Celuzlose 07

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celuzlo se Revista

Literรกria

07 ~ Dezembro 2010


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Índice

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Armando Freitas Filho

BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Ana Tanis Annita Costa Malufe Beth Brait Alvim Bruno Brum

Bruno de Abreu Chiu Yi Chih Diniz Gonçalves Júnior Edson Bueno de Camargo

42

GEO

Ignacio Muñoz Cristi (Chile)

Caderno

18

Isadora Krieger Reynaldo Damazio Roberta Ferraz Thiago Ponce de Moraes

Literatura sem Fronteiras

José Landa (México)

Juan José Macías (México)

48

Crítico

Por uma leitura fenomenológica de Édipo Rei - por Chiu Yi Chih Borges e a poesia: Esse ofício do verso - por Wanderson Lima

Edson Cruz (Organizador) Ana Maria Ramiro

BIO

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O que é

?

?

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poesia?

Beatriz Bajo Laís Chaffe

72

Vida & Obra

Arthur Rimbaud - por André Dick

88

LÚCIDA RETINA

Poesia Visual

Guilherme Mansur

celuzlo se # 07 ~ Dezembro 2010 Expediente Editor: Victor Del Franco Projeto Gráfico, Diagramação e Revisão: Victor Del Franco

02 Celuzlose 07 - Dezembro 2010

Colaboraram com esta edição: Ana Maria Ramiro / Ana Tanis / André Dick André Goldfeder / Annita Costa Malufe Armando Freitas Filho / Beatriz Bajo Beth Brait Alvim / Bruno Brum / Bruno de Abreu Chiu Yi Chih / Diniz Gonçalves Júnior Edson Bueno de Camargo / Edson Cruz Guilherme Mansur / Ignacio Muñoz Cristi Isadora Krieger / José Landa Juan José Macías / Laís Chaffe Paulo Ferraz / Renan Nuernberger Reynaldo Damazio / Roberta Ferraz Thiago Ponce de Moraes / Wanderson Lima

Contato: celuzlose@gmail.com

Os textos e imagens desta revista poderão ser usados para fins não comerciais, desde que sejam citados os nomes dos autores, o nome da revista e o link correspondente.


Editorial Proximidade das artes

Segundo as palavras de Armando Freitas Filho na entrevista desta edição, ele diz que: “Sou um ser literário, digamos assim. O que incrementa para valer minha poesia é a literatura; a leitura de poemas e da crítica, principalmente”. No entanto, a sua criação poética também dialoga e faz referência a outras artes como o cinema, a música e, com mais proximidade, as artes plásticas. E essa proximidade com as artes plásticas está presente em muitos de seus trabalhos, a saber: Mademoiselle Furta-Cor, Dupla identidade, Sol e carroceria, entre outros. Gostaria de agradecer a colaboração de Renan Nuernberger e André Goldfeder que foram responsáveis pela elaboração da entrevista. Na seção BIO – Vida & Obra, um panorama da trajetória tortuosa e do silêncio precoce do poeta Arthur Rimbaud, juntamente com a tradução de quatro de seus poemas na versão de André Dick. Boa leitura. Victor Del Franco Editor

Celuzlose 06 Clique aqui a para ler a 6 edição http://issuu.com/celuzlose/docs/celuzlose_06

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Foto: Cristina Barros Barreto

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É inegável a dedicação de Armando Freitas Filho à poesia. Desde a sua estreia com Palavra (1963), ele tem participado ativamente do cenário cultural. A partir de 1979, lança um livro a cada três anos além das edições de autor em parceria com outros artistas. Seu livro mais recente é Lar, (Companhia das Letras, 2009). Nesta entrevista, ele fala sobre a relação da sua poesia com as artes plásticas, suas influências e diálogos poéticos além de uma breve reflexão sobre a sua trajetória e a sua produção atual.

Entrevista feita por Renan Nuernberger e André Goldfeder

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Em termos do trabalho com a forma, e das formas de conceber a atividade artística, você acha que sua relação com as artes plásticas teve impacto sobre seu trabalho como poeta? Como? E o cinema, que aparece, por exemplo, sob a forma do “corte brusco / de luz” (“Na área dos fundos”) ou em alusões a Godard (“Godardiana”), ou a epígrafe de Fio Terra?

Aprendia, na prática, que a arte podia nascer, genuinamente, e com igual mérito, de disposições diversas, até mesmo antagônicas: se Rubens pintava com os pés no chão, Roberto tinha a cabeça nas nuvens. Por quase dez anos as exposições

Sou um ser literário, digamos assim. O que incrementa para valer minha poesia é a literatura; a leitura de poemas e da crítica, principalmente. Mas se isso é a verdade primeira e fundamental, não posso deixar sem menção outros aditivos que constituem – e como – a minha base. Conheci Rubens Gerchman e Roberto Magalhães em 1958. O primeiro foi meu colega de colégio. Naquele tempo, todos nós éramos aprendizes totais. Se sempre tive uma queda natural para apreciar pintura e pintores, o convívio estreito com eles, seguramente, apurou essa tendência e educou o meu gosto para os traços mais inovadores, da minha geração, nas artes plásticas. Pude ver, na intimidade, o aparecimento daquelas vocações que cresciam, como a minha, naqueles anos. Capa de Mademoiselle Furta-Cor (1977) livro feito com litogravuras de Rubens Gerchman

Poema "Negra" com litogravura de Rubens Gerchman Mademoiselle Furta-Cor

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caseiras de quadros, desenhos e poemas, no dia-a-dia comum, eram sujeitas a críticas à queima-roupa, quando a tinta do pincel e da caneta ainda não tinham começado a secar, e, no que me diz respeito, fizeram com que eu, sem deliberação consciente, trouxesse para a minha escrita, a cor e a nuança, o valor do esboço que pode, por si só, ganhar o estatuto de obra acabada. Mais: a suposição que a poesia moderna, ou a experiência poética contemporânea em geral, por sua natureza intrínseca, por ser um instrumento de ponta da linguagem, é o gênero que acolhe, com mais naturalidade, aportes de outras artes. Minha composição literária, por isso mesmo, volta e meia, se vale, inconscientemente, dessas apropriações/contribuições, já que elas estão na origem da minha formação. Posso ainda dizer que, às vezes, essas influências derivadas de outros instrumentos de voo, como a montagem jump cut de Godard, a percussão stravinskiana, por exemplo, podem ter alcance tão grande quanto o da literatura, até por uma razão psicológica, de “descompressão”: por pertencerem a outros campos, a impregnação é mais fácil, pois se dá sem a defesa instintiva que se arma quando sentimos que se aproxima a sombra, cúmplice e competidora, que se formou com a mesma textura da sua. Além de capas de livros meus e apresentações de exposições de Rubens, a nossa tabelinha rendeu

dois livros: Mademoiselle Furta-Cor e Dupla identidade. Na semana de sua morte, combinamos no telefone um terceiro: Posto policial, que espero levar a cabo. Outro encontro, muito rico para mim, com uma artista plástica da geração anterior à minha, foi com Anna Letycia: tive um texto meu em prosa, Sol e carroceria, primorosamente iluminado por suas serigrafias, o que confirma o valor da interdisciplinaridade no autor literário que pude ser, mesmo sentindo, o tempo todo, que o que colore e percute fundo, o que corta súbito, num piscar de olhos, dia e noite, é a literatura.

Capa de Sol e carroceria (2001) álbum feito com serigrafias de Anna Letycia

Texto e serigrafia de Anna Letycia para Sol e carroceria

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Lendo sua obra reunida, percebe-se que em muitos momentos você dialogou abertamente com a obra de seus pares: a leitura definidora de A luta corporal de Gullar, o questionamento da rigidez da Poesia Concreta ou a aproximação (não sem tensão) com a Poesia Marginal, etc. me parecem índices disso. No entanto, não é possível identificar com tanta clareza esse diálogo com a poesia produzida da década de 1990 em diante. Você poderia citar poetas de gerações mais recentes que "aparecem" em suas obras ou, pelo menos, jovens poetas que você considera interessantes? O “diálogo” só foi aberto, conscientemente, a partir de Numeral/Nominal (2003), antes o que havia era “angústia da influência”, ou influência pura e simples. No meu caso, a influência seria mais influenza sem cura que peguei com Bandeira, Drummond, Cabral, Gullar. Não há remédios para esses vírus virulentíssimos. A saída é que pode haver mutações, novas cepas. Em mim, salvo engano, houve, porque se não houvesse, estaria replicando, sem tirar nem pôr, as “doenças” deles. E isso não ocorre, a meu ver. Talvez até por serem quatro foi mais fácil encontrar desvios, já que eles chegavam até a mim, mesclados por natureza, me facilitando esse princípio de amostragem “driblada”. Com a Poesia Concreta e Marginal o que houve, realmente, foram “contrastes e confrontos”. O que me causou espécie nessa pergunta foi a constatação, que eu não tinha realizado ainda, de que não há diálogo, influência, contraste e confronto com a poesia feita na década de 1990 em diante. Por certo, há curiosidade, leitura, mas não passa daí. Com toda a certeza, é um sinal da minha velhice. Quem sabe, depois desse toque, desse cutucão, vou conseguir, me arrastando, me engalfinhar, para o bem e para o mal, com a minha posteridade. De todo modo, posso citar duas poetas que considero muito interessantes: as acompanhei de perto desde que tinham 15 anos (elas chegaram ao livro aos 20 e poucos e ainda falta um bocado para chegarem aos 30): Alice Sant'Anna, com Dobradura e Laura Liuzzi, com Calcanhar. Talvez precise nessa quadra de sentidos rebaixados, que só tende a piorar, dessa proximidade, física e anímica, para sentir o sopro do novo, que me passaria despercebido se não houvesse essa intimidade continuada. 08 Celuzlose 07 - Dezembro 2010

Você publicou em Lar, (2009) poemas "autobiográficos" bastante distintos da tônica encontrada em poemas de Fio terra e Raro mar. No entanto, os poemas mais recentes que você publicou na imprensa aproximam-se muito mais da poética dos livros anteriores. Sabemos que você publica um livro novo a cada três anos e imagino que 2012 não será diferente – portanto, você deve ter um material mais ou menos organizado para a futura publicação. Lar, foi uma "pausa" entre dois livros formal e tematicamente mais próximos ou algo desta experiência estética encontra-se na poesia que você vem escrevendo atualmente? Não me parece que os poemas de Lar, (2009) sejam tão distintos assim dos de outros poemas de livros meus. Afinal, no citado Fio terra, o poema que dá título ao volume se não é, stricto sensu, um diário do autor, ele é o diário de um poema que aquele autor escreve. Creio que desde Palavra (1963), já há indícios da memória. Em De corpo presente (1975) o eu, começa a mostrar, aqui e ali, a sua cabeça, e, progressivamente, sua cara. Ver, nesse sentido, a seção “Memorial”, por exemplo. O que houve no livro de 2009 foi uma concentração buscada e conseguida. Digo na orelha que se trata mais de um “livro da memória do que de memória”. Por isso, em vez de autobiográfico, seria “alterbiográfico”, pois os poemas ficcionalizam, o tempo todo, a própria escrita, o próprio assunto, bem dentro da chave interpretativa cunhada por Antonio Candido quando analisa a obra de Graciliano Ramos: confissão e ficção. Em

“No meu caso, a influência seria mais influenza sem cura que peguei com Bandeira, Drummond, Cabral, Gullar.”


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Foto: Alex Sant´Anna

Raro mar (2006), outro livro citado na pergunta, poemas como “Espelho e cego”, “Emulação”, “Limpo e seco”, “Duas mesas”, “Segredo”, “Relógio” “Noctívago”, poderiam se acomodar, sem discrepância, à sequência daqueles que estão na segunda parte de Lar, assim como toda a suíte drummondiana e de poemas pontuais sobre outros autores, também. Puxar pela memória é atividade que não tem fim, propriamente. Os poemas inéditos que apareceram nesse ano no Suplemento do Estadão, “Sabático”, são uma prova cabal disso. De fato, poderia publicar meu próximo livro em 2012, conforme o hábito, mas como em 2013, completo 50 anos de poesia édita, não me custa (?) esperar a data redonda para lançá-lo. Enquanto espero, procuro esmerar-me, mesmo sabendo que isso é uma quimera; mais vale a outra opção, a de escrever outros poemas para esse livro do cinquentenário, que pelo visto vai ser volumoso.

Seu projeto poético apresenta uma clara continuidade e consistência propositiva e sua linguagem tem traços pessoais muito definidos. Há momentos em que os caminhos criativos que lhe aparecem são imprevistos? Você identifica momentos cruciais, de virada, ou de revisão em sua trajetória? Distingue nitidamente “momentos altos” de sua produção? A posteriori, às vezes muito a posteriori, percebo essa “continuidade e consistência” que vocês atribuem ao meu “projeto poético”. Sinceramente, só me dei conta que havia, de fato, uma linha orgânica que costurava um livro ao outro, foi quando acabei de montar Máquina de escrever, reunião de minha poesia até 2003. A sensação plena veio chegando quando o livro foi publicado. Um pouco pela recepção e um pouco mais pela minha percepção. O sentimento foi a de que sempre eu corria atrás de mim. Os instantes de “virada”, “revisão”, “momentos altos”, variam; por isso não posso apontar, com segurança, este ou aquele. Se me deixasse guiar pelos leitores ou pela crítica ficaria mais no ar do que quando procuro esses marcos com os meus próprios botões. Sou mais de “ejetar” do que de “projetar”, embora reconheça, como já disse, que a minha escrita, ou minha composição, ou meu engenho, sempre misturou cálculo e acaso. Mas essa formulação ficou clara somente de uns 12 anos para cá. Antes disso, podia, no máximo, desconfiar e não afirmar, como faço agora.

Quando escreve sobre Drummond ou Cabral, por exemplo, fala em termos de algo “inalcançável”, ou de algo que lhe é incompatível, estranho (no caso de Cabral). O que distancia as obras da sua geração das desses cânones brasileiros? Posso falar por mim, e em poucas palavras ditas com amor e raiva: a excelência deles.

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Você, recentemente, assinou o manifesto de artistas e intelectuais pró-Dilma. Pouco antes, publicou um poema na Folha de S.Paulo sobre o caso do goleiro Bruno. Obviamente, um poema ultrapassa a circunstância e torna-se autônomo mas não se pode ignorar a instância primeira, o material bruto sobre o qual você trabalhou. A pergunta, tendo em vista um exemplo extra e outro intraliterário, é: a poesia brasileira neste início de século deveria ter uma vocação pública? Você considera que os poetas hoje tenham se afastado deste tipo discussão? Se sim, por que isso teria ocorrido? De novo, falo por mim: quando publiquei Palavra (1963), Eduardo Portela, na resenha do livro reclamou, com razão, que minha poesia passava ao largo do momento político que se vivia, que não o refletia em suma. Nunca mais esqueci essa observação e procuro atender à demanda externa, sempre que possível, dentro das minhas possibilidades. Já em Dual (1966), entro, de uma maneira tosca, é bem verdade, na poesia engajada. A preferi assim à outra, condoreira, tipo Violão de rua. Os poemas mais engajados foram retirados da edição de Máquina de escrever: achei que eles já tinham cumprido o seu papel. Um deles, “Retrato falado”, segundo me disseram, junto com outro poema de Mauro Gama, foram responsáveis pelo fechamento de uma Bienal do Livro em São Paulo. Os poemas dessa exposição eram apresentados em ampliações fotográficas, e causavam, por isso mesmo, grande impacto. O crítico Fábio Lucas levou a exposição, se bem me lembro, para uma mostra nos Estados Unidos. Se me for dada a oportunidade para fazer uma nova edição de minha poesia reunida, penso até em colocar, numa seção em separado, os poemas que retirei dos livros Dual e Marca registrada, quando publiquei Máquina de escrever, pois me arrependi de tê-lo feito. Minha poesia, portanto, de 1966 em diante, sempre procurou refletir o que acontecia “no sereno”. O melhor exemplo disso, segundo penso, é “A flor da pele” (1978), objeto da dissertação de mestrado de Mariana Quadros, foi publicado, primeiramente, num tabloide de papel jornal, depois no livro À mão livre (1979). O poema, “Penalidade máxima”, publicado no caderno “Ilustríssima” da Folha de S.Paulo, que vocês aludem, e querem publicar junto com essa entrevista, reflete o horror do caso Bruno, na verdade faz parte de um tríptico. Achei que para o jornal o poema cumpria melhor seu objetivo se publicado sozinho. De todo modo, foi um poema que causou controvérsia: a recepção foi majoritariamente positiva, e negativa ou “desconfiada”, em alguns casos. Os que não gostaram acharam que eu “enaltecia” o goleiro, ou que o poema seria melhor, se eu (o poema) falasse pelo “ponto de vista do cachorro”, se entendi bem a opção estética-zoológica. Não sei se conseguiria: apesar da idade, não sou do tempo em que os animais falavam. De qualquer maneira, posso dizer que a observação contrária, mesmo a mais tola, embora eu não a busque (não sou masoquista), é sempre inesquecível, faz a gente pensar contra o adversário ou inimigo, contra nós mesmos, enfim, o que, bem aproveitado, cria têmpera, digamos assim. João Cabral me disse um dia que se um crítico obscuro, ou que ele não conhecesse, ou um chauffeur de táxi, fizesse um comentário que criticasse negativamente o que ele escrevia, não esqueceria “para todo o sempre”. Se era assim com ele, imagine comigo. 10 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


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PENALIDADE MÁXIMA Belo, Bruno, bronzeado pela cor e pelo sol ardente com mais de um metro e noventa e mãos que agarram impassível, com o olhar parado das estátuas frígidas dos ídolos indolores, encara, sem expressão, o batedor o tiro, à queima-roupa, indefensável, que o irá fulminar. Em cima da linha fatal, não pisca, não move um músculo não sente sequer sua metamorfose, que se não chega à pele o desossa por dentro, e depois o esvazia de suas entranhas expostas, cruas, para consumo de todos, e o horror fedorento das suas carnes, devoradas sem nenhuma temperança ou anestesia. Mas a dor ainda não chegou apesar do crime começar a pesar atrás dos olhos, cada vez mais mortiços dos ombros caídos desde nascença, mas só agora percebidos. Direto no computador para não sujar as mãos, me entrego intoxicado pelo mal que a divindade descrita acima exala: suor de atleta, mistura de glória e grama, se evapora rápido ou desanda no suor cúmplice e acre, sem auréola, dos asseclas em sítio de fachada impecável que esconde a casa carcomida incompleta, de tijolos aparentes, ilhada por metralhadora e mastins. Aqui tudo é de carne apodrecida, de fúria de tiros dia afora ferido que demora sobre o cepo sanguíneo, sob o sol estridente disparado por facas cegas pela maldade e ferrugem que antes de cortar, mastigam para que o sofrimento não se aplaque e permaneça aceso, esportivo e um resto de sexo corrompido possa ainda comer, em rodízio, empalar o corpo dominado pelo desejo predador que despedaça, e ele corresponde preso à sua sina, disjecta membra, até o fim, espasmódica, torcida.

(novembro de 2010)

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Revendo sua trajetória desde Palavra, pode-se dizer que sua poesia absorveu criticamente desde um tratamento concreto da palavra quanto procedimentos disruptivos, cultivados de modo saliente em certas correntes poéticas, por exemplo, ao longo dos anos 1970 (inacabamento como componente do resultado artístico, desestabilização da forma, etc.). Por outro lado, sua dicção altamente pessoal parece manter relativamente íntegra uma voz lírica, ainda que problematizada e interrompida por uma dinâmica que dá corpo a uma reflexão sobre as dificuldades da forma. Você poderia tentar situar o que enxerga como traços singulares de seu estilo face a alguns de seus interlocutores (Ana Cristina Cesar, Sebastião Uchoa Leite, Tite de Lemos)?

Foto: Sergio Liuzzi

Minha poesia, creio, tem poucos pontos de contato com a poesia desses tão queridos amigos. Minha vida, ao contrário, não. Como responder com alguma alteridade, se não consigo, se não quero dar um passo atrás para ter uma visão melhor que me distancie ainda mais deles? Creio que cabe à crítica realizar essa operação, se ela achar necessária.

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Em alguns depoimentos você conta que a leitura de crítica e teoria literária sempre foi, para você, uma atividade complementar à leitura e a escrita de poesia. Você acredita que essas leituras tiveram algum impacto em certas etapas da concepção contínua de seu projeto poético, em escolhas, recusas, revisões? Como, e em que medida, entra a reflexão sobre a literatura em seu processo criativo? Essas duas esferas podem ser conflitantes no trabalho de um escritor? Não fiz faculdade, num ato de insubmissão idiota contra o modelo familiar. Graças a Deus fiz Antonio Candido, que é uma Universidade inteira, a vida toda. Essas leituras da crítica vieram suprir, desordenadamente, como acontece com os autodidatas, que levam muito mais tempo para chegar aos resultados necessários e razoáveis, minhas carências. Com toda a certeza me ajudaram muito desde moço. Fui, ainda sou, um bom leitor. Como já disse antes, não havia a intenção de um projeto; o que havia, o que há é uma vocação que precisava ser alimentada. Como tive a sorte de viver numa casa em que os livros e o conhecimento era o que de maior valor se podia ter, consegui ir em frente e chegar a


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este questionário. A reflexão entra pelas janelas abertas, pelas leituras e pelas conversas, primeiro com a família, depois com os amigos. Nunca houve conflito entre o saber adquirido e o meu ofício, a minha criação poética, muito pelo contrário. O instinto nunca foi travado pela razão. Talvez por ele ter sido sempre mais forte do que ela? Acho que não: o que houve, pensando bem, foi um equilíbrio natural de forças, que não são opostas.

“Fui, ainda sou, um bom leitor. Como já disse antes, não havia a intenção de um projeto; o que havia, o que há é uma vocação que precisava ser alimentada.”

José Miguel Wisnik caracteriza De cor como um mergulho “no deserto especular em que o sujeito se abisma em moldura nenhuma”. Nesse sentido, pode ser atribuída à sua poesia, como um todo, um ímpeto fortemente individual, de prospecção da poesia a partir de uma experiência de descoberta pessoal. Especialmente em seus últimos livros, contudo, uma hipótese de leitura possível seria a de que sua indagação acerca dos limites da linguagem poética parece enfrentar um desafio inscrito em um momento coletivo de perplexidade diante da abertura total de horizontes para a criação poética, tal como a vivenciamos hoje. Interessa a você tentar pensar se e de qual maneira sua meditação individual dá corpo a um questionamento, talvez, histórico e, portanto, coletivo? Não sinto ou não sei dessa “abertura total de horizontes para a criação poética”. Melhor: não sinto ou não sei se essa abertura contempla minha criação poética. Melhor ainda: não sinto ou não sei, porque minha criação poética sempre partiu de uma espécie de confinamento, ou de uma claustrofobia irremediável do eu lírico, que mais se espreme do que exprime, isto é, ele é fruto e consequência de uma situação sitiada, ao mergulhar no “deserto especular” (sem nenhum espetáculo, acrescento), que fala Zé Miguel. Penso que essa condição tem uma historicidade obrigatória, pois ela se arranha nas paredes estreitas da contingência do próprio mergulho e carrega sua imanência imediata. Se ela vai chegar a ter uma amplitude coletiva, uma “transcendência”, só o tempo poderá dizer. O que sinto e sei, agora, é que esse mergulho não desemboca em nenhum mar.

Nas 4 páginas seguintes, poemas de Armando Freitas Filho. Celuzlose 07 - Dezembro 2010 13


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PRIMEIRO LIVRO Não parava em pé. Não tinha qualidade de vida bibliográfica porque faltava segundo o ditado o prumo e o peso. Sua capa retratava as cores com as quais o autor se vestia: branco da camisa calça cinza cinto e sapatos pretos. Era também como ele sentia e experimentava a existência: contraste radical com nuança única sóbria, sem variação. A mão paterna o encadernou em pelica impecável: para proteger do tempo que rasga e apaga o volume frágil de lombada magra. Com enxerto extra de folhas fingidas, falsas, em branco para encher o corpo no palco. Para parar em pé. (Poema inédito em livro)

Capa de Rubens Gerchman para Palavra (1963) 14 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


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CICLO O vento desvenda senda noturna despertando semente que engendra ritmo de ar semovente linha turva curva em sombra volteio no espaço enleio luz, repente fruto fruto crescente – dente – semente. (Palavra – 1963)

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MANUAL DA MÁQUINA CDA A máquina é de pedra e pensamento. Funciona sem água, deslizando seu lençol de laje e lembrança aberto e desperto por natureza. Tem por motor o atrito, a tração a alavanca que levanta quem lê e o modela, diferente, a cada passada pois se faz também diversa: novos perfis que se enfrentam assimétricos, e que não esperam o encaixe certo, feito à régua mas o impossível, irregular, sem efes-e-erres, com recortes irritados se aproximando, como no boxe — através do choque, onde se juntam — íntimos, podendo parecer ternos apesar dos dentes, roldanas, o amor arranca, em chão de escorpião. Quando revista, de perto, por dentro a máquina — que não se passa a limpo — se compreende um pouco do engenho do mecanismo de suas linhas partidas. (Numeral/Nomimal – 2003)

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ANTIQUÁRIO Mil folhas. Mesmo em algumas das mais passadas, um pouco do sabor, um risco de doçura e amargo, é remanescente. Anamnésia construída pelo fato e pela imaginação: vai do anátema ao enaltecimento, expressos em alta voz até ao murmúrio cifrado no coração. O acervo de uma vida se dispersará depois de ela parar: alguma coisa aqui, nesta casa, para lembrar quem se foi fica, sem roubo nem degradação, sobrando. O resto, espalhado na desordem dos arquivos dos sebos e brechós, nós defeitos na mudança para lugar nenhum perdido no limbo, reciclável em outro corpo e destino, longe do clamor da hora cada vez mais afastado do limiar original da montagem do dia, à margem do relógio rasgado por mãos alheias, posto fora o sonho, que se açucara, perde o gosto, e fere. (Lar, – 2009)

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Ana Tanis Paulistana e nascida em 1987. É formada em Letras pela USP e em Psicologia pela PUC de São Paulo. Tem interesse por tudo o que é palavra e ainda não sabe bem o que fazer com isso. Nunca teve antes nada publicado. E-mail: anatanis@hotmail.com

Conversa de bar Guarda este recado: toma nota em rasgo de guardanapo. Escuta que te advirto evita o peso do arrependimento. Vendo este conselho ao preço de uma mirada: – não aceita de estranhos sequer uma palavra.

Gasosa é do tamanho do segredo a dose que brindamos: crua prepara o copo, o gole: a dor líquida a gente engole tremulando em careta medita a garganta: melhor a próxima: – tomar com soda 20/11/09

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Insight A lógica do espelho não é a mesma do travesseiro. Pomba albina teu verso principia. Gesto de menina pomba, moça Germina. Voa, alva, canta A derradeira ave, ave revelação! Revive, alva, venta um sopro-ovo-canção. 10/10

Fenda Minha pele é papel: rasga. Fina faca fere e sangra quando se escreve nela a cicatriz de mim. 29/05/10 Copo pela metade bolhas de solidão na sua coca com gelo e limão

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Annita Costa Malufe É poeta, autora de Como se caísse devagar (Editora 34, 2008), Nesta cidade e abaixo de teus olhos (7Letras, 2007) e Fundos para dias de chuva (7Letras, 2004). É doutora em Teoria e História Literária pela Unicamp e publicou o ensaio Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar (Annablume/Fapesp, 2006).

só me apaixono pela mais distante paisagem apertar os olhos para achar o foco focar pela última vez o voo diurno daquelas asas eram momentos de dispersão momentos de aplacar o foco aplacar a vista o desacordo da vista só me apaixono pela paisagem distante recobrar começos continuações eram momentos de dispersar escolher os objetos que se espalhavam movimento inverso movimento reverso da procura pelas asas que circundavam a montanha encontrar o foco e seguir só me apaixono daqui olhando a possibilidade da maior distância ali onde a miopia define os passos ali onde posso me conter posso conter os limites deste corpo o compasso dos meus braços finos o raio que traço deste centro apenas geográfico apertar os olhos para achar o foco repentino uma visão deste voo diurno o limite da miopia é também a limitação dos passos aí onde começam continuam os passos no preto na turbulência aí na paisagem mais distante a vista desacordada a possibilidade daquilo que chamam paixão daquilo pelo que me apaixono olhar disperso olhar focado mas só pela paisagem mais distante

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

você também escolhe o enquadramento oblíquo a câmera em diagonal cortando a paisagem ligar os pontos desconexos de uma paisagem com uma transversal o olhar oblíquo traçando uma possibilidade de ampliar o foco ampliar o enquadramento parece que a diagonal tem esta função você tenta fazer uma paisagem caber na objetiva mas quando os limites extrapolam você precisa inclinar levemente dobrar a paisagem encontrar um ponto de apoio enviesado um ponto de apoio que desloque o quadrado da lente como se a moldura ganhasse uma mobilidade o enquadramento oblíquo deslocando os vértices da forma então de esguelha há um losango há uma paisagem deslocada tombada uma paisagem nos olhando de viés como se ela mesma agora tombasse a cabeça ela mesma nos olhasse é ela agora que nos olha o pescoço torcido o rosto quase apoiando-se no ombro uma dúvida uma leve renúncia apenas ou não o que vejo talvez tenha o gesto da proximidade talvez o deslocamento para olhar melhor focar o que está na diagonal da vista o que não se completa no ângulo reto o que não cabe no ângulo reto da objetiva ela agora tomba o rosto para nos olhar de viés é ela agora que nos olha uma aproximação da perspectiva uma ampliação o deslocamento dos vértices o apoio deslocado apoie sua cabeça aqui nesta imagem apoie-se em mim sobre meus ombros incline-se sou eu que te olho daqui eu que te olho de viés procurando a diagonal o foco a fresta enviesada uma ampliação da perspectiva uma proximidade que não cabe nos limites do ângulo reto

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BR.XXI

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Beth Brait Alvim Nasceu eu São Paulo, 1952. Tem atuação em teatro, cinema, vídeo e participação em oficinas, cursos e palestras sobre literatura e cultura, além de eventos literários, debates, saraus. É responsável pelas áreas de Literatura, Teatro, Artes Plásticas e Visuais do SESC Interlagos, São Paulo. Publicou, com o apoio do ProAC, Visões do medo (Escrituras, 2007). Blog: www.bethbraitalvim.blogspot.com

Líquido índio noturno bebo seu líquido sua chama que em mim tanto acalma quanto ferve

Leite sou forte meu leite de mamoeiro sadio mamei-o todas as manhãs até um calendário de mil anos ficar completo

Fruto não lambuzo o beiço nem salivo doce diante do meu fruto predileto a casca áspera no caminho do seu pomo lanha-me a garganta não lambuzo o beiço nem salivo doce engulo seco

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BR.XXI

Literatura Brasileira Contemporânea

Sede quando meu ser enfim palpita já é tarde tudo está em seu lugar eu que passo o dia arranjando a vida na hora da sede viro a cara pra parede e durmo com água na boca

corpo fechado antes que amanheça a ira do já posto arrisco um jogo e um destino aprumo o corpo e cubro a língua de limo sorvo o sol com raiva e gosto chupo o sal e o açúcar dos meninos antes que o dia se curve à sorte arranco os dentes da fera imposta farejo entulhos atrás de portas e como tudo o que me enjoa engulo o engulho papa amarga e grossa

Media luna nada resta de concreto do sal da úmida noite do meu coiote na terra de mim lambendo suas nervuras e dos rasgos dos seus cactos

até que um engasgo me cuspa fora até que um aborto me vomite sem forma até que meu ventre se revire e me devolva

eu ranjo do suor da eternidade e deliro assim mesmo de arco-íris e limbo o amor é meu coração cheio de lascas deusa presa a um mural de Oaxaca

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Bruno Brum Nasceu em Belo Horizonte, 1981. Estudou História, Letras e Design. Escritor e designer gráfico, publicou os livros Mínima Idéia (2004) e Cada (2007). Trabalhou no desenvolvimento da identidade visual da ZIP (Zona de Invenção Poesia &, 2005) e da Revista Roda – arte e cultura do atlântico negro, editada dentro da programação do FAN entre 2006 e 2008 (Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte). Entre 2005 e 2009, coeditou a Revista de Autofagia, periódico voltado para a publicação de poesia e suas interfaces com as mais diversas linguagens artísticas. Atualmente vive em São Paulo e trabalha no livro Anaeróbica, vencedor do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura 2010, na categoria poesia. A publicação do livro está prevista para o segundo semestre de 2011. Portifólio online: http://www.brunobrum.blogspot.com

CIFRA INTERESSANTE Uma época não é necessariamente um conjunto de dias, meses ou anos, podendo ser medida em horas, minutos, segundos, o que sugere muitas épocas em um mesmo dia, mês ou ano, ou mesmo em uma mesma hora, minuto ou segundo. Uma época não é necessariamente um conjunto de ideias.

Você mostrou. Você acha bonito. Você acha interessante. E por isso acha que deve ser mostrado. Você colocou lá para que todos vissem, porque decerto supôs que seria bonito, que seria interessante que todos vissem.

O CONTRARREGRA VÊ DRAGÕES CONTRA UM FUNDO AZUL O cowboy sentado, folheando uma revista, inclina levemente a cabeça, tomando o cuidado de não olhar para a câmera. O cão pastor salta por sobre os latões de lixo, derruba o bandido e volta para receber outro biscoito. A multidão ergue os braços e grita um pouco mais alto na segunda tomada. O vento passa e volta para a hélice. O pássaro passa e volta para a caixa de ferragens.

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PRIMEIRA PROPOSIÇÃO: A MENSAGEM VERMELHA Ao olharmos através de um vidro vermelho, a escrita vermelha não será vista no fundo vermelho do papel. Cabe olhar através de um vidro verde: assim, a escritura será vista na cor preta sobre o fundo verde do papel: o vidro verde não permite a passagem da cor vermelha da palavra “ventosa”.

SEGUNDA PROPOSIÇÃO: HOW TO READ Supondo que o papel permita a passagem da luz e se encontre a uma distância ípsilon do texto, notaremos os feixes luminosos refletidos nas paredes brancas da página (entre as letras) sobrepondo-se em toda a sua extensão. Em consequência da estrutura fibrosa e do grande número de poros, a dispersão da luz na superfície se intensifica, tornando impossível a leitura. Se utilizarmos cola ou água para encher os poros, uma vez que o índice de refração das mesmas é semelhante ao índice de refração do papel, diminuiremos a dispersão da luz, que não sofrerá deslocamentos sensíveis. Assim sendo, o texto poderá ser lido com facilidade.

Os poemas desta página foram publicados no livro Cada (2007). As versões aqui apresentadas são adaptações gráficas feitas especialmente para a revista Celuzlose.

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Bruno de Abreu Nasceu em Piracicaba, interior de São Paulo (1992). Ainda não tem livro publicado, mas mantém um blog de poesia e variedades: http://desembocadouro.blogspot.com

seguir com os olhos a sarjeta recém clareada, 360º de um branco novo sob luz de outono encurvar o pescoço para enxergar o contorno depois de quando a circunferência vira as costas não leva a lugar algum, não torna nada mais simples mas note como o branco anda ainda mais branco e como dói nos olhos seu transcender imediato e movediço de permanência – meio-dia

com você eu poderia rasgar ao vento trajetórias de calendário sem uma dificuldade mórbida de apostilas em espiral e listas telefônicas

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crianças para elas que ainda pensam com os cabelos revoltos não fazer ideia é distância impercorrível feito – tão impossível quanto – aforismos damascos ou documentários em voice over para elas que ainda pensam com os cabelos revoltos não fazer ideia é tão tão estapafúrdio quanto a total ausência da possibilidade de se retrucar ou "o que não tem remédio já está remediado" – para elas que ainda gostam do que ainda gostam para elas que ainda pensam com os cabelos revoltos e ainda não solenizaram com marcas [permanentes o ato de franzir o cenho

para elas que ainda acham tudo bonito sinceramente e ainda não tiveram seus desejos remediados tudo que é longe cabe em qualquer jardim ou seção de roupas de loja de [departamentos – para elas que ainda pensam com os cabelos revoltos e procuram sóis feito rostos com as pontas dos dedos

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Chiu Yi Chih Nasceu em Taipei, capital de Taiwan (1982). Morou em Hong Kong, China e Macau. É professor de filosofia e literatura, poeta, escritor e ensaísta. Bacharel em Letras Clássicas (Grego/Português - USP) e mestre em Filosofia Antiga pela USP com a dissertação A eudaimonía na pólis excelente de Aristóteles. Foi premiado em 2o lugar no III Festival de Literatura da Letras USP – categoria Poesia. Publicou poemas, ensaios literários e filosóficos em revistas como Cronópios, Casulo, Ounão, Ágora e Zunái. Integrou a Antologia Poética das Artes. Realizou palestras de filosofia e literatura na USP e UNICAMP. É colunista da Revista Zunái. Atualmente trabalha com cursos de filosofia, literatura e produção textual em institutos e faculdades. Em breve lançará o seu livro Naufrágios pela Editora Multifoco, integrando o Selo Orpheu.

AQUELE QUE EU FIZ DE MANHÃ para Piva, Gustavo e Irael sem nenhuma culpa A ALMA ESTIRADA NAS BRASAS eu vou saindo do Embu das Artes como quem suga a fotografia das pétalas eu vou colhendo uma lágrima do vento uma retina desenterrada as janelas deságuam as carcaças dos automóveis eu vou contornando uma larga rolha contraindo a gotícula do amante arco-íris os braços da clareira enrubescem diante do sortilégio anjos de Omulu martelam os ossos de algumas abelhas eu vou arrancando as mãos caindo das garrafas ferramentas se ferem debaixo de meus cabelos debaixo de meus sonhos os ladrilhos me costuram até nas cordas abraçarei os alumínios o Latido latejante rádio rico de almas o figo da Índia eu vou escorrendo NA IMENSA FOGUEIRA (Poema do livro Naufrágios) 28 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


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PHILÓSOPHOS (Poemas inéditos)

DESPERTAR DE SPINOZA do seu sono Spinoza emerge, camaleão das flâmulas e das placentas – ele arqueia os seus ombros de escaravelho, acende três velas para a sua vigília. no fundo de seus olhos tudo flui: os besouros, os caracóis, os vermes, os fungos. implacável, esse músico retalha o infinito – o que é esse ser cuja substância não depende de outra forma, placa erigida em bronze escarlate? – ser em si e por si cuja essência espreitamos nas Brasas da Constelação?

CRISTAL DE FREDERICO NIETZSCHE CRISTAL NA PELE DOS VULCÕES santidade arruinando as crostas da cordilheira enigma-movimento pirâmide de cem mãos

poço dos magos –

Frederico Nietzsche, o próprio vulcão que caminha no precipício onda-carvalho

porta que derruba as geleiras

devasso, desvairado, destemido, depravado, destronado, descabido, desastrado, desordenado, desterrado, desarrazoado, denodado – o próprio precipício arrastando os melindrosos, os invejosos, os tolos, os ciumentos os desconsolados, os conformistas, os insensíveis, os moribundos, os decadentes.

OVO DE DELEUZE ladeiras, cortes, catedrais de um insaciável ovo. Deleuze no meio da mixórdia, no centro da esmeralda, no vulcão do sonho. Deleuze, o comedor de cadáveres, o carniceiro, o açougueiro, o ferreiro, o costureiro das almas. inengendrado & viscoso, desvio do átomo entre brumas do Oriente. deslizando nas janelas do impensável, do inimaginável, do imemorial. flecha da pura disparidade e do desejo que semeia os órgãos dissemelhantes. Deleuze canta, rumina, gagueja, rompe o gelo da palavra. ele que é a máscara submersa, membrana da Memória, aquilo que nos impele, nos implode, nos expele, nos explode. música e artéria e osso do meu desalento. ele que é um pássaro da Mongólia, que é a irmã do meu pai, floresta dos bisões, Osíris e Ísis velando o sepulcro de Hórus. Celuzlose 07 - Dezembro 2010 29


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Diniz Gonçalves Júnior Publicou o livro Decalques (2008), tem poemas publicados na Artéria, Suplemento Literário de Minas Gerais, Germina, Cult entre outras revistas e sites. E-mail: dinizjunior71@hotmail.com

Tropeço a multidão me distancia perco de vista o outro sorriso que julgava meu mas era engano como esfinge a soletrar um jogo de erros o reverso do esperado se forte pareço caio frágil no tropeço do espelho

miami maiden monumento que rasga o mar solidez dos containers expostos ao sol dialetos de desembarque contornam o porto cabines panoramizam o lodo da margem as pastilhas do posto próximo a âncora do saldanha da gama o perfume desbotado das mulheres noturnas

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Balneário Flórida a bicicleta enferruja no quarto do fundo as conchas na moldura da churrasqueira o quintal e o quarto quente concreto das prateleiras o ventilador de ferro que ainda funciona a rua das camélias a chuva precipita na rua quase vazia equação do sono no ócio da tarde o mar desolado rebenta lento e os quiosques fincados no calçadão sentido mongaguá ou boqueirão soletrando paisagens habituais e as bugigangas coloridas das feirinhas precárias talvez um chaveiro ou nome entalhado num totem de madeira

Fliperama Acapulco O globo colorido reflete as luzes dos piratas de plástico bônus reinicie a partida no átimo a ficha engole segundos outra paisagem apache tece recordes da vida ao limite tilt.

Rua Domingos de Moraes, 1003 caracol de ferro a galeria adormece pastilha vermelha luz desmaiada esqueleto bruto interdito, espaço respiro a foto de um pássaro escultura de anzóis empilhados na prateleira um número enferrujado tinge a margem da fotografia

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Edson Bueno de Camargo Nasceu em Santo André - SP, 1962 e mora em Mauá - SP. Publicou: Cabalísticos (Editora Multifoco, 2010), De Lembranças & Fórmulas Mágicas (Edições Tigre Azul/ FAC Mauá, 2007), O Mapa do Abismo e Outros Poemas (Edições Tigre Azul/ FAC Mauá, 2006). Participa do grupo poético/literário Taba de Corumbê na cidade de Mauá. Blog: http://umalagartadefogo.blogspot.com E-mail: camargoeb@ig.com.br

rosas heráldicas manancial hoje a poesia me abandonou no deserto na beira de uma cisterna seca com pedras em suspensão de cada seixo rolado abandonado ao fundo palavras e letras se espelham o deserto é branco celulose selvagem tecido fibra por fibra a água espera em algum manancial a língua (seca) escassa tem pressa as pedras enchem minha boca em algum alívio mineral assim como as serpentes que fogem do sol escaldante o deserto é um mar que morreu um dia o sal que ficou agora dói em meus olhos

teus olhos devastam-me a pele como rosas heráldicas entrelaçadas e facas feitas de espelho cobrem minha íris de estrelas e cacos de vidro fúnebre cortam minha carne em delicadeza teus dedos são meus dedos e cada ponta um dígito em fogo sua púbis seus pelos marca de identidade cada tempo traz a hora que cobre as colheitas do trigo as primeiras uvas as construções antigas todos os reis são para sempre e mergulham um dia no esquecimento a velhice é mergulhar em olvido cada dia distante de nós mesmos

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tátil e cego

répteis

enquanto corro os dedos em tuas costas elétricas

vomito cobras vivas cinco ao todo répteis que caem ao chão e fogem assustados ainda úmidos sulcam a terra desaparecem na poeira

minhas narinas devoram tua pele e pelos naquilo que são fogo e cada contorno volátil é abrigo e assento para meus olhos tátil e cego é o amor nos abismos florestais ou ralas pradarias pois tudo é triangulo e ravina posso lamber teu cheiro esta noite e nas outras e outras e as gotas da chuva de pentes para cabelos e pedestais e pedrarias estar em ti é tudo que posso e quero

silêncios há um abismo de palavras entre eu e meu pai assim como havia entre ele e o seu falecido pai e o pai de meu pai e o seu pai até que se chegue ao primeiro macho reprodutor de minha linhagem como se as línguas se congelassem no instante da palavra em que os homens são rivais em sua progenitura no entanto como a poesia se faz de silêncios e ausências

pajés do planalto central visitam meu devaneio saltam de dentro de nuvens de fumaça branca cheiram a querosene e tabaco pólvora queimada e pinga moeda cachaça para todos os santos para juremas para os caboclos errantes para os eguns vivos quase mortos que caminham pela civilização e têm nos olhos telas brilhantes e antenas não se sabe se é noite ou dia céu vermelho sobre a cabeça tempestade de areia do Saara dormindo nas águas quentes do Caribe câmeras assustadas filmam o abismo desvelam línguas e palavras uma menina pivete desafia a polícia com seu corpo magro e olhos de assombro um diamante vivo em cada pálpebra Glauber Rocha ressuscitado em Brasília dirige tudo aos berros e euforia (como todo bom baiano sorri irônico como um Caetano) tudo é sonho tudo é vermelho tudo cheira a esgoto a céu aberto tudo cheira a vidro quebrado e hospital as mesas dos botecos se embriagam devoram as palavras que os poetas lhes [derramam lambidas por lagartos abissais a cidade (e suas asas) é um poço sob os discos voadores

o calar de meu pai também me ensinou sobre a poesia Celuzlose 07 - Dezembro 2010 33


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Isadora Krieger aqui a escrita é também um jogo certeiro de adivinhação, a escrita me lê antes de eu a ler, lê passado, presente, futuro e tempo inexistente, não raras vezes sabe de mim antes que eu mesma, eu sou a obcecada, ela cigana joga cartas com meu subconsciente, assim me antevê e depois me traz à tona, me complica e descomplica ainda dentro da tenda, fora dela dependendo dos meus olhos vice-versa, mas no meu caso não existe outra escolha, a danada me cobra preço caro, com a alma inteira pago, do contrário não há jogo, ou há jogo pouco, calcado numa metade de mergulho, no qual os clichês fazem a festa ou o hermetismo dita as regras, e eu quero os arcanos maiores interpretados em cima da mesa, quero os dentes de ouro da cigana cravados todos os dias no meu braço direito, mesmo que tenha que sangrar abundantemente, é tarde demais, já fiz o pacto, quando nem consciência do perigo ainda tinha.

ato VIII era eu jazida com toda loucura e candura que imploramos a Deus, uma candura com toque essencial de perversidade para causar o tal do incômodo que nos faz criar algo honesto provavelmente eterno, era eu jazida com os cabelos espalhados naquela poça d'água a dor que você sempre desejou que tão exaustivamente repetiu é a peça que falta na minha poesia engavetada, era eu jazida depois de uma semana inteira de chuvas escolhi a dedo o anel do nosso silencioso pacto a poça d'água mais vasta do bairro, preparei teu mimo com meses de antecedência esperei a época certa do ano onde o canto dos pássaros é apocalíptico de tão lindo, era eu jazida naquela poça d'água pintada com as sombras dos ipês roxos e no meu rosto as flores boiando ao redor coroa inviolável, a certeza definitiva da minha presença violenta na tua poesia que enfim viria acontecer graças ao choque da minha ausência tão afetuosamente composta, era eu jazida naquela poça d'água durante o céu crepuscular que sempre foi o horário dos teus delírios mais dilatados, a certeza definitiva da obra-prima que te transformaria no imortal que você sempre cobiçou ser dentro de todos os outros e que me transformaria na imortal que sempre cobicei ser apenas dentro de você, era eu jazida com toda loucura e candura que imploramos a Deus, era o nosso pedido finalmente realizado nos meus olhos prestes para sempre cerrados o sorriso de gratidão maior que por último admirei nos teus lábios.

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Inaptidão eu queria escrever um poema que te atingisse como espada a face e fizesse dela pedacinhos imutáveis eu queria te ver com a bunda de fora catando agachado teus destroços no chão com a certeza que é em vão eu queria escrever um poema que te arrancasse a máscara da indiferença tão habilmente dissimulada de argúcia e no bueiro mais próximo teu invólucro se debatendo sem volta no espanto próprio eu queria escrever um poema que te perfurasse os olhos os fizesse sangrar e não apenas chorar a lágrima logo esquece o motivo de ser o sangue mesmo depois de ressequido impregna no cerne incontroláveis vestígios eu queria escrever um poema que te borrasse a boca de palhaço torta de tantos circunlóquios que te fizesse uivar como bicho selvagem esquecido das convenções e dos protocolos no estado fundamental da vida primitiva as serpentes malditas e precisas que aqui infelizmente são fantasiadas de bonequinhas inofensivas eu queria escrever um poema que te arrebentasse as narinas cheias das plásticas tão bem executadas que te poupam de cheirar o escabroso [do mundo que te emprestam a ilusão de não fazeres [parte dele mas não adianta se encharcar de perfume caro a tua tumba pode até ser de mármore entretanto há sempre a mesma decomposição na carne de primeira ou não

eu queria escrever um poema que te entortasse sem retorno o crânio que te expulsasse deste lugarzinho cômodo e confortável que ao longo dos anos construístes com tamanho apreço mero terror encoberto de amor satisfatório porque permanecer apenas um instante só é se deparar indubitavelmente com o privativo manicômio, e daí? há mais alma no inferno de dante do que na terra lacrada dos ditos "artistas" especialistas em rimbaud monet e truffaut mas ignorantes quando se trata da cigana [maltrapilha eu prefiro sem dúvida um Demônio genuíno a um Deus limitado exigindo diploma embaixo [do braço eu desejo ansiosamente o teatro mágico entrada só para loucos para raros mas as minhas palavras só vão até um pedaço e têm prazo curtíssimo de validade.

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Reynaldo Damazio É formado em sociologia pela USP e trabalha como editor e crítico literário, além de coordenar oficinas de literatura e de quadrinhos. Autor dos livros Nu entre nuvens (Ciência do Acidente, 2001) e Horas perplexas (Editora 34, 2008). Dirige o site Weblivros (www.weblivros.com.br).

RIDÍCULOS é voraz o vazio da besta no cio é mordaz o sorriso do palhaço sem circo é fugaz o pavio desse corpo ímpio o círculo do desejo o vício daquele beijo o idílio e o ridículo dão no mesmo

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FÁBULA PARA ANFÍBIOS Para Nícolas e Aléxis o menino menor trouxe na mão o ciclone o maior, o dragão afônico ambos queriam um cometa que levasse a princesa ao nocaute ora, não sei cantar estrelas embora adivinhe a partitura o menino maior ensina a construção de sistemas paraconsistentes com bolas de ping-pong o menor desmancha cidades e esculpe doces de malvavisco a retórica se desfaz com o dente partido melhor proteger os olhos de uma grande verdade que do sol talvez evitar que o porta-aviões no armário invada a geladeira se não é possível prever a trajetória de uma partícula então uma bolha possa explicar o conceito de poesia disse bula, não importa nenhuma palavra sobrevive ao caos nem a palavra caos dois meninos cruzam o arco da desesperança manobras indecisas na órbita do sorvete sinais de fenda no tempo, sob o band-aid todas as partes, gravetos ou conchas, se encaixam na lógica desse abraço


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FÁBULA PÓS-MODERNA

MEMÓRIA DA DECOMPOSIÇÃO A noite não deixa marcas em meu sonho; os passos se perdem na calçada e nada pode ser mais preciso, mais tortuoso, que o esquecimento do desejo, o fim da fagulha entrevista no olhar que me procurava (ao menos assim o imaginei) em dias de vento frio, em noites de sede e tédio, quando a violência das ruas gritava nos telejornais e fingíamos que havia um mundo quase perfeito, circunscrito entre bares, cinemas, cafés, móveis baratos de um apartamento alugado a preço de banana, no centro velho de uma metrópole que já não existe.

COSMOGONIA De que espaço alguém precisa para viver? Alguns palmos, talvez, entre a pele e a marquise, onde arranjar as ruínas de sua história e os detritos do corpo enfadado – reserva de asco e indiferença na pressa de olhares – nacos de memória espalhados na calçada e no tempo, arco de possibilidades desperdiçadas. Olhando o céu, sem nuvens ou estrelas, em seu vazio inútil, ela pensa que tudo aquilo é de ninguém e pode ser de qualquer um.

O sapo ronda a princesa e não é um príncipe disfarçado ou a consciência de beleza deformada pela razão prática. Mas a princesa também não possui reino, os recursos minguam, a fábula se rompeu e a máquina do mundo capenga. Indiferente a apelos literários e argumentos filosóficos, o sapo quer devorar a princesa, seu corpo beatífico, sua ternura de virgem (como se a virgindade fora crível) diante do algoz: um tema entre tantos para exegetas impotentes. Teorias sobre a pureza diáfana da princesa foram descartadas, restaram apenas os contornos da physis, dureza de seios, consistência de glúteos, textura de abdômen, volúpia de pele, tensão de bíceps, espaldas longilíneas. A princesa sabe o desejo feroz que provoca e finge distrair-se com miçangas coloridas, constelação menor no cosmo da pélvis, sulcando estrias, veio aberto em plano volátil. Não servirá de metáfora, tampouco será assunto de parábolas. Apenas entrega-se. O sapo devora a princesa com delicada crueldade, em claro-escuro, explorando a sutileza das formas. Fantasmas acorrem e dançam enquanto ele a fode com gana. Foda longa, frenética, atávica. a princesa antevê o nada e goza copiosamente. Pântano fértil de estrelas e esperma.

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Roberta Ferraz Nasceu em 1980, estudou História (USP) e Letras (PUC). É mestre em Literatura Portuguesa (USP). Publicou desfiladeiro (Nativa, 2003), lacrimatórios, enócoas (Oficina Raquel, 2009) e fio, fenda, falésia (Edição das Autoras, 2010) – este livro foi publicado com apoio do ProAC e escrito em parceria com Érica Zíngano e Renata Huber. Blog sobre o livro: http://fiofendafalesia.blogspot.com

CINCO SUÍTES PARA EDUCAÇÃO SENTIMENTAL I este colar elisabetano esta muralha tépida margeia o pescoço duro as veias rijas de um sangue atento olhos – riscados para rápido dobrar desperta às afrontas dentro um corpo em gesso ocre faz tempo nos equilibrávamos pelas prateleiras quando já não sou mais leve peralta quando a chispa da garganta, consumado o aterro seguir as pistas falhas para um bordel ou a quadriculada mentalidade do registro telefônico como se houvesse dizer para qualquer deslize não somos espécies sensíveis somos cordas entre os pés os hiatos entre as mãos concordatas penso sugerir o verão e a caminhada mas já percorres o futuro em que eu terrivelmente estarei partida

II há essa espécie estátua no balbucio dos passos em mim essa exímia mulher a morrer, páscoa à paixão ofertando sentidos sentinelas que esburacam qualquer linha apenas linha o tabu dos rascunhos, os olhos que evitam a fala gaguejando a falta, as mãos muito íntimas de uma angústia essa espécie de dama vazia, oca, num tempo tramado por espécies de um mais resoluto, os espinhos todos na bainha dos sonhos, há essa vigia essa noite caída dentro a satisfazer dos sabores, essa mulher que naturalmente vai dias fadigas cabelos planos de composição páginas imaculadas há essa espécie de lástima que não sabe não sabe levar a sério tudo que não seja vestígios –

tempo a tombar mistério imenso de carinhos e reunir outra simetria já mais abstrata e mais fria paralítica aponto os dedos tua direção é um vale, ainda uma palma estocada na poeira

o amor como um tatame de ervas um pavilhão suspenso a jasmins não visíveis uma arcada para caber no nada respiro tranquilo de uma morte há essa espécie de edro e duração no alpendre de dois corpos e há entrega e rosto sem rugas na calma de não, mais nada

aponto no vale o prepúcio de uma fossa é ainda um alento, um flanco singradura

só essa mínima

então um hino tapando teus ouvidos – uma toca que recolha teus olhos –

– toque, e um futuro dado

a meu dentro

à sorte

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intenção


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III

sinto-me mais pronta com mãos menos agitada e corpo menos turbulento sinto que cada véspera te acorda para uma outra estrada e não te mostra a cara mas seduz a um caminho de pernas um caminho de véus e entrudo que seja novo e como novo apaixonado e falso

sei que tuas questões te mastigam chegamos aonde, a que confim talvez na noite ratos camuflados subissem a madeira de tua casa demolida por outra casa sem qualquer rastro de infância quem é, o que quer talvez o tempo vingue tuas escolhas e talvez vigie tua solidão talvez queira mais do que uma mulher

talvez eu tenha que te deixar para sobreviver para sobreviver em ti talvez eu tenha que guardar a faca e não olhar para trás caída sobre teus olhos

ao teu lado sem qualquer pé que fira ao teu lado para adormecer a jovem que fui a teu lado para apreender com mais ciúme o curso de tudo até a morte

uma crueza exasperada, lúcida amor sem mais vácuos ou vestígios que te alimentassem de distância e maus pressentimentos

IV começarei então a mentir a rodar os olhos naquele exato segundo em que me perguntarias

V

eu te diria o que não será certo tentaria sucumbir a uma mágoa mais densa e te iria atormentar com a verdade desta ficção

quando está ali sentado num rodopio de álcool e esquina maquiando termos que te revertem ao abismo olha as pernas de todas as mulheres e escreve nomes com iniciais apenas escondendo de si a membrana de um desejo empalado a seco

começarei também a mentir – indaga a voz como uma adaga ao lado escuro da cama naquela hora agiria como tu pergunta ainda, quando não sei se tua mentira deve servir de lenha para um outro jogo onde ninguém mais é feliz perceberei a tempo, a tempo de escapar dos estilhaços de um tempo medido a contrapelo, ensaio de um drible? não sei, medos são versos de amor sangue cotidiano de um casal que envelhece mentirei então também eu até que o fundo das horas finalmente se assente sobre um fechado e velho baú de memórias

pensa em largar a via em cometer gestos sem cautela ir ao motel no horário de almoço e depois lavar bem o couro da camisa quer dizer ao passado que se anuncia que se arrepende e que ademais (tanta covardia) muda-se em breve para uma cidade de sol olha para a mulher que te espreita em tua casa prenhe de uma escuridão intocada olha para ela e para o ferrão amortalhado entre os olhos e sente que algo como algemas rondam as paredes pintadas de branco – teme sair dali teme ser afogado se sair dali a vida se passa entre um farol e um atropelamento entre uma espera e uma fome entre os tantos outros indecisos que se morrem

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Thiago Ponce de Moraes É poeta e tradutor. Faz parte do Conselho Editorial da revista Zunái. Participou dos eventos literários Simpoesia (2008 e 2010) e Artimanhas Poéticas (2009 e 2010). Tem publicações em diversas antologias e periódicos, com destaque para a Antologia Poetas Jovens (no papel rascunho) 2006; Revista sèrieAlfa nº 33, 2007; Antologia Vacamarela (trilíngue) 2007; Antologia da Poesia Brasileira do Início do Terceiro Milénio, 2008; Fomes de Formas, 2008; Revista Eutomia, 2010. Publicou os livros de poemas Imp. (Caetés, 2006) e De gestos lassos ou nenhuns (Lumme Editor, 2010). Para breve prepara um novo volume de poemas: Celacanto; além de traduções de Emily Dickinson, Jeremy Halvard Prynne, Ralph Waldo Emerson, Hart Crane e Basil Bunting.

ESTE É O SOLO EM QUE ESTÁS diante, Em que te sustentas. Na memória ainda, na hesitante e rarefeita Memória desta data, talvez finda, Em tua memória recordas, talvez, Intimamente tua, clara, intolerantemente memória, em que pisas, Recordas distante e oras há horas, E não podes lembrar de nada intimamente, Não podes andar por nada, mas pisas ainda e ainda oras, Embora a memória relute sonora, intolerantemente Com raízes, remota, em que pisas, E tanto faz quanto não fales, nem divina nesta hora, Nem de absoluta força, sem respirar, sem, Em memórias, respirar o dia Passa neste dia em que nada passa, A cortá-las pela raiz, passos, como nada mortas, neste dia, Somente rastros e sementes, somente Passas em volta de palavras e voltas A debilitar a língua em que voltas para casa.

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SOB LUZ singularmente pálida Escreves sobre olhos submersos de palavras. Pálida lanças da janela Um canto que movimentas quando grafas Esta casa. Numa mão a lança e noutra A caça, escrita, Escassa. As folhas secas deixas na entrada, Em folhas breves guardas tua fala. Escreves. Este animal te ataca Até que tuas cordas corte, A tua voz soçobre E apenas o ruído sobre Das páginas que um deus traga.

AO ACASO Em profunda fonte soam tuas estrelas. Noite silenciosa e cinzas feito um corpo esvaído Sobre o qual se erguem os dias do futuro. Teus sonhos segues a cidade que são, Íntima e adiante, quanto mais lenta fores Rumo a tua morada ou Ítaca. Não importa o teu chegar, mas o ir pela poeira dos dias, Pelas aporias e flores ao fundo de uma tarde violenta, Pela ideia que tens da tua chegada em euforia. Profundo é o sofrimento do mundo, Em manhã ou noite luminosa, A morte e o sono irmãos.

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Literatura sem Fronteiras

Ignacio Muñoz Cristi Nasceu em Santiago, Chile, 1973. Antropólogo, consultor e diretor do programa de TV na internet La Belleza de No Pensar (http://www.youtube.com/user/autonautica) realizado pelo Movimiento Lúdico (http://bellezadenopensar.blogspot.com) coletivo artístico com 16 anos de existência. Os poemas aqui publicados fazem parte do livro Con la Edad de Cristo (Andesground y ML Ediciones, 2008). Blog: http://bioculturalia.wordpress.com

“Soy un bueno para nadie Mi reino no es de este mundo” Yo mismo

Resiliência na Terra Ou uma temporada no inferno? 33 anos 33 alegres primaveras 33 tremendos invernos 33 vezes 33 mil erros dolorosos 33 vezes 33 mil ressurreições na terra Com a idade de Cristo me medem e não dou o largo Com a idade de Cristo me pesam e já se passou a velha Com a idade de Cristo me medem [me pesam e me descartam Com a idade de Cristo que salvou o mundo [me medem E eu não salvo ninguém além do mais estou para a cruz Mas em meu sangue também há luz Uma luz que vem descendo em aterrissagem [forçada Há tanto tonto tempo

(Tradução: Victor Del Franco) 42 Celuzlose 07 - Dezembro 2010

“Soy un bueno para nadie Mi reino no es de este mundo” Yo mismo Resiliencia en la Tierra O una temporada en el infierno? 33 años 33 alegres primaveras 33 tremendos inviernos 33 veces 33 mil errores dolores 33 veces 33 mil resurrecciones en la tierra Con la edad de Cristo me miden y no doy el ancho Con la edad de Cristo me pesan y ya se me pasó la vieja Con la edad de Cristo me miden me pesan [y me desechan Con la edad de Cristo me que salvó al mundo [me miden Y yo no salvo a nadie a lo más estoy para la cruz Pero en mi sangre también hay luz Una luz que viene descendiendo en aterrizaje forzoso Desde hace tanto tonto tiempo


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Permita-me querido Leitor de Luxo que lhe conte [uma história Tudo começou há milhões e milhões de livros Era uma grande luz que percorreu todo o cosmos [em busca de um objeto qualquer um serviria, uma coisa entre miríades A ideia era encontrar algo que a contivesse que pusesse limite ao seu veloz excesso um bendito objeto que a possuísse em um coito [fenomenalmente fenomenal e que a levasse finalmente a dar à luz uma sombra parir essa escuridão que era seu desejo inverso engendrar procriar no meio do imenso vazio do universo E assim foi que encontrara um dia seu desejado objeto interposto no meio do caminho erguido, pronto para o amor disposto Mas inesperado, improbabilisticamente tal objeto não era físico somente nem apenas químico composto nem tão somente biológico era sobretudo humano, “demasiado humano” Um objeto carregado de antemão com mais escuridão que a luz jamais pudesse haver sonhado um verdadeiro buraco negro que quase a devora Mas tiveram seu roçar penetração e orgasmo parindo de imediato E foi assim que a luz deu à luz a escuridão E para nossa raça este precioso mito explica a origem da sabedoria e da tolice, e sobretudo da viciante e néscia compulsão de pensar tudo em contrários

Literatura sem Fronteiras

Déjame querido Lector de Lujo que te cuente una historia Todo empezó hace miles de millones de libros Erase una gran luz que recorrió el cosmos todo en busca de un objeto cualquiera serviria, una cosa entre miríadas La idea era encontrar algo que la contuviese que pusiera borde a su veloz desenfreno un bendito objeto que la poseyera en un coito fenomenalmente [fenoménico y que la llevase finalmente, a dar a luz una sombra parir esa oscuridad que era su anhelo inverso engendrar procrear en medio de la inmensa vacuidad del universo Y así fue que encontrase un día a su deseado objeto interpuesto a medio camino erguido, listo, para el amor dispuesto Mas inesperada, improbabilisticamente tal objeto no fue físico solamente ni sólo químico compuesto ni tan siquiera sólo biológico fue sino humano, “demasiado humano” Un objeto cargado de antemano con más oscuridad de la que la luz jamás pudo haber soñado un verdadero hoyo negro que casi la devora Pero tuvieron su roce penetración y orgasmo pariendo de inmediato Y fue así como la luz dio a luz oscuridad Y para nuestra raza este preciado mito da cuenta del origen de la sabiduría y la tontera, aunque sobre todo de la adictiva y necia compulsión de pensarlo todo en contrarios

Faltam 10 minutos para que se acabe essa idade Contagem regressiva descristificação ou final assunção? Com a idade de Cristo para a primavera me fiz alérgico mas logo ressuscitei entre os mortos me curei quem sabe como Com a idade de Cristo no entanto cheguei na velhice Mas com esta idade digo foda-se Com a idade de Cristo aprendi Que nada tenho aprendido Sou o não iniciado O não xamã O não poeta O não científico O não o não o não Um nada nada neste corpo encarnado

Faltan 10 minutos para que se acabe esta edad Cuenta regresiva ¿descristificación o final asunción? Con la edad de Cristo a la primavera me hice alérgico pero luego resucité entre muertos me sané quién sabe cómo Con la edad de Cristo sin embargo pegué el viejazo Con esta edad digo filo Con la edad de Cristo aprendí Que nada he aprendido Soy el no iniciado El no chamán El no poeta El no científico El no el no el no Una nada nada en este cuerpo [encarnado

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José Landa Nasceu em Campeche, 1976. É autor de 12 livros publicados no México, América Central e Espanha, tendo obtido diversos prêmios como o José Gorostiza (Tabasco, 1994), o Hispanoamericano Quetzaltenango (Guatemala, 2007) e o Ciudad de Lepe (Huelva, España, 2009), foi ainda finalista do Premi Tardor (Castellón, España, 2010). É bolsista do Fondo Nacional para la Cultura y las Artes de México. Entre seus títulos estão Tronco abierto (FECA, Campeche, México, 1993), La confusión de las avispas (Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, México, 1997), Placeres como ríos (Instituto de Cultura de Sinaloa, Culiacán, 2009) e Navegar es un pájaro de bruma (edição em francês e espanhol, Mantis editores y Écrits des Forges, Quebec, Canadá, 2010). Sua obra encontra-se traduzida também para o valenciano.

... O quintal é dividido por um feixe de luz como por um rio. Daquele lado o mundo faz gestos, se retorce envia sinais de fumaça. Deste lado o tempo se detem a meditar na margem. O ar é um instanteiro e em cada clique surge o rumor das pessoas. Nos ouvidos de uma velha se repete como uma gravação: somos o tempo, Heráclito, e um garoto ao seu lado guarda silêncio. O rio segue, mas o garoto permanece de pé e joga uma pedra na água que – o fazem supor – é diferente daquela que já passou. O quintal é nada mais que um holograma onde habitam jovens demônios e fantasmas octogenários.

... El traspatio se divide por un haz de luz como por un río. De aquel lado el mundo hace gestos, se retuerce envía señales de humo. De este lado el tiempo se detiene a meditar en la ribera. El aire es un instantero y en cada clic surge el rumor de la gente. En los oídos de una vieja se repite como una grabación: somos el tiempo, Heráclito, y un muchacho a su lado guarda silencio. El río sigue, pero el muchacho permanece de pie le arroja una piedra al agua que — le hacen suponer — es diferente a la que ya pasó. El traspatio es nada más un holograma donde habitan demonios jóvenes y fantasmas octogenarios.

(Tradução: Victor Del Franco) 44 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


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... A infância é este batalhão de tartarugas em marcha para o mangue o telhado daquelas casas velhas e seus muros vales da pátina a canoa que se aventura na pesca em dias [de tormenta. Somos a trajetória que imagina a pomba e logo se cumpre o lance de dados que praticam os mortos com o destino dos homens os dados jogados por um deus que não vê o que joga. A infância permanece como a areia de um relógio. Aqui junto ao pasto e a amora, os cardos e as sombras junto a velha casa materna sonhamos o pecado, as infinitas formas de desejo o orvalho, a garoa noturna e essa lágrima que amanhece por descuido sonolenta na relva.

... La infancia es este batallón de tortugas en camino al manglar el techo de aquellas casas viejas y sus muros valles de la pátina la chalupa que se aventura a pescar en dias [tormentosos. Somos la trayectoria que imagina la torcaza y luego cumple el juego del cubilete que practican los muertos con el destino de los hombres los dados que arroja un dios que no ve lo que arroja. La infancia permanece como la arena de un reloj. Aquí junto al pasto y la zarzamora, los cardos y las sombras junto a la antigua casa materna soñamos el pecado, las infinitas formas del deseo el rocío, la llovizna nocturna y esa lágrima que amanece por descuido soñolienta en la hierba.

... O riacho aproxima seu curso da tranquilidade de um domingo no povoado. Ninguém saberá do oculto desejo do riacho para inteirar-se do que acontece entre os habitantes visitar ruas e quartos, fecundar a pele ressecada de homens e mulheres passar sua língua pelo tato lascivo de jovens com aroma de café. O riacho tem – entre seus tantos ofícios – um pincel e uma tela celeste para pintar a nudez a Verdade sentada na beira do poço esperando seu mestre que chega do monte. O riacho pinta e descobre, escreve e apaga mensagens de amor e de subversão. O universo desmorona: migalhas de prata na superfície da água e sua eterna mansidão.

... El arroyo acerca sus reales a la tranquilidad de un domingo en el pueblo. Nadie sabrá del oculto deseo del arroyo por enterarse de cuanto suceda entre los habitantes visitar calles y habitaciones, fecundar la piel reseca de hombres y mujeres pasar su lengua por el tacto lúbrico de jóvenes con aroma a café. El arroyo tiene — entre sus tantos ofícios — un pincel y un telón de cielo para pintar las desnudeces la Verdad sentada en el brocal del pozo en espera de su señor que llegue del monte. El arroyo pinta y descubre, escribe y borra mensajes de amor y de subversión. Se desmorona el universo: migas de plata en la superficie del agua y su eterna mansedumbre.

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Juan José Macías Nasceu em Fresnillo, Zacatecas, 1960. Poeta, narrador e ensaísta, coordenador de oficinas literárias, editor e promotor cultural. Parte de sua obra poética foi traduzida para o francês. É autor, entre outros, de Sensualineal; Ánima ascua; La Volenté de Dieu / Deo volente; Dos máscaras para Dioniso; La venue d'Hölderlin / Viene Hölderlin; Expansión de las cosas infinitas; El nuevo liguero de Maruja (y otros fetiches), e La experiencia del pensar: filosofía y poesía en Antonio Porchia y Roberto Juarroz. Recebeu o Prêmio Nacional de Poesia Ramón López Velarde (1993), o Prêmio Nacional de Poesia Efraín Huerta (2005) e o Prêmio Nacional de Ensaio Abigaél Bohórquez (2008). Coordena a Oficina de Crítica e Criação Literária da Universidade Autônoma de Zacatecas.

EXPANSÃO DAS COISAS INFINITAS EXPANSIÓN DE LAS COSAS INFINITAS 8 alguém me pergunta que hora escrevo meus poemas procuro essa hora entre todas as horas mas não a encontro não está espero que apareça em emboscadas em ti que não pensas

renúncias conjugais

no áspero no desértico no lábil perto de um cacto que ignora se é o coração de frente para a beleza que é sempre cortante que golpeia na contraluz das mais altas torres erguidas pela cobiça pela avidez desmoronadas no profundo adentro dos cegos (eles que tropeçam em si invariavelmente caem em seu interior) instruído para o invisível para o inominável para o inumerável no profundo sono que não chega no canibalismo da surpresa no proveito do instante na intuição no automatismo no animismo e segue o dia 46 Celuzlose 07 - Dezembro 2010

8 alguien me pregunta a qué hora escribo mis poemas y yo busco esa hora entre todas las horas y no la encuentro no está aguardo a que aparezca sobre acechos renuncias conyugales en ti que no te piensas en lo áspero lo desértico lo lábil cerca de un cactus que se ignora si es el corazón de frente a la belleza que es siempre cortante que golpea a contraluz de las más altas torres erguidas por la codicia por la avidez derruidas en el demasiado adentro de los ciegos (ellos que si tropiezan invariablemente caen en su interior) instruido para lo invisible lo innombrable lo innumerable en el sueño profundo que no llega en el canibalismo de la sorpresa en el favor del instante en la intuición el automatismo el animismo y el día pasa

(Tradução: Paulo Ferraz)


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não aspiro mais que à decepção escrevo para o único ilegível: a pureza

no aspiro más que a la decepción escribo para lo único ilegible: la pureza

não olho mais se olhar não for irromper no silêncio puro das coisas puras

no miro más si mirar no es irrumpir en el silencio puro de las cosas puras

escrevo para que o mundo se sustente para descarregar as palavras do agonizante peso do sentido

escribo para que el mundo se sostenga para descargar a las palabras del agobiante peso del sentido escribo para la decepción para que los conciertos de la vida se ofrezcan con la música como disolvente

escrevo para a decepção para que os concertos da vida se ofereçam com a música como solvente

8 o mundo precisa de uma crise de tédio o tédio é a verdadeira fisionomia da consciência é a consciência — seu despertar até a monstruosa vacuidade do mundo ser prescindíveis nos torna incomparáveis não há razão para a dor a dor para a razão só convém ao divino o tédio nos reivindica na renúncia hoje a eternidade nos queria como levita

8 el mundo necesita una crisis de tedio el tedio es la verdadera fisonomía de la conciencia es la conciencia —su despertar hacia la monstruosa vacuidad del mundo ser prescindibles nos vuelve incomparables no hay razón para el dolor el dolor para la razón sólo conviene a lo divino el tedio nos reivindica en la renuncia hoy la eternidad nos quisiera de levita

qualquer noite pode ser a grande ceia na casa dos mártires oh os notáveis têm esse ar de satisfação quase asqueroso dos sobreviventes para nós os enfeitiçados pelo tédio o horror continua sendo um milagre: entre as nuvens lentas e o museu das frutas a beleza é um começo sem fim de realidade e tudo é único e sem importância

cualquier noche puede ser la gran cena en la casa de los mártires oh los notables tienen ese aire de satisfacción casi asqueroso de los sobrevivientes para nosotros los hechizados por el tedio el horror continúa siendo un milagro: entre las nubes lentas y el museo de las frutas la belleza es un comienzo sin fin de realidad y todo es único y sin importancia

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Por uma leitura fenomenológica

de Édipo Rei por Chiu Yi Chih

A tragédia grega nos desvela o aspecto terrível de nossa existência. Ela nos põe diante do Desconhecido, nos força a pensar sobre a ação temporal e extratemporal. Como diria Aristóteles na Poética, ela nos apresenta uma “ação elevada” (praxeos spoudaias) que tem como objetivo a purificação de nossas emoções suscitando terror 1 (phobos) e piedade (eleos). Meditando sobre a obra dos poetas e pensadores gregos como Píndaro, Sófocles e Parmênides, o filósofo alemão Martin Heidegger refletiu sobre esse aspecto numinoso do fascínio que pode causar o fenômeno do “terror sagrado”: a noção de daimon (extraordinário/numinoso) é fundamental para a compreensão da relação entre as instâncias divinas e humanas. Daimon permeia as fronteiras, os domínios e os sentidos da ação trágica, traça relações de ambivalência entre os heróis e os deuses. Em sua obra fenomenológica Ser e Tempo, Heidegger mostrava que a consciência humana só podia ser elucidada na temporalidade, naquele modo existencial de ser-no-mundo. A subjetividade humana já se encontra lançada no mundo; ela existe e se abre para o desconhecido, e o desconhecido é terrível porque lhe põe várias possibilidades de agir. A subjetividade não é uma consciência abstrata. Projeta-se temporalmente (ekstaticamente como diria Heidegger) nas dimensões do presente, passado e porvir. De certa maneira, o herói trágico pensa, age, delibera, toma determinadas decisões em relação ao seu porvir existencial, pretende-se livre em determinadas ações temporais, quando justamente, num átimo, é golpeado e subjugado pelas revelações do Nume (Daimon ou daimonion). Num instante que é o próprio instante numinoso do imprevisto, as forças divinas/daimônicas irrompem subitamente, como um vir-a-ser inevitável cujas determinações se lhe tornam parcialmente enigmáticas. Ora, nem por isso essa consciência deixará de se relacionar com aquilo que lhe é estranho. É neste sentido que o daimon é um dos principais elementos constituintes do sentido 2 trágico. Trata-se de uma potência de natureza estranha que transtorna o herói trágico e, assim, provoca o estranhamento, o não-familiar, o vigor que se impõe e subjuga (Heidegger). Muitas expressões derivadas de daimon que comumente aparecem nas tragédias indicam-nos os sinais numinosos desse fenômeno de vigor originário. 1. Cf. Aristóteles, Poética (1149b24-29), na tradução de Eudoro de Souza, Ars Poetica Editora, 1993, p.37. 2. É esta noção fundamental, entre outras, que Heidegger investiga no seu livro Parmênides. Veja Parmênides, Editora Vozes, 2008, pp.164-165.

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Crítico

Segundo o professor de literatura grega Jaa Torrano, “Daímon (Nume) designa algum Deus em sua relação com algum destino particular que esse Deus preside e que, dado por Deus o signo da sina, cumpre-se. Assim, os indícios numinosos cumprem-se através do domínio sensível/não-familiar, manifestando-se particularmente como os 'ritos dos Deuses' (telestas theon), 'mirados atos' (thaumata erga) cuja visão confere ao vidente um conhecimento decisivo das imortais formas do mundo, um conhecimento que decide definitivamente o sentido da vida mortal do vidente, desde que o mortal entrou no domínio da forma de que há 'mirados atos' e assim numa relação determinada por essa imortal forma.”(Cf. O sentido de Zeus). Portanto, o “daimônico”, o numinoso, que se atualiza na “síntese das ações praticadas” tal como Aristóteles compreendia a mimese trágica na Poética, é o próprio ser divino que vai ao encontro daquele que já está aberto a ele. O Ser em sua aparição. A questão é saber se o daimon se incorpora ou não ao herói e, portanto, à existência do herói concebido como próximo aos Deuses, ou seja, enquanto fenômeno numinoso da aparência/revelação (alétheia). Segundo Heidegger, a questão fenomenológica da tragédia se circunscreve às referências fundamentais do Ser, Desvelação e Aparição. Para explicitar o nexo dessas referências, o filósofo alemão dá um exemplo extraído do coro em Édipo Rei (1189ss): ÉDIPO: Tis gar, tis aner pleon tas eudaimonias pherei e tosounton hoson dokein kai doxant'apoklinai Alguém já recebeu do nume um bem não limitado a aparecer e a declinar depois de aparecer?3 Eis aqui a importância do verbo grego (apoklinai) que exprime o sentido de “declinar”. O verbo aponta para uma modalidade de “existência”, a qual consiste precisamente nessa aparição, nesse ato de permanecer e vigorar-se no Ser. A existência de Édipo (verdade do ente) pertenceria ao daimon (Verdade do Ser), assim como a Aparição pertenceria à Clareira do Ser. O verbo “aparecer” (dokeo) indica o fenômeno ao qual Édipo se depara ao longo de sua trajetória. O termo doxa, segundo Heidegger, significa a aparição ou aspecto fenomenológico em que alguém se encontra. Nesse caso, Édipo, dispondo-se abertamente na Clareira do Ser, vê a epifania do nume.

3. Estes versos são do Édipo Rei de Sófocles na tradução de Trajano Vieira, Ed. Perspectiva, 2001. Substituí a palavra “demo” por “nume”. O “demo” remete às conotações do satânico, demoníaco, sentidos próprios da moralidade cristã. O “nume” no pensamento grego se refere ao caráter epifânico do divino. O divino aparece e se revela na epifania sagrada segundo Mircea Eliade (Cf. O sagrado e o profano;Tratado de História das Religiões).

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Crítico

Tal valorização da noção de “aparição” é fundamental à visão fenomenológica da tragédia. A tragédia se essencializa através desse jogo ambíguo do aparecer no qual, justamente por ser do domínio da aparência e da abertura, o que o ente é, acaba apenas se mostrando num “aspecto”. É por isso que Édipo “declina”, digamos assim, nesse aspecto singular do Ser. Esse paroxismo arrasta consigo a própria potência do daimon. Em contrapartida, Édipo pode ser atraído por ela, vigorando até se consumar na verdadeira revelação, isto é, na plenitude e na Verdade do Ser, que em grego se diz Alétheia, Desvelação. Ora, como melhor explicitar o caráter numinoso da desvelação, senão pela força daimônica que, na tragédia, é representada pelas forças divinas que avançam e se precipitam, levando consigo em sua constelação simbólica os signos catamórficos da queda, do mergulho no abismo, com suas imagens isomórficas: as trevas, a ausência da luz, o “Destino ou a Moira funesta” (dusdaimoni moirai, 1303)? Assim, Édipo se defronta com “o horror não-audível, não-visível” (deinon, oud'akouston, oud'epopsimon, 1312), com “a nuvem-negror” (nefos apotropon, 1313), cujo “vai-e-vem é intraduzível, sem domador, sem norte” (epiplomenon aphaton adamaton te kai dusouriston on, 1314-5). Com efeito, após o reconhecimento de sua verdadeira identidade – o fato de ser assassino do pai e esposo de sua mãe –, o coro manifesta a Édipo o sentido daimônico, desvelando a nulidade (to meden) da sua condição mortal (geneai broton, v1186). CORO: Estirpe humana, o cômputo do teu viver é nulo. Alguém já recebeu do nume um bem não limitado a aparecer (dokein) e a declinar (apoklinai) depois de aparecer (doksant')? És paradigma (paradeigma), o teu nume (daimona) é paradigma, Édipo: mortais não participam do divino.4 Assim, a condição numinosa é consignada ao Édipo pelo paradeigma. A palavra paradeigma é junção de para e deiknymi, que significa respectivamente, ao lado e mostrar-se. O daimon, portanto, pode ser visto como aquilo que se mostra ao lado, que se manifesta visivelmente próximo. O verbo está na voz média com o sentido de expor-se, mostrar-se. Vemos aí o aspecto fenomenológico da aparição. Este campo semântico permite-nos assim ver o próprio ser do daimon caracterizado como aquilo que se mostra ao lado e, sobretudo, aquilo que se manifesta visivelmente, tal qual uma visão numinosa.

4. São os versos 1188-1195.

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Crítico

O coro é restritivo quanto à participação dos mortais nos desígnios divinos, mas apresenta como “paradigma” esse modo de identidade entre um ser e outro, entre o herói e o seu próprio “paradigma”, o seu próprio “daimon”. A afirmação do coro é duplamente enfática: “És paradigma (paradeigma), o teu nume (daimona) é paradigma, Édipo.” Por outro lado, o próprio sentido numinoso muitas vezes se revela aos mortais, 5 como quando no diálogo Fédon de Platão, Sócrates declara: “Os Deuses são aqueles sob cuja guarda estamos, e nós, homens, somos uma propriedade dos Deuses” (to theous einai hemon tous epimeloumenos kai hemas tous anthropous hen ton ktematon tois theois einai, 62b). O daimon de Sócrates aparece-lhe tão intimamente próximo que até o filósofo tem a convicção de que a morte lhe foi enviada por ordem divina (62c). Essa proximidade é explicitada com esse sentido de “um estar ao lado do outro” como um servo em relação ao seu dono (62e), ou como o sábio em relação aos deuses (63b). Sócrates sabe que o ser-filósofo demanda uma relação próxima ao seu objeto de desejo, a sabedoria (69b). Isso quer dizer que esta só será possível após toda a preparação para a morte (67e), e consequentemente, após a purificação (69c). Por isso, diz Sócrates: “Todo aquele que atinja o Hades como profano e sem ter sido iniciado terá como lugar de destinação o Lodaçal, enquanto aquele que houver sido purificado e iniciado morará, uma vez lá chegado, com os Deuses. É que, como vês, segundo a expressão dos iniciados nos mistérios: 'numerosos são os portadores de tirso, mas poucos os Bacantes” (69c). Com efeito, poucos são os que mantêm uma relação paradigmática com o daimon, de modo a estarem como bacantes em relação ao Baco, como filósofos em relação à sabedoria. Tal correlação dialética do ente com o seu Ser, que na filosofia platônica se exprimiu com sua doutrina de participação (metexis), apresenta-se na tragédia grega como nexo fundamental das relações entre os seres divinos (Deuses, numes) e os homens mortais. Tal “participação” e “intermediação” pressupõe uma hermenêutica dos sinais divinos, isto é, uma compreensão ontológica da abertura do ente em que se revelam as possibilidades que o Ser lhe aponta. É, pois, possível interpretar o sentido dos acontecimentos trágicos a partir daquilo que na linguagem desde a filosofia antes de Platão se concebeu como a condição de todo ser, a saber, que aquilo que determina ontologicamente a essencialização do ser é o modo de abertura em que o homem já se encontra lançado. O homem é interpelado pelo Ser. É capaz de apreender as significações daquilo que lhe aparece a partir de sua disposição existencial.

5. Cf. Platão, Diálogos, Abril Cultural, 1983 (trad. e notas de José Cavacante de Souza, Jorge Paleikat e João Cruz Costa).

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Crítico

Portanto, não convém interpretar a trajetória do herói restringindo-a a um destino predeterminado, mas como um modo de intermediação de um ente para com aquilo que lhe é desconhecido. Os signos que são transmitidos pelos oráculos e pela fala do coro iluminam o sentido de sua existência plena. É por meio da linguagem e do próprio existir temporal que o herói caminha rumo às possibilidades de seu ser-no-mundo. Assim, o próprio herói é paradigma cujo ser só se revela se temporalizando. Seu ser é o deixar aparecer aquilo que lhe vem ao encontro, seja através de reconhecimentos, reviravoltas, sinais numinosos – o deixar estar presente aquilo com o que se relaciona, ser absorvido naquilo que lhe diz respeito, corresponder e responder à solicitação do mundo circundante. Pois, se não houvesse os efeitos das intermediações, da presença numinosa e das solicitações do mundo circundante, não existiria nem sequer uma possível apreensão do sentido trágico por parte do herói, e nem se faria presente a capacidade de suportá-lo, de conservá-lo em si mesmo, porquanto só a partir dessa ruína ele pode carregar em si a numinosa vontade de potência e estendê-la aos outros limites. A vontade de potência (pathos) é algo que o herói já traz consigo; é aquela hybris, excesso de vontade que o impele aos desastres (synforas). CORO: Olhai, o grão-senhor, tebanos, Édipo, decifrador do enigma insigne. Teve o bem do Acaso – Týkhe – , e o olhar de inveja de todos. Sofre à vaga do desastre. Atento ao dia afinal, homem nenhum afirme: eu sou feliz!, até transpor – sem nunca ter sofrido – o umbral da morte. As múltiplas peripécias heroicas não serão as determinações da vontade de potência aqui designada pela Týkhe? Nietzsche anteviu, em seu Nascimento da tragédia, uma forma trágica de ser. No seu eterno retorno e desejo de eternidade, essa vontade supera todos os limites e é solicitada a penetrar em todas as esferas da existência. Édipo aceita a destruição da morte e as provações sem temor ou hesitação. ÉDIPO: (...) Que eu parta para o monte cujo nome se liga a mim: Citero – meu sepulcro! –, como meu pai e minha mãe queriam. O que em vida buscaram (destruir-me – apollýten), tenham mortos! Mas direi: nem me arruinará (pertho) doença, nem outra causa. 6 Que a Moira me encaminhe ao meu destino! 6. Versos 1451-1458.

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A abertura do ser em Heidegger assimila a vontade de potência que Nietzsche via na tragédia grega: a alegria de existir contém em germe a alegria da destruição. A diferença é que em Nietzsche se vislumbra um horizonte com conotações menos metafísicas, uma vez que não se postula uma Verdade do Ser. Em Nietzsche, o homem é livre, aberto às suas multiplicidades nômades e potenciais, pois não se atrela a nenhuma espécie de verdade ontológica. Heidegger ainda vê uma relação de pertencimento do homem em relação a uma compreensão pré-ontológica do Ser. O homem é solicitado a existir à maneira de uma “antena” que capta os sinais da Verdade. Parece-me que Nietzsche vai mais longe que Heidegger. Vislumbra, pela primeira vez na história do homem, o fim de toda a metafísica. O homem é essa criatura finita que precisa se transtornar, metamorfoseando-se em suas múltiplas virtualidades, assumindo a sua vontade de potência, o seu pathos dionisíaco de ser. Édipo, em cujo seio se desvela essa crise de destruição, depois do qual não resta senão o exílio, é conclamado pelo Nume a assumir todas as determinações negativas dessa vontade de potência. A existência do herói é compreendida pela questão do Ser, mesmo que de forma velada. É nesse sentido que Heidegger tem razão ao pensar que o homem é uma presença de ser-no-mundo sensível ao apelo da Verdade do Ser. Mas, por outro lado, se há uma interpelação por parte da Verdade do Ser, essa “chamada” exige do herói a ultrapassagem, a autossuperação. O ser humano deve assumir e se tornar a sua vontade de potência. É nesse outro aspecto que se consuma o fascínio nietzscheano pela afirmação da vontade de potência. Eterno sim à vida e à morte: o que se chama destino do herói (Moira) deixa de ser um destino preestabelecido, contingência ou mero acaso. A potência numinosa do daimon é o poder-ser que se torna vivo para aquele que lhe está aberto e, portanto, para todo humano mortal solicitado pelo Divino. Na visão sagrada e dionisíaca da vida, transcorre apenas o fluxo da Vida, a vontade de potência ilimitada. O poder-ser da tragédia humana se torna dialética do fenômeno, desvelação de uma força inaudita.

Chiu Yi Chih é professor de filosofia e literatura, poeta, escritor e ensaísta. Bacharel em Letras Clássicas (Grego/Português - USP) e mestre em Filosofia Antiga pela USP com a dissertação A eudaimonía na pólis excelente de Aristóteles. Realizou palestras de filosofia e literatura na USP e UNICAMP. Atualmente trabalha com cursos de filosofia, literatura e produção textual em institutos e faculdades. Em breve lançará o seu livro Naufrágios pela Editora Multifoco, integrando o Selo Orpheu.

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Borges e a poesia: Esse ofício do verso por Wanderson Lima

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A verdade é que não tenho revelações a oferecer. Passei minha vida lendo, analisando, escrevendo (ou treinando minha mão na escrita) e desfrutando. Descobri ser esta última coisa a mais importante de todas. “Sorvendo” poesia, cheguei a uma determinada conclusão sobre ela. De fato, toda vez que me deparo com uma página em branco, sinto que tenho de descobrir a literatura para mim mesmo. Mas o passado não é de valia alguma para mim. Assim, como disse, tenho apenas minhas perplexidades a lhes oferecer. Estou perto dos setenta. Dediquei a maior parte de minha vida à literatura, e só posso lhes oferecer dúvidas. O trecho acima se encontra na abertura de uma das obras mais cativantes e menos conhecidas de Jorge Luis Borges: Esse ofício do verso (trad. bras., 2000, SP, Companhia das Letras). Publicado pela primeira vez em inglês, This craft of verse (este o seu título original) nasceu de palestras proferidas por Borges, entre 1967 e 1968, na Universidade de Harvard, nas famosas Charles Eliot Norton Lectures. Tardou a virar livro: só em 2000 veio a lume, inicialmente nos Estados Unidos. Como O arco e a lira (Lo arco y la lira) para Octavio Paz, como o ABC da literatura (ABC of reading) para Ezra Pound, Esse ofício do verso é, para Borges, a súmula do seu credo poético. O leitor atento das incompletíssimas Obras Completas de Borges (lançando no Brasil pela Editora Globo, a partir de 1999, seguindo os rígidos ditames da Emecé) dificilmente encontrará alguma novidade neste livro, porém tudo o que Esse ofício concentra em suas 158 páginas (falo da edição brasileira) encontra-se pulverizado em centenas de ensaios, contos, entrevistas e prólogos que Borges escreveu até a sua morte, em 1986. O fragmento que abre este texto, se não oferece grandes pistas sobre a concepção de poesia em Borges, dá-nos com precisão o tom do estilo adotado pelo escritor em suas comunicações. Quem está acostumado com o tom panfletário, apaixonado e prescritivo, adotado pela vanguarda aqui e alhures, deve ficar curioso ou até aborrecido com o sermo humilis do escritor argentino. Da Retórica aristotélica à Análise do Discurso francesa, o tom e a persona que o escritor constrói em seu texto (oral ou escrito) recebe o nome de ethos. O ethos não corresponde, necessariamente, ao que o sujeito é na vida privada, nem deve ser confundido com vigarice: trata-se de um recurso de persuasão, que visa gerar um clima empático entre o escritor (ou o orador) e seu público. Penso que o tom humilde e hesitante do ethos borgeano em Esse ofício do verso (reconhecível também em outros escritos do autor) deve-se, ao menos, a dois fatores, um circunstancial e um estilístico, que merecem nossa atenção, já que afetam nosso modo de ler o texto.

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O aspecto circunstancial diz respeito ao fato de as comunicações terem sido proferidas no estrangeiro, nos EUA, levando Borges a redobrar sua cautela, a selecionar exemplos massivamente retirados do universo literário anglofônico, a simular titubeios impensáveis em alguém que realizou sua primeira tradução do inglês ao castelhano aos nove anos de idade (um conto de Oscar Wilde). Já àquela altura bastante mitificado pela imprensa, Borges cria com seu sermo humilis um clima de cumplicidade com seu público. Tal clima permitirá ao escritor argentino destilar erudição sem parecer pedante e encetar comentários polêmicos sem gerar animosidade. Enquanto as vanguardas retorciam a linguagem para, em geral, dizer mesmices, Borges, no seu estilo castiço, construía pontos de vista profundos e polêmicos, capazes de minar nossas crenças mais entranhadas. O mister do ethos humilde borgeano não era outro, pois, senão eufemizar o peso das afirmações que deslocam concepções amplamente aceitas. Esse ofício do verso é assim um livro de deslocamentos, mas não é um livro polêmico – e aí reside sua dificuldade. É preciso não se deixar seduzir pelo tom menor de Borges e achar que nele só cabem ideias “menores”, ainda que vivazes e enunciadas com elegância clássica. A Borges repugnava o estilo do “filosofar a martelos” – profético, peremptório, polêmico – que vem de Nietzsche e é retomado abusivamente no pós-estruturalismo francês, onde nietzschianamente já se decretou a morte do homem, o fim da metafísica, a morte do autor, a morte do romance, o assassinato do real e a morte do cinema. Pretendo, a seguir, apontar e discutir alguns desses “deslocamentos” presentes nas comunicações que perfazem Esse ofício do verso. Não se trata de um resumo linear da obra; o que desejo é responder, consciente da parcialidade da resposta, já que meu corpus restringe-se àquele livro, o que Borges pensou sobre o fazer literário, com enfoque maior para a poesia.

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Esse ofício do verso é composto de seis comunicações que, juntas, abordam os mais variados problemas de teoria literária e poética. O estilo, além de se calcar no sermo humilis conforme apontei, evita o tom abstrato dos tratados de poética ou das obras de filosofia estética. Para Borges, os teóricos da literatura e os filósofos escrevem sobre poesia “como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um prazer” (p. 11). Blasfêmia seria, portanto, imitar a atitude do cirurgião perante poesia. Borges analisa o fenômeno poético de dentro: sua teoria poética é seu credo poético. Dono de uma memória mil vezes aludida como descomunal, Borges – o olhar distante e firme de cego, como mostra a foto da época reproduzida no frontispício da edição brasileira –, convoca poemas e fragmentos críticos de várias latitudes e idiomas para tornar concretas suas afirmações teóricas. Assim, antes de ser tratado de poética, uma investigação sistemática geradora de conceitos, Esse ofício do verso é uma introdução à leitura da poesia. Uma introdução, porém, avessa ao receituário, colocando-se antes como um abecedário do refinamento da sensibilidade para a recepção da poesia. Celuzlose 07 - Dezembro 2010 55


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“O enigma da poesia”, a primeira comunicação, se desalinha das crenças mais tácitas da noção romântico-burguesa (digo, individualizante, calcada na ideia de originalidade, juridicamente protegida) de autoria; paralelo a isso, põe em questão ainda o culto do livro como lócus supremo da poesia e o culto deificador dos chamados clássicos. Para Borges, a beleza é errante e ocasional: pode estar no livro do autor clássico mas também nas situações corriqueiras do dia-a-dia. O livro é mera “ocasião para beleza” (p. 19), que nasce não do eu profundo do autor nem depende inteiramente de sua vontade, mas que é fruto do contato do leitor com a obra: “a arte acontece cada vez que lemos um poema” (p. 15). Neste ponto, não há como não lembrar de Emir Rodriguez Monegal, quando argumenta que a obra de Borges delineia uma “poética da leitura”, isto é, fixa a leitura como operação central do fazer literário: a leitura (incluso aqui a tradução) é a lídima invenção literária.1 A consideração do livro como objetivo imortal e de culto, diz-nos Borges, chega-nos do Oriente com sua noção de Sagrada Escritura. Para os antigos – por exemplo, para Platão e Sêneca –, o livro era mero paliativo. Além disso, sempre se soube que o “autor” do livro não é de verdade o senhor absoluto do que está ali: cada época produz uma “mitologia” (termo do próprio Borges) que demonstra a relativa e questionável autoridade do autor: os gregos conclamavam as musas; os hebreus o Espírito Santo; e a “nossa não tão bela mitologia” (p. 18) o subconsciente e correlatos. “Se um poema foi escrito por um grande poeta ou não, isso só importa aos historiadores da literatura” (p. 24). Tal como Paul Valéry, Borges vindica uma história da poesia sem menções a autores: 2 “Melhor seria, talvez, que os poetas fossem anônimos” (p. 24). “A metáfora”, a segunda comunicação, consiste basicamente numa repetição, com pequenas variações, de um breve capítulo que Borges escrevera para História da eternidade (Historia de la eternidad, 1953), também denominado “A metáfora”. A tese defendida por Borges nesta lição é de uma simplicidade e de uma iluminação ímpares: “[...] embora possam ser encontradas centenas e mesmo milhares de metáforas, todas elas podem ser reconduzidas a uns poucos modelos simples” (p. 49) – havendo, claro, umas poucas exceções. Analisa alguns desses modelos: os que associam olhos e estrelas; mulher e flor; tempo e rio; vida e sonho; morte e sono; incêndio e batalha. Existindo apenas “uma dúzia desses modelos” (p. 41), todas as outras são “meros casos arbitrários” (p. 42), quiçá pouco eficazes. Uma tentativa de exceção que Borges nos apresenta e trata com bastante humor vem de e.e.cummings; na juventude, cummings cometeu o seguinte verso: “'god's terrible face, brighter than a spoon' [a terrível face de deus, mais luzente que uma colher]” (p. 42). Borges comenta de forma hilária: “Lamento bastante pela colher, pois se sente, claro, que ele pensou primeiro numa espada, ou numa vela, ou no sol, ou num escudo, ou em algo que tradicionalmente brilha; e então disse: 'Não – afinal sou moderno, vou meter aqui uma colher'” (p. 42). Porém, o mais interessante desta seção parece ser a análise concreta da eficácia de metáforas colhidas em diversos poetas e tradições; a certa altura, quando está comentando metáforas que associam olhos e estrelas, Borges afirma: “Se levarmos o pensamento lógico a sério, temos aqui [nos exemplos que citara] a mesma metáfora. Porém o efeito em nossa imaginação é bem diverso” (p. 32). O efeito da metáfora na imaginação do leitor: eis o que Borges persegue, essa força viva da metáfora que a teoria tradicional em geral negligencia. Ou seja, o Borges de Esse ofício do verso, nesta e nas outras comunicações, propugna uma crítica pragmática e aprimoradora do gosto.

1. Ver MONEGAL, Emir Rodriguez. Borges: uma poética da leitura. São Paulo: 1980. 2. Fico me perguntando como a primeira vez que li este livro, não atentei devidamente para o impacto da seguinte frase: “[...] não precisamos nos preocupar muito com o destino dos clássicos, porque a beleza está sempre conosco”(p. 23). Pelo que expus do pensamento de Borges, ela soa congruente; porém, nem é preciso ser um pertinaz defensor do cânone para se especular com certo temor sobre suas consequências.

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A terceira comunicação chama-se “Narrar uma história” e reflete sobre as consequências advindas do declínio do poeta épico. Borges interpreta por uma ótica estritamente negativa a guinada lírica da poesia pós-clássica; para ele, a palavra poeta, em nosso tempo, foi fracionada: “[...] hoje em dia, quando falamos de um poeta, pensamos em alguém que profere tais notas líricas, à maneira de passados, como 'With ships the sea was sprinkled far and nigh,/ Like stars in heaven [De navios o mar estava salpicado por toda parte,/ Como estrelas no céu] (Wordsworth) [...]. Ao passo que os antigos, quando falavam de um poeta – um 'fazedor' –, pensavam nele não somente como quem profere essas agudas notas líricas, mas também como quem narra uma história” (p. 51). Esse poeta a que Borges lamenta seu desaparecimento, esse poeta que não cindiu o cantar e o contar, esse é o poeta épico. A posição que Borges esboçará sobre as consequências do desaparecimento da épica se aproxima bastante do que pensaram sobre o assunto Lukács, Bakhtin e especialmente Benjamin, no famoso ensaio sobre o declínio do narrador. A exposição de Borges, porém, segue um ritmo e um encadeamento de ideias muito próprios, expondo suas ideias sem abuso de remissões, aliás, consoante também aos protocolos da comunicação oral. Além disso, todos os três autores aludidos vêm da tradição marxista, a que Borges sempre discordou dos princípios e nutriu antipatia. A poesia de nossa época é uma poesia extirpada, e o poeta um sujeito que esqueceu a arte de narrar: a sua voz agora, íntima, interior, é uma voz pesarosa, melancólica. O desaparecimento da figura do “fazedor”, do poeta pleno, cantador e contador, produziu uma cisão na literatura: de um lado temos o poema lírico e a elegia e de outro temos o narrar uma história, cuja forma mais prestigiada é o romance. Borges, porém, considera, ainda que com alguma hesitação, o romance uma degeneração da épica. Para ele, a distinção qualitativa mais notória entre a epopéia e o romance não vem a ser a diferença entre prosa e verso; o fator distintivo central está na figura do herói. Na epopeia, trata-se de “um homem que é modelo para todos os homens” (p. 56); a essência do romance centra-se, por outro lado, na “aniquilação de um homem, na degeneração do caráter” (p. 56). Ou seja: as narrativas de nossa época abdicaram do heroísmo, da vitória, da felicidade. Seu mister deixou de ser o de narrar uma aventura que congregue a comunidade e passou a se guiar pelo critério da inventividade (de novas técnicas narrativas, de novos enredos). Invariavelmente, porém, é a história de uma queda. Sendo assim, o romance não consegue aplacar nossa sede de aventura e heroísmo. “As pessoas” – afirma Borges – “estão famintas e sedentas de épica” (p. 60). Se não o romance, quem então procurou suprir essa nossa carência estrutural de narrativas heroicas? Numa época em que vogavam as críticas mais unilaterais e devastadoras sobre a assim chamada “cultura de massa”, Borges não hesita em responder: “[...] foi Hollywood que abasteceu o mundo de épica. Por todo o globo, quando as pessoas assistem a um faroeste – observando a mitologia de um cavaleiro, e o deserto, e a justiça, e o xerife, e os tiroteios etc. –, imagino que resgatem o sentimento épico, quer tenham consciência disso ou não” (p. 60).

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A quarta comunicação, “Música da palavra e tradução”, constitui-se, em sua essência, de uma contestação da ideia de tradução sintetizada no trocadilho italiano “Traduttore, traditori”. Borges, neste ponto apresentando pontos de contato com Benjamin e com Derrida, questiona a primazia do texto original: “[...] a diferença entre uma tradução e o original não é a diferença dos próprios textos. Suponho que, se não soubéssemos qual era o original e qual era a tradução, poderíamos julgá-los com equidade. Mas, infelizmente, não podemos. E assim a obra do tradutor sempre é tida como inferior – ou, o que é pior, é sentida como inferior – ainda que, verbalmente, a versão seja tão boa quanto o texto” (p. 71). O ideal seria, pensa Borges, a tradução ser “considerada como algo em si mesmo” (p. 79). Antes, na primeira conferência, o argentino solapara a noção de autoria combatendo o endeusamento do autor, ao predicar que: 1) o autor não é senhor absoluto do seu dizer (tanto que, ao longo do tempo, noções “mitológicas” como a Musa, o Espírito Santo e o subconsciente evidenciaram essa diminuição, ou mesmo depreciação, da ideia romântico-burguesa de autoria); 2) a beleza é caprichosa e inconstante, está presente até nos atos corriqueiros, não sendo uma dádiva doada aos “clássicos”. Agora, a ideia de autonomia dos textos se radicaliza: uma tradução não deve ser julgada como subproduto do original. Para Borges, nenhuma condicionante determina peremptoriamente o sentido do poema, nem as forças sociais, nem as vicissitudes biográficas de quem o escreveu, nem a tradição (ou tradições) em que ele se insere, nem a suposta primazia do texto original – o poema deve ser lido/julgado como produto autônomo, ainda que não se trate de um objeto incondicionado, fruto do acaso ou do milagre. Mas, e quando as liberdades que o tradutor toma afetam o conteúdo dos textos? Borges dirá, na comunicação seguinte, que o sentido é mero adendo ao verso, que sentir a beleza de um poema é um ato que antecede (e tem a primazia sobre) o esforço de pensar em seu sentido. A patrulha ideológica, neste ponto, dá aquele risinho entre o desprezo e a censura: como imaginar um poema não condicionado pelas condições materiais etc etc? Ora, o franco esteticismo de Borges é mais complexo do que sonha as diversas vertentes materialistas e economicistas imaginam.3

3. Luiz Costa Lima analisa como o esteticismo borgeano, dando sequência a um projeto literário que se inicia em Flaubert, funda um “monismo do ficcional” a partir do qual os outros saberes (Ciência, Religião, Filosofia) são submetidos ao crivo da ficção. Dessa maneira, Borges subverte, com sua literatura, o “controle do imaginário” que acompanhou a fundação e o desenvolvimento da literatura na modernidade: de controlada, a literatura passa a ser controladora. Engana-se, portanto, a crítica materialista quando lê o esteticismo borgeano como refinamento inócuo ou pura alienação. Vale lembrar que Costa Lima vê perigos nesse monismo do ficcional que Borges inaugura, que não deixa de ser um reducionismo perigoso. Prova-o a estetização da teoria promovida pelos pensadores pós-modernos que, consciente ou não do débito a Borges, retiram grande parte de suas tópicas das narrativas, ensaios e poemas borgeanos. Ver Costa Lima, L. O fingidor e o censor: no Ancien Régime, no Iluminismo e hoje. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988, pp. 257-306.

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Borges, não tenhamos dúvida, sabia dos condicionamentos externos – como comprova a aguda análise que Beatriz Sarlo faz deste autor a partir da noção de estética da margem (orillas).4 Porém, temia reduzir a poesia a “sintoma” ou panfleto. Temia com razão: presenciamos hoje a redução da literatura à condição de arma branca na arena da política cultural, como se vê no ensaísmo panfletário perpetrado pelos teóricos dos Cultural studies. Porém, todo guerreiro precisa dormir; e Borges, que fora profético e guerreiro em tantas afirmações, errou feio quando previu: “Chegará o dia em que os homens cuidarão muito pouco dos acidentes e circunstâncias da beleza; cuidarão da beleza em si mesma” (p. 81). À crítica universitária hoje só as circunstâncias da beleza interessa, pois a beleza, em si, é considerada um cavalo de Troia que o homem europeu, branco, heterossexual, rico, magro e adulto usa para domesticar as minorias. Ainda dentro do tópico da tradução, Borges focaliza um subtema dos mais polêmicos: a questão da tradução literal. Contrariando a difundida opinião de Matthew Arnold, para quem a tradução literal produz apenas estranhamentos e bizarrias, Borges demonstra, através de variados exemplos em diferentes línguas, que “uma tradução literal pode criar uma beleza toda sua” (p. 77). No entanto, esta circunstancial beleza que a tradução ao pé da letra pode criar não é a razão para Borges prescrevê-la. Pelo contrário, lembra-nos que esta forma de tradução, ainda que possua uma origem teológica remota, é um vício tipicamente moderno: “[...] muitos de nós só aceitam traduções literais, porque queremos dar a cada um o que é seu. Isso teria parecido um crime aos tradutores em épocas passadas. Eles pensavam em algo bem mais valioso. Queriam provar que o vernáculo era capaz de um grande poema como o original” (p. 77).

4. In: Borges, un escritor en las orillas. Madrid: Siglo XXI, 2007. Para Beatriz Sarlo, Borges delineia seu projeto literário a partir da indagação sobre como produzir literatura numa nação culturalmente periférica, ou seja, faz da condição periférica uma estética. Nas palavras de Sarlo: “Borges reinventa un pasado cultural y rearma una tradición literaria argentina en operaciones que son contemporáneas a su lectura de las literaturas extranjeras. Más aún: puede leer como lee las literaturas extranjeras, porque está leyendo o ha leído la literatura rioplatense. En Borges, el cosmopolitismo es la condición que hace posible inventar una estrategia para la literatura argentina; inversamente, el reordenamiento de las tradiciones culturales nacionales lo habilita para cortar, elegir y recorrer desprejuiciadamente las literaturas extranjeras, en cuyo espacio se maneja con la soltura de un marginal que hace libre uso de todas las culturas. Al reinventar una tradición nacional Borges también propone una lectura sesgada de las literaturas occidentales. Desde la periferia, imagina una relación no dependiente respecto de la literatura extranjera, y está en condiciones de descubrir el 'tono' rioplatense porque no se siente un extraño entre los libros ingleses y franceses. Desde un margen, Borges logra que su literatura dialogue de igual a igual con la literatura occidental”.

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Não sendo a mais rica nem a mais complexa, a quarta comunicação, “Pensamento e poesia” é, no entanto, capital por ser nela onde Borges melhor clarifica as raízes de sua concepção de poesia. Naturalmente, não se pode esperar de um ensaísta, quanto mais de um com senso de humor refinado e cético, definições científicas (para Borges, aliás, as definições são não só falsas como desnecessárias). Sem alarde, fiel ao ethos que escolheu desde a primeira conferência, Borges avança com sutileza e humildade – mas nem por isto deixa de polemizar com as posições sobre poesia que eram a moda do dia, como a Jakobson e seus asseclas formalistas e estruturalistas. Cabe lembrar que o esteticismo borgeano não é formalista, não reduz a poesia a jogo verbal nem restringe o poema de sua capacidade referencial. Por outro lado, também não aceita a ideia de poesia como prosa adornada, com a qual, diz ele, se “tenta pegar um conjunto de moedas lógicas e transformá-las em mágica” (p. 83-84). O que então é a poesia segundo Borges? Nada menos que um retorno às fontes primevas, uma ressacralização da língua: “as palavras [começaram] como mágica e [são] reconduzidas à mágica pela poesia” (p. 97). Os vocábulos, em seu princípio, mantêm um laço concreto e eivado de mistério com o que designam: “Talvez tenha havido um momento em que a palavra 'light' parecia lampejar e a palavra 'night' era escura” (p. 86-87); a poesia repõe à palavra essa dimensão pulsante, íntegra, sacral. Sobre este aspecto, é conveniente lembrar que Borges era frequentador assíduo das obras do misticismo jadaico, a Cabala, mística em que não só as palavras, mas até as letras isoladas, são instrumentos de criação e de revelação discerníveis aos iniciados.5 O barateamento das palavras, o seu esvaziamento, vem da ilusão do dicionário, que nos alimenta a utopia de que cada palavra pode ser trocada por outra, como se o sentido fosse uma espécie de moeda de troca. Retruca Borges a essa falsa lógica: “[...] sabemos – e o poeta há de sentir – que toda palavra subsiste por si mesma, que cada palavra é única” (p. 97).

5. Devemos salientar, no entanto, que a relação de Borges com a Cabala não é a de um crente. Costa Lima (Op. cit) observa que, na Cabala e na Gnose, Borges tem “acesso a um conjunto de parâmetros com os quais se [opõe] à tradição formada pelo logos da filosofia clássica grega, pela teologia monoteísta e pela razão iluminista” (p. 280). Saul Sosnowski, estudioso da Cabala, assinala que o “interesse de Borges [pela Cabala] se enraíza no artifício da linguagem, nos processos hermenêuticos que refletem realidades que podem ou não ser arbitrárias, mas que satisfazem a imaginação do criador, que entabulam um diálogo e que projetam um desafio para os iniciados” (p. 18). Ver SOSNOWSKI, S. Borges e a Cabala: a busca do verbo. São Paulo: Perspectiva, 1991.

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A sexta e última conferência apresenta um tom pessoal e confessional cuja franqueza é pouco comum em Borges, sabido senhor dos labirintos. Não diria que “O credo de um poeta”, o título dessa última conferência, contenha revelações bombásticas – revelações que estejam ausentes de outros materiais seus autobiográficos ou que tenham sido desconhecidas daquele que considero seu melhor biógrafo, Emir Rodriguez Monegal. No entanto, contém uma súmula da formação de um leitor muito especial e de como esse leitor foi construindo um cânone muito idiossincrático e eclético. Essa vindicação de Borges por escritor multicultural, cujo patrimônio é toda a tradição ocidental, como está bem expressa no famoso e debatido “El escritor argentino y la tradición”, levou George Steiner a agrupá-lo entre os “esperantistas”, isto é, aqueles escritores que se sentem em casa nas tradições literárias constituídas em outros idiomas que não o seu, como é o caso de Samuel Beckett e Vladimir Nabokov. Vários textos de Borges, em verso e em prosa, são escritos como paródia ou pastiche de textos de escritores ingleses, alemães ou franceses. Nestes casos, afirmar Steiner, “a outra língua 'transparece', dando ao verso de Borges e a suas Ficções luminosidade e universalidade” (p. 17).6

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É estranho quando, nessa sexta e última conferência, Borges afirma: “Não acho que a inteligência tenha muito a ver com o trabalho de um escritor. Acho que um dos pecados da literatura moderna é ser muito autoconsciente” (p. 123). Ora, neste caso poucos escritores da segunda metade do século XX, poucos mesmos, foram tão pecadores como Borges: se sua literatura não se restringe ao puro espaço intertextual como postulam muitos teóricos da pós-modernidade e do pós-estruturalismo, por exemplo John Barth e Paul de Man, é difícil duvidarmos que ela deriva, como afirma Davi Arrigucci, “da tradição de lucidez moderna”,7 aquela que reconhece o pensamento como elemento integrante do corpo da literatura, produzindo frequentemente obras que contêm o conteúdo e seu comentário, a mímesis e a poiesis. Borges, como bem percebeu seu compatriota Ricardo Piglia, conjuga, de modo tenso mas frequentemente bem disfarçado, as habilidades do narrador (da tradição oral) com as do escritor (o 8 erudito refinado, que escreve poemas e contos eivados de referências culturais). Quando Borges reclama que o poeta volte a ser um “fazedor”, na terceira conferência, não é outro o seu desejo senão o de encontrar uma síntese capaz de conciliar definitivamente aquela contradição. Me parece, porém, que Borges não a resolve; me parece ainda que esta não resolução reforça a complexidade e a beleza dessa obra. 6. Ver STEINER, G. Extraterritorial: a literatura e a revolução da linguagem. São Paulo: Companhia das Letras: 1990, pp. 33-43. 7. In: ARRIGUCCI, D. “Borges ou do conto filosófico”. Prefácio a Ficções, de Jorge Luis Borges (São Paulo, Globo, 1999). 8. In: PIGLIA, R. "Borges: el arte de narrar”. In: Cuadernos de Recienvenido, São Paulo, USP, n. 12, 1999.

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Mais ainda. Há nas conferências que formam Esse ofício do verso um projeto velado que Borges partilha com outros escritores-ensaístas, como Ítalo Calvino e Octavio Paz, mas que nele, a meu ver, se evidencia com mais robustez: aliviar a tradição literária da carga opressora com que não raras vezes ela vem revestida. Disso resultam dois ganhos ao leitor: o primeiro é a sensação, hoje obstruída pelos estudos culturais, de que a poesia (a literatura de um modo geral) é inclusiva; de que ela forja um espaço onde fala o Homem, e fala com desejos de escuta, escuta que abre, para lembrar a expressão de um caro ensaísta amigo, uma transversal no tempo. O segundo ganho deriva do primeiro: a leitura deixa de ser uma estratégia de ativismo político, ou uma luta de egos, ou um deciframento passivo, para se tornar um ato cooperativo, um autêntico diálogo. Talvez haja muito otimismo em Borges quanto a essa livre circulação do leitor pelo espaço literário. Aliás, mais que uma circulação: colaboração. “A escrita” – diz secamente – “é uma espécie de colaboração” (p. 124). Na tentativa de tornar a tradição literária livre de qualquer postura opressiva ou agônica – cujos pontos extremos hoje são a ideologização excessiva dos culturalistas e marxistas de um lado e, no outro, o embate edipiano subjacente à ideia de angústia da influência elaborada por Harold Bloom –, Borges não hesita em proscrever a história da literatura. Reverberando algumas ideias de Nietzsche sobre os perigos de uma excessiva consciência histórica para nossa capacidade criativa, dirá o escritor argentino: “Ter consciência da história da literatura [...] é realmente uma forma de incredulidade [...]. Se digo comigo, por exemplo, que Wordsworth e Verlaine foram poetas muito bons do século XIX, talvez caia no perigo de pensar que o tempo de algum modo os destruiu [...]. Acho que a ideia antiga – que podemos conceder perfeição à arte sem levar em conta as datas – era mais corajosa” (p. 119).

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Diria, igualmente, que a aposta de Borges – na negação da autoridade autoral, na generosidade cega da beleza, na primazia da música sobre o sentido, na autossuficiência do poema, no reatamento entre o cantar e o narrar, na força ressacralizante da palavra poética, na insubordinação do texto traduzido, na capacidade coautoral da leitura – é corajosa, e essa coragem compensa sua excessiva credulidade num tipo de leitor que ele sabia estar em franco declínio.

Wanderson Lima (Valença, PI, 1975) é poeta, ensaísta e professor (UESPI). Publicou, entre outros, Balé de Pedras (poesia, Prêmio Torquato Neto, 2005) e, em coautoria com Alfredo Werney, Reencantamento do mundo (crítica de cinema, 2008). É redator da revista de cinema RUA. É coeditor da revista dEsEnrEdoS http://www.desenredos.com.br e mantém o blog O fazedor http://blogdowandersonlima.blogspot.com onde escreve sobre cinema e literatura.

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O que é

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Foto: Giorgio Rocha

O que é poesia?

Edson Cruz (Ilhéus, BA, Brasil) é poeta, editor e revisor. Estudou Psicologia, Música e Composição e, atualmente, estuda Letras na Universidade de São Paulo. Foi um dos fundadores do portal de literatura Cronópios (www.cronopios.com.br) e editor até maio de 2009. Livros publicados: Sortilégio (Demônio Negro/Annablume, 2007) e O que é poesia? (Confraria do Vento/Calibán, 2009). Blog: http://sambaquis.blogspot.com E-mail: sonartes@gmail.com 52 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


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Calidoscópio da poética contemporânea A poesia é, de longe, a linguagem de maior potência de significação – “a mais condensada forma de expressão verbal”, no dizer de Pound –, e não é de espantar a variedade de leituras, de idiossincrasias, de práticas que permeiam a poética contemporânea e, evidente, a sua recepção. Tão diversas como o são os próprios seres e seus interesses. Ainda que todas as artes tenham a sua especificidade e complexidade, os poetas acreditam que a sua seja a mais complexa e inescrutável de todas. Bafejados pelas musas, os poetas são os seres mais suscetíveis do planeta. Eles carregam a responsabilidade, ou a pretensão, de serem as antenas da raça. E, cá pra nós, alguns realmente o são. Isso posto, perguntar-lhes à queima-roupa “o que é poesia?” poderia soar como provocação, ou, no mínimo, como um erro de avaliação e de foco. E, de fato, alguns assim o entenderam. No entanto, muitos poetas decidiram encarar o desafio da pergunta. Assim surgiu o projeto, no blog Sambaquis (http://sambaquis.blogspot.com), que instaurou o diálogo entre gerações, tradições, poetas e poéticas de forma despretensiosa e instigante. A consequência desse projeto é o livro O que é poesia?, editado pelos jovens valorosos da Confraria do Vento em parceria com a editora Calibán. No primeiro volume foram selecionados 45 poetas (de nacionalidade, calibragem e quilometragem diversas), porém, ainda há muitos outros que, possivelmente, farão parte de um segundo volume. Os poetas que agora integram esta seção da revista Celuzlose são alguns daqueles que, por motivos editoriais, não se fizeram presentes no primeiro volume do livro. Confira as respostas dadas por Ana Maria Ramiro, Beatriz Bajo e Laís Chaffe a esse velho e, ainda, legítimo questionamento.

Edson Cruz Organizador

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O que é

poesia?

Ana Maria Ramiro Nasceu em São Paulo (1972). Publicou os livros Menina-Poesia (1999) e Desejos de Gaia (2007). Em 2006, organizou e traduziu a plaquete Para Fazer um Talismã, com poemas de quatro autoras argentinas: Alejandra Pizarnik, Elizabeth Azcona Cranwell, Dolores Etchecopar e Olga Orozco. Participou da antologia 8 femmes (2007) e da Antologia de poesia brasileira do início do terceiro milênio (2008), lançada em Portugal. Tem poemas, traduções e ensaios publicados nas revistas literárias Zunái, Critério, Coyote, Grumo, entre outras. Blog: Folhas de Girapemba http://girapemba.blogspot.com E-mail: ana.ramiro@uol.com.br

O que é poesia para você?

O estado permanente de tensão individual que se resolve aparentemente com a escrita, a procura angustiante daquilo que se esconde e se esvai e que, por essa mesma razão, dá sentido a essa busca, ao processo poético. Para mim, três palavras-chave têm sido a base para o fazer poético: pulsão, concisão e descoberta (um novo olhar sobre a linguagem) e, claro, muita reescrita.

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O que é

poesia?

O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira? Acho fundamental ler muito, dos clássicos (aqueles que permanecem "novos") aos contemporâneos, estabelecer um paideuma, mas também acho necessário um certo distanciamento do cânon e do campo literário, que muitas vezes acaba criando uma amarra condicionante, um instrumento de padronização. Os poetas não devem nunca deixar de lado a ideia de reformular constantemente a própria linguagem, e isso serve para todos, iniciantes ou não. A poesia, como aspecto da linguagem, é matéria viva e ninguém passa uma vida inteira fazendo, falando, escrevendo as mesmas coisas. Ser fiel a um leitmotiv, mas com possibilidade de desvios. Reinventar-se.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

Minha inclinação para a poesia se iniciou na adolescência e me lembro que a leitura de Alberto Moravia e de Baudelaire (As flores do mal) me apresentou uma escrita enérgica, anímica, além de expandir a minha compreensão para a existência de uma estrutura textual. A partir daí, outras leituras foram fundamentais: Uma temporada no inferno, do Rimbaud, A Divina Comédia (mais tarde li na versão original e o prazer foi redobrado ao descobrir como a linguagem arcaica contextualiza historicamente a obra de Dante, mas ao mesmo tempo é uma surpresa estética para o leitor contemporâneo), O livro das horas, do Rilke, muito da obra do Pessoa, do Drummond, alguns poemas específicos de Cecília Meireles, João Cabral e os concretistas. Mais tarde descobri poetas ingleses, franceses, irlandeses, americanos, mexicanos, sul-americanos, poetas orientais... e sigo nessas descobertas. Devo mencionar ainda algumas obras e autores singulares, sui generis, tanto da poesia como da ficção e, nesse sentido, seriam muitos os exemplos, desde o Popol Vuh, passando por Sóror Juana Inés de La Cruz, E. A. Poe, Joyce, Clarice Lispector, a poesia em dialeto de Pasolini, os orikis de Antonio Risério... Todas essas leituras me provocaram em determinado aspecto e momento, me incitaram a dissecá-las, mais do que outras tantas, e de alguma forma se tornaram um palimpsesto, o amálgama que utilizo quando penso em poesia.

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O que é

poesia?

Beatriz Bajo Nasceu em São Paulo/SP, 1980. Poeta, revisora, tradutora, professora de língua portuguesa e literatura, especialista em Literatura Brasileira (UERJ) e aluna especial do mestrado em Letras (UEL). Participou de antologias e mantém publicações em revistas literárias como Coyote e Polichinello e em espaços virtuais como Portal Cronópios, Germina Literatura e Confraria do Vento. Traduziu o livro Respiración del laberinto, do poeta mexicano Mario Papasquiaro, pelo Coletivo Dulcinéia Catadora e trabalha atualmente com uma novela, também mexicana, pela editora LetraSelvagem. Livros publicados: a face do fogo (Selo [e] editorial, 2010) uma parceria da Annablume com o selo Demônio Negro; : a palavra é (Atritoart/Kan, 2010). Morou por 17 anos no Rio de Janeiro (RJ) e vive há 4 em Londrina. Edita a seção literária do site Armadilha Poética http://www.armadilhapoetica.com membro do conselho editorial do Projeto Macabéa http://www.trapiches.com.br e insiste em cultivar o blog http://lindagraal.blogspot.com e-mail: beahbajo@hotmail.com

O que é poesia para você?

Poesia é o tesão da inteligência, é o orgasmo que provoca a recuperação da alma. Poesia é algo que me salva do afogamento ou do incêndio. Lembro que desde quando comecei a escrever e fazia isso com certa frequência (sem trema, agora, mas tremendo ao acaso... rs), o ato de produzir era imperativo... porque não podia dormir, era como estar engasgada de nuvem, tropeçando no sol das palavras que se acenderiam se eu pegasse o caderninho... somente se vomitasse os versos que atravessavam meu sono. Depois, gozava de espelhamento e a leveza deixa-me em outro movimento eufórico e em seguida mais brando, até a singeleza. Tem sido assim, desde sempre. Posteriormente, vieram os estudos, o aprofundamento, a academia e os “papas” do lirismo insistentemente desmentindo o que sinto de antes: de que poesia é o blábláblá do trabalho (sim, de parto), da transpiração (ora, o orgasmo). Nada disso me pega porque leio poemas que não me transformam, mas são apadrinhados pelo cânone, então, fodam-se as teorias e os intelectualismos poéticos. Quero comover-me. Para mim, poesia é uma morte, por isso, uma salvação... um resgate da gente, um perdoar-se.

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O que é

poesia?

O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira?

Deve perseguir a espontaneidade... técnicas para impressionar leitor não valem de nada... é necessário que a poesia incendeie... é imprescindível provocar dores, espasmos, estupefações. O segredo é sempre caminhar ainda mais pra dentro... escrever de olhos fechados para o mundo, construir imagens impossíveis e que representem os sentimentos que impulsionaram o ato... não levar preocupações para o poema... não se importar com escolas e oficinas, obedecer o que caminha bem dentro e que nunca ninguém leu ainda... respeitar as palavras, não as escravizar, sobretudo, respeitar os assuntos de cada um.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas?

Engraçado isso, mas a poesia primeira veio de Clarice Lispector... desesperei quando li Água viva, lá estava tudo o que procurava há tempos. O maior de todos é Drummond, por tudo que me atormenta ainda hoje, o que mais vem me tocando é “Tarde de maio”. Brecht mudou muita coisa em mim com “Poemas de um manual para habitantes das ciudades”. Bem, para não ficar muita extensa a lista, cito um último poeta que me atordoou, Fabiano Calixto. Seu livro, Sangüínea (agora com trema e tudo... rs), é maravilhoso, mas destaco “versos de circunstância”. Beijo no ventre dos versos.

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O que é

poesia?

Laís Chaffe Nasceu em Porto Alegre. Idealizou e está à frente do selo editorial Casa Verde (www.casaverde.art.br - prêmio Açorianos de Editora Destaque no Rio Grande do Sul, 2006) e da Série Lilliput (dedicada a minicontos). Organizou as antologias Contos de bolso, Contos de bolsa e Contos de algibeira e fez a coordenação editorial do livro Contos comprimidos - todos de minicontos. Jornalista e autora de Não é difícil compreender os ETs (contos, AGE, 2002), participou das antologias Contos do novo milênio (organização Charles Kiefer, 2006), Poemas no ônibus (2002 e 2004), entre colchetes fica mais confortável (contos, 2001) e Histórias de trabalho (1999 e 2004). Site: www.chaffe.com.br E-mail: lais@chaffe.com.br

O que é poesia para você?

Poesia desejo salivando em frente à mesa vazia.

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O que é

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O que um iniciante no fazer poético deve perseguir e de que maneira? Pra qualquer poeta eu diria o que digo pra mim mesma, também iniciante: vive, lê muito, lê, lê, le(minski). Mais do que compreender, tem de assimilar como numa transfusão os versos do poeta: um bom poema leva anos cinco jogando bola, mais cinco estudando sânscrito, seis carregando pedra, nove namorando a vizinha, sete levando porrada, quatro andando sozinho, três mudando de cidade, dez trocando de assunto, uma eternidade, eu e você, caminhando junto (Paulo Leminski) Repetiria ainda o que ouvi do Fabrício Carpinejar numa oficina literária: “Vocês têm de dar à mentira a dignidade da lembrança”. Na mesma ocasião, ele lembrou que a gente tem que atravessar o nosso nojo. E ter a brevidade de um desaforo. Fico por aqui, então.

Cite-nos 3 poetas e 3 textos referenciais para seu trabalho poético. Por que estas escolhas? Qual pessoa mario me drummond? Vamos aos poemas: A mesa. Poema de sete faces. Consolo na praia. Aniversário. Autopsicografia. Da vez primeira em que me assassinaram. Ah, eram só três, né? Ok. Gutfreind a todos.

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Rimbaud: das viagens ao silêncio, do silêncio às viagens por André Dick 1. Poeta das viagens O poeta Jean-Nicolas Arthur Rimbaud é, para a França, o que Dante Alighieri é para a Itália, e Goethe, para a Alemanha, ficando em alguns exemplos máximos: um poeta que trabalhou sua língua de modo universal. Seu desejo certamente foi a indeterminância, como observa Marjorie Perloff em seu estudo The Poetics of indeterminacy: Rimbaud to Cage. Como os poetas referidos, Rimbaud deixou também uma obra não só impactante como também extraordinária, uma “injeção de juventude na poesia” (Paulo Leminski). Não por ser um modelo de caminho a ser seguido, mas pela própria negação a tudo, o exemplo verdadeiro de marginal, quando isso ainda não era tratado como rótulo. Isso é claro não só através de sua obra, mas por sua importância mais de um século após sua morte. Rimbaud, para muitos, morreu em vida, por ter deixado a poesia ainda jovem, mas pode-se dizer que, com isso, soube ir além, aonde nenhum poeta ousou. O ponto mais enigmático da poesia francesa do século XIX se encontra, afinal, em sua obra, embora haja os Pauls (o Verlaine e, sobretudo, o Valéry), Charles Baudelaire, com suas “flores do mal” e Stéphane Mallarmé, com seu “lance de dados” para fazer com que essa afirmação seja duvidosa. Para nós, brasileiros, a obra de Rimbaud é, infelizmente, pouco conhecida, muito em razão de o Simbolismo, quase confundido com o Decadentismo, época literária da qual Rimbaud foi o principal precursor (o manifesto de tal escola se deu apenas em 1886, cinco anos antes de Rimbaud morrer) nunca ter recebido um grande espaço em nossa literatura. Nossos grandes simbolistas foram os catarinenses Cruz e Sousa, Ernani Rosas e Emiliano Perneta (os dois últimos menos conhecidos), o gaúcho Eduardo Guimaraens, o baiano Pedro Kilkerry e o mineiro Alphonsus de Guimaraens, o mais popular dos citados – seu poema “Ismália” está em muitos livros escolares, com versos característicos do momento simbolista: “E como um anjo pendeu / As asas para voar... / Queria a luz do céu, / Queria a luz do mar...”. Nascido em Charleville, cidadezinha do interior da França, em 1854, longe das grandes metrópoles, dos grandes meios de circulação da cultura (que, para Rimbaud, ficava em qualquer lugar, menos em Charleville) e da África, para onde partiu mais tarde, deixando a poesia em último plano, Rimbaud foi uma espécie de poeta contra o sedentarismo. Em sua juventude, sua rebeldia e seu ímpeto de liberdade já chamavam atenção, sobretudo no colégio, onde costumava impressionar seus professores com poemas em latim, pelos quais ficaria conhecido inicialmente. Entre fugas de Charleville, pedidos de publicação de alguns poemas seus ao inspirador Theodore Banville e versos, muitos versos, desde os dez anos de idade, Rimbaud amadureceu. Em 1869, ele iniciou sua obra, com “As dádivas dos órfãos”, que foi publicado na Revue Pour Tous, em janeiro de 1870, poema longo e, por vezes, piegas. 74 Celuzlose 07 - Dezembro 2010


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A convite do poeta Paul Verlaine, para quem havia mandado alguns versos, foi morar na capital da vanguarda literária, Paris, em 1871, levando, embaixo do braço, o poema pelo qual ficaria mais conhecido, o antológico “O barco ébrio”, composto quando tinha em torno de 15, 16 anos. Na Paris dos poetas e outros artistas mais avançados no tempo, cercou-se de personalidades literárias e se iniciou na droga predileta daquele período: o haxixe, atrás de seu “desregramento dos sentidos”. Seu melhor amigo em Paris, neste período, foi justamente Paul Verlaine. Rimbaud, afinal, se hospedou na casa dos sogros de Verlaine. A dupla compunha o “Círculo Zútico”, um clube de artistas, sobretudo poetas, cuja maior diversão era passar as noites fazendo festa entre bons e maus versos, aplausos e vaias. Foi nessa amizade também, entre Rimbaud e Verlaine, que cresceu um envolvimento perigoso, pois o segundo era casado e arranjou problemas com a esposa ao circular com Rimbaud pela noite parisiense. Esse envolvimento acabou rendendo também ao poeta idas e vindas no trajeto Charleville-Paris. Numa dessas idas a Paris, em 1873, Rimbaud tomou um tiro de Verlaine que quase lhe fez perder a utilidade da mão esquerda. O caso chegou a parar na polícia. Mas a trajetória de Rimbaud não ficou só nisso: ele viveu aventuras em países como Bélgica (aonde fora com Verlaine), Inglaterra (onde teve uma vida miserável em Londres), Alemanha (onde virou preceptor dos filhos de um médico em Stuttgart), Itália (de onde foi expulso) e Holanda (onde se engajou no exército), entre outros países, nunca fixando lugar, sempre um eremita, um aventureiro. Disposto a fugir da Europa branca e aristocrática, cheia de manias e bibelôs, e encontrar novos povos, novas culturas, um novo universo, enfim – mesmo com a mãe querendo trazê-lo de volta à convivência familiar –, Rimbaud tomou o caminho da África. A vida do poeta, então, tomou os contornos de uma jornada sem fim, mais do que já era, tão ou mais trepidante que sua prosa, registrada em Uma temporada no inferno e em Iluminações – que é um marco na literatura ocidental no final do século XIX, influência direta na obra de outros escritores modernos, sobretudo os beats americanos dos anos 60, que espalharam pelo mundo a cultura junkie. Para Michael Hamburger, na época em que escreveu, por exemplo, Iluminações e Uma temporada no inferno, Rimbaud “estava antecipando o surrealismo, o dadaísmo e até a pop art mais recente”.1

1. HAMBURGER, Michael. A verdade da poesia. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 65.

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Na África, Rimbaud passou, entre outros lugares, por Chipre, Egito, Harar, Somália, Ugadine, Bubasse e Etiópia, tornando-se o primeiro homem a desbravar o rio Ugadine, o que lhe deu oportunidade de realizar relatos de viagem, publicados pela revista Sociéte de Géographie. Nesse ambiente, Rimbaud foi o homem que traficou armas, exportou ouro, marfim, peles e café, participando da construção de um palácio e cruzando desertos – só a travessia do deserto da Somália durou, a cavalo, vinte dias. Em meio a tudo isso, o principal objetivo: a penetração na Abissínia. Segundo Roland Barthes, o “Poeta e o Viajante (figura ainda romântica) foram substituídos por outro 2 papel: o de colono e geógrafo (verdadeira antítese do Poeta)”. Desse modo, “Rimbaud abandona um Desejo (o de Escrever), mas o substitui por outro, igualmente violento, radical, e, eu diria, louco: viajar”.3 Ou seja, ele foi tudo aquilo que ninguém espera de um poeta. Em 1879, ano em que contraiu febre tifoide, ele deu a seguinte declaração sobre a literatura e, especificamente, sobre a poesia, ao seu amigo inseparável Ernest Delahaye: “já nem penso mais nisso”. Como se tudo que escrevera até então pertencesse ao acaso, relegando o passado e sua juventude apenas para os admiradores da poesia. Foi o único poeta que descobriu a arte do silêncio – a maioria é procurado pelo silêncio – retomado quase meio século depois pelo norte-americano John Cage. Talvez Rimbaud, o simbolista francês por excelência e com coração de caçador, seja a peça-chave para compreender os passos de uma futura vanguarda, entre futurismos, vorticismos, dadaísmos e outros ismos; e também quisesse nos comunicar algo além da sua poesia, embora isso seja difícil, tal a amplitude que ela atingiu. Isto é, talvez Rimbaud tenha pretendido separar suas facetas, uma delas voltada para a vida literária e a outra, para a terra estrangeira, quase inevitável em sua vida. Quando Rimbaud, castigado por um tumor cancerígeno no joelho direito, agravado por uma antiga sífilis, teve a perna amputada num hospital de Marselha, a 22 de maio de 1891, após varar o deserto que separa os montes de Harar do porto de Zeilá e passar por Aden, podemos perceber que toda essa trajetória rumava para algum significado. O poeta faleceu no dia 10 de dezembro do mesmo ano. Seu último desejo (ser inumado em Aden, cidade que adorava) não foi atendido: por ironia do destino, a mãe resolveu enterrá-lo em sua cidade natal, de onde fugiu a vida toda. Assistiram sozinhas ao seu enterro a mãe e a irmã.

2. BARTHES, Roland. A preparação do romance II: a obra como vontade: notas de curso no Collège de France 1979-1980. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 55. 3. Ibidem, p. 54.

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2. Silêncio moderno Em seu livro Estrutura da lírica moderna, Friedrich localiza características semelhantes entre Baudelaire e Rimbaud: o abandono à religião, a transcendência vazia, a protelada separação do eu poético do eu empírico (é de Rimbaud o conhecido axioma da modernidade “Je est un autre”), o interesse pelo desconhecido, pela magia e a fuga calculada da burguesia – característica romântica, como vimos –, a música dissonante dos versos, a necessidade de refletir sobre a poesia (Uma temporada no inferno mostra bem isso), a presença da cidade. Mas, como é habitual em sua tese, Friedrich converte tudo em possibilidades do poeta de querer acabar com uma tradição e iniciar outra. Segundo Friedrich, Rimbaud adota em seus versos a desumanização: “O eu que fala nas poesias de Rimbaud não pode ser concebido a partir da pessoa do autor, assim como o eu de Les fleurs du mal”.4 O argumento é prejudicado por insistir em se dissociar a poesia da vida existencial: ou seja, a linguagem está afastada da vida e não traz sentimento, pois este faz parte do ser humano, e o poeta moderno é alguém que sofre apenas por si mesmo, o que revelaria sua desumanidade. Hugo Friedrich comenta o fato de que os textos de Rimbaud “mostram que ele começa com a revolta e termina com o martírio de não poder escapar à coação da herança cristã”.5 O seu axioma “É preciso ser absolutamente moderno”, no entanto, faz com que Uma temporada no inferno seja a principal representação desse abandono da tradição cristã, ou seja, não vendo mais Deus como o sentido final. A obra de Rimbaud busca a “transcendência vazia” em razão de ela trabalhar com a imagem de que Deus está ausente da realidade apresentada pelo mundo.6 Por ter começado a separação anormal entre o sujeito poético e o eu empírico, 7 que impediria de entender a lírica moderna como expressão biográfica, Friedrich considera que a poesia de Rimbaud, então, seria “desumanizada”, pois não fala a ninguém. É como se se constituísse num monólogo em que o “Eu imaginado cedeu 8 lugar a uma expressão sem o Eu”. No entanto, essa expressão sem o Eu descende de uma visão romântica, como a própria posição de Rimbaud, ao elogiar seus antecessores, como veremos melhor mais adiante, ao tratarmos da impessoalidade.

4. FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Estrutura da lírica moderna: da metade do século XIX a meados do século XX. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978, p. 69. 5. Ibidem, p. 67. 6. Ibidem, p. 75. 7. Ibidem, p. 69. 8. Ibidem, p. 70.

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É pertinente procurar entender por que esse gesto de equilibrar a linguagem com o pensamento é vista pelo teórico alemão como desumanização da poesia. Tal “monólogo” ocorre, para ele, não mais porque “a inspiração divina o subjuga”, mas porque “subjugação vem agora de baixo”, ou seja, o “eu emerge e é desarmado por 9 camadas profundas coletivas”. O autor, então, trataria os homens “como estrangeiros sem pátria ou como caricaturas”.10 O que ele quer dizer, na verdade, é que o poeta moderno, por não querer mais aspirar ao divino, ao sublime, acaba por se rebaixar (o termo é importante, por isso o destacamos) à humanidade. Só que, por isso, paradoxalmente, Friedrich o trata como desumano. Outro dado problemático na análise empreendida por Friedrich é que ele imagina ter existido uma pessoa chamada Arthur Rimbaud independente da poesia feita por Arthur Rimbaud. Mas nessa reflexão encontra-se um paradoxo: como pode um sujeito pensar apenas em si mesmo, como ele parece querer comprovar, e o que ele escreve não dizer nenhum respeito a ele, expressando um Não Eu? De que modo aquele imaginário referido por Friedrich, no qual o autor trataria apenas de si mesmo, não é íntimo; pelo contrário, corresponde a uma “realidade neutra”, existente apenas na página e impedida de ter tido um contato com a realidade “natural”, ou com qualquer sentimento? Adquirindo vida própria a linguagem poética, temos, numa dicotomia, o homem Rimbaud e a linguagem Rimbaud. Porém, o eu empírico não é apenas o homem “que confessa seus segredos” ao leitor; ele também revela a linguagem de um homem – e, no caso de Rimbaud, suas viagens mais densas. Barthes avalia a ruptura de Rimbaud de maneira mais produtiva, baseando-se em suas fases (a primeira, preenchida pela poesia, e a segunda, quando parte para a África), quando diz: Rimbaud é moderno (fundador da Modernidade) não por seus escritos – ou menos por seus escritos do que pelo deslumbramento, o jeté de sua ruptura. Não é nem mesmo a radicalidade, a pureza, a liberdade da ruptura, que é moderna; é que ela permite ver, torna visível que o sujeito – o sujeito da linguagem – está fendido, esquizoide, como uma via em que cada trilho corre e segue diretamente diante dele, um paralelo ao outro; como se Rimbaud tivesse tido, nele, dois “condicionamentos” estanques: um para a poesia (através do liceu), outro para a viagem [...]; ele falou duas linguagens descontínuas: entre o poeta, o viajante, o colono e o crente final [...], não há junção, e é essa esquize que age como uma tentação moderna: Maquiavel fala de Lourenço de Médicis (grave e voluptuoso), e diz que havia 11 nele dois seres diferentes: “juntos por uma inconcebível junção”.

9. Ibidem, p. 63. 10. Ibidem, p. 70. 11. BARTHES, op. cit., p. 57.

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Friedrich pretende estabelecer que em Rimbaud, no entanto, a realidade e a irrealidade não existem; foram fundidas num mundo fantasioso: “Estamos num mundo 12 cuja realidade existe só na língua”. Sendo assim, homens tão restritos a seu próprio mundo, como Rimbaud e Baudelaire, não querem mais receber os conteúdos do mundo, e sim “impor sua criação”.13 Como em Baudelaire, as visões de sonho de Rimbaud “se valem 14 do inorgânico para se enrijecerem e escaparem no desconhecido” e, sobretudo, ultrapassar a realidade. Esse desconhecido “já não pode ser saciado pela fé, pela filosofia ou pelo mito, é [...] polo de uma tensão que, porque o polo está vazio, rechaça a realidade”,15 que, destruída, constitui “o sinal caótico da insuficiência do real em geral, 16 como também da inacessibilidade do 'desconhecido'”. Não há dúvida de que é um olhar negativo sobre a modernidade, sobretudo porque pretende ligar essa transcendência vazia a uma aversão pela herança cristã. Mas de que realidade ele fala? Podemos pensar, nesse caso, em uma “realidade da linguagem”, uma realidade que existe a partir da linguagem. No entanto, para Friedrich, essa escolha faz com que as imagens rimbaudianas não sejam mais para a “inteligência”, mas para os sentidos, uma crítica direta ao fato de que Deus precisa ser aquele que é imposto e não aquele que é sonhado. 17 Elas seriam, portanto, “curvas puras da fantasia e da linguagem absoluta”, valendo-se Friedrich do exemplo de Iluminações, cujos textos não pensariam no leitor, como se o escrito adequado fosse feito para o público. Nesse sentido, Augusto de Campos indica: A peripécia vital de Rimbaud, única, pela radicalidade – a do adolescente genial que, em três ou quatro anos, queimou todas as etapas do fazer numa obra mínima (e máxima), tão densa e tão intensa que levou à renúncia e ao silêncio o poeta superdotado –, merece um tributo especial e uma reflexão permanente. Quando o escrever é mero degrau para os assomos da vaidade ou do poder [...], será útil rememorar o caso-limite Rimbaud, a perfeição do que ele fez, tão jovem, e o desprendimento com que deixou de fazer, tão cedo.18 No entanto, Friedrich, preocupado com a filologia do texto, escreve: Desde 1871, a poesia de Rimbaud transformou-se, cada vez mais, em monólogo. Conservaram-se esboços de algumas passagens das obras em prosa. Confrontando-se estes esboços com as redações definitivas, vê-se em que direção Rimbaud mudou. Os períodos tornam-se ainda mais concisos, a omissão de conexões torna-se mais ousada, os grupos bizarros de palavra 19 ainda mais frequentes. 12. FRIEDRICH, op. cit., p. 80. 13. Ibidem, p. 81. 14. Ibidem, p. 82. 15. Ibidem, p. 76. 16. Ibidem, p. 76. 17. Ibidem, p. 82. 18. CAMPOS, Augusto de. Alguns Rimbauds. In: ______. Rimbaud livre. Trad. Augusto de Campos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 20-21. 19. FRIEDRICH, op. cit., p. 90. (Grifos meus).

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Em seguida, Friedrich procura explicar as minúcias que ele tinha com detalhes de composição: Informações de época relatam que ele (Rimbaud) costumava consumir maços inteiros de papel, antes que uma redação o satisfizesse, que tinha escrúpulos de colocar ou não uma vírgula ou de suprimir um adjetivo, e que colecionava palavras raras ou desusadas para, depois, servir-se delas em seus textos. Todos estes fatos comprovam que Rimbaud não trabalhava de maneira 20 distinta da dos clássicos da clareza. Finalmente, conclui: As obscuridades em forma de monólogo não são repentes incontrolados, mas arte consciente e, como tal, de todo coerente numa poesia cuja paixão pelo “desconhecido”, não se podendo realizar, conhece apenas o caminho de subverter e de tornar estranho o que é conhecido.21 Lendo esses fragmentos, pode-se questionar o que explica a tentativa anterior de Friedrich considerar a arte moderna como distinta daquela que efetua a clareza ou da figura do autor como contrária àquela que efetivamente compõe, através da elaboração, a sua obra. Talvez Friedrich queira destacar que o autor moderno quer a irrealidade, o sonho, a fantasia. Mas tal caminho já não era proposto pelos românticos, interessados em transformar a realidade através de uma negação completa da mesma, buscando uma natureza superior à existência? Poderia ser dito que então o romantismo queria, na verdade, reproduzir o pensamento de mudança para a sociedade, caminho negado sobretudo pelos simbolistas. Mas esses, de algum modo, não estariam, na visão de Friedrich, querendo fazer o mesmo, ao ignorar a realidade ao seu redor?

20. Ibidem, p. 90. (Grifos meus). 21. Ibidem, p. 90.

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Na “Carta dita ao vidente”, de Rimbaud, há uma homenagem clara aos seus antecessores quando ele escreve que o romantismo nunca foi bem julgado, sobretudo pelos críticos. Quando Rimbaud escreve “Eu é um outro”, ele conclui, no entanto, que isso é resultado do conhecimento do homem: “[...] ele procura a sua alma, a inspeciona, a tenta, a aprende. Quando a sabe, deve cultivá-la; isto parece simples: em todo cérebro há um desenvolvimento natural; tantos egoístas se proclamam autores; há bem 22 outros que se atribuem o seu progresso intelectual!”. O poeta, daí, faz-se vidente “por meio de um longo, imenso e refletido desregramento de todos os sentidos”, ou seja, “ele procura ele mesmo, ele esgota nele todos os venenos, para só guardar as quintessências”.23 Nessa busca pela “impessoalidade” – e assim a viagem é tanto para dentro quanto pelo mundo –, diz Rimbaud, o poeta [...] precisa de toda a fé, de toda a força sobre-humana, onde ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito – e o supremo Sábio! – Pois ele chega ao desconhecido! Porque ele cultivou a sua alma, já rica, mais do que nenhum! Ele chega ao desconhecido, e quando, enlouquecido, ele acabaria por perder a inteligência de suas 24 visões, ele as viu! Rimbaud acaba por considerar os românticos também videntes, mesmo que eles não tenham se dado conta disso. Como se percebe, sua visão não está longe daquela oferecida por Longino. O poeta é visto como um representante da humanidade, ao contrário do que expõe, como dito anteriormente, Friedrich; mas Rimbaud, ao contrário dos românticos, entende isso como um potencial natural de qualquer ser humano, de se conhecer interiormente quando interessado em produzir versos e não deixar a cargo da natureza a responsabilidade de a obra existir. É importante, assim, contornar a ideia de que a impessoalidade se liga à intransitividade, que garantiria “à obra um valor geral, que supera o individual e o circunstancial”. A impessoalidade só existe pela maneira como o autor se constrói, de forma pessoal, com seu “eu psicológico” (portanto individual, quando sabe de sua multiplicidade e divisão) em diálogo com a vida (o “circunstancial”).

22. RIMBAUD, Arthur. Carta dita do vidente. In: ______. Uma estadia no inferno/Poemas escolhidos/A carta do vidente. Trad. Daniel Fresnot. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 79. 23. Ibidem, p. 80. 24. Ibidem, p. 80. (Grifos do autor).

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A impessoalidade não tem a ver com uma fuga ao “eu psicológico” (visto que esse tem a subjetividade alargada), nem anula a consciência e a responsabilidade do escritor, que se dá devido às circunstâncias de sua existência; ele sabe que a criação tem a consciência de um trabalho com as palavras, e não de uma possessão por palavras. O trabalho poético não tem um caráter sobrenatural: é, sim, guiado por um trabalho de construção – e, no caso de Rimbaud, das inúmeras viagens. Por isso, podemos entender o contrário de Alfonso Berardinelli, que escreve: “O desenraizamento da arte, sua abstratização por meio de procedimentos 'despoticamente' formalistas e absolutizantes, que aniquilam toda possibilidade de determinação espaço-temporal, é obra sobretudo de poetas como Rimbaud e Mallarmé 25 e de pintores como Cézanne”. Esses procedimentos que aniquilariam “toda possibilidade de determinação espaço-temporal” são inviáveis nas obras de Rimbaud e Mallarmé justamente pela correspondência, que encontramos nelas, com a vida. Exemplo desse caminho é quando Friedrich parte do pressuposto de que o homem Rimbaud, mesmo não conhecendo o mar, pôde fazer o poema “O barco ébrio”, o que mostraria que o poeta não considera a realidade. Sob outro ponto de vista, mostra-se a humanidade do poeta em dividir seu imaginário com a fantasia, que, ao mesmo tempo, provém da realidade, mediada, obviamente, pela linguagem, não transposta, mas reinventada. As imagens de “O barco ébrio” revelam um talento incomum para descrever uma tormenta marítima. Importante não desconsiderar a análise de Friedrich sobre o poema, com diversos acertos, independente dos caminhos que ele segue para chegar a essa análise. Ao analisar a linguagem de ruptura e inovação de “O barco ébrio”, ela só mostra por que Rimbaud é um dos maiores poetas da modernidade – pois entrega seu imaginário à corrente tumultuada das observações do cotidiano e de leituras. Como escreve Augusto de Campos, trata-se de um “biopoema, varado por um sopro cósmico e premonitório, que infunde uma dramaticidade implacável à holovisão do navio-poeta. Como negar a congruência do poema com os futuros passos da vida de Rimbaud – suas viagens disparatadas, sua ruptura com o mundo civilizado da Europa, seu isolamento final, sua renúncia à poesia, seu silêncio – projetados na alegoria do barco anárquico, vidência ratificada pela violência?”.26

25. BERARDINELLI, Alfonso. Da poesia à prosa. Org. Maria Betânia Amoroso. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 74. 26. CAMPOS, Augusto de. Alguns Rimbauds. In: _______. Rimbaud livre. Trad. Augusto de Campos. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993, pp. 15-16.

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Nesta seleção de traduções, optei justamente pelo Rimbaud das jornadas. Em “Minha boêmia (Fantasia)”, Rimbaud se descreve: veste um paletó com bolsos sem costura, um único par de calças (ainda por cima, com um furo), tendo como albergue a Ursa-Maior (isto é, o espaço sideral) e se vendo como um Pequeno-Polegar que, ao invés de jogar migalhas de pão pelo caminho, espalha rimas ao seu redor. Em “Sensação”, um dos poemas que Rimbaud enviou, em 1870, a um de seus inspiradores, Théodore de Banville, que poderia publicá-lo no Le parnasse contempain e acabou não publicando. A expressão “cabeça desnuda” retrata o verão europeu, quando se pode andar descalço e sem chapéu. É um dos meus poemas preferidos de Rimbaud. Sua composição é curta, concisa, irônica e atrevida. “No cabaré verde” é outro poema de Rimbaud que foi escrito numa de suas tantas jornadas, desta vez pela Bélgica. Cogita-se que o cabaré verde do poema realmente tenha existido na cidadezinha de Rimbaud, Charleroi. E, se não existiu, coube a Rimbaud criá-lo. E seleciono “A eternidade”, da fase que aproxima Rimbaud de um poeta provençal: sucessão de rimas raras e imagens simbolistas atemporais. Das viagens ao silêncio, do silêncio às viagens: Rimbaud.

André Dick nasceu em Porto Alegre/RS. Publicou três livros de poesia, Grafias (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 2002), Papéis de parede (Belo Horizonte: Funalfa; Rio de Janeiro: 7Letras, 2004) e Calendário (Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2010). Tem um livro inédito: O equilíbrio do dia, que recebeu a Bolsa de Estímulo à Criação Literária da Funarte, em 2008. Publica, com Nicole Cristofalo, ensaios e traduções no blog Dado Acaso - http://dadoacaso.blogspot.com

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4 poemas de Rimbaud (Tradução: André Dick)

Sensação Nas tardes de verão, irei pelo caminho, Pelo trigo, sobre a grama miúda: Um frescor aos meus pés, sozinho, E o vento a banhar minha cabeça desnuda. Sigo em silêncio, não pensando em nada: Meu amor procura em minha alma abrigo, Boêmio, irei longe, muito longe, pela estrada, Alegre – como se levasse uma mulher comigo. Março, 1870

Sensation Par les soirs bleus d'été, j'irai dans les sentiers, Picoté par les blés, fouler l'herbe menue: Rêveur, j'en sentirai la fraîcheur à mes pieds. Je laisserai le vent baigner ma tête nue. Je ne parlerai pas, je ne penserai rien, Mais l'amour infini me montera dans l'âme; Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien, Par la Nature, heureux – comme avec une femme. Mars, 1870

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L'éternité Elle est retrouvée. Quoi? – L'Éternité. C'est la mer allée Avec le soleil. Âme sentinelle, Murmurons l'aveu De la nuit si nulle Et du jour en feu. Des humains suffrages, Des communs élans, Là tu te dégages Et voles selon.

A eternidade Ela está retrovada. Quem? – A eternidade. O mar some na calada Com o sol que parte. Alma sentinela, Murmura seu chamado De uma noite nula De um dia queimado.

Puisque de vous seules, Braises de satin, Le Devoir s'exale Sans qu'on dise: enfin. Là pas d'espérance, Nul orietur. Science avec patience, Le supplice est sûr. Elle est retrouvée. Quoi? – L'Éternité. C'est la mer allée Avec le soleil. Mai, 1872

Dos atos humanos, Impulsos de coração, Você se livra de enganos Voando então. Pois apenas delas, Brasas de cetim, O Dever se exala E não diz: enfim. Lá não há esperança E não há destino. Ciência e paciência, O suplício é vizinho. Ela está retrovada. Quem? – A eternidade. O mar some na calada Com o sol que parte. Maio, 1872

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No Cabaré Verde (às cinco horas da tarde) Oito dias depois, minhas botinas rasgadas Pelas pedras do caminho: em Charleroi, entrei – No cabaré verde: peço torradas Com manteiga e presunto, feito um rei. Descansado, jogo as pernas sobre a mesa Verde: contemplo os traços mais ingênuos De uma tapeçaria. – E, grande surpresa, Uma garota de seios grandes, olhos plenos – Não será um beijo que a deixe menos meiga! – Sorridente, me traz torradas de manteiga Com presunto, num prato colorido. O presunto é rosa e branco, perfume de dentede-alho. Me dê um chope, com seu sabor excelente Que doura um raio de sol ferido. Outubro, 1870

Au Cabaret-Vert (cinq heures du soir) Depuis huit jours, j'avais déchiré mes bottines Aux cailloux des chemins. J'entrais à Charleroi. − Au Cabaret-Vert: je demandai des tartines De beurre et du jambon qui fût à moitié froid. Bienheureux, j'allongeai les jambes sous la table Verte: je contemplai les sujets très naïfs De la tapisserie. − Et ce fut adorable, Quand la fille aux tétons énormes, aux yeux vifs, − Celle-là, ce n'est pas un baiser qui l'épeure! − Rieuse, m'apporta des tartines de beurre, Du jambon tiède, dans un plat colorié, Du jambon rose et blanc parfumé d'une gousse D'ail, − et m'emplit la chope immense, avec sa mousse Que dorait un rayon de soleil arriéré. Octobre, 1870

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Ma bohème (Fantaisie) Je m'en allais, les poings dans mes poches crevées; Mon paletot aussi devenait idéal; J'allais sous le ciel, Muse ! et j'étais ton féal; Oh! là là! que d'amours splendides j'ai rêvées! Mon unique culotte avait un large trou. – Petit-Poucet rêveur, j'égrenais dans ma course Des rimes. Mon auberge était à la Grande Ourse. – Mes étoiles au ciel avaient un doux frou-frou Et je les écoutais, assis au bord des routes, Ces bons soirs de septembre où je sentais des gouttes De rosée à mon front, comme un vin de vigueur; Où, rimant au milieu des ombres fantastiques, Comme des lyres, je tirais les élastiques De mes souliers blessés, un pied près de mon coeur!

Minha boêmia (Fantasia) Já me ia, com as mãos no bolso sem costura Meu paletó assim ficava ideal Sob o ceú, musa!, eu fui seu amigo principal Oh! Que coisa! Sonhando amores com bravura! O meu único par de calças tinha um furo – Pequeno polegar de rimas ao redor. Meu albergue fica na Ursa-Maior – Meus astros no céu rangem murmúrios. Sentado, eu os ouvia, à beira das rotas Em noites de setembro, nas quais senti as gotas Da rosa à minha frente, como o vinho da razão. Onde, rimando em meio a paisagens fantásticas Eu tomava, como dos lírios, as botinas elásticas Dos sapatos feridos, um pé preso no meu coração!

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LÚCIDA RETINA

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Guilherme Mansur Poeta e tipógrafo. Publicou HAICAVALÍGRAFOS, BANDEIRAS - TERRITÓRIOS IMAGINÁRIOS, BENÉ BLAKE, BARROCOBEAT, BICHOS TIPOGRÁFICOS e GATIMANHAS & FELINURAS (em parceria com Haroldo de Campos). Vive e trabalha em Ouro Preto, Minas Gerais. E-mail: guimamba@gmail.com

DESCASCAVEL

— a cobra é feita de inúmeros mínimos múltiplos músculos — ósculos venenosos, olhos vidrados — a cobra cobra caro com veneno — a cor é a bandeira da coral — o chocalho é o sino da cascavel — soa o chocalho — uma picada — no meio de uma picada aberta — a cobra abre picadas por entre o mato e mata — a mata se funde à geometria no corpo da cobra — a cobra troca de pele e de desenhos — a cobra para na toca e dorme sem parar — a cobra risca o chão ao acaso — o ocaso da cobra é o gavião — a cobra está entre a pressa e a presa — a cobra pega presas porque é preciso — a cobra é precisa, matemática, calculista — a cobra é feita de números —

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