Celuzlose 08

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celuzlo se Revista

Literรกria

08 ~ Dezembro 2011


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Sumário

Ruy Proença

20 Aline Rocha Eduardo Lacerda Márcia Barbieri Carlos Martin Elaine Pauvolid Rafael F. Carvalho Juliana Bernardo Casé Lontra Marques Ronaldo Cagiano Luiz Gonzaga S. Neto Claufe Rodrigues Tarso de Melo

44 Armando Alanís Pulido (México) Fávio Bargas (Brasil / Paraguai / Argentina) Barbara Pumhösel (Áustria / Itália) Hilary Kaplan (EUA / Brasil) Paol Keineg (Bretanha) Delfín Prats (Cuba) Eva Taylor (Alemanha / Itália)

64 Nas entrelinhas de Ana Cristina • por Annita Costa Malufe Alguns poetas da natureza, dos românticos aos contemporâneos • por Claudio Willer Entre o antropofágico e o aórgico: meditação em torno de Oswald de Andrade e Vicente Ferreira da Silva • por Rodrigo Petronio Vanguarda poética em Portugal • por Claudio Daniel Obras paralelas da literatura latino-americana: Rubén Darío e Augusto dos Anjos • por Fábio Aristimunho Vargas Dante: entre o ser e o não-ser • por João Ibaixe Jr.

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Edson Cruz (Organizador) Gustavo Darío López

140 Fernando Pessoa: um certo Chevalier de Pas • por Carlos Felipe Moisés

160 Antonio Gómez Chiu Yi Chih

celuzlose # 08 ~ Dezembro 2011 Expediente Editor: Victor Del Franco Capa, Projeto Gráfico, Diagramação e Revisão: Victor Del Franco

Colaboraram com esta edição: Aline Rocha • Andréa Catrópa • Annita Costa Malufe Antonio Gómez • Armando Alanís Pulido • Barbara Pumhösel Carlos Felipe Moisés • Carlos Martin • Casé Lontra Marques Chiu Yi Chih • Claudio Daniel • Claudio Willer • Claufe Rodrigues Delfín Prats • Edson Cruz • Eduardo Lacerda • Elaine Pauvolid Eva Taylor • Fábio Aristimunho Vargas • Fávio Bargas Gustavo Darío López • Hilary Kaplan • João Ibaixe Jr. Juliana Bernardo • Luiz Gonzaga S. Neto • Márcia Barbieri Marília Garcia • Paol Keineg • Prisca Agustoni • Rafael F. Carvalho Rafael Rocha Daud • Renan Nuernberger • Rodrigo Petronio Ronaldo Cagiano • Ruy Proença • Tarso de Melo

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Contato: celuzlose@gmail.com

Os textos e imagens desta revista poderão ser usados para fins não comerciais, desde que sejam citados os nomes dos autores, o nome da revista e o link correspondente.


Editorial Asas

O primeiro contato que tive com a poesia de Ruy Proença foi em 1993 por conta do lançamento da antologia Lição de asa. Essa antologia foi organizada pelos integrantes que, naquela época, faziam parte do grupo Cálamo. O grupo teve origem nas oficinas literárias que aconteciam na Casa Mário de Andrade e, logo em seguida, passou a ter uma atuação independente com a realização de encontros mais regulares entre os seus participantes. Na presente entrevista, elaborada por Andréa Catrópa, Carlos Martin e Renan Nuernberger, o poeta e tradutor Ruy Proença relembra a sua trajetória e traça um panorama do grupo Cálamo que manteve as suas atividades poéticas por mais de 10 anos. Seguindo um pequeno paralelo com a entrevista, é interessante notar que a apresentação da antologia Lição de asa foi feita por Carlos Felipe Moisés, o qual, nesta edição da Celuzlose, colabora com um texto sobre a vida e obra de um certo Chevalier de Pas. Na seção Lúcida Retina, há uma série bem representativa de alguns poemas visuais e poemas-objeto de Antonio Gómez, poeta espanhol que esteve no Brasil recentemente participando do festival 2011 poetas por km2 (http://www.poeticofestival.es/2011). Esse festival já foi organizado em algumas cidades pelo mundo e desta vez, em setembro, teve uma passagem pela cidade de São Paulo. Boa leitura. Victor Del Franco Editor

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para ler a 7 edição Celuzlose 08 • Dezembro 2011 03


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Ruy Proenรงa

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Ruy Proença nasceu em São Paulo, 1957. Poeta e tradutor. É formado em Engenharia de Minas pela USP e no início dos anos 1990 foi um dos primeiros integrantes do grupo Cálamo do qual participou por mais de 10 anos. Livros publicados: Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007) e o livro de poesia infanto-juvenil Coisas daqui (SM, 2007). Traduziu poemas de Boris Vian que foram reunidos no livro Boris Vian – poemas e canções (Nankin, 2001) e atualmente traduz poemas de Paol Keineg.

Entrevista feita por Andréa Catrópa, Carlos Martin e Renan Nuernberger

cálculo e

encanto Celuzlose 08 • Dezembro 2011 05


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Desde os anos 1990, vem se tornando cada vez mais comum que os poetas também atuem academicamente na área de Letras (ainda que, normalmente, os cursos da área não privilegiem a criação literária, mas sua abordagem teórica). Você encontra reflexos desse fato na produção poética das últimas décadas? Independentemente da atuação acadêmica à qual vocês se referem, penso que na modernidade, isto é, depois de Baudelaire, todo poeta que se preze é, no mínimo, um crítico de si mesmo. Além da leitura de outros poetas, a leitura de ensaios sobre poesia, sobre teoria literária, passou a ser fundamental. Só assim é possível constituir uma visão de mundo que não seja ingênua. Agora, acho que, embora o repertório crítico possa ajudar um poeta a refletir e a desenvolver uma determinada ideia ou projeto de poesia, a atividade de criação é um território à parte, que acontece longe dos conceitos, da razão, da lógica. De alguma forma, essas instâncias fazem parte do “sistema supervisório” do poema, mas a coisa acontece mesmo em outra esfera, que tem mais a ver com a percepção sensorial do mundo, com a intuição. Na produção contemporânea, pensando na minha geração e mais novos, há ótimos poetas com atividade acadêmica na área de Letras (lembro alguns: Marcos Siscar, Alberto Pucheu, Paulo Henriques Brito, Maria Esther Maciel, Sérgio Alcides, Annita Costa Malufe, Eduardo Sterzi, Heitor Ferraz, Fabio Weintraub), assim como há ótimos poetas que não têm uma ligação regular com essa atividade, ainda que alguns atuem em outras áreas universitárias (Donizete Galvão, Carlito Azevedo, Alberto Martins, Carlos Loria, Ronald Polito, Paulo Ferraz, Tarso de Melo, Pádua Fernandes).

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Especificamente no seu caso, a formação em engenharia definiu algum aspecto de sua poesia? Ou estas instâncias mantêm-se separadas? Em princípio, sempre considerei a atividade de criação literária como algo totalmente distinto da engenharia. Diria até que uma coisa acontece contra a outra. Em certo sentido, a engenharia “emburrece”, porque tende a condicionar a pessoa a restringir seu campo de conhecimento, a especializar-se em algo essencialmente técnico ou tecnológico, omitindo-se em relação a outros domínios, principalmente as ciências humanas. Já a poesia é a área do conhecimento totalizante, libertário, anárquico. Portanto, no plano geral, diria que essas instâncias não dialogam, antes guerreiam. Mas, assim como a noção de liberdade só faz sentido por contraste com a noção de prisão (“Toda canção de liberdade vem do cárcere”, Mário de Andrade, Prefácio interessantíssimo), a poesia conhece sua força por oposição ao dia a dia da engenharia, que é um semiárido. Guardadas as devidas proporções, sempre procurei ver Leonardo da Vinci como modelo a ser seguido. Nunca desprezar nenhuma área do conhecimento, embora hoje isso seja praticamente impossível. Cheguei mesmo a cursar, paralelamente à engenharia, o curso de História da USP. Porém, refletindo ao longo do tempo sobre essa pergunta, que é feita com certa frequência, fico pensando que há sim um ponto de contaminação, de contato entre as duas atividades. A maior parte da minha vida profissional na engenharia, mais especificamente na engenharia de minas, que é a minha área de formação, foi voltada ao estudo da concentração de minérios, abrangendo desde atividades laboratoriais, isto é, experimentos, até a elaboração de projetos de usinas industriais de tratamento de minérios. Fico pensando se isso, isto é, a ideia de concentração, de condensação, de decantação não teria migrado clandestinamente para o plano do texto. Assim como se extrai o minério bruto que depois é processado para se obter algum mineral específico, da mesma forma é a luta no universo bruto das palavras a fim de buscar sempre uma forma de expressão concentrada... Além disso, assim como na música, a poesia tem a coisa dos números – a métrica, a cadência, o ritmo –, o que não deixa de ser uma interface com a matemática. A propósito, um fato anedótico: um ex-professor de psicologia de um amigo, perguntado a respeito de sua atividade de criação poética, respondeu que a tinha abandonado e estava se dedicando inteiramente à matemática, pois “a poesia é coisa para quem não tem imaginação”! No mais, é natural que o campo lexical dos meus poemas se deixe invadir, esporadicamente, por uma ou outra palavra do repertório mineral.

“É natural que o campo lexical dos meus poemas se deixe invadir, esporadicamente, por uma ou outra palavra do repertório mineral.”

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Você participou do Cálamo, grupo de criação e discussão de textos, integrado por outros diversos escritores. Como a participação no grupo contribuiu para a sua formação literária? A participação no Cálamo foi fundamental para mim. Com 32 anos, eu acabara de voltar de um curso de extensão universitária na França, entre 1988 e 1989, e estava totalmente desconectado de pessoas com quem pudesse conversar sobre literatura. Na verdade, a coisa já vinha de muito antes. Desde o final dos anos 1970 e durante a década de 1980 tive que me envolver com outros aspectos vitais: síndrome do pânico (àquela altura ainda desconhecida), início da vida profissional, casamento, filhos... e, embora continuasse escrevendo, quase não tinha com quem conversar a respeito. Aí, no segundo semestre de 1990, surgiu nos jornais a programação de oficinas literárias da Casa da Palavra, situada no imóvel da rua Lopes Chaves onde residiu Mário de Andrade. Quando fiquei sabendo, imediatamente me candidatei a uma vaga na oficina de poesia a ser ministrada pelo Fernando Paixão. Ironia da história: como a lei de Murphy sempre se faz valer nessas horas, fui convocado para um trabalho de campo em uma mina de fluorita no Paraná, onde deveria ficar alguns meses, o que me impediria de participar da oficina. Pois não é que na véspera das coisas se concretizarem, rompeu uma pequena barragem no complexo de mineração – sem maiores consequências, felizmente – e o trabalho de campo acabou sendo abortado! Com o perdão da palavra, acho que nunca pus meu santo para trabalhar tanto! Após a oficina com o Fernando Paixão, um difícil trabalho sensorial em torno dos quatro elementos – ar, terra, água e fogo –, cujo objetivo era despertar as pessoas de seu estado cotidiano de cegueira anestésica, fiz outras oficinas: uma com o Jiro Takahashi, editor, e várias com o Carlos Felipe Moisés, que, diga-se de passagem, numa demonstração de adesão à causa, se rendeu a trabalhar com um grupo de poetas famintos, independentemente da programação da Casa da Palavra e sem qualquer remuneração (o projeto das oficinas literárias, que havia passado por interessantíssima expansão, começou a fazer água dois meses depois, assim que Fleury foi eleito...). Na primeira oficina que fiz com o Carlos Felipe, sobre formas fixas na poesia, já no início de 1991, conheci o Fabio Weintraub, que juntamente com a Chantal Castelli, Rodolfo Dantas e outros poetas haviam montado um grupo de trabalho paralelo às oficinas. O grupo andava temporariamente meio à deriva e o Fabio me convidou para retomarmos o trabalho. Logo, várias pessoas se reagruparam e formamos o Cálamo, que se propunha a trabalhar principalmente com a criação, mas também a pesquisar e divulgar poesia. 08 Celuzlose 08 • Dezembro 2011

“Várias pessoas se reagruparam e formamos o Cálamo, que se propunha a trabalhar principalmente com a criação, mas também a pesquisar e divulgar poesia.”


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O Cálamo durou cerca de 12 anos e por ele deve ter passado uma centena de pessoas. Foi um período muito importante para quem estava lá, um tempo de formação. Hoje, vários de seus exintegrantes são poetas ou prosadores com trabalhos interessantes, ou professores universitários, ou editores, ou mantêm mais de uma dessas atividades em paralelo – Fabio Weintraub, Ana Paula Pacheco, Priscila Figueiredo, Chantal Castelli, Luiz Gonzaga, Rosana Piccolo, Rosa Mattos, Cesar Garcia Lima, Rodolfo Dantas, Fabio Camarneiro, Flávio de Sousa Correa e Elaine Armenio são alguns exemplos. O próprio Victor Del Franco, editor desta revista, esteve conosco durante um tempo.

Voltando à pergunta, depois de falar um pouco sobre o contexto: naquilo que me concerne, o Cálamo foi fundamental em vários sentidos. Foi uma oportunidade de rediscutir o que é a poesia, ler/reler vários autores – Mário de Andrade, Jorge de Lima, Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antonio Gonzaga, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade etc. – e muitos estudos sobre poesia (Hugo Friederich, Gaston Bachelard, Alfredo Bosi, Luiz Costa Lima, Antonio Cândido, Merquior, Cacaso, Iumna Simon, Maurice Blanchot, Lezama Lima, José Paulo Paes, Auden, Elliot, Octavio Paz...). Além, é claro, de estarmos sempre discutindo os próprios textos e conversando sobre outros autores contemporâneos. O resultado desse tempo fértil, as oficinas da Casa da Palavra, somadas ao trabalho do Cálamo, foi uma mudança significativa no meu modo de fazer poesia. Conforme ideia inoculada por Fernando Paixão, passei a considerar o poema como um animal, um organismo vivo, cujas partes idealmente têm que estar articuladas com o todo a ponto de permitir que se “locomova”. Essa visão se contrapõe a uma concepção da poesia como mero acúmulo imagético por livre associação, que é um modo de pensá-la e que, de certa forma, estava presente em Pequenos séculos, meu primeiro livro. Em outras palavras, acho que minha poesia foi deixando de lado um aspecto mais visionário e catártico, e passou a ser mais concentrada, mais orgânica, mais reflexiva. Além disso, passou a se guiar por um repertório de aspectos formais que antes não estavam tão presentes. Durante esse processo também ganhei consciência da limitação do poder da palavra, principalmente quanto a seu poder mágico, encantatório. Em suma, de livro para livro foi ocorrendo um rebaixamento no tom metafórico, fazendo com que o poema em certo sentido tenha se tornado mais prosaico, mais áspero. Hoje, tendo em mente poemas impressionantes de Aglaia Veterani publicados na tradução de Fabiana Macchi nas revistas Sibila e Inimigo Rumor, que exploram uma magia meio fabulosa, meio nonsense, até estou revendo um pouco alguns conceitos, como se eu quisesse fazer uma síntese entre o antes e o depois. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 09


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Entre a publicação de Pequenos séculos e A Lua investirá com seus chifres há um hiato de mais de dez anos. O que definiu esse longo intervalo entre o lançamento de um livro e de outro? É fato que houve um hiato grande entre o primeiro e o segundo livro. Isso acontece, às vezes. Mesmo entre Como um dia come o outro e Visão do térreo se passaram 8 anos, o que também não é pouco tempo! Penso que há algumas razões para isso: a primeira é que nem sempre a poesia nos visita com a mesma assiduidade e intensidade. Além disso, para que ela nos visite, é necessário estarmos disponíveis, o que também nem sempre acontece. Isso, no meu caso, é ainda mais crítico pois, como utilizo a maior parte do meu tempo trabalhando com engenharia, sou obrigado a dedicar à poesia o terceiro turno... Outro aspecto é que a preparação de um livro leva tempo mesmo, porque ela significa mais que juntar vários poemas. Penso que há um tempo de escrever e há um tempo de construir o livro, que é muito trabalhoso. Primeiro é preciso uma decantação e um distanciamento dos poemas. Depois, são necessárias algumas linhas de força que vão orientar a seleção dos poemas e a construção do livro. Assim como cada poema individualmente, o conjunto de poemas de um livro precisa formar um corpo. É natural que tudo isso leve algum tempo para acontecer. E há também as questões de ordem prática para se publicar um livro, que não são barreiras simples de vencer: editora que se interesse, custeio do livro etc. Por último, conforme já disse, a década de 1980 foi um período difícil para mim. E, como diria Juliano Pessanha, a poesia é uma amante argentina!

“Assim como cada poema individualmente, o conjunto de poemas de um livro precisa formar um corpo.”

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Em Pequenos séculos percebemos uma pluralidade de estilos, como se o jovem poeta estivesse exercitando suas possibilidades de criação. Já seu último trabalho, Visão do térreo, mostra um direcionamento preciso rumo à concisão e ao poema certeiro, sem derivas. Você considera que este último movimento é o que melhor define sua produção atual, ou seus leitores podem ser surpreendidos nos próximos livros? Pequenos séculos é um livro de 1985 e reúne poemas escritos entre 1976 e 1984. Ali estão representados vários momentos de minhas primeiras investidas na poesia. Primeiro, minha amizade com Eduardo Giannetti, à época também poeta. Depois, uma oficina de criação literária que fiz com Henrique Setti Neto, no museu Lasar Segall, se não me engano em fins de 1975. A seguir, um contato direto com a pessoa e a poesia de Roberto Piva, a quem conheci pela mão de Giannetti, em fins de 1975, ou início de 1976. O contato com outros poetas amigos de Piva, principalmente Claudio Willer e Roberto Bicelli. As leituras de Pessoa, Bandeira, Jorge de Lima, Aníbal Machado, Drummond, Murilo Mendes, Guimarães Rosa, Lorca, Rimbaud, Lautréamont, Apollinaire, Paul Éluard, Lawrence Ferlinghetti, William Blake, entre outros. A Feira de Poesia e Arte, organizada em 1976 por Claudio Willer, Massao Ohno e outros no Teatro Municipal de São Paulo. A leitura incessante da antologia 26 poetas hoje, organizada pela Heloísa Buarque de Holanda. O contato indireto com a poesia-práxis, por meio da leitura dos livros de Yone Giannetti da Fonseca. O contato logo posterior com os textos – poesias, traduções e ensaios – dos poetas concretos e de Mário Faustino. Essa vivência tateante, assim como essas leituras um pouco divergentes e ao sabor da hora, se refletiram na criação dos poemas selecionados para compor o primeiro livro. A partir de 1990, com minha participação em oficinas de criação e com o trabalho no Cálamo, minha poesia se desdobrou em outro rumo. Daí para a frente foram três livros: A lua investirá com seus chifres (1996), Como um dia come o outro (1999) e Visão do térreo (2007). Ao longo desse novo percurso, acredito que minha poesia continuou se transformando. Para resumir, correndo o risco de simplificar demais as coisas, acredito que ela tenha se deslocado de um polo mais imagético, mais metafórico e mais confiante na palavra para outro extremo mais desconfiado, mais corroído pela acídia, mais prosaico e, ao mesmo tempo, mais voltado para a representação do tempo histórico. Ou seja, acho que ela vai de uma perspectiva da poesia como última força redentora do homem, último lenitivo contra a banalização e o sofrimento de viver, para outra, em que essa possibilidade de redenção perde seu espaço. Por outro lado, acho que algumas linhas de força não se alteraram: a poesia como instrumento de resistência, de ironia e de autoderrisão; além de uma certa poética da catástrofe, do desastre, do absurdo, do nonsense. Se haverá alguma surpresa daqui para frente? Vejo duas possibilidades para o percurso de um poeta: ou aprofundar cada vez mais o mesmo espaço criativo, o mesmo modo de representação, os mesmos temas, ou buscar novas formas de expressão, novas soluções. Pessoalmente, considero que o maior risco que um escritor corre é cristalizar-se num determinado modo de criar, apegar-se a determinadas fórmulas que aparentemente deram “certo”. Isso é a morte! Assim, na medida do possível, estou sempre buscando, penso, caminhos novos, experiências diferentes. Mas também é verdade que com 50 anos não se tem mais a mesma disposição de reinventar o mundo, como quando se tem 20 ou 30 anos, época em que tudo é novo e surpreendente. Nesse sentido e respondendo à pergunta, não acho que esse “último movimento” seja um modelo, porque o modelo engessaria a poesia. Tudo, principalmente nós mesmos, somos constantemente mutáveis com relação à nossa visão de mundo. Digo com Roberto Piva: “o mundo muda a cor da jabuticaba muda teu cu muda o chapéu do vizinho muda [...] & mudamos cada dia mais para o porão da vida”. Assim, creio que meu próximo livro, se acontecer, será talvez um “ponto-atrás”, procurando fazer um balanço entre uma poesia mais prosaica, a atual, e outra mais imagética, a anterior. É claro que nem oito nem oitenta, nem tanto ao mar nem tanto à terra. Provavelmente alguns poemas estarão nessa nova linha de experimentação, outros não. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 11


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Não só pelo conteúdo, mas também pelos títulos dos livros, a sua poesia parece estar se aproximando – de forma mais direta – da matéria cotidiana, que traz dados específicos de nosso momento histórico. Você concorda com essa percepção? Se sim, quais elementos lhe impeliram a escrever deste modo e não de outro? Concordo plenamente com essa afirmação. Nos dois livros publicados nos anos 1990 – A lua investirá com seus chifres (1996) e Como um dia come o outro (1999) –, embora determinadas preocupações com o momento histórico existissem, sobressaía-se uma inquietação mais existencial, até certo ponto transcendente, expressa por meio de grande carga sensorial. Via na palavra uma possibilidade de redenção – minha e do eventual leitor – em relação ao mundo trivial, utilitário, monótono, massacrante. Já na segunda metade dos anos 1990, eu e outros amigos do Cálamo, sentimos necessidade de darmos uma guinada, voltarmos as canetas (ou as teclas do computador) para o tempo presente, como aparece no poema Mãos dadas do Drummond. Sentimos necessidade de escrever uma poesia que não se bastasse em si, que não fosse só a arte pelo artefato, mas que, além disso, estivesse intimamente conectada e refletindo o mundo contemporâneo, nosso tempo. Para mergulhar nesse projeto, chegamos a desenvolver um trabalho de criação a partir de notícias de jornal. O fato é que, mesmo havendo essas transformações, ou seja, a poesia se tornando mais tributária/caudatária do mundo real, do tempo histórico, do tempo presente, certos elementos são marcas fundamentais de minha expressão e perduram, um tanto quanto fora de controle. Por exemplo, nunca deixei de ter um sentimento da ordem do sagrado, do místico, para com a natureza. As grandes e pequenas coisas. Os pequenos e grandes seres. O minúsculo e o cósmico. O minuto e o milênio. O finito e o infinito. Pode parecer banal dizer assim, mas para mim tudo funciona como se todos os seres e todas as coisas estivessem fecundados por uma centelha da energia cósmica. Como afirmou certa vez Stephen Hawking, tudo no mundo são diferentes formas de concentração de energia: assim o papel, assim o poema que o poeta nele põe. Energia essa que, como sinto, é luminosa, da ordem do sagrado. 12 Celuzlose 08 • Dezembro 2011

Se pudesse escolher apenas cinco nomes, sugeriria a leitura de quais poetas do passado? E quanto aos poetas do presente? Vou me esquivar um pouco da pergunta, porque ela não tem muito sentido. Estamos falando de oceanos. Acho que a gente deve ler aquilo que, de alguma forma, acabou chegando até nós e que nos toque. E não estou falando só de poesia, nem tampouco da boa literatura, mas de tudo: jornais, bula de remédio, grafites e toda a prosa do mundo, incluindo os grandes – Kafka, Dostoiévski, Borges, Machado... Quanto aos poetas do presente, ainda que restringíssemos a cena ao Brasil, há muita coisa boa acontecendo e eu seria injusto de mencionar só cinco. Assim, vou citar apenas alguns nomes de poetas mais recentemente editados que tive a oportunidade de ler e que me entusiasmaram, cada um a seu modo: Ricardo Rizzo (País em branco), Luiz Gonzaga (Céu sem dono), Priscila Figueiredo (Mateus), Renan Nuernberger (Mesmo poemas) e Hélio Neri (Palavra insubordinada). Poetas do passado... existem? (risos) Ou os poetas seriam sempre do presente? Cito alguns que eu mesmo, por ora, gostaria de ler melhor: Aglaia Veterani (espero uma tradução completa da Fabiana Macchi...); Cesare Pavese; Juan Gelman; Ruy Belo; Manuel de Freitas; Paol Keineg, que estou traduzindo; ou reler sempre (Drummond; Aníbal Machado de Cadernos de João; Lorca; Sosígenes de Sonetos Pavônicos; Murilo, Bandeira, Pessoa, Jorge de Lima, Francis Ponge, Boris Vian, Luis Cernuda e por aí vai...).

“A poesia é uma das formas mais interessantes de conhecimento, de apreensão, de figuração do mundo.”


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Você considera que a poesia seja algo obsoleto na cena artística contemporânea? Por quê? Não, absolutamente não! A poesia é uma das formas mais interessantes de conhecimento, de apreensão, de figuração do mundo. Mas, como lembra Octavio Paz, segundo Juan Jamón Jiménez, é uma forma de expressão restrita a uma “imensa minoria”. Acho que sempre foi e sempre será. O que não impede que ela tenha um alto poder de explosão. É um não-lugar que desestabiliza, subverte a ordem estabelecida. É uma indisciplinadora das mentes. É uma espécie de droga da clarividência!

Você acredita que os poetas contemporâneos, como você, têm recebido atenção suficiente da crítica? A recepção crítica, de alguma forma, tem contribuído para a reflexão sobre a sua produção poética? Olhem, essa questão da recepção crítica acho que é algo que vem com o tempo, se determinado trabalho for merecedor de atenção. Hoje em dia há uma certa ansiedade em se fazer notado, o que leva ao engajamento “publicitário” de determinados autores na divulgação do próprio trabalho, na articulação de redes etc. A meu ver, essa é a parte desinteressante do trabalho. O que realmente importa é o trabalho de criação, com o que vem antes dele. O resto, o que vem depois da festa, depende de uma “seleção natural” que será feita ao longo do tempo. O bom hoje pode ser o ruim amanhã e vice-versa. Ninguém pode prever como a história irá se metamorfoseando. Por outro lado, considero que uma crítica bem feita sempre é interessante para o autor. O bom crítico é capaz de despertar questões que fazem mover a máquina pensante do escritor. Assim, a boa crítica realimenta o processo criativo e pode até, no limite, influir no caminho que uma obra seguirá. Mas a crítica não se restringe necessariamente ao texto escrito. Em um trabalho em grupo pode haver boa crítica, desde que haja pessoas preparadas para a discussão. Fazíamos isso no Cálamo. Em relação ao meu trabalho, cito alguns autores que se debruçaram criticamente sobre ele e que me ajudaram a pensar algumas questões: Ana Paula Pacheco, José Paulo Paes, Iuri Pereira e Ítalo Moriconi. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 13


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Uma das referências em Pequenos séculos é a música. Dorival Caymmi, Hermeto Pascoal, Caetano Veloso, Heitor Villa-Lobos etc. são nomes que se destacam durante a leitura. Qual é o lugar da música em sua poesia? Vejam, há muitas referências culturais em Pequenos séculos! Talvez fosse aquela ansiedade inconsciente de querer mostrar “repertório”. Quando eu só tinha esse livro, o Fernando Paixão me alertou para isso. Tanto é que fiz questão de evitar esse procedimento em tudo o que escrevi depois, a menos que houvesse uma função especial para a citação explícita. Vocês hão de concordar que citar por citar é uma coisa meio pedante, meio beletrista. Não gosto de poetas que fazem uso abusivo desse expediente. Com relação à musica, sempre fui um mau amante dessa arte. Digo mau amante porque adoro música, mas sou um zero à esquerda em afinação. Às vezes, acho que, assim como sou daltônico para cores, também tenho uma espécie de daltonismo para melodias. Quando na adolescência tentei aprender a tocar violão, minhas irmãs mais velhas viram ali um fenômeno: diziam que eu conseguia tocar uma música e cantar outra!... Outra vez, ainda no colegial, um grupo de amigos conseguiu inscrever uma música para as eliminatórias de um festival da TV Bandeirantes. O professor de violão de um deles foi chamado às pressas para dar uma geral no arranjo. Pediu que tocássemos uma vez a música para ele ouvir em que pé estávamos. Após o término, a primeira coisa que disse, olhando para mim: – você, não cante; limite-se a tocar o atabaque. Mas minha mãe era apaixonada por música. E, além de médica, era uma excelente pianista. Penso que ela talvez pudesse ter sido concertista, não fosse ter optado por fazer medicina e já ter três filhos antes da conclusão do curso. Não devia ser mole! O lance é que sempre ouvi música dentro de casa. Quando não era ela, ou uma de minhas irmãs ao piano, era na velha e boa bolacha de vinil. Ela tinha uma discoteca considerável de música erudita. E às vezes – eu ainda criança – me levava a concertos! Voltando à pergunta, essas referências musicais que aparecem em Pequenos Séculos, creio que não se repetiriam depois. Mas é possível que haja uma ou outra exceção. Acho que se a música entra hoje em meus poemas, seria mais pelo viés natural de se buscar uma prosódia, uma melodia, uma cadência nos poemas, por meio de uma apuração do ouvido interno. É claro que, em tese, dependendo da função poética, o resultado buscado possa ser o contrário de uma harmonia.

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Em seu livro de estreia os poemas são acompanhados de ilustrações. Tal parceria não é retomada nos livros seguintes. O que o levou a realizá-la em Pequenos séculos? Na década de 1970, era comum os livros de poesia serem ilustrados. Mais do que atualmente. As ilustrações funcionavam como uma extensão dos poemas. E o tom era um pouco de deboche, de almanaque, de história em quadrinhos, acrescentando uma pitada de humor lírico aos textos. Touché, Zuca Sardan, o pessoal do Nuvem Cigana, todos usavam ilustrações. Quando publiquei Pequenos séculos, em 1985, tinha dois modelos de livro na cabeça: uma edição espanhola de Romancero Gitano, de Lorca, linda e delicadamente ilustrada por ele mesmo (Quimantu, Chile, 1973); e, principalmente, a bela edição do livro de Roberto Bicelli, Antes que eu me esqueça, com projeto gráfico e ilustrações de Guto Lacaz (Feira de Poesia, 1977). Então, convidei para ilustrar o livro meu amigo Bertrand Costilhes, que desenhava e criava tiras para um jornalzinho da associação de funcionários do Instituto de Pesquisas Tecnológicas, onde trabalhávamos. O resultado é o que se vê no livro. As ilustrações são muito bacanas! Mas depois, refletindo sobre a função das ilustrações no livro, senti que em vários momentos elas criavam um universo de leitura paralelo, talvez indesejável à leitura dos poemas. Um pouco à maneira dos cartuns, algumas puxavam para o clichê, outras para o humor escrachado, outras para um lirismo ingênuo, outras eram literais demais. Isso inevitavelmente criava uma tensão ou, mais que isso, um conflito desnecessário com os textos, o que fez com que eu acabasse optando por deixar de lado essa ideia nos livros seguintes. Embora não tenha mais usado ilustrações, em alguns casos acho que elas podem surpreender: penso na edição artesanal de Sumário Astral (edição Fabio Weintraub e Tarso de Melo), com traduções de poemas de Joan Brossa por Ronald Polito, em que aparece antes do início dos poemas uma única pequena vinheta de Guto Lacaz. Ou no livro Sistema de Erros, de Fabio Weintraub, ilustrado por Fernando Vilela, em que as ilustrações formam uma série razoavelmente independente dos poemas. Mas, ao fim e ao cabo, eu e o Bertrand aceitamos correr o risco e foi muito bom termos trabalhado juntos. Tudo é aprendizado quando se faz alguma coisa pela primeira vez.

Muitos poemas seus deixam entrever a presença do olhar infantil. O encantamento desse olhar parece se misturar aos seus versos no momento de apreender os seres e as coisas que o estimulam a escrever. Em que medida o olhar infantil se une ao seu durante o fazer poético? É verdade. Talvez isso decorra de um olhar anímico e lúdico para o mundo. E uma boa dose de curiosidade em entender as coisas. Vocês sabem que tenho um livro de poemas infanto-juvenil que se chama Coisas daqui, não é? Pois quando o Fabio Weintraub, editor da SM, pediu que lhe enviasse os poemas para jovens, que sabia que eu tinha, sugeriu também vasculhar as pastas à procura de outros poemas eventualmente escritos para adultos, mas que poderiam ser perfeitamente lidos por um público mais jovem, já que parte de minha poesia tem esse viés. Talvez essa coisa do alumbramento apareça mais nesse tipo de poema.

Nas 4 páginas seguintes, poemas de Ruy Proença. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 15


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ACIDENTE um leque encharcado, aberto, grudado de mau jeito no chão uma asa de borboleta sem borboleta (ou pétala) pisada um esqueleto de vento sem a mínima palpitação do voo

ALAMBIQUE por que alambicar tristezas? o sol nasce as ondas crescem os pesadelos recuam súbito uma revoada de pássaros reinventa o céu sabes apenas isto – não és pássaro onda nem pesadelo e o pavio aceso em ti cada vez mais perto do fim hesitam marejam teus olhos entre não saber se voltarás a dormir ou se a vida é sonho? espera: as árvores que nascem no porão ainda vêm te carregar por alguma falha consideram que também és fruto

16 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


Entre ? ! vista

ESSE TREM esse trem que vem do leste extremo da cidade e se acidenta contra o comboio de minhas vértebras me levaria aonde? ao bairro Ocaso? à minha casa?

AS MARITACAS As maritacas voando em bando comemoram o fim de tarde. Não se sabe onde irão pousar. Aqui, as mesmas surradas notícias sem futuro nos esgotam e não tenho por que comemorar. Nenhum túnel nos fará renascer em outro lugar.

Celuzlose 08 • Dezembro 2011 17


Entre ? ! vista

FLORAÇÃO DA NOITE grito de basalto nuvem de nanquim ninho de ébano gruta de carvão chuva de piche asa de azeviche ovo de ônix samba de anuí (24/04/2007)

O QUE É UMA CIDADE? O que é uma cidade? Impossível cruzá-la de alto a baixo de leste a oeste. Dentro da cidade muitas cidades. Não uma caixa chinesa dentro da outra da outra da outra. Não a matriosca. Antes polvo de muitas cabeças carrossel tambor de revólver periféricos exílio guetos idiomas. Polvo sem coração excêntrico centrífugo ciclônico insurreto.

18 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


Entre ? ! vista

TARDE: ILHA uma vela corta o mar no passe-partout do horizonte três petroleiros à esquerda montanhas em frente: o continente o mar e seus revérberos bob marley peter tosh vinte anos calados trincam a caixa de som disposta sobre a areia bob marley peter tosh procuro no livro de tobias uma explicação para esta luz do meio-dia PREMONIÇÃO um céu de chumbo tão baixo possível nele pendurar: um cabide uma gaiola uma corda com laço

guarda-sóis em bando casal chileno em lua-de-mel vendedores de queijo coalho cangas bijuteria redes manjubas fritas e brahmas aqui nada é sagrado

amarrotar a roupa dentro da gaiola descansar a máscara no cabide azeitar o pássaro da voz no trapézio do laço (09/02/2009)

Celuzlose 08 • Dezembro 2011 19


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Literatura Brasileira Contemporânea

Aline Rocha Nasceu em 1990. Cursa Letras com habilitação em Português e Francês na Universidade de São Paulo, onde, atualmente, realiza pesquisa de Iniciação Científica em Teoria Literária. É coeditora da Editora Patuá - www.editorapatua.com.br E-mail: verdelagartoamarelo@gmail.com

Sentados numa gangorra discutíamos as possibilidades de interlocução na poesia contemporânea. Um assunto tão, mas tão chato, meu deus. Ainda bem que meu pouco peso, assim como o pouco peso de minhas opiniões, me faziam ficar por mais tempo nas alturas. O movimento pendular persiste meus pés não tocam o chão

“é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço” Ana C. o insólito não é um navio carregado de homens, marujo, capitão carregado também de suprimentos estar incrustado no chão da av. paulista com mulheres à calçada acenando com seus lencinhos brancos o insólito é ali se guiarem por estrelas jogar a âncora na própria terra na própria zona de conforto sem saber que com ou sem um náufrago que com ou sem neblina, tempestade, iceberg permaneceria lá com a ilusão tão bela de navegar por mares nunca dantes navegados 20 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Literatura Brasileira Contemporânea

O que acontece hoje com a palavra sou eu que digo e que faço O que acontece em mim e o que aconteceu é ela quem diz, esperta

eu tenho febre eu sei que você sabe, mas pode vir, vem ver encosta a mão de leve aqui na minha testa e desce. toca meu queixo enfia o dedo em minha boca e sente a febre envolve meu pescoço e força o dedo na garganta eu sonho um escuro em brasa e meus pés descalços eu sonho uma avenida e fumaça preta enfia a cara na fumaça e sente o corpo esquentar e sente o corpo que fala da angústia de não ter mais sono e de ter a fala, a voz febril

um primeiro passo, um segundo passo um terceiro e nós nem sequer saímos do lugar Há um problema aqui uma questão talvez derradeira porque me lembro bem que demos um primeiro passo, um segundo passo um terceiro e nem sequer saímos a assombrosa cena, tantos corpos imaculados que vagavam sem gestos sem rastros e, ai, taquicardia porque não dá pra esquecer que demos um primeiro passo, um segundo passo um terceiro e nem sequer podíamos imaginar as circunstâncias que nos levaram a acusar o verbo tão injustamente, logo ele, que nos empurrou de repente e nos fez dar um primeiro passo, um segundo passo um terceiro Celuzlose 08 • Dezembro 2011 21


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Literatura Brasileira Contemporânea

Carlos Martin Nasceu em São Caetano do Sul, 1979. É doutorando em Teoria Literária pela USP.

GENÉSIO para Fernanda Serra Azul FANTASIA e se tranca em pleno carnaval. As mulheres de barriga de fora os homens se multiplicam e nada muda de lugar. Dentro do convento ela

e mais um chope, reluzente a bandeja flutua sobre cabeças e gestos e risadas em tudo o garçom repara não se atém a nomes nem apelidos progride de mesa em mesa farejando copos vazios olhares de súplica sinais tudo que a ele se submeta acidental enquanto vai e vem

NOVIÇA Notei o busto levantando a linha dura do corpete. Fosse mesmo um corpete sobre a pele sob o corriqueiro hábito, Debaixo da lã pesada renitente um volume se impunha. seria então um enlevo outro em torno do altar. É permitido ter busto corpo e outras belezas?

22 Celuzlose 08 • Dezembro 2011

SHORT CUT lavo a louça tinjo com sangue o escorredor saio aos trancos mais um transeunte pelo corredor aplica a anestesia flui a toxina não acalma, me alucina o corte o sangue a lâmina do amputador


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Literatura Brasileira Contemporânea

EXÍLIO mulher que em meus sonhos me ocupa e afasta de mim — da amurada que sobre mim se levanta — a mão que insiste em me levar dali

ENLEIO para Andréa Catrópa que mulher se esconde por trás dos olhos em formas alternadas que se misturam enquanto o olhar se perde no vazio buscando contornos?

LÁBIOS Babam silenciosos por saber do que ainda não sabem de fato enquanto anseiam entre pernas lábios entre dentes. não há peso mais doce que seio maduro na concha da mão

ANOITECE

EX ISTO ninhos conchas receptáculos salto de todos para encontrar a margem saio dilacerado nessa passagem de onde o desterro? cacos de ilusão na mirada do real criam buracos abismos fissuras na pele na retina na palma da mão cuja linha da vida, ainda, permanece

arde a vista olhar o céu buscar estrelas no letreiro que arde em luzes avança a noite que segue insone enquanto me esforço para ver além do que o real alcança

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Casé Lontra Marques Nasceu em 1985. Publicou os livros: Movo as mãos queimadas sob a água (2011); Saber o sol do esquecimento (2010); A densidade do céu sobre a demolição (2009); Campo de ampliação (2009); Mares inacabados (2008).

CORPO DE CONTINGÊNCIAS Até que nos erguemos sobre o estrado onde resgatar as raivas que escavam a superfície das meninges (adiando as defasagens do desamparo) como a solidão que nos antecede — calados, convalescemos? — apesar dos atos que nos reúnem (turvando a oscilação dos obstáculos) recorremos aos eventos do passado sem regressar ao presente dos eventos que nos surpreendem com uma carência inexpressiva:

24 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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quando o tempo não mais nos distrai traímos a concentração que desidrata o fôlego atraindo — para longe do tempo — o tempo que se contrai quando apresentamos ao tempo (que os lapsos estendem) um outro desconforto quando dispersamos — por murmúrios — o rosto contra a atrocidade de um tempo que não perturbasse as têmporas onde persistem pelo menos os destroços latentes de uma dúvida atenta (seria insuportável a insuficiência se o signo que nos origina não selasse com o nosso desaparecimento a sua assinatura)

Celuzlose 08 • Dezembro 2011 25


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Claufe Rodrigues Um dos poetas mais atuantes da cena cultural carioca. Começou a fazer recitais em 1977. Teve diversos grupos de poesia, como Os Camaleões (1984) e Ver o Verso (1999), e publicou dez livros, entre os quais Borboletas não dão lucro, Poemas para flauta e vértebra, O arquivista, Amor e seus múltiplos, Roman-se, Escreva sua história e o recente O pó das palavras. Organizou a obra 100 anos de poesia – um panorama da poesia brasileira no século XX. Jornalista, compositor e produtor cultural, em todas essas atividades procura valorizar e divulgar a literatura para públicos cada vez maiores.

A GLÂNDULA DAS PALAVRAS trav ada de tr evas a men in a in veja a tarde toc ando ala úde. Tro cam pérol as de gude .

POEMA HER(M)ÉTICO Sort il égio de p adres: Poe si a no ar ame . 26 Celuzlose 08 • Dezembro 2011

O HOMEM DO FIM DAS ERAS

PESCA NOTURNA Car rega na ca chola a mú sic a de is ca, e os a pet rech os de pes ca. A lu a ri de g raça, cacha ça e sand uíche!

Cab elos boi ando na cacho eira como te clas de pi ano. Ao long eoa boi o la men to da pais age m .

MATEMÁTICA

5 POEMAS INÉDITOS

A ordem é o caos in verso: morde o saco! E nenhuma matemática explica o amor...


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FLORESTA para Thiago de Mello Todo poema grita cada palavra é um pedido de socorro na gruta infinita da boca e há um adeus em qualquer sílaba uma floresta em festa queimando dentro de nós.

APRENDIZADO para meu pai Caiu no mar tem que nadar murmurava meu pai marinheiro tirando um bagre do anzol um cigarro do bolso traseiro Eu, sabedor de nada azeitava o eixo do sol sonhando um dia conquistar o meu lugar à sombra E o mar era tão grande! E a minha imaginação tamanha quebrava além da arrebentação no redemoinho de uma música estranha Anda moleque, recolhe a rede carrega o peixe pra tua mãe cozinhar Era o pai me fisgando com o olhar E eu seguia suas pegadas pelos caminhos de areia ouvindo as ondas a murmurar como o canto de uma sereia:

POEMAS DO LIVRO “O PÓ DAS PALAVRAS”

INTERROGAÇÕES Você me pergunta “o que é poesia?” E eu tento explicar com meias palavras esta luz que amanhece do nada na parede caiada de breu. Será poesia o duende na mata dançando com a mula mulata e o padre judeu? O vento que apruma o cabelo da musa e perfuma de encantos o coração do plebeu? O leite de cabra nos pomares de Eva? O dente de cobra no pomo de Adão? Obra e manobra, benção e maldição? Inspiração, graxa na sintaxe? O voo do avião, o aceno de mão o domingo no parque? Posso afirmar correndo o risco de me tornar petisco de crítico que poesia é chuva que madruga mandinga para ruga o contrário de prosa arte e navegação. Negação. Poesia é quando o ritmo reverbera na vértebra do leitor é quando dois corpos se encaixam na engrenagem do amor. Ou ainda, na berlinda, a poesia: brinquedo para enganar o tempo segredo para vencer o tédio arremedo da infância que um dia você esqueceu na garagem do seu prédio.

Caiu no mar tem que nadar... Caiu no mar tem que nadar... Caiu no mar tem que nadar...

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Eduardo Lacerda Poeta, produtor cultural e editor. Foi coeditor do Jornal de Literatura Contemporânea O Casulo e atualmente é coeditor da Editora Patuá - Livros são amuletos www.editorapatua.com.br

Candelabro That sad answer, “Never – never more.” (Edgar Allan Poe) Já a primeira vez que foi a um cemitério a mãe cobriu seus olhos que choravam e sussurrou: – Nunca acenda velas em casa, que os espíritos acostumam e não raro nos acompanham – Nunca mais acendeu velas em casa, tinha era medo dos espíritos. Teceu-lhe a vida muitos passados, outras passagens ao cemitério, das últimas vezes já as trazia roubadas. Nunca quis acender velas em casa, tinha era medo dos espíritos. Teve depois, muitos, muitos anos depois medo da solidão. E acenderia estes presentes: a gift to the ghosts, pois os espíritos acostumam e, não raro, nos acompanham.

A última Ceia Há regras à mesa como em um brinquedo de quebra-cabeça. / E eu não entendo os dispostos à esquerda dos pais. Restos do pequeno que sentavam ao meio da mesa (como prato que se enche e procura lugar entre as pessoas). / Já não me encaixo depois que aprendi a olhar de lado e sair por baixo.

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Por um Fio

Trânsito

para Aline Tenho andado errado: o passo largo, à frente do tronco (do resto inteiro, do corpo, este cimento). Somente em sonho, neste ligeiro plano de voo, me alcanço. Somente em trânsito esbarro no que reconheço, no que sinto, e estranho.

Reflexos

Esta pálpebra revela, quando se fecha, que se ajoelha ao que deseja e se curva ao que espera. Ela não vê, está cega. Ideia de família

E ainda que esfregue os olhos, ela mesma

Não herdei de meu pai, as neuroses de família.

não se enxerga.

Mas via na colher de pau, à espera do vinho que toda noite ele bebia, o pouco que seria.

Ela esconde de sua retina que se arregala, e brilha (como cortina que uma festa encerra)

Era mais que uma colher: sua primeira função foi ser palmatória para meu avô.

tudo aquilo

(Meu pai achava que assim beberia um pouco de suas mãos)

O seu destino.

Para mim a colher voltara, Eu e meus amigos,

como castigo.

tão sozinhos que derramaremos, (aos litros)

Quando meu pai morreu, agarrado à colher de pau, não deixou o seu sangue.

álcool

Já fora tarde, e tudo aquilo tornara-se

aos vinagre.

ao que se destina.

Ela está presa, pele cárcere que repete Sísifo. Carrega em sua cabeça cada peça do que pede, tímida como quem reza. Cruza os dedos, arranca os cílios. Ela realizará à força o que é pedido,

santos

mas parece promessa.

e

Chora?

espíritos.

É um cisco.

Tão sozinhos que nos indagaremos: - Eles também nos verão em dobro?

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Elaine Pauvolid Carioca, de 1970. Autora de: Brindei com mão serenata o sonho que tive durante minha noite-estrela... (Imprimatur / 7 Letras, 1998), Trago (edição artesanal, 2002), prefácio de Gerardo Mello Mourão, Leão lírico (edição da autora, 2008). Participou das coletâneas Rios (Íbis Libris, 2003) e Vertentes (Fivestar, 2009) organizadas por Márcio Catunda. Publicada em diversas antologias nacionais e da antologia Como angeles em llamas - Algunas voces latinoamericanas del S. XX (Editorial Maribelina, sello de la Casa del Poeta Peruano / Lima - abril/2004 Uruguay). Ganhadora do prêmio Biguá, concedido pela SADE - Sociedade Argentina de Escritores, em 2006. Autora de diversas resenhas literárias nos cadernos literários do Globo e do Jornal do Brasil. Estudou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage de 2003 a 2011. Mantém o blog Confidências de Jokasta: www.jokasta.org E-mail: epauvolid@gmail.com

A cor que se pensa cor não é tão cor quando se pensa dentro

Os olhos cegos da coruja Os olhos cegos da coruja carregam-me em sua sombra. Nunca tive uma ave coruja ...talvez por isso me siga. Tive cães, gatos, outros pássaros e flores, nunca a coruja cega. E ainda assim dói em mim a falta de luz, cuco sem relógio, galo sem manhã. A coruja, lado cego de onde penso, a total falta de espelho que me olha. Todos os poemas fazem parte do livro O silêncio como contorno da mão (Selo Orpheu, Multifoco, 2011).

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Você é culpada por trazer nas mãos o apocalipse

Para os perdidos Que solidão te arrasta em frente? Qual o lastro de teu desejo que figura ao leste proveitoso se faz silente e qual ato te desfigura? Por que a morte te olha em torno, onde estão os fantasmas de teu ocaso? Qual o teu martírio? Não sonhas? Vem, toma aqui este resto de esperança...

Parte Eu não sou forte não sou mais que posso e não posso nada que não seja parte. Eu não sou forte não sou mais que posso e não possuo nada que não me seja parte.

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Juliana Bernardo Nasceu em São Paulo, 1989. Graduanda em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Tem poemas no site Mix Brasil, nas revistas Ventos do Sul, Cabeça Ativa e Originais Reprovados. Livro publicado: Carta Branca (Editora Patuá, 2011). E-mail: julianabernardo@yahoo.com.br

Giordano Bruno estacionou a lua na esquina entrou no ap pela porta fechada reconheceu os bichos renomeou os livros sem uma palavra me abraçou com os olhos me amou com a testa beijou outros com a mão se despediu depois com lágrimas nos dentes vestiu o paletó de estrelas saiu pela janela levou a lua embora (poema inédito) preciosa meu deus minas gerais é tão perto do céu que dentro de mim caiu estrela (poema inédito)

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os trabalhos e os dias ponte aqui confinada cuido dos livros como meninos sadios não deixo que chorem ou puxem os bigodes dos gatos deito todos à tardinha quando começo a costurar vestidos fantásticos trançando o pano de aurélio e a linha macia de paulo com a loucura florida de adília às vezes consulto o horóscopo nas páginas que tiro do forno ali escureço exausta os gatos sobre os vestidos os livros saciados

pai, não me deixa agora que escurece um olho multiplicado me espia por caminhos fininhos rezo arrepiada pai, me arruma uma espada um copo d'água uma mão amiga para que eu possa enfim atravessar erguida

O rugido do leão não cabe na jaula à francesa o corte da saia desce degraus polidos degraus tecidos por antigas núpcias preto no branco vento fecho botões no meu peito

a cântaros chego cedo e afio o perfume acalmo as cartas recolho à bolsa meu copo com água e tempestade porta adentro me acolhe teu beijo tardio fico sem ter onde pôr os pés agora dei de te amar amar essa estranha troca de papéis caminho como uma perita examinando de perto o nhéc da cama é tarde, calço os sapatos recolho ao fundo da garganta minhas cartas molhadas

jeitinho entrava com um vestido saía com outro nas coisas difíceis abria um buraco passava por dentro sem se queimar mas com os sapatos nos pés enganados

La vie en rose agosto, eu tenho um segredo canários garfos beijos meu amor é uma sinfonia danço a aurora nua pisando pisando estilhaços do tempo

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Luiz Gonzaga S. Neto Nasceu em Quebrangulo, Alagoas, e está radicado em São Paulo desde os 3 anos de idade. Jornalista. Participou da antologias Vila Lira Rica e Cidades Impossíveis. Livros publicados: Gaveta dos corais (1998) e Céu sem dono (Dobra Literatura, 2011).

Casa, pessoa e ave Nessa tua casa não há a tristeza que te habita. Nem nada de teu olhar de ave silenciosa, aflita. Nesse lar, no rumor de asa que a arte incita, há o mover de voo leve, salto enrustido de eremita. Na casa, há cores, aromas em tua alma escondidos. Quiçá tua casa, um dia e de pronto, te habite. Mutações Um sabiá-laranjeira cerca-me no Ibirapuera em urbana asa. Cerca-me íntimo comigo, com a grama, o vento rasteiro e com árvores plantadas como homens em cidades. O pássaro me cerca como se tivesse natureza humana. Eu o olho como se voasse.

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Carne seca (Alegoria cabralina) No que chora não aparecerá a gota pousada nas esquinas, nos vales, caatingas e mares visitados pelas asas alógicas do pássaro triste em seu voo. Nem levitações sobre o concreto, (quando o coração eleva os pés às paisagens do amor cindido) nem tombos e tumbas à espreita dirão dos descaminhos do dentro. Pois fora esteve sempre a meta, a porta à espera do sonho lúcido. Ponto de luz se imiscuindo na noite envolta por feixes de pântanos e delírios cortados de faces úmidas.

Dissolvência

Ante o desespero, o criado e o vivido, estenderei um escudo de pedra sobre os desertos de meu desterro, salpicarei letras de sol a sol e fabricarei a carne seca das águas.

Sob uma tempestade de cristais, que desaba sobre o frio e as ruínas, a face de Zeus desfaz-se nas ruas. A rosa roubada do tempo mítico não reconhece o chão em que padece, só floresce em vastos jardins oníricos. Assim, da janela te observo, irmão, transitando ligeiro sobre o caos, na química das pedras e da grana. Os vermes engolem tua justiça, saborosa letra vã de inocentes, e vivem na opulência dos escalpos. Entre cacos, aquele essencial – o esquecido que te guarda inteiro – pulsa forte contra a palavra morte. Pulsa, tal como a grama cresce, entre fissuras de concreto e lajes, para além de teu último delírio.

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Márcia Barbieri É paulista. Trabalha como professora da rede municipal de ensino de São Paulo. É formada em Português/Francês pela UNESP e pós-graduanda em Prática de Criação Literária, organizado pelo escritor Nelson de Oliveira. Tem textos publicados nas revistas Coyote, Polichinello, Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas e Meio Tom. Lançou de forma independente o livro de contos Anéis de Saturno (Clube de Autores, 2009) o qual foi retirado do site pela própria autora. É colunista da Revista Literária eletrônica O BULE. Livro publicado: As mãos mirradas de Deus (Multifoco, 2011). O romance inédito Mosaico de Rancores será traduzido e lançado na Alemanha em 2012. Blog: www.avidanaovaleumconto.blogspot.com E-mail: marcia_barbieri@hotmail.com

Encarnación Encarnación gostava de ficar sentada sob o sol olhando os emaranhados da videira. Ela se esparramava e ocupava a tarde podre. Encarnación, eu era fascinada pelo seu nome. Ela ria gostoso, desses risos de gente velha “minha filha, esse nome traz má sorte”. Não ligava, Anna me parecia solitário demais, lembrava as migalhas do tempo. Nos dias de festa, as moças arreganhavam as saias e esmagavam os bagos. Foi assim que experimentei pela primeira vez o gosto da carne, disfarçado no gosto vermelho da uva. Anna era descendente de uma tribo distante. Um povo selvagem que na época de pouca fartura devorava ritualisticamente seus cadáveres. A clarividência é meu inferno, muita gente reza todos os dias para ter o meu poder. No entanto, jamais desejaria, nem mesmo ao meu pior inimigo, conseguir enxergar todas as frestas que vejo, cada minúsculo buraco, é como uma lagarta que percorre infinitamente o mesmo tronco e mesmo sabendo da sua sina é impossível trilhar outro caminho. Eu sei as tramas de todas as minhas histórias e isso não me impede de vivenciá-las. Quando eu conheci Anna já sabia seu destino, já sabia como seu corpo se entranharia no meu – videira vasta sem espaço, vísceras mortas devastando o asfalto. Foi impossível não me apaixonar por Anna, ela exalava um cheiro de desgraça que me corrompia e me aproximava. Seria capaz de lamber seus pés até que ela adormecesse. A primeira vez que entrei na sua casa, me assustei. Na parede do seu quarto estava pendurado um cavalo que era só sombra por dentro, os olhos vazados, os músculos exaustos disfarçando o oco, como se tivesse sido devorado por dentro. Não foi fácil convencê-la do meu amor, ela tinha um olhar atravessado, não via o que estava a um palmo do seu nariz, mas o que estava diametralmente oposto a ele. Olhando para o chão, só conseguia enxergar as teias de aranha do teto. Eu compreendia perfeitamente, eu também não era a pessoa mais normal do mundo. Um dia ela me confessou que era verdade o que eu tinha visto, ela era descendente de um povo chamado Antípodas.

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Antes disso, passei várias noites em claro tentando entender o que aquilo poderia significar. Na cabeça me apareceu Antípodas, comecei me impressionando com a origem da palavra, em seguida fui imaginando os mapas, a cartografia traçando opostos, de um jeito ou de outro a matemática me intrigava. Mas não foi a matemática que me levou a descobrir que na Antiguidade seus parentes tinham os pés opostos. Comecei a compreender porque a primeira vez em que vi Anna ela corria entre as videiras plantando bananeira. Na segunda vez que a encontrei ela tinha um espelho colado no peito, andava rindo, catando as uvas estragadas e colocando na boca, de longe escutava os estalos e o cheiro fermentado da sua língua geográfica. Embora nunca tenha me enxergado por completo, Anna começou a me enamorar. Ela gargalhava quando escutava minha voz, saía da posição de bananeira e me dava uma lambida no rosto. Não posso dizer que isso me impressionava, pois eu já sabia do que Anna era capaz. Anna cutucava o chão, comia desesperada as raízes, os tubérculos, as pequenas minhocas. Não satisfeita passou a comer torrões de terra. Ah, meu Deus! Quem me dera fosse apenas isso. Depois passou a comer pequenos cadáveres. Chorava me implorando perdão, dizia que não era culpa sua, era coisa herdada. Primeiro eram corpos mortos de coelhos, gatos, cachorros, cavalos. Até o dia em que experimentou a carne de uma moça. Foi além, devorou a carne macia de um bebê. Fui visitá-la, como fazia todo entardecer desde que nos amamos pela primeira vez. Havia sangue por todo lado. Ela me olhou triste-feliz-arrependida, confessou que não foi capaz de se controlar. Cutucou o umbigo, primeiro no meio, depois em volta, retirou aquela espécie de novelo-ninho-pintura abstrata que se formava dentro dela. Comeu o próprio feto – meu primeiro filho. Me calei. Ela me olhava faminta. Nunca tive medo, eu sabia que ela se contentava em sugar meu sêmen, ele era um pouco da minha carne. No entanto, não queria deixá-la furiosa, desde criança tive tendência a acumular sobras embaixo da unha, isso me irritava. Agora essas sobras me salvavam a pele do sacrifício. Anna não era ruim, só tinha herdado o vício nefasto de seus antepassados. Ofereço minhas mãos. Ela agarra e rói minhas unhas com desespero. Ela traz o pequeno espelho de moldura laranja no peito. Lá fora eu posso enxergar os emaranhados da videira e a tarde quente apodrecendo os bagos.

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Rafael F. Carvalho Paulistano, nascido em 27 de fevereiro de 1978. Formado em Letras pela Universidade de São Paulo, é autor de A Estante Deslocada (Editora Patuá, 2011).

Havia no sítio um grande galo que me acordava todas as manhãs. Seu canto era forte que ecoava por todos os lados. Não somente seu canto era forte, era um belo galo. Eu não sentia preocupação ao vê-lo por perto, sabia que se ele estava por perto, eu estava seguro. Até que uma raposa entrou no galinheiro, sorrateira. Ela matou e comeu várias galinhas e pintinhos. O galo acordou e travou uma luta feroz com a raposa. Assustado com tamanha algazarra, levantei e fui ver o que estava acontecendo. O que vi era desolador. Um galo e uma raposa brigavam furiosamente em meio a penas e aves mortas. Ao chegar perto da raposa, o galo avançou contra mim, como se dissesse que aquela luta não era minha. Peguei a raposa e expulsei-a do sítio, mas o estrago era maior. Todas as galinhas foram mortas. O galo olhou para mim com raiva e passou a cantar cada vez mais tarde. Comecei a sofrer atrasos, a acordar tarde sem o canto do galo. Comprei mais galinhas para que tudo voltasse a ser como era. Mas antes ele deixou claro: eu jamais devia entrar no galinheiro novamente. No dia seguinte encontrei a raposa morta na porta do galinheiro. O galo agora canta tão alto que o sol parece sentir medo quando nasce por cima da colina, ao longe.

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Abro velhos livros e leio a respeito de hoje. Eles constroem aquedutos sem medir os séculos de distância, gente do passado corresponde-se comigo. Essa água tem gosto. Cheiro. E cor.

Outro dia senti vontade de comer azeitonas, comer azeitonas eu quis. Procurei nos armários em vão. Saí e comprei algumas para, naquele momento, sentir o gosto que um mesmo homem de vinte e três anos sentiu há mais de mil anos. O gosto daquilo que existe desde sempre...

Ela baixou os olhos, conformada, deitou na cama e ficou em silêncio até descansar. Nos dias seguintes permaneceu assim. Seu silêncio era triste. Passava por mim sem ruídos, sem bater os pés no chão. Havia um motivo para os olhos baixos e pela quietude entristecida. Perguntei por quê. Ela levantou os olhos e olhou para a flor de cerejeira que eu não havia visto, que trouxera para mim.

Celuzlose 08 • Dezembro 2011 39


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Literatura Brasileira Contemporânea

Ronaldo Cagiano Nasceu em Cataguases (MG), viveu 28 anos em Brasília, onde formou-se em Direito e atualmente mora em São Paulo. Colabora em diversos jornais e revistas com artigos, ensaios, crítica literária, poesia e contos. Obteve o 1º lugar no concurso "Bolsa Brasília de Produção Literária 2001" com o livro de contos Dezembro indigesto. Livros publicados: Palavra Engajada (Poesia, SP, 1989),Colheita Amarga & Outras Angústias (poesia, SP, 1990), Exílio (poesia, SP, 1990), Palavracesa (poesia, DF, 1994), O Prazer da Leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Brasília, 1997), Prismas – Literatura e Outros Temas (crítica literária, Brasília, 1997). Canção dentro da noite (poesia, Brasília, 1999), Espelho, espelho meu (infanto-juvenil, em parceria com Joilson Portocalvo, Brasília, 2000), Dezembro indigesto (contos, Brasília, 2001), Concerto para arranha-céus (contos, LG, DF, 2005), Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio, 2006) e O sol nas feridas (poesia, SP, 2011). Organizou as coletâneas Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, DF, 2002), Antologia do conto brasiliense (2003, Projecto Editorial, DF) e Todas as gerações – conto brasiliense contemporâneo (LGE, Brasília, 2006).

A RUA ESPELHO Nas águas do velho rio que passa pela minha cidade e corta minha memória feito lâmina atroz há barcos misteriosos que conduzem sonhos e malogros do menino que adormece em mim. Velhas histórias vão nesse leito que serpenteia por estranhas terras. E a ponte que se estende num dialético salto para tantas margens transpõe um espelho partido, provisório reflexo do que f(l)ui na imprecisão das coisas que me cercam. As vorazes correntes que me levam no ofício tenebroso das procelas expõem os meus dilemas e trazem no rude aprendizado a metamorfose crucial dos (des)caminhos.

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A rua está ausente e longínqua, como uma estepe inatingível, sobre cicatrizes de antigas procissões e revolvida pelo séquito de solenes funerais. O frio de agora não vem do tempo, mas do silêncio abissal de casas adormecidas, com seus telhados ásperos e gatos vadios mastigando teias pelo alpendre. Artéria fatigada por onde já não escorre sequer o sangue coalhado das memórias, mas seus jazigos perdulários guardam remotas oferendas, angústias e avarias da guerra de cada um. Passa por ela uma legião aborrecida de cantos inaudíveis, séquito de fantasmas, onde jaz, nas portas com suas fechaduras hediondas, a solidão de gerações esquecidas nas paredes, sarcófagos e testemunhas da inexorabilidade do tempo.


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Literatura Brasileira Contemporânea

O SOL NAS FERIDAS a José Edson Gomes A linguagem ouriçada da dúvida e seus olhos sobrevoando o cômodo sentido das coisas revelam-me o imponderável, a finitude, a incorpórea certeza da hora final. Mas o rosto fatigado de Deus não vence a face límpida da verdade. Olho o passado do mundo, galpão entulhado de passivos, e não vejo resposta para a vida. A noite com seus relâmpagos chicoteando o céu é mais convicente que o Vaticano e a Política. A chuva me emociona mais ao contemplá-la lacrimejando nos telhados da periferia. O rio, serpente líquida transportando o tempo, não esconde seus músculos e deságua na morte, com sua potência niveladora.

MIRAGEM

E apesar das tempestade que sangram das nuvens e o pesado breu das madrugadas, o sol rompe pontual e indomável sobre nossas feridas abertas.

Tecelã de mistérios, seus olhos carregam todas as eras templo do qual enxergo tudo eles me ajudam a decifrar o tigre no espelho e a cegueira habitando os cômodos da nossa casa onde um dia nos deixaram sozinhos à espera de um barco que nos levaria a outra margem onde não haveria naufrágios nem serpentes nem o momento da Ave-Maria no rádio do vizinho prometendo o milagre que não vem.

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Tarso de Melo Nasceu em 1976, é advogado, mestre e doutor em Filosofia do Direito pela USP e professor da FACAMP – Faculdades de Campinas. É autor de diversos livros de poesia, entre os quais Planos de fuga (Cosacnaify, 7Letras, 2005), Lugar algum (Alpharrabio, 2007) e Exames de rotina (Editora da Casa, 2008). Atualmente, coordena o projeto Tantas Letras! (São Bernardo do Campo) e trabalha num novo livro de poemas, Caderno inquieto, a ser publicado pela Dobra Editorial em 2012, com apoio do Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo.

METAL a cada dia um pouco da mão fica nas alavancas, os cabelos incorporam às engrenagens, renascem os seus dentes nas roldanas, manivelas instigam e depois sugam seus músculos, a boca da máquina cospe braços, pernas, grita sua canção monótona, o suor lubrifica as polias, ferve os sulcos do parafuso (ideias agora são de aço, o sonho mora no alumínio) o dia todo se consome nessa troca; gasta, a vida em breve vai cruzar a cidade desfeita em cem cavalos, em brasa, trocada por mil e quinhentas cilindradas

PAISAGEM COM VOZES os loucos do bairro tragam a tarde e não se abalam. não há em seus gritos qualquer sinal de que desistam. daqui, deste ponto, é possível distinguir as cores compondo o horizonte cortado pelo metal dos carros. vai raiva, também, na receita. desfeita e certo receio. cada parte do que somos some aos poucos conosco. baças, no tapete, as crianças espalham sorrisos na porção do território que ainda não perdemos.

42 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Literatura Brasileira Contemporânea

CADERNO INQUIETO

PASSADO

e já disseram que a cidade é um livro, que a vida é um livro,

porque quando se deixa o desespero em repouso

que escrevemos uma e outra como podemos também lê-las

e no meio das palavras alguma dúvida ainda cresce

e já disseram que o mundo é um livro (outros, um teatro),

não é muito esperar que a arte das horas, cedo

o sentido de tudo está no livro, viver é virar páginas, grifá-las,

ou tarde, engendre aqui silêncio e esquecimento

tudo corre rio rumo a um livro, a história é algo como uma estante

*

e que nossos passos escrevem biografias e muitos quiseram saber

3 POEMAS INÉDITOS

o lenhador do dia é o poeta das horas vagas, o mesmo

se já está escrito ou se escrevemos o que haverá na página seguinte

machado mordendo o osso das árvores, a seiva espirra

das almas (palavras caídas, feixe de palavras) em silêncio

debaixo de tudo que dizem, ardem detrás das capas, sob a pilha viva, o branco e as rasuras de um caderno que é todos os livros porque é nenhum

AO NORTE DA MEMÓRIA fabrico assim com raízes um arsenal de dor e impaciência como este nervo em estado de pedra que pesa sobre os ombros e me impede – ou, ao menos, nos dias mais impunes dificulta – baixar demais a cabeça e a guarda

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Literatura sem Fronteiras

Armando Alanís Pulido Nasceu em Monterrey/México, 1969. Poeta e promotor cultural, já tem 14 livros de poesia publicados, dentre os quais: Poemas de la región cuatro (Écrits des Forges e Mantis Editores, 2007), Los delicados escombros (Conaculta, 1998; 2ª edição 2005) e Combustión espontánea (Mantis Editores e Conarte, 2003). Entre algumas de suas premiações está o Prêmio Internacional de Poesia Nicolás Guillén, 2008.

Poemas do livro Ritual del susodicho / Ritual do dito cujo (Mantis Editores, Selo Sebastião Grifo e UANL, 2010)

INEVITÁVEL E TERRÍVEL (poeta sem poema) Navego na insistência e me ocupo desatinadamente em pagar recibos, em colar com grude a essência que tudo acolhe e, como se não bastasse, penso no poema e não o escrevo.

INEVITABLE Y TERRIBLE (poeta sin poema) Navego en la insistencia y me ocupo desatinadamente de pagar recibos, de pegar con engrudo la esencia que todo lo acoge y, por si fuera poco, pienso en el poema y no lo escribo.

O OLHO IMENSO DA VACA (poeta sem público) É um sonho isso de encontrar exatidão nas palavras. Me pronuncio a partir deste momento, cheio de suspeita, dizendo: sou teu olhar que me observa.

(Tradução: Rafael Rocha Daud) 44 Celuzlose 08 • Dezembro 2011

EL OJO INMENSO DE LA VACA (poeta sin público) Es un sueño esto de encontrar exactitud en las palabras. Me pronuncio desde este momento, lleno de sospecha, diciendo: soy tu mirada que me observa.


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OBRA DA CASUALIDADE (poeta em reparação)

Literatura sem Fronteiras

OBRA DE LA CASUALIDAD (poeta en reparación) Una grieta en la piedra. Un poema. Mi felicidad.

Uma fissura na pedra. Um poema. Minha felicidade.

UM VERSO RASGA A TARDE (poeta perseguido) Hoje e não mais tarde, o que existe nos persegue. Quando me olhas floresce breve e imortal um verso que rasga a tarde.

UN VERSO RASGA LA TARDE (poeta perseguido) Hoy y no más tarde, lo que existe nos persigue. Cuando me miras florece breve e inmortal un verso que rasga la tarde.

SETAS QUE INDICAM A DIREÇÃO ERRADA (poeta desorientado)

FLECHAS QUE INDICAN LA DIRECCIÓN EQUIVOCADA (poeta desorientado)

Sei que ninguém sobreviveu a si mesmo, mas isso está escrito no plural; então nós, em um piquenique junto ao abismo, tentamos nos orientar.

Sé que nadie ha sobrevivido a sí mismo, pero esto está escrito en plural; entonces nosotros, en un picnic junto al abismo, intentamos orientarnos.

Edimburg, Texas, 2009

SALVE-SE QUEM PUDER (poeta com livro novo debaixo do braço) Para o bem e para o mal: insisto, resisto, existo.

Edimburg, Texas, 2009

SÁLVESE QUIEN PUEDA (poeta con libro nuevo bajo el brazo) Para bien o para mal: insisto, resisto, existo.

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Literatura sem Fronteiras

Barbara Pumhösel Nasceu em 1959 em Neustift bei Scheibbs na Áustria. Desde 1988 vive em Florença, onde trabalha como bibliotecária e professora de atelier de escrita. Sua produção poética bilíngue se dá em alemão e italiano. Ganhou vários prêmios literários e em 2011 recebeu o prestigioso prêmio austríaco Kulturpreis für Literatur des Landes Niederösterreich, referente à coletânea Erlaufgediche (Edition Thurnhof, Horn, 2009). Faz parte da Compagnia delle Poete www.compagniadellepoete.com grupo performático de poetas bilíngues que escrevem em italiano e na própria língua materna. É também autora de literatura infanto-juvenil. Os poemas aqui traduzidos são da coletânea Prugni (Isernia, Cosmo Iannone Editore, 2008).

(força) De manhã estou cansada. Cavei toda a noite: um covil com túneis para os dormitórios a mais de metro de profundidade. Quando estou por espiralar-me e cobrir-me com meu rabo, o cheiro de terra some e sei que devo abrir os olhos e parar de ser raposa.

Sob a pérgula um galho apontou uma folha vermelho sangue de cinco pontas contra minha garganta enquanto ao levantar eu estava pensando nas mesmas coisas sobre as folhas que morrem

(Tradução: Prisca Agustoni) 46 Celuzlose 08 • Dezembro 2011

(costrizione) Di mattina sono stanca. Ho scavato tutta la notte: una tana con cunicoli verso i dormitori a più di un metro di profondità. Quando sto per acciambellarmi e coprirmi con la coda, l'odore di terra svanisce e io so che devo aprire gli occhi e smettere di essere volpe.

Sotto la pergola un ramo ha puntato una sua foglia rossa sangue a cinque punte contro la mia gola mentre alzandomi stavo per pensare le solite cose sulle foglie che muoiono


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Literatura sem Fronteiras

(ossessione. ancora)

(obsessão. de novo) E de novo um daqueles urticantes como uma medusa da cor vítrea e como sempre – temo – provido de tentáculos não se deixar tocar pela sua presença não se deixar roçar pela capa ondulante me volto – já os conheço e não quero contatos mas sei que me seguirá gostaria de poder bloqueá-lo antes que se torne uma imagem minha antes da consciência de que seja suficiente uma virada do vento para que a correnteza traga mais cem desses pensamentos

Não entendi por que rindo e cochichando entre si os anjos da infância abandonaram-me para instalar-se algures com o sorriso ameno. Os amigos estão empenhados em se portar como adultos. Do amor ainda espero ter desentendido seu sentido e minha árvore foi cortada.

E di nuovo uno di quelli urticanti come una medusa dal colore vitreo e come sempre – temo – provvisto di tentacoli non farsi toccare dalla sua presenza non farsi sfiorare dal mantello ondulante mi giro – già li conosco e non voglio contatti ma so che mi seguirà vorrei poterlo bloccare prima che diventi una mia immagine prima della consapevolezza che basti un cambio di vento per far portare dalla corrente altri cento pensieri così

Non ho capito perché sogghignando e bisbigliando tra di loro gli angeli dell'infanzia mi abbandonano per prendere posizione altrove con il sorriso ameno. Gli amici sono impegnati a comportarsi da adulti. Dell'amore spero ancora di aver malinteso il significato e il mio albero è stato tagliato.

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Foto: Kaloian Santos

Delfín Prats Nasceu em 1945. Poeta, narrador e tradutor cubano. Graduado no idioma russo pela Universidade de Moscou, 1965. Trabalhou como tradutor de russo no Instituto de Geología de la ACC, na Dirección de Comunicaciones del Estado Mayor del Ministerio de las Fuerzas Armadas Revolucionarias, ambos em Havana, e no Centro Provincial de Información de Ciencias Médicas, em Holguín. Atualmente trabalha na Promotora Literaria Pedro Ortiz. A partir dos anos 1980 adere ao movimento artístico e literário baseado na cidade de Holguín, onde vive até hoje. Autor dos livros Lenguaje de Mudos (Madri, 1970; Premio David), Para festejar el ascenso de Ícaro (1987; Premio de la Crítica); Cinco envíos a Arboleda (1991; Premio de la Ciudad en Holguín); El esplendor y el caos (1992; distinción por la Cultura Nacional, Eslabón de la Periquera y premio Venga la Esperanza); Abrirse las Constelaciones (1994); Lírica amatoria (2002); Strip-tease y el eclipse de las almas (2007); Antología personal (2009); Exilio transitorio (México, 2009); Aguas (2010); El Brillo de la Superficie (audiolivro, 2010); Las sombras y los mundos (2011). Sua obra foi reunida e republicada em diversas antologias cubanas e estrangeiras. Participou de eventos internacionais como o Festival Pushkin, URSS, 1989; La Isla Entera, Madri, 1994; Palabra Amiga, Barcelona, 2002; Encuentro Internacional de Escritores, Monterrey, 2010. Foi condecorado com a Distinción por la Cultura Nacional, El Aldabón de La Periquera e como Maestro de Juventudes (AHS, 2009).

Mas no vento seu rumor chegava Ama-a mas ama-a como se tudo tivesse concluído e passado como se desde o futuro mais remoto recordasses o vinho de teus melhores anos o verão de mil novecentos e oitenta quatorze de abril quando foi tua em um hotel perto do mar cujas janelas não davam para o mar mas no vento seu rumor chegava e ela vinha a ti como uma onda morrendo às margens de teu corpo

Pero en el viento su rumor llegaba Ámala pero ámala como si todo hubiese concluido y pasado como si desde el futuro más remoto recordaras el vino de tus mejores años el verano de mil novecientos ochenta el catorce de abril cuando fue tuya en un hotel cercano del mar cuyas ventanas no daban al mar pero en el viento su rumor llegaba y ella venía a ti como una ola muriendo a las orillas de tu cuerpo

(Tradução: Fábio Aristimunho Vargas) 48 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Literatura sem Fronteiras

Saldo Entrem amigos tomem assento entre os meus pertences os quais não me pertencem mais do que a vocês suas melenas copiosas não tenho nada para brindar como em outro tempo leite pão velho ou uma ou outra tíbia palavra que roer como veem as coisas mudaram muito vocês estão mortos há uns quantos calendários eu tive um pouco mais digamos de destreza com as doenças dos primeiros anos mas acreditem não é nenhuma vantagem estar ainda do lado dos vivos gozando de seus escassos privilégios (estar de novo com vocês no portal imaginário da casa onde convivíamos onde ainda aguardamos o café de cada tarde não sem certa amargura recente e viva como um morto) velhos amigos como lamento esta falta de tudo o que lhes oferecer minha ignorância e um pouco de impotência pelas coisas que ocorrem por aí (falou-se muito da guerra do genocídio e de certa probabilidade de extermínio parcial ou total da espécie humana) mas falem como vão vocês sem ninguém como vão vocês no nada sem ter que poli-lo para ligar um osso quando já não faz falta romper a noite com um tremendo uivo Saldo Entren amigos tomen asiento entre mis pertenencias las que no me pertenecen más que a ustedes sus melenas copiosas no tengo nada que brindarles como en otro tiempo leche pan viejo o alguna que otra tibia palabra que roer como ven las cosas han cambiado mucho ustedes están muertos hace unos cuantos calendarios yo tuve un poco más digamos de destreza con las enfermedades de los primeros años pero créanme no es ninguna ventaja estar aún del lado de los vivos gozando de sus escasos privilegios (estar de nuevo con ustedes en el portal imaginario de la casa donde convivíamos donde aún aguardamos el café de cada tarde no sin cierta amargura reciente y viva como un muerto) viejos amigos cómo lamento esta falta de todo que ofrecerles mi ignorancia y un poco de impotencia por las cosas que ocurren por ahí (se ha hablado mucho de la guerra del genocidio y de cierta probabilidad de exterminio parcial o total de la especie humana) pero hablen cómo les va sin nadie cómo les va en la nada sin tener que pulirla para ligar un hueso cuando ya no hace falta romper la noche con un tremendo aullido Celuzlose 08 • Dezembro 2011 49


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Palavras fartamente conhecidas Põe o amor para compartilhar tua casa senta-o a tua mesa “que coma que beba que fale de quanta coisa lhe ocorra” oferece-lhe tuas roupas teus planos imediatos promete-lhe conselhos almoços artigos sobre o terceiro mundo mas o amor recusa tuas ofertas move negativamente a cabeça tapa seus ouvidos seus olhos não manifesta o menor interesse por teus assuntos o tempo de disparo de um relé não o preocupa as cápsulas transmissoras receptoras a poeira de carvão os eletroímãs não conseguiriam entusiasmá-lo a espeleologia os clássicos os problemas do estruturalismo e a cibernética não figuram entre seus planos a manipulação de frequência não ocupa lugar em suas meditações mas se tens uma camisa azul se tens um caracol onde se escuta o mar com peixes cegos gravados com aves de cores revoluteando sob o céu se tens o mapa de uma ilha uma tatuagem no peito qualquer lenda que conheças se notas que te chamam se grupos de rapazes desde os pessegueiros ou desde os muros dos grandes edifícios te chamam com amplas senhas na tarde não temas atende sua chamada sai à rua confunde-te entre os que passam trafica com sorrisos com signos com saudações diz teu amor às gentes aos cartazes nos cinemas chega-te pelas feiras pelas exposições pelas improvisadas orquestras de música moderna compartilha o baile dos adolescentes tenta com as meninas toma-lhes as mãos a cintura a nuca que te ensinem as danças mas se tens a certeza de que a realidade é muito mais intolerável se tiveres um uivo entre os dentes um grito a meio peito se te perseguirem se constantemente o assediarem se a cada passo te exigirem credenciais se golpearem tuas canções diante dos teus olhos se cuspirem sobre as canções de tua adolescência se te puserem um ferro duro sobre o coração oferece-o ao amor oferece-lhe também algumas coisas simples cigarros copos de highball duas maracás uma grande rosa de papel dá-lhe para ler as cartas da tua mãe

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mas não percas tempo porque o amor já se vestiu alisa os cabelos porque o amor pôs os sapatos e lança uma espiada entre tuas coisas e dá uns passos ainda sem avançar até a porta sem abri-la antes que se feche pesadamente a tuas costas e te surpreendas na rua a sós


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Literatura sem Fronteiras

Palabras harto conocidas Pon el amor a compartir tu casa siéntalo a tu mesa “que coma que beba que hable de cuanta cosa se le ocurra” ofrécele tus ropas tus planes inmediatos prométele consejos almuerzos artículos sobre el tercer mundo pero el amor rehúsa tus ofertas mueve negativamente la cabeza se tapa los oídos los ojos no manifiesta el menor interés por tus asuntos el tiempo de disparo de un relay no le preocupa las cápsulas trasmisoras receptoras el polvo de carbón los electroimanes no lograrían entusiasmarlo la espeleología los clásicos los problemas del estructuralismo y la cibernética no figuran entre sus planes la manipulación de frecuencia no ocupa lugar en sus meditaciones pero si tienes una camisa azul si tienes un caracol donde se escucha el mar con peces ciegos grabados con aves de colores revoloteando bajo el cielo si tienes el mapa de una isla un tatuaje en el pecho cualquier leyenda que conozcas si notas que te llaman si grupos de muchachos desde los malecones o desde los muros de los grandes edificios te llaman con amplias señas en la tarde no temas acude a su llamada sal a la calle confúndete entre los que pasen trafica con sonrisas con signos con saludos di tu amor a las gentes a los afiches en los cines llégate por las ferias por las exposiciones por las improvisadas orquestas de música moderna comparte el baile de los adolescentes intenta con las chicas tómales las manos la cintura la nuca que te enseñen los bailes pero si tienes la certeza de que la realidad es mucho más intolerable si tienes un aullido entre los dientes un grito a medio pecho si te persiguen si constantemente te asedian si a cada paso te exigen credenciales si apalean tus canciones delante de tus ojos si escupen sobre las canciones de tu adolescencia si te han puesto un hierro duro sobre el corazón ofrécelo al amor ofrécele también algunas cosas simples cigarros jaiboles dos maracas una gran rosa de papel dale a leer las cartas de tu madre pero no pierdas tiempo porque el amor ya se ha vestido se alisa los cabellos porque el amor se ha puesto los zapatos y echa una ojeada entre tus cosas y da unos pasos todavía sin avanzar hacia la puerta sin abrirla antes de que se cierre pesadamente a tus espaldas y te sorprendas en la calle a solas

Celuzlose 08 • Dezembro 2011 51


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Eva Taylor Nasceu em Heiligenstadt (Alemanha) e vive em Florença, onde leciona língua alemã na Universidade. Publicou poemas e contos em várias revistas italianas e alemãs. É autora bilíngue, escrevendo hoje em alemão e italiano. Atua também como tradutora, tendo trabalhado com a obra de poetas turcos-alemães. Ainda inédita em português, os poemas aqui apresentados foram escolhidos da coletânea L'igiene della bocca (Brescia, Edizioni l'obliquo, 2006). Eva Taylor integra a Compagnia delle Poete www.compagniadellepoete.com grupo performático de poetas bilíngues que escrevem em italiano e na própria língua materna.

Minha boca te envolve como um cachecol de manhã na escuridão antes de acordar levo-te na gaiola das minhas gengivas e não largo mais de ti. Ficas preso até quando sob minhas mordidas o sangue serve-nos de café.

Tenho duas bocas com uma falo com a outra sangro. Hoje de manhã escolhi o batom mais vermelho para cobrir as manchas de sangue: você me olhou e disse: fica bom.

(Tradução: Prisca Agustoni) 52 Celuzlose 08 • Dezembro 2011

La mia bocca ti avvolge come una sciarpa la mattina nel buio prima di svegliarti ti porto nella gabbia delle mie gengive e non ti lascio più. Rimani imprigionato finchè sotto i miei morsi il sangue ci fa da caffé.

Ho due bocche da una parlo dall'altra sanguino. Stamattina ho scelto il rossetto più rosso per coprire le tracce di sangue. Mi hai guardato e hai detto: stai bene.


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A boca é um ótimo ambiente para a cultura dos desejos e é por isso que estão muito presentes na saliva, na mucosa e sobre as superfícies dentárias. Quando os desejos crescem abundantes, formam sobre a superfície uma placa aderente ao redor do borde da alma. Os desejos desprendem uma toxina, que irrita e provoca lesões, inflamando todos os tecidos.

La bocca é un ottimo ambiente per la crescita dei desideri ed è per questo che ne sono presenti molti nella saliva, sulla mucosa e sulle superfici dentarie. Quando i desideri crescono in abbondanza sulla superficie formano una placca aderente intorno al bordo dell'anima. I desideri rilasciano una tossina, che irrita e procura lesioni, infiammando tutti i tessuti.

La mia bocca ti annega come l'inverno i colori rami nudi al posto dei denti e quando apro gli occhi solo una luce dietro la carta oleata del nostro lenzuolo.

Io vivo con due bocche e parlo con tre lingue. Forse per questo le parole si spezzano come denti in frammenti: in polvere si posano sull'ortografia e la nascondono. E non c'è corona che tenga i tessuti orali.

Minha boca te afunda como o inverno as cores galhos nus no lugar dos dentes e quando abro os olhos somente uma luz atrás do papel oleado do nosso lençol.

Eu vivo com duas bocas e falo com três línguas. Talvez por isso as palavras se quebram como dentes em fragmentos: em pó pousam sobre a ortografia e a escondem. E não há coroa que mantenha os tecidos orais.

Celuzlose 08 • Dezembro 2011 53


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Fávio Bargas Escritor e tradutor. Autor dos poemários Medianeira (2005), Pré-datados (2010) e O show dos bichos (no prelo). Morador da Tríplice Fronteira, em Foz do Iguaçu, vem adotando o portunhol como linguagem de expressão literária, de que são amostras os poemas da presente seleção, retirados do livro Imbencióm de la frontiera (inédito).

SONETO CONTRABANDEADO

ÚLTIMOS FABULADORES Nel México existe una língua a la míngua que tiém dôs fablantes somiente, persistientes. Los dôs, peleados, non se fablam. I l'acabam. Al portuñol passa l'oposto: sien un rosto, todo mundo és seo fabulante circunstante. ¿Que otra língua s'imbentaria todo dia?

Como trabaxadores todos somos un poco a cada dia assessinados. A cada dia un poco recordados que traemos em nossos cromossomos lo que seríamos porém non fuomos por nossa culpa, poes poco estudiados. N'esta guerra fiscal contra esfoerçados, nossa enorme maleta, como pomos de Adán em los trabéstis, nos faria bisíbleis a la guárdia aduanera, que non libera haté que se tribute todo excesso. Habitamos la frontiera de nós miesmos, i somos lo matute que és confiscado un poco a cada dia. Foz d'Yguassú, 2009/2011

Clique abaixo para conhecer a versão em português do http://www.youtube.com/watch?v=Ih3vPVZZDxU

Soneto Contrabandeado PALÍNDROMO A CIUDÁ LESTE, ANTÍGOA POERTO PRESIDENTE STROESSNER – ¡La renego jo, general!

54 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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IMBENCIÓM DE LA FRONTIERA Lo continente s'enxerga porla bisióm litoránea. Mas lo imboca la frontiera c'una boz mediterránea. D'início la dus kaingangues, dus guaranís enseguida, que esta selba pobolaram de cantos, palabras, bida.

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CUADRAS

Portuñol és miña língua, miña pátria és la frontiera, n'otras fablas jo circulo sien tarifa aduanera.

Un dia, viéem los incas nel camiño Peabirú. Plata i xente encruzilladas, bocacióm du Yguassú. Passô Aleixo Garcia, un luso a mando español: lo primiero a traficar palabras du portuñol. Pero Lobo, banderante pionero, aquí murieu. Traçô la frontiera móbel entre natibo i europeu. Aquí Cabeça de Baca concebiô las Cataratas – non por lles dar concretú: descritas, las fizo abstratas. Násciem, prosperam, se acabam las reducions xesuítas: em la língua dus natibos seo discurso socialista. Ontiveros, Villa Rica, Ciudá Real, Guayrá: moerta la língua d'España a esquierda du Paraná. Imbéntasse la frontiera nel Tratado de Madrí. Los reys, como Salomám, partem la xente d'aquí. Nel papel, palabras máxicas, una fórmula verbal a erguer con piedras de biento un muro continental. Lo resto son narratibas de cercas, soberanias. I los poebos frontieriços transciendem las xeografias. La frontiera fabla c'una boz salbaxe, que bordexa un continente que tiém dôs litoráneas orexas.

Por aquí nada se pierde, por aquí nada se cria, como tudo em la frontiera haté cópia se copia.

Em la cúmbia la bexê i ella disse, entre cariños: “¿Quieres ver la miña máquina de facer paraguayños?”

Quiém sai a caça non casa, lo seo meo non vira nosso; jo que non sallo de casa sair du poço non posso.

Como lo rio Yguassú deságua nel Paraná, jo me derramo por tí, indiaciña cainguá.

Dices du libre-comércio, me fablas d'integracióm, jo só sê que si me pagas te faço l'entregacióm.

Celuzlose 08 • Dezembro 2011 55


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ADIÔS, FRONTIERA A los sacoleros que converxem de todas partes, a los mercadores libaneses que facem un prêcio boeno, a la feroz enerxia que canta em los filos, a las águas salbaxes du Yguassú i domesticadas du Paraná, a los borrachos binacionaes, a los terroristas incomprobados, a los enxeñeros xeniosos, a las chiperas que equilibram la cesta em la cabeça, a bocês lles dô adiôs; a los brasiguayos latifundiários em Paraguay, a los brasiguayos sien-tierra nel Brasil, a los profesores forastieros i los frontieriços, a los estudeantes latinoamericanos sien diñero nel bolso, a los turistas gringos que xegam d'excursióm, a los xirús amigos con tererê em la mano, a los debotos de la Birxem de Caacupê, a las kuñakaraí con foego entre las piernas, a los comerciantes chinos que apenas se comunicam, a bocês lles dô adiôs; a los fablantes de guaraní i guarará, a los menonitas de la colónia, a los colonos que tomam leithe quenthe, a los porteños desaculturados, a los polacos leminskianos de la distante Curitiba, a las alemaniñas facieras de la Oktoberfest, a los gaúchos de la frente agrícola, a los paulistas que non entendem, a los catarinas que reinam por un marreco rexeado con repollo roxo, a los sulmatogrossenses perdidos nel mapa, a los paranaenses, altoparanaenses i misioneros, a bocês lles dô adiôs; a los guárdias de la xendarmeria arxentina, a los federaes brasileros, a los milicos paraguayos, a los muamberos que atiram cigarro de la poente, a los traficantes presos al acumpliciar los rios, a los indiociños que piedem diñero em la feiriña, a los cobradores de las vans que cruzam la frontiera, a los mototaxistas que viéem bolando, al comércio trifrontieriço que circula cinco diñeros, a las tias xogadoras compulsibas de cassino, a bocês lles dô adiôs; a los que tomam mate quiente de veróm a veróm, a los que fumam narguile con cachaça, a los que non confundem sopa paraguaya con cuscús, a los que non piensam que chipa és un pan de quexo c'un buraco nel mêdio, a los que voelta i mêdia pirateam una chipá-guassú, a los que nunca ábriem una cuca sien un café, a los que tomam tê si tiém coquito, a los que non passam la semana sien un shawarma con pasta de allo, a bocês lles dô adiôs; 56 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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a los laranxas que atrabiessam l'aduana con lo culo em la mano, a los motoristas de autobusses apreendidos, a los taxistas que tomam clientes d'otro lado, a los guias de turismo que nos desbiam de sofismas, a las bellas recepcionistas trilíngoes de los hotées, a las onças ocultas con fundo falso nel Parque Nacional, a los cuatís que nos robam la comida por los dexarnos robar, a los piás i los gurís, los niños i mita'ís, a las meninas i las gurias, las niñas i mitakuñás, a bocês lles dô adiôs; a los termómetros boladores que migram d'Amazónia a Patagónia sien escalas, a los bañistas de la costa oeste i los pescadores du lago, a los produtos falsificados con etiqueta de la marca requerida, a los compristas que los compram xustamente por saber lo que compram, a las foerças submersas que moebem las turbinas d'Itaypú, a las lexendas urbanas i la fauna humana trinacional, a los que bibem em la frontiera pero non la bibenciam piensando estar [em Sampavlo, Assuncióm ou Boenossaires, a los destierrados de cualquer parte, nacionaes, naturalizados ou importados, a bocês todos jo lles dô adiôs, jo que non valorê lo que tiña i precisê cotizarlos todos con ollos d'exílio, jo, d'un lado ñeto de labradores que só sê labrar palabras, de l'otro ñeto de gaúcho que só adulto fui gustar de chimarróm i ñeto d'una abó que fabulaba portuñol de nascida, jo, fillo d'una brasilera filla de la frontiera como jo i fillo d'un refuxiado paraguayo que nunca me prendí al guaraní nin a la política, jo que fui creado a churrasco i mandioca pero non sê poer la carne nel espeto, que só fui fablar l'español n'España, que non tiña una identidá haté que me diê coenta que miña identidá és la frontiera, miña metafísica és radicada em tembe'y, tembe'y de meo papá i miña mamã i meos abós, fontiera de miña infáncia i de la infáncia de miña filla, frontiera de meos balores, meos amores, meos sudores, tembe'y de excessos i comiseracions, frontiera que me afronta i me conforta, a bocê, tembe'y que és três i és una, a bocê, Triplafrontiera que imbentô una língua trífida, miña cabeça, meo coracióm, miñas entrañas a bocê lle dan adiôs. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 57


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Hilary Kaplan Nasceu em Los Angeles (EUA). Cursou MFA de Poesia na San Francisco State University e é doutoranda em Literatura Comparada na Brown University, em Providence (Rhode Island). Atualmente mora no Rio de Janeiro e está traduzindo para o inglês a obra de Angélica Freitas, Rilke Shake, através de uma bolsa do PEN Translation Fund 2011. Em dezembro iniciará um trabalho como comentarista de poesia brasileira da revista Jacket2.

MANHÃ 5 da manhã o céu verde-azul a oeste radioativo depois pervinca o depois uma nuvem rosa hematoma indo de costas 180 sobre o azul bebê O interrogatório da noite acabou Barbara Klein como? uma amiga da minha mãe do tênis me arremessa a máxima Hilary, como vai o rio? eu estampo meus feitos nas manchetes mas a verdade é: com chuva ou sol o rio está poluído vazio e ainda é afagado depois Reuben Zellman chega como Claire de cabelos compridos, seu antigo eu mas agora em uma saia depois de tantos anos quero perguntar Como vão as coisas sendo o primeiro estudante rabino no mundo a mudar de gênero? Como vai Israel? mas esqueci as chaves imprevisto, mais céu

(Tradução: Marília Garcia) 58 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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MORNING 5 am sky blue-green looking west it's radioactive then periwinkle then a bruisy pink cloud backed 180 into pale baby blue Night's interrogation done Barbara Klein why? my mother's tennis friend lobbing the great one at me How's the river, Hilary? I blow my work up headline-size but truth is night or morning the river's dirty empty and getting fussed over then Reuben Zellman appears as Claire he's got long hair, his old self but moreso, in a skirt I want to say after all these years How's it going being the first transgendered rabbinical student in the world? How's Israel? but I forgot my keys Not planned, more sky

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Paol Keineg Nasceu no oeste da Bretanha, em 1944. Durante os anos 1960 e 1970 participou ativamente do movimento de emancipação social e nacional da Bretanha. Nesse período, publicou vários livros de poemas líricos e políticos. Em 1974, foi para os Estados Unidos, onde viveu e continuou a escrever por trinta e cinco anos. Sua poesia se tornou então mais sóbria, mais áspera. Em 2008, foi lançada uma antologia pessoal, Les trucs sont démolis, que reúne grande parte de sua obra poética. Também é dramaturgo. Sua peça mais recente, Terre lointaine, foi escrita e publicada em 2004. Desde 2009, voltou a viver na Bretanha.

Alguns dizem que é uma língua de vaca Outros, que é uma língua de ovelha Enorme e áspera pende sobre meu peito Todos riem de sua cor azul É fato que obstrui meu palato Que gostaria de poder trancá-la A chave no armário da boca Mas não tenho chave nem fechadura E minha língua tomba assim que abro a boca.

Tud 'zo hag a lavar ez eo un teod buoc'h Lod all ez eo un teod maout A-istribilh emañ war va bruched mell ha garv Gant e liv glas e c'hoarzh an holl gwitibunan Gourleuniañ a ra va staoñ gwir eo Hag e karfen derc'hel anezhañ Er c'hloz 'barzh armel va genou Met n'em eus nag alc'houez na potailh Adkouezañ a ra va zeod kerkent ha ma tigoran va genou.

Certains disent que c'est une langue de vache D'autres que c'est une langue de mouton Enorme et rêche elle pend sur ma poitrine Tous rient de sa couleur bleue C'est vrai qu'elle encombre mon palais Que je voudrais bien pouvoir l'enfermer À clef dans l'armoire de ma bouche Mais je n'ai pas de clef pas de serrure Et ma langue retombe dès que j'ouvre la bouche.

Os poemas a seguir compõem o livro Histoires vraies (P.-J. Oswald, 1974). Foram originalmente escritos em bretão; por isso, optamos por apresentá-los em edição trilíngue. Eles vêm se somar a outros publicados na primeira edição impressa da Celuzlose. 60 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Fecho a janela. Tranco a porta com duas voltas. Procuro sob a cama. Procuro no armário. E retiro o Livro de seu esconderijo. Um imenso livro encadernado em couro negro, com cantoneiras de metal e fechadura de cobre. Deito-o com precaução sobre a mesa. Vigio-o enquanto o acorrento ao pilar central. Verifico a solidez do grilhão. Abro a gaveta inferior e apanho meu bastão. Todas as noites, durante uma hora, espanco o Livro, o derrubo, o encho de porrada, o pisoteio, o estapeio. Todas as noites, seu silêncio me vence, e eu adormeço suado, humilhado por seu silêncio compacto.

Sparlañ a ran ar stalafioù. Serriñ a ran an nor krik ha krak. Sellout a ran dindan ar gwele. Sellout a ran e-barzh an armel. Hag e kemeran al Leor er-maez an toullkuzh. Ul Levr bras keinet e leuegen du, kognoù houarn ha kloched kouevr outañ. Lakaat a ran anezhañ war an daol gant evezh, hag e spian e-keit ma chadennan anezhañ ouzh ar sol kreiz. Gwiriañ a ran ma 'z eo kreñv awalc'h al liamm gantañ. Digor a ran tiretenn an traoñ hag e kemeran va fenn-bazh. E-pad un eurvezh bemnoz e kannan al Levr, e kwall-voutan anezhañ, e stafadan, e torran hag e mac'hellan anezhañ dindan va zreid, Bemnoz, trec'hiñ a ra dre forzh tevel, ha menel a ran kousket, goloet a c'hwez, izelaet dre m'eo chomet mut.

Je ferme les volets. Je ferme la porte à double tour. Je regarde sous le lit. Je regarde dans l'armoire. Et je sors le Livre de sa cache. Un grand livre relié de cuir noir, aux coins de métal et au fermoir de cuivre. Je le pose avec précaution sur la table. Je le tiens à l'oeil tandis que je l'enchaîne à la poutre centrale. Je vérifie la solidité du lien. J'ouvre le tiroir du bas et je prends mon bâton. Chaque nuit, pendant une heure, je bats le Livre, je le bouscule, je le tabasse, je le foule aux pieds, je le gifle. Chaque nuit, son silence a raison de moi, et je m'endors en sueur, humilié de son silence compact.

(Tradução: Ruy Proença) Celuzlose 08 • Dezembro 2011 61


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Atravessei toda a cidade A mão tapando a boca Não me deixei distrair Pelo espetáculo dos policiais E dos vendedores de caranguejos na calçada Avancei direto A mão obstinadamente sobre a boca Recusando responder Aos que me perguntavam as horas No hospital recusei responder Às enfermeiras que me questionavam Terminei por sussurrar ao ouvido de um médico: Doutor eu falo bretão.

Não sei por que me puseram neste quarto: Não há móveis Só uma cadeira de madeira Olho pela janela Os joelhos sobre o aquecedor Nuvens brancas passam Pardais se embolam na poeira Não sei por que estou aqui Em breve eles voltarão E me medindo de alto a baixo Pronunciarão palavras Que não compreendo: Insulina eletrochoque.

Treuzet am eus ar c'hreiz-ker Va dorn dirak va genou Aet on gant va hent en despet d'ar poliserien Ha d'ar varc'hadourien-kranked a bep tu d'ar straed Aet on war-eeun gantañ Va dorn dalc'hmat dirak va genou Respont ebet kennebeut D'ar re a c'houlenne an eur diganin Respont ebet muioc'h en ospital D'an infirmierezed a rae goulennoù ouzhin A-benn ar fin hiboudet am eus e skouarn un doktor: Aotrou medisin komz a ran brezhoneg.

N'ouzon ket perak Ez on bet lakaet el lec'h-mañ: Arrebeuri ebet Nemet ur gador goat Stok va daoulin ouzh an dommerezh Dre ar prenestr e sellan Ouzh koumoul gwenn a dreuz an oabl O poultrennañ emañ ar filiped N'ouzon ket perak emaon amañ Bremañ-souden e tistroint Hag en ur sellout ouzhin E tistagint gerioù Ne gomprenan ket: Iñsulin elektrochok.

J'ai traversé toute la ville La main devant la bouche Je ne me suis pas laissé distraire Par le spectacle des agents de police Et des marchands de crabes sur le trottoir J'ai avancé droit devant La main obstinément sur la bouche Refusant de répondre A ceux qui me demandaient l'heure A l'hôpital j'ai refusé de répondre Aux infirmières qui me questionnaient J'ai fini par murmurer à l'oreille d'un médecin: Docteur je parle breton.

Je ne sais pas pourquoi On m'a mis dans cette pièce: Il n'y a pas de meubles Seule une chaise en bois Je regarde par la fenêtre Les genoux contre le radiateur Des nuages blancs passent Des moineaux se roulent dans la poussière Je ne sais pas pourquoi je suis là Tout à l'heure ils reviendront Et tout en me regardant Ils prononceront des mots Que je ne comprends pas: Insuline électrochoc.

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Lime as unhas E quebre os dentes Na quina da parede 1 Cubra a cabeça com uma coroa-de-cristo Aproxime-se mancando Gemendo Amaldiçoando Deus Faça-se humilde muito humilde E assim que ele virar as costas Corte-lhe a cabeça Corte a própria cabeça E cabeça por cabeça Faça a troca Você não tem nada a perder Talvez tenha a ganhar.

Livn da ivinoù Har torr da dent E korn ar voger Lak spern-gwenn war da benn Deus tostoc'h en ur jilgammañ En ur glemmichat En ur vallozhiñ Doue Bez izel bez izeloc'h Ha kerkent ma 'z eo troet e gein Troc'h e benn Troc'h da benn Ha grit an eskemm N'hellez ket koll Ar maout a zeuio ganez marteze.

Lime tes ongles Et casse-toi les dents À l'angle du mur Couvre-toi la tête d'aubépine Approche-toi en boitant En geignant En maudissant Dieu Fais-toi humble très humble Et dès qu'il a le dos tourné Coupe-lui la tête Coupe-toi la tête Et tête contre tête Faites l'échange Tu ne peux pas y perdre Tu y gagneras peut-être.

1. Aubépine: gênero de árvore ou arbusto espinhoso do hemisfério norte, pertencente à família das Rosáceas, que floresce magnificamente no início da primavera, no oeste da Europa. Em português pode assumir vários nomes, sendo pilriteiro o mais comum. A variante espinha-branca traduz melhor a origem latina da palavra, alba spina. No poema, faz-se alusão a uma superstição bretã, hoje praticamente esquecida: durante as tempestades, para se proteger dos raios, cortava-se um ramo de espinha-branca e o colocava sobre a cabeça. Optou-se no poema por coroa-de-cristo, arbusto com características físicas similares, que substitui a ideia de proteção pela de martírio, também presente no poema.

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Nas entrelinhas de Ana Cristina por Annita Costa Malufe

Há quase trinta anos, precisamente em 29 de outubro de 1983, a poeta carioca Ana Cristina Cesar decidiu colocar um último ponto final: cessava uma produção que ainda assistia a seu início. Não se trata de saber se a morte de Ana Cristina, aos 31 anos de idade, ajudou a eternizar sua poesia e a fazer de A Teus Pés, único livro seu publicado em vida, um sucesso de crítica e público. Mas talvez seja um pretexto para se lembrar de uma das poucas poesias sobreviventes daquela que foi a chamada “poesia marginal” ou “poesia de mimeógrafo” dos anos 1970. Tanto que, até hoje, Ana C. – como costumava assinar – é referência obrigatória quando se trata de poesia brasileira contemporânea. Buscar em um poema a intimidade daquele que o escreveu: esta espécie de armadilha pode facilmente abocanhar quem lê os textos de Ana Cristina Cesar. Temas da intimidade, conversa ao pé-de-ouvido, poemas em forma de carta, de diário, tom de confissão entre amigas. Foi a própria Ana C. quem cultivou a curiosidade do leitor com esta escrita que parece esconder segredos íntimos de mulher. Nada inocente: ela dizia mesmo brincar propositadamente com o desejo de identificação romântica, tentação em que tantos costumam cair. Para fugir desta arapuca, a receita de Ana C. é “ser iniciado em literatura”. O que, para ela, consiste antes em “sacar” de fato o que é poesia, do que em colecionar títulos de autores consagrados na lista pessoal dos “já lidos”: “Você pode ter lido um ou dois [poetas] e já sacar o que é poesia: que a poesia é um tipo de loucura qualquer. É uma 1 linguagem que te pira um pouco, que meio te tira do eixo”, diz-nos Ana C. em um depoimento editado em Escritos no Rio e reeditado em Crítica e Tradução. Para quem conhece seus poemas, os ensaios críticos são uma boa oportunidade para entender melhor como ler aqueles textos que muita gente, à primeira vista, acaba tendo como estranhos, quase herméticos, não-senso etc. E a crítica especializada não está fora disto. Há tanto quem acredite que os textos de Ana C. não passam de fluxo natural do inconsciente – à maneira surrealista – quanto quem a leia como uma poeta simbolista, procurando significados ocultos, estrategicamente codificados por trás das palavras.

1. Cesar, Crítica e Tradução, p.267.

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O fato é que, provavelmente as melhores pistas para lermos sua poesia já tenham sido dadas pela própria poeta. Ana C. pensou sua poesia, pensou literatura, fez crítica, estudou tradução e, como podemos notar no conjunto de seus escritos, isso tudo participava, e muito, da sua criação literária. Como negligenciar isto? T. S. Eliot acreditava que “a maior cota do labor de um autor ao executar a sua obra é um trabalho 2 crítico”: ao criar, o poeta coloca em ação sua habilidade crítica, avalia seus procedimentos, estabelece parâmetros, faz comparações, aciona seu conhecimento histórico, literário. Este exercício crítico era consciente para Ana C., que obteve o grau de Master of Arts na Inglaterra em um curso sobre tradução literária, na Universidade de Essex, onde viu a oportunidade de “enfim estudar teoria”, como podemos ler em uma de suas cartas publicadas em Correspondência Incompleta. Muitos dos ensaios que encontramos em Crítica e Tradução fazem parte do período de estadia na Inglaterra – textos que a princípio formaram o livro Escritos na Inglaterra – nos quais vemos o tempo todo a preocupação mais ampla com a literatura guiar a questão da tradução. Em seu mestrado, também publicado aqui, Ana C. traduziu um conto de Katherine Mansfield, “Bliss”, para o português e compôs uma dissertação a partir das notas de rodapé da tradução. Podemos ler ainda alguns poemas traduzidos por ela, de poetas que pareciam estar entre seus preferidos, como Emily Dickinson, Marianne Moore, Sylvia Plath. Mas talvez estejam nos Escritos no Rio os artigos que mostram mais diretamente a visão de literatura de que Ana C. estava imbuída. Nestes textos, que saíram em jornais e suplementos literários versando sobre os mais diferentes temas, além do depoimento de Ana C. a um curso sobre literatura feminina e uma monografia para disciplina da UFRJ, podemos colher algumas pistas de sua concepção de poesia. Aqui lembramos, novamente com Eliot, que “aquilo que ele [o poeta] escreve a respeito de poesia deve ser avaliado em relação com a poesia que ele escreve”.3 Caminho de mão dupla, afinal: a poesia de Ana C. também não deveria ser avaliada tendo em vista aquilo que ela refletiu sobre poesia? a biblioteca O pensamento de Ana Cristina sobre a literatura parece inserir-se em um contexto filosófico bastante contemporâneo. Sobretudo naquele que atualmente poderíamos associar, depois de Nietzsche, ao filósofo francês Gilles Deleuze que, com sua filosofia da diferença, teria proposto uma inversão do platonismo: como deixarmos de pensar o mundo em termos de modelo e cópia, como concebermos que, afinal, não há original algum e de que estamos sempre em pleno devir? Por trás de tudo o que podemos ler nos ensaios de Ana C., mas também em suas cartas, encontramos um preceito básico: o texto literário é sempre, enfaticamente, construção, e construção de realidade. Ou seja, ele não é representação de uma realidade outra – seja ela do exterior, do mundo, das coisas, ou mesmo do interior daquele que o escreveu – mas constitui em si uma realidade. Não há modelo e cópia, não há representação de um ideal, mas apresentação de um real inédito.

2. Eliot, Ensaios de Doutrina Crítica, p.43. 3. Idem, p.74.

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Ao falar de Guimarães Rosa, por exemplo, ela enfatiza que seu interesse literário não está na transposição de uma realidade para o papel, como um espelho, mas sim, na sua interferência neste reflexo: o que importa é tomar o mundo como matéria-prima para, a partir daí, criar, construir algo artisticamente. Assim, a literatura consiste na construção de um universo próprio, auto-suficiente. E este mundo criado pelo texto literário não quer ser espelho do mundo em que vivemos, ser seu reflexo ou relato. É daí que Ana C. enfatiza a impossibilidade de se chegar à verdade de um texto, tocando em um tema caro à filosofia desde Nietzsche: a inexistência de uma verdade absoluta, ou a constatação da parcialidade de toda e qualquer verdade. Ana C. salienta que, afinal, nunca se chega à verdade de um autor, ou à verdade de o que quer que seja, uma vez que não existe essa tal verdade universal, como um segredo oculto a ser descortinado. Segundo ela, ainda se houvesse “A Verdade”, do autor, do mundo, das coisas, não seria função do texto escondê-la ou revelá-la. Em suas palavras: “Ao produzir literatura, eu não faço rasgos de verdade, eu tenho uma opção pela construção, ou melhor, não consigo transmitir para você uma verdade acerca de minha 4 subjetividade. É uma impossibilidade até”. Essa questão é tematizada mais de uma vez nos textos críticos de Ana C. que, conforme podemos observar em sua biblioteca particular, que se encontra em seu arquivo pessoal sob responsabilidade do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro desde 1999, era leitora de autores contemporâneos que compartilham de uma concepção da arte enquanto não-representação. Além de diversos livros de Octavio Paz, alguns de Jorge Luis Borges, podemos encontrar – lidas e com anotações da poeta – obras de Michel Foucault, Gilles Deleuze, Roland Barthes, Antonin Artaud, Jacques Derrida. É claro que, estes, em meio a diversos outros autores também bastante conhecidos por sua geração, como Maiakovski, Mallarmé, T. S. Eliot, Ezra Pound, Augusto e Haroldo de Campos, Mário e Oswald de Andrade e alguns estruturalistas. No entanto, em relação aos estruturalistas, não podemos deixar de lado a passagem de uma carta sua a uma amiga: “Arrumei a estante, reclassifiquei os livros (...) Nessa, descobri que tenho uma quantidade enorme de livros inúteis (quase todos os estruturalistas, que formam uma boa prateleira, poderiam ser dispensados; os de 5 linguística também)”. intimidade construída A nova poesia de meados dos anos 1970, a poesia marginal de que, de certa forma, fez parte, teria nascido dentro desta concepção, do texto literário como construção e não representação, ao seu ver. Uma poesia mais próxima da alegoria do que do símbolo, literatura que “sabe que não está simbolizando alguma inefável 6 verdade sobre o mundo, que não está abarcando um símbolo inexprimível”. Ana C. afirma que, nesta poesia, não há “saudosismo”, não há mais a preocupação com uma distância irrecuperável entre linguagem e real. Desde Walt Whitman esta teria deixado 4. Cesar, op. cit., p.273. 5. Carta a Ana Candida Perez, de 18/09/76. Hollanda e Freitas Filho, Ana Cristina Cesar, Correspondência Incompleta, p.226. 6. Cesar, op. cit., p.163.

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de ser uma questão para a poesia contemporânea: “Poeticamente a questão da representação como distanciamento é abolida na euforia revolucionária da poética de Whitman”, poética que “rompe a metafísica que impõe e chora a distância entre o 7 mundo e a linguagem”, argumenta ela em outro artigo. É como se não houvesse mais lamento por esta distância, ou desejo de reunificação, reunião através da poesia, como um “retorno ao útero” tal qual quereriam os poetas metafísicos. Pelo contrário: essa distância é incorporada ao poema, ao seu tom, ao seu tema, e é tomada com alegria, despojamento. Desse modo, o poema deixa de buscar a fidelidade com o vivido, não almeja imitar o mundo, trazê-lo para a linguagem, e assim: “O poeta pode representar, fingir descaradamente; não tem mais um compromisso com uma Verdade, não se propõe a simbolizar um inefável e preexistente sentir ou existir”.8 O texto assume-se enquanto produtor de realidade, criador – de povos, culturas, vidas – e não apenas criatura: “o poema é uma produção, um modo de produzir significação mediante o fingimento poético, e não uma nobre 9 tradução do indizível”. Com este pano de fundo, podemos tranquilamente afirmar que, para Ana C., literatura não é relato de memória, seja ela vista ou sentida, não é diário de bordo. Tomemos emprestada uma frase de Gilles Deleuze: “Escrever não é contar suas 10 lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, seus sonhos e fantasmas”. Para ele a fabulação criadora não se nutre de recordações e ausências, mas antes, de um excesso que nos faz justamente ultrapassar as situações vividas, ir além dos fatos. É o que nos diz Ana C.: embora seja possível partirmos de uma emoção, um sentimento ou mesmo um fato ocorrido, essa vivência só é apropriada pelo escritor enquanto uma espécie de material bruto, inicial, sobre o qual será necessário trabalhar, empregando o que ela chama de “olhar estetizante”. Assim, nessa operação obrigatória para se produzir o texto literário, ela acredita que não há como o poeta ser fiel ao sentimento inicial, ainda se assim o desejasse. Aquele que pretende representar sentimentos, emoções, ambientes e acontecimentos externos terá de fazer uma escolha: se almejar ser fiel terá de abdicar à literatura, para fazer literatura terá de renunciar à fidelidade aos fatos. Não há saída: “Se você conseguir contar a tua história pessoal e virar literatura, não é mais a tua história pessoal, já mudou”,11 diz ela. Ou seja, as obsessões pessoais do autor participam sim da criação na arte, mas somente enquanto matéria-prima a ser transformada – juntamente com outras coisas como livros que o autor leu, coisas que ele viu, ouviu, viveu.

7. Idem, p.252. 8. Idem, p.164. 9. Idem, ibidem. 10. Deleuze, Critique et Clinique, p.12. 11. Cesar, op. cit., p.262.

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É desse modo que, ficcionando correspondências e diários, Ana C. “brinca diretamente com o que chama de 'obscurantismo biografílico'”, como remarca Flora Süssekind no ensaio sobre a poeta Até Segunda Ordem Não me Risque Nada. Ana C. deixa claro que os diários – que compõem praticamente inteiro seu livro Luvas de Pelica e parte do seu Cenas de Abril – não são seus, mas sim diários inventados, que forjam uma intimidade: “Se você vai ler esse diário fingido, você não encontra intimidade aí. Escapa”. E continua: “(...) a intimidade... não é comunicável literariamente. A 12 subjetividade, o íntimo, o que a gente chama de subjetivo não se coloca na literatura”. o autor dança No entanto, não seria suficiente explicarmos a estratégia composicional de Ana C. através da ideia dos heterônimos, o fingimento de que fala Fernando Pessoa. Aí ainda poderíamos supor a existência de uma “verdadeira” intimidade para além das personas criadas pelo poeta. Seria mais efetivo refletirmos que, ao dizer: “Em todo texto, o autor 13 morre, o autor dança, e isso é que dá literatura”, Ana C. aproxima-se de uma concepção de literatura que nos remete a toda uma corrente de pensadores contemporâneos para quem a literatura não é o lugar da afirmação, mas sim, da desconstrução do sujeito. Com a ideia da morte do autor, Ana C. conversa com correntes que poderíamos chamar de “mais radicais” da crítica literária, onde podemos destacar Barthes, mas principalmente Derrida, que também foi um dos autores lidos por ela. Para Foucault, um dos autores que interessaram bastante a Ana C., aqui está uma das revoluções trazidas por Nietzsche: trata-se, enfim, da possibilidade de se pensar o ser da linguagem, este que “só aparece para si mesmo com o desaparecimento do sujeito”.14 A partir daí, é como se fosse inaugurada a ideia de se encarar a linguagem como um ser independente, uma construção que exclui o sujeito, que coloca em xeque a evidência do eu. Na literatura, esta seria a novidade incorporada por Mallarmé. Segundo Foucault, a partir de sua poética, temos a fundação de “um dos princípios éticos da escrita contemporânea”, esta indiferença em relação ao autor produzindo uma escrita que se basta em si mesma. Igualmente para Barthes, a escrita de Mallarmé inaugura o esforço em suprimir o autor em proveito da escrita. Quem fala é a linguagem, e não este alguém anterior a ela; é a linguagem que fala por si só, e não importa de onde ela vem, mas sim, para onde ela vai. Destacamos que não se trata de confidência quando Ana C. escreve seus diários ou monta suas cartas fictícias, ou seus poemas-carta, mas sim de construção, elaboração estética. Mas, para além disto, vale remarcar que, nesta operação de interferência no mundo, não se trata de um sujeito que se afirma através da linguagem,

12. Idem, p.259. 13. Idem, p.266. 14. Foucault, “O Pensamento do Exterior”, Ditos e Escritos III, p.222.

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mas antes de um sujeito que se desfaz para fazer surgir a linguagem. Ou ainda, de um sujeito que, já de antemão, sabe da impossibilidade de sua captação, ou captura, pela linguagem. Devemos convocar aqui Maurice Blanchot, para quem o escritor não pode afirmar-se na linguagem, mesmo que assim o acredite ou deseje. Na escrita, ele é arrastado para fora de si e aí encerrado. A literatura só nasce desta renúncia do sujeito, devendo ser uma verdadeira quebra do vínculo que une a palavra ao eu. Temos assim, a poesia como um discurso impessoal, descolado da subjetividade do autor: “A fala poética deixa de ser fala de uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente a fala 'se fala'”.15 o não-dito Com este pano de fundo, algumas coisas podem mudar na leitura dos poemas de Ana Cristina. Acreditamos que estas ideias são fundamentais ao nos depararmos com os textos fragmentários e disparatados de A Teus Pés, seu último livro, e único publicado por editora – reunindo os três anteriores de edição independente: Luvas de Pelica, Correspondência Completa e Cenas de Abril. Deslocar a leitura para uma concepção do texto como não-representação é importante ao lermos poemas que imitam cartas (como é o caso do Correspondência Completa) ou diários (em Luvas de Pelica e Cenas de Abril). Mas se torna ainda mais premente quando nos defrontamos com a desmontagem desses gêneros operada em A Teus Pés. Ali, além de utilizar formas que nos remetem a essas escritas “íntimas”, Ana C. ousa mais, fragmenta mais, como se fizesse uma verdadeira colagem cifrada de frases vindas de diversos lugares. O que temos no fim são textos aparentemente desconexos, cheios de saltos, de versos que parecem não se encaixar. E muita coisa ainda com cara de diário, de correspondência. Resultado: a impressão de que há segredos escondidos nas entrelinhas, símbolos a serem decifrados, silêncios que suspendem o entendimento e aguçam a curiosidade: o que ela está querendo dizer? Entretanto, parece não ser bem essa a pergunta a ser feita. Segundo Ana C., não se trata de fazer uma literatura de entrelinhas. Esses vazios, saltos, silêncios, espaços em branco seriam o que ela define como o “não-dito” do texto literário, algo que difere bastante do que usualmente se entende por “entrelinha”. Acompanhemos Ana C.: “A entrelinha quer dizer: tem aqui escrito uma coisa, tem aqui escrito outra, e o autor está insinuando uma terceira. Não tem insinuação nenhuma, não. (...) Eu acho que, no meu texto e acho que em poesia, em geral, não existe entrelinha. (...) Existe a linha mesmo, o verso mesmo. O que é uma entrelinha? Você está 16 buscando o quê? O que não está ali?”.

15. Blanchot, O Espaço Literário, p.35. 16. Cesar, op. cit., p.262.

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Não. Não busquemos o que está oculto no papel, no sentido de um significado fixo, escondido entre as linhas, codificado. O poeta não busca colocar símbolos no papel, como sinais nas placas de trânsito: uma coisa substituindo outra, uma coisa remetendo a outra especificamente determinada. Na poesia, tal qual a concebe Ana C., não há simbologia alguma, os elementos utilizados nos textos não estão ocupando “lugar de” ou representando algo. Questionada por alguém da plateia, no debate editado em Crítica e Tradução, a respeito do que ela quis dizer com a palavra “pato” em um de seus poemas, Ana Cristina enfatiza: “Pato, por acaso, é um significante que puxa muitos outros (...) Quanto mais puxar melhor (...) Não vou dizer nunca para você o que, 17 para mim, o símbolo do pato significa...”. Tal é a natureza do que nos diz Ana C.: não busquem “o que eu quis dizer”, o que escondi por trás das palavras. Não há uma tradução para, por exemplo, a palavra “contramão” no poema/prosa “Mocidade independente”: “(...) Voei para cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o estado de São 18 Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão”. O que seriam interpretações que procurariam um significado para o termo, como por exemplo aludi-lo ao movimento subversivo, ou crer que ela insinuou que a mocidade anda na contramão, etc. As interpretações psicológicas, que procuram no texto ocultamentos da intimidade do autor, iriam em direção semelhante a esta. No lugar disso, o ato de leitura consistiria basicamente no que ela chama de “puxar o significante”, ou seja, ir fazendo associações as mais diversas e inesperadas a cada 19 vez: “Ler é meio puxar fios, e não decifrar”. As palavras devem ser encaradas como significantes nômades, que migram a cada leitura, ou seja, significantes com significados múltiplos, móveis, abertos. Para ela a linguagem poética não pretendia “dizer algo”, fazer literatura não é comunicar, não consiste em passar uma informação, 20 transmitir palavras de ordem. “Tem um lado grilante da poesia. Ela não comunica”, não do modo que nossa fala ou que o jornal comunicam. Eis um ponto central para Ana C.: a poesia revela mas não comunica.

17. Idem, p.263. 18. Cesar, A Teus Pés, p.44. 19. Cesar, Crítica e Tradução, p.264. 20. Idem, p.270.

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Assim, no lugar de uma literatura de entrelinhas, Ana C. acredita no não-dito da literatura, um não-dito pertencente à própria materialidade textual. Enquanto a entrelinha remete a uma insinuação escondida, um “querer dizer sem dizer”, trazendo embutida uma concepção da poesia como veículo de comunicação (de significados, sentimentos, segredos), o não-dito é aquele que pertence ao próprio texto, e não remete a algum objeto externo originário. Por isso, trata-se de um não-dito enquanto questão literária, que não se confunde com intenções pessoais do autor, nem segredos de sua intimidade, nem tampouco com a clausura da simbologia. Seria antes um nãodito da liberdade: justamente esses espaços em branco, esses silêncios em torno das palavras, que as dotam de infinitos “fios”, aqueles que cada leitor irá puxar a cada vez. As brechas que arejam o verso e abrem-no à possibilidade das imprevistas associações. E afinal, completa Ana C.: “Toda literatura tem esse lado de: 'ainda há uma palavra não falada' (...) sempre haverá alguma coisa que escapa”.21

Agradecimentos ao Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, em especial à Elisabeth Pessoa e sua equipe de pesquisadoras que possibilitaram o acesso ao arquivo pessoal da Ana Cristina.

Bibliografia BARTHES, Roland. “A morte do autor”. In: O Rumor da Língua. Trad. António Gonçalves. Lisboa: Edições 70, 1987 (título original em francês Le Bruissement de la Langue, 1984). BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. (título original em francês L'Espace Littéraire, 1955). CESAR, Ana Cristina. Crítica e Tradução. São Paulo: Editora Ática, 1999. _________________. A Teus Pés. São Paulo: Editora Ática, 1999. DELEUZE, Gilles. Critique et Clinique. Paris: Les Éditions de Minuit, 1993. ELIOT, T. S.. Ensaios de Doutrina Crítica. Trad. Fernando de Mello Moser. Lisboa: Guimarães Editores, 1997 (seleção de ensaios realizada para a presente edição). FOUCAULT, Michel. “O pensamento do exterior” e “O que é um autor”. In: Ditos e Escritos III – Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001 (título original em francês Dits et Écrits, 1994). HOLLANDA, Heloisa B. e FREITAS FILHO, Armando (orgs.). Ana Cristina Cesar, Correspondência Incompleta. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999. SÜSSEKIND, Flora. Até Segunda Ordem Não me Risque Nada. Rio de Janeiro: 7Letras, 1995.

Annita Costa Malufe é doutora em Teoria Literária pela Unicamp. Autora de Poéticas da imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar (7Letras / Fapesp, 2011), Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar (Annablume / Fapesp, 2006) e dos livros de poemas Como se caísse devagar (Editora 34 e Secretaria de Estado da Cultura SP, 2008), Nesta cidade e abaixo de teus olhos (7Letras, 2007) e Fundos para dias de chuva (7Letras, 2004).

21. Idem, p.260.

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Alguns poetas da natureza, dos românticos aos contemporâneos* por Claudio Willer Românticos celebraram a natureza como lugar da manifestação do sagrado, em oposição aos aglomerados urbanos gerados pela industrialização. Simbolistas e decadentistas tomaram o partido do artificial, do não-natural – mas não excluíram a natureza, porém transformaram-na; tornaram-na o cenário de um encontro de imaginação e realidade. Na poesia surrealista intensifica-se essa síntese do imaginário e do real. No âmbito da Geração Beat, pode-se recortar trechos de Jack Kerouac, Gary Snyder e principalmente de Michael McClure, que os caracterizam como poetas da natureza e ambientalistas. No modernismo brasileiro destaca-se Jorge de Lima, poeta telúrico; no pós-modernismo, Manoel de Barros, com uma visão particular do microcosmo, das pequenas coisas. Merecem atenção dois contemporâneos que tratam a natureza de modo pessoal: o português Herberto Helder e o brasileiro Roberto Piva. A natureza está na poesia, desde seus primórdios. Mas a postura romântica e de alguns modernos e contemporâneos perante a natureza é distinta daquela de clássicos e neoclássicos. Árcades, por exemplo, podiam povoar o quanto quisessem seus jardins e bosques idílicos de ninfas e faunos; mas suas representações não teriam o sentido de uma insurreição contra a industrialização e a massificação na sociedade burguesa. O tratamento não mais decorativo do natural, porém crítico, é ilustrado por um contemporâneo brasileiro, Roberto Piva. Entre outros lugares, em uma série de textos intitulada “Sindicato da natureza”, publicada em Estranhos sinais de Saturno, volume 3 de suas Obras reunidas. No “Manifesto do partido surrealista-natural”, associa a defesa do natural ao paganismo: Dionysos, na Grécia Antiga, era o Deus da vegetação, da orgia, do vinho, da anarquia. Pra começar a falar em Ecologia, precisamos iniciar a gira invocando Dionysos, que traz a renovação da primavera & da vegetação. [...] É preciso não confundir Ecologia com jardinagem. A Ecologia é uma ramificação da Biologia, que estuda as interações entre os seres vivos & seu meio ambiente. Nos anos 60 quando eu falava de Ecologia, a resposta das pessoas, que se amontoavam em bandos à direita & esquerda, era sempre uma profissão de fé na própria mediocridade. “Com tanta gente passando fome, esse cara vem falar de natureza.” Como se a vida do cretino não dependesse exatamente do equilíbrio ecológico. Os trabalhadores têm a CUT, a CGT. A onça pintada não tem sindicato. Os rios não têm sindicato. O mar não tem sindicato. (Piva 2008, p. 178)

* O presente ensaio é adaptado de “A natureza e alguns poetas românticos, modernos e contemporâneos”, palestra e leitura de poemas no 12º Festival de Inverno de Bonito, MS, a 30 de julho de 2011.

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A dessacralização da natureza e o banimento do dionisíaco são atribuídos por Piva ao cristianismo. Para os propósitos da presente argumentação, não importa discutir se a destituição do caráter sagrado da natureza tem sua gênese no desencantamento do mundo, associado por Max Weber à ética protestante; no “homem fáustico” de Spengler; no cristianismo; nas religiões dualistas e grandes monoteísmos em geral; na geometrização do mundo por Descartes; no racionalismo grego; no Iluminismo e na ideologia do progresso; no primado da visão científico-tecnológica na sociedade moderna. Católicos poderiam responder a Piva que a natureza é obra de Deus; portanto sagrada – e Piva retrucaria que o cristianismo é dualista e que, na Idade Média, a ordem franciscana esteve no limite de ser banida como herética. Interessa a continuidade ou sintonia de afirmações como essas de Piva com o que já dizia, ao final do século XVIII, William Blake, iniciador do romantismo e profeta da modernidade poética – e um panteísta que vislumbrava a unidade do homem e do universo, da consciência individual e daquela cósmica. Seu ideário foi expresso, entre outras passagens de sua obra enorme, em O casamento do céu e do inferno: O rugir dos leões, o uivo dos lobos, a ira do mar revolto e a espada devastadora são porções de eternidade demasiado grandes para o olho humano. [...] A altivez do pavão é a glória de Deus. A lascívia do bode é a dádiva de Deus. A fúria do leão é a sabedoria de Deus. A nudez da mulher é a obra de Deus. (Blake 2007, p. 28) Em outras passagens, Blake chegou a referir-se ao “mundo vegetal”. Isso foi interpretado por estudiosos (por exemplo, Harold Bloom e Northrop Frye) como depreciação da natureza. Mas não só em O casamento do céu e do inferno, porém em suas Canções da inocência e experiência, a natureza é o cenário da manifestação do divino. Um dos exemplos, seu antológico poema sobre o tigre: [...] Tygre, Tygre, fogo ativo, Nas florestas da noite, vivo, Que mão imortal armaria Tua terrível simetria? (Blake 2005, p. 121) O encantamento diante da natureza marca inúmeros dentre os autores românticos, a começar por Wordsworth. E por Chateaubriand, que tanto influenciou românticos brasileiros: está na gênese do indianismo, tanto de Gonçalves Dias quanto

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de José de Alencar. Mas é obrigatório, ao se comentar a associação da visão romântica ao paganismo, citar um conhecido poema de Gérard de Nerval: VERSOS DOURADOS Céus! tudo é sensível. Pitágoras Homem! livre pensador! serás o único que pensa Neste mundo onde a vida cintila em cada ente? De tuas forças tua liberdade dispõe naturalmente, Mas teus conselhos todos o universo dispensa. Honra na fera o espírito que fermenta... Cada flor é uma alma em Natura nascente; Um mistério de amor no metal reside dormente; “Tudo é sensível!” E poderoso em teu ser se apresenta. Receia, no muro cego, um olhar curioso: À própria matéria encontra-se um verbo unido... Não te sirvas dela para qualquer fim impiedoso! Quase sempre no ser obscuro mora um Deus escondido. E, como um olho novo coberto por suas pálpebras, 1 Um espírito puro medra sob a crosta das pedras! (Nerval 1995, p. 24) Não se trata apenas de encantamento frente ao natural, porém de vitalismo e panteísmo: para Nerval, a flor tem “alma”, o muro, “um olhar”, tudo, “um Deus escondido”. Já foi observada a sincronia desse poema de Nerval com aquele, contemporâneo e igualmente famoso, de As flores do mal de Baudelaire:2 CORRESPONDÊNCIAS A Natureza é um templo onde vivos pilares Deixam filtrar não raro insólitos enredos; O homem o cruza em meio a um bosque de segredos Que ali o espreitam com seus olhos familiares.

1. Preferi, para este poema, a tradução de Contador Borges, acrescentada à sua edição de Aurélia. 2. O comentário sobre sincronia dos dois poemas é de Contador Borges, na edição citada.

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Como ecos longos que à distância se matizam Numa vertiginosa e lúgubre unidade, Tão vasta quanto a noite e quanto a claridade, Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. Há aromas frescos como a carne dos infantes, Doces como o oboé, verdes como a campina, E outros, já dissolutos, ricos e triunfantes, Com a fluidez daquilo que jamais termina, Como o almíscar, o incenso e as resinas do Oriente, Que a glória exaltam dos sentidos e da mente. (Baudelaire 1995, p. 125)3 Como se sabe, Baudelaire foi contraditório e paradoxal. Manifestava-se em favor do artificial e abominava a natureza e o natural: “A natureza é feita, e prefiro os monstros da minha fantasia à trivialidade concreta”, declarou o poeta em seus elogios à modernidade e sua defesa da imaginação. Mas em “Correspondências” a natureza é “um templo”; lugar sagrado. O poema é uma proclamação em favor do pensamento analógico, afirmando sua crença nas correspondências entre macrocosmo, o universo, e microcosmo, o mundo natural, assim como também declarou sobre a arte pura, em A Arte Filosófica: “O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista.” (Baudelaire 1995, p. 789) De Baudelaire os simbolistas adotaram a doutrina hermética das correspondências, o dandismo e as provocações (no texto e na vida), o satanismo, o culto ao artificial e antinaturalismo – e muito mais. A conhecida narrativa de J-K. Huysmans, Às avessas, o “breviário da decadência”, expõe essa poética e visão de mundo através da história do aristocrata que se isola e constrói um ambiente absolutamente artificial (é claro que estou generalizando – a natureza é importante, e tratada de modo original na poesia do simbolista Jules Laforgue, por exemplo). No âmbito do surrealismo, herdeiro ou continuador do simbolismo, a natureza não ressurge apenas através do apreço por culturas arcaicas, sociedades tribais, seus mitos e criações. Recebe um tratamento especialmente original em uma obra matricial, O camponês de Paris de Louis Aragon, de 1926. A segunda parte dessa narrativa intitula-se “O sentimento da natureza no parque Buttes-Chaumont”. Possuído pela “vertigem do moderno”, pela sensação de “tocar numa fechadura do universo”, o narrador caminha pelo parque e põe-se “a descobrir o semblante do infinito sob as formas concretas que me escoltavam, andando ao longo das aleias de terra”.

3. Na tradução de Ivan Junqueira.

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Reencontra o sagrado: “Pareceu-me que o homem está pleno de deuses como uma esponja imersa em pleno céu”. Para ele, “Tudo o que é extravagante no homem e o que há nele de errante, de extraviado, sem dúvida poderia caber nessas duas sílabas: jardim”. (Aragon 1996, pp. 140-145) E acaba por concluir que a natureza equivale ao inconsciente. Jardins urbanos e parques são lugares, portanto, de um encontro de duas esferas ou planos; equivalem a uma síntese do consciente e inconsciente: A experiência sensível aparece então para mim como o mecanismo da consciência e a natureza, vê-se no que ela se torna: a natureza é meu inconsciente. Aquilo a que meus sentidos se entregam, para falar a linguagem do hábito, não está separado dela. Mas por instantes, em limiares raros, reconheço esse liame que une os dados dos meus sentidos, alguns desses dados, à própria natureza: ao inconsciente. (idem, p. 150) O encontro com “a ideia antiga da natureza” leva-o ao mito: “seria possível perguntar se não existiria hoje um sentimento mítico particular, eficaz, que se restringisse àquilo que outrora foi a natureza.” (idem, p. 152) Aragon oferece um quadro de referência para situar o tratamento dado à natureza e ao natural na obra de alguns poetas, através de termos ou categorias binárias: mito e logos, sagrado e profano, pensamento analógico e lógica do discurso, poético e prosaico, natural e urbano, inconsciente e consciente. *** Nossos modernistas celebraram, notoriamente, a natureza. Foram continuadores do nativismo romântico. Em todos os grupos: Verde, Anta, e até mesmo, de modo mais refinado e crítico, na Poesia Pau Brasil de Oswald de Andrade, há uma representação do Brasil: a pujança da natureza é seu emblema e metáfora. Dentre aqueles poetas brasileiros que podem ser associados ao modernismo, certamente o mais telúrico, em cuja obra o binômio natureza-inconsciente se apresenta de modo mais forte, é Jorge de Lima; especialmente, em Invenção de Orfeu, sua colossal epopeia, um monumento literário. Há testemunhos de que partes desse poema de longo 4 curso foram escritos em estado sonambúlico ou delirante, enquanto seu autor era consumido pela doença que o mataria. Mas já antecipara o delírio e o surrealismo na poesia nativista de Poemas negros; e, especialmente, no Livro de sonetos: Não procureis qualquer nexo naquilo que os poetas pronunciam acordados, pois eles vivem no âmbito intranquilo em que se agitam seres ignorados. (Lima 1997, p. 473)

4. Mais a respeito em meu “A escrita automática e outras escritas”, em http://www.revista.agulha.nom.br/ag54willer.htm

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Também nos sonetos, a efusão telúrica: Entre a raiz e a flor: o tempo e o espaço, e qualquer coisa além: a cor dos frutos, a seiva estuante, as folhas imprecisas e o ramo verde como um ser colaço. (idem, p. 474) Mas em Invenção de Orfeu o poeta sonâmbulo, em transe febril, desce a um mundo arquetípico, pré-verbal e pré-civilizado: O céu jamais me dê a tentação funesta de adormecer ao léu, na lomba da floresta, onde há visgo, onde certa erva sucosa e fria carnívora de certo o sono nos espia. Que culpa temos nós dessa planta de infância, de sua sedução, de seu viço e constância? [...] Minha cabeça estava em pedra, adormecida, quando me sobreveio a cena pressentida. Em sonâmbulo arriei os pés e as mãos culpados dos passos e dos gestos em vão desperdiçados. [...] (idem, p. 525) Natureza total; luxuriante, ao longo de todo o poema em que se propôs a “cantar de cantos como um novo Orfeu”: É a bela natureza com seus ouros, relembranças incertas, noviciados, fagotes bifurcados e barrocos. (idem, p. 589) Ainda a propósito de surrealistas, ou dos poetas brasileiros com maior afinidade com o surrealismo, o pensamento analógico e a sacralização do natural reaparecem em Manoel de Barros. É um poeta do microcosmo, das pequenas coisas; e, assim como os místicos, herméticos e neoplatônicos, enxerga o universo em cada coisa; o alto no baixo, o maior no menor.

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Por exemplo, em O Guardador de Águas: I O aparelho de ser inútil estava jogado no chão, quase [coberto de limos – Entram coaxos por ele dentro. Crescem jacintos sobre palavras. (O rio funciona atrás de um jacinto) Correm águas agradecidas sobre latas... O som do novilúnio sobre as latas será plano. E o cheiro azul do escaravelho, tátil. De pulo em pulo um ente abeira as pedras. Tem um cago de ave no chapéu. Seria um idiota de estrada? Urubus se ajoelham pra ele. Luar tem gula de seus trapos. (Barros 2010, p. 239) XX [...] Aranha com olho de estame no lodo se despedra. Quando chove nos braços da formiga o horizonte diminui. Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe [que os escorpiões de areia. A jia, quando chove, tinge de azul o seu coaxo. Lagartos empernam as pedras de preferência no inverno. O voo do jaburu é mais encorpado do que o voo das horas. Besouro só entra em amavios se encontra a fêmea dele [vagando por escórias... A 15 metros do arco-íris o sol é cheiroso. Caracóis não aplicam saliva em vidros; mas, nos brejos, [se embutem até o latejo. Nas brisas vem sempre um silêncio de garças. Mais alto que o escuro é o rumor dos peixes. Uma árvore bem gorjeada, com poucos segundos, passa a [fazer parte dos pássaros que a gorjeiam. Quando a rã de cor palha está para ter - ela espicha os [olhinhos para Deus. De cada 20 calangos, enlanguescidos por estrelas, 15 perdem [o rumo das grotas. Todas estas informações têm uma soberba desimportância científica [- como andar de costas. (idem, p. 253) 78 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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E, de modo quase expositivo, didático, em O livro das ignorãças, na parte intitulada “Mundo pequeno”: I O mundo meu é pequeno, Senhor. Tem um rio e um pouco de árvores. Nossa casa foi feita de costas para o rio. Formigas recortam roseiras da avó. Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas. Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves. Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os besouros pensam que estão [no incêndio. Quando o rio está começando um peixe, Ele me coisa Ele me rã Ele me árvore. De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos. (idem, p. 315) *** A Geração Beat norte-americana formou-se em ambientes metropolitanos, como 5 aquele de Nova York. Mas teve grandes cultores da natureza. Sem dúvida, entre eles está seu porta-voz, Jack Kerouac – que entra neste ensaio por ter escrito obra especificamente poética, e por haver sido, em suas narrativas, um extraordinário poeta em prosa. Maravilhava-se diante das paisagens e amplidões norte-americanas, como neste trecho de On the Road: [...] também havia amplitudes selvagens no Leste; era a mesma imensidão na qual Bem Franklin se arrastara no tempo dos carros de boi quando era agente do correio, a mesma imensidão do tempo em que George Washington era um recruta destemido que combatia os índios, quando Daniel Boone contava histórias sob lampiões na Pensilvânia e prometia encontrar a passagem no Desfiladeiro, quando Bradford abriu sua estrada e os homens subiram ruidosamente por ela construindo suas cabanas de toras. (Kerouac 2008, p. 138) E no registro de seu isolamento no topo de uma montanha em Anjos da desolação. Ou em seus “Hai-kais ocidentais”, sintéticos, em um aparente contraste com o que sua prosa tem de hiperbólico, exagerado, marcado por frases extensas:

5. A argumentação a seguir, sobre autores da Geração Beat, acompanha aquela do meu ensaio Geração beat e místicas da transgressão, peça do meu pós-doutorado.

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Pássaros cantando no escuro – Aurora chuvosa (Kerouac 1971, p. 43) O beat zen-budista Gary Snyder é autor de inúmeros poemas de louvação à natureza, como este, calcado em uma prece dos índios Mohawk, na forma de cântico: Gratidão à Mãe terra, que navega noite e dia – e a seu solo: rico, raro e doce em nossas mentes assim seja. Gratidão às Plantas, à folha voltada pro sol, que se transforma com a luz e pelos radiculares vistosos; em pé, firme, resistindo ao vento e à chuva; sua dança está no grão espiral que brota em nossas mentes que assim seja [...] Gratidão ao Grande Céu que comporta bilhões de estrelas – e vai ainda além – além de todos os poderes e pensamento e ainda está dentro de nós – Avô Espaço. A Mente é sua Esposa assim seja (Snyder 2005, p. 117) São, vários dentre eles, poemas explicitamente políticos; manifestos ambientalistas: Os EUA lentamente perderam seu mandato da metade até o fim do século vinte nunca deram às montanhas e rios, árvores e animais, um voto. [...] (idem, p. 131)

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Terá Piva, ao propor um “Sindicato da natureza”, se inspirado em Snyder? É possível. O autor de Paranoia também conhecia outro poeta beat da natureza, de especial interesse para a presente argumentação: Michael McClure, que equiparou o “eu” profundo dos místicos, a verdadeira natureza humana, a um mamífero, e não a uma entidade espiritual, extramundana ou supraterrena: QUANDO UM HOMEM NÃO ADMITE SER UM ANIMAL, ele é menos que um animal. O grande MAMÍFERO William Blake é importante pela beleza que apresenta, pela clareza da sua visão e pelo seu exemplo. [...] O homem é um mamífero se experimentando. [...] O HOMEM NÃO É UM ISÔMERO DE MAMÍFERO – ele é precisamente um mamífero. A rota para essa consciência é necessariamente biológica. A poesia é biológica. (McClure 2005, p. 134) A identificação com mamíferos e grandes predadores é ilustrada por seus poemas de glossolalias e onomatopeias, a exemplo deste trecho: [...] HUUUUUUUUUU! HUUUUUU! GRAHH! GRUUUUUUUUUUUUUH! GRUUUUUUUUH! NAHHR! MHII! Gruuuuuuuur gruhta. MUAHH! Griiiiiiiii-gruuuuuuuuuuuuuu. GARHRRRRUUUUUUUUUUUUH RHUUG CLAUBB. [...] (idem, p. 216) Em vários de seus escritos e na entrevista publicada na edição brasileira, A nova visão: de Blake aos Beats, McClure detalha e dá exemplos: [...] a não ser que nos dermos conta de que um animal é muito mais que o homem socializado considera, não teremos noção da amplitude de fronteiras e serem exploradas. [...] Eu fiz uma leitura de um poema de Ghost tantras para quatro leões num zoológico e tivemos a sorte de ter gravado os animais rugindo junto com os poemas. Mais tarde, me pediram para fazer isso novamente para um grupo de documentaristas e de novo os leões me acompanharam na leitura. [...] Há uma forte conexão entre o Ghost tantras e a minha crença de que quando um homem não admite que é um animal, ele é menos que um homem. (idem, pp. 203-205) Semelhante identificação do animal ao sagrado tem fundamento em cosmovisões, mitos e doutrinas arcaicas. Atestam-no totens, imagens teriomorfas (híbridas de animal e homem) desde as inscrições em cavernas, os “abraxas” gnósticos e divindades animalescas em uma diversidade de manifestações.

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É correta a observação de Alain Daniélou sobre o valor religioso do animal nas sociedades arcaicas, em Shiva e Dioniso: No universo cósmico, os princípios que se manifestam nos deuses, nos gênios e nos homens também aparecem no mundo animal, vegetal e mineral. [...] Alguns animais, por sua natureza e pelos símbolos que representam, são sempre associados a certos deuses. Cada aspecto do divino está ligado a uma espécie animal, como o elefante de Indra (o rei do Céu), o carneiro de Agni (deus do Fogo), o rato de Ganesha, o abutre de Vishnu, etc. Os princípios representados por Shiva e a deusa correspondem à natureza do touro, da serpente, da pantera (às vezes substituída pelo tigre e pelo leão) e, no caso, venerados em Creta. (Daniélou 1989, p. 97) O estudioso ainda associa os grandes mamíferos predadores, com aqueles com que McClure se relaciona preferencialmente, a Dioniso: Na tradição dionisíaca, o leopardo é consagrado a Dioniso e as mênades são assimiladas a panteras. [...] O carro sobre o qual se apresenta Dioniso é, às vezes, puxado por panteras. As mênades brincam com panteras (idem p. 102) O português contemporâneo Herberto Helder é um poeta total: do sagrado e do profano, da palavra, do corpo; e um poderoso poeta da natureza. Poéticas e modos de expressar-se de Helder e McClure são bem diversas. Mas é como se, em poemas da série “Selos”, de 1989, com ecos ou reminiscências de quando morou em Angola, Helder comentasse ou ilustrasse McClure: São estes – leopardo e leão: carne turva e atravessadamente rítmica a sonhar nas noites de água aos buracos. [...] Montanhas das áfricas, montanhas das árvores que sangram. Há tanto ar rodeando as árvores nas montanhas: na sua animalidade dourada, leões e leopardos compactos aligeiram-se como o ar onde crescem as montanhas. [...] Leopardos vivos debaixo das coroas, e os leões que alguém soprou na boca. Como descem o ar e a água das montanhas, como se embrenham pelas árvores sangrando no escuro – e saem ao reluzir dos dedos e aos cantos roucos, nas áfricas. (Helder 1991, p. 558)

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Em ambos, Helder e McClure, há correspondência entre o rugido das feras e dizer poemas: [...] O caos encontrava o equilíbrio dos algarismos. Talvez cantassem, leão e leopardo comigo: garras e unhas lunadas, gargantas, as mesmas pupilas bruscas, a mesma seiva, o mesmo furor dourado na escuridão. [...] (idem, ibidem) E, de modo mais incisivo, para não deixar dúvidas quanto à correspondência das vozes do animal e do poeta: [...] começa a ferver a luz como uma coroação, a realeza do poema animal – leopardo e leão. Oh, cantam em música humana, eles, no trono das montanhas das áfricas redivivas. (idem, ibidem) Não há evidência de que McClure e Helder conheçam a obra de Daniélou. E a busca de uma integração profunda com o mundo natural por McClure precede cronologicamente a publicação de Shiva e Dioniso. Mas essa foi uma das obras de cabeceira de Piva, justificando terminar o presente artigo com a citação de mais algumas de suas contribuições ao tema. Em especial, nas etapas finais de sua obra, constituída pelos livros Ciclones e Estranhos sinais de Saturno. Em Ciclones, a tônica dominante é a oposição da vida natural e urbana: piratas plantados na carne da aventura desertaremos as cidades ilhas de destroços (Piva 2008, p. 44) Manifesta-se “pelos direitos não-/humanos do planeta” (idem, p. 56), “sonhando saídas / definitivas da / cidade-sucata” (idem, p. 58), impelido pela “força do xamã” que “provém do nada / do êxtase / do Eros” (idem, p. 64), pois

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a rua é muito estreita para o exército de folhas & seu AXÉ (idem, p. 65) A primeira parte de Ciclones é composta por “flashes”, registros de instantes de encantamento: gaivotas estrelas que despencam no mar & se eclipsam (idem, p. 32) A reintegração equivale a uma experiência alucinatória: Baco me transforma num astro vibratório com este elixir de cacto selvagem (idem, p. 33) Ou: miraculosa Cannabis planta do incesto do sol com as águas (idem, p. 54)

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Em seu derradeiro livro, Estranhos sinais de Saturno, alternam-se invocações e anátemas – “Os rios revoltados saberão / vingar-se” (idem, p. 125) –, reafirmações do caráter sagrado da natureza e visões da metrópole como cenário de horror: E para que ser poeta em tempos de penúria? Exclama Hölderlin adoidado assassinos travestidos em folhagens hordas de psicopatas atirados nas praças enquanto os últimos poetas perambulam na noite acolchoada (idem, p. 149) O final de Estranhos sinais de Saturno – cronologicamente, o final de sua criação poética – é a série intitulada “Uma dimensão extrema”; sobre plantas; e todas essas plantas com uma função mágica em rituais do sincretismo afro-brasileiro ou de índios, assim propiciando ligações com o sagrado: “Guarapuvu”, “Jurema preta”, “Grumixama”, “Espinheira Santa”, “Ipê roxo” e “Pau-ferro”.

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Mas um dos poemas de Ciclones, dedicado a um pai de santo, um babalaorixá do candomblé, equivale a um manifesto; incorpora temas, categorias e tópicas expostas 6 neste ensaio. Por isso, merece completar a presente série. A observar seu ritmo, e como anáforas e repetições lhe conferem força e caráter litúrgico: Ritual dos 4 ventos & dos 4 gaviões para Marco Antonio de Ossain Eu trago os guardiães dos Circuitos Celestes Livro dos Mortos do antigo Egito Ali onde o gavião do Norte resplandece sua sombra Ali onde a aventura conserva os cascos do vodu da aurora Ali onde o arco-íris da linguagem está carregado de vinho subterrâneo Ali onde os orixás dançam na velocidade de puros vegetais Revoada de pedras do rio Olhos no circuito da Ursa Maior na investida louca Olhos de metabolismo floral Almofadas de floresta Focinho silencioso da suçuarana com passos de sabotagem Carne rica de Exu nas couraças da noite Gavião-preto do oeste na tempestade sagrada Incendiando seu crânio no frenesi das açucenas Bate o tambor no ritmo dos sonhos espantosos no ritmo dos naufrágios no ritmo dos adolescentes à porta dos hospícios no ritmo do rebanho de atabaques Bate o tambor no ritmo das oferendas sepulcrais no ritmo da levitação alquímica no ritmo da paranoia de Júpiter Caciques orgiásticos do tambor Com meu Skate-gavião Tambor na virada do século Ganimedes Iemanjá com seus cabelos de espuma 6. Minha palestra já mencionada sobre poetas e a natureza, encerrei-a com a leitura desse poema.

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Bibliografia ARAGON, Louis, O Camponês de Paris, apresentação, tradução e notas de Flávia Nascimento, Imago, Rio de Janeiro, 1996. BARROS, Manoel de, Poesia completa, São Paulo: Leya, 2010. BAUDELAIRE, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995. BLAKE, William, Canções da Inocência e da Experiência, tradução, prefácio e notas de Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves, Crisálida, Belo Horizonte, 2005. BLAKE, William, O Casamento do Céu e do Inferno, tradução de Alberto Marsicano, L&PM, Porto Alegre, 2005. DANIÉLOU, Alain, Shiva e Dioniso – a religião da natureza e do Eros, tradução de Edison Darci Heldt, São Paulo: Martins Fontes, 1989. HELDER, Herberto, Poesia toda, Lisboa: Assírio & Alvim, 1991. HUYSMANS, J. K, Às avessas, tradução e prefácio de José Paulo Paes, Companhia das Letras, São Paulo, 1987. KEROUAC, Jack, On the Road: Pé na Estrada; tradução de Eduardo Bueno, Porto Alegre: L&PM Pocket, 2004. KEROUAC, Jack, Scattered Poems, San Francisco: City Lights, 1971. LIMA, Jorge de, Poesia Completa, organização de Alexei Bueno, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1997. McCLURE, Michael, A Nova Visão de Blake aos Beats, tradução de Daniel Bueno, Luiza Leite e Sergio Cohn, Rio de Janeiro, Azougue, 2005. NERVAL, Gérard de, Aurélia, tradução e prefácio de Contador Borges, Iluminuras, São Paulo, 1991. PIVA, Roberto, Estranhos sinais de Saturno – obras reunidas, volume 3, Alcir Pécora, org, Globo, São Paulo, 2008. SNYDER, Gary, Re-habitar; organização de Luci Collin e Sergio Cohn, tradução de Luci Collin, Rio de Janeiro: Azougue, 2005.

Claudio Willer é poeta, ensaísta e tradutor. Termina seu pós-doutorado em Letras na Universidade de São Paulo.

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Entre o antropofágico e o aórgico: meditação em torno de Oswald de Andrade e Vicente Ferreira da Silva * por Rodrigo Petronio Eu Menti Dentre as tantas estórias, assim mesmo, sem h, envolvendo Oswald e Mário de Andrade, há uma especialmente divertida. Certa vez, Oswald começou a espalhar em boca pequena para muitos intelectuais o seguinte: Mário de Andrade lhe havia dito que Villa-Lobos era um péssimo compositor. Com o clima de animosidade que silenciosamente começou a cercá-lo, Mário resolveu investigar o motivo. Foi quando, estarrecido, para a sua surpresa, um amigo revelou o que Oswald andava dizendo. Obviamente, Mário nunca tinha afirmado nada sequer semelhante sobre Villa-Lobos, na sua opinião um dos maiores gênios brasileiros. Ao tirar satisfação com Oswald, este lhe retrucou: “Eu menti”. Ora, esta é a frase que Macunaíma usa quando se vê metido em alguma encrenca e não tem mais como fugir. Ao realizar a ficção, Oswald devolveu a Mário uma realidade potencializada: não é mais Macunaíma falando nas páginas da rapsódia, tampouco a verificação antropológica ou sociológica de um tipo-brasileiro macunaímico ou de uma tipologia universal do trickster. Estamos aqui no cerne daquilo que eu considero a grandeza de Oswald de Andrade. Tal como no jogo de espelhos do falso Quixote de Avellaneda, que reaparece sendo criticado pelos personagens do Quixote verdadeiro de Cervantes, que por seu turno já leram tanto a obra falsa quanto a Primeira Parte da obra verdadeira, ou seja, são, a um só tempo, leitores e habitantes da ficção, Oswald ampliou Macunaíma ao se transformar em Macunaíma. Ou seja, ao falsificá-lo. Ao degluti-lo. 1 Tal como fez com Galli Mathias, no Manifesto Antropofágico. Pois não se trata aqui de uma citação inócua, de diálogo sutil, de mimese civilizada, de imitação inexpressiva, das flatulências frias de qualquer intertextualidade, mas de apropriação canibalesca.

* Esta é a versão integral do ensaio que foi parcialmente publicado no livro Antropofagia, Hoje? Oswald de Andrade em Cena (Editora É, 2011) com organização de Jorge Ruffinelli e João Cezar de Castro Rocha. Mais informações sobre o livro estão no site: http://www.erealizacoes.com.br/livros/Antropofagia-Hoje.asp 1. Para este texto, valho-me, sobretudo, da obra que reúne os ensaios, manifestos e textos teóricos de Oswald: ANDRADE, Oswald de. A Utopia Antropofágica. Prefácio de Benedito Nunes. São Paulo: Globo, 1990. Também menciono incidentalmente outras obras de Oswald, de ficção, poesia, teatro ou outras. Porém, como escolhi uma forma bastante livre para este ensaio, para fazer jus ao espírito dos dois autores tratados, eximo-me de remeter às fontes com notas. Apenas grafo em itálico a forma aproximativa dos conceitos, quando citados. Também destaco em itálico alguns conceitos importantes para cada contexto tratado. Para evitar o excesso de notas, também me abstive de citar as fontes dos demais autores e obras referidos ao longo do texto.

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No duplo processo de ficcionalizar a ficção, esta é, por intermédio da falsificação, transformada em realidade virtual, em instância inaparente de um real que se escamoteia nas páginas dos livros, mas que por isso mesmo torna-se mais verídico do que a vida. A partir da obra ficcional de Mário, Oswald realizara uma metaficção, transformando-se no personagem do amigo e, por sua vez, no autor real do personagem que recriara. Era, daquele momento em diante, outro Macunaíma, de carne e osso. Sim: sabemos que o Quixote é uma épica da negatividade. Um monumento erguido ao equívoco e por isso um dos umbrais da modernidade. O próprio Oswald, em A Marcha das Utopias, define-o como um épico do equívoco. Porém, sejamos precisos. Aliás, sejamos imprecisos para sermos claros, como a pérola disforme que se chamava barroco, a uerruca de Plínio, o Velho. Se o equívoco nasce de uma desordem da linguagem em relação ao mundo, de uma disjunção entre palavras e coisas, isso se dá porque a própria máquina simbólica de representação do real, entendido como res extensa, externa ao eixo de representação do sujeito, mal se delineou no horizonte moderno e já começou a entrar em colapso. O equívoco nasce do jogo de espelhos, dependendo de quem o vê e a partir de que ponto o vê. Essa dinâmica da linguagem e do mundo, onde os signos e as coisas se equivocam, é um sintoma. A equivocidade anuncia uma tentativa de retorno a uma linguagem-mundo não desarticulada e a uma palavra-coisa que repousa, não em estado de dicionário, mas de corpo adâmico. Não é outra a busca de todos os primitivismos da arte moderna. É a procura de uma nova perspectiva, de uma nova escala. Da língua natural e neológica. Contra Paolo Uccello, que é uma ilusão de ótica. Contra todo trompe-l'oeil. Por uma perspectiva sentimental, intelectual, irônica, ingênua, dirá Oswald. Eis-nos devolvidos à univocidade perdida. A falsificação intencional não mutila a linguagem. Ao contrário, devolve-a à sua natureza intrínseca, aos fenômenos e à sua polissemia fundadora. É quando ela recupera seu estado de Paraíso. E se a poesia é o Paraíso da linguagem, como queria Paul Valéry, é para este espaço que toda linguagem tende ao ser poética. Eis as origens concretas e metafísicas da arte, segundo Oswald. Eis a volta ao material, o sentido puro e a inocência construtiva descritas em Memórias de João Miramar.2 Eis que ele pode formular a bela frase: o estado de inocência substituindo o estado de graça pode ser uma atitude do espírito. Assim, essa ficção ao quadrado encarna uma realidade mais profunda, dando a Mário o reverso verídico de sua própria ficção concretizada: a face negativa da obra é a sombra positiva do mito latente que ela oculta. Em outras palavras, o que Mário realizara em literatura, Oswald mitificara na vida. A passagem do real à ficção e desta ao mito só se dá mediante a força estranha de um personagem real que incorpora o personagem literário e lhe confere vida, elevando-o ao estatuto de mito, fazendo-o transbordar das páginas do livro. Mas essa transformação também ocorre por meio de uma desativação dos contornos representacionais do campo simbólico que, por sua vez, perde a sua exterioridade referencial e é reintegrado à esfera coletiva do mito. É a passagem do mito ao epos de que falam, cada um a sua maneira, Dumézil, Frye, Ruthven e Mielietinski. Pois se a literatura é uma mitologia privada do mundo burguês, tal como sugestivamente definiu-a Mircea Eliade, o mito é, como diz Durkheim, uma

2. NUNES, Benedito. “Antropofagia ao Alcance de Todos”. In: ANDRADE, Oswald de. A Utopia Antropofágica. Prefácio de Benedito Nunes. São Paulo: Globo, 1990.

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representação coletiva. Nesse lugar de passagem entre o Real e o Imaginário, entre a esfera privada e a representação coletiva, a noção autotélica e autônoma de indivíduo se liquida. Tal como o aórgico de Vicente Ferreira da Silva,3 conceito colhido em Hölderlin e que significa aquilo que não foi feito pelo homem, o mito é a voz do Real que emerge da mais radical heteronomia do sujeito, tal como formulada por René Girard. O mito nasce da outra voz, segundo Octavio Paz. Aquilo que nos ultrapassa e que só se revela em nós quando abandonamos qualquer pretensão de autonomia do desejo, ou seja, quando nos livramos dos pseudovalores de quaisquer humanismos canhestros. Se o homem foi, é e sempre será uma corda atada entre o nada e o infinito, se foi, é e sempre será tudo perante o nada e um nada perante o infinito, como queria Pascal, a defesa de qualquer substancialidade do sujeito se reduz a mero proselitismo. Assim, o próprio e o alheio se equivalem. A palavra nova e autêntica é sempre a mais antiga, a mais remota, de preferência sem data ou autoria: Logos Divino. O mito é o espaço no qual a Palavra se inaugura, e só o faz quando criação e citação se igualam. Quando, qual Uroboros, a hermenêutica morde o próprio rabo. Por isso, a Antropofagia é a razão mítica por excelência, por antonomásia. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Ser é imitar. Criar é deglutir. Lembrando Eliot, o mau poeta imita. O bom poeta rouba. A Polis e a Selva O leitor apressado pode se perguntar aonde quero chegar com essas divagações iniciais. Respondo: creio que, justamente por serem divagações, círculos em espiral que mais se afastam do que se aproximam do centro, elas possam nos conduzir ao cerne do pensamento de ambos os autores, bem como criar algumas pontes entre eles. E essa aproximação não se dá sem atrito, mas também não recua diante das convergências. Mesmo tendo abandonado a sua crença socialista inicial, Oswald não deixa de se fundamentar no marxismo dialético em suas formulações, embora essas se transformem bastante a partir de A Crise da Filosofia Messiânica, que é a obra de um Oswald já crítico do Partido Comunista e de boa parte do projeto soviético, sobretudo do jdanovismo. Para ele, a doutrina política da URSS era uma deformação do marxismo, justamente porque preservava, nas aristocracias bolchevistas, a essência do sistema de classes que não era capitalista, mas patriarcal. É importante notarmos aqui o teor crítico de Oswald em pleno desenvolvimento, fazendo jus a seu temperamento político e artístico baseado, antes de tudo, em um fundamental anarquismo. Assim, nessa fase, mesmo continuando marxista, Oswald é capaz de operar interessantes críticas a Marx. Elas não são contundentes e globais como as que Vicente delineia em ensaios mais abertos sobre o assunto, como 3. Para as citações da obra de Vicente Ferreira da Silva utilizo a edição de suas Obras Completas: FERREIRA DA SILVA, Vicente. Obras Completas. Organização, Introdução Geral, Bibliografia e Notas Rodrigo Petronio. São Paulo: Editora É, 2009-2010. Três Volumes: __________. Lógica Simbólica. Prefácio de Milton Vargas. Posfácio Newton da Costa. São Paulo: Editora É, 2009. __________. Dialética das Consciências. Prefácio de Miguel Reale. Posfácios Vilém Flusser e Luigi Bagolini. São Paulo: Editora É, 2009. __________. Transcendência do Mundo. Introdução Geral Rodrigo Petronio. Posfácios Julián Marías, Per Johns, Agostinho da Silva, Dora Ferreira da Silva. São Paulo: Editora É, 2010. Tal como fiz com Oswald, optei por uma forma livre de ensaio, então evito identificar todas as menções à obra de Vicente por meio de notas de rodapé. Apenas friso em itálico a noção-chave com a qual ele trabalha.

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Marxismo e Imanência. Mas realçam pontos muito importantes. Segundo Oswald, muitos são os problemas do marxismo: o teor messiânico que subjaz mesmo às suas propostas científicas, o corte minúsculo na história que ele produz, identificando a origem do capitalismo na Revolução Industrial e desligando-o das formas de acumulação anteriores, a defesa de um Estado hegeliano que, no fundo, nada mais seria do que uma decorrência da Prússia militarista. Porém, não deixa de destacar a sua grande virtude: a ligação entre história e economia. Em outras palavras, a sua leitura curiosamente reflete o que hoje em dia todos os bons leitores de Marx sabem. Na mesma tônica política, é interessante a proximidade que as interpretações de Sartre feitas por Oswald guardam com relação às de Vicente. Enquanto este colocou Sartre nas nuvens em um primeiro ensaio analisando O Ser e o Nada, anos depois saiu para a briga com o famoso texto Sartre: Equívoco Filosófico. A grande decepção de Vicente foi a politização cada vez mais rudimentar que Sartre produzia na filosofia. Oswald, em Posição de Sartre, começa fazendo uma curiosa inversão comparativa com Camus: na sua opinião, a defesa da União Soviética feita por Sartre, àquele momento, ao contrário do que se esperava, o colocava politicamente à direita, ao passo que a defesa da liberdade, empreendida por Camus, punha este à esquerda, por mais que se quisesse vincular necessariamente a defesa da liberdade a valores burgueses e a ideias abstratos de uma razão de classe. Além disso, analisando a biografia que Sartre escrevera de Genet, o poeta paulista delata um duplo equívoco: ao mesmo tempo em que Sartre se vinculava abertamente ao regime opressor soviético, posando ao lado de Aragon, que, segundo Oswald, depois de ter sido palhaço do surrealismo tornara-se clown do comunismo, Sartre defendia Genet como vítima do sistema capitalista. Por seu turno, a atitude de Genet, o seu infinito pugilismo social, para Oswald, também seria um equívoco político, pois, ao se vitimizar como escritor-ladrão fruto das latrinas pedagógicas francesas, produziu um culto da marginalidade e do herói bandido que o tornava refém dos mesmos mecanismos burgueses que ele pretendia criticar. Genet não percebeu ou hipocritamente fingia não perceber que não é uma eterna afronta à ordem sob a forma espúria de exceção que desativará a ordem. Mas sim uma efetiva transformação de sua estrutura por meios dialéticos. E aqui vem a análise preciosa de Oswald: Genet é vítima, sim. Mas vítima de seus próprios complexos patriarcais. Ora, entramos aqui em um terreno mais interessante. Porque a partir de análises como essas podemos entender que a equação de Oswald nunca se baseia nos binômios capitalismo-socialismo, natureza-técnica, progresso-regresso, nacionalinternacional, mas sim entre Patriarcado e Matriarcado, ou seja, dois regimes míticohistóricos bem mais amplos, que deitam suas origens na própria origem do homem e que produziram dois enquadramentos do real: o messianismo e a antropofagia. A dialética entre ambos é complexa, simultânea, algumas vezes não excludente, embora tenhamos recortes definidos das vigências históricas de cada um desses regimes por meio de ciclos. Por isso, mesmo continuando marxista, a abertura mítica que Oswald confere a suas teses o aproxima de Vicente, mesmo sendo este um crítico feroz do processo de reificação intelectual que o materialismo dialético produzia justamente ao sustentar uma pretensa neutralidade teórica ao se postular como verdadeira hermenêutica da história. E em seus ensaios, embora Oswald preserve muitas vezes a Celuzlose 08 • Dezembro 2011 91


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leitura do materialismo dialético, a sua nova concepção mítica dos ciclos culturais regidos pelo messianismo e pela antropofagia leva-o cada vez mais a identificar o marxismo militante a uma economia do haver e não a uma economia do ser, e, portanto, como um projeto mais patriarcal do que matriarcal. Da mesma forma, o Estado soviético, à medida que sobrepõe a hierarquia burocrática aos interesses da coletividade, deixa de ser uma etapa intermediária do processo revolucionário que conduziria ao comunismo, por meio da ditadura do proletariado, como queria Marx, e passa a ser a materialização de um estatuto patriarcal. É por isso que devemos entender a análise de Oswald sempre para além das dicotomias esquemáticas entre socialismo e capitalismo, e buscar sua essência em uma concepção mítico-religiosa, no sentido forte do termo. Além disso, por mais que sua análise sempre acabe sendo materialista, por mais que sempre parta do princípio marxista segundo o qual a forma material histórica é que produz a inteligibilidade prospectiva e retrospectiva das ideias, ou seja, apenas com a emergência do proletariado enquanto realidade histórica pôde-se descortinar a inteligibilidade do proletariado enquanto conceito transistórico e, assim, combater em seu favor, Oswald não minimiza em nada a operação inversa: a importância das ideias como motores do processo histórico. Ao contrário, a partir de A Crise da Filosofia Messiânica é essa dimensão mítica que tomará o centro de suas preocupações. A religião e o mito entendidos não como ilusão, potencializada justamente por ser uma das mais reais simulações da realidade, como queria Marx, mas concebidos como motores do real: esse é o tema que passa a assumir o centro de seus escritos. E não se trata apenas de uma inversão entre superestrutura ideológica e infraestrutura material. Tal como os idealtypen de Max Weber, a religião é tomada como matriz enformadora do real. Não é por outro motivo, portanto, que Oswald enfatiza tanto o papel desempenhado pelo protestantismo, principalmente o calvinista, na formação da cultura patriarcal. E que Lutero, Calvino, Agostinho e os temas da eleição e da predestinação sejam obsessões em seus ensaios. O Tupi e o Etrusco Mas qual o papel do selvagem em sua teoria dos ciclos históricos? Tentando radicalizar o fundamento antropológico de sua teoria, Oswald pensa no selvagem não como uma essência cultural ou nacional, mas acima de tudo como metáfora daquele que pode observar o processo civilizacional a partir de fora. Como uma espécie de radical estrangeiro no banquete da cultura. Afinal, se o acaso tivesse sido favorável, e houvesse sol ao invés de chuva, não seria o português que teria vestido o índio. Mas o índio é que teria despido o português. Sua concepção de uma cultura selvagem representa mais o desdobramento de nossa perspectiva em outra, que lhe é avessa, do que a afirmação essencialista de uma cultura. Vicente, por sua vez, embebido até a última gota no pensamento filosófico rigorosamente europeu, postulava, por outro lado, uma superação da filosofia que se daria por meio de uma metafilosofia, de um pensamento do ser que desvendasse os mecanismos arbitrários dos conceitos, dinamitando a filosofia a partir de dentro. Proximidade ek-stática ao ser que fornece o sentido da ek-sistência, do estar-fora do domínio permanente de qualquer substância (ek sistere), é a eclosão do ser que ilumina o pensamento e com isso, torna a filosofia 92 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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possível, não a filosofia que descreve a luz que fundamenta a sua própria legibilidade. Caso contrário, a filosofia corre sempre o risco de se reduzir a uma mera engenharia de conceitos, em não chegar nunca a ser um projetar fascinante que ilumina as regiões da consciência e produz os limites do pensável. Foi assim que Vicente buscou a fonte da filosofia no mito, na abertura instauradora de um sentido meta-humano anterior à linguagem, e o encontrou em muitos mitos das religiões arcaicas, sobretudo nos gregos e etruscos, que o fascinavam. Também o encontrou nos poetas modernos, que imergiam até os domínios arquetípicos da experiência-primeira, como Rilke, Saint-John Perse, Lawrence, Hölderlin. Neles de novo o pensamento retornava a sua origem, à nascente e à jusante, sempre, portanto, além e aquém das artimanhas da linguagem filosófica em seu imperialismo. Sempre na contracorrente da entificação do mundo pelo conceito. Pelos atalhos do mito e da poesia, Vicente retorna às culturas matriarcais e, àquele ventre que é tudo, segundo Rilke. Por meio do desvelar-ocludente de Heidegger, entende que a filosofia nasce como emancipação da razão, mas, também e simultaneamente, como eclipse do mito, movimento que projeta ganhos e perdas no horizonte. Há que se reconstruir a história da razão filosófica como meta-história da razão mítica, fazer do logos um enclave subsidiário do mythos, periferia de uma potência inteligível-fascinante mais ampla que, embora adormecida, continua atuante, nos interstícios da ação humana e na fonte além-humana de todas as atuações e potências adormecidas nas camadas profundas da espécie. Por seu turno, sobre a subordinação do mythos ao logos, da metafilosofia à filosofia, Oswald diria de maneira bonachona: era uma ilusão de ótica. No que concerne à filosofia, a análise de Oswald peca por superficialidade. E colide com as crenças de Vicente, pois se este acreditava que era necessário dinamitar os alicerces comprometidos da metafísica, nós só o faríamos a contento a partir de uma crítica interna e de uma revisão interior à tradição filosófica do Ocidente, nunca de fora. Não por acaso Vicente elege Heidegger, um dos mais sistemáticos críticos da metafísica, como seu mentor intelectual. Ao contrário, Oswald considera que toda teoria que parta da análise do ser enquanto ser é uma monarquia filosófica e, portanto, diz mais respeito a uma razão de classes e a uma tomada de postura política do que a uma investigação propriamente metafísica e ontológica. Em outras palavras: toda a ontologia é uma antropofagia disfarçada. Por isso, o ser enquanto tal é sempre uma forma de consciência de classe e de representação do poder. E mesmo uma noção como a de consciência transcendental, de Husserl, é também ela um retorno ao ser enquanto ser. Tal ilusão de ótica é que teria criado a filosofia ocidental em oposição ao pensamento mítico. Trata-se de uma invenção de Sócrates, aquele que, para Oswald, introduziu a senilidade no pensamento. Sócrates matou o sentido lúdico da vida. Para Oswald, contra Sócrates, temos de lutar pela conquista social do ócio. Por isso, diz o poeta paulista, sobre o homo faber, o homo viator e o homo sapiens deve prevalecer homo ludens, numa surpreendente proximidade com o conceito de moral lúdica, central na filosofia de Vicente, e colhido, sobretudo, na obra-prima Homo Ludens de Johan Huzinga, autor com o qual estabelece um diálogo dos mais fecundos. São conhecidas as diversas facetas de Oswald, como poeta, polemista, romancista, dramaturgo, vanguardista, náufrago político, ponta de lança das vanCeluzlose 08 • Dezembro 2011 93


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guardas e dos movimentos artísticos. Também se destaca muito a sua própria personalidade: difícil, fascinante, contraditória. Ou seja: a obra-vida que Oswald também nos legou, e que não é pequena. Mas, a partir dos temas que pincelei até aqui, eu arriscaria lhe agregar outra faceta, descobrir, miticamente, outro Oswald em Oswald, tal como ele descobrira outro Macunaíma em Macunaíma: o mitólogo. Mais do que isso, a meu ver, esse é o aspecto mais rico de seu legado, o grande Oswald, que amarra toda sua obra, justamente porque transcende o esquadro da literatura. A mitologia que Oswald criou nos manifestos, nas conferências e nos ensaios é aquilo que confere os contornos a seu testamento intelectual. Ela é a chave para compreendermos toda a sua obra, pois sendo esta inseparável da vida, está mergulhada do começo ao fim nas fontes indivisas onde se originam ficção e realidade. Ou seja: é toda ela uma projeção mitopoética, fonte de todas as representações, nas quais o próprio Real se inclui. Como dizia Vicente, o Mito é a instância projetiva do Real, aquilo que lhe confere inteligibilidade, ilumina-o e faz com que ele seja o que ele é. Voltando um pouco à brincadeira do Oswald-Macunaíma, ao contrário do que se pensa, há uma relação profunda entre mito e mentira, para além da concepção intelectualmente naïf de que o mito seria uma mentira sensível porque inventa coisas que não são empírica e racionalmente demonstráveis, mentira intelectual que vem desde Xenófanes de Cólofon e que no nosso tempo se cristalizou no mundo acadêmico sob o menosprezo do poder e da abrangência do mito, sempre tomado como resíduo noético a ser extirpado pelo esclarecimento dialético da razão. Porém, no que diz respeito à essencialidade da mentira, e, portanto, à sua fundamentação mítica, o antropólogo e psicanalista Ernest Becker formulou os produtivos conceitos de mentira caracteriológica e de negação da morte como sendo os pilares originários da cultura. Ao tomar ciência da morte, ao descobrir sua finitude, o homem adentra o domínio do humano. Sai da teia infinita dos processos naturais, ou seja, deixa de ser relativamente imortal enquanto natureza e sob a ótica ilusionista do continuum de sua percepção, e adquire a consciência, que se materializa como finitude. Para Becker, a mentira caracteriológica é nada mais nada menos do que toda a civilização: a arte, as instituições, a cultura, as técnicas, a política, os saberes, enfim, toda a operosidade humana no mundo tende a nascer dessa dupla articulação na qual sobrevivência e transcendência se irmanam: negamos a finitude e materializamos uma mentira para transcendermos o nosso estado de coisa mortal. Para sairmos do regime finito, criamos a ficção-mundo, que passa a ser nosso habitat, ou seja, a nossa transcendência, posto que o sobrenatural seja apenas aquilo que desativa a nossa percepção da morte, conquistada com a consciência. Como diria Nietzsche, cuja hermenêutica da suspeita vai tentar implodir justamente esse mecanismo ilusionista, durante milênios o homem arrogantemente chamou de verdade, sobrenatural e conhecimento algo que não passava de ressentimento transfigurado de sua própria incapacidade de lidar com a mortalidade. Para ele, durante milhares de anos, o homem julgou que a manobra titânica de sua revolta contra a morte pudesse ser chamada de cultura, arte, civilização, religião, quando no fundo ela nunca passou de um dos sintomas mais cristalinos do ressentimento contra um imperativo que não é categórico, mas sim cósmico, vital. Além de Nietzsche, em um enquadramento mais de crítica da cultura do que em um sentido antropológico mais amplo, Benjamin também percebeu algo semelhante, ao delatar o resíduo de barbárie que sustenta toda obra civilizada. 94 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Oswald flagrou bem essa raiz. Pois se não chega a formular uma teoria no sentido de Becker, não é outra a função que a razão lúdica, o fingimento, a anedota, a farsa, a bufonaria, a falta de caráter, no sentido macunaímico do termo, e a mescla de vida e arte operam em sua obra, para assim confirmar a essencialidade da mentira. Vicente, profundamente nietzschiano, defensor da razão vital de Ortega e do vitalismo de Max Scheler, vai entender que apenas o mergulho na dimensão ctônica e pré-formal da existência nos salva da ação nociva que a cultura e a civilização podem desempenhar quando tomadas como entidades externas à força telúrica que as anima, quando a arte for entendida como arte emancipada, como estética autônoma, no sentido kantiano, ou seja, quando ambas, arte e cultura, forem desvinculadas da matriz religiosa que as alimenta. Caso contrário, pouco ou nada as afastará da mentira. A arte, para Vicente, é uma evisceração do mito, e será tanto mais forte não quanto mais a ele retroagir, não quanto mais dele se distanciar. A evolução é para trás, o horizonte a ser conquistado é a Origem, trans-histórica e meta-histórica, não o futuro. O Lúdico e o Messiânico Portanto, nada de idealismo. Entre o mito e a mentira vai o espaço de um trocadilho. Se mentira vem de mens, mentis, que é espírito, alma, razão, a falta da mens que acarreta a mentira é a maior das virtudes, pois nos liberta da alma. Abdicar da alma, viver sem substância, ser sem haver e sem ter: essa talvez seja a utopia matriarcal de Oswald-Macunaíma, monarca de Pindorama, desalmado, sem-caráter, e por isso mesmo aberto ao mundo e à invenção do futuro. Porque se o Mito é o Nada que é Tudo, como dissera o maior poeta da língua portuguesa, é nesse registro que entra o mentiroso Oswald, glutão de meias-verdades, devorador de mentiras alheias e caçador de verdades-inteiras. Sem caráter, porém heroico, Oswald diz que compromisso e verdade são termos que gramaticalmente não concordam. Felizmente. Pois na terra dos bacharéis de anel de ouro e dedo mindinho em riste, espécie de El Dorado dos diplomados e dos diplomatas, a piada é mais profunda que a poesia, justamente porque ainda não se criou o mito da poesia nova, a visão de olhos livres que vai reinventar a poesia e inverter, por meio de uma saborosa lógica tupinambá, esse trompe-l'oeil entre o profundo e o superficial. Para tanto, há que se devorar a alta e a baixa culturas, a poesia e a piada, a santidade e a pornografia, a floresta e a escola, a igreja e a senzala, o totem e o tabu, o índio e a tecnologia, pois desde a deglutição do bispo Sardinha tudo isso interessa à vida-linguagem do Matriarcado de Pindorama. Essa é a cartilha da revolução caraíba. Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. A ficção não existe fora do mito. A poesia é a vida ficcionalizada. O resto é literatura. Isso explica, por exemplo, tanto as virtudes como os defeitos da obra de Oswald. Difícil precisar até que ponto a notável superficialidade que atravessa algumas de suas páginas é fruto de sua metafísica bárbara, da nova perspectiva e da nova escala pregada no Manifesto Pau-Brasil ou até que ponto é uma saída estratégica para não enfrentar o demônio do meio-dia que a lucidez exige. Tampouco é fácil saber em que medida essa mistura de vida e arte do Oswald-Macunaíma, heterônimo de Oswald-Pinto Calçudo, ensejou as suas guinadas políticas constantes e às vezes inconsequentes. Porém, em linhas gerais, acredito que essas oscilações criem também elas outra esfera de compreensão de sua obra, e sejam elas mesmas materializações Celuzlose 08 • Dezembro 2011 95


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de um jogo que ele estabeleceu entre o lúdico e o messiânico. E podemos colher esse ensinamento também em um mito. No hinduísmo, Māyā não é apenas o mundo como ilusão e destino, como fatum e inexorabilidade. Ela tem também a face Līlā, deusa que joga e brinca o mundo para que ele exista: das estrelas às formigas, dos homens às constelações, somos suas peças, seus brinquedos, a forma lúdica, passageira e livre do destino. A fatalidade também ri. E é justamente por essa dupla face que ela se torna ainda mais trágica do que se fosse meramente agônica, como muito bem intuiu Nietzsche. Sem o jogo não haveria existência: tudo se aniquilaria. Por isso a sua seriedade. Por isso, só somos livres no jogo, na via lúdica que suspende o juízo, a moral, os costumes. Para que voltemos a ser bárbaros e crédulos, meigos e pitorescos. O jogo nos retira do imperativo categórico para que escatologicamente saiamos do mundo e do tempo. Mais uma vez, para falar com Vicente, apenas com uma moral lúdica nos livramos da instrumentalização e recuperamos a vida em seu primeiro nascimento. Desativar o fatum pelo jogo: paradoxal e lúdica escatologia. Eis, para Oswald, a única Redenção. O Mito O mito da Antropofagia, criado por Oswald, tem diversas camadas. A mais imediata é uma divisão entre duas matrizes, a do Matriarcado e a do Patriarcado, identificadas pelo poeta, respectivamente, a duas razões míticas que regem os ciclos da história e uma espécie de morfologia cultural: a antropofágica e a messiânica. Ambas se alternam no curso do tempo, produzem distintas molduras de percepção do real, dois Weltanschauungen opositivos que tencionam a dialética histórica. Essas duas modalidades de mundo se distribuem em concepções filosóficas e soteriológicas, que visam um além e um plano de consumação futura dos tempos, seja ele terreno ou sobrenatural, e que fundamentam as crenças do que Oswald chama de filosofia messiânica, nascida no âmbito do Patriarcado. Todo movimento contrário a essa tábua de valores, ou seja, que pense a radicação transitória do homem na Terra, a despeito de seus projetos de progresso e redenção, recairia sobre o modo de vida matriarcal, sustentado pelo mito matriarcal e pela linhagem matrilinear, que se caracteriza pela inexistência da propriedade, pelas organizações coletivas e, sobretudo, pelo rito de deglutição do pai totêmico. Esses padrões históricos se articulam e se alternam, seja nos padrões coletivistas de Israel e da Idade Média, seja no caráter individualista que emerge com a Grécia e Roma e que toma forma novamente no Renascimento, vindo desaguar no Romantismo e no projeto da modernidade formador do mundo atual. Como afirma em Meu Testamento, essa dualidade entre patriarcalismo messiânico e matriarcalismo antropofágico teriam se divido, respectivamente, em termos geopolíticos nas potências políticas do hemisfério Norte (EUA, Europa, Japão), acima do Trópico de Câncer, e nos países do hemisfério Sul (China, América Latina, Índia, países da África), abaixo do Trópico de Capricórnio. A tese defendida em A Crise da Filosofia Messiânica, talvez o escrito mais importante de Oswald sobre a Antropofagia, é a de que o século XX produz um retorno às matrizes coletivas do imaginário mítico e, portanto, exige de nós novas formas, morais, comportamentais, culturais, artísticas, econômicas e políticas. O arco temporal do individualismo burguês se esgotou, e é com essa fé que ele opera a sua 96 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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utopia da devoração universal como princípio dinâmico e metafísica bárbara que lançará o mundo em um novo éon. É a palavra de guerra do antropófago transcendental, para quem o único sentido na Terra é a devoração. Porém, ao contrário de todo sonho idílico de recuperação de uma natureza perdida ou de um retorno a uma pureza selvagem adamita, essa metafísica se realizará também mediante uma devoração criativa da tecnologia, gerando uma das figuras de proa do ideal antropofágico: o bárbaro tecnizado. Em seu ensaísmo, Oswald está sempre devorando diversos conceitos e autores. É patente o tributo que ele tem com Montaigne, especialmente o capítulo “Dos Canibais”, dos Ensaios. Afinal, é uma das obras primas da narrativa antropológica, uma guinada entre a antropologia dos antigos, tais como Heródoto, e dos viajantes, e a antropologia moderna. Além do pragmatismo de William James e da obra Voronoff, Oswald também estava sintonizado com o espírito de época lançado por Spengler. Tanto que sua obra Ponta de Lança é de nítida inspiração spengleriana. Tampouco passou incólume à influência do clássico A Decadência do Ocidente, embora a sua tônica recaia sobre a altitude das realizações ocidentais, em detrimento da crítica que Oswald e outros autores lhe farão justamente nesse ponto. Embora não o cite, o tema dos ciclos mítico-históricos e das idades do mundo, como diz Schelling, retroage modernamente à Ciência Nova, obra-prima de Vico que Oswald infelizmente parece não ter conhecido. Também a análise da civilização realizada a partir da metáfora do organismo que nasce, cresce, se desenvolve e fenece, dando lugar a um novo ciclo, é uma tônica da historiografia novecentista. Mesmo o mito positivista dos três estágios está permeado dessas crenças em contínuos crescentes, embora Comte proponha a superação dos estágios anteriores pela razão positiva, tal como Hegel o faz por meio da assimilação completa do para-si ao em-si da consciência pura e da plena realização do Espírito no Absoluto. Por seu turno, tanto a ideia dos corsi e ricorsi quanto a inversão do topos evolução-progresso e involução-regresso que se manteve, sobretudo, na historiografia de extração romântica, na qual a meta não seria o Fim, mas a Origem, são afinadas às concepções proto-escatológicas de Vicente e também ao mito de um matriarcado futuro, segundo Oswald. Todas essas concepções não eram exatamente novas na época de Oswald e Vicente, e tampouco Spengler reinventou a roda. Apenas aplicou essa hermenêutica da história de modo mais sistemático e numa escala finalmente global, tal como Toynbee também o fará em sua obra monumental. Além de outro clássico de Spengler, O Homem e a Técnica, a ideia de bárbaro tecnizado veio a Oswald, sobretudo, por meio de O Mundo que Nasce, de Keyserling. Tal noção desempenha um papel importante para legitimar o que Oswald entende por matriz cultural antropofágica, em oposição à identidade cultural, tal como era proposta no Brasil por diversos movimentos nacionalistas e sociológicos. Há outros autores importantes, tais como Ludwig Klages, cuja psicologia profunda das pulsões e dos componentes corporais do inconsciente exerceu profundo impacto também sobre Vicente Ferreira da Silva. Porém, os autores que mais se destacam para a concepção da arquitetônica do pensamento de Oswald são Dacqué, Freud, Marx e, em especial, Bachofen, tanto que o poeta chega a falar em uma dimensão Bachofen do pensamento, ou seja, como se a obra deste autor fosse a pedra angular responsável por toda a dinâmica das matrizes mítico-históricas implicadas em sua análise.

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Isso é compreensivo. Acima de tudo, se lembrarmos da importância que a obra de Bachofen ainda desempenhava nos estudos de mitologia e de história das religiões das primeiras décadas do século XX. O próprio conceito de matriarcado foi retirado diretamente de Bachofen, cuja obra postula a existência mítica e jurídica de uma era presidida pela figura da mulher, uma ginecocracia no Mundo Antigo, autor e ideia nucleares também para a meditação dos princípios míticos germinativos que estão na raiz de todas as culturas, segundo a concepção de Vicente. A Grande Mãe e a Grande Deusa terríveis seriam os resíduos mais antigos que se perpetuaram ocultos nas divindades femininas posteriores. Oswald, inspirado em Bachofen, tanto em A Crise da Filosofia Messiânica quanto em Variações sobre o Matriarcado, identifica o início do Patriarcado na translação do direito materno para o paterno, expresso na Oresteia de Ésquilo por meio da submissão das Erínias, fúrias femininas vingadoras dos crimes hediondos, às leis do Estado e pela consequente absolvição de Orestes. É a Grécia clássica, da filosofia e da política ateniense, que vão produzir, segundo o poeta paulista, as bases teológicas, conceituais e metafísicas do Patriarcado ocidental, a partir da figura de Sócrates, muito criticada por Oswald, que o via como um mentor de uma ética da senilidade antecipada, contra o instinto lúdico dos jogos que sempre presidiram outras instâncias da vida grega e arcaica. Crítica, por sinal, um pouco semelhante à que Vicente faz às consequências da razão negativa socrática sobre a liberdade mítica dos tempos arcaicos. É a origem da metafísica, ou seja, a busca do ser enquanto ser que delata o espírito messiânico da empresa ocidental, ao projetar para as esferas suprassensíveis as hierarquias do poder político temporal e assim sustentar teologicamente a soberania patriarcal de uns sobre os outros. Com a assimilação recíproca entre Atenas e Jerusalém, entre a tradição judaico-cristã e a teologia grega, síntese operada à perfeição pelo apóstolo Paulo, o longo arco temporal do Patriarcado se consuma em toda a sua amplitude. Não é por acaso que o grande inimigo de Nietzsche não é tanto Jesus, mas Paulo. Para ele, o primeiro moderno. O primeiro democrata. Ou seja, o primeiro teórico do rebanho. O pugilato de Nietzsche seria, portanto, também contra o patriarcado dócil, nos quais senhores e escravos se complementam, ao invés de criarem de fato uma moral de senhores. Mas o recuo temporal dessas estruturas patriarcais pode ir bem mais longe. Como se sabe, em Totem e Tabu, Freud constrói a sua fascinante hipótese da origem da civilização. Em uma horda tribal pré-histórica, havia a vigência de um pai arcaico, macho alfa, não castrado simbolicamente, que tiranizava pela força os membros do bando além de possuir as fêmeas de maneira indistinta. Era o reino da indistinção simbólica, ou seja, da distinção arbitrária realizada não mediante regras, mas pela violência. Tal pai arcaico ainda é notado até nos limiares da história, por exemplo, na figura de Gilgamesh. Pois antes de sua viagem em busca da imortalidade, este era um rei tirano, violador voraz das mulheres de nobres e plebeus. Lei e o governante emanavam de uma mesma fonte, ainda não tinham sido separados. Para Freud, o nascimento da cultura humana se deu com uma primeira transgressão dessa ordem patriarcal primitiva, mediante o gesto literal de assassinato e devoração do pai totêmico pelos filhos-membros da comunidade. Porém, esse gesto, libertador a princípio, acarretou uma dupla incisão: a criação do tabu do incesto e do assassinato ritual. Além disso, segundo Freud, o pai morto teria se inscrito no inconsciente como Lei. A devoração não é uma aniquilação, mas uma conversão do real em virtual, do literal em 98 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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simbólico. Assimila-se o poder do objeto comido. Assimila-se também a cisão simbólica do ato de comê-lo. Agora não era mais preciso matar o pai: todos obedeceriam ao seu fantasma, animicamente inscrito na alma, marcada pela recordação traumática do gesto fundador da cultura. O parricídio canibalesco levou à interiorização da figura paterna e à criação de um superego coletivo. Nasce aqui, para Freud, a pedra angular da ordem civilizada: a culpa. Mas nasce aqui também a religião, tal como Freud a explora em Futuro de uma Ilusão e em Moisés e o Monoteísmo. Ora, para além dos elementos abstratos da dialética por meio da qual o espírito se realiza, que está no cerne do pensamento de Hegel, citado por Oswald, temos já nesse ato bárbaro dos primórdios a emergência do homem entendido como negatividade. Porque se o homem e o animal se unem na pulsão e no apetite, eles se separam mediante o trabalho que o negativo opera diferentemente em ambos. Diferente do animal, o negativo atua no ser humano não dizendo o que ele não é, mas sim dando-lhe a contrafigura daquilo que ele pode ser. Ou seja, diferente da determinação da essência animal, feita por meio da privação de uma potência, de uma ação privativa que define aquilo que ele é, em nós a dialética da negação age inscrevendo negativamente o limite do que ainda não somos, como contrafação, e o que potencialmente podemos e atualmente poderíamos ser. Em outras palavras, enquanto os animais se unem e se distinguem entre si por meio de comportamentos constantes que seguem as leis da natureza, ou seja, obedecem ao tabu de não comerem membros da mesma espécie, apenas o homem, ao cometer a primeira transgressão, ou seja, ao transgredir o tabu do assassinato do líder do bando, entra na ordem da cultura. Contraditoriamente, a violação da lei da natureza o humanizou. Paradoxalmente, por mais absurdo que isso possa parecer, apenas mediante a devoração do pai totêmico o homem sai do estado de natureza e ingressa na cultura. Mais do que isso: essa passagem da natureza à cultura, para usar aqui os cortes binários de Lévi-Strauss, é também simultaneamente o seu ingresso no domínio do sobrenatural. Essa função ritual civilizadora estabelecida pela transgressão, explorada também por outros autores, como Bataille, por exemplo, no que toca à sexualidade, é a pedra de toque do lema de Oswald: a operação metafísica que se liga ao rito antropofágico é a transformação do tabu em totem. Quando a interdição vira norma, o assassinato do pai totêmico deixa de ser expiado como culpa e eterna vigilância e passa a ser vivido como celebração. A partir dessa equação, Oswald vai ampliando o núcleo de suas indagações para uma dimensão antropológica acerca das origens da antropofagia e sobre o seu real sentido para a cultura brasileira. Tanto que ele traça uma interessante aproximação entre a antropofagia e homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda. A extroversão e o sentimentalismo do homem cordial seria um lado antropofágico da cultura brasileira, cuja ênfase recai sobre um viver no outro mais do que viver em si e para si. Como bem observou Benedito Nunes, o movimento de Oswald é o de fazer a história ser reconvertida e reassimilada à pré-história a partir de um corte transhistórico. Esse seria o modo de acesso à história universal, partindo-se da realidade brasileira: a transição do histórico ao trans-histórico, em um movimento transversal, semelhante ao postulado por Vicente Ferreira da Silva rumo àquilo que ele definia como meta-histórico e trans-histórico, pertencente à longa narrativa do ser, no interior da qual a história humana não passaria de uma breve eventualidade. O homem é uma Celuzlose 08 • Dezembro 2011 99


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antropofania, uma figura arrojada do fundo ctônico da meta-história e inserida no drama cósmico que o ultrapassa. Para o homem participar dessas potências teogônicas é preciso que ele deixe manifestar em si as forças aórgicas, ou seja, tudo aquilo que não foi feito por ele mesmo, dando voz à heteronomia radical que o constitui. Apenas ao tomar contato com aquilo que o transcende o homem adquire sua humanidade. Portanto, em um gesto essencialmente paradoxal, semelhante à transformação do tabu em totem de Oswald, para Vicente a humanidade do homem lhe é outorgada pelas instâncias projetivas transcendentes, meta-humanas, não devém de fatores culturais, biológicos, sociais, físicos e nem mesmo religiosos, embora a religião, para Vicente, seja a primeira forma temporal do Fascinator, ou seja, a primeira fascinação e a primeira inscrição teofânica que esculpe as primícias e os leves traços humanos na fronte da argila animal. Animal Estelar Essa antropodiceia de ambos os pensadores guarda aspectos dos mais fascinantes. No que concerne às fontes antropológicas, Oswald dialoga muito com a curiosa e poética tese do antropólogo Edgard Dacqué. Para este, a origem do homem seria pré-estelar. Semelhante à matéria imortal da biologia de Mendel, Morgan e Lissencko, em maior ou menor grau seguidores da teoria de Weismann, ou mesmo das instigantes visões da matéria sutil e do plasma pneumático legadas pelos gnósticos e pela alquimia, sobretudo por Paracelso, a teoria dos colaterais desenvolvida por Dacqué postula uma passagem contínua dos moluscos, peixes, sáurios, aves e mamíferos até o homem. Este, todavia, teria fixado as características das espécies precedentes, chamadas colaterais, e apenas muito tardiamente estes se teriam separado e gerado o segmento da espécie humana. Essa teoria inclusive dialoga com o chamado homúnculo de Bolk, se pensarmos que, no processo de separação dos colaterais, o homo sapiens teria sua origem arcana na fetalização dos macacos. Embora Oswald use e abuse de imagens poéticas e afirme teorias que não são totalmente averiguadas, essas teses têm aceitação no meio científico inclusive hoje em dia, a ponto de Peter Sloterdijk, um dos principais filósofos da atualidade, desenvolver uma teoria sobre a Paleopolítica, a política do período dos hominídeos, baseando-se no conceito de neotenia, ou seja, do nascimento prematuro de uma espécie que teria cindido a aglomeração cumulativa de características da espécie e produzido um novo entroncamento, cujo desdobramento teria sido o homem. Em outras palavras, o homem seria um animal que não deu certo. Contra a evolução, haveria a involução, à medida que é o erro de sequência de uma espécie inferior que teria gerado a separação das constelações genéticas e, desse sequenciamento, provavelmente tenha surgido o antropopiteco. Essa noção de involução também é muito cara a Vicente. Para ele, ao contrário do que propõem a herança do Aufklärung, o pensamento escatológico, a dialética do esclarecimento, o pensamento positivista e todas as filosofias teleológicas, o homem não surgiu de uma evolução, mas de uma involução, cujo sintoma é um afastamento da Origem por meio da qual o Fascinator, em um gesto de excentricidade, lançou-nos na cena mundana. Semelhante ao acheiropoietos, aquilo que não foi feito pelas mãos, princípio transcendente de composição do ícone do cristianismo ortodoxo, o aórgico é o não feito 100 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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por mãos humanas. Para Vicente, o aórgico é a libertação do homem do dogma do humanismo e da metafísica da subjetividade. A orgia, no sentido grego, é a celebração dionisíaca que consiste na dissolução mítica do indivíduo por meio de uma imersão na substância indestrutível que se encontra para além da vida determinada de cada ser singular, ou seja, em uma passagem mítica da vida finita e determinada (bíos) para a vida indeterminada e eterna (zoé), de acordo com o monumental Dioniso de Carl Kerényi. Mais do que a proximidade etimológica aparente entre aórgico e orgia, na acepção de Hölderlin, como o próprio artigo negativo expressa, o aórgico seria uma dimensão não orgânica da experiência vital, e, por isso, algo que ultrapassa não só aquilo que é posto pelo homem, mas até mesmo o sentido orgânico totalizador de uma physis, de uma natureza. Ora, aqui temos um aparente ruído. Se o banquete antropofágico de Oswald nos convoca a viver a organicidade até a sua última célula, a concepção aórgica de Vicente, dialogando com Hölderlin, mesmo imbuída de um forte vitalismo, parece seguir em um sentido oposto. Talvez estejamos às voltas como uma concepção semelhante à de espírito, para Max Scheler, que é a um só tempo profundamente vital e sutil. Porém, aqui entra uma diferença decisiva que Oswald estabelece em sua gramática mítica e que é uma ponte indispensável para reaproximá-los: a oposição entre antropofagia e canibalismo. Para Oswald, a antropofagia é sempre mítica e desempenha uma função metonímica: a parte devorada sempre é índice do objeto devorado e este, uma extensão material de suas virtualidades. Em outras palavras, os selvagens nunca devoram o inimigo, pois assim assimilariam apenas o cerne ruim de sua carne. Em última instância, comeriam apenas o seu corpo, como se comessem qualquer animal, e nada se passaria. Em termos rituais, seria um evento vazio. Além disso, sabe-se que há distinção entre o alimento antropofágico ritual e o alimento feito de outros animais, que não o homem. Por isso, eles devoram o que o inimigo representa: poder, força, virtude. Essa tese, corrente nos estudos antropológicos sobre antropofagia, foi flagrada com sagacidade por Oswald. E do ponto de vista filosófico ela quer dizer: o antropófago, apesar de comer literalmente o seu inimigo, não come sua carne. Para simplificar, talvez possamos dizer que ele come o seu espírito, em outras palavras, come-o enquanto modelo. E este espírito exemplar não lhe pertence. Vem de outra esfera, em um processo de atribuições que, por serem sempre feitas em torno de seres que necessariamente são carentes de substância, se realiza ao infinito. Não há termo final nesse percurso semiológico da imitação antropofágica, já que o primeiro referente, o Modelo dos modelos, a Vítima das vítimas, embora o corpo os sinalize, não estão no corpo, estão para sempre perdidos e nunca serão alcançados. Tal como o homem é pastor do ser e não senhor do ente, como Vicente diz, citando Heidegger, o inimigo do antropófago é índice do espírito, não seu detentor. Como eu havia dito, o mimetismo antropofágico se dá como extensão radical de uma concepção da não substancialidade do indivíduo. Ele devora modelos, não devora indivíduos. Não por acaso, Girard define o desejo metafísico como um desejo direcionado ao modelo, não ao objeto. Creio que, resumidamente, nesse ponto a teoria de Girard coincida com a proposta antropofágica: a apropriação do alheio não é um fim em si mesma, mas apenas a mediação da cadeia infinita de apropriações, cuja origem e o fim se desconhecem, da mesma forma que o desejo mimético, quando direcionado para um modelo, caso queira retroagir até um primeiro objeto-modelo desejado, chegaria ao Nada. Ou a Deus. Talvez por isso Oswald Celuzlose 08 • Dezembro 2011 101


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chegue a dizer: é preciso passar por um profundo ateísmo para chegar a Deus. Ou: o sobrenatural não está longe do milagre físico que a técnica cria. Do ponto de vista desenvolvido na antropologia de René Girard, baseada no desejo mimético como pedra angular, a antropofagia poderia ser entendida como mito central da cultura humana, à medida que a humanidade do homem deita raízes na heteronomia radical que constitui a sua essência. E isso se dá justamente porque ela o esvazia de substância metafísica intrínseca. Por isso, noções como inconsciente, subjetividade, expressão, originalidade, ou seja, toda a gama de termos cunhados pela mentira romântica para poder falar sobre o homem, mentira esta que é, possivelmente, apenas mais uma das mentiras caracteriológicas de que fala Becker, pode ser vista, pelo prisma de Girard, como um grande processo ilusionista e artificial de produção de profundidade. Estamos de novo, embora em outro esquadro, às voltas com o trompe-l'oeil. Erudito, sofisticado, interessante, producente e de extremo valor em diversas teorias, mas inadequado aqui. Pois a antropofagia, ao negar o estatuto substancial de todos os seres, incluídos aqui os próprios homens, põe sob parênteses toda e qualquer hierarquia potencial ou atual existente entre eles. Mais do que isso: à medida que ela é a identificação radical entre comedor e comido, entre imitador e imitado, entre fora e dentro, entre público e privado, entre sujeito e objeto, ela também produz performativamente a desativação completa de todos os mecanismos de representação. Em uma inusitada concordância com Wittgenstein, a antropofagia demonstra o fundamento tautológico do Real, tal como o filósofo austríaco demonstrara o fundamento tautológico da linguagem. Ambos, mundo e linguagem, terminam reduzidos aos seus constituintes elementares, pois se o círculo mimético ad infinitum esvazia as coisas de sua substância, tampouco os signos remetem a coisas, mas, como dizia Wittgenstein, apenas descrevem estados de coisas, flutuações do mundo, recortes provisórios, não entidades autossuficientes. Em outras palavras, ao realizar o mito, a antropofagia extingue a literatura, entendida como modo representacional de lidar com a linguagem. Civilização Canibal Mas então o que seria, para Oswald, o canibalismo? Seria a deglutição do objeto enquanto objeto. Em um sentido político, seria a exploração. Sempre que a devoração não visa um além-objeto e não se manifesta como deglutição infinita, desdobrada no horizonte ritual exemplar das não-coisas, sempre que ela visa a carne e não visa o espírito, sempre que ela visa a coisa e não o modelo, ela pode ser entendida como canibalismo. Ora, esse sentido de canibalismo se expande se levarmos em conta que ele é a expressão do próprio princípio messiânico patriarcal. Se a base do Weltanschauung patriarcal é o messianismo, ou seja, o projeto redentor milenarista que se enraíza na coisificação do movimento da vida cuja expressão máxima é a ideologia da imortalidade, esse processo de coisificação não é nada mais do que uma redução da abertura ritual antropofágica e seu consequente afunilamento no canibalismo. O canibalismo estaria para a filosofia antropofágica de Oswald como a entificação estaria para a filosofia do ser, no pensamento de Heidegger e, por conseguinte, de Vicente. Mas aqui os pensadores se aproximam e logo se separam. Porque a profunda crítica da modernidade empreendida por Vicente, ao partir de Nietzsche e Heidegger, estabelece 102 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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como pedras de toque, respectivamente, o princípio de entificação do ser e a constituição do ressentimento como eixos metafísicos e axiológicos do Ocidente, cujo ápice seriam a platitude da moral de rebanho das massas e o império da técnica no século XX. Um autor nuclear tanto para Oswald quanto para Vicente no que diz respeito ao declínio da civilização, além do mencionado Spengler, é um filósofo russo e um cristão agônico: Nicolai Berdiaev. Conde Berdiaev, para ser mais preciso. Esse aristocrata que se engajara na Revolução, depois a abandou, tornou-se um crítico feroz do regime e do marxismo e acabou por formular uma das obras mais singulares e densas do século XX. Escritor de primeira plana, pensador vertiginoso, espírito inquieto e sondador de abismos da alma, acima de tudo um gnóstico que pretendia ter acesso aos liames mais obscuros existentes entre o homem, o Nada e Deus, a partir do conceito de aristocracia espiritual Berdiaev produz uma filosofia que acaba pondo em consonância, por incrível que pareça, Nietzsche e Dostoiévski. O cristianismo e o anticristianismo. Oswald narra em uma passagem que, quando Camus esteve em São Paulo, ficou contente de ver os exemplares de Berdiaev e Chestov em sua biblioteca. Cita o primeiro com grande ênfase, mencionando a sua filosofia dostoiévskiana cuja indagação se concentra sobre a possibilidade de Deus errar. E transcreve-o textualmente: O ateísmo de grande estilo pode tornar-se uma retificação dialética da ideia humana de Deus. Em nome de Deus nos revoltamos contra Deus, em nome de uma melhor compreensão de Deus nos insurgimos contra uma compreensão de Deus manchada por este mundo. Como Berdiaev expõe em Metafísica Escatológica, quando temos dúvida sobre o comportamento de Deus, podemos recorrer a um princípio mais alto de justiça. Essa relativização de Deus não é ateia, de maneira nenhuma. É sim uma forma gnóstica e quase profética de entender a relação entre Deus e homem de modo também conflituoso, relação que se dá também nas recusas, dúvidas, conflitos e interrogações. Trata-se de algo semelhante à dialética quebrada que o grande teólogo Karl Barth desenvolverá mais tarde, tendo em vista conciliar a existência de Deus com a vigência do Mal. Berdiaev é um autor recorrente nas páginas de Vicente, um dos filósofos com os quais mais dialoga. Porém, por mais que a crítica da modernidade empreendida por Vicente atinja o âmago do processo paradoxal que envolve a modernização, e recorra justamente a autores da dimensão de Berdiaev e Chestov para desmascarar a platitude espiritual e política das feiras livres de felicidade barata a que se reduziram as sociedades no século XX, nesse ponto específico o pensamento de Oswald é mais atual do que o de Vicente, pois no que concerne à técnica este se manteve muito próximo de Heidegger. E o problema da técnica é, a meu ver, a grande aporia da filosofia heideggeriana: se o ser não é um dado da dimensão apriorística e, por conseguinte, emerge da vivência fática e da experiência absolutamente concreta da temporalidade, como negar a essencialidade do ser e ao mesmo tempo opô-lo radicalmente à vida da técnica? Por que o ser não eclode também na técnica? Não haveria aí uma substancialização e, desse modo, uma forçosa “naturalização” do ser, à medida que se cria uma oposição entre ser e técnica? Estaríamos diante de uma contradição performativa, como diz a filosofia da linguagem da Escola de Viena, que nega efetivamente o que afirma proposicionalmente? Afirmar o ser enquanto não-coisa e, simultaneamente, afirmar a técnica enquanto apenas-coisa, não seria uma entificação da técnica e uma exclusão sumária de todo dado técnico da ordem do ser? Em virtude Celuzlose 08 • Dezembro 2011 103


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disso, não produziríamos, por meio de uma afirmativa como esta, uma distinção essencialista entre ser e técnica? E não seria ela mesma uma entificação do ser, entendido como um ser-algo que se opõe ao ser-técnica? Esse debate é muito complexo, e é lógico que Heidegger, sendo o filósofo monumental que é, trabalha muitas sutilezas dessas distinções, incluídas aqui as suas distinções entre técnica, coisa, artefato, objeto, instrumento e instrumentalização, além da própria fenomenologia da Coisa (Das Ding) que ele opera, dentre outros ensaios, em seu conhecido ensaio sobre o assunto, e que realiza a distinção entre coisa e técnica. Porém, de modo geral, nesse quesito, Oswald consegue enfrentar melhor do que Vicente este aspecto nevrálgico do século XXI: a formação de uma sociedade técnica planetária. Essa teoria geral da técnica é uma das espinhas dorsais da Antropofagia, e talvez possamos criticá-lo justamente pelo contrário: por enaltecer a técnica e acreditar que ela possa vir a ser um instrumento de realização da utopia matriarcal e de formação de uma aldeia global antropofágica. Entretanto, devido à sua importância nuclear, talvez valha aqui uma digressão. E cotejarmos a concepção de Oswald com a de um dos principais pensadores dos dias de hoje, para ressaltar a atualidade da Antropofagia: Peter Sloterdijk. Globalização Antropofágica Ao lado de nomes como Clément Rosset, Giorgio Agamben, François Julien e René Girard, Sloterdijk é um dos maiores pensadores da atualidade. E uma das raízes de seu pensamento é a escrita de uma genealogia das técnicas, entendidas como modos de domesticação. Egresso da Teoria Crítica, o pensamento de Sloterdijk iniciou com uma meticulosa reconstrução do que ele define como razão cínica, levada a cabo em Crítica da Razão Cínica, em 1983, obra recebida pelo ambiente acadêmico e pela imprensa como um dos acontecimentos mais importantes da filosofia alemã das últimas décadas. Trata-se de uma obra seminal para se compreender a modernidade como amplificação da razão cínica que, em suas próprias palavras, pode ser definida como uma falsa consciência ilustrada. É a partir dessa constatação que ele reage às noções de sentido da história e de teleologia, ambas entendidas como motores do impulso modernizador. É a partir dessa postura crítica que o filósofo construirá a sua crítica. Distanciando-se, entretanto, desse projeto de genealogia do cinismo, a investigação de Sloterdijk passou a se focar cada vez mais na busca de uma intersecção entre alguns domínios do conhecimento, mais especificamente a Teologia, a Psicologia, a Antropologia e a Estética. Adepto explícito das grandes narrativas, Sloterdijk começa então a examinar a relação existente entre humanismo, anti-humanismo e modernidade. Sua análise de faz à luz de algumas estruturas elementares da experiência humana, notadamente o papel desempenhado pela percepção do espaço na nossa constituição simbólica, psicológica e antropológica. Esse desdobramento de sua filosofia é de extrema importância. É a partir desse núcleo de interesses que ele concebe a trilogia Esferas, sua opus magnum. E com ela inaugura uma nova linha de estudos nas ciências humanas: a esferologia. Assim, as esferas ocupam lugar proeminente em seu pensamento. Isso ocorre porque são muito mais do que simples metáforas. Ao contrário, são entendidas como 104 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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princípios ontológicos de domesticação do espaço e de translação da experiência sensória e motriz mais elementar dos seres humanos aos domínios mais complexos das esferas política, teológica, estética, bélica, entre outras. Entretanto, a despeito desse aspecto, sua obra não vê a centralidade das esferas como uma fonte apaziguadora dos conflitos subjacentes à condição humana. Muito pelo contrário. Um dos principais temas da reflexão de Sloterdijk é aquilo que poderíamos definir como o caráter irreconciliável da ontogênese humana. O que seria isso? Em linhas gerais, trata-se de uma concepção segundo a qual a própria estrutura ontológica e antropológica humana se fundaria sobre um divórcio irreversível entre o homem e as forças da natureza. Mais que isso, o modo específico de o ser humano se relacionar com essa cisão priorizaria necessariamente a sua sobrevivência concreta. Assim, como antídoto à sua condição emancipada da natureza, o homem teria efetuado uma interiorização dessas mesmas forças antagônicas não-reconciliáveis. O impulso esferológico, nesse sentido, seria a posteriori. Seria um dos tantos meios de efetuar a domesticação. Porém, a humanidade do homem estaria ligada mais ao fundo traumático de uma ruptura do que a um instinto que lhe fosse conatural. Apenas mediante uma cisão abrupta com a natureza o ser humano se humaniza, não em razão de quaisquer predisposições orgânicas positivas e naturais. Segundo esse postulado, em outras palavras, o ser humano seria, como mencionei anteriormente, um animal que não deu certo. Seja a partir de concepções gnósticas, trágicas ou céticas, que são os eixos aos quais o filósofo se refere quando aponta as linhas-mestras de seu pensamento, em todas elas e cada uma a um modo temos a encenação dramática desse princípio de não-reconciliação elevado à condição de estrutura ontológica do ser humano. É mediante essas premissas que Sloterdijk critica os dogmas e as superstições da modernidade, pois a seu ver, sob o mito da perfectibilidade humana, magistralmente 4 estudado e vastamente historiado pela obra-prima de John Passmore, eles se baseiam em uma negação da essência paradoxal, inconclusa e não-conciliável que funda a condição humana. Ora, o leitor pode se perguntar o que essa digressão sobre Sloterdijk tem a ver com Oswald de Andrade? Eu responderia: tudo. Pois o filósofo alemão, ao criticar a teleologia, o faz em um sentido similar às concepções críticas de Oswald ao messianismo patriarcal, embora em uma extensão histórica e filosófica muito mais profunda do que as intuições oswaldianas. Além disso, e este é o ponto que mais me interessa aqui, a sua esferologia também recua à passagem dos paleo-hominídeos ao homo sapiens, em uma reconstrução cuja periodicidade trabalha com longos recortes temporais, em torno de cem mil anos. Entretanto, e isto é fascinante, a obra que funciona como uma espécie de quarto volume da trilogia Esferas insere o processo da globalização nessa perspectiva milenar da esferologia.5 No fundo, a atual globalização seria apenas a criação de mecanismos mais sofisticados de expansão esferológica e

4. PASSMORE, John. A Perfectibilidade do Homem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004. 5. SLOTERDIJK, Peter. Palácio de Cristal: para uma Teoria Filosófica da Globalização. Tradução Manuel Resende. Coleção Antropos. Lisboa: Relógio D'Água, 2005.

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de criação de ambientes esféricos mais complexos, cujo resultado, literalmente, segundo Sloterdijk, é a construção de uma humanidade devoradora da Terra. É impossível resumirmos a sua teoria aqui, e nem é esse o propósito. Mas em linhas gerais, para o pensador alemão, a humanidade teria vivido o seu éon da microesferologia (bolhas), regido pelas hordas sociais (jangadas sociais), que foram o alicerce da paleopolítica. Desta fase teria passado ao domínio da macroesferologia (globos), assentada em toda a arquitetônica ptolomaica das estruturas e cartografias celestes, com todas suas conotações simbólicas, metafísicas, escatológicas, onde se desvelou horizonte da chamada política imperial. E com as navegações, adentraríamos de fato o que viria a ser os rudimentos da modernidade, ou seja, o domínio das espumas, no qual é a própria Terra que se torna o objeto da metafísica telúrica e empírica que passará a moldar as ações humanas e o próprio pensamento. Entramos aqui na era da hiperpolítica, das esferologias plurais.6 A partir dela, começa a haver o que Sloterdijk denomina transcendência horizontal: é a própria virtualização da Terra que passa a ser assunto da metafísica moderna, ou seja, de sua busca pelo domínio de todas as partes possíveis do planeta. Além disso, a exploração estelar, atômica e cosmológica efetuada pela ciência não é nada mais do que a substituição da metafísica inatingível das esferas ptolomaicas e pitagóricas por realidades empíricas imanentes, por algoritmos e variantes verificáveis. Para Sloterdijk apenas a razão cínica pretende negar o valor da técnica que descortinou tantos horizontes ao homem. Por outro lado, apenas uma razão ingênua tentaria acreditar em seu caráter redentor. O que interessa aqui é ver um aspecto: esse processo de transcendência horizontal é basicamente o mesmo que Oswald identifica tanto nos manifestos quanto em A Crise da Filosofia Messiânica e em Marcha das Utopias. Para Sloterdijk, da mesma forma que a teleologia esconde as artimanhas da razão cínica, que é a falsa consciência ilustrada; para Oswald, a linha reta do projeto messiânico e escatológico patriarcal camufla o fundo trágico da história e do homem, como forma de domesticação as lutas de poder que se dão em seu âmago. O sentido da transcendência horizontal não é distinto da devoração coletiva e de uma globalização antropofágica, que podemos depreender dos escritos e intuições de Oswald. Embora Sloterdijk seja um crítico feroz da psicanálise e a pretira em prol de uma abordagem que eu costumo definir como uma antropoteologia política e filosófica, não deixa de enfatizar o teor traumático da entrada do homem na esfera da cultura, ou seja, a ruptura com as constantes da natureza que essa entrada pressupõe. Tal como a primeira infração, o assassinato do pai arcaico freudiano, seguindo Oswald, a única forma de suspender essa marca primordial é a transformação do tabu em totem. Ou seja: voltar a ritualizar o canibalismo para transformá-lo em Antropofagia. Essa aproximação demonstra um diálogo fecundo que a mitologia de Oswald pode estabelecer com algumas teorias de ponta da filosofia atual.

6. As distinções entre paleopolítica, política imperial e hiperpolítica são encontradas na excelente obra: SLOTERDIJK, Peter. No Mesmo Barco: Ensaio sobre a Hiperpolítica. Tradução de Hélder Lourenço. Revisão Científica José Bragança de Miranda. Lisboa: Século XX, 1996.

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Mundus Lévi-Strauss, ao estudar as estruturas elementares de parentesco, baseando-se no fenômeno da retribuição, considerado o mais antigo dessas estruturas, ressaltou a permuta das mulheres entre as tribos, como forma de dádiva. Embora essas práticas remontem a um momento muito recuado da cultura humana, Oswald chega a propor que elas sejam tardias, pois já denotam uma relação patriarcal estabelecida com as mulheres, que são usadas como objetos rituais. Seriam formas, portanto, tardias em relação à ginecocracia original formulada por Bachofen, ou seja, ao sistema mítico e jurídico baseado no predomínio das deusas-mãe e na função matrilinear. Como se sabe, a função patrilinear, segundo a qual antropologicamente o pai estabelece a linhagem familiar, foi balizada por Westermarck, no século XIX, não sem trazer consigo uma gama de preconceitos e de padrões morais vitorianos bastante criticados, inclusive pelo próprio Oswald. Todo animal é um manequim indeformável de uma certa forma de honra. A frase de Giraudoux, citada por Oswald, poderia ter sido escrita por Westermarck, tamanha a congruência e a homogeneidade do moralismo novecentista.

Além de Bachofen, os estudos do grande etnólogo alemão Leo Frobenius, um dos mestres do estudo da África negra e um dos autores centrais para a mitologia filosófica de Vicente, segundo Oswald demonstram a ancestralidade do matriarcado em relação ao patriarcado, existente naquele continente. Tais pesquisas descobrem um passado onde o domínio materno não determina o filho como filho da família, mas da tribo. Da mesma forma, no ensaio Variações sobre o Matriarcado, Oswald nos lembra os estudos de Malinowski nas Ilhas Trobiand. Nas tribos trobiandesas regidas pelo estatuto materno, a figura do pai desempenha um papel muito específico, à medida que esses povos não relacionam ato amoroso e procriação. Operam, nesse sentido, em uma nítida oposição à forma patriarcal, que estabelece elos entre relação amorosa e procriadora, bem como entre o filho e a linhagem paterna. Como também lembra Oswald, em muitas culturas predomina o princípio do avunculato, que é o domínio do tio materno sobre o filho, fenômeno que não se dá apenas em realidades etnológicas distintas, mas que foi observado inclusive durante a Idade Média, encarnado na figura do bom amigo da mãe e espécie de pai sociológico. Diga-se de passagem, fenômenos estes também presentes à exaustão na literatura brasileira. Como mais de um estudioso observou, esta sofre de uma verdadeira patologia da ausência de pai, fato que nos levaria a uma enorme digressão, que não cabe aqui. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 107


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Como diz Oswald: o Ocidente elevou seus sentimentos até Deus como supremo bem e o primitivo até Deus como supremo mal. Aqui, supremo mal deve ser entendido em um único e simples sentido: a antropofagia. A devoração do outro. A devoração do humano. A devoração de um ser da mesma espécie. Entretanto, mediante todas essas explorações acerca do matriarcado, talvez possamos afirmar com certa franqueza: da mesma forma que o matriarcado é a forma mais arcaica de comunidade, o primeiro comunismo político, a antropofagia provavelmente seja a mais arcaica forma de comunhão existente na face da Terra. E aqui, penso em comunhão etimologicamente, como cum unyo, estar unido a, estar-com, ou, com Heidegger e Vicente, Mitsein, ser-com. Porém, em um sentido mais avançado, a proposta antropofágica vai ainda mais além. Não se trata de justaposição, de parataxe, de contiguidade, de metonímia. Mas numa equação que seria resumida como o verso de Rimbaud: je est un autre. O erro gramatical, bem ao gosto de Oswald, demonstra a essência da premissa: o eu não é analógica, metafórica ou metonimicamente semelhante ao outro. O eu é outro. A relação não se dá por semelhança, mas sim por identidade. Como na análise dos fundamentos tautológicos da linguagem filosófica efetuados por Wittgenstein, o princípio de identidade desmonta quaisquer tentativas de dialética ou de metafísica, pois ambas conduziriam à crença em uma univocidade possível da linguagem, sendo que esta é absolutamente equívoca e circular. Por isso, em ambos os casos, tanto na antropofagia quanto na filosofia de Vicente, há uma dissolução da relação sujeito-objeto. Seja mediante a cosmovisão antropofágica, seja mediante a clareira do ser, Origem anterior às cisões representacionais da consciência, estado que flerta com a mística. A propósito, nesses contextos teóricos, poderíamos definir a mística como uma ilha antropofágica incrustada no oceano do patriarcado messiânico, pois, segundo Oswald, Deus esvazia o paciente para depois encher o vazio com sua presença. O bárbaro tecnizado é a síntese da dialética histórica que ocorre em três tempos: homem natural, homem civilizado, bárbaro tecnizado. Ele é justamente o cidadão do matriarcado de Pindorama, o núncio de uma raça cósmica. Quando de posse desse estatuto diante do cosmos, o homem será guiado pelo sentimento órfico, pois este é uma ligação do homem com o mundo. Uma unidade sem partes separadas, que deglute tanto a natureza quanto o sobrenatural, tanto o estado bruto quanto a técnica: a isso Oswald chama de sentimento órfico que é uma dimensão do homem. O matriarcado, por seu turno, não sendo uma identidade cultural, mas uma matriz vazia de assimilações recíprocas e infinitas, não pode propor conteúdos nacionais. Só pode ser global. E diante do coletivismo dos bens de consumo proporcionados pelo desenvolvimento da tecnologia e do tribalismo das sociedades de massa ávidas de mitos estamos de novo, em plena escalada das sociedades de massa planetária, em face da utopia política de uma sociedade mais equânime. Se o aórgico que Vicente apreendeu em Hölderlin deita raízes na origem metahumana da cultura, apenas ao se negar como sujeito autônomo, ao deixar falar em si a outra voz aórgica que por meio dele sopra, o homem se realiza plenamente em sua humanidade. Paradoxalmente, o homem é homem à medida que habita a proximidade do deus, como diz Heidegger, traduzindo a bela sentença de Heráclito, citada por Vicente. Porque, paradoxalmente, o Mito é anterior ao homem, pois é impossível pensar o homem antes do Mito sem incorrer no pecado de uma grosseira entificação 108 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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biológica. Se a história do homem é apenas uma eventualidade em meio à grande odisseia que é a meta-história do ser, o aórgico é a narrativa dessa meta-história e se atualiza por meio dos homens. Por isso, a linguagem não é um instrumento do qual o homem se vale a seu bel-prazer. A linguagem é anterior e interior ao homem. No sentido heideggeriano, lembrado por Vicente, quando passamos pelo poço passamos por dentro da palavra poço. Quando passamos pela floresta passamos por dentro da palavra floresta. Tal como dizia Eudoro de Sousa, grande helenista e filósofo amigo de Vicente, se a poesia é o mito humano, a mitologia é a poesia dos deuses. Para o filósofo paulista, é nesse domínio híbrido entre o que nos é próprio e o que nos transcende, nessa transcendência radicalmente instaurada na origem metaconscienciológica da vida humana é que devemos buscar algum resíduo de verdade.

Se não há cisão positiva entre mundo e sentido, pois o sentido sempre preexiste nas coisas e, em última instância, preexiste às coisas, do ponto de vista da Antropofagia tampouco há cisão entre comedor e comido, entre sujeito e objeto. Na acepção do cristianismo primitivo, mundus queria dizer: abertura. Era a abertura no interior da qual um grupo de pessoas comungava ao se reunir. Mesmo quando o sentido não era religioso, havia mundus. Fosse ele um espaço, uma clareira, uma praça, uma cidade, o cosmos. Desde que em consonância com o espírito que animava o espaço físico, embora pudesse ser a abertura do homem diante da physis, diante de todo cosmos. Por isso, o mundus nunca é uma dimensão física, cosmológica. Mas sempre espiritual. Não é outra a acepção estoica do homem como cidadão do cosmos, noção tão bem assimilada, como todo estoicismo, pelo cristianismo antigo. A celebração da deglutição do bispo Sardinha, oficiada pelo sacerdote Oswald, mais do que um arrivismo antirreligioso, deve ser vista como a perspectiva de um novo ecumenismo planetário. Ao fazer do índice do cristianismo o corpo do sacerdote, o selvagem profanou a sua carne, mas sacralizou o seu espírito. Pois não comeu Sardinha como Sardinha, mas o Modelo enquanto Modelo. A Antropofagia é a atitude devoradora por meio da qual o selvagem incorpora a alteridade inacessível de seus deuses. Desse modo, produz uma convivência familiar com esses deuses. Na deglutição do bispo Sardinha, o Deus cristão, materializado no sacerdote, deixou de ser o supremo interdito transcendente. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 109


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Os selvagens, ao transformarem o tabu em totem, por meio da deglutição paradoxalmente cristianizaram o cristianismo. Nesse caso, ao literalizar a eucaristia o desejo mimético se instaura como desejo metafísico, como lembra Girard. Desse modo, a profanação do selvagem potencializou a mensagem cristã, pois a tirou do domínio representacional da linguagem cênico-religiosa e a devolveu para a mais profunda experiência da vida concreta e orgânica. Tal como Deus se fez carne para se tornar Cristo, Cristo se fez Deus ao se fazer carne. E só se fez Deus e Carne para habitar entre nós. Para abrir-se como mundus. Tal como a Trindade é triunívoca, o mistério da Encarnação também o é. Não há prioridade ontológica entre os termos, pois trata-se da própria Unidade divina. A pura univocidade rege todos os termos implicados no Mistério. Os sentidos ascendente e descendente, onomasiológico e semasiológico são equivalentes, pois o tornar-se Cristo pressupõe o tornar-se Carne. Da mesma forma que o tornar-se Carne pressupõe o habitar entre nós. Ou seja: o mundus. Depois da Queda, tivemos a percepção da fratura. Isso nos levou ao sagrado, como polo de restauração, precária, porém eficaz, da ordem anterior. Em nossa época, vivemos aquilo que Eliade definiu como segunda Queda: não percebemos mais o profano enquanto profano, a Queda enquanto Queda. A saída talvez seja inverter a orientação e os postulados: aprofundar ainda mais o não-sentido como modo apto a produzir o Sentido e, só assim, como diria Vicente, colonizar o futuro. Talvez seja esse o conteúdo cifrado nesta formulação de Oswald: é preciso passar por um profundo ateísmo para chegar à ideia de Deus. Ou: é preciso uma transformação permanente do tabu em totem.

No mundo globalizado e extremamente complexo das sociedades e das mídias quentes, para usar o conceito homônimo de Lévi-Strauss e de McLuhan, ou seja, sociedades e meios que estão em infinita desterritorialização, como diria Deleuze, em uma mobilização infinita, nas palavras de Sloterdijk, com inúmeras crenças, credos, ritos, povos, etnias, línguas, culturas, políticas, valores e um infinito etc., será que a Antropofagia pode ser erguida a um novo princípio religioso planetário? Será ela uma nova forma do universal? Será ela o modo mais efetivo de se reinaugurar a vigência radical da Alteridade? Como diz Oswald, socialmente, economicamente e filosoficamente só a Antropofagia nos une. E como única lei do mundo, ela é a expressão mascarada de todos os individualismos e de todos os coletivismos. 110 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Desdobrada ao infinito, espelho após espelho, devoração após devoração, será que ao fim dessa longa jornada rumo ao Nada e à completa não-substancialidade de todas as coisas acabaremos por fim nos defrontando face a face com Deus? Ad saeculum saeculorum. O fato é que na dinâmica secularizadora produzida entre patriarcado e matriarcado, entre messianismo e antropofagia, entre antropofagia e canibalismo, entre crença e agonia, entre o sagrado e o profano, a Antropofagia talvez seja um caminho para suspendermos de vez toda a opressão do homem pelo homem, para desativarmos todo ciclo sacrifical de violência, para suspendermos o linchamento de todos os bodes expiatórios que povoam a Terra. Essa talvez seja a utopia do Matriarcado. Quando a assimilação antropofágica de todos os infinitos mundi finalmente configurar um Reino, este, certamente, não será de outro mundo. Mas tampouco será deste. Porque não seremos mais iguais perante Deus. Mas sim idênticos perante o desejo.

Rodrigo Petronio é editor, escritor e professor. Autor dos livros História Natural (poemas, 2000), Transversal do Tempo (ensaios, 2002) e Assinatura do Sol (poemas, Lisboa, 2005). Lançou, pela editora A Girafa, o livro de poemas Pedra de Luz, finalista do Prêmio Jabuti 2006. Foi congratulado com o Prêmio Nacional ALB/Braskem de 2007 com a obra Venho de um País Selvagem, publicada em 2009 pela Topbooks e que foi contemplada também com o Prêmio da Fundação Biblioteca Nacional. Organizou as Obras Completas do filósofo brasileiro Vicente Ferreira da Silva (três tomos). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7536475464385205

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Vanguarda poética em Portugal por Claudio Daniel

O conceito de vanguarda sempre esteve associado ao de ruptura com a tradição, compreendida como repertório de formas históricas superadas pela evolução tecnológica e pelo sentimento de mundo das novas gerações. O entusiasmo pela sociedade urbana e industrial, pelas máquinas, pela velocidade e pelos novos meios de comunicação e de transporte, nas primeiras décadas do século XX, motivou a exigência de “uma arte verbal completamente nova”, conforme escreve Marjorie Perloff em O momento futurista — avant-garde, avant-guerre e a linguagem da ruptura (PERLOFF, 1993: 116). O “discurso tradicional”, prossegue a autora, não podia transportar-se “para essa nova linguagem de telefones, fonógrafos, aeroplanos, cinema, o grande jornal” (idem). Havia um descompasso entre a sociedade moderna e as “formas canônicas do passado”, que correspondiam a um certo “estado do mundo” e cuja “carga crítica implícita” e “grau de novidade” estariam “perdidos para sempre”, segundo escreveu o poeta e crítico uruguaio Eduardo Milán no ensaio Poesia: questão de futuro (MILÁN, 2002: 72). A revolta da modernidade contra os modelos estéticos estabelecidos pela tradição, bem como “o desejo de criar novas formas e incorporar novos temas, característica que vem motivando os artistas ocidentais desde o tempo de Baudelaire” (KOSTELANETZ, 1967: 9), levou os criadores modernos a recusarem a estabilidade, o imobilismo e a repetição em favor do inesperado, do imprevisível, do ignorado, compreendido como informação estética nova por autores como Abraham Moles, para quem a “medida da quantidade de informação” encontra-se “reduzida à medida da imprevisibilidade, isto é, a uma questão de teoria das probabilidades” (MOLES, 1969: 36). A “medida da informação”, diz Moles, “deve ser baseada na originalidade e não na significação” (idem, 41). O novo seria, portanto, o inesperado formal, aquilo que surpreende a percepção estética do espectador, por encontrar-se fora de uma cadeia 1 previsível de fenômenos. O desejo de criar novas estruturas formais, observa Richard Kostelanetz, é cúmplice do próprio devir temporal, pois acompanha processos históricos como “a I Guerra Mundial, a Depressão, a II Guerra Mundial — uma era de arte chegou a um fim somente para ser seguida, em todas as artes, por estilos consideravelmente

1. Segundo Abraham Moles, “previsibilidade é a capacidade que tem o receptor de saber, na ordem de desenvolvimento da mensagem, quer seja temporal ou espacial, o que se seguirá a partir do que foi transmitido, de extrapolar a série temporal ou espacial dos elementos da mensagem (Wiener), de imaginar o futuro de um fenômeno a partir do seu passado. Esta previsibilidade só pode ser evidentemente de natureza estatística, não tendo um aspecto absoluto e sim quantitativo; há um grau de previsibilidade que não é outra coisa senão um grau de coerência do fenômeno, uma taxa de regularidade” (MOLES, 1969: 100). Partindo das concepções de Moles, o poeta experimental português António Aragão afirma: “podemos dizer que a aventura artística caminha sempre do improvável ao possível, constantemente fazendo e refazendo este longo caminho inesgotável de previsões e imprevistos. Exatamente por isso a arte surge como um jogo necessário onde as possibilidades são incontáveis. Pelo que o acaso entra no jogo e tem uma contínua importância subjacente.” (HATHERLY, 1981: 103).

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diferentes” (KOSTELANETZ, 1967: 9). Neste aspecto, prossegue o ensaísta norte-americano, “o século XX sintetiza toda a história da arte”, e cita o historiador cultural Meyer Schapiro, para quem “importantes mudanças econômicas e políticas... são geralmente acompanhadas ou seguidas por mudanças nos centros da arte e em seus estilos” (idem). Com efeito, as transformações ocorridas na sociedade europeia entre o final do século XIX e o início do XX foram decisivas para o surgimento das primeiras vanguardas artísticas, que, em dialética contínua com a história, aliaram o projeto da revolução estética a uma expectativa de profundas mudanças sociais, o que André Breton sintetizou em sua conhecida fórmula de que era preciso unir o “mudar a vida” de Rimbaud ao “mudar o mundo” de Marx. Esta era a convicção que animou artistas e escritores das décadas de 1910 e 1920, como Apollinaire, Maiakovski, Duchamp ou Picabia, que alimentavam a “fé numa revolução próxima que fundiria arte, política e tecnologia” (PERLOFF, 1993: 73). O “momento futurista”, expressão, aliás, criada por Renato Poggioli em Teoria dell'arte di avanguardia, correspondeu a uma “breve fase utópica do modernismo inicial, quando os artistas se sentiram às vésperas de uma nova era, que seria mais excitante, mais promissora e mais inspiradora do que qualquer outra precedente” (PERLOFF, 1993: 80). Ou ainda, como escreveu Ana Hatherly no ensaio A reinvenção da leitura: “A depuração que os movimentos de vanguarda (...) têm procurado exercer no campo da literatura e das artes é o reflexo da mudança que se opera e se quer implantar na sociedade em que se produz” (HATHERLY, 1981: 150). “A literatura de vanguarda, que surge na sociedade burguesa, é antiburguesa”, diz a autora portuguesa. “Insurge-se 'contra a literatura' na medida em que esta reflete, ilustra a decadência da classe dominante, que dela se apropriou, tornando-a inoperante pelo uso rotineiro, institucionalizado, que é o da cultura oficial” (idem, 150-151). A insurgência das vanguardas contra a cultura burguesa logo assumiu o aspecto da militância política comunista ou fascista, expressões opostas do mesmo ideal de virar o mundo pelo avesso. O teórico italiano Renato Poggioli, escrevendo sobre os elementos típicos do espírito vanguardista, cita o “antagonismo: age-se contra alguma coisa ou contra alguém” (por exemplo, o estado, a burguesia, as instituições acadêmicas); o “culto da juventude” (identificada com a vitalidade, a energia, a oposição ao antigo); e a “preponderância da poética sobre a obra” (ECO: 1991, 93), ou seja, as teses defendidas nos manifestos e a concepção revolucionária da obra artística eram mais importantes do que a própria obra. A esse respeito, Umberto Eco faz uma importante distinção entre vanguarda e experimentalismo, em seu livro Sobre os espelhos e outros ensaios: “O experimentalismo joga com a obra em si, da qual qualquer um poderá extrapolar uma poética, mas que vale antes de mais nada como obra” (idem), enquanto a vanguarda “joga com o grupo de obras ou de não-obras, algumas das quais são meros exemplos de poética” (idem). A conclusão do autor italiano, concisa e severa, é que “no primeiro caso, da obra extrapola-se uma poética; no segundo caso, da poética extrapola-se a obra” (idem). A partir da definição de Eco, podemos considerar os Cantos de Pound ou o Finnegans Wake de Joyce como obras experimentais, já que tendem a uma “provocação interna à Celuzlose 08 • Dezembro 2011 113


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história de determinada instituição literária (romance como antirromance, poesia como não poesia)” (idem, 93-94). Já os manifestos de Marinetti pertencem à vanguarda, pois visam uma “provocação externa, isto é, quer que a sociedade como um todo reconheça a sua proposta como um modo ofensivo de entender as instituições culturais, artísticas e literárias” (idem).2 Em ambos os casos, porém, a contestação está presente, seja no aspecto de ativismo, que Poggioli define como “entusiasmo, fascínio pela aventura, gratuidade de fins”, seja no aspecto de niilismo, ou “desprezo pelos valores correntes” e vontade de “por abaixo os obstáculos tradicionais” (idem, 93). O ativismo das tendências surgidas nas décadas de 1910 e 1920 — futurismo, dadaísmo, surrealismo etc. — esgotou-se nas décadas subsequentes, em grande parte devido a fatores políticos: a perseguição efetuada aos artistas inovadores pelos regimes políticos totalitários e a devastação causada pela II Guerra Mundial. A primeira onda da vanguarda teve o seu fim causado pela mesma tecnologia, energia e militarismo saudados em seus manifestos. Após um período de novo realismo social, no pós-guerra, ativo especialmente no romance e no cinema, a segunda metade do século XX assistiu a uma nova onda de movimentos vanguardistas ou experimentais nas décadas de 1950-1970, com a Poesia Concreta, a Language Poetry, o Neobarroco latino-americano, o Oulipo francês e o Experimentalismo Poético Português (PO-EX), que retomaram a retórica, a pesquisa formal e o espírito utópico de seus antecessores, mas num contexto histórico distinto e aplicando diferentes vias de elaboração formal. Não é nosso propósito discutirmos cada uma dessas tendências, mas fazermos um paralelo entre o Experimentalismo Poético Português e as vanguardas históricas para apontarmos a sua condição de singularidade. O movimento da PO-EX surge numa época conturbada pela Guerra Fria, marcada por eventos como Guerra do Vietnã, os movimentos feministas e estudantis, a luta contra a discriminação racial, a expansão da contracultura e da música pop, a divulgação de filosofias orientais e por acontecimentos tecnológicos como as viagens espaciais. Portugal vivia então numa das últimas ditaduras de direita da Europa, comandada por Antônio Salazar (o outro regime autoritário era o de Francisco Franco, na Espanha), que sonhava em manter o domínio colonial em países como Angola e Moçambique e preservar um sistema nacionalista, messiânico e militarista, há muito anacrônico no continente europeu. Conforme diz Ana Hatherly, no livro Um calculador de improbabilidades, os poetas e intelectuais portugueses sentiram “uma premente necessidade de mudança e de abertura ao mundo”, mas também “uma necessidade íntima de rigor, de transparência e

2. A distinção entre experimentalismo e vanguarda não é aceita por autores como E. M. de Melo e Castro, para quem a poesia experimental “se preocupa com as bases e a evolução do ato poético e do poema como objeto. O estudo do resultado das experiências realizadas é fundamental. Nesse estudo reside de fato o valor de projeção do ato criador experimental. Por ele a poesia experimental é sinônimo de Arte de Vanguarda” (HATERLY, Ana e MELO E CASTRO, E. M.: 1981, 109).

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de audácia incomuns nesse tempo” (HATHERLY, 2005: 8-9). A PO-EX, prossegue a autora, “reflete essa conjuntura e ilustra-a à sua maneira, ao assumir uma postura de insubordinação estética e cívica”, característica de todas as tendências de vanguarda do século XX, mas é um fenômeno “peculiar na medida em que foi simultaneamente uma revolta contra o status quo local e a integração numa recusa dos valores de um establishment internacional, que se tornara intolerável para os jovens de então” (idem). O sentimento de desconforto em relação ao regime salazarista e o desejo de manifestar o repúdio na forma de uma arte inovadora foram essenciais à definição dos vetores estéticos e ideológicos da PO-EX, que tem como marcos fundadores os lançamentos das revistas Poesia Experimental, em 1964, e Operação, em 1967, além de happenings como o Concerto e Audição Pictórica (1965), a exposição coletiva VisoPoemas (1965) e a Conferência Objeto (1967), que reuniram poetas, músicos e artistas visuais. O caráter provocativo e performático desses eventos é herdeiro do espírito de transgressão das vanguardas históricas, presente na leitura do “extenso poema sonoro” Zang Tumb Tuuum por Marinetti, que “explora a capacidade do perfomer para usar a voz, gesto e entonação”, conforme diz Marjorie Perloff em O momento futurista (PERLOFF, 1993: 119), ou ainda nas intervenções de Maiakovski nos cabarés de Moscou, em que o poeta se apresentava com as faces pintadas ou com a célebre gravata amarela, conforme relata Angelo Maria Ripellino em Maiakovski e o teatro de vanguarda (1971). No Concerto e Audição Pictórica, realizado em Lisboa, em 1965, com a participação de poetas como Salette Tavares, Melo e Castro e de músicos como Jorge Peixinho, foram tocadas composições de John Cage, com a colaboração adicional de um caixão, um piano de meia cauda, instrumentos de percussão vários, balões, metrônomos, uma harpa, um piano de criança, palavras soltas, chocalhos de várias espécies, com e sem badalo, uma flauta de bisel, uma couve, um bidê, risos, pandeiretas, música de Chopin, um ré-ré, um despertador, um rolo de papel higiênico, um jarro de água, um brinquedo de corda, 2 violinos de criança (brinquedos), uma máquina de barbear elétrica, um cravo (flor), uma casa de cão que ladra (brinquedo), pratos, guizos, um apito, espaço-tempo, ritmo, luz, silêncio, uma pistola (brinquedo) (HATHERLY, 1981: 46). Já na Conferência Objeto, realizada na Galeria Quadrante, durante o lançamento das revistas Operação 1 e 2, foi preparado um ambiente para o público que recorda a técnica da instalação, com as folhas de cartolina que compunham o primeiro número da revista “dispostas na parede como numa exposição de pintura normal, suspensas de fios de nylon, mas sem moldura” (idem, 77), enquanto no chão da sala foram colocadas várias capas da OP.-1, “formando cubos em dois cantos da sala” (idem). No texto A crítica então, publicado sem crédito no livro PO-EX — Textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa, o autor afirma que, com tais provocações, a vanguarda portuguesa “atacou e ataca destrutivamente o código fossilizado da leitura sentimentalista e opressiva da língua portuguesa no momento preciso em que o Celuzlose 08 • Dezembro 2011 115


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sistema fascista dele mais se reclama”, no início da década de 1960, com o objetivo de “galvanizar o povo para as guerras do Ultramar” (HATHERLY, Ana e MELO E CASTRO, E. M. 1981: 175-176). A resistência estética era, em si mesma, um ato político, pois indicava outras possibilidades de comunicação e, portanto, de relacionamento entre indivíduo, sociedade, arte e história. A ruptura proposta pelos experimentalistas portugueses, porém, não significou uma recusa de toda a tradição literária, à maneira dos futuristas italianos, que opunham o automóvel à Vitória de Samotrácia e defendiam a destruição de museus e bibliotecas. Os experimentalistas recusavam a dicção lírico-discursiva, o sentimentalismo, a retórica, mas propunham o diálogo com o que houve de mais inventivo no passado. “Nós falamos sempre em ruptura”, diz Melo e Castro, “mas essa ruptura diz respeito a um convencionalismo que nos era imposto, nunca ruptura com uma tradição que era preciso reconstruir” (idem, 20-21). Como exemplo da reconstrução ou reinvenção do passado, diz o autor, “fomos, por exemplo, desenterrar a Poesia Barroca Portuguesa, fomos recuperar, fazer uma revisão crítica das fontes culturais que eram, por uma razão ou outra (...) sistematicamente ocultadas” (idem). E Ana Hatherly declara que “essa ruptura é uma recusa do ambiente que nos rodeia, e nunca é uma ruptura com as nossas raízes. (...) Pois, porque na verdade muitos dos meus trabalhos têm base numa espécie de quase reelaboração de maneiras de trabalhar antigas” (idem, 21). A eleição de um repertório inventivo com o qual se poderia dialogar, o repertório barroco, maneirista e dos alfabetos arcaicos, é o que distingue, essencialmente, a PO-EX das vanguardas históricas, que pretendiam criar algo totalmente novo, sem raízes em nenhuma tradição. O diálogo com o barroco, e com a forma do labirinto poético em especial, foi decisivo para a evolução do trabalho poético de Ana Hatherly. A colaboração entre poesia, música, performance e artes visuais, em direção a uma “arte total” que unisse as diferentes formas de expressão (projeto que tem como antecessores a missa barroca, o drama musical wagneriano e manifestações das vanguardas históricas, e que assumiria novas feições com a proposta concretista da linguagem verbivocovisual, neologismo criado por James Joyce e adotado no Plano-Piloto da Poesia Concreta) foi uma das preocupações centrais da PO-EX. Para a realização dessa ousada aventura que hoje nós chamaríamos de multimídia, no entanto, os experimentalistas contavam com extrema carência de recursos, compensada pelo esforço imaginativo. “Uma das características fundamentais da Poesia Experimental Portuguesa é a sua escassez de meios”, afirmou Melo e Castro numa mesa-redonda realizada na Bienal de São Paulo, em 1977 (HATHERLY, Ana e MELO E CASTRO, E. M.: 1981, 24). “Nós trabalhamos sempre com meios pobres, (...) com coisas feitas à mão por nós próprios, nunca tivemos acesso a mecanismos sofisticados — foi assim que nós enfrentamos a era eletrônica e a era cibernética” (idem). Apesar disso, os experimentalistas mantiveram-se bem-informados sobre o que havia de mais avançado na época, desde a teoria da informação, o estruturalismo, a semiótica, até as pesquisas realizadas pela vanguarda internacional, e em particular com a Poesia Concreta. Os 116 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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primeiros resultados apresentados pela PO-EX, em suas revistas e performances realizadas na década de 1960, apontam já o caminho de singularidade que seria percorrido nos anos posteriores, em que as influências concretistas foram somadas às do barroco, da caligrafia oriental e da pesquisa científica, em obras planejadas e executadas de acordo com regras específicas. Conforme escreve Ana Hatherly, Nesse tipo de criação poética (experimental) o mais significativo fator é o da experiência (...). As regras que o poeta a si próprio impõe são as regras do jogo que ele executa e persegue com ideias, palavras e atos. A obra criadora não é tanto o poema: o poema é apenas o resultado. O mais importante é o conjunto de regras que o poeta a si próprio impõe, as possibilidades desse conjunto de regras (idem, 133). O segundo número da revista Operação, que contou exclusivamente com poemas de Ana Hatherly, traz um detalhado programa em que a autora apresenta, de modo conciso, a experiência realizada em cada um dos poemas do ciclo. Assim, por exemplo, ela define o “Tipo A” como “deslocação semântica de uma palavra privilegiada num contexto”; o “Tipo E” seria a “deslocação por metáfora e metonímia”, e assim por diante (HATHERLY, 2001: 71). Esse tipo de programa é essencial ao projeto experimentalista, pois evita a leitura caótica, dispersiva, sem limites de interpretação. A obra poética experimental, concebida a partir de regras específicas, concilia a pluralidade de leituras com um planejamento rigoroso efetuado pelo poeta, que está mais preocupado com o processo criativo do que com a obra acabada. A visão estratégica da operação poética experimental, sem dúvida, afasta-se do subjetivismo expressionista, da retórica futurista, da anarquia dadá e do automatismo surrealista, aproximando-se das realizações do construtivismo russo e da noção do poema como estrutura defendida pelos poetas brasileiros do grupo Noigandres. A relação entre a PO-EX e a Poesia Concreta, porém, não foi de adesão incondicional e continuidade, havendo mesmo um momento de ruptura, no caso de Ana Hatherly, que agora vamos examinar. No ensaio A reinvenção da leitura, a autora reconhece que o movimento da Poesia Concreta “é fundamental para a evolução da leitura na medida em que contribui para que o texto deixe de ser apenas uma expressão lírico-literária para se tornar por fim uma pura combinação de sinais, estabelecendo desse modo uma nova trajetória da palavra para o signo”, alargando o âmbito de leitura “para fora dos limites literários tradicionais” (HATHERLY, Ana e MELO E CASTRO, E. M.: 1981, 147-148). No entanto, “ao pretender que o poema concreto fosse imediatamente legível (...), isto é, sem a intervenção duma leitura decifradora, os seus teorizadores condenavam-no ao esgotamento imediato” (idem, 144). Os ideais de objetividade e rapidez comunicativa da Poesia Concreta, que dialogou com a linguagem do jornal, do jingle, do outdoor, contrastava com a poesia mais cifrada, enigmática ou barroquista da poeta portuguesa, que por vezes se aproxima de uma deliberada abstração plástica, como nos Mapas da imaginação e da memória, no romance visual O escritor, em Leonorana e outras obras.

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“Para os concretistas europeus, sobretudo os germânicos e os anglo-saxões”, escreve Ana Hatherly, “a importância do aspecto formalmente visual acaba por impor-se e até sobrepor-se ao aspecto literário” (idem, 144), reatando as relações com uma “tradição da vanguarda (embora esses termos possam parecer incompatíveis) em que língua, som, imagem se confundem, derrubando declaradamente as fronteiras entre as artes” (idem). Como resultado da primazia estratégica do grafismo sobre a referencialidade, prossegue a autora, desenvolveram-se outras modalidades de poesia experimental, como “o poema visual, (...); a poesia objetiva, que implica a realização de objetos tridimensionais e a colaboração de músicos; (...); a poesia cinética,3 tátil etc.” (idem, 147), “até se alcançar o limite extremo da poesia-espetáculo, que se liga ao happening” (idem). António Aragão, poeta que participou ativamente do movimento da PO-EX, relata a experiência pioneira que realizou no campo da poesia eletrônica, com a colaboração do italiano Nanni Balestrini e de um computador da IBM, que resultou na criação de mais de três mil variações do mesmo grupo de versos. Aragão afirma, no artigo A arte como campo de possibilidades (que evidencia, já no título, o vínculo com a teoria de Abraham Moles), que “a regra de partida forneceu um princípio que originou a possibilidade. Em seguida, o cérebro IBM tentou todas as combinações” (idem, 105). Segundo o poeta português, “é indiscutível o alto nível lírico de alguns poemas. Aqui o homem fabrica o próprio calculador de possibilidades colocando-se depois como fruidor atento perante o milagre do imprevisível” (idem). A experiência pioneira desenvolvida por Aragão, numa época em que era muito difícil o acesso a sistemas de informática, teve um extraordinário desenvolvimento nas décadas posteriores, graças à revolução tecnológica, que favoreceu o surgimento da nova poesia eletrônica, ou infopoesia, que tem hoje, entre seus expoentes, o português E. M. de Melo e Castro e os brasileiros Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, Elson Fróes e André Vallias. As mídias eletrônicas oferecem suportes dinâmicos e interativos no ambiente da internet, que realiza o sonho das vanguardas históricas de unir o som, a imagem, a palavra e o movimento, transcendendo as fronteiras nacionais e os limites da escrita — ou ainda ampliando a noção de escrita para além do seu sentido convencional, como Ana Hatherly prenunciou em seus labirintos visuais, como O escritor e os Mapas da imaginação e da memória, realizados nas décadas de 1960 e 1970 com notória carência de recursos materiais.

3. Conforme Melo e Castro, a poesia cinética “propõe uma noção de sintaxe dinâmica, isto é, de uma possível e exequível modificação das relações entre os elementos simples que constituem as estruturas dos poemas, indo até a sua total modificação ou mesmo destruição — caso o utente do poema cinético o deseje. O caráter efêmero dos materiais em que estão realizados os poemas (papel e cartão) implica justamente que eles, sendo uma evolução dinâmica do 'livro', convidam muito mais a uma utilização, a um consumo e por fim a uma destruição orgânica, que a uma simples leitura ou percepção visual” (HATHERLY, Ana e MELO E CASTRO, E. M.: 1981, 159-160).

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Neste sentido, podemos considerar que a era tecnológica, ao potencializar os aspectos sonoros, imagéticos e dinâmicos da linguagem, confirma as profecias da autora portuguesa, para quem “A noção de ESCRITA alargou-se / a TUDO / a QUASE TUDO / porque a escrita é sinônimo de IMAGEM / imagem para se ver / para se ter / para se ser / Escrevo para compreender / para apreender: / a escrita é o que me revela / um mundo / o mundo” (HATHERLY, Ana. 2005: 58). As novas tecnologias, ao “reinventarem a escrita” na tela de cristal líquido, retomam, ao mesmo tempo, a antiga tradição dos calígrafos, escribas, poetas-pintores e criadores de labirintos estudados por Ana Hatherly em A experiência do prodígio, numa reconciliação entre passado e presente, tradição e modernidade.

Bibliografia CAMPOS, Augusto e Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia Concreta. São Paulo: Duas Cidades, 1965. CASTRO, E. M. de Melo. As fontes, as nuvens e o caos. Notas sobre o barroco, neobarroco e metabarroco na poesia portuguesa da 2ª. metade do século XX, artigo publicado no n. 4/5 da revista Claro Escuro. Lisboa: Quimera edições, 1990. CASTRO, E. M. de Melo, e HATHERLY, Ana. PO-EX: textos teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa. Lisboa: Moraes Editora, 1981. ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1976. ECO, Umberto. Sobre os espelhos e outros ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. HATHERLY, Ana. Um calculador de improbabilidades. Coimbra: Quimera Edições, 2001. HATHERLY, Ana, e MELO E CASTRO, E. M. PO-EX — Teóricos e documentos da poesia experimental portuguesa (com E. M. de Melo e Castro). Lisboa: Moraes Editores, 1981. HATHERLY, Ana. A experiência do prodígio — bases teóricas e antologia de textos visuais portugueses dos séculos XVII e XVIII. Lisboa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983. KOSTELANETZ, Richard. Novos rumos das artes. Rio de Janeiro: Lidador, 1967. MILÁN, Eduardo. Estação da fábula. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2001. MOLES, Abraham. Teoria da informação e percepção estética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969. PERLOFF, Marjorie. O momento futurista. São Paulo: Edusp, 1993. SILVA, Rogério Barbosa. Ana Hatherly: uma poesia em mutação. Artigo publicado na revista Et Cetera, de Curitiba, 2006, pp. 156-161.

Claudio Daniel é poeta, tradutor, ensaísta e editor da revista eletrônica Zunái www.revistazunai.com Publicou, entre outros títulos, Figuras Metálicas (Perspectiva, 2005). Blog: http://cantarapeledelontra.blogspot.com E-mail: claudio.dan@gmail.com

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Obras paralelas da literatura latino-americana: Rubén Darío e Augusto dos Anjos por Fábio Aristimunho Vargas

Em sua obra Vidas paralelas, o prosador e filósofo grego Plutarco (c. 46 - 120 d.C.) apresenta um conjunto de quarenta e seis biografias de ilustres cidadãos de origem grega e romana, tendo como base fontes tanto históricas quanto mitológicas. Seu método consistia em apresentar as biografias aos pares, narrando primeiro a vida de um grego, depois a de um romano, para em seguida estabelecer uma breve comparação entre ambas, destacando aspectos morais comuns ao caráter dos dois biografados. Com isso Plutarco logrou assentar pontos de semelhança entre, por exemplo, os heróis Teseu e Rômulo, os legisladores Licurgo e Numa, os generais Péricles e Fábio Máximo, os imperadores Alexandre e Júlio César. O grande mérito dessa obra terá sido, para além de contribuir para com a reação contra a decadência moral de Roma, reforçar a integração e a irmandade entre os mundos helênico e latino. O presente artigo busca, seguindo a lição de Plutarco, estabelecer um paralelo entre dois importantes escritores das literaturas hispano-americana e brasileira, respectivamente Rubén Darío e Augusto dos Anjos, dois autores 'relativamente' contemporâneos entre si. Apesar dos enormes contrastes biográficos, como se verá, os dois guardam importantes afinidades estéticas e temáticas em suas obras, além de terem importância ímpar para a literatura do século XX. No artigo Os brasileiros e a literatura latino-americana, publicado em 1981, o crítico brasileiro Antonio Candido alude à dificuldade de se enquadrar o Brasil na realidade cultural chamada “latino-americana”, problema que se percebe tanto no país quanto nos países de língua espanhola. Espera-se, com o presente artigo, oferecer um pequeno aporte para a integração da literatura brasileira ao que se designa por literatura latino-americana, reconhecendo-se aqui uma real dificuldade, observada em diferentes áreas do conhecimento, de se identificar aspectos que insiram o Brasil em um conjunto maior denominado América Latina. Imaginamos que semelhantes dificuldades de integração terá havido entre as culturas helênica e latina à época de Plutarco. 1 Vida e obra de Rubén Darío Félix Rubén García Sarmiento (1867–1916) nasceu na pequena cidade de Metapa, hoje Ciudad Darío, na Nicarágua. Adotou o nome literário de Rubén Darío a partir do sobrenome de um bisavô, pelo qual era conhecida a família na localidade. Apesar de suas origens periféricas, mesmo dentro do contexto latino-americano, veio a tornar-se um cidadão do mundo, realizando andanças por diversos países: El Salvador, Chile, Argentina, Brasil, Espanha, França, entre outros. 120 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Leitor e escritor precoce, educado por jesuítas, consta que escreveu seu primeiro soneto aos doze anos de idade e, pouco depois, passava a colaborar com uma revista literária. Com seu talento cada vez mais reconhecido, alguns políticos liberais tentaram levá-lo a estudar na Europa, mas teve o apoio governamental vetado em virtude de seu discurso anticlerical. Convidado a estudar em Granada, na Nicarágua, preferiu permanecer em Manágua dedicando-se ao jornalismo. Após um período em El Salvador, retornou à Nicarágua, onde encontrou trabalho na Biblioteca Nacional e passou a desenvolver intensa atividade literária. Mudou-se para o Chile em 1886, onde passou por grandes privações mas também conseguiu publicar suas primeiras obras poéticas, Abrojos (1887) e Azul... (1888), este último foi sua obra consagradora e considerada o marco inicial do Modernismo em língua espanhola. Suas influências francesas foram destacadas em duas cartas escritas por um célebre crítico literário espanhol publicadas no jornal madrileno El imparcial, cartas estas que passariam a integrar as edições posteriores de Azul..., a título de prólogo. Retornou brevemente à Manágua para em seguida instalar-se em San Salvador, onde passou a dirigir um jornal e se casou com Rafaela Contreras, sua primeira esposa, em 1890. Torna-se correspondente do jornal La Nación, de Buenos Aires, com o qual colaboraria por longos anos. No período salvadorenho testemunhou ainda um golpe de Estado e, recusando cargos que o novo governante lhe oferecera, retornou à Nicarágua, onde denuncia o golpe. No ano seguinte, mudou-se para a Costa Rica onde nasceu o primeiro filho. Buscando melhores oportunidades, passa por Guatemala, Nicarágua e, nomeado membro de uma comissão nicaraguense enviada para as comemorações do quarto centenário do descobrimento das Américas, viaja para Cuba e Espanha. Como sua esposa faleceu em 1893, casou-se com uma antiga namorada, Rosario Murillo. Sempre estabelecendo vínculos com escritores por onde passava, viajou por Panamá, Nova York, Paris e Buenos Aires, onde se estabeleceu como cônsul honorário da Colômbia e levou uma vida de excessos, com problemas de alcoolismo. Mudou-se para a Espanha como correspondente jornalista cobrindo o desastre da guerra Hispano-Americana de 1898. Lá exerceria grande influência sobre um grupo de jovens escritores que viriam a constituir a Generación del 98 e seria a responsável por introduzir o Modernismo na Espanha. Embora legalmente casado mas com a esposa distante, amasiou-se com uma camponesa espanhola, com quem teria três filhos e passaria os últimos anos de vida. Mudou-se para Paris para cobrir a Exposição Universal e em 1903 foi nomeado cônsul da Nicarágua na França, o que lhe daria maior estabilidade financeira. Publicou Cantos de vida y esperanza (1905) na Espanha. De volta à Nicarágua para se divorciar e passando por graves dificuldades econômicas, a muito custo consegue regressar à Europa com o cargo de embaixador em Madri, ao qual teve logo que renunciar ante a queda do governo do presidente Zelaya, a quem se manteve fiel. Viajou para o México, cujo presidente Porfirio Díaz se negou a recebê-lo mas cujo povo o ovacionou triunfalmente, fatos que mais tarde relacionaria com a iminente Revolução Mexicana. Em Havana, sofrendo com o alcoolismo, tentou o suicídio, e em seguida regressou a Paris, em 1910. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 121


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Em 1912, empreendeu uma turnê pela América Latina com o intuito de divulgar duas revistas que dirigia, passando por cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu e Buenos Aires. Em seguida, se estabelece em Maiorca. Em 1914, passa a viver em Barcelona, período em que padecia de alcoolismo e alucinações, tendo desenvolvido uma obsessão patológica pela ideia da morte. Publica sua última obra poética, Canto a la Argentina y otros poemas (1914). Com o início da I Guerra Mundial, decidiu retornar à América, passando por Nova York e Guatemala antes de chegar à Nicarágua, onde morreria em 13 de fevereiro de 1916 em León, a cidade onde passara a infância, aos quarenta e nove anos de idade. 2 Vida e obra de Augusto dos Anjos Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884–1914), que viria a celebrizar-se com o mais sucinto nome de Augusto dos Anjos, nasceu em Engenho Pau d'Arco, hoje município de Sapé, estado da Paraíba, no nordeste do Brasil. Descendente de uma tradicional família da decadente aristocracia rural nordestina, viveu posteriormente em Recife, mais tarde no Rio de Janeiro, então capital da República, e, por fim, no interior de Minas Gerais. Foi o pai quem lhe ensinou as primeiras letras, sendo posteriormente educado no Liceu Paraibano. Poeta precoce, consta que compôs o primeiro poema aos sete anos de idade. Em 1903, ingressou na Faculdade de Direito do Recife, uma das mais tradicionais do país, formando-se em 1907. Não seguiu, entretanto, a carreira jurídica, preferindo atuar como professor de língua portuguesa. Se no interior da Paraíba Augusto dos Anjos testemunhara a decadência de toda uma estrutura social, em decorrência das mudanças econômicas e políticas dos anos anteriores (abolição da escravatura, Proclamação da República, ampliação do trabalho assalariado), na capital do estado veio a travar contato com o cientificismo da chamada Escola do Recife, em especial as correntes materialistas e evolucionistas, que influenciariam decisivamente seu espírito e sua poesia. Casou-se com Ester Fialho em 1910. Nesse mesmo ano mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a trabalhar como professor em diversas escolas. Publica o livro Eu (1912), sua única obra editada em vida. Em 1914, transferiu-se para Leopoldina em Minas Gerais para assumir o cargo de diretor de um grupo escolar. Acometido de pneumonia, faleceu em 12 de novembro de 1914, aos trinta anos de idade. Difundiu-se certo mito de que teria morrido de tuberculose, talvez por influência romântica ou pelas menções à enfermidade em sua obra. 3 Paralelos entre Rubén Darío e Augusto dos Anjos O poeta nicaraguense Rubén Darío e o poeta brasileiro Augusto dos Anjos, duas emblemáticas figuras da literatura latino-americana, guardam entre si importantes e insuspeitas afinidades literárias, mas também enormes contrastes biográficos. São 122 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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'relativamente' contemporâneos, já que um nasceu muito antes e morreu depois que o outro; de origem periférica, os dois migraram durante a vida, um diversas vezes pela América Latina e Europa, o outro comedidamente pelo Brasil; cultivaram ambos uma poesia altamente expressiva, tributária do Simbolismo francês, que marcou a literatura do século XX; deixaram uma marca muito pessoal nas respectivas literaturas, resultando em que fosse, um, exaustivamente imitado e o outro, se mostrasse inimitável. A seguir serão comparados aspectos pontuais de suas vidas e obras e, ao final, confrontados alguns poemas de ambos os autores que versam sobre uma temática em comum, a morte. 3.1 Cruzamento biográfico Rubén Darío levou uma vida errante como poucos escritores e só por conta dessa característica biográfica, repleta de encontros e amizades com governantes e intelectuais de diversos países, talvez ele encontre paralelo apenas com um poeta que viveu seis séculos antes, Ramon Llull (1232–1316), o clérigo e intelectual maiorquino, considerado o primeiro a escrever em catalão e que em vida tinha livre trânsito com os reis, papas e imperadores e que passou boa parte dos seus dias entre os portos do Mediterrâneo, tanto do lado cristão quanto do muçulmano. Já Augusto dos Anjos integra aquele grupo de escritores que se destacam exclusivamente por sua voz. Levou uma vida pacata, sem maiores sobressaltos, embora seja relevante refletir sobre a decadência da aristocracia rural nordestina, que ele testemunhou de perto e que teve influência em sua obra que foi marcada pelo materialismo e por um negativismo existencialista. Rubén Darío viveu entre a América Latina e a Europa, partindo da periferia para o centro; da mesma forma, Augusto dos Anjos transitou pelo Brasil, da periferia para o centro. Rubén Darío teve três esposas e diversos filhos, dos quais poucos chegaram à vida adulta; Augusto dos Anjos casou-se uma vez e permaneceu casado por apenas quatro anos, até sua morte prematura; de seus três filhos, dois sobreviveram à infância. Rubén Darío viveu 49 anos bem vividos enquanto que Augusto dos Anjos viveu apenas 30 anos e morreu antes que Rubén Darío. Um ponto de confluência física entre essas duas biografias tão contrastantes é o ano de 1912, quando Augusto dos Anjos ainda vivia no Rio de Janeiro e Rubén Darío passou pela cidade para divulgar as revistas Mundial e Elegancias, as quais dirigia. Considerando-se que Rubén Darío cultivava de longa data o hábito de travar amizade com escritores locais por onde passava e que Augusto dos Anjos lançava o livro Eu nesse mesmo ano, teriam tido eles a oportunidade de se conhecer? Teria existido esse suposto encontro ou seria ele apenas mais uma hipótese não materializada, “luz que não chegou a ser lampejo”? O que teriam dito um ao outro, sobre o que teriam conversado? Infelizmente podemos apenas conjecturar a respeito.

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3.2 Cruzamento literário Rubén Darío publicou mais de vinte livros, consagrado-se em vida e gozando de reconhecimento desde muito cedo; Augusto dos Anjos publicou um único livro em vida, Eu (1912), reeditado e ampliado em 1919 com o título de Eu e outras poesias, e seu reconhecimento veio apenas postumamente, adotado pelos modernistas na década de 1920. Rubén Darío iniciou o Modernismo em língua espanhola, baseado nos princípios do simbolismo e do parnasianismo francês; Augusto dos Anjos não gerou nenhuma corrente baseada em seu estilo nem deixou seguidores de renome, sendo geralmente enquadrado na escola denominada Pré-Modernismo, embora sua obra tenha claras características tanto simbolistas quanto modernistas/vanguardistas. Rubén Darío exerceu influência marcante sobre a poesia em língua espanhola ao longo do século XX, embora não gostasse de ser imitado; Augusto dos Anjos marcou indelevelmente a poesia brasileira do século XX, mas nunca foi repetido à altura, visto ter uma voz única, exclusiva, inimitável. Rubén Darío é um dos autores latino-americanos mais publicados do último século, embora a percepção de sua importância venha decrescendo desde o “boom” da literatura latino-americana; Augusto dos Anjos é uma unanimidade de público mas relativamente subestimado pela crítica, sendo seguramente o poeta brasileiro mais lido e reeditado do século XX, superando nesse quesito nomes como Drummond, João Cabral, Bandeira e Vinícius, embora dificilmente seja citado de modo espontâneo como um dos nomes mais importantes da poesia brasileira. 3.3 Uma temática em comum: a morte A morte é um tema comum à obra dos dois poetas. Importa aqui recordar que Rubén Darío desenvolveu, em seus últimos anos de vida, uma fixação pela ideia da morte, materializada em alucinações e decorrente de seu acentuado problema de alcoolismo. Isso se reflete, por exemplo, em seu livro Cantos de vida y esperanza, lançado em 1905, que constitui uma incursão mais reflexiva e intimista de sua poesia. Já na obra de Augusto dos Anjos a morte constitui um tema absolutamente central. O poema “Lo fatal”, que fecha o livro Cantos de vida y esperanza, é um profundo questionamento sobre a existência e sobre o sentido do viver: LO FATAL Dichoso el árbol que es apenas sensitivo, Y más la piedra dura, porque ésta ya no siente, Pues no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo, Ni mayor pesadumbre que la vida consiente. Ser, y no saber nada, y ser sin rumbo cierto, y el temor de haber sido, y un futuro terror... Y el espanto seguro de estar mañana muerto, y sufrir por la vida y por la sombra y por

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lo que no conocemos y apenas sospechamos, y la carne que tienta con sus frescos racimos, y la tumba que aguarda con sus fúnebres ramos, ¡ y no saber adónde vamos, ni de dónde venimos!... (Rubén Darío, in Cantos de vida y esperanza) Permeia o poema uma atitude de espanto ante a iminência da morte e o fardo da vida, visto que “no hay dolor más grande que el dolor de ser vivo”, o que gera reflexões existencialistas. A consciência da vida é um peso insustentável, tanto mais pesado por não se saber a origem da vida nem o seu destino. Já na obra de Augusto dos Anjos a morte constitui um tema absolutamente central, legitimando considerações a respeito de seu “tanatocentrismo”. Com imagens impressionistas e um vocabulário bastante peculiar, carregado de estranhezas e cientificismos, trata de motivos ora metafísicos, ora cotidianos, sem nunca abrir mão do rigor formal e da musicalidade tributários do Parnasianismo e do Simbolismo. A atitude do poeta frente à morte não é de espanto, mas sim a de uma fria e neutra constatação de que a vida é o resultado de reações químicas e o corpo nada mais que um estado da matéria. Essa visão materialista da vida e da morte pode ser exemplificada nos dois poemas a seguir. O poema “Versos íntimos” sintetiza todo o negativismo existencialista, de matriz schopenhaueriana, que permeia a obra de Augusto dos Anjos: VERSOS ÍNTIMOS Vês! Ninguém assistiu ao formidável Enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão - esta pantera Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera! O Homem, que, nesta terra miserável, Mora, entre feras, sente inevitável Necessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro! O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija! (Augusto dos Anjos, in Eu e outras poesias) Celuzlose 08 • Dezembro 2011 125


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Já “Psicologia de um vencido” é a síntese do materialismo existencial, de base darwiniana, que caracteriza a obra de Augusto dos Anjos: PSICOLOGIA DE UM VENCIDO Eu, filho do carbono e do amoníaco, Monstro de escuridão e rutilância, Sofro, desde a epigênesis da infância, A influência má dos signos do zodíaco. Profundissimamente hipocondríaco, Este ambiente me causa repugnância... Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Que se escapa da boca de um cardíaco. Já o verme – este operário das ruínas – Que o sangue podre das carnificinas Come, e à vida em geral declara guerra, Anda a espreitar meus olhos para roê-los, E há-de deixar-me apenas os cabelos, Na frialdade inorgânica da terra! (Augusto dos Anjos, in Eu e outras poesias) O “eu” é aqui definido como “filho do carbono e do amoníaco”, ou seja, não mais que um ajuntamento de matéria. A ele se opõe o verme, que o quer decompor e retorná-lo à terra de onde se originou: “do pó ao pó...” Em outro poema, “Anseio”, o poeta questiona: “Que sou eu (...)?!”, ao que ele mesmo responde: “– Trinta e três trilhões de células vencidas, / Nutrindo uma efeméride interior”. Ou seja, novamente o “eu” é considerado sob um viés materialista, constituído tão-somente por um aglomerado de células que sustenta uma consciência fugaz, uma existência passageira, “uma efeméride interior”. O cientificismo é outro importante traço da poesia de Augusto dos Anjos. Emprega com gosto termos técnicos da ciência da época, fossem de conhecimento do leigo ou apenas de especialistas na área referida. Em diversos casos são termos datados, não mais usuais na ciência atual; já em outros momentos a referência se torna obscura e resulta muitas vezes indecifrável para o leitor moderno, como nesta passagem de Augusto dos Anjos: “Também, das diatomáceas da lagoa A criptógama cápsula se esbroa Ao contato de bronca destra forte!” (Budismo moderno)

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Augusto dos Anjos inclusive chega ao ponto de escancarar suas fontes, mantendo um diálogo científico-literário-filosófico com seus autores de referência: “Hoffmânnicas visagens Enchiam meu encéfalo de imagens As mais contraditórias e confusas!” (O caixão fantástico) “Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...” (Os doentes) No entanto, segundo alerta Ferreira Gullar, a enorme quantidade de palavras de uso corrente presentes na poesia de Augusto dos Anjos “poderá surpreender aqueles que se habituaram – conforme as definições simplistas e errôneas – a ver em Augusto um simbolista ou um 'cientificista'; nos dois casos, um poeta afastado do cotidiano”. Só a leitura atenta de sua poesia pode revelar, “por trás desses elementos aparentes, que é na realidade doméstica, familiar e provinciana que a imaginação do poeta encontra o 1 material que transfigura”. Podemos com isso concluir que estes dois grandes poetas latino-americanos guardam entre si enormes e insuspeitas afinidades literárias, a despeito dos contrastes biográficos, a ponto de constituírem personalidades opostas. Tributários ambos do Simbolismo, Rubén Darío tem, em sua poesia, uma postura de espanto existencialista frente à morte, enquanto Augusto dos Anjos encara a vida e a morte como meros estados da matéria.

Bibliografia ANJOS, Augusto dos. Toda a poesia. Apresentação de Otto Maria Carpeaux. Estudo crítico de Ferreira Gullar. São Paulo: Paz e Terra, 1995. CANDIDO, Antonio. Os brasileiros e a literatura latino-americana. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, v. 1, dez. 1981, pp. 58-68. DARÍO, Rubén. Cantos de vida y esperanza. Prólogo de Alberto Ghiraldo. Bueno Aires: Espasa-Calpe, 1949. ______. Poesía. Introducción de Pere Gimferrer. [Barcelona?]: Planeta, 2000. FRESSIA, Alfredo. La Poesía de Augusto Dos Anjos (Brasil, 1884-1914). In: Revista La Otra, 2009. Disponível em: <www.laotrarevista.com/2009/08/la-poesia-de-augusto-dos-anjos>. Acessado em: nov. 2010. PLUTARCO. Vidas paralelas. vv. I e II. Traducción y notas Aurelio Pérez Jiménez. Barcelona: Gredos, 2001. WIKIPÉDIA. A enciclopédia livre. Disponível em: <pt.wikipedia.org>. Acessado em: jul. 2011.

Fábio Aristimunho Vargas é escritor e tradutor. Autor dos poemários Medianeira (2005), Pré-datados (2010) e O show dos bichos (no prelo). Morador da Tríplice Fronteira, em Foz do Iguaçu.

1. GULLAR, Ferreira. p. 44.

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Dante: entre o ser e o não-ser por João Ibaixe Jr.

Em sua totalidade, A Divina Comédia de Dante Alighieri, é comumente considerada uma síntese de todo o pensamento ou cosmovisão de uma época, mais especificamente do final do século XIII ao início do XIV. Porém, neste ensaio, tomamos como texto principal da nossa análise e interpretação apenas o Canto XI do Paraíso, uma vez que sabemos que a obra apresenta grande riqueza de abordagens, tanto no seu sentido poético quanto no seu conteúdo. Como instrumento de auxílio nesta leitura do trecho indicado, utilizaremos a proposta apresentada por Erich Auerbach, em seu ensaio Figura (1997), no qual ele nos remete a um modelo de análise denominado interpretação figural. Segundo o citado autor (1997:46), a ideia central de tal modelo “reside no estabelecimento de conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenas a si mesmo, mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange e preenche o primeiro”. A importância deste modo de leitura é que ele se compromete com o caráter histórico dos acontecimentos, trazendo-os a uma realidade concreta e não permitindo etéreas divagações idealistas. Ou seja, permite crítica não hegeliana da lição de Hegel para quem todo estudo é uma análise do conceito no tempo, pois recusa categorias hipersubjetivas de análise e coloca os autores, o poeta no caso, sempre num plano histórico, em que a obra aparece como uma coisa mesma para a qual se volta e da qual se retira algo vivencial para o leitor. O Canto XI do Paraíso narra o encontro entre o poeta e São Tomás de Aquino que, identificado no Canto anterior, passa a relatar a biografia, em modo muito específico, de São Francisco de Assis, entre os versos 43 a 117, concluindo com uma resposta à pergunta anterior do poeta: – por se nutrir no bem, se for cuidadosa. Divulga-se largamente que a Comédia narra não apenas a visão medieval do pós-morte, mas também o percurso necessário ao homem para o encontro com o Bem, vale dizer, o percurso do homem para a Sabedoria. Este aspecto não é mais questionado, sendo pacífico na interpretação e é daqui, portanto, que nasce o ponto que nos interessa no Canto XI. Se a obra relata o percurso para o Bem, como pode ser ele realizado mesmo por aqueles que não possuem Virgílio e Beatriz por guia? De acordo com a lição de Auerbach, vemos na obra que todos os personagens são apresentados a Dante de modo direto e a única oportunidade em que isso não ocorre está sediada no Canto XI do Paraíso, pois São Francisco tem sua vida contada de forma indireta por São Tomás. É o grande expoente da racionalidade teórica medieval, Tomás, que apresenta Francisco, por sua vez o grande expoente da prática do amor cristão daqueles tempos. Não é por outro motivo que Chesterton, ao escrever a biografia dos dois Santos, justifica seu trabalho exatamente por este aspecto: Tomás representa o ápice da sabedoria cristã e Francisco, o do amor cristão. 128 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Para responder à angústia de Dante, São Tomás relata a vida de Francisco que, nos versos 52/54, é apresentado como nascido de um raio de sol (não diga Assis... mas diga Oriente) e, depois de descrever com toda a beleza de forma e linguagem a ruptura com seu pai, nos é relatado o casamento de Francisco, com a viúva naquele momento com mais de mil anos, por todos desprezada e por ninguém mais até ali amada. Ela era a mulher de Cristo, que com ele subiu à cruz, enquanto Maria a seu pé permaneceu. Quem era essa mulher? E Tomás nos esclarece: era a Pobreza. Francisco unira-se em um profundo relacionamento com a Pobreza, a quem somente Cristo desposara. Referindo-nos uma vez mais a Auerbach, a luta de Francisco não se traduzia simplesmente pela recusa aos bens familiares, mas por uma luta para alcançar aquilo que mais desejava e amava: a Pobreza em nome do Amor. O movimento franciscano foi o mesmo de Cristo em sua história: a união com a Pobreza. Neste ponto, concluímos com Auerbach que “toda história do mundo depois de Cristo está, para Dante, contida na imagem do noivo, que vai ao encontro de sua bem-amada”. A vida de Francisco, narrada indiretamente para destacar sua missão, apresenta-se como um modelo real, de alguém que historicamente imitou Cristo. Este modelo não é simplesmente ideal ou moral, ele se concretizou no mundo, como objeto de uma procura esforçada, como uma investigação, como uma busca real. Há a superação de uma essência contemplativa, para o alcance prático de uma conduta, para a realização de uma práxis direta e imediatamente fundada na vida. É a existência que permite a imitação do modelo; não se supera a realidade, vive-se intensamente nela e dela. É no decorrer da vida que se concretiza a lição real de São Francisco. Para Auerbach, o leitor medievo tinha consciência deste modo de leitura, denominado de interpretação figural. É o leitor moderno que precisa do suporte da pesquisa para compreendê-lo. Neste momento, procuramos ir um pouco além do ensaísta alemão para cumprir a tarefa a que nos propusemos. Para o leitor contemporâneo, nesta época pós-moderna, em que a racionalidade é o único pressuposto de qualquer práxis, de qualquer vínculo social ou moral, como poderia ser aproveitada a lição de Dante? Como vimos, embora rica em sua metafísica, a concepção de Dante exige uma prática real, um exercício empírico da vida de Francisco, da mesma forma como ele a viveu. Mas o que seria hoje casar-se com a Pobreza? Em que lugar esta viúva poderia ser encontrada? Largar tudo, viver na miséria, seria a solução para uma sociedade pós-industrial, mediada por uma economia de mercado? Dante certamente jamais chegou a pensar num modelo social moderno, mas os grandes autores têm o condão de, lembrando Ítalo Calvino, nunca terminar de dizer aquilo que tinham a dizer e que devem ser lidos para entendermos quem somos. Por trás da alegoria do casamento com a Pobreza, o que há? O Amor. Cristo desposa a Pobreza por Amor e desta união decorre também Amor. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 129


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Lembremo-nos de outro modo de se compreender o Amor: a figura de Eros, que o representa na mitologia grega. Numa das principais versões, retratada, por exemplo, no Banquete de Platão, Eros nasce da união entre dois deuses, Poros e Pênia. Poros é abundância, a plenitude de recursos, enquanto Pênia representa a penúria, a paupertas, a ausência de qualquer recurso. Num banquete, Poros, embriagado com vinho – lembrando a dionisíaca atitude de relação com a vida – acaba por se aproximar de Pênia e esta proporciona a oportunidade de ambos gerarem um filho, Eros, o Amor, que para sempre fica caracterizado pela dialética entre a abundância e a pobreza. Numa sociedade consumista como a atual, fica fácil a analogia entre ter (abundância) e não ter (pobreza). Em nosso modelo hodierno, fica também fácil dizer que ter é ser e não ter é não-ser. O que isto significaria para Dante, uma vez que ele não vivia numa sociedade pós-moderna? Se Cristo era a divindade em sua dimensão histórica, ele era a representação do Todo na concretização do tempo, enquanto a Pobreza aparecia como a figura desprezada que nunca tivera nada e nunca fora nada. A união do Todo com o nada configura não só um modo de expressão entre várias mitologias, como também o princípio explicativo de formação do universo dado por várias religiões. A ideia de nada representa o oposto do ser, que é o não-ser. Mas Cristo era o divino na terra e Francisco, mais terreno ainda, era humano. O que Dante descreve é a união concreta entre um homem (ser) e o nada (não-ser), uma realidade prática, um acontecimento concreto, efetivamente real. Logo, Francisco representa a existência de um ser que se dedica e se entrega ao não-ser e sua vivência configura esta relação. Francisco é ser, enquanto a Pobreza é não-ser. Desta união, nascida pela entrega amorosa, renasce o Amor que ilumina sua trilha exemplar. Eis a lição de Dante que é figurada na suavidade do poema, lembrando Chesterton, indiretamente narrado pelo maior representante da racionalidade cristã, sobre a vida do maior representante da caridade cristã. A lição de Dante que até hoje pode ser aproveitada não se limita a ter ou não ter, mas indica o percurso para o Amor, que se encontra na relação sempre desejada e constante do ser e não-ser. O Amor, historicamente realizado na experiência narrativa da vida de Francisco, pode ser hoje vivenciado do mesmo modo. Um homem em si: Francisco, Alberto ou Pedro, é um ser, um todo em si mesmo, uma totalidade. O não-ser é sempre o outro: homem, mulher ou comunidade, pois em relação ao primeiro, não é uma totalidade; é um não-ser, pois se apresenta como um infinito campo de possibilidades. Dante – não nos esqueçamos, sempre preocupado com a vida política – nos transmite a noção de que para uma verdadeira relação na pólis há que haver a concreta relação dialética entre o ser (que cada um é) e o não-ser (que é a comunidade em que estamos representados). É da relação histórica, não ideal, entre ser e não-ser que nasce a verdadeira política ou o verdadeiro Amor. 130 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Bibliografia AUERBACH, Erich. 'Farinata e Cavalcanti'. In: Mímesis (p.151-175). São Paulo: Perspectiva, 2009. AUERBACH, Erich. Dante: poeta do mundo secular. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. AUERBACH, Erich. Ensaios de Literatura Ocidental. São Paulo: Editora 34, 2007. AUERBACH, Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997. BORGES, Jorge Luís. La Divina Comedia. In: Siete Noches -1981 (Obras Completas, vol.3, p.207-220). Buenos Aires: Emecé, 1994. BORGES, Jorge Luís. Nove Ensaios Dantescos. Lisboa: Presença, 1984. DE SANCTIS, Francesco. Ensaios Críticos. São Paulo: Nova Alexandria, 1993. ELIOT, T.S. 'Dante'. In: Selected Essays (p.237-277). London: Faber & Faber, 1953. LEWIS, R.W.B. Dante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. MANDELSTAM, Osip. Coloquio Sobre Dante. Madrid: Visor, 1996. MARTINS, Cristiano. 'A vida atribulada de Dante Alighieri'. In: ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia (p.23-97). Belo Horizonte: Itatiaia, 1979. STEINER, George. Sobre la dificultad y otros ensayos. México: Fondo de Cultura Económica, 2001. STERZI, Eduardo. Por que ler Dante. São Paulo: Globo, 2008.

João Ibaixe Jr. é escritor, tradutor e advogado. Fez pós-graduação em Filosofia e mestrado em Filosofia do Direito. É colunista da revista eletrônica Última Instância e colaborador em revistas de filosofia e crítica literária. Edita os blogues Por dentro da lei e Palavras Transgredidas.

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O que é

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O que é poesia? Foto: Giorgio Rocha

Edson Cruz (Ilhéus, BA, Brasil) é poeta, editor e revisor. Estudou Psicologia, Música e Composição e, atualmente, estuda Letras na Universidade de São Paulo. Foi um dos fundadores do portal de literatura Cronópios (www.cronopios.com.br) e editor até maio de 2009. Livros publicados: Sortilégio (Demônio Negro/Annablume, 2007) e O que é poesia? (Confraria do Vento/Calibán, 2009) Sambaqui (Crisálida, 2011). Está preparando o site MUSA RARA que em breve será uma nova opção para o debate e a divulgação literária na internet. Blog: http://sambaquis.blogspot.com E-mail: sonartes@gmail.com 52 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Calidoscópio da poética contemporânea A poesia é, de longe, a linguagem de maior potência de significação – “a mais condensada forma de expressão verbal”, no dizer de Pound –, e não é de espantar a variedade de leituras, de idiossincrasias, de práticas que permeiam a poética contemporânea e, evidente, a sua recepção. Tão diversas como o são os próprios seres e seus interesses. Ainda que todas as artes tenham a sua especificidade e complexidade, os poetas acreditam que a sua seja a mais complexa e inescrutável de todas. Bafejados pelas musas, os poetas são os seres mais suscetíveis do planeta. Eles carregam a responsabilidade, ou a pretensão, de serem as antenas da raça. E, cá pra nós, alguns realmente o são. Isso posto, perguntar-lhes à queima-roupa “o que é poesia?” poderia soar como provocação, ou, no mínimo, como um erro de avaliação e de foco. E, de fato, alguns assim o entenderam. No entanto, muitos poetas decidiram encarar o desafio da pergunta. Assim surgiu o projeto, no blog Sambaquis (http://sambaquis.blogspot.com), que instaurou o diálogo entre gerações, tradições, poetas e poéticas de forma despretensiosa e instigante. A consequência desse projeto é o livro O que é poesia?, editado pelos jovens valorosos da Confraria do Vento em parceria com a editora Calibán. No primeiro volume foram selecionados 45 poetas (de nacionalidade, calibragem e quilometragem diversas), porém, ainda há muitos outros que, possivelmente, farão parte de um segundo volume. Os poetas que agora integram esta seção da revista Celuzlose são alguns daqueles que, por motivos editoriais, não se fizeram presentes no primeiro volume do livro. Confira as respostas dadas por Gustavo Darío López a esse velho e, ainda, legítimo questionamento.

Edson Cruz Organizador

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Gustavo Darío López Nasceu em Bahía Blanca, Argentina (1959). Trabalha desde 1982 coordenando ações de gestão cultural em diversas instituições. Desde 1995, dirige a revista-objeto VOX e a coleção de livros de poesia Edições VOX. É artista plástico e curador. E-mail: senda@criba.edu.ar

O que é poesia para você? As definições de poesia me parecem sempre problemáticas porque quando queremos fechar a passagem para defini-la, automaticamente ela salta e se converte em outra coisa, diferente, distinta. Mas se quiserem, hoje diria que a poesia é uma forma de conhecimento, um instrumento de investigação e uma prática das mais elevadas para investigar a existência, o mundo, a história e o que está por vir.

O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira? Dar conta do que está olhando.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas? Em relação ao que disse antes, poderia fazer uma grande lista de poetas, mas vou escolher 3 argentinos para aproveitar a oportunidade e divulgá-los.

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Leonidas Lamborghini

Me detengo un momento por averiguación de antecedentes trato de solucionar importantísimos problemas de estado; vena mía poética susúrrame contracto planteo, combinación y remate. En vez tú no tienes voz propia ni virtud dijo y escribes sólo para yo quise decirle mentira mentira para purificarme Joaquín Gianuzzi

Poética La poesía no nace. Está allí, al alcance de toda boca para ser doblada, repetida, citada total y textualmente. Usted, al despertar esta mañana, vio cosas, aquí y allá, objetos, por ejemplo. Sobre su mesa de luz digamos que vio una lámpara, una radio portátil, una taza azul. Vio cada cosa solitaria y vio su conjunto. Todo eso ya tenía nombre. Lo hubiera escrito así. ¿Necesitaba otro lenguaje, otra mano, otro par de ojos, otra flauta? No agregue. No distorsione. No cambie la música de lugar. Poesía es la que se está viendo.

La pista se rodea de todas las especies, de todos los órdenes y clases sobre todo de público en la primera fila van los relegados. Siempre algún gobernante algún guerrero ilustre, algún funcionario aventajado da el puntapié inicial entonces entro yo entrando por el aro. Tome asiento nadie debe perderse un espectáculo abro mi risa negra a función continuada. Y a la bartola haciendo de las mías en el país del tuerto es rey.

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Ricardo Zelarayan

La Gran Salina La locomotora ilumina la sal inmensa, los bloques de sal de los costados, los yuyos mezclados con sal que crecen entre las vías. Yo vacilo.... y callo.... porque estoy pensando en los trenes de carga que pasan de noche por la Gran Salina. La palabra misterio hay que aplastarla como se aplasta una pulga, entre los dos pulgares. La palabra misterio ya no explica nada. (El misterio es nada y la nada no se explica por sí misma.) Habría que reemplazar la palabra misterio (al menos por hoy, al menos por este "poema") por lo que yo siento cuando pienso en los trenes de carga que pasan de noche por la Gran Salina. La pera trepida en el plato. La miel se desespera en el frasco cerrado, para desesperación de las moscas que le acechan posadas al vidrio. Pero yo no me explico y hasta ahora nadie ha podido explicarme por qué me sorprendo pensando en la Gran Salina. El hombre de chaleco del salón comedor se ha quitado los anteojos. Los anteojos trepidan sobre el mantel de la mesa tendida. Todo trepida, todo se estremece, en el tren que pasa a mediodía por la Gran Salina. Yo me he sorprendido mirando la sombra del avión que pasa por la Gran Salina. Pero eso no explica nada. Es como una gota que se evapora enseguida. Hay que distraerse, dicen. Hay que distraerse mirando y recordando para tapar el sueño de la Gran Salina. Un piano colgado como una araña del hilo se ha detenido entre los pisos doce y trece... Un camión pasa cargado de ventiladores de pie que mueven alegremente sus hélices. En 1948, en Salta, fuimos de noche a cazar vizcachas y ranas, y la conversación se apagó con el fuego del asado, abrumados como estábamos por el cielo negro y estrellado. Nerviosamente encendíamos y apagábamos las linternas hasta quedarnos sin pilas. Tampoco puedo explicarme por qué sueño con pilas de linternas, con pilas para radios a transistores. Ni por qué sueño con lamparitas de luz, delicadamente guardadas en sus cajas respectivas. Ni por qué me sorprendo mirando el filamento roto de una lamparita quemada. Nunca he visto... nunca he podido imaginarme 136 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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la lluvia cayendo sobre la Gran Salina. Yo no tengo objetivos pero me gusta objetivar. Desde chico intenté cortar una gota de agua en dos (con una tijera). Aún hoy intento, apartando las cosas de la mesa o ahuyentando amigos, imitar, imaginarme, la lluvia sobre la Gran Salina. Tomo una plancha caliente y le salpico gotas de agua. Pero aunque pueda imaginarme todo, nunca podré imaginarme el olor a salina mojada. Anoche llegué a mi casa a las tres de la mañana. En la oscuridad, tropecé con un mueble... y allí nomás me quedé pensando en lo que no quería pensar... en lo que creía bien olvidado! Pero en realidad me estaba escapando del sueño estremecedor de la Gran Salina. Y ahora me interrogo a mí mismo como si estuviera preso y declarara: "La Gran Salina o Salina Grande está situada al norte de Córdoba, cerca (o dentro, no recuerdo) del límite con Santiago del Estero." Estoy mirando el mapa... pero esto no explica nada. La caja de fósforos queda vacía a las cuatro de la mañana y yo me palpo a mí mismo, desesperado, con el cigarrillo en la boca... Habría que inventar el fuego, pensarían algunos. Yo en cambio pienso en los reflejos del tren que pasa de noche junto al río Salado. No puedo dormir cuando viajando de noche sé que tengo a mi derecha el río Salado. Paro aún así sigo escapando del gran misterio... del misterio de la sal inagotable de la Gran Salina. Recuerdo cuando arrojábamos impunemente naranjas chupadas al espejo ciejo y enceguecedor de la Gran Salina. A la siesta, cuando la resolana enceguece más que el sol. Esperábamos llegar a Tucumán a las siete y a las dos de la tarde tuvimos que cambiar una rueda junto a la Gran Salina. Un diario volaba por el aire... el sol calcinaba las arrugadas noticias del mundo del diario que caía sobre la Gran Salina. Y vi pasar varios trenes y hasta un jet... Los pasajeros de los Caravelle o de los Bac One-Eleven, no saben que esa mancha azulada, que a lo mejor están viendo en este mismo momento, desde ocho mil metros de altura, esa mancha azulada que permanece durante escasos minutos, es la Gran Salina, la Salina Grande. Pero el jet anda muy alto. La Gran Salina no conoce su sombra que pasa. Los pasajeros del jet duermen... se sienten muy seguros. En el jet no hay paracaídas. Los jets no caen. Explotan. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 137


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O que é

poesia?

Hace unos años, un avión que no era un jet volaba, creo, sobre Santa Fe. De pronto se abrió una puerta y una camarera tuvo que obedecer calladita a las sagradas leyes de la física, y demostrar su inequívoco apego a la ley de la gravedad. Una ley dura como las piedras metidas en la boca de Demóstenes que, según dicen, hablaba mucho. Aquí hay que hacer un minuto de silencio. Primero, por la dócil camarera sin cama del avión. Después, por las palabras muertas, muertas por no decir nada... misterio, por ejemplo, que sirve para no explicar lo inexplicable, lo que yo siento cuando pienso en la Gran Salina, lo que traté de no pensar un día que caminaba por la Gran Salina tratando de distraerme y de no pensar dónde estaba, escuchando una canción de Leo Dan que pasaba LV12 Radio Aconquija y el Concierto en sol de Ravel por la filial de Radio Nacional. ¿Qué pensaría Ravel, el finado, si caminara como yo en ese momento por la Gran Salina. Ravel, púdico sentimental, te imagino tocando el piano que hoy vi colgado entre el piso 12 y el piso 13. Sí, pobre Ravel de 1932 con un tumor en la cabeza que ya no lo dejaba componer. Ravel tocando solo, de noche (pero eso sí, absolutamente solo) los "Valses nobles y sentimentales" en medio de la Gran Salina. Estoy seguro que se hubiera interrumpido al escuchar el silbato lejano de la locomotora, para ver el haz de luz a la distancia y la penumbra sobre la Gran Salina. Días pasados fui al Hospital. Hace años yo andaba por allí, despreocupado y con mi guardapolvo blanco. Pero ahora, de simple paciente, sentí el ruidito angustioso !Trank! de la máquina de sacar radiografías. !Y que pase otro! gritó el enfermero. Pero el otro no podrá explicarme por qué tengo sed, por qué voy detrás del agua cautiva de la botella y de la sal capturada en el salero, yo, tan luego yo, capturado en el sueño de la Gran Salina. Un amigo, alto funcionario estatal, me ofreció su pase libre para viajar por todo el país. Total, me dijo, es un pase innominado, cualquiera lo puede usar... si se lo presto. El pase sin nombre me deslumbró como la marca de la cubierta que leí y releí cuando cambiábamos la rueda junto a la Gran Salina. Pero después pensé en Tucumán (mi segunda provincia) y en las vértebras azules del Aconquija horadando las nubes blancas. Ahora me entero que mi amigo, el del pase sin nombre, se separó de la mujer. 138 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Aquí me callo... Pero el silencio me hace pensar ahora en lo que no quise pensar cuando miré el pase [sin nombre que me ofrecían, en lo que dejé de pensar hace un momento... cuando vi pasar el ascensor con una mujer silenciosa que no me quiso llevar. Olvidemos el ascensor perdido y pensemos de nuevo, de frente, en la sal (cloruro de sodio) y en el misterio... Pero como nada es misterio hagamos una traducción de apuro: miss Terio o miss Tedio o chica rodeada de teros asustados o algo por el estilo. Pero no hay distracción que valga. El ayudante de cocina del vagón comedor se rasca la cabeza de tanto en tanto pero sigue pelando papas sin distraerse en el tren que se acerca a la Gran Salina. Y el ascensor perdido con la mujer silenciosa sigue recorriendo kilómetros entre la planta baja y el piso quince. El sastre de enfrente que ya comió se asoma a tomar aire con el metro colgado en el cuello. Yo pienso en comer, como se ve... Son exactamente las 14 horas, 8 minutos, 30 segundos. Y también, no sé por qué, pienso en el acorazado de bolsillo Graf Spee que en los comienzos de la última guerra se suicidó antes que su capitán frente a Punta del Este. El Graf Spee yace a treinta metros de profundidad. Ya nadie se acuerda de él. Ni siquiera los hombres-rana que bajaron a explorar sus entrañas. Pero hasta los hombre-rana salen a comer a mediodía. Y a veces, para comer, sólo se quitan las antiparras y los tubos de oxígeno. Todavía hay gente que se asombra viendo comer [a esos hombres... con patas de rana. Los hombres-rana reclaman al mozo la sal que se olvidó! Dale!... Dale! Hoy almuerzo con amigos (si es que no se fueron). Miraré de costado la sal y pediré pimienta en vez, porque tengo miedo de quedarme callado, ya se sabe por qué. No quiero quedarme callado ni distraerme, ya se sabe por qué. En realidad no se sabe nada del sueño de la pilas, de la lluvia sobre la sal, de la chica del ascensor, del sastre asomado con el metro colgado o del tren que pasa de noche indiferente junto a lo que ya se sabe y no se sabe.

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O que é

poesia?

.................................................... .................................................... .................................................... Hace años creía que "después del almuerzo es otra cosa"... es decir que las cosas son otras después del almuerzo. Este poema (llamémoslo así), partido en dos por el almuerzo y reanudado después, me contradice. No comí postre. !Siento la boca salada! Pero no voy a insistir. El domingo pasado, en casa de un amigo poeta, conocí a un chileno novelista e izquierdista que se fue a Pekín y que, posiblemente, no vuelva a ver en mi vida. Tímidamente, entre cinco porteños y un chileno [izquierdista, metí una frase de Lautréamont que como buen franchute es uruguayo y si es uruguayo es entrerriano. Una frase (salada) para terminar (o interrumpir) [este poema: "Toda el agua del mar no bastaría para lavar [una mancha de sangre intelectual"

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Fernando Pessoa: um certo Chevalier de Pas por Carlos Felipe Moisés

1 Os antigos já o sabiam: quando nossos valores, nossas crenças e esperanças parecem ter sido virados do avesso; quando nossas inquietações não sabem entoar senão a ladainha da dúvida, da aflição e da descrença; quando tudo parece ter perdido o rumo; quando nos deixamos abater pela crise generalizada e experimentamos, coletivamente, a sensação de que nada vale a pena; nessas horas, é sobretudo aos poetas que recorremos, em busca de consolo ou conselho, para que nos ajudem a encontrar uma saída, um sentido para as coisas. Os modernos também o sabem (Ezra Pound: “Os poetas são as antenas da raça”), mas parecem esquecê-lo, preferindo o gozo desenfreado das ilusões, o refúgio da inconsciência embrutecedora. Há mais de 70 anos, a poesia de Fernando Pessoa (1888-1935) nos alerta para a magnitude da crise em que estamos mergulhados até hoje. À medida que os anos passam e a crise se agrava, mais clara se torna a sua impressionante atualidade. É a nós todos, aqui e agora, que o poeta se refere quando diz: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada, todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”, ou “O mundo é para quem nasce para o conquistar e não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão”, ou “Sou quem falhei ser”, ou “Triste de quem é feliz”, ou “Sem a loucura, que é o homem, mais que a besta sadia, cadáver adiado que procria?” e por aí vai. Versos escritos há mais de 70 anos, no entanto mais atuais e mais reveladores da realidade que nos cerca do que toda a avalanche de informações que nossa ansiedade atônita despeja nas telas de nossas mentes, a todo instante. Acercar-se da poesia de Fernando Pessoa é deparar-se com um dos mais lúcidos e contundentes diagnósticos do tempo atual, que ele soube antever, como poucos. É como se o destino pessoal de cada um dos seus leitores, e o destino comum de toda uma civilização, estivessem ali, esquadrinhados e interpretados nos seus poemas, sem ilusões, mas com muita imaginação, a começar pela ideia-chave de que “o poeta é um fingidor”. 2 Pessoa não é um poeta ostensivamente inovador, como o são Ezra Pound, Cummings, Mariane Moore e tantos outros, todos empenhados, cada qual a seu modo, no make it new – o mandamento-emblema definidor da modernidade. Seu arsenal expressivo é predominantemente convencional, bem ajustado à tradição, embora isso não o reduza à mesmice tradicional. A grande inovação pessoana reside na peculiaridade de sua concepção do ato poético: gesto lírico impregnado de raciocínio (“O que 142 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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em mim sente está pensando”). Por isso, ele jamais abdica da ideia de criação como deliberação, de tal modo que o poema vem a ser palco de um certo teatro (“O poeta é um fingidor”), onde é encenada a interminável busca da autoidentidade. A inovação, no caso, tem que ver com o indagar incessante, vizinho do espanto e da perplexidade, diante de si e do mundo, um constante interrogar(-se), de raiz acentuadamente filosófica, mas indissociável da emoção intensa. Pessoa flagra o que talvez seja a grande questão da modernidade, a subjetividade em crise, a fragmentação da personalidade – a mesma crise que se arrasta desde Kant, atinge seu momento crucial em Nietzsche e se alastra, até os nossos dias, impregnando a consciência dividida do homem moderno. Pessoa é mais atual hoje do que há 70 anos. Ousadia, do tipo que choca e agride, só a encontramos, um pouco, em Álvaro de Campos, autor de uns versos escandalosamente livres e “desarrumados”, palavrões, gritos, atentados ao pudor, rebeldia – libelo geral, em suma, contra Deus, a Pátria e a Família. Fora daí, não existe ousadia, essa espécie de ousadia, na poesia pessoana. Mas eu não tomaria “ousadia” e “inovação” como sinônimos. O restante da obra, aparentemente bem comportada (vocabulário corrente e elegante, boa sintaxe, boa lógica, versos muitas vezes rimados e bem medidos, nada de gritos histéricos, nada de irreverência ostensiva), eu diria que é ainda mais inovador, isto é, mais subversivo e mais demolidor do que as espalhafatosas ousadias do heterônimo engenheiro naval. Haverá, em matéria de poesia, algo mais inovador e revolucionário do que “Uma aprendizagem de desaprender”? É esta a lição máxima do heterônimo guardador de rebanhos, Alberto Caeiro, o Mestre de quem todos os demais heterônimos se consideram discípulos, aí incluído o próprio Fernando Pessoa. 3 A ideia de poesia como teatro ou fingimento resulta na marca registrada que é a criação de “heterônimos”, isto é, seres de ficção, análogos a Hamlet, Fausto, Julien Sorel ou Brás Cubas, que poderíamos ver no palco ou nas páginas de um romance (como o provam alguns dramaturgos e ficcionistas contemporâneos, que se aproximaram de Pessoa por esse viés) mas dos quais temos apenas as vozes individuais, os poemas ou as prosas que eles escreveram, e não os enredos ou a ação dramática. E heterônimos não são apenas “nomes falsos” ou pseudônimos, destinados a encobrir a identidade do autor, mas personalidades distintas, com identidade e estilo próprios. Além disso, o processo gerador de heterônimos define uma estratégia geral de criação: tudo quanto Pessoa escreveu é heteronímico, incluindo aquela parte da obra assinada com o seu nome de batismo, à qual ele se refere, com ironia, como “ortônima”, ou, com mais ironia ainda, como “Pessoa ele-mesmo”. Esse “ele-mesmo” é tão ficcional e tão Celuzlose 08 • Dezembro 2011 143


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alheio ao Fernando Pessoa propriamente dito quanto Caeiro, Reis ou Campos. Isso tem que ver, claramente, com a complexidade e as contradições do homem moderno, a crise da subjetividade, já referida. A unidade do “ego” (e isso vale para qualquer um de nós) não passa de aspiração ou nostalgia; o que nos caracteriza enquanto indivíduos, tal como acontece na poesia pessoana, é a desconcertante multiplicidade de caminhos e possibilidades de cada um: ninguém é igual a si mesmo, em todos os lugares, a todo momento. O “ego” do homem moderno é um ego mutante. Pessoa o anteviu, há mais de 70 anos, por isso sua obra é cada vez mais atual. Além do quê, tendo morrido em grande parte inédito, Pessoa vem sendo dado a conhecer aos poucos, de modo que, de tempos em tempos, surge uma faceta inteiramente nova, como se se tratasse de um autor ainda em atividade. Mais uma razão para que pensemos nele como um escritor nosso contemporâneo. E é preciso reforçar a ideia de que a multiplicação geradora de heterônimos é um truque retórico, manobra engenhosa de escritor erudito e premeditado, que planeja o que escreve e exerce sobre a escrita um controle rigoroso. Nada a ver, portanto, com inspiração súbita nem com esoterismo e derivados. De outro lado, paradoxalmente, essa multiplicação parece decorrer, também, de uma necessidade incontrolável. De resto, heterônimos não são compartimentos estanques: tudo aí é dinamismo, um processo, que uma vez posto em curso jamais teria fim. Os heterônimos conhecidos da maioria dos leitores são três ou quatro, mas o total chega a várias dezenas, alguns concebidos como “semi-heterônimos”, outros como simples “personalidades literárias”, muitos apenas esboçados. O princípio que comanda o processo é o da metamorfose, que ao mesmo tempo registra e (retro)alimenta a heterogeneidade de todas as coisas. De certo modo, a realidade aí fora é que é múltipla ou heteronímica, mas só atinamos com isso depois que Pessoa o demonstrou: nossos valores, nossas crenças, nossas instituições formam um aglomerado desprovido de qualquer senso de unidade e coesão. Caeiro, o “argonauta das sensações verdadeiras”, diria que esta nossa realidade é “partes sem um todo”. A multiplicação do poeta em heterônimos é a sua maneira (genial) de sintonizar com o mundo em redor e ao mesmo tempo formular, a respeito, o diagnóstico mais lúcido e radical. Por isso a multiplicação é uma necessidade que nunca teria como se satisfazer. O processo só seria dado por concluído se o mundo se estabilizasse, se o Sistema, hoje globalizado, inventasse ou trouxesse de volta as supostas verdades universais, absolutas, que só em sonho teriam vigorado, ou poderiam vigorar um dia. Para o poeta, a primeira hipótese é inviável, a segunda é só fantasia. 4 Impossibilitado de responder à pergunta “Quem sou eu?”, o poeta substituiu a possível mas improvável resposta pela desinibida exibição de suas contradições interiores, onde se abrigam umas tantas personalidades fictícias, os heterônimos, no entanto ao mesmo tempo reais, ou até mais reais do que sua personalidade civil. É tentador imaginar que ele teria, primeiro, abdicado de sua personalidade “própria”, para em seguida substituí-la pelos heterônimos. Mas, se ele um dia tivesse tido posse 144 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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ou sequer conhecimento da sua personalidade “própria”, não teria passado a vida à procura de outra ou outras. O desdobramento da personalidade parece vir antes e não depois, é um dado de origem, um ponto de partida e não de chegada. Antes de se converter em expediente literário, a propensão heteronímica já povoava seu espírito poderosamente imaginativo e raciocinante, desde a infância. Seu primeiro “heterônimo” foi um certo Chevalier de Pas, que ele inventou aí pelos cinco anos, e cuja companhia preferia à dos brinquedos convencionais. Acho que Pessoa nunca chegou a ter o que se chamaria personalidade “própria”, isto é, a personalidade una, singular e intransferível com que todos nós podemos sonhar, embora cultivasse o tempo todo o mito ambíguo de que isso teria sido algo irremediavelmente perdido, ao nascer (Platão gostaria dessa ideia), ou algo ardentemente buscado, vida afora, com a certeza de que jamais será encontrado (Walter Benjamin aprovaria esta outra).

Diante disso, a pergunta que se impõe, e vem sendo formulada há anos por todos os leitores do poeta, é uma só: qual dos heterônimos é o que mais de perto corresponde ao “verdadeiro” Fernando Pessoa? Essa talvez seja a pergunta mais difícil. A resposta imediata é: nenhum. O chamado ortônimo, esse inefável “Ele-mesmo”, com certeza não é o verdadeiro Pessoa, é só uma figura de ficção, como as demais. O cidadão Fernando Pessoa está por trás ou por dentro de todos os heterônimos que criou, aí incluído o ortônimo; cada qual representa uma das facetas que integram a sua personalidade múltipla e fragmentada, e todas têm igual presença e intensidade. No entanto (achei isso durante muito tempo, depois mudei de ideia, depois voltei a achar... em suma: não sei), quem sabe a faceta mais “verdadeira” de todas seja Álvaro de Campos. É o heterônimo mais sintonizado com os tempos modernos, com a grande urbe industrializada; é o homem da consciência angustiada, perdido no anonimato da Celuzlose 08 • Dezembro 2011 145


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multidão, mergulhado na vertigem do ceticismo e na busca da Verdade inatingível. Mas o Bernardo Soares, do Livro do desassossego, não sintoniza mais ou menos com essas mesmas inquietações? Enfim, não sei se haverá uma resposta satisfatória. E às vezes penso que, embora inevitável, essa é uma pergunta impertinente, como seria impertinente cada um de nós fazer questão de saber, de modo cabal e definitivo, qual é o seu eu verdadeiro. Alguém sabe? Por que esperar do grande poeta a disciplinada autoconformação a um self que, em cada um de nós, é sempre matéria rebelde e escorregadia? 5 A biografia, é claro, interessa, e muito. Como qualquer outro artista ou escritor, Pessoa deve ser situado no seu tempo, e isso inclui as circunstâncias de sua origem familiar, sua formação, os espaços que percorreu, as pessoas do seu convívio. Chama a atenção o fato de que o menino Fernando Antônio perdeu o pai, aos cinco anos, e já no ano seguinte ganhou um padrasto, cônsul lotado em Durban, na África do Sul, para onde foi obrigado a partir, na companhia da mãe, aos sete anos. Daí por diante passou a dividir o afeto da família com os meios-irmãos, do segundo casamento da mãe. Para alguns, isso explica tudo... Muitos biógrafos se deixam seduzir por certo freudismo de almanaque e parecem pouco atentos ao fato de que o “diagnóstico” (mero palpite) aplica-se a milhares de indivíduos que, em condições similares, nunca escreveram um verso. O equívoco está na mecânica determinista subentendida nesse tipo de especulação: causa-efeito, antecedente-consequente, ou seja, a vulgata pseudocientífica segundo a qual a poesia, a pessoana ou qualquer outra, poderia ser “explicada” com base na infância difícil, a orfandade, a carência afetiva etc. Por outro lado, e já agora sem recorrer à psicanálise de botequim, todos sabemos, desde Baudelaire, que “poésie c'est l'enfance retrouvée”, no sentido da diluição das fronteiras entre o eu e o não-eu, o dentro e o fora, o meu e o do outro. A poesia pessoana está nesse caso, embora isso não seja exclusivo dela. Na África, onde viveu dos sete aos dezessete anos, o jovem Pessoa recebeu uma educação ortodoxamente britânica, isto é, foi treinado para ser um dos líderes do Grande Império, “onde o Sol jamais se põe”. Ironia! Nas proximidades de Cape Town, a Cidade do Cabo, do velho Cabo da Boa Esperança, ultrapassado séculos atrás pelos portugueses navegadores, antepassados do poeta; nas imediações de Natal, cidade fundada e assim mesmo nomeada pelos antigos heróis lusitanos (os modernos conquistadores ingleses houveram por bem não rebatizá-la para Christmas); ali esteve por dez anos o menino Fernando Antônio, o tempo todo a esbarrar em sólidos vestígios do que tinha sido, no passado remoto, a grandiosidade do Império Português, simplesmente desaparecido, como tal, já no final do século XVI; ali ele viveu e se formou, obrigado a aceitar o fato de que, no mundo moderno, o único império possível, o único grande império é o britânico. De toda a sua vasta e diversificada produção literária, o livro em que ele depositou o melhor de sua energia, e chegou a publicar, um ano antes de morrer, foi justamente Mensagem, poemas patrióticos que ele passou a vida a compor e a burilar. Foi aí que ele buscou conciliar a sua imagem ideal do grande Império Português e o sentimento 146 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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real, presente, do poderio britânico espalhado pelo mundo, e vivenciado por ele no enclave africano de Durban. No mais, a experiência decisiva vivida por ele na África, na infância e na primeira juventude, rendeu-lhe, mais do que o bilinguísmo, a sensação de despaisamento, o orgulho melancólico de ser “estrangeiro aqui como em toda a parte”, na definição de Álvaro de Campos. De volta a Lisboa, de onde jamais sairá, Pessoa viveu até o fim a vida modesta, monótona e regrada de um celibatário que muito cedo tomou a decisão de se dedicar inteiramente à criação da própria obra. É desse período, entre 1904 e 1910 (o documento se manteve inédito até 1960 e não é datado), a sua declaração taxativa: “Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha” (F. Pessoa, Obra poética, org. Maria Aliete Galhoz, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1960, p. XIII). Sobreviveu como tradutor comercial, em inglês e francês, prestando serviços a várias firmas importadoras-exportadoras sediadas em Lisboa – todas as manhãs, regularmente, ao longo de trinta anos. Viveu quase toda a vida sozinho, em habitações modestas, às vezes quartos cedidos por um parente ou um amigo. As tardes, passou todas, com burocrática regularidade, a ler e a escrever, em casa, nas mesas de cafés e leiterias que frequentava ou na Biblioteca Nacional. Nos fins de tarde, todos os dias, perambulava por uma quantidade de bares e restaurantes, onde se reunia preferencialmente com intelectuais, seus parceiros de aventura literária, onde jantava frugalmente e bebericava a sua Aguardente Velha. À noite, todas as noites, recolhido em casa: ler e escrever, até madrugada. Consta que dormia muito pouco, o que é próprio, dizem, dos gênios, desde que não sofram de insônia. Dava-se muito bem com os parentes, que visitava com frequência. Teve poucos amigos, quase todos escritores, artistas, intelectuais, com os quais planejou a introdução da Arte de Vanguarda em Portugal, nos anos 1910-20, através de revistas que dirigiu ou em que colaborou, como Orpheu, Portugal Futurista, Contemporânea etc. Todos os depoimentos dos que com ele conviveram dão conta de um homem sempre corretamente vestido, cordial, discreto e afável. Bem humorado mas muito reservado. E teve um grande amor na vida, Ofélia Queirós, a única namorada de que se tem conhecimento, namoro iniciado em 1920 e logo interrompido, para ser reatado nove anos depois. E o amor não passou de uns beijos e muitas cartas. Pois é, os beijos... Nós, hoje, os enquadraríamos na categoria dos “selos”, um ou outro selinho, de olhos bem fechados. Agora cartas, sim, em quantidade; afinal era onde ele se sentia à vontade: escrevendo. Na verdade não se sabe se chegou a ser “amor”. As cartas famosas (F. Pessoa, Cartas de amor, org. e posfácio David Mourão-Ferreira, Lisboa, Ática/Livraria Camões, 1978), cuja divulgação dona Ofélia autorizou, no final dos anos 1970 – ela ainda era viva – sugerem só “namoro”, mesmo, e eu acrescentaria: literário. Segundo a própria Ofélia, no depoimento que antecede a edição das cartas, Pessoa declarou-se a ela recitando o Hamlet: “Oh querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! Até do último extremo, acredita!” (p. 21). Numa das cartas, datada de 15/10/1920, ele pede desculpas Celuzlose 08 • Dezembro 2011 147


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por ter estado de muito mau humor, no encontro da véspera, e diz: “Tens mais que milhares – tens milhões – de razões para estares zangada, irritada, ofendida comigo”. Mas ele se justifica: “Afinal o que foi? Trocaram-me pelo Álvaro de Campos” (p. 129). E no segundo período do namoro (carta de 25/09/1929), o mesmo heterônimo engenheiro naval volta a se intrometer: Exma. Senhora D. Ofélia Queirós: Um abjeto e miserável indivíduo chamado Fernando Pessoa, meu particular e querido amigo, encarregou-me de comunicar a V. Exa – considerando que o estado mental dele o impede de comunicar qualquer coisa, mesmo a uma ervilha seca (exemplo da obediência e da disciplina) – que V. Exa está proibida de: (1) pesar menos gramas, (2) comer pouco, (3) não dormir nada, (4) ter febre, (5) pensar no indivíduo em questão. (p. 145) Por todas as razões juntas, o namoro não resultou, nem em 1920 nem em 1929. Pessoa não se casou, não constituiu família, viveu e morreu sozinho. O desfecho se deu no dia 30 de novembro de 1935, no Hospital de São Luís, em Lisboa. Diagnóstico: uma crise hepática fulminante. Excesso de bebida alcoólica? (Ele era grande apreciador da boa Aguardente Velha, embora nunca tivesse sido visto embriagado). Algum mal congênito? Não se sabe ao certo. A obra ficou praticamente inédita, à exceção de Mensagem, umas pequenas coletâneas em inglês, do tempo de juventude, e umas centenas de textos avulsos, divulgados na imprensa. Quase nada, perto das dezenas de volumes que vêm sendo dados a público, aos poucos, nos últimos 70 e poucos anos, embora nenhum deles tenha sido organizado pelo autor em forma definitiva de livro. Consta que ainda há muita coisa inédita. 6 A imagem que podemos fazer do cidadão Fernando Pessoa, enfim, é a de um sujeito introvertido, cheio de pudor, trancado em si, transitando sem cerimônia entre ficção e realidade (como no caso do heterônimo que se intromete no namoro com a “menina” Ofélia) e dotado de um notável senso de humor, que eventualmente serve de escudo contra qualquer espécie de contato menos formal com o semelhante. Questão de temperamento, quem sabe. Mas resultado, também, da educação puritana que o menino-poeta recebeu em Durban, na África inglesa, somada ao puritanismo da Lisboa onde nasceu e onde viveu a maior parte da vida. Conta ainda, e muito, o propósito que ele muito cedo se impôs (“não conto gozar a minha vida”), de não assumir nenhum compromisso que o desviasse da criação literária, na qual – e este é um dos aspectos mais intrigantes – a sexualidade está praticamente ausente, pelo menos em português. Por isso chama a atenção a voluptuosidade, o erotismo 148 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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exacerbado, aliás perfeitamente convincente, de dois dos seus poemas em língua inglesa, Antinous e Epithalamium. O próprio poeta esclarece que assim o fez para descarregar aí o seu intenso apetite sexual, deixando o espírito livre para aventuras mais elevadas. (O que diriam os psicanalistas de plantão?). Tudo talvez seja, então, uma questão de... estilo. Estilo? Pois é, parece que sim, e esta promete ser a questão básica. A criação poética, concebida por Pessoa como proliferação de heterônimos, depende fundamentalmente da linguagem – do estilo, portanto. Cada heterônimo tem seu estilo próprio porque é aí mesmo, na maneira de utilizar as palavras, que se configura a visão de mundo de cada um, mais do que nas “biografias” ou na “filosofia de vida” desses personagens que se chamam Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Ricardos Reis e tantos mais. Em consequência, não temos “o” estilo de Fernando Pessoa, temos vários, os estilos dos seus heterônimos. Aí reside, aliás, a mais desconcertante originalidade do escritor português: um autor sem estilo próprio, mas que foi capaz de criar vários, todos alheios. Essa é uma das razões, embora não a única, do fascínio que exerce, há anos, sobre um público de início restrito a poucas pessoas, mas que hoje se conta aos milhares, espalhadas pelo mundo, em vários idiomas. “Fascínio” é, afinal, a palavra que pode resumir tudo: designa bem a reação da maioria dos seus leitores. Pessoa não é um poeta que apenas agrada ou sensibiliza, que desperta interesse ou curiosidade: é um poeta que fascina, no sentido de que incomoda e perturba, feito um polvo de mil tentáculos que se agarra à consciência e à sensibilidade do leitor, e este não consegue, nem quer, se libertar. Por quê? Seria possível imaginar várias explicações, mas fico só com uma: todos os leitores de Fernando Pessoa, desde os que convivem com o poeta há muito tempo até os que acabaram de ler um ou outro poema, percebem ou pelo menos intuem que toda essa fantasia dos heterônimos, com sua variedade de estilos e visões do mundo, revela a realidade que nos constitui, com mais lucidez do que, por exemplo, o divã do psicanalista, o confessionário, a autoanálise, ou qualquer que seja o caminho que busquemos no encalço do autoconhecimento. O convívio com a poesia de Fernando Pessoa põe a nu o que cada um de nós é, ainda que não o soubesse. Por que o poeta continua a fascinar, mais de 70 anos depois de sua morte? Por que tanta gente, hoje, sabe de cor muitas de suas frases? Uma resposta possível já está aí, na pergunta: a popularização de Fernando Pessoa se deve, em boa parte, a essas frases. Acrescentemos, àquelas já citadas, mais algumas: “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”, “O mito é o nada que é tudo”, “É possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso”, “Deus é o homem de outro deus maior”, “Ter a tua alegre inconsciência e a consciência disso”, “Fui-o outrora agora”, “Se me ainda amas, por amor, não ames: traíras-me comigo”, “Fingir é conhecer-se” etc. etc. São dezenas de frases extremamente concisas, instigantes, aparentemente simples e claras, fáceis de memorizar. O que elas têm em comum, além dos aspectos acima apontados, é o seu teor paradoxal: são frases que no geral afirmam o que negam, ou afirmam para negar em seguida. Por isso, ainda que banalizadas, e repetidas mecanicamente, elas concentram a substância da visão de mundo do escritor: a relativização de todas as verdades possíveis, mais uma boa dose de ceticismo. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 149


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Jorge de Sena, um dos seus mais competentes críticos, definiu Pessoa a partir de uma frase do próprio: um “indisciplinador de almas”. É que ninguém decora impunemente essas frases. Mais cedo ou mais tarde, elas surtirão o seu efeito “indisciplinador” e as consciências dos leitores, viradas do avesso, começarão a se livrar das falsas verdades, dos preconceitos e das ilusões, podendo então sintonizar com o mundo em redor. Que outro escritor do século XX nos proporciona uma representação mais convincente da liberdade pela qual todos ansiamos? Por isso o paradoxo: ao mesmo tempo em que vem sendo objeto de investigações cada vez mais eruditas e sofisticadas, a poesia de Fernando Pessoa vem-se tornando cada vez mais popular – na mídia, na música, no teatro, no cinema, nos espetáculos, na memória coletiva. Mas essa é uma característica de toda obra de gênio: fala, ao mesmo tempo, a todos os leitores, do mais culto e exigente ao menos preparado. Cada qual encontrará, na obra lida, um estrato, um nível ou uma dimensão que lhe diga respeito, todos legitimamente pessoanos. Não importa, por exemplo, que o leitor dito “comum” se deixe iludir pela falsa ingenuidade do pastor Alberto Caeiro – de fato falsa, conforme a crítica especializada tem demonstrado. Se esse mesmo leitor insistir, e chegar a se dar conta de que os poemas de Caeiro devem ser lidos à luz do ego transcendental da fenomenologia husserliana, ou da epistemologia wittgensteiniana, ou do satori da iluminação zen, isso não eliminará a dimensão de ingenuidade que esses mesmos poemas continuam a abrigar. 7 Como toda grande obra literária, a poesia pessoana é uma das nossas “antenas da raça”, como diz Ezra Pound, e representa o obstinado empenho do poeta em manter viva a consciência, a lucidez, a rebeldia e a insubmissão (de preferência a subliminar, que vai mais fundo), sem as quais seríamos só “cadáveres adiados que procriam”. O fato é que não temos como saber, não temos como afirmar, com certeza, seja o que for. O desfecho da trajetória humana do poeta é emblemático, a esse respeito. Poucas horas antes de morrer, ele anotou num pedaço de papel, letra um pouco tremida, assim mesmo, em inglês afetado: “I know not what tomorrow will bring”. Apesar disso, não custa imaginar que sua poesia continuará a nos comover e a nos inquietar, até que outro escritor nos ofereça, deste nosso tempo, ainda substancialmente o mesmo do poeta, uma visão mais insubmissa e mais consciente. Como deve proceder o leitor comum, esse que por acaso ainda não tenha se dedicado, para valer, à leitura de Fernando Pessoa? O caminho é mais ou menos óbvio: começar pela obra, pela poesia, e não pela crítica. Se alguém, que nunca o tenha lido, se mostrar disposto a fazê-lo, eventualmente instigado por esta crônica, isso me deixará feliz. Mas eu acrescentaria: esqueça tudo o que acabo de expor e leia os poemas. Se estes lhe tocarem a sensibilidade e despertarem a sua curiosidade, siga em frente. Se não... E não perca tempo “preparando-se”, com a leitura de alguma biografia, algum manual de história literária ou a crítica especializada. Tudo isso virá, se vier, como complemento ou ampliação do conhecimento, mas não deve servir como base para o primeiro contato. O melhor caminho, em suma, é ir tateando, sem compromisso, como fazemos, aliás, com tudo o que vale a pena na vida. 150 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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Quando pensamos em Fernando Pessoa, pensamos em várias criaturas: Ele-mesmo, Ricardo Reis, Bernardo Soares, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Alexander Search, Barão de Teive... Uma verdadeira multidão de escritores! Cada leitor, evidentemente, terá a sua preferência. Conheci mais de um que só se interessa por Alberto Caeiro e passa por cima do resto; outros que só leem Álvaro de Campos e torcem o nariz, digamos, para Ricardo Reis. E por aí vai. No meu convívio de tantos anos com a obra do escritor, também cheguei a ter as minhas preferências... que foram mudando, foram se tornando cada vez menos exclusivistas. O que penso hoje é que toda essa multidão é, sempre, Fernando Pessoa, e o leitor só terá a ganhar se abrir espaço, no seu espírito, para aquelas facetas que (ainda) não são as da sua preferência. Para simbolizar essa ideia, escolhi intitular e encerrar esta crônica com a lembrança de “Um certo Chevalier de Pas”, esse misterioso cavaleiro andante, sonho de um menino português, aos cinco anos de idade, no finalzinho do século XIX, quando ninguém, nem ele próprio, pensava no enigma dos heterônimos, agora ao alcance de todos nós.

Carlos Felipe Moisés é poeta, prosador, tradutor, crítico literário e ensaísta. É mestre e doutor em Letras Clássicas e Vernáculas (USP). Entre alguns de seus livros publicados estão: Histórias mutiladas (contos, 2010), Noite nula (poemas, 2008), Lição de casa & poemas anteriores (poemas, 1998), Poesia e utopia (ensaios, 2007) e Alta traição (traduções, 2005). Foi curador da exposição Fernando Pessoa: plural como o Universo.

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Poemas de Fernando Pessoa O guardador de rebanhos I Eu nunca guardei rebanhos, Mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar. Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação, Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela. Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada, Os meus pensamentos são contentes. Só tenho pena de saber que eles são contentes, Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais. Não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho. E se desejo às vezes Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora.

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Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que está no meu [pensamento, Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim No cimo dum outeiro, Olhando para o meu rebanho e vendo [as minhas ideias, Ou olhando para as minhas ideias e vendo [o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem não [compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Saúdo todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapéu largo Quando me veem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Saúdo-os e desejo-lhes sol, E chuva, quando a chuva é precisa, E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta Uma cadeira predileta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural — Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado.


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V Há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que ideia tenho eu das cousas? Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma E sobre a criação do Mundo? Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinas Da minha janela (mas ela não tem cortinas). O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o sol E a pensar muitas cousas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol, E já não pode pensar em nada, Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas. A luz do sol não sabe o que faz E por isso não erra e é comum e boa. Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz [pensar, A nós, que não sabemos dar por elas. Mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para que vivem Nem saber que o não sabem? "Constituição íntima das cousas"... "Sentido íntimo do Universo"... Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. É incrível que se possa pensar em cousas dessas. É como pensar em razões e fins Quando o começo da manhã está raiando, e pelos [lados das árvores Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão. Pensar no sentido íntimo das cousas É acrescentado, como pensar na saúde Ou levar um copo à água das fontes. O único sentido íntimo das cousas É elas não terem sentido íntimo nenhum.

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Alberto Caeiro

Não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, Sem dúvida que viria falar comigo E entraria pela minha porta dentro Dizendo-me, Aqui estou! (Isto é talvez ridículo aos ouvidos De quem, por não saber o que é olhar para as [cousas, Não compreende quem fala delas Com o modo de falar que reparar para elas ensina.) Mas se Deus é as flores e as árvores E os montes e sol e o luar, Então acredito nele, Então acredito nele a toda a hora, E a minha vida é toda uma oração e uma missa, E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. Mas se Deus é as árvores e as flores E os montes e o luar e o sol, Para que lhe chamo eu Deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; Porque, se ele se fez, para eu o ver, Sol e luar e flores e árvores e montes, Se ele me aparece como sendo árvores e montes E luar e sol e flores, É que ele quer que eu o conheça Como árvores e montes e flores e luar e sol. E por isso eu obedeço-lhe, (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?). Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, Como quem abre os olhos e vê, E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, E amo-o sem pensar nele, E penso-o vendo e ouvindo, E ando com ele a toda a hora.

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Álvaro de Campos

Tabacaria Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é (E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada. Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida. Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro. Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa. Fui até ao campo com grandes propósitos. Mas lá encontrei só ervas e árvores, E quando havia gente era igual à outra. Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

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Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso? Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! Gênio? Neste momento Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu, E a história não marcará, quem sabe?, nem um, Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras. Não, não creio em mim. Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas! Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo? Não, nem em mim... Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando? Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas – Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas –, E quem sabe se realizáveis, Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente? O mundo é para quem nasce para o conquistar E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão. Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo, Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda, Ainda que não more nela; Serei sempre o que não nasceu para isso; Serei sempre só o que tinha qualidades; Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta, E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira, E ouviu a voz de Deus num poço tapado. Crer em mim? Não, nem em nada. Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. Escravos cardíacos das estrelas, Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama; Mas acordamos e ele é opaco, Levantamo-nos e ele é alheio, Saímos de casa e ele é a terra inteira, Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido. (Come chocolates, pequena; Come chocolates! Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Come, pequena suja, come! Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes! Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho, Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.) Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei A caligrafia rápida destes versos, Pórtico partido para o Impossível. Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas, Nobre ao menos no gesto largo com que atiro A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas, E fico em casa sem camisa.

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(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas, Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva, Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta, Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua, Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais, Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê – Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire! Meu coração é um balde despejado. Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco A mim mesmo e não encontro nada. Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam, Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, Vejo os cães que também existem, E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo, E tudo isto é estrangeiro, como tudo.) Vivi, estudei, amei e até cri, E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu. Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira, E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses (Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso); Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente. Fiz de mim o que não soube E o que podia fazer de mim não o fiz. O dominó que vesti era errado. Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me. Quando quis tirar a máscara, Estava pegada à cara. Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido. Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado. Deitei fora a máscara e dormi no vestiário Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo E vou escrever esta história para provar que sou sublime. Essência musical dos meus versos inúteis, Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse, E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte, Calcando aos pés a consciência de estar existindo, Como um tapete em que um bêbado tropeça Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

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Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta. Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada E com o desconforto da alma mal-entendendo. Ele morrerá e eu morrerei. Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos. A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também. Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta, E a língua em que foram escritos os versos. Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas, Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra, Sempre o impossível tão estúpido como o real, Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra. Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?) E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. Semiergo-me enérgico, convencido, humano, E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário. Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos. Sigo o fumo como uma rota própria, E gozo, num momento sensitivo e competente, A libertação de todas as especulações E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto. Depois deito-me para trás na cadeira E continuo fumando. Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando. (Se eu casasse com a filha da minha lavadeira Talvez fosse feliz.) Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela. O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?). Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica. (O Dono da Tabacaria chegou à porta.) Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me. Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

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Ricardo Reis Cada um cumpre o destino que lhe cumpre, E deseja o destino que deseja; Nem cumpre o que deseja, Nem deseja o que cumpre. Como as pedras na orla dos canteiros O Fado nos dispõe, e ali ficamos; Que a sorte nos fez postos Onde houvemos de sê-lo. Não tenhamos melhor conhecimento Do que nos coube que de que nos coube. Cumpramos o que somos. Nada mais nos é dado.

Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive.

Segue o teu destino, Rega as tuas plantas, Ama as tuas rosas. O resto é a sombra De árvores alheias. A realidade Sempre é mais ou menos Do que nós queremos. Só nós somos sempre Iguais a nós-próprios. Suave é viver só. Grande e nobre é sempre Viver simplesmente. Deixa a dor nas aras Como ex-voto aos deuses. Vê de longe a vida. Nunca a interrogues. Ela nada pode Dizer-te. A resposta Está além dos deuses. Mas serenamente Imita o Olimpo No teu coração. Os deuses são deuses Porque não se pensam.

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Fernando Pessoa (ele-mesmo) Entre o sono e sonho, Entre mim e o que em mim É o quem eu me suponho Corre um rio sem fim. Passou por outras margens, Diversas mais além, Naquelas várias viagens Que todo o rio tem. Chegou onde hoje habito A casa que hoje sou. Passa, se eu me medito; Se desperto, passou. E quem me sinto e morre No que me liga a mim Dorme onde o rio corre – Esse rio sem fim.

Esta espécie de loucura Que é pouco chamar talento E que brilha em mim, na escura Confusão do pensamento, Não me traz felicidade; Porque, enfim, sempre haverá Sol ou sombra na cidade. Mas em mim não sei o que há.

Tenho tanto sentimento Que é frequente persuadir-me De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal. Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada. Qual porém é a verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar.

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Poesia Visual

Antonio Gómez Nasceu em Cuenca, 1951, e reside em Mérida desde 1977. Pintor, escultor, fotógrafo e poeta visual. Já participou de diversas exposições ou apresentações de poesias visuais, entre as quais: ARCO, Foro Sur, El Puerto de las Artes, Espacio Atlántico e 2011 Poetas por km2.

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LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

CAMADA DE VÍBORAS

MONARQUIA

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LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

ACIREMA

162 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

PAN PARA TODOS

VALOR EN ALZA

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LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

PAJARERO

ASPAVIENTOS

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LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

POEMA DE AMOR

METÁFORA

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Poesia Visual

DISPAROS DE LUZ

LUMBRERAS

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Poesia Visual

MANDALA

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Poesia Visual

POLITEÍSMO

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Poesia Visual

MUESTRARIO

RETALES

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POEMA PARA SER LANZADO

COMUNICACIÓN

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Poesia Visual

PERFORMANCE E VIDEOPOEMA

NO SOY DE UN PUEBLO DE BUEYES

LA TIERRA TIENE SED

http://www.youtube.com/watch?v=qiN071GTqBE

http://www.youtube.com/watch?v=2XFo1O-Px_o

(Performance)

(Videopoema)

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Chiu Yi Chih Filósofo, escritor, ensaísta, poeta e performer chinês (Taiwan). Publicou o livro Naufrágios (Editora Multifoco, 2011). É mestre em Filosofia (USP) e professor de Filosofia da Arte (Gilles Deleuze) no Instituto Mandarim Yuan De. Criador dos conceitos de Metacorporeidade e Philomundus. Philomundus é a sua prosa experimental, concepção filosófica e performance multimidiática. Site: http://philomundus.blogspot.com E-mail: winnerchiu@gmail.com

PERFORMANCE

PHILOMUNDUS http://www.youtube.com/watch?v=fpg1udD8hiA&feature=feedu

(Performance) Nesta performance, Chiu Yi Chih atua em parceria com o escultor-performer Irael Luziano (Embu das Artes). Ambos fazem parte do LOZ-2962 STUDIO (China - Taiwan - Brasil) e realizaram a performance Philomundus na Casa das Rosas (Evento Diálogos – Diversidade Cultural) com a colaboração do músico de sintetizadores Guidival Verde.

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Metacorporeidade por Chiu Yi Chih

1. Os conceitos de Metacorporificação e Philomundus Durante o processo de pesquisa e criação de performances, fomos sempre conduzidos a um estado ontológico de ser que nos pareceu constantemente visível e abertamente possível de ser conceituado. A partir de um certo momento do percurso, criamos os conceitos de metacorporificação e philomundus que foram elaborados precisamente em virtude da própria investigação de processualidades que nunca se reduziam ao espaço delimitado de uma ação X ou Y. Desse modo, todo silêncio, repouso, movimento, gesto ou objeto escultórico se corporificava e se tornava uma metacorporeidade compondo-se assim com outra corporeidade numa dilatada faixa de matéria-tempo onde toda forma se fazia metacorporificável. A palavra metacorporificação (do prefixo grego metá + corporificar) é um conceito estético-filosófico criado em função da necessidade de esclarecer tal processualidade artística. Surgiu a partir da construção das performances coreográficas e da análise de uma certa recorrência de verbos compostos em grego clássico tais como metabaíno (passar de uma situação a outra), metanoéo (mudar de pensamento/sentimento), metarrythmídzo (mudar a medida ou a forma) e metaskeuádzo (mudar de vida, de domicílio). O sentido geral no campo semântico grego é sempre a ideia de mudança, transformação ou participação. O termo metá utilizado frequentemente nas orações gregas pode também funcionar como preposição e significar: 1) “em meio de”, “com”, “em companhia de”, “de acordo com”, exprimindo a noção de “estar no meio de”, “ir-se” e “mover-se de acordo com”, enfocando a ideia de contato/participação; 2) o sentido de “em” e “dentro de”, com ênfase sobre o conceito de espacialização; 3) e ainda, com a ideia de temporalidade, exprimir a noção de passagem/mudança. Assim, a ideia fundamental do processo de “metacorporificação” consiste: 1) na participação de uma corporeidade em seu contato com as outras corporeidades (meu corpo encavalando-se com a escultura de bambu e com as sonoridades perceptíveis/imperceptíveis); 2) na imersão das corporeidades em sua ambiência (as ressonâncias dos sintetizadores metacorporificando-se com o meu corpo, com as diversas corporeidades como seres moleculares, bambus, piso do chão etc); 3) e, durante a passagem de uma corporeidade a outra, a mudança de uma forma a outra, consiste na construção de uma imensa textura escultórico-sonora, ou seja, naquilo que podemos conceber como universo philomúndico habitado por seres amantes dos infinitos mundos possíveis.

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Podemos qualificar tais seres precisamente como “amantes”, e nesse sentido, philomúndicos, porque a sua condição ontológica é imersão, naufrágio, estado de quem imerge nas profundezas das interconexões e se entrega “afetuosamente” ao mundo e à vastidão dos seres que nele habitam. A palavra philomundus, cujo sentido é “amante-do-mundo” significa mais a condição de fluidez intrínseca ao ser e, portanto, um modo intuitivo de existir do que um estado premeditado e sustentado por critérios de racionalidade. Por isso, concebe-se tal estado diferenciado como certo modo de contractilidade/expansividade do corpo humano do que deliberada escolha, decisão existencial, atitude fenomenológica, afirmação da potência da diferença, visão metafísica ou posição autorreflexiva da consciência. É, em sentido mais preciso, a condição ontológica de todo ser, seja humano, animal ou planta, isto é, o estado de ser-corpo-aberto suscetível às interconexões e simultaneidades dos diversos mundos que nos atravessam. Nesse sentido, todo ser que se faz amante-do-mundo se corporifica, se torna consciente de seu estado-amante, ao mesmo tempo em que se transmuta no que podemos chamar de metacorporeidade, ou seja, uma modulação de ser-corpo-outro (sem deixar de ser si-mesmo), constituindo assim o vasto campo da metacorporificação. Tais metacorporeidades são texturas escultórico-sonoras corporificáveis e corporificadas nesse interstício relacional, nesse espaço que existe entre as interconexões onde se atraem e se repelem, se desfazem e se refazem os seres philomúndicos como formas de espacializar o próprio domínio do espaço. Daí o ato performativo de tornar-se uma corporeidade em meio às outras corporeidades num estado ontológico de "amante-do-mundo", e ao mesmo tempo, corporeidade espacialmente única e plurívoca, a ponto de instalar-se "dentro" de outras forças, criando-se a si próprio como metacorporeidade. A imbricação entre música, escultura, poesia, filosofia e dança como campos heterogêneos de intensidades que se encontram e se afetam produz também distintas metacorporeidades, porque não existe um corpo, uma corporeidade ou uma metacorporeidade, e sim plurívocas metacorporeidades constituídas por diversos seres philomúndicos. Assim, o fenômeno da metacorporificação torna-se acontecimento processual autoexploratório que expõe selves alternativos múltiplos e dissemelhantes. Ao invés de realizar algum ato de expressão, o performer se reinstala no espaço préexpressivo da linguagem, espaço este repleto de metacorporeidades e acontecimentos. Ao invés de uma coreografia ou metacoreografia, seria fundamental pensarmos mais numa imbricação e consequente multiplicação de todas as metacorporeidades, visto que a palavra “coreografia” já nos remeteria ao universo dos movimentos da dança enquanto código delimitado e identificável. Logo, a ideia de metacorporificação não poderia ser associada à delimitação prévia de um corpo específico, à formulação de uma cena coreográfica ou à forma sequencial de gestos e movimentos pré-ensaiados. É evidente que o ato de metacorporificar cria gestualidades, movimentos e sons no espaço, mas, estas forças somente adquirem seu caráter ontológico no ato presente da performatividade, pois, trata-se antes da criação de uma textura escultórico-sonora de ressonâncias espacializadoras do que de uma coreografia no sentido tradicional da palavra.

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2. Sobre as performances Philomundus e Medeia: cadáver midiático Textura multimídia buscando como material não apenas o corpo vivo do performer, mas também espacialidades escultórico-sonoras, dança, poesia, filosofias e materiais “in natura”, Philomundus é um trabalho que pertence ao LOZ-2962 STUDIO (China-Taiwan-Brasil) cujos integrantes são o escultor-performer brasileiro Irael Luziano (Embu das Artes) e o filósofo-escritor-performer chinês Chiu Yi Chih (Taiwan/Taipei). O trabalho multimidiático, que conta com a participação do músico de sintetizadores Guidival Verde (Embu das Artes), opera com um quadro conceitual de questões relativas à subjetivação (eu/outro), território urbano (territorialização/desterritorialização), linhas de demarcação econômico-social (centro/periferia) e diferenças sócio-culturais (Oriente/Ocidente). Busca-se no projeto em parceria a potencialização desses vetores de modo a produzir relações transversais/plurívocas entre China-Taiwan-Brasil, tornando possíveis a heterogênese dos agenciamentos e a interação dos múltiplos mundos. É fundamental nesse contexto o processo de metacorporificação porque acaba por problematizar a relação Homem-Máquina-Mundo, a noção de Sujeito e a sua ideia correlata de temporalidade homogênea. Em Philomundus nada é pré-fixado. Tudo se dá no ato da efetivação, no acontecimento por meio do qual se desdobram pulsações e metacorporeidades. A gramática corporal, nesse caso, com seu repertório de movimentos codificados não funciona como paradigma. Renuncia-se ao estabelecimento de partituras e marcações. Mas tampouco se trata de mero espontaneísmo. Há, na abertura da performance, a presença de uma voz robótica – ressonância reduplicada da voz performática de Chiu Yi Chih que performatiza o texto Philomundus – e o acoplamento metacorporificante de elementos que se atraem e se repelem, formando assim uma consistência intrínseca ou aquilo que poderíamos chamar de “textura escultórico-sonora”. Textura que se revela precária, e ao mesmo tempo, necessária, visto que é a contemporaneidade com suas velocidades e mutações estrondosas. Portanto, não há padrões, e sim dimensões esculpidas por atrações e repulsões como fenômenos subjacentes às interfaces, multiplicidades e interconexões entre Homem-Máquina-Mundo. Enquanto o músico Guidival Verde manipula sintetizadores criando modulações sonoras no espaço, o performer Chiu Yi Chih, afetado por tais sonoridades, reescreve caligrafias metacorporificáveis de acordo com o deslocamento flexível da escultura de bambus. Essa escultura, construída pelo escultor Irael Luziano com bambus recolhidos na região de Itatuba em Embu das Artes, é uma espécie de prótese acoplada ao corpo que lhe permite novos reposicionamentos espaciais. Nessa ambiência criada logo no início da performance, ouve-se a voz robótica: “já que tudo é máquina e não consigo deslocar meus pés desse lugar maldito, DIGO AGORA: / rato rato rato eterno ar maldito”. Tal instância performatizante faz com que cada corporeidade – escultura de bambu, homem, sonoridade – se prolongue numa outra corporeidade, tornando possível o fenômeno da metacorporificação e a transmutação dos seres na sua alteridade imanente. A voz robótica então se costura com outras variantes sonoras e metacorpóreas, tecendo um amplo espectro paródico de fragmentos imaginários da própria identidade híbrida do performer (chinês-brasileiro-embuense).

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Numa espécie de autorreflexão irônica, o performer se desconstrói enquanto identidade perpassada por múltiplas temporalidades. Transpondo vórtices, sonhos, maquinarias e simulacros, a identidade se fragmenta e se precipita num processo de dessubjetivação. Nesses lugares do inconsciente philomúndico, acumula-se uma vasta zona de órgãos semi-mortos, estados larvares de sonho, metamorfoses e mitologias aleatórias: “o INANIMADO revestido de brasas de Santo Antônio, e ao lado da leoa combalida e da Nêmesis jubilosa, indiferente, o INANIMADO sulfúrico das rosas infalivelmente castigado pelas tochas de Zeus”. Tal percurso de metacorporificação se distende e se expande na plurivocidade, pois, atualiza-se como translação de múltiplos fragmentos que se atraem e se repelem numa sintaxe espiralada cuja estrutura se redobra numa espécie de fluidez anti-narrativa de tempos variáveis. Pode-se vislumbrar tal configuração estética como gigantesca rede de metacorporeidades com suas camadas protéticas, suas espacializações escultórico-sonoras que se contraem e se dilatam em percursos metacorporificáveis. É por esse viés espacializante no sentido da instanciação de uma ambiência de faixas de matéria-tempo que se constroem plasticidades moventes, no sentido de uma filosofia da textura cuja materialidade é o próprio meio com que se performa, meio que acaba se autoengendrando enquanto ambiência extensiva e intensivamente transdutor. Aqui a palavra “meio” não é simplesmente instrumento, veículo de informação/mensagem que transmite um significado X ou Y, mas, um sistema metacorporificador que remodela e reatualiza o próprio sentido inerente ao ato do acontecimento. Por isso, escultura enquanto campo desdobrável de órgãos pulsantes, música enquanto mapeamento de intensidades plurívocas e poesia enquanto entrecruzamento de materialidades acústicas, porque o que importa não é “o fazer algo”, mas o “deslocar-se com” os eixos do espaço-tempo, entre a enunciação referencial e o estado visível das coisas, entre o plano da expressão e o domínio dos fatos, performativamente em situação, num contra-discurso, num trans-curso experimental. Ser-amante do mundo com os ouvidos à flor da pele. Porque é no nível da experiência que emerge o acontecimento que não se confunde com o fato empírico. Acontecimento-força. Acontecimento que não se refere ao domínio factual, mas se reflete e se redimensiona como campo de processos explicitamente desestabilizadores. Através desse processo de dessubstancialização da suposta identidade do Sujeito, apaga-se a aura fetichizada do Eu e, consequentemente, a ideia de constituição de uma identidade estável e homogênea. Nascem assim outros monstros, corpos protéticos, ressonâncias de cadáveres midiáticos, presenças híbridas, fragmentos de eus moleculares, fluxos residuais, espectros estarrecedores, máquinas escultóricosonoras, simultaneidades perceptivas, intersecções, conexões, transfusões, ossos de possibilidades que reescrevem a noção mesma de Sujeito, o que permite a liberação de um estado de ser-ontológico-philomúndico que estaria aberto aos fluxos descentralizadores. Daí o conceito de estado ontólogico de ser-amante-do-mundo, compreendido não como lugar de representações eróticas, mas como gênese de pulsões e volatilidades metacorpóreas que funcionam à semelhança de texturas escultórico-sonoras na sua produtividade imanente, e o elemento-pulsão como núcleo produtor de sentidos. Ao invés de ser um mero significante a ser “interpretado” num esquema de representações/sublimações, tal núcleo pulsional é constitutivo e inerente ao modo pelo qual se atualiza o “apêndice com a sua estrutura de vértebras e próteses e manivelas engan176 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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chadas”, já que não está desvinculado das incrustações escultórico-sociais da sociedade capitalista contemporânea. É nesse espaço “cujo centro se refaz a cada explosão” que cada ser metacorporificável se destrói e se reconstrói, “criando-se e recriando-se em inúmeras injúrias inaladas”. Na medida em que ocorrem tais metacorporificações, a própria identidade do ser se desconstrói “no vazio se evaporando vértebra, imagem e conceito” e se transporta para aquele território indescritivelmente inóspito de um “corpo anterior ao início da fala”. O ser se torna outro, múltiplo e se reatualiza numa duração indevassável a ponto de se declarar: “aqui eu escrevo partindo do zero da muda conspiração”. Aproxima-se, portanto, daquela temporalidade fora das significações preestabelecidas, como se pudesse constatar nossa tão precária condição de ser “um corpo indo ao encontro de sua morte / uma imagem indo ao encontro de sua sombra / uma sombra indo encontro de seu corpo / um corpo indo ao encontro de sua imagem.” De certo modo, numa espécie de retorno antihegeliano às próprias entranhas da negatividade, “assim como se a chuva lentamente fosse me algemando contra a história e eu fosse a sua negação concreta, o seu índice particular: o pé de Aquiles contra todas as guerras e agamenons”; e, por conseguinte, num processo que nunca se encerra, “com as coronárias alteadas numa relação pouco totalizável, sendo uma totalidade ao lado das partes e não uma totalidade transcendendo-as ou intercedendo nos seus passos”. De um polo a outro, de uma extremidade a outra, transmutando-se em diversos mundos e seres, “principiando a cada segundo em vários eus e moléculas, ultrapassando toda mecânica dos conjuntos molares”, a identidade do ser não somente se diferencia no espaço como se dispersa “no fundo das lareiras e no crisol das héstias consagradas”. Adentra certas zonas de neutralidade intensiva, certos limiares de submersão implosiva. É como se tudo passasse nos limbos, nas fronteiras, nos intervalos, no horizonte no qual o ser se propaga, resultando na criação de metacorporeidades com suas características polivalentes. Este é o desafio de Philomundus que se produz enquanto conceito midiático e metacorporificante, quando pensa-se a si mesmo na sua proximidade com o meio e com as outras corporeidades, ou seja, na utilização desta materialidade sígnica com o intuito de construir as suas metacorporeidades. O meio é, nesse caso, a própria ambiência sonora, escultórica e coreográfica que se auto-transcende na própria imanência, tornando-se horizonte polifônico de olhares, sentidos e pulsões. Tal proximidade com o espaço reconfigurado por meio da instanciação de gestos, movimentos e sonoridades pode ser vista como o próprio fluxo philomúndico enquanto campo indeterminável, heterogêneo e plurívoco. Nesse aspecto, tanto quanto Philomundus, a performance Medeia: cadáver midiático se propõe a reinventar a ambiência no sentido de uma textura escultórico-sonora construída a partir da criação de ressonâncias recíprocas. Ela torna visíveis o vácuo das distâncias e o amplo espectro de atrações/repulsões das metacorporeidades que ali se performatizam. Ao invés de reunificar as séries divergentes e díspares numa unidimensionalidade, ela potencializa suas múltiplas metamorfoses, atravessa campos, insufla o silêncio. Através do prolongamento das disparidades e da dilatação Celuzlose 08 • Dezembro 2011 177


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fulgurante das forças, a performance opera com o campo problemático do ser-corpomulher e de suas respectivas interconectividades contraditórias: sua relativa autonomia face ao mundo patriarcalizado, sua precarização desencadeada por uma série de fenômenos tais como aborto indesejável, ideal máximo de beleza, desejo do poder masculino, estética consumista, em última instância, opera com a transitivização de questões próprias ao universo contemporâneo do ser-corpo-mulher. Parece ser precisamente essa “negra encruzilhada” à qual a percepção do performer deveria se ater: colocar-se não acima da ambiência concreta do mundo numa espécie de sobrevoo imparcial, mas, ao contrário, colocar-se no meio das interconectividades metacorpóreas. Justamente, em Philomundus, pensamos se não seria possível instilar uma tal espacialidade através da metacorporificação desses mundos dissonantes e pluridimensionais. A visão não se dá apenas no local do olho. O tato não se encerra unicamente na superfície carnal. Há uma metamorfose que não é senão a própria mutação metacorpórea entre corpo, espacialidade e ato da percepção. Ao transformar cada movimento em metacorporeidade, a performance Philomundus se constrói, se perfaz, se redesenha enquanto metacorporificação, ressonância e sensorialidade plurívoca. Portanto, não se trata de coreografar o movimento corporal no espaço fisicamente constituído, mas sim de instaurar, instanciar um estado cognitivo-espacializante no próprio domínio do espaço, isto é, metacorporificar a própria linguagem, uma vez que esta última já se revela à luz da percepção como expiração/inspiração, movimento, cor, sonoridade, em última instância, metacorporificação do Ser. Nessa processualidade onde as relações se costuram, desarrajando-se e descosendo-se, o Ser não é inteligível ou sensível, mental ou físico, universal ou particular, visível ou invisível. Nessa ontologia espacializante, o Ser não é expressão ou conteúdo. Não é sonoro ou insonoro. Ele é o que poderemos chamar de “amante do mundo”, isto é, uma espécie de modo-de-ser-intuitivo imanente ao mundo e à vastidão dos seres que nele habitam. Tampouco é corporal, incorporal ou inexistente. Nem se poderia dizer que é “virtual”. Ser amante do mundo não é simplesmente uma questão a ser problematizada, um conceito passível de ser formulado ou uma evidência fenomenológica como ser-no-mundo. É, antes de qualquer conceitualização, este estado de ser-amante, esta conjugação de metacorporeidades. Atração e repulsão entre modos plurívocos e dissonantes do Ser. Assim como há movimentos de conjunção e disjunção na zona das interconexões, isto é, a infinidade de atributos exprimindo tanto a energia pré-reflexiva que permeia todo estofo do REAL quanto as subtrações/modificações do código genômico, nessa mesma medida ocorrem mutações no nível do código semântico-político do universo philomúndico. Nunca, portanto, numa soma de unidades, mas sempre numa metacorporificação que se processa através de mediações, passagens, capturas, migrações, viagens, trânsitos e metamorfoses. “Em cada propulsão que assinala uma linguagem de inexpressa forma / sendo que qualquer identidade se fará diversa / desdobrada em letras indiscretas”. Nesse sentido, as identidades são desmontáveis e passíveis de serem esculpidas como estalactites cavernosas à procura do INANIMADO. “Tal como se estivéssemos num anzol gigantesco de limalhas interconectadas / ora deslizando entre fagulhas 178 Celuzlose 08 • Dezembro 2011


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eletrostáticas / ora se apoiando na coluna principal”. Donde a plurivocidade de variações em torno da própria identidade do Sujeito: chinês-brasileiro-embuense nas embocaduras da catástrofe geográfica. Cartografia de identidades ontologicamente escorregadias. Territórios estrangeiros. “Aquele deserto por onde o rato de Hamlet / se interroga numa espécie de interioridade artificial / cujo sopro se faz carne / e se decompõe em minúsculas penínsulas”. Percurso aéreo-subterrâneo. “Como o sol / se afogando / magma poroso”. Indeterminação, índice do vazio, silêncio, intervalo, música criando-se em ziguezagues de instabilidade, riscos convexos que se abandonam aos bambus selvagens, escarificações que flagelam o CORPO crivado de texturas escultórico-sonoras. Crise da linguagem de um eu não unificado, distanciamento, presença de si a si, imagem não unificada e nem unívoca. É como ser uma, duas, três, quatro, cinco, ou ainda, oito indivisíveis metacorporeidades. Criar ninhos / transmutar sons / formar matérias não-redutíveis. Ser PHILOMUNDUS que é ser AMANTE DO MUNDO, isto é, equivalente a metacorporificar a existência em inúmeras configurações. Ressoá-la e ressignificá-la em infindáveis coordenadas a ponto de dizer “Eu amo” ao invés de “Eu penso”: pólipo poliédrico permutável assim espelhando a potência das ações num acoplamento de séries dissimilares – “aqui eu me movo em permanente proposição à deriva! aqui eu ergo a argamassa de mim mesmo! aqui eu me faço eterno palhaço desdobrando-se nas auroras enrouquecidas”. Metamorfose de altíssima e constante fluidificação. “Onde eu sou apenas uma alavanca fuliginosa entre deserto e escombros, imergido em turbinas, espadas e parafusos incandescentes”, ou ainda, “meu pensamento alardeando com as altíssonas chagas / sabendo-se matéria rarefeita / impreciso tufão / de inflamável lonjura / densamente / cerrado em arestas e cubos”. Ser metacorporificável que se costura com a escultura, ou se costura com outra coisa para constituir uma engrenagem numa série de movimentos precisos como “se encavalar”, “se encaixar”, “se desencaixar”, “se desprender” e “se suspender”. Textura-Estridência sem representação. Sem ideia de sujeito. Sem postulação de objeto. “A inverossímil fuga de simplesmente palmilhar o antes inabitável”. Deserto inundado de vozes. Identidade submergida “numa espécie de remota âncora acesa que conspira no além crescente de outras faíscas”. Eis aí o processo de metacorporificação onde tudo se vasculariza e se metamorfoseia na infinitude das variáveis, tornando-se flacidez, vazio, dilatação, dureza, atração, repulsão, maleabilidade, onde cada corporeidade pode ser esculpida e reesculpida dando início ao ressurgimento da imensa rede de metacorporeidades que se desdobram então em órbitas, sulcos e desdobramentos. Nesse aspecto, aquele que se torna amante-do-mundo imerge na paisagem-esfarelamento das atmosferas, alça-se às asas do vento para ser assoprado, atravessado e perfurado pelas múltiplas metacorporeidades, pois, é no confronto com o INANIMADO que se empreende o transcurso de Philomundus, performance metacorporificante que se perfaz e se refaz a cada instante de sua performativização. É nesse sentido que se torna incomensurável fissura. Música das palavras metacorporificáveis. Espaço poético preenchido por ondas infinitesimais, em que cada partícula é tecido flexível que se costura e se recostura num processo de metamorfose e metacorporificação do Ser. Celuzlose 08 • Dezembro 2011 179



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