1. O nascimento do Homo sapiens O homem é homem porque criou a tecnologia que o atende e permite a sua sobrevivência em mundos muito variados. De fato, essa adaptabilidade a novos ambientes é uma das marcas do Homo sapiens. Tal interpretação reflete uma nova safra de livros sobre o assunto. Nessas novas narrativas, há uma tendência a considerar os humanos modernos uma espécie que não pode ser explicada apenas pelos dois sistemas clássicos: as leis da física e da biologia. Para entendê-lo, precisamos definir um Sistema 3, que é a tecnologia. Dito de outra forma, é como se o homem passasse a abrir mão de certas características que permitiam a sobrevivência de suas espécies ancestrais. Por exemplo, trocando a força física por instrumentos eixosomáticos, como armas e ferramentas, que concedem mais poder aos seus bíceps, agora mais fracos. Por que, porém, abrir mão de seus bíceps? A razão principal é que o homem trocou músculo por cérebro, um órgão grande e de enorme apetite. Não dava para ter os dois. Em retrospecto, a massa cinzenta se revelou mais útil do que uma musculatura como a do chimpanzé. Mas que não tentemos medir força com ele, pois sairemos estraçalhados!
página ao lado: Homem Vitruviano, Leonardo da Vinci (1452-1519). Também conhecido como “O Homem de Vitrúvio”, esta ilustração foi criada por
inspiração a partir do conceito desenvolvido pelo arquiteto romano Marcos
Vitrúvio Polião, autor dos Dez livros sobre a arquitetura (De Architectura Libri
O australopiteco sofreu mudanças físicas, evoluindo em direção ao Homo sapiens. Isso aconteceu por volta de 3,6 a 2,5 milhões de anos atrás. Se continuasse com o estilo de vida dos outros primatas, seu corpo de homem seria cada vez mais vulnerável. Passou a ter menos força, caninos débeis, olfato menos apurado, além de perder o seu pelo protetor. Mas essa vulnerabilidade é mais do que compensada pelo que passa a ser capaz de fazer, com o auxílio da tecnologia. Devemos entender, contudo, que tais transformações têm que ocorrer simultaneamente, pois a marcha para virar Homo sapiens é a mesma da tecnologia. Achados arqueológicos de ferramentas dessas datas demarcam o momento em que o ser humano se separa dos demais primatas. Nessa etapa pré-histórica, começamos a ver o avanço das ferramentas, das formas de domesticar a energia e do uso de materiais cada vez mais competentes para as funções desejadas. Por assim dizer, é o prefácio para o que aconteceu nos últimos 2 mil anos. E o que aconteceu até o século XVIII prepara o terreno para a Revolução Industrial. Como resultado dos rápidos aumentos de produtividade, pela primeira vez na história torna-se possível alimentar e oferecer um mínimo de conforto para uma população que se expande continuamente. Rompe-se o ciclo malthusiano e passa a ser possível oferecer aos mais pobres um nível de vida digno, não importando quantos sejam.
Decem, em latim).
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O corpo de um primata se transforma, tornando-se humano Há cerca de 3,6 milhões de anos, começa a trajetória complexa e acidentada que transforma em homem um primata de aparência pouco ilustre. O primeiro grande passo é o bipedismo. O atual chimpanzé parou no meio do caminho: suas patas dianteiras já não pisam, como os quadrúpedes; são as costas das mãos que tocam o chão, suportando relativamente pouco peso. Mas ele não chega a virar um bípede. Para viabilizar o bipedismo, altera-se o esqueleto do homem. A coluna se torna ereta e seu encaixe no crânio, mais centralizado. Seus braços encolhem e as pernas espicham, o que o torna mais alto. Com tais pernas, fica mais competente no solo do que os demais primatas, tornando-se um bom corredor, no que hoje chamamos corrida de fundo. Não é a velocidade, mas a capacidade de correr largas distâncias. Isso é fundamental para sua nova vida, depois de descer das árvores. É indispensável nas caçadas. Visto de outro ponto de vista, o bipedismo economiza 75% de energia no deslocamento, comparado com chimpanzés e outros primatas. Isso certamente favoreceu a evolução do homem nessa direção. Os braços ficam mais curtos e mais fracos. Estimase que um chimpanzé tenha cinco vezes mais força e um gorila, quinze vezes mais. Obviamente, o homem compensa essa perda com suas novas ferramentas.
Há uma característica do bipedismo que abre novas portas para a tecnologia: ele passa a ser capaz de ter suas mãos livres, permitindo carregar o que quer que seja. No caso, o mais importante são as armas e as ferramentas que usa: o pau, a pedra e os ossos. Essa é outra grande vantagem que favorece a evolução do homem em direção ao bipedismo. Ao tornar possível carregar apetrechos caminho afora, não mais se trata de encontrar um pau ou pedra convenientes, somente quando necessário. Vale a pena fazer com que sejam aperfeiçoados: seja uma pega mais confortável para o machado, seja um melhor polimento na pedra. Há mais estímulos para refinar as obras, como explicado na próxima seção. Ao virar um bípede, várias mudanças ocorrem no seu esqueleto. Para ficar de pé, sua pélvis estreita-se, para garantir sustentação e equilíbrio. Como contrapartida, essa mudança reduz o tamanho do bebê que a mulher pode parir. Igualmente, com as mudanças na ossatura, reduz-se o tamanho do intestino, obrigando-o a mudar de dieta. Precisa comer com mais frequência e requer alimentos com mais proteínas e calorias. Progressivamente, vira carnívoro, com uma dieta diferente, mais rica e de mais difícil obtenção e digestão.
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Chimpanzé: note-se que apenas
as costas das mãos apoiam-se no solo. Está a um passo aquém do bipedismo.
O bipedismo é a primeira grande transformação que conduz à nossa espécie. O crescimento do cérebro vem depois. Na verdade, é uma enorme proeza, vis a vis quaisquer outros animais. Andar é uma sucessão de quase tombos, uma técnica inerentemente instável e desengonçada. O corpo se desequilibra para a frente, mas a queda é impedida pela outra perna. Segundo Napier, “o andar humano é uma empresa arriscada. Falhando uma sincronização de frações de segundo, cai de cara no chão. De fato, a cada passo, está por pouco de uma catástrofe”.1 Em outras palavras, paga o preço do bipedismo. Pior, a engenharia da coluna é também imperfeita, pois foi apenas adaptada e não desenhada para a postura ereta. Tampouco foi projetada para carregar sua imensa cabeça – daí termos tantos problemas de dores na coluna. Tampouco o joelho foi bem resolvido. Em paralelo, outra mudança crítica é a sua capacidade de refrigeração do corpo por meio do suor. Por metro quadrado de pele, o homem sua cinco vezes mais que um cavalo e duas vezes mais do que um camelo. Isso lhe permite correr por longos períodos, mesmo diante de temperaturas muito elevadas. É interessante registrar que, do ponto de vista puramente físico, a capacidade para a corrida de larga distância é o único aspecto em que o homem é superior aos outros animais. Antes que aperfeiçoasse armas e estratégias de caça, sua sobrevivência 1 J. Napier, Primate Locomotion (London: Oxford University Press, 1976).
dependia de correr atrás dos bichos, mesmo gazelas, até que se cansassem e fossem alcançados. Ocorre também ao longo do tempo uma mudança interessante na articulação do ombro. Aumenta sua capacidade de erguer e girar os braços – o que não tinha utilidade antes do bipedismo. Passa a jogar pedras e lanças com muita força, o que não faz um chimpanzé. Isso o torna um contendor à altura dos animais que poderia comer ou que ameaçam sua vida. Outra evolução essencial é nas suas mãos. Cresce o polegar e sua capacidade preênsil. É o polegar opositor. Aumenta também a flexibilidade da mão, tornando-a uma ferramenta que nenhum outro animal tem. Mão de chimpanzé não desmonta relógio. A mão desenvolve-se em proximidade a circuitos neurológicos diretamente ligados a segmentos frontais e mais novos do cérebro e que também estavam evoluindo nessa época. Por isso, pensamos com as mãos e aprendemos com as mãos. Essa convergência do desenvolvimento da inteligência com o das mãos tem repercussões até hoje relevantes para os processos de aprendizagem. De todas as mudanças, a mais dramática foi o crescimento do cérebro. De 300-400, passa para 1300 gramas. Como o tamanho do cérebro tem relação com a capacidade funcional, trata-se de uma evolução de enormes consequências. Um conflito crítico na sua evolução é o descompasso entre a redução da pélvis e o aumento do crânio, requerido para abrigar o cérebro mais
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Crânios de um primata e do Homo sapiens. Note-se o encurtamento dos maxilares e a redução dos dentes caninos.
à esquerda: estudo da anatomia das mãos, Leonardo da Vinci.
avantajado. A única maneira de resolver esse problema mecânico é antecipar o nascimento. Ou seja, após o parto, a cabeça continua a crescer. Assim, comparado a um primata, o Homo sapiens nasce prematuro. E comparado com qualquer outro animal, nasce mais indefeso, incapaz e requerendo um período muito mais longo para que suas funções amadureçam. Em poucos minutos, um potrinho está de pé. No homem, essa façanha leva um ano. Duas considerações se impõem, diante dessa lentidão no desenvolvimento da prole. A primeira é que, por ser muito dependente da mãe, acaba por torná-la também dependente. Daí a necessidade de desenvolver estruturas de apoio para ela. Evolui então a vida comunitária e mecanismos de compartilhamento de muita coisa. É o início das tribos e, mais adiante, das sociedades. A segunda consequência é que, por permanecer muito tempo dependente, acaba aprendendo muito durante esse período. Ou seja, boa parte do seu repertório de competências úteis é adquirido depois de nascido. É o alongamento da educação, que até hoje não parou de crescer. Para o novo cérebro caber no crânio de um primata é preciso abrir espaço para mais um quilo de massa cinzenta. Isso tem um custo, que é a perda de caninos poderosos. O focinho alongado deles é necessário para o tamanho dos dentes, para sua fixação e para a musculatura robusta necessária a dar-lhes força. Sem caninos e molares robustos – e sem o correspondente
focinho –, o homem perde um importante mecanismo de defesa, bem como se reduz a capacidade de quebrar ossos e descarnar animais abandonados. Do ponto de vista do seu metabolismo, o cérebro é oneroso, pois 20% da energia gasta por um homem de 60 kg vai para alimentar essas 1300 gramas. Diante do encurtamento do seu intestino e do consumo alimentar expandido, o homem tem que caçar com mais eficiência, pois somente a carne pode satisfazer as suas necessidades de energia. Na interação do homem com seus semelhantes, nasce a linguagem. Não se sabe bem quando, mas provavelmente entre 70 mil e 30 mil anos atrás. Ao que tudo indica, o primeiro uso vital da linguagem eram os melhores entendimentos para a caça coletiva, uma forma muito mais eficaz de obter proteína. Outra teoria defende que o mais importante uso da linguagem era a fofoca. Tornandose cada vez mais complexas as interações humanas, era vital saber quem era quem na tribo. Parece brincadeira, mas não é. Não logramos, contudo, saber que tipo de linguagem era utilizada. Não há testemunhos arqueológicos que nos permitam reconstruir a linguagem. Não é como um único dedo do Homo denisova, que permitiu contar uma longa história. Com o tempo, a capacidade lógica do seu cérebro expande, e ele passa a ser capaz de analisar problemas, raciocinar, abstrair e pensar no futuro. Um grande passo à frente é o desenvolvimento da linguagem
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Charle Darwin, foto colorizada. à direita, abaixo: a estátua de Charles Darwin no Museu de História Natural. Londres, Reino Unido.
para falar de coisas que não existem concretamente. Começa tudo com lendas, deuses e vida após a morte. Mas chegamos a superego, quarks e direitos humanos. Costuma-se afirmar que a autoconsciência é o nível mais elevado desse desenvolvimento. Questões intrigantes são o papel da imaginação. Supõe-se que o grande avanço cultural que começou há 35 mil anos atrás, mais ou menos, corresponda à emergência desse traço. É então que aparecem os sepultamentos rituais e as representações rupestres. A curiosidade e a inquietação, no entanto, sempre foram competências relevantes. De fato, sem essa inclinação para questionar e explorar seu entorno, o homem dificilmente haveria chegado aonde chegou. Inicialmente, a motivação era sobreviver em um ambiente deveras hostil, sobretudo na era glacial. Estima-se que apenas metade dos nossos antepassados chegasse à idade adulta. A partir de certo momento, contudo, dependendo da região, sua segurança física e alimentar torna-se assegurada. Não obstante, sua curiosidade o impele a continuar explorando e criando não apenas tecnologia, mas cultura, religião e explicações para suas infindáveis perguntas. Pensando bem, o que começa como traço essencial para sua sobrevivência ganha vida própria e se expande, quando esta já não estava mais em jogo. Daí em diante, as sociedades se organizam, com seus valores, suas regras, seus tabus, seus sonhos. O que acontece então passa a depender tanto do
voluntarismo desse ou daquele indivíduo quanto das normas sociais que vão sendo criadas. Se temos ferro, ferramentas e Revolução Industrial, é porque valores e prioridades criados apontam nessa direção como o caminho a ser seguido. Há mais de 30 mil anos, o arco e a flecha foram desenvolvidos como resposta a um desafio de permanecer vivo diante dos tigres e dos neandertais. Não resultaram de um financiamento; ninguém autorizou o projeto nem foi patenteado. Em contraste, hoje as sociedades que valorizam mais a inovação criam estruturas complexas para estimulála. Se fazem tudo certo, acabam inovando mais. Se a Suíça tem mais patentes per capita do qualquer outro país, não é porque o DNA dos suíços seja diferente ou porque sua sobrevivência esteja ameaçada. Pelo contrário, é uma valorização social da atividade criativa e mais os meios materiais para apoiála. Os mais criativos são incensados e podem ser regiamente recompensados. Valores e instituições são fruto de uma organização social que pode mudar, mas não é volátil. Em suma, neste livro contamos a história da evolução do homem como sendo a história das suas ferramentas. Mas, como podemos depreender dos últimos parágrafos, de trinta milênios para cá, a história das ferramentas é também a de duas sociedades que decidem ser preciso continuar inovando. Crenças, hábitos e motivações impelem esses dois pedaços do mundo nessa direção. No
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caso, referimo-nos à Europa e à China. Na África, nas Américas, na Ásia Central e na Oceania, outros valores, outras prioridades foram cimentadas pelas suas sociedades. Como consequência, não encontramos o mesmo caldo de cultura que valoriza o avanço tecnológico. Há indivíduos e grupos que inovam, há políticas que podem se revelar eficazes, mas são efêmeras. É a continuidade da valorização social da inovação que diferencia Europa e China das outras sociedades. Os últimos 200 mil anos encontram o Homo sapiens fisicamente formado. Desde então, pouco muda em relação aos seus aspectos biológicos. Mas se muda pouco o autor, suas obras não param de evoluir. Ademais, crescem num ritmo cada vez mais acelerado, até hoje. Naturalmente, temos que voltar à pergunta clássica com a qual Darwin se deparou: que mecanismos fizeram o homem evoluir ao longo desse tempo? A grande contribuição de Darwin não foi registrar a evolução, mas mostrar como funciona. Sua explicação para a evolução do homem é a mesma oferecida para todas as espécies. Em sua luta contra as outras espécies e contra os próprios homens, os mais capazes têm mais chances de sobreviver. Dadas as variações estocásticas nas suas características individuais, aqueles que nascem mais adaptados aos desafios do meio ambiente têm aumentadas as suas probabilidades de sobrevivência. Assim, acabam por predominar seus descendentes mais numerosos, com
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Note-se a presença de uma
ferramenta: a vara de madeira usada para carregar a caça.
mais chances de exibir traços que aumentam sua sobrevivência. Hoje, embora não seja o caso de negar o que disse Darwin, podemos melhorar a explicação quando introduzimos na equação o Sistema 3, ou seja, a tecnologia. Não é mais a luta pela sobrevivência segundo apenas as leis da natureza, como é o caso de todas as outras espécies. A sobrevivência e a evolução do Homo sapiens passam a depender do uso da tecnologia, cujo impacto e densidade vão evoluindo com o tempo. Ao que tudo indica, foi a superioridade de sua tecnologia que permitiu aos nossos antepassados competir e vencer os neandertais.
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O homem é homem porque cria tecnologia É imprecisa ou incorreta a ideia de que o homem usa e se beneficia da tecnologia. Mais certo é dizer que ele é homem porque desenvolveu tecnologia. Sua evolução biológica como espécie não é independente de sua competência para criar e usar tecnologias cada vez mais complexas e eficazes. Não pode haver total independência entre evolução do homem e uso de tecnologia, no sentido de que a evolução pudesse ser independente dos artefatos de que dispõe.
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Escavação arqueológica com
ferramentas delicadas para não danificar a peça encontrada.
Na verdade, a evolução do homem só pode ser entendida se considerarmos que as duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Por exemplo, sem avançar a tecnologia para a caça, o homem não poderia abastecer de nutrientes o seu cérebro descomunal. E sem o domínio do fogo, seria precária a sua sobrevivência. Portanto, o homem se destacou dos outros primatas porque inventou artefatos que o auxiliaram na adaptação e na sobrevivência. Sem eles, sua evolução o estaria tornando menos apto, isto é, mais vulnerável, por exemplo, em virtude de sua perda de força e olfato. Se tirarmos a tecnologia da equação, o homem estaria condenado à extinção. Ou, melhor dito, não teria evoluído na direção ocorrida. Entre as primeiras ferramentas a se desenvolverem estão as de pedra lascada. Não eram as únicas que o Homo sapiens tinha, mas são as que conhecemos por se manterem íntegras ao longo de 2 milhões de anos. Em sua história, o homem deve haver construído pelo menos lanças e tacapes de osso e madeira, instrumentos poderosos de ataque e defesa. Mas dessa fase inicial só temos o testemunho das pedras. Uma tecnologia essencial para sua alimentação e defesa foi o total domínio do fogo, provavelmente ocorrido 300 mil anos atrás. Para alimentar seu cérebro, tornou-se necessária a carne, cuja digestão crua é problemática. Cozida, ao contrário, ela pode ser consumida em maior quantidade e com maior rendimento nutricional. Os cerais só são comestíveis
se cozidos, e perde-se muito tempo roendo alimentos que, uma vez cozidos, amolecem – portanto exigem menos dos dentes. É importamte lembrar que o calor mata uma grande quantidade de vermes e parasitas. Logo o homem descobriu que o fogo também ilumina. Ademais, é fundamental a proteção oferecida pelas fogueiras na defesa contra o frio do período glacial e dos grandes predadores. Nos últimos 300 mil anos, acelera-se a criação de seus instrumentos, incluindo os tecidos para sua sobrevivência. Nessas épocas de nomadismo, levar os filhos pequenos era um grande problema. Sem o pelo dos primatas, que oferece aos filhotes melhores maneiras de se segurar às mães, o homem teve que inventar alguma solução. Agrava-se o problema em virtude do longo período em que o filho é totalmente incapaz e vulnerável. Diante do desafio, aparecem fundas de couro cru que permitem às mães carregar o bebê a tiracolo ou nas costas. Por trivial que pareça, é um avanço essencial, considerando o nomadismo dos grupos humanos de então. De 150 mil anos para cá, já estamos falando de seres muito parecidos conosco, senão iguais. Se, todavia, chegam ao fim as mudanças físicas e intelectuais, a tecnologia e a cognição continuam avançando. Há uns 30 mil anos o processo de mudanças se acelerou, no início das grandes migrações. Toda essa cronologia é vaga, entretanto, não só porque novas
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Pintura rupestre de 10 a 20 mil anos
atrás semelhante às encontradas na França ou na Espanha.
Pintura rupestre tailandesa, cerca de 4000 a.C.
evidências mudam tais datas, mas também pelo fato de que o homem já se repartia por todos os continentes e os avanços não foram sincrônicos. Evidência contundente desse descompasso é a sobrevivência hoje de sociedades que estão tecnologicamente no nível em que estávamos há mais de 5 mil anos. Outros saltos tecnológicos começam a ocorrer. No campo do sustento, há 8 mil anos, algumas espécies de trigo silvestre são produzidas no Oriente Próximo e o arroz aparece na China. De forma independente, a modificação genética de plantas e o seu cultivo deliberado ocorre depois em vários lugares do mundo. São os albores da agricultura. De uma forma ou de outra, a prática de cultivar a terra migra para inúmeras regiões – mas não todas, pois ainda hoje há povos vivendo da caça e de atividades forrageiras. Esses
avanços fazem aumentar de maneira espetacular a produção de grãos, leguminosas e frutas. Comparado a um bosque ou um campo, um hectare plantado produz de dez a cem vezes mais alimentos. Avançam também nessa época as formas de preservar e armazenar alimentos. Em paralelo, os antepassados de cerca de uma dúzia de animais são domesticados, começando com cabras e ovelhas, por volta de 8 mil anos atrás. O mesmo acontece na China com os antepassados dos porcos. Ao domesticar os bois, há cerca de 6 mil anos, aumenta muito a disponibilidade de carne e leite. Os cavalos, também modificados pelo homem na mesma época, são um conveniente meio de transporte e uma vantagem formidável nas guerras. Ademais, bois e cavalos puxam arados, o que permite dar outra escala à agricultura. Criando esses animais, extinguem-se a incerteza e o desgaste físico da caça. E também o risco, pois com bichos grandes também pode haver o dia da caça. Esses dois avanços criam as precondições para a sedentarização do homem. Enquanto era nômade, só tinha o que podia levar – e que não era muito. Ao se fixar em algum lugar, começa a acumular um patrimônio. Passa a valer a pena dedicar-se à construção de uma boa casa e também ter ferramentas diferentes para funções diferentes, pois há onde guardá-las. O rendimento superior na agricultura e na pecuária permite a geração de excedentes que alimentarão
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qr code: Uma ferramenta mais complexa nasce de antecessora mais simples. Partindo de uma variedade muito
limitada de ferramentas, o homem
vai progressivamente aumentando o
seu repertório. Esta evolução pode ser
vista como uma árvore genealógica das ferramentas, apresentada através uma bela animação.
quem não trabalha na terra ou na caça. Isso permite a criação das cidades, um dos grandes marcos na evolução da humanidade. Com ela, crescem a divisão de trabalho e, inevitavelmente, a população. Nelas, a interação humana intensa e próxima catalisa grandes avanços em todos os sentidos. A criação é um processo coletivo no qual o avanço de um alimenta a imaginação de outrem. Os progressos ocorrem em múltiplos campos, mas, dados os objetivos do presente trabalho, devemos nos fixar mais no desenvolvimento de armas e ferramentas. A partir da criação das cidades, as transformações aceleram. As primeiras lanças, tacapes e pedras lascadas são instrumentos que evoluíram bastante, mas eram feitos com um único material. Combinar materiais diferentes foi o grande salto ocorrido a partir daí. Em algum momento, embora continue a ser uma vara, a lança passou a ter uma ponta de pedra lascada ou de osso. Em paralelo, há o desenvolvimento do arco, e a flecha torna-se mais letal. Aparecem anzóis de osso e redes de pesca. Ao combinar pau e pedra, cria-se o machado de pedra, um avanço icônico. Pela sua mecânica, golpear o que quer que seja torna-se mais confortável e proporciona um impacto muito maior. Nas facas, a lâmina de pedra ganha um cabo. A furadeira girada com um arco também surge. A serra nasce como um pedaço de madeira, encastoado com uma sequência de microlâminas de pedra ou dentes. A agulha de
osso e os tecidos de lã e de fibras também evoluem, bem como a cerâmica queimada. A roda se dissemina também nesse período. Há 5.300 anos viveu Otzi, na fronteira alpina entre o que hoje é Itália e Áustria. A milagrosa conservação do seu corpo e dos objetos que portava permitem verificar que, naquele momento, todos os instrumentos citados anteriormente já existiam. Inclusive, ele usava um arco composto, uma tecnologia que se perde adiante, voltando à Europa apenas na Guerra dos Cem Anos. Além disso, Otzi era portador de um dos maiores avanços da história da humanidade: o metal. Trazia um machado de cobre, algo ainda muito raro na época e que só se dissemina lentamente. Os primeiros registros da presença do cobre vêm da Anatólia e datam de 6 mil a.C. Nesse momento, era apenas usado para joias e adornos feitas de cobre metálico encontrado na natureza. Só mais adiante começa a manufatura de objetos de cobre. Os sumérios foram também precursores. Em grande medida, o domínio da metalurgia ocorre em regiões que hoje são Turquia, Síria e Irã. Daí em diante, a evolução da tecnologia apoia-se cada vez mais nos metais. De fato, praticamente todas as armas e ferramentas passam a ser feitas de metal. Inicialmente de cobre; depois, de bronze, um avanço notável, pois o homem cria um material que não existia na natureza. Mais adiante vem o ferro, em suas diferentes manifestações.
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Primeiras manifestações da escrita, usando barro como substrato. A
primeira é uma tábua de argila com escrita pré-cuneiforme observando
as rações de alimentos (Lens, França – Arquivos do Deus do Templo do Céu.
Cerca de 3.300 a.C. Museu do Louvre). A segunda é chamada cuneiforme,
típica do vale do Tigre e do Eufrates.
na página ao lado: Pedra da Rosetta, descoberta em 1799 por soldados
franceses em el-Rashid (Rosetta), no
delta do Rio Nilo. Essa pedra tem uma seção escrita em grego, outra em
hieróglifos e outra em cursiva demótica, além de conter um decreto do ano
196 a.C. Estes textos com o mesmo significado em diferentes idiomas
As cidades favorecem a criação de tudo. O tempo livre, permitido pela agricultura e pela concentração humana nas cidades, é responsável pelo aumento no ritmo de produção de inovações. A partir de certo momento, a busca pela inovação passa a ser um traço cultural de alguns povos, e não um imperativo de sobrevivência, pois já está confortavelmente assegurada. Após 2 milhões de anos inventando ferramentas, armas e muitos outros apetrechos, com as cidades, é como se o hábito de inovar ganhasse vida própria. Nesse embalo, evoluem os governos, a cultura e os ritos religiosos, com suas artes cerimoniais. Há 8 mil anos começa a aparecer a escrita no Ocidente, em sua versão cuneiforme. A matemática (ou aritmética) talvez tenha sido criada antes. Inicialmente, surgem no Oriente Próximo, nas culturas emergentes do Tigre e do Eufrates. Seu uso não é para filosofar ou registrar histórias, mas para fazer contabilidade e cobrar impostos. Um lado cruel é que a acumulação gera a cobiça, que, por sua vez, leva às guerras de conquista. Os mais competentes militarmente passam a dominar territórios cada vez maiores, criando as nações. Ironicamente, um instinto pouco nobre gera uma forma de organização social altamente vantajosa: o estado ou a nação.
permitiram conhecer o significado das antigas escrituras egípcias.
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2. A história da tecnologia contada por suas ferramentas No presente capítulo, mapeamos a evolução das ferramentas ao longo da história do homem e de seus antepassados. Tratamos inicialmente das ferramentas para dar forma à madeira. Em seguida, daquelas capazes de trabalhar os metais. Em ambos os casos, começamos com os manuais, passando então às máquinas. Estas se tornam possíveis quando o homem se libera da limitação de ter apenas os seus músculos para ajudá-lo e passa a contar com o vento, a água, o vapor, a eletricidade e o petróleo. A história das ferramentas nasce profundamente imbricada à trajetória de sua principal e definitiva matéria-prima: os metais. De fato, é a metalurgia a maior responsável por criar boas ferramentas, que trazem dramáticas mudanças na qualidade da vida, inicialmente nos países que se industrializavam. No capítulo sobre materiais, o leitor encontrará uma breve história da metalurgia.
Como lavrar a madeira: da pedra lascada às máquinas operatrizes Por 2 milhões de anos, nossos antepassados viram na madeira o material mais disponível e apropriado entre tantos que os cercavam. Pedras de diferentes tipos e formatos foram as primeiras ferramentas para dar forma aos paus que encontravam.
O domínio dos metais traz o salto mais radical na evolução das ferramentas. Não obstante, dezenas de milênios antes da primeira ferramenta de cobre, multiplicam-se os recursos e as técnicas usando-se apenas os materiais existentes. Colecionar e interpretar os artefatos encontrados, bem como os seus desenhos, é o trabalho paciente e fascinante dos arqueólogos que se dedicam a tais temas. Por outro lado, a grande variedade de culturas primitivas que até hoje sobrevivem permite ver no presente uma boa parte da trajetória histórica do homem no que tange sua capacidade de gerar ferramentas e técnicas. Examinar sociedades sobreviventes – numa progressão de níveis de domínio tecnológico – nos ajuda a reconstituir a trajetória histórica da humanidade. Seja pela análise de artefatos e desenhos encontrados, seja pelo estudo de culturas mais primitivas, há algumas conclusões gerais que valem ser mencionadas. A evolução de uma cultura corresponde sempre a um aumento na complexidade das tarefas que empreende. Essa afirmativa parece ser válida até os dias de hoje. Ao mesmo tempo, modificam-se as formas de interações humanas, que se tornam mais ritualizadas e indiretas, com hierarquias mais elaboradas. Igualmente crítico, o tempo é alocado de formas mais precisas e intricadas. Quanto mais gente mobilizada para uma tarefa, mais os bons resultados dependem de sincronizar o tempo de um com o de outro.
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