (Bertrand Editora, 1996), A Pele dos Séculos (Editorial Caminho, 2001), A Batalha das Lágrimas (Editora Calendário, 2008). Participou na 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará onde proferiu uma palestra intitulada Aproximar o Distante, Do Estranho ao Familiar — duas experiências: Timor-Leste e Guiné-Bissau. A sua poesia encontra-se dispersa por publicações como NOVA 2 (1975), um magazine dirigido por Herberto Helder; o seu poema “Primavera e Sono” com música de Paulo Brandão foi incluído, pelo compositor Jorge Peixinho, no 5º Encontro de Música Contemporânea promovido pela Fundação Gulbenkian. Participou nas antologias: Antologia da Poesia Erótica (Universitária Editora), Na Liberdade (Garça Editores), Mulher e Um Poema para Fiama (Labirinto). E-mail: joanaruas@sapo.pt

O que é poesia para você?

A poesia deve ao poeta alemão Novalis a sua melhor definição. Grata pela oportunidade de recordá-la, num tributo à sua memória, aqui a deixo: “A poesia é representação da alma, representação do mundo interior na sua totalidade. Os seus intermediários, as palavras, já o indicam, pois elas são a manifestação exterior deste reino profundo. O sentido poético tem muitos pontos comuns com o sentido místico. Trata-se do sentido de tudo aquilo que é particular, pessoal, desconhecido, misterioso, de tudo o que deve ser revelado, de tudo o que é ao mesmo tempo necessidade e acaso. O sentido poético representa o irrepresentável. Ele vê o invisível, sente o insensível... A crítica da poesia é um absurdo: já é difícil de dizer se uma coisa é poesia ou não, e isto é ainda a única distinção possível. O poeta é literalmente insensato, e, por outro lado, tudo se passa nele. Ele é, ao pé da letra, sujeito e objeto ao mesmo tempo, alma e universo. Daí o caráter infinito e eterno de um bom poema. A poesia é o real absoluto. Quanto mais uma coisa é poética, mais ela é verdadeira”.

O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira? Deve conviver com a poesia de outros poetas, adquirir o sentido da forma e partir, infinitamente partir para tudo o que o possa exprimir na sua singularidade e experiência pessoal.

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Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas? Ao longo dos anos o meu contato com as obras dos vários poetas de que tive conhecimento ajudou-me a progredir mental e moralmente. Através de uns encaminhei-me para outros que, na altura me pareceram mais próximos da minha própria demanda ou ainda, porque notava a existência entre nós de uma afinidade eletiva. Sem esquecer a minha dívida para com todos eles, portugueses e estrangeiros, neste momento a minha escolha vai para Rimbaud, Bashô e José Ángel Leyva. Rimbaud, inventou Khenghavar, um país mítico de uma geografia apócrifa, um país plein de lourds cieles ocreux et de fouet de fleurs en chair. Khenghavar era o país mítico onde todos os lugares eram poéticos, onde todas as viagens se faziam de homem para homem, de povo para povo. Para salvar a própria pele, Rimbaud enterra a sua inspiração poética no negócio de marfim e peles de leopardo, de tigres e cabras, negócios baseados em ofícios sangrentos de matar, arrancar presas, esfolar animais. Estuda a Gramática Somali e o Corão de que faz uma tradução bilíngue, francês e árabe. Segundo escreveu, depois de abandonar a poesia, cumpriu a existência e, se condenado a viver durante bastante tempo ainda em França, não passaria ali de um estrangeiro. L´Éternité Elle est retrouvée. Quoi? — L´éternité. C'est la mer allée Avec le soleil. (do livro Une Saison en Enfer)

Matsuo Bashô, este poeta japonês do século XVII escreveu num dos seus Diários: “Estou só e escrevo para minha alegria”. Para mim, ele, perante as atribulações da sua existência de peregrino, alcança a sua maravilhosa serenidade através da sua arte, isto é, a arte do equilíbrio na desilusão. Ervas do estio Eis o que resta Da ambição dos guerreiros (do livro O Gosto Solitário do Orvalho)

José Ángel Leyva, que só agora estou descobrindo, impressionou-me pelo seu dom de uma expressão direta que reflete, não só o Real como a sua realidade subjetiva. O seu poema “Marcha fúnebre para um anjinho” narra a caminhada do indecifrável para o mundo do Humano tornado familiar pela ação de o nomear. Resgataremos o véu dos nomes A pedra permanecerá livre e será pedra O musgo e o orvalho arroios E ser e estar na estação do ano O soçobro da água e das folhas Quando abrir a escotilha da minha casa Um menino como eu terá morrido Não temerá a obscuridade a sua cara de anjo Não hesitará em mostrar-me as cavidades Comuns dos olhos O seu verdadeiro rosto assomará por essa porta

Marcha fúnebre para um anjinho Assim que alce a escotilha E veja o meu sangue exaltado Fazendo remoinhos no crânio Terei a infância à minha mercê Poderei tocar-lhe com a mão Reviverei ossaturas Falarei com meus irmãos De tantas coisas esquecidas Sairemos a passear pelos campos Um bosque de pinheiros e de fetos Se abrirá como casca de árvore Veremos regressar as chuvas Com sol e num descampado

(do livro Duranguraños)

Finalmente, alguns haikus da minha autoria: Camélia

Carta

Poente

Camélia branca Sorriso de névoa Na milenar rocha Da saudade

Verde, a folha Voa Por oceanos de Tempo Para o Amado

Com raro esplendor Qual taça de vinho quente Ergue-se a frésia vermelha Ao doirado sol do poente

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Nelson Guerra Nacido en Montevideo (1943). Escritor y profesor de literatura. Radicado en Maldonado, desde 1978 donde dirigió, durante tres años, los Talleres Literarios del Ministerio de Educación y Cultura. Desde 2005 dirige los talleres de la Casa de la Cultura, dependiente del Municipio de Maldonado, en la misma disciplina. Miembro de la sociedad de Escritores del Uruguay. Ha sido galardonado en numerosos concursos de narrativa y poesía. Ha publicado tres libros de cuentos: EL esquema, los pechos verdes y otras muertes; Los ojos del viento sur y Más o menos a las siete volumen compartido. Su cuentos y poemas integran numerosas antologías. Ha dictado cursos sobre distintos temas literários: Introducción a la poesía de las Islas Canarias, La poesía de Carilda Oliver Labra y otros. E-mail: nelgue@gmail.com

O que é poesia para você?

La poesía es el arte de la palabra. Todo está en la palabra. Naturalmente que no dejo de lado la verdad, ni el sentimiento, ni la música y el ritmo. Pero la sustancia es la palabra. La poesía es algo oculto, y se relaciona con lo oculto. Con la alquimia, por ejemplo. Como el alquimista, el poeta busca trascender la palabra, quintaesenciarla, de modo que signifique más allá de ella misma. Con la Kabalah también. La creación es la palabra. "En el principio era el Verbo, y el Verbo era con Dios, y el Verbo era Dios" Y con la magia transformadora también. Es lo que le da al bípedo implume un toque de angelitud, como el beso de amor de las leyendas infantiles, que transfora en príncipe azul a un sapo, o rescata de la muerte a la bella princesa.

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O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

No soy quien para ese tipo de consejos, ni me seduce la aureola de sabio anciano venerable que eso otorga, pero debo decir que a la poesía se llega solamente desde la poesía. Actuar de otra manera sería cometer la tontería de querer inventarla.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

Federico García Lorca "Llanto por Ignacio Sánchez Mejía" José Asunción Silva "Nocturno" Carilda Oliver Labra "cuento" Es escasa la obra editada que puedo citar, la mayor parte goza de la ineditud (esa virtud tan molesta como la virginidad en una doncella de 50 años). He publicado en algunas colecciones compartidas, revistas, páginas web etc. Y tan solo un librillo, hace demasiados años, titulado 20 poemas de amor y un soneto rezagado. He obtenido premios, o sea que he logrado el interés de los jurados, pero no el de los editores.

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Stéphane

Mallarmé

André Dick Nicole Cristofalo

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Mallarmé: o poeta sem (auto) biografia* por André Dick

No ensaio “A morte do autor”, o teórico francês Roland Barthes contesta a ideia do autor como um ser supremo, considerando que o texto é um “tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”. Para isso, Barthes indica o poeta Mallarmé como referencial para sua teoria. Mas será mesmo Mallarmé o autor decisivo para a ideia, típica da modernidade, de que um texto não tem autoria? Ao dizer em carta a Cazalis que gostaria de destruir a noção de autor, parece que Mallarmé não tinha como intuito envolver sua vida empírica com sua obra. Nesse caso, portanto, o autor deixaria de ter importância como alguém que existiu – tanto que existem os dados biográficos e escritos, como poemas, ensaios e documentos mais pessoais, como suas cartas – para dar espaço a uma linguagem autônoma. Em Sade, Fourier, Loyola, Barthes reflete que o autor que volta ao círculo de ensino não é identificado com as instituições (com a história e o ensino da literatura ou com o discurso da Igreja), nem é o herói de uma biografia, mas aquele sem unidade. Desse modo, ele refere-se a diários, entrevistas personalizadas, memórias e biografias, no sentido de “reagir contra a frieza das generalizações e coletivizações para recolocar, na produção cultural, um pouco de 'afetividade psicológica'”. Baseando-se nos exemplos de Gide e Proust, que entrelaçaram, de forma extrema, vida e obra, Barthes vai, então, falar numa “escrita de vida” e numa “vida escrita”, esta “no sentido transformador da palavra 'escritura'”. Não se procura, nesse caso, a simples relação entre escrita e vida, mas “das escritas e dos fragmentos, dos planos de vida”. Em sua Aula, Barthes se considerava contemporâneo do personagem Hans Castorp, de A montanha mágica escrita por Thomas Mann, pela doença que tinham em comum: a tuberculose. Pode-se dizer, numa comparação, que Mallarmé é contemporâneo da poesia de qualquer época, como personagem que foi – ele criou, afinal, sua ausência, mas uma ausência feita de subjetividade. No entanto, a sua pretensão não seria afirmar a poesia como uma força fracassada? E a maneira como utilizou a linguagem não seria a mesma com que, com seu sentimento, produziu a obra literária? Visto o fracasso cada vez mais forte da literatura (Blanchot falava acertadamente que a literatura caminhava rumo ao desaparecimento), tendo uma biografia atemporal, Mallarmé também é a biografia de outros homens. Stéphane Mallarmé nasceu Étienne Mallarmé às 7 horas da manhã do dia 18 de março de 1842, em Paris. Filho de um funcionário público, Numa Florence Joseph Mallarmé, e de Élisabeth Félicie Desmolins. Sua família paterna "vinha apresentando, desde a Revolução, uma sequência ininterrupta de funcionários da Administração e do Registro". No entanto, Mallarmé confessa ter se esquivado dessa carreira para a qual o destinaram desde criança, brincando que ele guardava "um rastro do gosto de segurar uma pena, para algo além de registrar certidões".

* Este texto é uma versão modificada do ensaio “Lances biográficos de Mallarmé”, que integra o livro Poesias de Mallarmé, a sair pela Lumme Editor, acompanhado de uma apresentação e das traduções aqui publicadas.

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Seus estudos iniciaram em 1852, quando ingressou no pensionato das freiras das Écoles Chréttienes de Passy, e, em 1853, seu pai foi transferido para a cidade de Sens. Um ano mais tarde, começou a escrever seus primeiros poemas, e em 1856 passou a estudar no liceu de Sens, como aluno interno, onde, em 1858 e 1859, estudou retórica e lógica e aprendeu inglês para poder ler Edgar Allan Poe no original. Seu interesse se devia exatamente à influência de Poe sobre a poesia francesa de Charles Baudelaire, cujos poemas copiava à mão de revistas especializadas. Em 1861, tomou contato com a segunda edição, comentada, de Les fleurs du mal, de Baudelaire. No ano seguinte, publicou seu primeiro artigo, sobre Poésies parisiennes e seu primeiro poema, "Placet", em Le Papillon, e também uma plaquete, Sciens. Daí em diante, Mallarmé se situou entre a vida como professor de inglês, em algumas cidades da França (Tournon, Besançon, Avignon), ganhando apenas para se manter e se casou com Maria Cristina Gehard, que lhe deu os filhos Geneviève e Anatole, que viria a falecer precocemente. Escreveu a peça "Hérodiade", em 1864, depois de, possivelmente, ter entrado em contato com a obra de Hegel. Viria a conhecer o escritor (e amigo para o resto de sua vida) Villiers de I'Isle-Adam (autor do conhecido Eva futura). A primeira versão de seu poema "L'après midi d'un faune" seria terminada em 1865. No ano seguinte, quando continuava a trabalhar no poema "Hérodiade", foram publicados dez poemas seus no Parnasse contemporain, uma série de antologias da poesia francesa do século XIX. Em 1872, encontrou-se com Rimbaud, no período em que dialogou com algumas personalidades literárias (Émile Zola, Alfred de Vigny). Em outubro desse mesmo ano, "graças ao historiador Seignobos, seu ex-aluno de Tournon, que, aliás, o considerava uma espécie de degenerado inofensivo", segundo Manuel Bandeira, Mallarmé obteve a nomeação para o Liceu Fontanes, depois Condorcet, em Paris, para onde se mudou com planos de transformar sua vida. Em 1873, conheceu o pintor Edouard Manet e publicou "Toast funèbre". No ano seguinte, lançou a revista La dernière mode, inteiramente redigida por ele e definida, por Bandeira, como "uma gazeta do mundo e da família, onde se promulgavam as leis e verdadeiros princípios da vida estética, com o exame dos menores detalhes: toilettes, jóias, mobiliário e até espetáculos e menus de jantares". Eram oito páginas "de pequeno formato in-fólio, capa azul turquesa, e no texto, aqui e ali, vinhetas desenhadas por Morin". As descrições de vestidos na La dernière mode tinham o sabor de poemas compostos especialmente para lisonjear a imaginação feminina. Não demorou mais que nove números para Mallarmé deixar a publicação. Como conta na carta a Verlaine, este projeto teria representado um pouco do sonho de compor o Grande Livro, que sempre atormentou Mallarmé.

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Não colaborava com revistas, a não ser que fossem pequenas, gratuitas e feitas por gente nova, sobretudo após a primeira versão de "L'àprès midi d'un faune", intitulada "Improvisation d'un faune", ter sido refutada pelo comitê de leitura da Parnasse contemporain, sobretudo por um de seus integrantes, Anatole France, inimigo dos simbolistas. Em 1875, publicou a tradução de "O corvo", de Poe, com ilustrações de Manet, que também pintaria seu retrato. No ano seguinte, publicou a versão definitiva de "L'après midi d'un faune", novamente com ilustrações de Manet. Segundo Bandeira, "a sua vida era a mais discreta possível: não ia a parte alguma, salvo os concertos dominicais e a visita diária, de volta ao liceu, ao pintor Manet". Em 1883 (ano da morte de Richard Wagner e de Manet), Paul Verlaine publicou o terceiro volume da série Poètes maudits, tendo por tema a obra de Mallarmé, que, em 1884, seria nomeado professor de inglês no liceu Janson-de-Sailly. Foi a partir desse ano que o poeta passou a ser visto como um ídolo por alguns artistas. George Moore o teria visto "arrodeado por seus admiradores" e tal visão podia ser comparada "a um quadro de Cristo arrodeado por seus discípulos, e que, indo um passo mais adiante, os discípulos se destacaram no horizonte literário, como Pedro e João, por causa da sua associação com o Mestre". Obviamente, há um exagero na caracterização: Mallarmé era um poeta extremamente simples, sem nenhuma pretensão mais evidente e sua fuga à sociedade era mais resultado do fato de a sociedade não considerar sua poesia. Nesse sentido, o crítico Edmund Wilson descreve que a sociedade, embora desprezasse os versos de Mallarmé, se irritava também com sua "obstinação" e "seriedade", com sua influência literária. Em seu apartamento, ao fim da vida, recebia várias personalidades, como Stefan George, Oscar Wilde, André Gide etc. Era, sem dúvida, uma vida bastante distinta daquela que Mallarmé tinha quando era professor e, ao voltar todos os dias do colégio para casa, passava por cima do rio Sena, em Paris, pensando em desaparecer em suas águas. Outros poetas entraram em contato com Mallarmé, entre eles Jules Laforgue, que em 1885, depois de passar pelo liceu Janson de Sailly, foi o professor de inglês transferido para o Collège Ledru-Rollin, onde permaneceu até 1893. Em 1887, entrou em contato com Édouard Dujardin, a fim de fazer uma edição popular de "L'après...". No ano seguinte, enviou a Verlaine a tradução dos poemas de Poe. Em 1889, Mallarmé e Manet visitam Monet em Giverny. Em 1892, Debussy começou a musicalização de Prélude à l'après midi d'un faune, cuja audição aconteceu em 1894 na Sociéte Nationale de Musique. Neste ano, Mallarmé fez conferências em Oxford e Cambridge, enviando suas impressões a Méry Laurent. Sua vida passava a ter a agitação da visita de amigos e admiradores e Mallarmé começou a indicar poetas para publicações e, por conta disso, foi eleito "príncipe dos poetas" em 1896, ocupando o posto deixado por Verlaine.

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Charles Morice, no Théâtre Mondain, realizou uma conferência sobre Mallarmé e, apesar de ser visto como pai do simbolismo, o poeta recusava essa denominação. Mas, ao contrário de Rimbaud, Mallarmé esteve intimamente associado aos poetas mais jovens, mostrando sua simpatia por eles. Em carta a Verlaine, por exemplo, explicava que o poeta “estava dez anos à frente de seu tempo e era, por conseguinte, mais sensível aos poetas mais jovens”. Em 1897, ele compôs sua obra Un coup de dés e pouco antes de morrer, em 1898, ele deixou uma mensagem à sua filha, Geneviève, e à sua mulher, Marie, que vale a pena transcrever: “O horrível espasmo de asfixia sentido há pouco pode repetir-se no decorrer da noite e me liquidar. Assim, não se surpreenderão como eu penso na pilha semi-secular de minhas anotações, que só irão transformar-se para vocês num grande transtorno, pois sequer uma folha pode ser útil. Eu mesmo – o único a poder extrair dali o que existe... Tê-lo-ia feito, se os anos restantes não me houvessem traído. Por isso, queimem: nela, não há herança literária, minhas queridas. Nem submetam à opinião de quem quer que seja: ou recusem qualquer ingerência curiosa ou amiga. Diga que nada ali existe para ser levado em consideração – o que é verdade – e vocês, prostradas pelo sofrimento, são as únicas pessoas no mundo capazes de respeitar a esse ponto toda uma vida sincera de artista.” Em razão de Mallarmé não ter se desfeito dessas obras a que ele se referia apenas como papéis inúteis (os fragmentos especificamente se referem ao inacabado Le livre, que mudaria a concepção de livro da modernidade) já revela a esperança e a utopia de resistir à destruição final. Entre a ética e a estética, Mallarmé escolhe as duas. Junto com os fragmentos (de Por un tombeau d'Anatole), com “Um lance de dados” e “Hérodiade”, possivelmente terminada, Mallarmé ainda escreveu no bilhete: “acreditem na beleza que deveria existir em tudo isso”. Na manhã seguinte, ele não despertou mais, tendo finalmente alcançado o divino. Num dos fragmentos de Por un tombeau d'Anatole, colocando-se no lugar do filho morto, como uma persona, como um poeta, ele já havia escrito: pai – – – eu sinto o nada me invadir

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Embora associado às vanguardas do início do século XX, Mallarmé tinha uma postura pessoal antivanguardista. Reconhecia o valor dos clássicos e não achava nenhuma grande obra superável. No Brasil, Augusto e Haroldo de Campos foram os que melhor assinalaram a importância de sua obra, não apenas de Un coup de dés, mas dos sonetos e das peças de teatro. Augusto tem uma tradução antológica de “Hérodiade” e em Poesia da recusa voltou a apresentar uma seleção notável de sonetos do poeta francês. Décio Pignatari, que tem uma tradução antológica de “L'après midi d'une faune” também considerava Mallarmé seu “guru”. A questão que cerca os estudos dos irmãos Campos é a de que eles teriam “desumanizado” ainda mais o poeta. É uma consideração, no caso deles, injusta. Augusto chega a tentar aproximar o poeta, em seu ensaio “Mallarmé: o poeta em greve”, do marxismo – algo que também faz Jacques Rancière em Políticas da escrita –, mas essa aproximação é resultado de um contexto, em que se pedia uma poesia com preocupação social e a poesia concreta era vista como alienada (ideia que vem sendo, aos poucos, esquecida).

Quem pretendeu desumanizar Mallarmé foi, sobretudo, o crítico Hugo Friedrich, de Estrutura da lírica moderna, para o qual o poeta não é uma pessoa com um sentimento e um calor intimamente humanos. Para ele, a poesia de Mallarmé, “encarna o isolamento total”, ou seja, não necessita da “tradição cristã, humanística, nem literária”, proibindo “a si mesma qualquer intromissão do presente”. E é enfático: “Repele o leitor e se recusa a ser humana”, pois o poeta “está só com a sua linguagem” – argumento que seria seguido, recentemente, pelo crítico italiano Alfonso Berardinelli, em Da poesia à prosa. É claro que Mallarmé, ao procurar o “enigma” nos objetos, sabe que neles pode haver todo o “sentir” que cabe na humanidade.

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O que deve ser colocado em questionamento, tanto na obra de Berardinelli quanto na obra de Friedrich, é sua tendência a continuar querendo falar da poesia de Mallarmé e de outros simbolistas como puramente hermética, obscura, como uma fuga à realidade, como criadores de uma obra que se distancia de qualquer diálogo com o público-leitor – ideia que Antoine Compagnon já havia contestado em Os cinco paradoxos da modernidade. Não são os autores excluídos por Berardinelli os fundadores do que vemos como a estrutura inicial da modernidade, mas sim os poetas que Friedrich seleciona: Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé. Nesse sentido, Friedrich está certo em identificar esses nomes como precursores do que, mais adiante, faria Eliot, por exemplo. O problema é que ele identifica características equivocadas e considera que Mallarmé e Rimbaud escreveram, conscientemente, um determinado tipo de modernidade.

Ao longo de todo Da poesia à prosa, Berardinelli crê que Mallarmé seja, também, mais do que um poeta moderno, um problema: “O desenraizamento da arte, sua abstratização por meio de procedimentos 'despoticamente' formalistas e absolutizantes, que aniquilam toda possibilidade de determinação espaço-temporal, é obra sobretudo de poetas como Rimbaud e Mallarmé e de pintores como Cézanne”. Como aniquilar a possibilidade de determinação espaço-temporal numa obra? Berardinelli tenta responder analisando a figura da cidade em obras como as de Baudelaire, Apollinaire e Eliot, num ótimo ensaio intitulado “Cidades visíveis na poesia moderna” – mas poderia ter investigado as imagens da cidade também em Mallarmé, mesmo que, para ele, impliquem numa “abstratização” ou numa “invisibilidade”. Para Berardinelli, Mallarmé emprega, em sua obra, um “absoluto da linguagem, uma linguagem-fortaleza, linguagem-prisão, uma turris ebúrnea”. Nele, “a língua da poesia se especializa” e “cria um antimundo”, funcionando “como uma máquina, procedendo a uma meticulosa abrasão de todo conceito, imagem e valor herdados”. Consequentemente, o “ato poético passa a ser culto e apologia de si mesmo. Desses pressupostos nasce uma obscuridade que poderíamos definir de 'sublime niilismo'”.

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Ou seja, a diferença elementar entre Berardinelli e Hugo Friedrich é que o primeiro é ainda mais injusto em relação a Mallarmé, e introduz provocações que não comportam um debate sério. É quando escreve, por exemplo: “Baudelaire não mete medo em ninguém (nem Marx também). O pobre Nietzsche é bastante solicitado. Quanto a Mallarmé, seus leitores efetivos são, naturalmente, tão raros que seria fácil contá-los nos dedos. Mas estudar e selecionar suas poesias é mais fácil do que lê-las, e até mais divertido, de modo que ele nem pode lamentar-se quanto a cultores e bibliografia. Mallarmé é o autor ideal para seminários especializados”. Percebe-se, sem dúvida, uma ironia nessa proposição de Berardinelli. Também pode soar como um certo desrespeito que provém de um intelectual com o seu inegável conhecimento. Desrespeito não só com Mallarmé, poeta infelizmente esquecido e ainda envolvido por uma mitologia que o cerca de absolutismos e o prende a “seminários especializados”, mas com a fortuna crítica de alto nível que ele possui (de autores que, para Berardinelli, talvez tenham mais se divertido do que lido sua poesia, como Maurice Blanchot, Jean-Pierre Richard, Barthes, Julia Kristeva, Jacques Derrida, Jean-Paul Sartre etc.). São análises como essa de Berardinelli que mostram o equívoco de um certo pensamento bastante comprometido com um ataque subjacente a um universo literário que o desagrada – mas não é, por isso, menos importante. As leituras juvenis ou adultas de Mallarmé (Hegel, Poe, Baudelaire); o conhecimento sobre música, com contatos na área; a ligação com pintores e poetas das gerações anterior e posterior; a admiração por Rimbaud; os isolamentos e ausências que o poeta foi levado a enfrentar, em sua trajetória como professor escolar; a fuga para sua casa em Valvins – tudo revela que Mallarmé criou uma estética bastante pessoal. A sua ligação com um universo externo, composto também pela linguagem, ao de sua criação, mostra que em primeiro lugar ele não foi um ser isolado, ou seja, ele procurou o outro; que a obra não é fruto de um “estado de espírito”, como queriam os românticos e Paul Valéry, intérprete de Mallarmé, e sim de um conhecimento da tradição que o cerca, mostrando que sabe lidar com a matéria-prima do seu trabalho; que as referências artísticas do poeta dependem de sua existência (ou seja, suas leituras e concepções não brotaram da mente de um Gênio); de que a sua postura literária muitas vezes provém do seu choque com a realidade que sabe conturbada (mas que, no caso de Mallarmé, não quer representar a sociedade); de que o “ser de papel”, no caso da poesia, é uma extensão de um ser real, que ocupou sua vida na construção de uma obra; de que, embora uma obra não seja explicada pela biografia de quem a escreveu, nem representa diretamente uma determinada vida, está ligada intrinsecamente à subjetividade múltipla de quem a escreveu, que obviamente revela uma vida. Mallarmé necessitou da palavra alheia para se construir. Ao se saber impessoal, Mallarmé se torna como poucos um autor que transfere seu caráter múltiplo para o texto e para sua obra.

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Essa contribuição biográfica, que pode ajudar em uma abertura à obra de Mallarmé, costuma ser negada por críticos formalistas e estruturalistas radicais, para quem a vida do escritor não importa e nada acrescenta; para esses críticos o que importa é somente obra. Obviamente, não existe uma pretensão de colocar a biografia como fator de desvendamento da poesia mallarmeana, mas de sinalizar pontos em sua obra que permitem o estudo de textos (poemas, ensaios, cartas), que dizem mais do que se pensa de seu círculo restrito (familiar, social e cultural). Mallarmé é um poeta extremamente moderno porque tem consciência plena da obra que realiza, ou seja, sua pretensa impessoalidade é, sobretudo, pessoal.

André Dick nasceu em Porto Alegre/RS. Publicou dois livros de poesia, Grafias (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2002) e Papéis de parede (Belo Horizonte: Funalfa; Rio de Janeiro: 7Letras, 2004). Tem dois livros inéditos: Calendário, que recebeu menção honrosa do Concurso de Poesia Murilo Mendes, da Funalfa, em 2004, e O equilíbrio do dia, que recebeu a Bolsa de Estímulo à Criação Literária, da Funarte, em 2008. Publica, com Nicole Cristofalo, ensaios e traduções no blog Dado Acaso - http://dadoacaso.blogspot.com

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Traços da oralidade em Mallarmé por Nicole Cristofalo

Ao discutir a oralidade, em Linguagem – ritmo e vida, o teórico francês Henri Meschonnic menciona elementos que se relacionam a ela e que justamente a distingue em relação à fala, tais como a escritura, o ritmo e a linguagem ordinária na obra do poeta francês Stéphane Mallarmé, desmistificando a sua aura de poética “incompreensível” e demonstrando que, por meio da ideia da oralidade, é possível realizarmos uma leitura que questione tal crítica. Segundo Meschonnic: “Assim, podem-se transformar as evidências: Mallarmé. Toda uma modernidade, nos últimos trinta anos, o vê como o extremo do escrito, a própria negação do sujeito e da voz juntos, no livro impossível, no teatro abstrato, e não mais tanto as palavras raras do que a rarefação da linguagem e os brancos do Lance de dados. Essa era apenas uma leitura. O efeito de uma estratégia de escritura. Pode-se ler de outra maneira. Basta conceder o ritmo de outra maneira. Então, um outro Mallarmé, que estava escondido pelo anterior, surge. Um Mallarmé das palavras corriqueiras, do sujeito e da oralidade. O que mostra bem que não há diretamente 'Mallarmé', mas uma sequência de relações históricas com Mallarmé”. Um dos aspectos fundamentais da oralidade é a ideia de escritura. Interessante notar que Meschonnic não procura definir o conceito de escritura, pois afirma que ela própria começa onde cessa o definir, o que nos remete a obra de Mallarmé, tão criticada pelo fato de ser de “difícil acesso”, com suas imagens e significados mal definidos: “nomear um objeto é suprimir três-quartos do prazer do poema, que é feito de adivinhar pouco a pouco: sugerir, eis o sonho”, diria Mallarmé. E continua: “é o perfeito uso desse mistério que constitui o símbolo: evocar pouco a pouco um objeto e extrair dele um estado de alma, por uma série de decifrações”. Encontramos a mesma ideia em Meschonnic, quando ele critica: “a verdade dos nomes substituindo a verdade das coisas”. Podemos, então, pensar a obra do poeta francês como sendo uma escritura, pois esta se realiza quando se cria uma nova oralidade, um novo ritmo, e o que se confirma dentro da afirmação também de Roland Barthes: “sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, (...) mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhum é original: o texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura (...) Na escritura múltipla (...) tudo está para ser deslindado, mas nada para ser decifrado; a escritura pode ser seguida, 'desfiada' (como se diz da malha de uma meia que escapa) em todas as suas retomadas”. Difícil pensarmos numa obra moderna que possa ser tão “desfiada” como o poema Un coup de dés, de Mallarmé, além de seus diversos sonetos, que não se fecham num único significado, trazendo inúmeras possibilidades de leitura por meio de suas imagens indefinidas, além da disposição dos caracteres no papel, a sonoridade do poema e até mesmo a sua (falta de) pontuação,

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todos atuando como elementos de ritmo. Ou seja, os elementos que compõem o ritmo do poema são constituintes de sua escritura. A relação do ritmo e da escritura é extremamente importante, segundo Meschonnic: “Se a escritura é o que acontece quando alguma coisa é feita na linguagem por um sujeito e que jamais havia sido feito assim até aquele momento, então a escritura participa do desconhecido. Ou seja, do ritmo. Ela começa aí onde cessa o saber”. Assim, o crítico situa a escritura no saber do futuro, ainda quando se torna passado, inscrita dentro do ritmo que organiza o discurso e insere o subjetivo, a gestualidade, a corporeidade na linguagem, a qual costuma ser analisada apenas por meio de aspectos linguísticos. Se formos pensar na obra de Mallarmé tendo apenas em mente o conceito de signo, chegaremos à mesma conclusão dos críticos que a enxergam como “ininteligível”. Pensar em Un coup de dés sem termos em mente a ideia de ritmo é deixarmos escapar inúmeras possibilidades de leitura deste poema que influenciou os mais importantes poetas da modernidade. Segundo Augusto de Campos, “Mallarmé é o inventor de um processo de organização poética cuja significação para a arte da palavra se nos afigura comparável, esteticamente, ao valor musical da série, descoberto por Schoenberg, purificada por Webern, e através da filtração deste, legada aos jovens compositores eletrônicos, a presidir os universos sonoros de um Boulez ou um Stockhousen”. O ritmo no texto poético é distinto do ritmo que encontramos na música, já que o mesmo, na poesia, não necessariamente possui um intervalo regular. Apesar dos poemas gregos terem sido escritos com base nos intervalos regulares, vemos que ao longo dos séculos esse elemento se enfraqueceu, mas não se perdeu de todo. O ritmo sempre estará presente na poesia, por meio de seus diversos aspectos, levando sempre em consideração a respiração, a entonação da voz, o tempo de leitura, a gestualidade e a disposição de seus caracteres. Mallarmé constrói, por meio deste último aspecto, um ritmo que nunca havia sido concebido: “No ápice de todo um processo evolutivo da poesia, Mallarmé começa por denunciar a falácia e as limitações da linguagem discursiva para anunciar, no Lance de dados, um novo campo de relações e possibilidades do uso da linguagem, para o qual convergem a experiência da música e da pintura e os modernos meios de comunicação, do 'mosaico do jornal' ao cinema (ao qual Walter Benjamin atribui, justificadamente, tão grande importância) e às técnicas publicitárias. E assim como a aparente destrutividade da abolição do tonalismo em música (Schoenberg-Webern) e a da figura em artes plásticas (Cubismo-Malievitch-Mondrian) levam a um novo construtivismo, a contestação do verso e da linguagem em Mallarmé, ao mesmo tempo que encerra um capítulo, abre ou entreabre toda uma era para a poesia, acenando com inéditos critérios estruturais e sugerindo a superação do próprio livro como suporte instrumental do poema”, afirma Augusto de Campos.

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Apesar da diferença à qual nos referimos anteriormente entre o ritmo musical e o ritmo poético, Mallarmé relaciona o corpo do poema ao corpo da partitura, onde, além de encontramos contrapontos e fugas, se desenvolve um tema musical principal, com motivos secundários e outros adjacentes, que irão se identificar graficamente por meio dos diferentes tamanhos das letras e formatos dos tipos. Partindo do tema principal: “UN COUP DE DÉS / JAMAIS / N'ABOLIRA / LE HASARD”, os motivos secundários e adjacentes se relacionam entre si possibilitando leituras e interpretações diversas.

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Segundo o próprio Mallarmé, no prefácio a Un coup de dés, o poema, com sua “diferença dos caracteres tipográficos entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral e a disposição em pauta, média, no alto, embaixo da página, notará o subir ou o descer da entonação”. O motivo preponderante é a “espinha dorsal” do poema: “UN COUP DE DÉS / JAMAIS / N'ABOLIRA / LE HASARD” (na tradução de Haroldo, “(UM LANCE DE DADOS) / JAMAIS / ABOLIRÁ / O ACASO)”. O primeiro motivo secundário é “SI / C'ÉTAIT / LE NOMBRE / CE SERAIT” (traduzido por Haroldo como “SE / FOSSE / O NÚMERO / SERIA”), tendo como adjacentes os temas “comme si / comme si”. Em seguida, há motivo secundário com vários adjacentes se espalhando pelo poema: “QUAND BIEN MÊME LANCÉ DANS DES CIRCONSTANCES ÉTERNELLES / DU FOND D'UN NAUFRAGE / SOIT / LE MAÎTRE / EXISTÂT-IL / COMMENÇÂT-IL ET CESSÂT-IL / SE CHIFFRÂT-IL / ILLUMINÂT-IL / RIEN / N'AURA EU LIEU / QUE LE LIEU / EXCEPTÉ / PEUT-ÊTRE / UNE CONSTELLATION”, traduzido por Haroldo de Campos como “MESMO QUANDO LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS ETERNAS / DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO / SEJA / O MESTRE / EXISTIRIA / COMEÇARIA E CESSARIA / CIFRAR-SE-IA / ILUMINARIA / NADA / TERÁ TIDO LUGAR / SENÃO O LUGAR / EXCETO / TALVEZ / UMA CONSTELAÇÃO”. As demais construções do poema são motivos adjacentes, assinalados pelas letras menores. O preto das letras indica, como nas notas, o som, e o branco, silêncio. As alturas das linhas tipográficas correspondem às linhas de pauta – interessante lembrarmos que Mallarmé também admirava Wagner e o seu poema “L'après-midi d'un faune” foi musicado por Claude Debussy. Ainda sobre o poema Un coup de dés, Augusto de Campos afirma: “Trata-se, frisamos, de uma utilização funcional dos recursos tipográficos, impotentes, no seu arranjo tradicional, para expressar a nova organização do poema. A própria pontuação se torna aqui desnecessária, uma vez que é o espaço gráfico a pontuação essencial, o elemento 'negativo' de uma versificação estrutural que vem fazer caducar o mero linear verso-livre”. Novamente, vemos o poema de Mallarmé se afirmando como escritura, trazendo a criação de um novo ritmo, “uma nova organização do poema”. Torna-se importante relembrarmos a importância que Meschonnic atribui à pontuação e à sua historicidade, apontando os erros cometidos pelos tradutores na tentativa de modernizá-la, acabando por distorcer e colocando a perder o ritmo do texto traduzido. Lembremos que “a oralidade é solidária da historicidade”, e que “a pontuação na poética de um texto é seu gestual, sua oralidade”. É praticamente impossível imaginarmos Un coup de dés estruturado com pontuação, ou mesmo poemas como “Remémoration d'amis belges”, “Petit air I”, “Toute l'âme résumée...”, ou “A la nue accablante tu...” (todos traduzidos por Augusto de Campos, respeitando o ritmo que a pontuação define nos poemas de Mallarmé), onde encontramos apenas o ponto final no último verso do poema, com exceção de “A la nue accablante tu...” Neste último, é interessante vermos que a única pontuação que se imprime durante o poema é uma vírgula que divide o quinto e sexto verso, e que se encontra dentro de parênteses: “Quel sepulcral naufrage ( tu / Le sais écume mais y baves)” (“Que sepulcral naufrágio (sabes, / Espuma, se bem que o babes)”, na tradução de Augusto de Campos), como se os parênteses representassem a necessidade de se alterar o ritmo da leitura neste trecho. Ao lermos todo o poema, entendemos que estes versos se distinguem do restante, pois este é o único momento em que se declara uma primeira pessoa.

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Mallarmé, ao longo de sua obra, se liberta “progressivamente dos ornatos discursivos, caminha para uma extrema elipse e concisão. Ao mesmo tempo, a fraturação, as interrupções, a descontinuidade da linguagem, que vão triturando a sintaxe e exigindo novas técnicas, desde a pontuação, reduzida ao mínimo ou mesmo abolida (com ressalva dos parênteses necessários para as interseções de vários planos linguísticos), até os arquipélagos-constelações de substantivos ('Solitude, recife, estrela'; 'Noite demência e pedraria')”. Esta afirmação de Augusto de Campos é essencial para entendermos, resumidamente, o que ocorre na obra de Mallarmé, e que tais características não a tornam “inteligível”, mas, sim, transformam o seu ritmo.

Lendo a obra de Mallarmé, encontramos a linguagem ordinária que, nas palavras de Meschonnic, traz a “prosa do cotidiano”, e não necessariamente se realiza dentro de um “enunciado fácil”, com termos e estruturas simples. Ou seja, Mallarmé trabalha a linguagem ordinária trazendo elementos novos, criando um novo ritmo, mas que não torna o discurso incompreensível, ou afastado do cotidiano. Como afirma Barthes, em A preparação do romance II, Mallarmé trabalha com dois estados da língua: “estado bruto ou imediato” – que mistura dados da fala e da escrita – e “estado essencial”, que seria o “estado absolutamente literário da escrita”. Apesar de esta definição conflitar com o que afirmamos a respeito da oralidade neste trabalho, pois nela se confunde o oral com a fala, podemos entender que Barthes se refere às distintas oralidades que encontramos em Mallarmé, incluindo a que se relaciona mais intimamente à linguagem ordinária. No poema “Sainte”, em que Mallarmé evoca Santa Cecília, por exemplo, há “um entendimento do mundo como horizonte dos vários gestos da consciência – e da consciência criadora em particular – substancialmente diversa da ontologia metafísica e/ou da pretensão neokantiana de descrição do conhecimento fora da problemática do ser”, na afirmação de José Guilherme Merquior.

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“Fizeram-nos acreditar que ler era algo interno. Assim, o leitor não lê, ele é lido.” Talvez, por conta desta afirmação de Meschonnic, os leitores não encontrem em Mallarmé a oralidade, o seu ritmo único, feito da música e do silêncio inscritos na escritura, abertos aos símbolos e às imagens vindas da linguagem ordinária, esperando que sejam lidas e relidas, cada vez refletindo um novo ritmo de leitura que atravesse os seus significados sempre indefiníveis. Lembra Augusto de Campos o escrito de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa: “Entretanto, meu caro, tão estranhos e incompreensíveis são muitos dos sonetos admiráveis de Mallarmé. E nós compreendemo-los”.

Nicole Cristofalo é poeta, tradutora e cursa Letras na Universidade de São Paulo (USP). É autora de linhas, livro de poemas ainda inédito. Além disso, estuda a obra de Oliverio Girondo e publica artigos e ensaios sobre João Cabral e Paul Valéry, entre outros, no blog Dado Acaso - http://dadoacaso.blogspot.com

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4 poemas de Mallarmé (Tradução: André Dick)

QUANDO A SOMBRA AMEAÇA COM A LEI FATAL Quando a sombra ameaça com a lei fatal Este velho sonho, desejo e mal das minhas vértebras Aflito por sofrer sob tetos fúnebres de pétalas Ele abriu em mim a sua asa final. Luxo, sol de ébano, em que, para seduzir a figura real, Em sua morte se torcem guirlandas em festa Você não passa de um orgulho mentido por trevas Aos olhos do solitário ofuscado pela fé pessoal. Sim, eu sei que, nas distâncias desta noite, a Terra Lança com claridade a misteriosa espera Sob séculos horríveis que a obscurecem, insólita, O espaço, a si parelho, que aumente ou se negue Revolve neste tédio os fogos vis por provas Que de um astro em festa o gênio à luz esclarece.

QUAND L'OMBRE MENAÇA DE LA FATALE LOI Quand l'Ombre menaça de la fatale loi, Tel vieux Rêve, désir et mal de mes vertèbres, Affligé de périr sous les plafonds funèbres Il a ployé son aile indubitable en moi. Luxe, ô salle d'ébène où, pour séduire un roi Se tordent dans leur mort des guirlandes célèbres, Vous n'êtes qu'un orgueil menti par les ténèbres Aux yeux du solitaire ébloui de sa foi. Oui, je sais qu'au lointain de cette nuit, la Terre Jette d'un grand éclat l'insolite mystère, Sous les siècles hideux qui l'obscurcissent moins. L'espace à soi pareil qu'il s'accroisse ou se nie Roule dans cet ennui des feux vils pour témoins Que s'est d'un astre en fête allumé le génie.

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O SINEIRO Durante esse tempo o sino acorda sua voz clara Na manhã com seu ar profundo e puro, límpido E sobre a criança cujo jato para seu prazer passa Um angelus pela lavanda e tomilho. O sineiro aflora pelo olhar que se aclara Cavalgando tristemente no lamúrio do latim Sobre a pedra que tende à corda secular que não para Não entende descender de um barulho sem fim. Sou este homem! Olá! Da noite desejada É bom tirar a corda a sonhar o Ideal Dos pecados frios se diverte uma plumagem feal. E a voz não me vem através de vazios e migalhas Mas, um dia, cansado de haver em vão tirado Ó Satã, eu roubo a pedra e fico pendurado.

LE SONNEUR Cependant que la cloche éveille sa voix claire À l'air pur et limpide et profond du matin Et passe sur l'enfant qui jette pour lui plaire Un angélus parmi la lavande et le thym, Le sonneur effleuré par l'oiseau qu'il éclaire, Chevauchant tristement en geignant du latin Sur la pierre qui tend la corde séculaire, N'entend descendre à lui qu'un tintement lointain. Je suis cet homme. Hélas! de la nuit désireuse, J'ai beau tirer le câble à sonner l'Idéal, De froids péchés s'ébat un plumage féal, Et la voix ne me vient que par bribes et creuse! Mais, un jour, fatigué d'avoir en vain tiré, O Satan, j'ôterai la pierre et me pendrai.

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APARIÇÃO A lua se entristece. Os serafins em dores Sonham, o arco nos dedos, na calma das flores Vaporosas, tirando de mourantes violas Brancos soluços escorregando sobre as corolas É o seu primeiro beijo neste dia bendito Meu devaneio afetuoso ao meu martírio E se embriaga sabiamente do perfume da tristeza Que mesmo sem regressar e pesar conduz à beleza Resgatada de um sonho do coração que a colhe. Eu vago com meu olhar sobre as velhas pedra-pomes Quando na rua, à tarde, o sol chega aos cabelos E ela surge com um sorriso de alento Então acredito vê-la com o chapéu tão claro Sobre meus belos sonos solúveis da infância, no passado Esqueço para sempre de suas mãos entrecerradas Neve de brancos buquês de estrelas perfumadas.

APPARITION La lune s'attristait. Des séraphins en pleurs Rêvant, l'archet aux doigts, dans le calme des fleurs Vaporeuses, tiraient de mourantes violes De blancs sanglots glissant sur l'azur des corolles – C'était le jour béni de ton premier baiser. Ma songerie aimant à me martyriser S'enivrait savamment du parfum de tristesse Que même sans regret et sans déboire laisse La cueillaison d'un Rêve au coeur qui l'a cueilli. J'errais donc, l'oeil rivé sur le pavé vieilli Quand avec du soleil aux cheveux, dans la rue Et dans le soir, tu m'es en riant apparue Et j'ai cru voir la fée au chapeau de clarté Qui jadis sur mes beaux sommeils d'enfant gâté Passait, laissant toujours de ses mains mal fermées Neiger de blancs bouquets d'étoiles parfumées.

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RENOVAÇÃO A primavera adoecida expulsou, com desalento, O inverno, estação de arte serena, tão lúcido E no meu ser, com seu sangue morno, impuro, A impotência se estira num longo bocejo. Amorna meu crânio o crepúsculo branco Velho túmulo, que cinge um círculo de ferro E, triste, me perco depois de um sonho vago e belo Onde a seiva imensa se mostra, pelo campo. Eu tombo enervado de perfumes das árvores E, cavando em minha face uma fossa ao meu sonho, Mordo a terra cálida, onde pousam os lilases, E já espero, em meu abismo, que o tédio suba lentamente – Enquanto o Azul ri sobre a cerca viva, sinto o sopro De tantos pássaros em flor gorjeando ao sol ainda quente.

RENOUVEAU Le printemps maladif a chassé tristement L'hiver, saison de l'art serein, l'hiver lucide, Et, dans mon être à qui le sang morne préside L'impuissance s'étire en un long bâillement. Des crépuscules blancs tiédissent sous mon crâne Qu'un cercle de fer serre ainsi qu'un vieux tombeau, Et triste, j'erre après un rêve vague et beau, Par les champs où la sève immense se pavane Puis je tombe énervé de parfums d'arbres, las, Et creusant de ma face une fosse à mon rêve, Mordant la terre chaude où poussent les lilas, J'attends, en m'abîmant que mon ennui s'élève... – Cependant l'Azur rit sur la haie et l'éveil De tant d'oiseaux en fleur gazouillant au soleil.

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LÚCIDA RETINA

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Arnaldo Antunes Nasceu em São Paulo (1960). Integrou o grupo Titãs e atua em carreira solo desde 1992. Entre alguns de seus discos lançados estão: Nome (BMG, 1993), O Silêncio (BMG, 1996), Um Som (BMG, 1998) e Iê Iê Iê (Rosa Celeste, 2009). Entre os livros publicados estão: Tudos (Iluminuras, 1990), As Coisas (Iluminuras, 1992), ET Eu Tu (Cosac Naify, 2003) e n. d. a. (Iluminuras, 2010). Participou em diversas mostras de artes e de poesia visual, entre elas: Transfutur, Visuelle Poesie (Kassel – Alemanha, 1990), XXIV Bienal Internacional de São Paulo (São Paulo, 1998) e II Bienal de Artes Visuais do Mercosul (Porto Alegre, 1999). Realizou diversas exposições individuais, entre elas: Palavra Desordem (Portugal, 2001), Palavra Imagem (Porto Alegre, 2005) e Ler Vendo Movendo (Curitiba, 2009). Site Oficial: http://www.arnaldoantunes.com.br Blog: http://www.arnaldoantunes.blogspot.com

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