Catálogo_ A Arte do Ofício

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Claudio de Moura Castro

A evolução do homem contada por suas ferramentas

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confederação nacional da indústria – cni national confederation of industry – cni presidente | president

serviço nacional de aprendizagem industrial – senai national industrial apprenticeship service – senai

Robson Braga de Andrade

diretoria de educação e tecnologia – diret education and technology directorate – diret diretor de educação e tecnologia | director of education and technology

Rafael Esmeraldo Lucchesi Ramacciotti diretor-adjunto de educação e tecnologia | associate director of education and technology

Julio Sergio de Maya Pedrosa Moreira

serviço social da indústria – sesi industry social service – sesi presidente do conselho nacional | chairman of the national council

João Henrique de Almeida Sousa

sesi – departamento nacional sesi – national department diretor | director

presidente do conselho nacional | chairman of the national council

Robson Braga de Andrade

senai – departamento nacional senai – national department

Rafael Esmeraldo Lucchesi Ramacciotti diretor de operações director of operations

Marcos Tadeu de Siqueira

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edição qr-code

2017 – emc – empresa de marketing cultural ltda. Publicado para a Confederação Nacional da Indústria – CNI

Thaís Rodrigues

edição

EMC EDIÇÕES emcbr@emcbrasil.com.br

Guga Fittipaldi assistente

QR-Code – Para acessar deve ser baixado o aplicativo de leitura em telefone ou tablet.

exposição – a arte do ofício

coordenação geral do sesi

idealização

Claudia Martins Ramalho

Claudio de Moura Castro

apoio

curadoria

Agnes Christie Ferreira Mileris

Julio Heilbron

diretor-geral | general director

coordenação editorial

coordenação geral sesi

Rafael Esmeraldo Lucchesi Ramacciotti

Gilberta Mendes Julio Heilbron

Claudia Martins Ramalho

diretor-adjunto | assistant director

assistente de coordenação editorial

Samara Carrias

Thaís Rodrigues Ribeiro

realização e coordenação geral

pesquisa e texto

projeto gráfico

Arquiprom Marklen Landa Fernando José Arouca Silvia Landa

Adriana Moreno Victor Burton

projeto expográfico

Julio Sergio De Maya Pedrosa Moreira diretor de operações | director of operations

Gustavo Leal Sales Filho

instituto euvaldo lodi – iel euvaldo lodi institute – iel presidente do conselho superior | chairman of the superior council

Robson Braga de Andrade

iel – núcleo central iel –central nucleus

Robson Braga de Andrade diretor – superintendente director – superintendent

a arte do ofício – A evolução do homem, contada por suas ferramentas

DIRETOR-GERAL | GENERAL DIRECTOR

Paulo Afonso Ferreira superintendente | superintendent

Paulo Mol Júnior

Claudio de Moura Castro

tratamento de imagens

Anderson Junqueira fotos da exposição “a arte do ofício”

Paulo Scheuenstuhl fotos de ferramentas

Claudio de Moura Castro Julio Heilbron arquivos fotográficos

Agence Photographique de la Réunion des Musées Nationaux Museu do Louvre Depositphotos, Inc. USA. Dreamtime LLC Julio Heilbron Fundação Biblioteca Nacional Brasil Shutterstock Istock Photos

apoio

arquiprom

Marklen Landa Fernando José Arouca Silvia Landa Barbara Azoubel de Andrade Diego Maryo Suenaga Maira Key Takiy cinco5onze

Tomaz Farias Eduardo Spinazzola cenografia

Aby Cohen Flávio Magri Marcanato Paula de Paoli Wagner José de Almeida iluminação

Stage

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edição de texto e revisão

projeto audiovisual

Armando Olivetti supervisão geral comunicação visual

Julio Heilbron

Marcelo Sodré assistentes de curadoria administrativo

Monica Oliveira Tina Domingos Letícia Caetano

Diogo Guimarães Camargos Thaís Rodrigues Ribeiro vídeos em motion picture

Estúdio Rogerio Costa produção

Alessandra Cantieri Diogo Camargo Fernando Torres Farias Mira Produção e Arte artesãos/demonstrações

Antonio Udson Teles Diniz Eduardo de Campos Valadares Francisco de Oliveira Braga João Carlos Moreno de Sousa Wagner da Mata Sudario Vergílio Artur Lima Jussara Miranda Queiroz estrutura metálica tubular

direção de motion picture

Rogerio Costa ilustrações

Danilo Lucas Sami Souza motion graphics

Cinthia Rosa Fabio Araujo Lilian Gorini Reyson Carlomagno Tomás Magariños Silvia Guimaraens Daniela Ferrari

Rohr Estruturas Tubulares marcenaria

composição musical original e trilha sonora

Artos Marcenaria

Guga Fittipaldi

serralheria

músicos

Antônio Claudino Filho José Antônio da Silva

LM Pinturas

Guga Fittipaldi Gabriel Barbosa Boka Reis Marcus Nabuco Leo Rezende

impressão/plotagens

locução

MS Comunicação Visual Fotosfera

Guga Fittipaldi Ligia Mac Dowell

conservação e higienização

pesquisa de arquivos e edições documentais

pintura

Ateliê de Artes e Ofícios Daisy Estrá embalagem, manuseio e transporte

Vanguardian Transportes Especializados

Diogo Guimarães Camargos Elisa Moura Monique Pereira

supervisão tecnológica da informática

FNL Informática Limitada

assessoria especial de elétrica e eletrônica

José Luiz Goldfarb (PUC-SP)

texto e dramaturgia

Augusto Padilha produção

Dayse Hansa elenco

Atores da Companhia Teatral Mapati

responsável técnico

José Giovanni Leda equipe de desenvolvimento

José Giovanni Leda Bruno Neuberger Leda Julio Cesar Mauro equipe de montagem

Dilver Lucio Abreu Lawrence Henrique Paz Albuquerque Carlos Eduardo de Pontes Bastos Leonardo Dantas Alves Johnny Teixeira Rodrigues Caio Pocceschi Licati de Queiroz João Pedro Pocceschi Macedo mesas interativas

Sábia Experience Alessandro Nascimento de Matos Angelo Bortolini Silveira Carolina Leoni Fagundes Daygoro Santana de Souza Demetrius Ribeiro Lima Eveline Leite Nicoletti Fernanda Martinello Fernando Nicoletti Fernando Soares Ferreira Gabriel Ralph de Oliveira Karina Silveira da Cunha Marcela Silva Teixeira Marta Graciele Oliveira Monique Terezinha Cezário Eleutério Renato Parenti Turcato passeio virtual

engenharia de som, mixagem, tecnologia de multimídia

Guga Fittipaldi

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Laércio Marzagão (PUC-SP) Fotos pesquisadas na Biblioteca Digital do CESIMA (Centro Simão Mathias de Estudos em História da Ciência/PUC-SP)

Gyro Tour Virtual Eliane Barboza Companhia Teatral Mapati

publicações design gráfico do catálogo e do folheto

Victor Burton edição de publicação educacional

Marina Acúrcio Cesar França texto

Claudio de Moura Castro

acervos Museu de Arqueologia e Etnologia da USP Museu de Arte e Ofícios de Belo Horizonte Museu da Imigração – São Paulo Claudio de Moura Castro Julio Heilbron

agradecimentos Ângela Gutierrez Amyr Klink Museu de Arqueologia e Etnologia da USP Museu da Imigração – São Paulo Pontifícia Universidade Católica – São Paulo Starrett SENAI São Bernardo do Campo SENAI Osasco SENAI Itatiba SENAI Brasília SENAI Contagem SENAI Paraná SENAI Rio Grande do Sul

direção do espetáculo

Tereza Padilha

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Sumário Apresentação 9 A exposição A arte do ofício: museu ou escola? 11 Introdução: Os caminhos do Homo sapiens 13 1. O nascimento do Homo sapiens 19 2. A história da tecnologia contada por suas ferramentas 33 3. O imperialismo do movimento giratório 85 4. As máquinas substituem as mãos 107 5. As tecnologias de fixação 113 6. Pensar, projetar, medir e marcar 123 7. A história dos materiais 137 8. A história da energia 175 9. A fantástica história da eletricidade e da eletrônica 189 10. Da pedra lascada aos smartphones: conclusões 233 Leituras adicionais 236

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Apresentação

A

Confederação Nacional da Indústria (CNI), por meio do Serviço Social da Indústria (Sesi), tem o orgulho de apresentar a publicação A arte do ofício: a evolução do homem contada por suas ferramentas. Este projeto é fruto da exposição “A arte do ofício”, que descreveu o processo de desenvolvimento do ser humano a partir do uso de instrumentos, estabelecendo as relações entre a arte, os ofícios e as profissões. Com o sucesso alcançado com a exposição, a presente obra impressa sistematiza as informações sobre as pesquisas realizadas, que resultaram num belo e inédito trabalho organizado pelo especialista Claudio de Moura Castro. Representa um elo entre o passado e o presente da indústria, retratando a transformação das profissões por meio das tecnologias criadas pelo homem. O livro pretende dar ao leitor uma ideia dessa trajetória, que teve a mão como primeira ferramenta, um elemento necessário em todas as etapas de todos os ofícios. O texto, que conta a história de forma inovadora e atraente, destina-se especialmente aos professores das redes do Sesi e do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), podendo ser utilizado por todos que tenham interesse em ampliar seus conhecimentos na área.

Nesta publicação, o leitor será convidado a fazer uma viagem, percorrendo a Idade da Pedra, o ciclo dos metais, a utilização do carvão e do vapor, a Revolução Industrial, a criação do smartphone e as tecnologias digitais, entre outros momentos. É mais uma contribuição do Sistema Indústria, que investe em educação por meio do Senai e do Sesi, referências em ensino profissional e básico, respectivamente. As duas instituições, reconhecidas nacional e internacionalmente, se pautam por um projeto pedagógico que privilegia a excelência, a criatividade e a inovação, em favor do desenvolvimento do Brasil. Boa leitura.

— Robson Braga de Andrade presidente da cni

diretor do departamento nacional do sesi

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10 | prefácio A arte do ofício

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A exposição A arte do ofício: museu ou escola? A exposição do Senai/Sesi que deu origem a este livro é descendente da ideia de usar museus como escolas. Ou seja, mobilizar a força imagética da tecnologia aplicada aos museus para ensinar ciência e tecnologia. Podemos vê-la como um museu que conta uma história estruturada, com princípio, meio e fim. Ao surgirem, após o Renascimento, os primeiros museus foram batizados de Gabinetes de Curiosidades. Fruto das grandes navegações e trazidos de cantos desconhecidos do mundo, objetos curiosos começaram a ser colecionados e expostos pelas pessoas mais cultas. De fato, sua marca de origem é o interesse despertado pelas peças exóticas. E até hoje os museus escolhem mostrar o que pode atrair o visitante. Em contraste, a escola nasce da necessidade de dar aos jovens as competências requeridas para a vida. São os conhecimentos considerados necessários, seja para ler a Bíblia, seja para ler o manual da Microsoft. Se é desinteressante, paciência. Ao início na década de 1930, esses dois papéis começam a se fundir. Os museus passam a oferecer uma visão divertida e atraente da ciência e da tecnologia, uma dimensão em que a escola tende a falhar. Na exposição, recuperamos a inspiração de combinar o deslumbramento do museu com as lições estruturadas e úteis da escola.

Tal caminho é confirmado na conferência Communicating the Museum (Paris, 2017). Segundo Will Gompertz, Para provocar a reflexão, um museu deve provocar, estimular a imaginação, além de ser divertido. Quem teria vontade de passar uma noitada com um amigo que não ri jamais e faz você se sentir menos inteligente que ele? Para Wendy Woon, o museu do futuro será emocionalmente inteligente. Por sua vez, David Sanders defende: Ou então, É preciso parar de opor o conhecimento à emoção, pois sabemos que a emoção facilita inúmeros processos importantes para o aprendizado, tais como a atenção e a memorização (David Sanders).

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Introdução Os caminhos do Homo sapiens Cinco ideias vigorosas permeiam a narrativa da exposição. 1. O homem é homem porque criou a tecnologia que dá a ele condições mais vantajosas de sobreviver. A tecnologia não vem depois, pelo contrário, avança pari passu com as mudanças físicas e intelectuais do primata que vira Homo sapiens. De fato, ele só vira homem porque criou a tecnologia. Assim, contamos a história da humanidade e das ferramentas inventadas, em paralelo à sua evolução biológica e intelectual. 2. A Revolução Industrial – o conjunto dos avanços tecnológicos e sociais ocorridos nos últimos dois séculos – corresponde ao maior salto já dado pelo homem, em toda a sua história. Pela primeira vez, torna-se possível superar o áspero padrão de vida imposto pelo determinismo malthusiano. Em que pese a brutalidade das condições de trabalho nos seus primeiros anos, foi graças a ela que, pela primeira vez, os mais pobres puderam desfrutar um padrão de vida digno e confortável. Isso se deveu ao espantoso salto de produtividade e produção ocorrido. A mudança foi fenomenal, e não se vislumbram limites aos avanços que nos esperam.

A história das ferramentas é a crônica de um longo diálogo entre a técnica, a criatividade e as mãos bem adestradas. 4. A marcenaria começa sua história na pedra lascada. A mecânica, somente após o domínio dos metais, 2 mil anos antes de Cristo. Além disso, duas transformações correram em paralelo ao desenvolvimento do homem: a da energia e a dos materiais. Sem as novas fontes de energia – que multiplicam a pouca força dos seus músculos – e sem o desenvolvimento de novos materiais, o incrível progresso da humanidade não teria sido possível. Esta narrativa é completada por uma história da eletricidade e da eletrônica, que são as tecnologias que mais transformaram o século XX. 5. Temos por hábito dar pouca atenção às fronteiras entre utilidade e arte. A partir de um patamar de domínio da tecnologia, o que precisava apenas ser funcional ganha foros de obra de arte. Assim são muitas ferramentas e máquinas: úteis e belas. Há arte no ofício. As grandes transições na evolução do homem e da tecnologia podem ser representadas por momentos que são como ícones. Abaixo descrevemos uma possível sequência de marcos na evolução da humanidade.

3. A história da manufatura é a história do trabalho bem feito, do orgulho e da ética profissional. Buscar a perfeição, admirar e cultivar a qualidade e zelar pelas ferramentas: eis a essência do profissionalismo.

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qr code: No ano de 1991, nos Alpes orientais, foi

descoberto Õtzi. O fantástico e “homem das neves” de

mais de 5 mil anos ficou famoso no mundo todo por seu incrível estado de conservação e por ter trazido com ele as ferramentas da época.

Com a pedra lascada, um primata começa a virar humano

Otzi e seu machado de cobre: o ciclo dos metais

A pedra lascada não foi a única ferramenta de que dispôs o homem, mas é o artefato que, por ser capaz de sobreviver aos séculos, acabou sendo mais frequentemente encontrado pelos arqueólogos. Define, portanto, a primeira marca tangível da inventividade dos hominídeos e mapeia a evolução do homo sapiens no processo de se diferenciar dos outros primatas.

Otzi nasceu há mais de 5 mil anos e milagrosamente ficou conservado em uma geleira. Com sua descoberta, podemos escolhê-lo para sinalizar, em estilo “mediático”, o aparecimento de instrumentos de cobre, já que portava um machado com lâmina de cobre. Daí para frente, a pedra vai sendo substituída pelos metais. Ao longo do caminho, cobre e bronze perdem espaço para o ferro, o aço e suas ligas.

O machado: o encontro do pau com a pedra O machado é o grande ícone na construção de ferramentas. Quando a pedra lascada ganha um cabo, o machado resultante inaugura um ciclo que jamais foi interrompido. Os mais antigos foram achados na Austrália, datam de 50 mil anos atrás e ainda estão à venda em lojas de ferragens em qualquer lugar do globo.

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qr code: Antes de dominar a produção de ferro, o

desenvolvimento do homem estava severamente

limitado pelos materiais de que dispunha. Sem ele, não

seriam possíveis os avanços que culminam na Revolução Industrial, a mais profunda transformação na história da humanidade.

O ferro ao alcance de todos: o alto forno

Com o carvão e o vapor crepita a Revolução Industrial

Ninguém ignorou o potencial ilimitado nos usos do ferro. Contudo, sua produção era muito trabalhosa e, devido ao alto custo, seu uso permanecia restrito. No século XVIII, a adoção do coque e de novos modelos de alto forno mudam esse panorama. Em vez de alguns quilos, produzem várias toneladas. É a revolução da quantidade. Antes disso, possuir alguns pregos já era sinal de riqueza.

Sem os motores a vapor, as fábricas estavam condenadas a um porte diminuto e a uma localização determinada pelo regime dos cursos d’água. Com a máquina a vapor, a Revolução Industrial floresce, trazendo junto o trem de ferro e o navio a vapor. Como no caso do alto forno, é o volume de produção que transforma tudo.

Um dos primeiros motores a vapor, século XIX.

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esquerda:

Receptor de telégrafo sem fio, início do século XX. direita:

Ilustração de uma das primeiras lâmpadas incandescentes, fim do século XIX.

O petróleo e seus motores: a revolução nos transportes pessoais

Com a eletricidade, a noite vira dia e a energia pode ser transportada

Por muito que se considere o carvão transportável, não são triviais os problemas práticos de usá-lo em automóveis, caminhões, motocicletas e aviões. Com o petróleo, basta encher o tanque. Sai de cena o cavalo e entra o automóvel.

Eletricidade não é uma fonte de energia. Na prática, é um modo de levá-la de um lugar para outro, pelos fios de cobre. O movimento do eixo que gira, à beira dos rios, migra para o fio e aciona, onde quer que se queira, um motor elétrico. E de quebra, a eletricidade ilumina!

A eletrônica se junta à informática: o transporte do imaterial Se o petróleo permite transportar pessoas e materiais, com a eletrônica podemos reproduzir, transmitir, armazenar e analisar palavras, vozes, imagens e informações. E isso se faz de uma forma cada vez mais rápida, confiável, eficaz e barata.

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1. O nascimento do Homo sapiens O homem é homem porque criou a tecnologia que o atende e permite a sua sobrevivência em mundos muito variados. De fato, essa adaptabilidade a novos ambientes é uma das marcas do Homo sapiens. Tal interpretação reflete uma nova safra de livros sobre o assunto. Nessas novas narrativas, há uma tendência a considerar os humanos modernos uma espécie que não pode ser explicada apenas pelos dois sistemas clássicos: as leis da física e da biologia. Para entendê-lo, precisamos definir um Sistema 3, que é a tecnologia. Dito de outra forma, é como se o homem passasse a abrir mão de certas características que permitiam a sobrevivência de suas espécies ancestrais. Por exemplo, trocando a força física por instrumentos eixosomáticos, como armas e ferramentas, que concedem mais poder aos seus bíceps, agora mais fracos. Por que, porém, abrir mão de seus bíceps? A razão principal é que o homem trocou músculo por cérebro, um órgão grande e de enorme apetite. Não dava para ter os dois. Em retrospecto, a massa cinzenta se revelou mais útil do que uma musculatura como a do chimpanzé. Mas que não tentemos medir força com ele, pois sairemos estraçalhados!

página ao lado: Homem Vitruviano, Leonardo da Vinci (1452-1519). Também conhecido como “O Homem de Vitrúvio”, esta ilustração foi criada por

inspiração a partir do conceito desenvolvido pelo arquiteto romano Marcos

Vitrúvio Polião, autor dos Dez livros sobre a arquitetura (De Architectura Libri

O australopiteco sofreu mudanças físicas, evoluindo em direção ao Homo sapiens. Isso aconteceu por volta de 3,6 a 2,5 milhões de anos atrás. Se continuasse com o estilo de vida dos outros primatas, seu corpo de homem seria cada vez mais vulnerável. Passou a ter menos força, caninos débeis, olfato menos apurado, além de perder o seu pelo protetor. Mas essa vulnerabilidade é mais do que compensada pelo que passa a ser capaz de fazer, com o auxílio da tecnologia. Devemos entender, contudo, que tais transformações têm que ocorrer simultaneamente, pois a marcha para virar Homo sapiens é a mesma da tecnologia. Achados arqueológicos de ferramentas dessas datas demarcam o momento em que o ser humano se separa dos demais primatas. Nessa etapa pré-histórica, começamos a ver o avanço das ferramentas, das formas de domesticar a energia e do uso de materiais cada vez mais competentes para as funções desejadas. Por assim dizer, é o prefácio para o que aconteceu nos últimos 2 mil anos. E o que aconteceu até o século XVIII prepara o terreno para a Revolução Industrial. Como resultado dos rápidos aumentos de produtividade, pela primeira vez na história torna-se possível alimentar e oferecer um mínimo de conforto para uma população que se expande continuamente. Rompe-se o ciclo malthusiano e passa a ser possível oferecer aos mais pobres um nível de vida digno, não importando quantos sejam.

Decem, em latim).

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O corpo de um primata se transforma, tornando-se humano Há cerca de 3,6 milhões de anos, começa a trajetória complexa e acidentada que transforma em homem um primata de aparência pouco ilustre. O primeiro grande passo é o bipedismo. O atual chimpanzé parou no meio do caminho: suas patas dianteiras já não pisam, como os quadrúpedes; são as costas das mãos que tocam o chão, suportando relativamente pouco peso. Mas ele não chega a virar um bípede. Para viabilizar o bipedismo, altera-se o esqueleto do homem. A coluna se torna ereta e seu encaixe no crânio, mais centralizado. Seus braços encolhem e as pernas espicham, o que o torna mais alto. Com tais pernas, fica mais competente no solo do que os demais primatas, tornando-se um bom corredor, no que hoje chamamos corrida de fundo. Não é a velocidade, mas a capacidade de correr largas distâncias. Isso é fundamental para sua nova vida, depois de descer das árvores. É indispensável nas caçadas. Visto de outro ponto de vista, o bipedismo economiza 75% de energia no deslocamento, comparado com chimpanzés e outros primatas. Isso certamente favoreceu a evolução do homem nessa direção. Os braços ficam mais curtos e mais fracos. Estimase que um chimpanzé tenha cinco vezes mais força e um gorila, quinze vezes mais. Obviamente, o homem compensa essa perda com suas novas ferramentas.

Há uma característica do bipedismo que abre novas portas para a tecnologia: ele passa a ser capaz de ter suas mãos livres, permitindo carregar o que quer que seja. No caso, o mais importante são as armas e as ferramentas que usa: o pau, a pedra e os ossos. Essa é outra grande vantagem que favorece a evolução do homem em direção ao bipedismo. Ao tornar possível carregar apetrechos caminho afora, não mais se trata de encontrar um pau ou pedra convenientes, somente quando necessário. Vale a pena fazer com que sejam aperfeiçoados: seja uma pega mais confortável para o machado, seja um melhor polimento na pedra. Há mais estímulos para refinar as obras, como explicado na próxima seção. Ao virar um bípede, várias mudanças ocorrem no seu esqueleto. Para ficar de pé, sua pélvis estreita-se, para garantir sustentação e equilíbrio. Como contrapartida, essa mudança reduz o tamanho do bebê que a mulher pode parir. Igualmente, com as mudanças na ossatura, reduz-se o tamanho do intestino, obrigando-o a mudar de dieta. Precisa comer com mais frequência e requer alimentos com mais proteínas e calorias. Progressivamente, vira carnívoro, com uma dieta diferente, mais rica e de mais difícil obtenção e digestão.

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Chimpanzé: note-se que apenas

as costas das mãos apoiam-se no solo. Está a um passo aquém do bipedismo.

O bipedismo é a primeira grande transformação que conduz à nossa espécie. O crescimento do cérebro vem depois. Na verdade, é uma enorme proeza, vis a vis quaisquer outros animais. Andar é uma sucessão de quase tombos, uma técnica inerentemente instável e desengonçada. O corpo se desequilibra para a frente, mas a queda é impedida pela outra perna. Segundo Napier, “o andar humano é uma empresa arriscada. Falhando uma sincronização de frações de segundo, cai de cara no chão. De fato, a cada passo, está por pouco de uma catástrofe”.1 Em outras palavras, paga o preço do bipedismo. Pior, a engenharia da coluna é também imperfeita, pois foi apenas adaptada e não desenhada para a postura ereta. Tampouco foi projetada para carregar sua imensa cabeça – daí termos tantos problemas de dores na coluna. Tampouco o joelho foi bem resolvido. Em paralelo, outra mudança crítica é a sua capacidade de refrigeração do corpo por meio do suor. Por metro quadrado de pele, o homem sua cinco vezes mais que um cavalo e duas vezes mais do que um camelo. Isso lhe permite correr por longos períodos, mesmo diante de temperaturas muito elevadas. É interessante registrar que, do ponto de vista puramente físico, a capacidade para a corrida de larga distância é o único aspecto em que o homem é superior aos outros animais. Antes que aperfeiçoasse armas e estratégias de caça, sua sobrevivência 1 J. Napier, Primate Locomotion (London: Oxford University Press, 1976).

dependia de correr atrás dos bichos, mesmo gazelas, até que se cansassem e fossem alcançados. Ocorre também ao longo do tempo uma mudança interessante na articulação do ombro. Aumenta sua capacidade de erguer e girar os braços – o que não tinha utilidade antes do bipedismo. Passa a jogar pedras e lanças com muita força, o que não faz um chimpanzé. Isso o torna um contendor à altura dos animais que poderia comer ou que ameaçam sua vida. Outra evolução essencial é nas suas mãos. Cresce o polegar e sua capacidade preênsil. É o polegar opositor. Aumenta também a flexibilidade da mão, tornando-a uma ferramenta que nenhum outro animal tem. Mão de chimpanzé não desmonta relógio. A mão desenvolve-se em proximidade a circuitos neurológicos diretamente ligados a segmentos frontais e mais novos do cérebro e que também estavam evoluindo nessa época. Por isso, pensamos com as mãos e aprendemos com as mãos. Essa convergência do desenvolvimento da inteligência com o das mãos tem repercussões até hoje relevantes para os processos de aprendizagem. De todas as mudanças, a mais dramática foi o crescimento do cérebro. De 300-400, passa para 1300 gramas. Como o tamanho do cérebro tem relação com a capacidade funcional, trata-se de uma evolução de enormes consequências. Um conflito crítico na sua evolução é o descompasso entre a redução da pélvis e o aumento do crânio, requerido para abrigar o cérebro mais

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Crânios de um primata e do Homo sapiens. Note-se o encurtamento dos maxilares e a redução dos dentes caninos.

à esquerda: estudo da anatomia das mãos, Leonardo da Vinci.

avantajado. A única maneira de resolver esse problema mecânico é antecipar o nascimento. Ou seja, após o parto, a cabeça continua a crescer. Assim, comparado a um primata, o Homo sapiens nasce prematuro. E comparado com qualquer outro animal, nasce mais indefeso, incapaz e requerendo um período muito mais longo para que suas funções amadureçam. Em poucos minutos, um potrinho está de pé. No homem, essa façanha leva um ano. Duas considerações se impõem, diante dessa lentidão no desenvolvimento da prole. A primeira é que, por ser muito dependente da mãe, acaba por torná-la também dependente. Daí a necessidade de desenvolver estruturas de apoio para ela. Evolui então a vida comunitária e mecanismos de compartilhamento de muita coisa. É o início das tribos e, mais adiante, das sociedades. A segunda consequência é que, por permanecer muito tempo dependente, acaba aprendendo muito durante esse período. Ou seja, boa parte do seu repertório de competências úteis é adquirido depois de nascido. É o alongamento da educação, que até hoje não parou de crescer. Para o novo cérebro caber no crânio de um primata é preciso abrir espaço para mais um quilo de massa cinzenta. Isso tem um custo, que é a perda de caninos poderosos. O focinho alongado deles é necessário para o tamanho dos dentes, para sua fixação e para a musculatura robusta necessária a dar-lhes força. Sem caninos e molares robustos – e sem o correspondente

focinho –, o homem perde um importante mecanismo de defesa, bem como se reduz a capacidade de quebrar ossos e descarnar animais abandonados. Do ponto de vista do seu metabolismo, o cérebro é oneroso, pois 20% da energia gasta por um homem de 60 kg vai para alimentar essas 1300 gramas. Diante do encurtamento do seu intestino e do consumo alimentar expandido, o homem tem que caçar com mais eficiência, pois somente a carne pode satisfazer as suas necessidades de energia. Na interação do homem com seus semelhantes, nasce a linguagem. Não se sabe bem quando, mas provavelmente entre 70 mil e 30 mil anos atrás. Ao que tudo indica, o primeiro uso vital da linguagem eram os melhores entendimentos para a caça coletiva, uma forma muito mais eficaz de obter proteína. Outra teoria defende que o mais importante uso da linguagem era a fofoca. Tornandose cada vez mais complexas as interações humanas, era vital saber quem era quem na tribo. Parece brincadeira, mas não é. Não logramos, contudo, saber que tipo de linguagem era utilizada. Não há testemunhos arqueológicos que nos permitam reconstruir a linguagem. Não é como um único dedo do Homo denisova, que permitiu contar uma longa história. Com o tempo, a capacidade lógica do seu cérebro expande, e ele passa a ser capaz de analisar problemas, raciocinar, abstrair e pensar no futuro. Um grande passo à frente é o desenvolvimento da linguagem

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Charle Darwin, foto colorizada. à direita, abaixo: a estátua de Charles Darwin no Museu de História Natural. Londres, Reino Unido.

para falar de coisas que não existem concretamente. Começa tudo com lendas, deuses e vida após a morte. Mas chegamos a superego, quarks e direitos humanos. Costuma-se afirmar que a autoconsciência é o nível mais elevado desse desenvolvimento. Questões intrigantes são o papel da imaginação. Supõe-se que o grande avanço cultural que começou há 35 mil anos atrás, mais ou menos, corresponda à emergência desse traço. É então que aparecem os sepultamentos rituais e as representações rupestres. A curiosidade e a inquietação, no entanto, sempre foram competências relevantes. De fato, sem essa inclinação para questionar e explorar seu entorno, o homem dificilmente haveria chegado aonde chegou. Inicialmente, a motivação era sobreviver em um ambiente deveras hostil, sobretudo na era glacial. Estima-se que apenas metade dos nossos antepassados chegasse à idade adulta. A partir de certo momento, contudo, dependendo da região, sua segurança física e alimentar torna-se assegurada. Não obstante, sua curiosidade o impele a continuar explorando e criando não apenas tecnologia, mas cultura, religião e explicações para suas infindáveis perguntas. Pensando bem, o que começa como traço essencial para sua sobrevivência ganha vida própria e se expande, quando esta já não estava mais em jogo. Daí em diante, as sociedades se organizam, com seus valores, suas regras, seus tabus, seus sonhos. O que acontece então passa a depender tanto do

voluntarismo desse ou daquele indivíduo quanto das normas sociais que vão sendo criadas. Se temos ferro, ferramentas e Revolução Industrial, é porque valores e prioridades criados apontam nessa direção como o caminho a ser seguido. Há mais de 30 mil anos, o arco e a flecha foram desenvolvidos como resposta a um desafio de permanecer vivo diante dos tigres e dos neandertais. Não resultaram de um financiamento; ninguém autorizou o projeto nem foi patenteado. Em contraste, hoje as sociedades que valorizam mais a inovação criam estruturas complexas para estimulála. Se fazem tudo certo, acabam inovando mais. Se a Suíça tem mais patentes per capita do qualquer outro país, não é porque o DNA dos suíços seja diferente ou porque sua sobrevivência esteja ameaçada. Pelo contrário, é uma valorização social da atividade criativa e mais os meios materiais para apoiála. Os mais criativos são incensados e podem ser regiamente recompensados. Valores e instituições são fruto de uma organização social que pode mudar, mas não é volátil. Em suma, neste livro contamos a história da evolução do homem como sendo a história das suas ferramentas. Mas, como podemos depreender dos últimos parágrafos, de trinta milênios para cá, a história das ferramentas é também a de duas sociedades que decidem ser preciso continuar inovando. Crenças, hábitos e motivações impelem esses dois pedaços do mundo nessa direção. No

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caso, referimo-nos à Europa e à China. Na África, nas Américas, na Ásia Central e na Oceania, outros valores, outras prioridades foram cimentadas pelas suas sociedades. Como consequência, não encontramos o mesmo caldo de cultura que valoriza o avanço tecnológico. Há indivíduos e grupos que inovam, há políticas que podem se revelar eficazes, mas são efêmeras. É a continuidade da valorização social da inovação que diferencia Europa e China das outras sociedades. Os últimos 200 mil anos encontram o Homo sapiens fisicamente formado. Desde então, pouco muda em relação aos seus aspectos biológicos. Mas se muda pouco o autor, suas obras não param de evoluir. Ademais, crescem num ritmo cada vez mais acelerado, até hoje. Naturalmente, temos que voltar à pergunta clássica com a qual Darwin se deparou: que mecanismos fizeram o homem evoluir ao longo desse tempo? A grande contribuição de Darwin não foi registrar a evolução, mas mostrar como funciona. Sua explicação para a evolução do homem é a mesma oferecida para todas as espécies. Em sua luta contra as outras espécies e contra os próprios homens, os mais capazes têm mais chances de sobreviver. Dadas as variações estocásticas nas suas características individuais, aqueles que nascem mais adaptados aos desafios do meio ambiente têm aumentadas as suas probabilidades de sobrevivência. Assim, acabam por predominar seus descendentes mais numerosos, com

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Note-se a presença de uma

ferramenta: a vara de madeira usada para carregar a caça.

mais chances de exibir traços que aumentam sua sobrevivência. Hoje, embora não seja o caso de negar o que disse Darwin, podemos melhorar a explicação quando introduzimos na equação o Sistema 3, ou seja, a tecnologia. Não é mais a luta pela sobrevivência segundo apenas as leis da natureza, como é o caso de todas as outras espécies. A sobrevivência e a evolução do Homo sapiens passam a depender do uso da tecnologia, cujo impacto e densidade vão evoluindo com o tempo. Ao que tudo indica, foi a superioridade de sua tecnologia que permitiu aos nossos antepassados competir e vencer os neandertais.

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O homem é homem porque cria tecnologia É imprecisa ou incorreta a ideia de que o homem usa e se beneficia da tecnologia. Mais certo é dizer que ele é homem porque desenvolveu tecnologia. Sua evolução biológica como espécie não é independente de sua competência para criar e usar tecnologias cada vez mais complexas e eficazes. Não pode haver total independência entre evolução do homem e uso de tecnologia, no sentido de que a evolução pudesse ser independente dos artefatos de que dispõe.

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Escavação arqueológica com

ferramentas delicadas para não danificar a peça encontrada.

Na verdade, a evolução do homem só pode ser entendida se considerarmos que as duas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Por exemplo, sem avançar a tecnologia para a caça, o homem não poderia abastecer de nutrientes o seu cérebro descomunal. E sem o domínio do fogo, seria precária a sua sobrevivência. Portanto, o homem se destacou dos outros primatas porque inventou artefatos que o auxiliaram na adaptação e na sobrevivência. Sem eles, sua evolução o estaria tornando menos apto, isto é, mais vulnerável, por exemplo, em virtude de sua perda de força e olfato. Se tirarmos a tecnologia da equação, o homem estaria condenado à extinção. Ou, melhor dito, não teria evoluído na direção ocorrida. Entre as primeiras ferramentas a se desenvolverem estão as de pedra lascada. Não eram as únicas que o Homo sapiens tinha, mas são as que conhecemos por se manterem íntegras ao longo de 2 milhões de anos. Em sua história, o homem deve haver construído pelo menos lanças e tacapes de osso e madeira, instrumentos poderosos de ataque e defesa. Mas dessa fase inicial só temos o testemunho das pedras. Uma tecnologia essencial para sua alimentação e defesa foi o total domínio do fogo, provavelmente ocorrido 300 mil anos atrás. Para alimentar seu cérebro, tornou-se necessária a carne, cuja digestão crua é problemática. Cozida, ao contrário, ela pode ser consumida em maior quantidade e com maior rendimento nutricional. Os cerais só são comestíveis

se cozidos, e perde-se muito tempo roendo alimentos que, uma vez cozidos, amolecem – portanto exigem menos dos dentes. É importamte lembrar que o calor mata uma grande quantidade de vermes e parasitas. Logo o homem descobriu que o fogo também ilumina. Ademais, é fundamental a proteção oferecida pelas fogueiras na defesa contra o frio do período glacial e dos grandes predadores. Nos últimos 300 mil anos, acelera-se a criação de seus instrumentos, incluindo os tecidos para sua sobrevivência. Nessas épocas de nomadismo, levar os filhos pequenos era um grande problema. Sem o pelo dos primatas, que oferece aos filhotes melhores maneiras de se segurar às mães, o homem teve que inventar alguma solução. Agrava-se o problema em virtude do longo período em que o filho é totalmente incapaz e vulnerável. Diante do desafio, aparecem fundas de couro cru que permitem às mães carregar o bebê a tiracolo ou nas costas. Por trivial que pareça, é um avanço essencial, considerando o nomadismo dos grupos humanos de então. De 150 mil anos para cá, já estamos falando de seres muito parecidos conosco, senão iguais. Se, todavia, chegam ao fim as mudanças físicas e intelectuais, a tecnologia e a cognição continuam avançando. Há uns 30 mil anos o processo de mudanças se acelerou, no início das grandes migrações. Toda essa cronologia é vaga, entretanto, não só porque novas

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Pintura rupestre de 10 a 20 mil anos

atrás semelhante às encontradas na França ou na Espanha.

Pintura rupestre tailandesa, cerca de 4000 a.C.

evidências mudam tais datas, mas também pelo fato de que o homem já se repartia por todos os continentes e os avanços não foram sincrônicos. Evidência contundente desse descompasso é a sobrevivência hoje de sociedades que estão tecnologicamente no nível em que estávamos há mais de 5 mil anos. Outros saltos tecnológicos começam a ocorrer. No campo do sustento, há 8 mil anos, algumas espécies de trigo silvestre são produzidas no Oriente Próximo e o arroz aparece na China. De forma independente, a modificação genética de plantas e o seu cultivo deliberado ocorre depois em vários lugares do mundo. São os albores da agricultura. De uma forma ou de outra, a prática de cultivar a terra migra para inúmeras regiões – mas não todas, pois ainda hoje há povos vivendo da caça e de atividades forrageiras. Esses

avanços fazem aumentar de maneira espetacular a produção de grãos, leguminosas e frutas. Comparado a um bosque ou um campo, um hectare plantado produz de dez a cem vezes mais alimentos. Avançam também nessa época as formas de preservar e armazenar alimentos. Em paralelo, os antepassados de cerca de uma dúzia de animais são domesticados, começando com cabras e ovelhas, por volta de 8 mil anos atrás. O mesmo acontece na China com os antepassados dos porcos. Ao domesticar os bois, há cerca de 6 mil anos, aumenta muito a disponibilidade de carne e leite. Os cavalos, também modificados pelo homem na mesma época, são um conveniente meio de transporte e uma vantagem formidável nas guerras. Ademais, bois e cavalos puxam arados, o que permite dar outra escala à agricultura. Criando esses animais, extinguem-se a incerteza e o desgaste físico da caça. E também o risco, pois com bichos grandes também pode haver o dia da caça. Esses dois avanços criam as precondições para a sedentarização do homem. Enquanto era nômade, só tinha o que podia levar – e que não era muito. Ao se fixar em algum lugar, começa a acumular um patrimônio. Passa a valer a pena dedicar-se à construção de uma boa casa e também ter ferramentas diferentes para funções diferentes, pois há onde guardá-las. O rendimento superior na agricultura e na pecuária permite a geração de excedentes que alimentarão

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qr code: Uma ferramenta mais complexa nasce de antecessora mais simples. Partindo de uma variedade muito

limitada de ferramentas, o homem

vai progressivamente aumentando o

seu repertório. Esta evolução pode ser

vista como uma árvore genealógica das ferramentas, apresentada através uma bela animação.

quem não trabalha na terra ou na caça. Isso permite a criação das cidades, um dos grandes marcos na evolução da humanidade. Com ela, crescem a divisão de trabalho e, inevitavelmente, a população. Nelas, a interação humana intensa e próxima catalisa grandes avanços em todos os sentidos. A criação é um processo coletivo no qual o avanço de um alimenta a imaginação de outrem. Os progressos ocorrem em múltiplos campos, mas, dados os objetivos do presente trabalho, devemos nos fixar mais no desenvolvimento de armas e ferramentas. A partir da criação das cidades, as transformações aceleram. As primeiras lanças, tacapes e pedras lascadas são instrumentos que evoluíram bastante, mas eram feitos com um único material. Combinar materiais diferentes foi o grande salto ocorrido a partir daí. Em algum momento, embora continue a ser uma vara, a lança passou a ter uma ponta de pedra lascada ou de osso. Em paralelo, há o desenvolvimento do arco, e a flecha torna-se mais letal. Aparecem anzóis de osso e redes de pesca. Ao combinar pau e pedra, cria-se o machado de pedra, um avanço icônico. Pela sua mecânica, golpear o que quer que seja torna-se mais confortável e proporciona um impacto muito maior. Nas facas, a lâmina de pedra ganha um cabo. A furadeira girada com um arco também surge. A serra nasce como um pedaço de madeira, encastoado com uma sequência de microlâminas de pedra ou dentes. A agulha de

osso e os tecidos de lã e de fibras também evoluem, bem como a cerâmica queimada. A roda se dissemina também nesse período. Há 5.300 anos viveu Otzi, na fronteira alpina entre o que hoje é Itália e Áustria. A milagrosa conservação do seu corpo e dos objetos que portava permitem verificar que, naquele momento, todos os instrumentos citados anteriormente já existiam. Inclusive, ele usava um arco composto, uma tecnologia que se perde adiante, voltando à Europa apenas na Guerra dos Cem Anos. Além disso, Otzi era portador de um dos maiores avanços da história da humanidade: o metal. Trazia um machado de cobre, algo ainda muito raro na época e que só se dissemina lentamente. Os primeiros registros da presença do cobre vêm da Anatólia e datam de 6 mil a.C. Nesse momento, era apenas usado para joias e adornos feitas de cobre metálico encontrado na natureza. Só mais adiante começa a manufatura de objetos de cobre. Os sumérios foram também precursores. Em grande medida, o domínio da metalurgia ocorre em regiões que hoje são Turquia, Síria e Irã. Daí em diante, a evolução da tecnologia apoia-se cada vez mais nos metais. De fato, praticamente todas as armas e ferramentas passam a ser feitas de metal. Inicialmente de cobre; depois, de bronze, um avanço notável, pois o homem cria um material que não existia na natureza. Mais adiante vem o ferro, em suas diferentes manifestações.

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Primeiras manifestações da escrita, usando barro como substrato. A

primeira é uma tábua de argila com escrita pré-cuneiforme observando

as rações de alimentos (Lens, França – Arquivos do Deus do Templo do Céu.

Cerca de 3.300 a.C. Museu do Louvre). A segunda é chamada cuneiforme,

típica do vale do Tigre e do Eufrates.

na página ao lado: Pedra da Rosetta, descoberta em 1799 por soldados

franceses em el-Rashid (Rosetta), no

delta do Rio Nilo. Essa pedra tem uma seção escrita em grego, outra em

hieróglifos e outra em cursiva demótica, além de conter um decreto do ano

196 a.C. Estes textos com o mesmo significado em diferentes idiomas

As cidades favorecem a criação de tudo. O tempo livre, permitido pela agricultura e pela concentração humana nas cidades, é responsável pelo aumento no ritmo de produção de inovações. A partir de certo momento, a busca pela inovação passa a ser um traço cultural de alguns povos, e não um imperativo de sobrevivência, pois já está confortavelmente assegurada. Após 2 milhões de anos inventando ferramentas, armas e muitos outros apetrechos, com as cidades, é como se o hábito de inovar ganhasse vida própria. Nesse embalo, evoluem os governos, a cultura e os ritos religiosos, com suas artes cerimoniais. Há 8 mil anos começa a aparecer a escrita no Ocidente, em sua versão cuneiforme. A matemática (ou aritmética) talvez tenha sido criada antes. Inicialmente, surgem no Oriente Próximo, nas culturas emergentes do Tigre e do Eufrates. Seu uso não é para filosofar ou registrar histórias, mas para fazer contabilidade e cobrar impostos. Um lado cruel é que a acumulação gera a cobiça, que, por sua vez, leva às guerras de conquista. Os mais competentes militarmente passam a dominar territórios cada vez maiores, criando as nações. Ironicamente, um instinto pouco nobre gera uma forma de organização social altamente vantajosa: o estado ou a nação.

permitiram conhecer o significado das antigas escrituras egípcias.

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2. A história da tecnologia contada por suas ferramentas No presente capítulo, mapeamos a evolução das ferramentas ao longo da história do homem e de seus antepassados. Tratamos inicialmente das ferramentas para dar forma à madeira. Em seguida, daquelas capazes de trabalhar os metais. Em ambos os casos, começamos com os manuais, passando então às máquinas. Estas se tornam possíveis quando o homem se libera da limitação de ter apenas os seus músculos para ajudá-lo e passa a contar com o vento, a água, o vapor, a eletricidade e o petróleo. A história das ferramentas nasce profundamente imbricada à trajetória de sua principal e definitiva matéria-prima: os metais. De fato, é a metalurgia a maior responsável por criar boas ferramentas, que trazem dramáticas mudanças na qualidade da vida, inicialmente nos países que se industrializavam. No capítulo sobre materiais, o leitor encontrará uma breve história da metalurgia.

Como lavrar a madeira: da pedra lascada às máquinas operatrizes Por 2 milhões de anos, nossos antepassados viram na madeira o material mais disponível e apropriado entre tantos que os cercavam. Pedras de diferentes tipos e formatos foram as primeiras ferramentas para dar forma aos paus que encontravam.

O domínio dos metais traz o salto mais radical na evolução das ferramentas. Não obstante, dezenas de milênios antes da primeira ferramenta de cobre, multiplicam-se os recursos e as técnicas usando-se apenas os materiais existentes. Colecionar e interpretar os artefatos encontrados, bem como os seus desenhos, é o trabalho paciente e fascinante dos arqueólogos que se dedicam a tais temas. Por outro lado, a grande variedade de culturas primitivas que até hoje sobrevivem permite ver no presente uma boa parte da trajetória histórica do homem no que tange sua capacidade de gerar ferramentas e técnicas. Examinar sociedades sobreviventes – numa progressão de níveis de domínio tecnológico – nos ajuda a reconstituir a trajetória histórica da humanidade. Seja pela análise de artefatos e desenhos encontrados, seja pelo estudo de culturas mais primitivas, há algumas conclusões gerais que valem ser mencionadas. A evolução de uma cultura corresponde sempre a um aumento na complexidade das tarefas que empreende. Essa afirmativa parece ser válida até os dias de hoje. Ao mesmo tempo, modificam-se as formas de interações humanas, que se tornam mais ritualizadas e indiretas, com hierarquias mais elaboradas. Igualmente crítico, o tempo é alocado de formas mais precisas e intricadas. Quanto mais gente mobilizada para uma tarefa, mais os bons resultados dependem de sincronizar o tempo de um com o de outro.

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Facas cerimoniais, típicas da

América Central e do norte da

América do Sul. Várias rochas eram usadas, incluindo o jade.

Também as ferramentas tornam-se mais complexas, tendendo à sua especialização. Produzem mais ou melhor, mas numa gama mais estreita de atividades. Por exemplo, em vez de um único machado, há um para derrubar a árvore e vários para lavrar o tronco. No curso desses processos, a necessidade é a mãe da invenção. Para ilustrar, o clima ameno e a caça abundante do Brasil produziram culturas menos refinadas do que aquelas que se desenvolveram nas inóspitas montanhas andinas. É também verdade, todavia, que algumas dessas sociedades, quando param de evoluir, cessam também as inovações em suas ferramentas – que podiam até ser bastante sofisticadas. Ou seja, há uma dinâmica delicada entre progresso e inovação. Um não avança sem o outro. Quando um para, outro para. Na verdade, o nível de complexidade e sofisticação das ferramentas, em si, é um bom indicador de progresso de uma sociedade. Há que se registrar também que não há só avanços, mas também recuos. Algumas sociedades regridem, e, com elas, suas ferramentas e técnicas. Os descendentes dos índios andinos não sabem mais operar o sofisticado sistema de irrigação de seus antepassados. Os caboclos da Amazônia, alguns descendentes dos índios locais, perderam muito do conhecimento dos seus antepassados sobre o uso de ervas medicinais e da variedade de plantas. No desenvolvimento das ferramentas, os avanços iniciais tendem a se concentrar na sua pega. Ou seja,

tornar seu uso mais confortável é uma das primeiras preocupações de nossos antepassados. Para isso, acolchoam os cabos dos seus machados de pedra com peles ou outros materiais. Um avanço decisivo se deu há cerca de 30 mil anos: o cabo das ferramentas — facas, machados ou martelos. Na verdade, acolchoar o lugar em que se segura a pedra é um avanço menor do que criar um cabo, cujas consequências são muito mais decisivas. É também o início da construção de instrumentos com cada vez mais peças diferentes e feitas de materiais distintos. O arco e a flecha já incorporam vários materiais, incluindo vários tipos de madeira. No momento em que o pau se junta com a pedra e dá origem ao machado, o homem dá um grande salto na capacidade de produzir artefatos. Hoje parece óbvio que com dois materiais pode-se fazer o que um sozinho não faz — a pedra corta ou macera, mas não permite construir um cabo leve e resistente; o galho da árvore não produz uma superfície cortante, mas dá um bom cabo. Isso, porém, só foi entendido 30 mil anos atrás. O cabo é um prolongamento da ferramenta, e sua junção com a pedra é um dos pontos em que mais se experimentou. Como unir de forma sólida e permanente dois materiais tão distintos? E, mais ainda, de tal forma que resistam aos sucessivos impactos, requeridos no seu uso? No encabamento do machado, tudo foi tentado. Alguns precursores dos rebites eram feitos com

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Faca cerimonial andina, feita de

folha de cobre. Pode ser inca ou das culturas próximas.

espinhos. Resina e breu foram usados para colar uma peça na outra. O sangue e o tutano (de ossos fervidos) também eram usados como cola. Cipós, embiras, fibras de palmeiras, couro cru, nervos e ligamentos serviam para amarrar a pedra no cabo. Alguns desse materiais espichavam quando molhados, retesando depois, ao secar. Isso permitia uma tensão maior nas amarrações. Muito frequente era escolher a madeira de tal forma a facilitar o acoplamento. Forquilhas ajudam. Galhos viram cabos e o caule facilita a tarefa de fixação. Era comum criar um entalhe na madeira, onde se encaixava a pedra. Talvez a solução mais curiosa seja rachar parcialmente um arbusto vivo e encaixar na greta um machado de pedra. Em alguns anos, a árvore cresce e envolve a lâmina, criando um “encabamento biológico”. É só cortar o pedaço de árvore nos locais apropriados. Para que se tenha ideia da centralidade do machado nas sociedades primitivas, vale mencionar que eram usados como moeda. Um cavalo seria trocado por tantos machados. Uma mulher também teria o seu preço expresso em número de machados. Com o domínio dos metais, os avanços passam a ser mais rápidos. Progressivamente, alguns desenhos vão chegando à sua maturidade. Na Roma clássica, a carpintaria já era uma profissão consolidada. De fato, as ferramentas e as tradições de trabalhar a madeira têm uma longa história. Interessante notar que são José trabalhava com um conjunto

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como funcionam as ferramentas manuais

cortando

Aplicando pressão: facas, tesouras, plainas Por choque: machados, machadinhas, enxós, formões, goivas Por fricção: serras, serrotes

por abrasão

Aplicando pressão e fricção: raspadores, limas, lixa, pedras de afiar

quebrando , fraturando

Por pressão: espátulas, alavancas Por choque: martelos Por fricção: moedores

perfurando

Aplicando pressão e fricção: agulhas, sovelas, brocas Por choque: talhadeiras, ponteiros, bedames

unindo , agrupando

Grampos, sargentos, cunhas, morsas pregos, parafusos, rebites, cola

de ferramentas que um carpinteiro de hoje facilmente reconheceria. Avançam nessa época as iniciativas para combinar a função com a estética. Por sua vez, a beleza das boas ferramentas reforça a mística da profissão. O orgulho de ter ferramentas lindas e zelar por elas contribui para a consolidação da ética profissional. Para receber a carta de ofício, cada marceneiro ou carpinteiro medieval deveria produzir sua obraprima. Com grande frequência, seu “trabalho de fim de curso” eram ferramentas transformadas em verdadeiras obras de arte. Peças das guildas medievais francesas estão nos museus, mostrando as manifestações mais exaltadas do casamento da arte com a função. O gráfico acima ilustra a árvore genealógica das ferramentas da madeira. Como sugerido, cada uma é uma evolução de sua antecessora, que era mais simples, menos especializada e menos eficiente.2

É interessante registrar a elegância e a simplicidade dessa classificação. Todas as ferramentas funcionam: (1) por pressão, ou seja, empurrando; (2) por choque, ou seja, batendo; (3) por fricção, ou seja, esfregando. Com esses três gestos podemos (1) cortar, (2) desgastar, (3) quebrar, (4) furar, (5) unir ou agrupar. Diante das muitas ferramentas do gráfico, selecionando uma delas, não devemos subestimar a longa saga que foi seu aparecimento e evolução. No que segue, examinamos uma por uma as grandes famílias de ferramentas. Começamos com o martelo, uma das primeiras ferramentas usadas pelos hominídeos. Ele é um dos avôs de uma grande estirpe de descendentes. Pela ordem cronológica, machado e martelo entrariam emparelhados, pois nascem na mesma época. Preferimos começar com o martelo e seguir com o machado e as outras ferramentas de corte com lâminas, como formões, plainas, raspadores e furadeiras. A rigor, estas últimas também poderiam vir junto com os martelos, pois são igualmente antigas.

2 Adaptado de Adrien de Mortillet, Revue Mensuel de Anthropologie, Paris

qr code: A vida que existe dentro de uma árvore, talhada pelas mãos do artífice,

(citação incompleta no livro de Otis, mencionado adiante)

vira arte, instrumento, meios de locomoção e muitas outras coisas.

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Réplica de martelo de pedra. ao lado: Criação ilustrativa de como se imagina um homem de Neandertal preparando um martelo de pedra. abaixo: Martelo de bola contemporâneo. qr code: O homem começa a sua trajetória com poucas ferramentas para

trabalhar a madeira, não muito mais do que o machado e o martelo. Mas cada uma delas permite o desenvolvimento de muitas variantes. Por exemplo, do

machado se deriva a machadinha, o formão, o enxó, a plaina, e assim por diante. Aqui se poderá ver uma árvore genealógica das ferramentas. Com movimentos elegantes, de cada ferramenta vão brotando outras.

Martelos, machados e seus descendentes Falar do martelo é voltar a um passado de 2 milhões de anos. Contemporâneo do machado, o martelo é uma das ferramentas mais velhas e intuitivas. Até os primatas usam pedras para quebrar cascas de alimentos. Não obstante, continua presente em qualquer oficina de hoje. Por assim dizer, é uma ferramenta cuja utilidade não desaparece. Não importa a sofisticação da oficina, cedo ou tarde alguma coisa precisa ser martelada. Mesmo nas marcenarias mais refinadas, na montagem final de um móvel, haverá uma peça recalcitrante, requerendo o convencimento de um martelo para que encontre seu lugar.

Até o desenvolvimento da metalurgia, diferentes tipos de pedras eram usadas. Quando o homem aprende a produzir metais, descobre que serviam para a fabricação de martelos e machados. Dominada a produção de cobre e do ferro, para fabricar um martelo era necessário golpear o metal ao rubro. Ou seja, a metalurgia que produz martelos requer o uso de martelos. É pertinente ancorar a evolução das ferramentas no Império Romano, por ser um ponto de inflexão no progresso do Ocidente e por receber os avanços de todas as regiões conquistadas. No caso do martelo, já era muito próximo aos de hoje. Exceto por detalhes, já tinham um desenho consolidado. Um operário de hoje não estranharia um martelo romano. Mas, provavelmente, preferiria o seu, por uma infinidade de detalhes.

A história do martelo Como dito, o martelo é uma das primeiras ferramentas usadas pelo homem. Sem cabo, aparece há mais de 2 milhões de anos. Na verdade, aparece antes do Homo sapiens, sendo usado por outros primatas. Tais pedras não deixam de ser martelos. Apenas há 30 mil anos, no entanto, o martelo ganha um cabo, que permite um tremendo aumento no impacto obtido nos golpes, tal como no caso do machado.

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Diversos modelos de machadinhas, com desenhos que sobrevivem até hoje.

Praticamente nenhum progresso houve no martelo ou em qualquer ferramenta quando a Europa entra na Idade Média. O espírito inquisitivo e inovador só volta à tona ao fim dessa era de estagnação, seja em martelos, seja em qualquer outra tecnologia. É a partir do século XII, com a construção das catedrais, que a Europa acorda e volta a inovar. Esse é um tema fascinante, mas que nos distanciaria excessivamente do nosso foco. Martelo e machado funcionam com princípios diferentes. No machado, a lâmina tem um ângulo bem agudo (a sua superfície de corte). No caso do martelo, usa-se uma superfície plana. Um corta, outro esmaga. Cada um faz o seu serviço. Ao longo do tempo, cada profissão desenvolve martelos próprios para as próprias necessidades. Mesmo dentro de cada profissão, aumenta imensamente a variedade dos martelos usados. Essa multiplicação de modelos ou tamanhos atinge o máximo um pouco antes do aprofundamento da Revolução Industrial e da mecanização. Uma fábrica típica do século XIX ofereceria a marceneiros e carpinteiros uma grande variedade de martelos. Por exemplo, Hibbard, Spencer e Bartlett listava 130 modelos de martelos diferentes no seu catálogo. Ao longo dos séculos, entre o formato da cabeça, o peso e o comprimento do cabo, infindáveis aperfeiçoamentos são introduzidos. Podem parecer caprichos ou detalhes, mas, dada a ubiquidade dessa

ferramenta, representam avanços consideráveis em conveniência e produtividade – por exemplo, um cabo que não se parte e não deixa a cabeça voar pelos ares. Esses e outros são avanços consideráveis no seu desenho. Pensando bem, o martelo é uma das ferramentas mais antigas e versáteis. É um desenho tão definitivo que, depois do uso do ferro, teve pouca evolução. Mas, como dito, os pequenos avanços não foram poucos.

A física do martelo Façamos o seguinte experimento: tomemos um martelo comum, um pedaço de madeira e alguns pregos grandes. Inicialmente, esqueçamos que o martelo tem cabo. Vamos segurá-lo pela sua parte metálica, como faziam com as pedras os nossos antepassados de 2 milhões de anos atrás. Usando essa pega, vamos martelar um prego na tábua. Além de sem jeito, é preciso fazer muita força para ter o mínimo sucesso. Dependendo do martelo e do tamanho do prego, pode ser impossível. Agora passemos a segurar pelo cabo e voltemos à tarefa de assentar um prego. Surpresa! É preciso bem pouca força para que penetre na madeira.

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Martelo “pen” e martelo de bola.

Mesmo desenho de dois séculos atrás.

Qual é a mágica? Vários fatores colaboram. Um deles é ser mais fácil de segurar pelo cabo. Mas a mudança crítica é a rotação da ferramenta, antecedendo o impacto. Quanto mais longe da pega estiver a cabeça do martelo, mais rápido avança e, portanto, maior o impacto. É a combinação da sua velocidade e da energia imposta pelo seu operador que multiplica a força da batida, comparado com um martelo sem cabo. Num martelo sem cabo, o impacto é proporcional ao seu peso e à força que fazemos. Para obter mais impacto, necessitava-se de um martelo mais pesado. Com o cabo, podemos obter o mesmo impacto, usando uma cabeça menor e um cabo mais longo. Ou seja, temos um martelo mais leve que obtém os mesmos resultados. Diante desse princípio, é óbvio que quanto mais longo o cabo, mais forte será a pancada. A razão para que martelos não tenham cabos gigantescos é que a pontaria fica comprometida por um cabo muito longo. De fato, é interessante verificar que principiantes pegam no cabo bem perto da cabeça, pois facilita acertar o prego, ainda que reduza a força do impacto. Portanto, na prática, há martelos para todos os serviços: mais precisão ou mais impacto. Nos Estados Unidos, alguns construtores de casas feitas com peças de pinho são capazes de manobrar um martelo com cabo bem mais longo. Com isso, obtém a penetração total do prego com uma única martelada.

Ao longo do tempo, busca-se um equilíbrio dinâmico no desenho do martelo. No momento do impacto, ele não deve transmitir qualquer movimento para a mão do operador. Ajustam-se o comprimento e o peso do cabo, chegando-se às combinações adequadas. Ao olhar um reles martelo esquecido em algum canto, não imaginamos quanta experimentação foi feita até que se chegasse àquele desenho.

Há muitos martelos Muitas profissões manuais usam martelos. Na maioria delas, desenvolveram-se modelos mais apropriados para as tarefas típicas. Portanto, há martelos para lidar com madeira, metal, chapa de ferro, para-lamas de automóveis, pedra, couro e joias. E há até um modelo para golpear o joelho dos pacientes, a fim de que os médicos avaliem o reflexo involuntário. No período romano, aparece no martelo um par de unhas para remover pregos. São hoje chamados martelos de orelha. Esse desenho conquista o mundo e sobrevive até hoje. Dado o altíssimo custo dos pregos, pois eram feitos à mão, um a um, o martelo que permitisse dar-lhes uma nova vida tinha tudo para dar certo. Hoje, os pregos usados são jogados fora, mas continua havendo muita construção em madeira para ser desmontada. Para não falar dos pregos que entortam a meio do caminho e têm que ser retirados.

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qr code: A cinematografia permitiu captar

uma cena comum no início do século XX, hoje

desaparecida: o trabalho dos ferreiros na bigorna,

alternando os golpes de martelo no ferro em brasa.

Naturalmente, o martelo é fabricado em diferentes tamanhos, de acordo com o uso e a robustez do dono. Nas últimas décadas, novos materiais vêm sendo usados no cabo, sobretudo a fibra de vidro. Além de aumentar a duração, busca-se reduzir a vibração na mão do operador. Estofadores usam martelos leves e com cabeças longas para alcançar os lugares em que pregos e tachas devem ser aplicados. Na mecânica, dois tipos aparecem, para nunca mais desaparecer. O martelo de bola tem uma superfície esférica numa das extremidades revelando-se útil para moldar superfícies curvas, especialmente folha de cobre, mas servia até para reproduzir os contornos da anatomia humana, na fabricação das armaduras, e também para formar uma cabeça arredondada nos rebites. Até hoje, vendem-se aqueles com uma quina rombuda e transversal. São os chamados martelos de pena (tradução literal do inglês “peen”). Originalmente, eram usados na forja para alongar as peças trabalhadas. Hoje têm uso mais geral na mecânica. O martelo e a forja estão historicamente imbricados. Sobre a bigorna, o metal ao rubro é martelado, tomando progressivamente o formato desejado. Em grande medida, os ferreiros usam martelos semelhantes aos dos mecânicos. A diferença é que são bem mais pesados, pois o metal quente requer considerável força para ser moldado. Podem

pesar até nove quilos, para aqueles ferreiros cujos bíceps permitem. É também para a forja que aparecem marretas, malhos ou maços, que nada mais são do que martelos bem maiores, em formato de paralelepípedo. Pelo seu peso, alguns requerem as duas mãos para serem usados. Um ferreiro segura a peça e o outro malha. A marreta, porém, encontra outros usos. Nas oficinas mecânicas, servem para montar e desmontar máquinas, entortar ou endireitar peças de metal. Na mitologia escandinava, Thor usava um martelo para disciplinar a humanidade. Cedo, marretas e martelos migram para a construção civil, em que chegam para quebrar pedras e demolir o que já não serve. Para usos mais delicados, buscam-se materiais mais suaves, a fim de não marcar ou vincar as peças. Tipicamente, os marceneiros usam macetes, todos feitos de madeira, para a montagem de móveis. Entram também em cena novos materiais para revestir a superfície que toca em peças delicadas, como bronze, alumínio, couro, nylon e poliuretano. Na lanternagem ou funilaria, emprega-se uma grande variedade de martelos. Como se trabalha com chapa fina e há sempre a preocupação de não machucar sua superfície, os martelos tendem a ser leves, mas com uma grande área de impacto. Nos últimos anos, inventa-se o “martelinho de ouro”, um conjunto de técnicas para desamassar

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Martelo de joalheiro ou ourives. Este

desenho persiste por mais de um século. à direita: Duas ferramentas para remover a casca de troncos recém-cortados.

página ao lado: Escravos britadores. Carlos Julião (1740-1811), Riscos illuminados de

figurinhos de broncos e negros dos uzos do Rio de Janeiro e Serro do Frio.

a lataria de um carro, sem danificar a pintura. Na verdade, não há martelos feitos com esse metal, mas com outros, mais suaves. Além disso, a técnica requer outras ferramentas complementares. A joalheria e a ourivesaria também têm seus martelos especializados. Em geral, sua principal característica é serem muito leves e amplos na superfície que toca a peça. E, é claro, são proporcionais ao tamanho reduzido das peças a serem construídas.

Marteletes hidráulicos: os supermartelos Como é fácil deduzir, a produção de uma forjaria resulta do número de marteladas e do peso dos martelos usados. Isso leva à busca de martelos mais pesados e de métodos para reduzir o intervalo entre as marteladas. Tal preocupação era ainda mais crítica no início da metalurgia, quando o aço era produzido na forja, a golpes de martelo e ao cabo de muitas horas. Desde sempre, a excelência de um ferreiro era medida pelo tamanho do martelo que conseguia manejar ao longo do dia. Como seria previsível, havia concursos para eleger o ferreiro mais robusto. Na Idade Média, aparece na China um sistema pelo qual elevam um enorme martelo de metal até um ponto em que se solta. Ao cair, ele golpeia a peça ao rubro. As minerações de ouro em Minas Gerais usaram descendentes desse sistema para a moagem de minério.

Durante a Revolução Industrial, esse sistema se transforma num martelete acoplado a um pistom hidraulicamente acionado. Em vez de brandir um martelo pesado, o ferreiro aciona a máquina por um pedal. O martelo pilão é um avanço definitivo, aumentando muito a produtividade das forjarias.

A história do machado Entre machado e martelo, é difícil saber qual veio antes. Provavelmente, evoluíram juntos. Enquanto o machado corta, o martelo quebra, tritura ou comprime. Tudo que era feito de madeira nascia com a ajuda de um machado. De início, havia que cortar o tronco. Em seguida, remover a casca com uma espátula pesada. O próximo passo era lavrar a peça, dando-lhe uma secção quadrada. Novamente, entrava em cena o machado. O desenvolvimento das serras – e, agora, as motosserras – tornam o machado quase obsoleto, pelo menos em operações comerciais. Mas muitas ferramentas derivadas dele ainda encontram lugar nas oficinas. Antes da metalurgia, uma pedra com uma superfície cortante era usada para todos os tipos de trabalho que exigiam seccionar ou desbastar a madeira. Ao que se supõe, faz 2 milhões de anos

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que nossos antepassados se servem de pedras escolhidas para essas tarefas. Como mencionado, o grande salto tecnológico ocorrido 30 mil anos atrás foi amarrar a pedra a um pedaço de pau. A invenção do cabo é definitiva, representando um extraordinário avanço. Ao girar o cabo, o impacto da lâmina é muitas vezes maior do que o obtido ao segurar a lâmina e bater. Portanto, o efeito é também maior. A grande “pesquisa tecnológica”, desde então, se concentra na maneira de fixar a lâmina no cabo. Encaixes, forquilhas, cipós, tiras de couro cru – tudo foi tentado. Muito se fez como resultado desse avanço. Contudo, é o domínio dos metais que muda tudo. Inicialmente, aprende-se a produzir cobre. Vale a pena acompanhar, através dos tempos, a evolução do processo de encabar um machado. Se a natureza oferece galhos redondos, por que não fazer um furo na pedra e encaixar o cabo? Isso foi tentado, mas a ferramenta ficava muito frágil. Daí as outras soluções encontradas. Mas, ao dominar o metal, o homem passa a contar com um material muito mais resistente, diante de um furo para encaixar o cabo. Não obstante, a tradição de amarrar a lâmina persiste por muitos séculos, repetindo a fórmula que era boa para outro material. Levou tempo para que os ferreiros de então voltassem à solução que não dava certo com a pedra. Esse exemplo sugere como era penoso e demorado o processo de invenção e inovação na pré-história.

Nos dias que correm, o machado mais midiático é o que levava Otzi, o homem congelado descoberto nos Alpes italianos. Portava um machado de cobre. Aliás, era uma espécie de guerreiro high tech da época, pois carregava um arco composto, uma faca de pedra lascada, alimentos, remédios e muito mais. Sua existência coincide com o aparecimento dos objetos de cobre. Não obstante a excelência do seu equipamento, morreu assassinado por uma flecha. Em que pese ser um avanço sobre os machados de pedra, todavia, o cobre é muito dúctil para produzir uma lâmina cortante. O bronze já é bem mais duro, mas foi preciso esperar o ferro e o aço para que os machados se tornassem realmente eficientes. A iconografia romana mostra machados muito parecidos com os nossos. Desde então, há progressos, mas a geometria e configuração deles se estabiliza nessa época. Dominados os metais, aumentam as variedades de machado. Pesquisas na Nova Inglaterra do século XVIII e XIX mostram a existência de dezenas de modelos diferentes. Não apenas se buscava a boa fórmula, mas optava-se por especializar cada um para uma função diferente. Em particular, derrubar uma árvore requeria um tipo de machado. Transformar a secção do tronco em um quadrado se fazia com um machado de cabo mais curto e lâmina mais larga. Até serem derrotados pelas serras, a multiplicação de modelos de machados é bem impressionante. Para lavrar o tronco, havia um par

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Machado de pedra de origem peruana.

Martelo de bronze.

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Enxó de desenho português

(lâmina provavelmente inglesa). É semelhante aos usados no Brasil até os dias de hoje.

página ao lado: Variedade de

machados e outras ferramentas feitas nas forjarias locais. Seu estilo é norte europeu..

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de machados: um tinha a lâmina chanfrada do lado direito e reta do esquerdo, e o outro era justamente contrário. No século XX, muitas dessas operações já não eram mais realizadas com machados. Ainda assim, em 1922, no catálogo da empresa. Spencer & Bartlett, entre marcas, tamanhos e modelos, havia 242 machados. Isso sem contar machadinhas e enxós. Na carpintaria e na marcenaria, o machado praticamente já foi obliterado por ferramentas mais eficientes e especializadas. Não obstante, foi o ponto de partida para as ferramentas de corte. Do que sobrou de seus descendentes diretos nas oficinas mais recentes, há que se mencionar duas ferramentas: a machadinha e o enxó. A machadinha não passa de um machado pequeno, como o próprio nome sugere. Sobrevive como

ferramenta para acampamentos. Pelo mundo afora, ainda há uma produção de móveis e artefatos de madeira verde lavrados na machadinha. Além de uma lâmina semelhante à dos machados, as machadinhas costumam ter, no lado oposto, uma superfície plana, que serve como martelo. Outras têm também unhas, como os martelos que tiram pregos. O enxó, mais especializado, também é uma ferramenta antiga e que pode ser vista na iconografia romana – aliás, pouco diferente dos atuais. Ainda se usam em algumas oficinas de carpintaria do Brasil. Simplificando, um enxó é um machado em que a lâmina está atravessada, em vez de ter seu fio paralelo ao cabo. Além disso, é bem mais curto. Na Europa, o enxó aparece com duas anatomias bem diferentes. Numa delas, o cabo é um bastão de madeira, como qualquer machado, só que bem mais curto.

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Na prática, alguns enxós costumam ter uma lâmina recurvada. Com isso, podem escavar um barco de tronco, uma gamela ou o assento de uma cadeira. Tipicamente, esse modelo é uma ferramenta mais encontrada no norte da Europa. O outro modelo é o que chegou a nós, via Portugal. Existe também na Itália e na França, mas é desconhecido mais ao Norte. A lâmina também é atravessada, mas o cabo é como se fosse o de um serrote, bem curto. Curiosamente, grande parte dos enxós que chegaram ao Brasil foram produzidos pela empresa inglesa W. Greaves, criada no início do século XIX. Ou seja, importávamos da Inglaterra uma ferramenta que não era lá usada. Conferindo o catálogo de Hibbard, já mencionado, podemos ver que há seis modelos de enxós anglo-saxões, mas nenhum deles chegou ao Brasil. Podemos pensar um enxó como uma ferramenta mais delicada e precisa do que um machado. Os golpes na madeira se dão após um trajeto curto. Sua função principal é desbastar, buscando uma forma bem definida. No caso, menos do que permite um machado, porém é mais agressivo do que um formão. Nas mãos de um velho carpinteiro, é uma ferramenta admirável. Pode ser usada para lavrar alisares e muitas outras peças na construção de uma casa. É quase inacreditável que um instrumento tão rudimentar permita um bom acabamento. Pode também ser usado em tarefas mais simples, como para despontar um cabo de ferramenta.

Não é, entretanto, para principiantes. Um formão é encostado na peça antes de começar a cortar. No enxó, é preciso pontaria para que, ao fim do movimento, atinja o lugar desejado, com o ângulo certo e a força necessária. Além disso, tende a ser perigoso. Segundo os velhos carapinas, se errar o alvo, tem grande predileção pelo joelho.

Formão (cinzel, goiva) Em sua essência, o formão é uma faca diferente. Em ambos, há um cabo com uma lâmina forjada numa barra de metal. Na faca, o corte é num dos lados. No formão, numa das extremidades. Essa diferença da faca permite outros tipos de trabalhos. A faca descasca laranjas. Com o formão, isso é quase impossível. Mas o formão permite preparar um encaixe, tarefa impossível para a faca.

A história do formão Em algum momento, os hominídeos aprenderam a produzir lâminas afiadas tirando lascas de algumas pedras bem escolhidas, como o sílex ou a pederneira. Essa é a origem das primeiras facas, ocorrida há mais de 2 milhões de anos. Desde então, passam a ser uma ferramenta para cortar madeira, cipós, caça, frutas e tudo o mais que aparecesse.

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Formões construídos por ferreiros locais brasileiros..

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Ao contrário da faca, no formão a superfície cortante está no extremo da lâmina. Mas ainda não é bem o formão que conhecemos. Era uma ferramenta muito limitada, pela dificuldade de ter superfícies de corte estreitas, afiadas e duráveis. É quando aparecem os metais que realmente os ferreiros criam uma ferramenta parecida com o formão dos dias de hoje. Isso aconteceu por volta do ano 5.000 a.C. Inicialmente, o cobre era o único metal conhecido, portanto só permitia um corte rombudo e frágil. Com o bronze, as coisas melhoram, já sendo possível um arremedo de corte em facas ou formões. Mas é com o ferro e o aço que se torna possível ter lâminas afiadas e que se mantêm assim por longo tempo. Estamos falando de 3 mil anos atrás. Desde antes do período romano definem-se soluções para a construção dos formões. A maneira de fixar o cabo é um dos problemas que encontram soluções diferentes. Uma delas é uma espiga que penetra num furo no cabo. Mas há também o formão que termina num cone oco, ou seja, um soquete, de tal forma que um cabo despontado se encaixa nele. Ambas vêm mais ou menos da mesma época e sobrevivem até os dias de hoje. Em geral, trabalhos mais brutos sugerem o soquete, por exigir menos do cabo. Para tarefas mais leves, uma espiga é mais do que suficiente. Visando proteger a madeira do maltrato incessante de martelos e macetes, muitos cabos de formões

costumam ter uma luva metálica ou virola na sua ponta inferior. Tratando-se de formões voltados para escavar rasgos para espigas, pode haver uma segunda luva instalada no topo para protegê-lo das incessantes marteladas, impedindo que vire um cogumelo ao ser martelado. Em português, temos a palavra formão para a ferramenta voltada para trabalhos em madeira. Uma ferramenta similar, a talhadeira, existe para cortar metais. Em inglês usa-se a mesma palavra, chisel, para madeira ou metal. Tem a mesma origem da nossa palavra cinzel, que denomina as talhadeiras usadas na escultura em pedra. O parentesco das palavras reflete o parentesco das ferramentas. Talhadeira e formão funcionam sob a mesma lógica. Golpeados ou empurrados, incidem e cortam a superfície de trabalho. De maneira geral, talhadeiras não têm cabo de madeira, ao passo que os formões têm. Há, porém, formões sem cabo e talhadeiras encabadas.

Há uma grande variedade de formões No fundo, um formão não passa de uma lâmina de aço temperado com um cabo numa extremidade e, na outra, um chanfro ou bisel que termina numa superfície de corte. Compartilhando essas mesmas características descritivas, temos várias possibilidades. Vejamos algumas delas.

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Formões de entalhador produzidos

industrialmente importados da França, da Alemanha ou da Inglaterra.

Na maioria das vezes, os formões têm cerca de 30 centímetros de comprimento. Mas os entalhadores usam também versões pequenas, algumas com apenas 10 centímetros. Na construção civil com madeira, eram usados formões enormes, que chegavam a medir 1 metro. Como não era possível usar uma plaina, o cabo longo ajudava a manter o ângulo de corte. Há formões robustos para fazer os cortes onde entram as espigas. As lâminas são muito espessas e pesadas para, dia após dia, aguentarem as marteladas. Em contraste, a maioria dos formões é mais leve, com cabos mais delicados – pouco resistentes ao uso de martelos e macetes. Servem para trabalhos que exigem precisão e acabamento. Quando, em vez de reta, a lâmina é abaulada, formando uma canaleta, dizemos que é uma goiva. Essa ferramenta é usada nas talhas artísticas sempre que se lida com curvas e também serve para pentrar numa superfície plana. Como seu corte é recurvado permite trabalhar superfícies côncavas. Além disso, é muito usada no torno para o desbaste inicial. Alguns chamam de bedame (ou badame) um formão comprido, estreito e de seção quadrada, usado, por exemplo, para instalar fechaduras (em mecânica, a mesma palavra denomina uma talhadeira ou ferramentas de torno, também quadradas). Eis uma curiosidade: bedame vem de bec d’ânne (nariz ou bico de asno), palavra cujo nome deve fazer alusão a essa parte da anatomia de um burro.

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Dois formões importados da Europa para preparar encaixes.

Variedade de formões: o grande

substitui uma plaina na construção de casas ou barcos, enquanto o

menor é usado por entalhadores.

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página ao lado: Goivas de

diferentes tamanhos. Algumas de

produção artesanal, outras fabricadas na Europa.

Na tradição ocidental, o formão é feito com uma barra de aço forjada e temperada. O problema dessa solução é que o corpo do formão precisa ter flexibilidade, para que não se quebre em usos mais extremos. Por outro lado, a superfície cortante precisa ser bem dura, para que o fio não se deteriore rapidamente. Embora a têmpera possa ser dada apenas na extremidade cortante, é sempre uma solução de compromisso – nem muito flexível nem muito dura. Em contraste, em plainas e formões japoneses, usa-se um aço bem flexível no corpo da ferramenta. Uma barrinha de aço extremamente duro é soldada na extremidade de corte. Com isso, temos uma dureza ideal e diferente em cada parte da lâmina. É bem curioso notar que esta mesma solução de soldar dois metais era usada também na Rússia medieval. O único problema dessa solução é seu alto custo, reflexo das complicações adicionais do processo produtivo. Na história da metalurgia japonesa, as espadas dos samurais tornaram-se verdadeiras obrasprimas. Reproduções fiéis, feitas hoje, consomem até seis meses de trabalho para construir um único exemplar. Com o desaparecimento desses guerreiros, lá pelo século XIX, fica proibida a sua fabricação. Como resultado, os ferreiros migram para a produção de lâminas de formões e plainas. Vale notar que o país ainda produz lâminas de plaina pelos mesmos processos artesanais de séculos passados. Alguns ferreiros vendem hoje suas obras por até mil dólares cada um.

Tão simples e tão difíceis de usar Comparado, por exemplo, com uma plaina, o formão é uma ferramenta difícil de ser usada. Como veremos, na plaina, o ângulo de incidência da lâmina na madeira é fixo e a agressividade do corte foi regulada antes do trabalho. No formão, tudo está nas mãos do marceneiro: o ângulo, a força e a posição. Seu domínio completo pode levar anos. Em muitos casos, trabalha-se empurrando o formão com uma das mãos e mantendo o ângulo certo com a outra. Em outros, uma das mãos funciona como um martelo, aplicando golpes bem suaves. Quando exigese mais força, entra em cena o martelo, ou melhor, o macete de madeira, que maltrata menos o cabo. Como seriam as casas de madeira e os móveis sem o formão? Não existiriam. É ele que permite as centenas de desenhos de encaixes e sambladuras de madeira. Na realidade, os encaixes só se tornam possíveis quando os marceneiros passam a ter bons formões. Para ilustrar, os egípcios não usavam encaixes, pois não tinham os formões requeridos para tal, apesar do seu domínio da metalurgia. As peças dos móveis eram amarradas. Até a invasão dos metais, a partir do século XIX, o nível de sofisticação industrial de uma sociedade estava altamente correlacionado com o refinamento da sua carpintaria e marcenaria. Quando a marinha inglesa se torna a maior do mundo, o país tinha os encaixes mais elaborados, tanto nos navios quanto

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nas casas. Nessa época as casas eram construídas como quebra-cabeças: as peças iam se encaixando numa sequência predeterminada (nada de pregos ou parafusos). Ao colocar-se a última, tornava-se impossível remover qualquer outra. Será por acaso que os formões ingleses são famosos até os dias de hoje? De fato, sobrevivem muitas marcas seculares, produzindo dezenas de modelos. Outro exemplo de exaltação no desenho dos encaixes está no Japão, sobretudo nos seus templos. Estima-se que os carpinteiros japoneses usavam centenas de encaixes diferentes. No Ocidente, o repertório de encaixes sempre foi bem mais reduzido. Será apenas uma grande coincidência que os formões japoneses sejam hoje reverenciados até pelos grandes marceneiros ocidentais? Falar de formão é falar de sua frequente afiação, pois a qualidade do trabalho e o controle da ferramenta estão intimamente ligados à excelência de seu corte. Formão mal-afiado dificulta o trabalho e é mais perigoso. De nada adianta o melhor aço, sem que tenha sido corretamente preparado. E o modo de fazêlo é tanto ciência quanto arte, objeto de infindáveis controvérsias – livros e mais livros são escritos sobre o assunto. Mas, seja qual for a fórmula escolhida, afiar

formões é tão crítico na profissão quanto saber usá-los. E a prova dos nove é ser capaz de cortar suavemente os pelos do antebraço. Um belo formão é um objeto de veneração por parte dos melhores marceneiros, e demonstrar a excelência do seu fio faz parte de certo exibicionismo profissional. O apogeu das ferramentas manuais ocorreu próximo à segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX. Antes, a metalurgia era mais primitiva. Depois, as máquinas passaram a fazer o que antes se fazia com ferramentas de mão. Nos dias de hoje, temos duas vertentes na marcenaria. De um lado, a produção artesanal, valendo-se das mesmas ferramentas de mais de um século atrás. Nessas oficinas abundam os formões. De outro, há a mecanização e automação crescentes. Há fábricas de móveis nas quais inexistem ferramentas como formões. No limite, os operários não tocam no que está sendo produzido. Apenas comandam as máquinas automáticas. É bom que essa variedade de sistemas produtivos seja preservada, pois a evolução do mobiliário exige processos artesanais, pelo menos nos protótipos.

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Garlopa curta, lâmina importada

página ao lado, de cima para baixo:

próprio marceneiro. Modelo que

madeira, construídas pelo próprio

e madeira trabalhada pelo sobreviveu aos séculos.

Goivete em madeira, com guias em metal.

Plainas e garlopas com chassis de marceneiro. A da esquerda é um

modelo do norte da Europa, trazido pelos imigrantes alemães.

Plaina com chassis de madeira,

modelo industrializado. O “chifre”

à frente é típico dos países mais ao norte de Europa.

Plaina com chassis de madeira, feito pelo marceneiro.

Plainas, guilhermes, garlopas e goivetes Das ferramentas de madeira, a plaina é das mais complexas – apenas a serra a ultrapassa na multiplicidade de modelos, mas não em sofisticação. Pode ser um bloco de madeira com uma lâmina primitivamente encaixada, ou uma plaina Stanley 55, cujo kit original de fábrica incluía 55 lâminas e dezenas de acessórios. Pode ser tosca e feia, mas pode também ser uma obra de arte exposta em museus, pelas suas talhas e incrustações em marfim. Fruto de sua anatomia, nenhuma outra ferramenta se presta a esse casamento da função com a arte. Além da elegância do design, o corpo pode receber infindáveis decorações (até mesmo nas plainas metálicas), sem comprometer sua função. Não é por acaso que nas guildas europeias o aprendiz de marceneiro frequentemente optasse por construir uma plaina no seu trabalho de diplomação. Nela, além da perfeição técnica, podia dar asas à sua criatividade como entalhador. Algumas das mais belas plainas pertenceram ao rei da Suécia Adolf Frederik. Segundo consta, seu amor pela marcenaria era maior do que sua dedicação à administração pública. É essencial achar imagens de plainas feitas de madeira com esculturas em alto relevo, pois é o casamento da função com a arte. A plaina de metal com incisões é bem menos comum.

Em essência, contudo, a tarefa da plaina é uma só: produzir uma superfície linear, seja um tampo de mesa perfeitamente plano, seja o filetado das molduras. Um formão, com sua infinita versatilidade, pode cortar em qualquer ângulo. Mas o que costuma ser seu grande mérito passa a ser um defeito fatal quando queremos usinar uma superfície plana. Não há como realizar tal tarefa segurando com as mãos a lâmina da ferramenta. A solução encontrada foi fixar o formão num bloco de madeira, no ângulo mais apropriado para o corte desejado. Empurrando a ferramenta, a soleira da plaina, o desbaste guia a lâmina em uma trajetória linear. Com a lâmina fixada ao corpo, é fácil determinar um corte mais suave ou agressivo, dependendo de quanto a lâmina ultrapassa a soleira que desliza sobre a peça trabalhada. De fato, começa-se

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o desbaste com um corte mais agressivo. Uma vez nivelada a superfície, entra em cena outra plaina com um corte muito raso, visando a um acabamento primoroso.

A história da plaina Se a plaina é uma descendente tardia do formão, óbvio que entra em cena depois. Antes dela, encaixes e painéis não eram possíveis. De fato, não existiam nos móveis egípcios. Os enxós e a perícia dos marceneiros são decantados por Homero na Ilíada, mas as plainas estão ausentes na sua narrativa. Supostamente, os gregos acabaram por criar uma plaina, e sua autoria é atribuída a Dédalos. Mas não há vestígios de sua existência. As fontes para a história das ferramentas são os exemplares encontrados e a iconografia da época (em livros, pinturas e esculturas). O uso do ferro e do aço, se para a marcenaria representa um gigantesco avanço, para a arqueologia é um passo atrás, pois a ferrugem progressivamente leva

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à sua destruição. Assim, nos sítios arqueológicos encontram-se mais ferramentas de cobre ou bronze do que de ferro. É razoável pensar que as primeiras plainas nascem do enxó e que tinham uma lâmina semelhante à dos formões. Em vez de um cabo, desenhado para segurar a lâmina, esta seria fixada num bloco com uma soleira plana, de forma a raspar linearmente a madeira. Mas isso não passa de uma suposição. Um número suficiente de registros nos permite dizer que os carpinteiros romanos dispunham de plainas de bronze muito parecidas com as que temos hoje. E que eram bastante variados os modelos. Vários exemplares de plainas romanas foram encontrados e identificados. É curioso notar que no período romano a arquitetura da plaina toma dois caminhos diferentes. Blocos de madeira foram usados para construir plainas, como acontece até hoje no mundo inteiro. Mas os romanos também criam plainas usando blocos de bronze fundidos ou forjados. Essas plainas não eram totalmente construídas de metal. Em geral, tinham a soleira de metal e mais a estrutura em que se apoia a lâmina. Algumas tinham apenas isso, o resto era madeira. Outras tinham mais guarnições metálicas. Uma solução romana até hoje adotada é usar o metal apenas para a soleira, mercê da maior durabilidade dessa superfície, em fricção permanente com a obra trabalhada.

Curiosamente, a solução romana de fundir um chassis metálico foi abandonada por muitos séculos, só voltando parcialmente durante o Renascimento. Na verdade, foram encontradas pouquíssimas plainas entre a Roma clássica e o grande despertar, a partir do século XV. Depois da grande ebulição criativa dos romanos, a Idade Média está para as plainas como para quase tudo o mais: nada avança e, em alguns aspectos, há retrocessos. De fato, as poucas plainas dessa época, encontradas na Inglaterra e na Frísia, são menores e mais rudimentares. No século XV, como em todos os campos, há um fermento tecnológico e a retomada dos avanços anteriores nas plainas. Aumenta a experimentação e a variedade de soluções. A partir de 1.600 aparecem algumas plainas menores, todas construídas de metal fundido. Mas eram peças raras. Aliás, esse é o período em que as plainas passam a ter uma construção mais esmerada e muito mais ornamentação, frequentemente incluindo alto-relevos com o ano de sua construção. Há plainas que têm bastões à frente e atrás da lâmina para servirem como pegas para o marceneiro. Esses modelos predominaram no norte da Europa. É curioso que vieram com a imigração alemã para o Sul do Brasil e ainda hoje se encontram plainas com esse desenho construídas localmente. A forma de segurar a ferramenta também reflete tradições culturais. No sul da Europa, a pega da plaina

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Plaina com varetas que ajudam a

empurrar a ferramenta. Construída

em Santa Catarina, sob influência da colonização alemã.

página ao lado: Clássicas plainas

Stanley ou Bailey, também chamadas de rebotes. São totalmente

construídas em metal. Esses modelos se espalharam pelo mundo. Com as patentes (do século XIX) espiradas, são hoje amplamente copiadas. Plaina com chassis de madeira, construção artesanal.

era obtida abrindo um rasgo no bloco de madeira, uma solução que já vem da Roma clássica. No norte, a tendência predominante era adicionar uma pega ao bloco, muitas vezes com o formato de um cabo de serrote. Na parte frontal, as pegas em forma de chifres são também mais comuns no norte da Europa. Naturalmente, os avanços na metalurgia são críticos para a lâmina das ferramentas. Dois caminhos são tomados em paralelo ao que acontece com os formões. Um deles é usar o melhor aço disponível e dar uma têmpera mais dura na superfície de corte. A outra, também muito antiga, é caldear na extremidade da lâmina uma barrinha de um aço mais duro. Na Europa, essa segunda solução foi abandonada, mas no Japão é ainda a forma usada. O século XVIII foi a Idade do Ouro da marcenaria. As ferramentas de antes podiam até ter decorações artísticas, mas eram toscas. Daí em diante aumentam a sofisticação e o luxo. Obviamente, as plainas não seriam exceções. A partir de 1.700, começam a aparecer na Holanda plainas praticamente idênticas umas às outras. Isso sugere o início do processo fabril. Além das ferramentas feitas pelo próprio artesão, surgem oficinas que produzem plainas antes que os fregueses as encomendem. São os albores da Revolução Industrial. Em meados do século XIX, no mundo anglo-saxão, as plainas com corpos metálicos voltam à cena, em grandes quantidades, como resultado de seu avanço pioneiro na fundição. Vale notar que são os Estados

Unidos que embarcam na produção em massa de plainas inteiramente metálicas (exceto os cabos). As inglesas tinham mais metal do que antes, mas eram principalmente combinações de madeira com ferro fundido. Dadas a robustez e a praticidade das plainas metálicas, os Estados Unidos passam a dominar o mercado das plainas e também das inúmeras patentes de plainas e seus detalhes mecânicos. A maioria das plainas inglesas do período são feitas em filiais locais de empresas americanas, como a Stanley. Em contraste, nos países germânicos, as plainas de madeira são usadas até os dias de hoje. Uma loja de ferragens atual, nos países de língua alemã, oferece plainas de madeira. Estas, porém, praticamente inexistem nas lojas inglesas e americanas. Esse fato singelo nos sugere que cultura e história têm seu papel, e não apenas os imperativos tecnológicos. De fato, não tem sentido imaginar que a Alemanha e seus vizinhos tenham um atraso na metalurgia e que, por isso, suas plainas sejam de madeira. Cada vez mais, quase todas as ferramentas passam a sair de fábricas. Há um crescimento espantoso na produção de ferramentas de todos os tipos. No caso da plaina, como dito, avanços em técnicas de fundição permitem a produção eficiente e barata de plainas totalmente metálicas (exceto os cabos, naturalmente). Os grandes nomes são Spier, Norris e Marples na Inglaterra. As de Stanley e Bailey, porém,

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na página dupla anterior:

Pequena plaina japonesa. Em

da lâmina em plaina tipo Stanley

puxada, e não empurrada.

Mecanismo de avanço e nivelamento contemporânea.

contraste com as ocidentais, é

na página 67:

Mecanismo de avanço e nivelamento da lâmina, em plaina tipo Stanley contemporânea.

não florescem apenas nos Estados Unidos, e sim em todo o mundo. Apesar dos avanços na manufatura de ferramentas que saem completas das fábricas, até recentemente se mantinha a tradição de os marceneiros comprarem apenas a lâmina. A parte de madeira era feita por eles próprios. Isso se dava com machados, enxós, formões e plainas. As lojas vendiam a mesma lâmina de machado, com e sem cabo. Com a compra das patentes e da fábrica de Bailey pela Stanley, criou-se uma situação peculiar. Quase todas as plainas fabricadas a partir de 1.900 seguem as velhas patentes da Stanley. Hoje, como essas patentes estão caducas, todos fabricam plainas rigorosamente copiadas das originais. Como praticamente todas as patentes são do século XIX, isso significa que quase nada aconteceu desde então no desenho das plainas. Ainda no século XIX, há um avanço técnico importante na Inglaterra, com a introdução de uma segunda lâmina, aparafusada à principal. Praticamente todas as plainas compradas hoje incorporam esse contraferro. Sua função é dupla. Em primeiro lugar, enrijece a lâmina, reduzindo as vibrações. Em segundo, verga e quebra os cavacos cortados pela lâmina. Há também avanços na mecânica de regular a lâmina, tanto longitudinal quanto lateralmente, pelo uso de parafusos e alavancas. Nas plainas tradicionais feitas com blocos de madeira (ainda hoje usadas nos países germânicos e no Japão), essas operações são mais difíceis. Pancadas de martelo no cepo da

plaina soltam a cunha de fixação (daí a existência, em algumas plainas, de cabeças metálicas para receber as batidas, protegendo a madeira). Depois de ajustada a lâmina, leves marteladas na cunha voltam a fixar sua posição. É fácil descrever o processo, mas difícil executá-lo. É curioso mencionar os contrastes com as ferramentas dos povos do Oriente. China e Japão sempre construíram suas plainas em madeira. Até hoje, são extremamente simples e não usam contraferro, mas sim lâminas muito espessas e pesadas. Apesar da enorme influência cultural da China sobre o Japão, nas plainas há uma diferença fundamental. A plaina chinesa é empurrada, como no Ocidente. Já no Japão, é puxada. Despojadas ou complicadas, não é fácil trabalhar com plainas, qualquer que seja sua origem. Paradoxalmente, as japonesas oferecem um imenso desafio para afinar e regular. Por outro lado, podem produzir um cavaco quase transparente, mais delgado do que nas melhores plainas ocidentais. É tanta a devoção dos marceneiros japoneses às suas ferramentas que ainda há concursos em que vencem os competidores capazes de produzir os cavacos mais delgados (que os juízes medem com um micrometro).3 Nos últimos trinta anos, houve uma degradação na qualidade de ferramentas como plainas e formões. 3 Sobre o assunto, ver: <www.youtube.com/

watch?v=kFLt0duNrgc&feature=youtu.be>, <www.youtube.com/

watch?v=h3fokzCAIPw>, <www.youtube.com/watch?v=4W8jyEI1wWQ> e <www. youtube.com/watch?v=Tsm-YrGXes8>.

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De um lado, populariza-se o “faça você mesmo”, gerando consumidores com parcas exigências de qualidade. De outro, a marcenaria fina sofre muito com a concorrência da produção industrial, corroendo a “religião da qualidade”. Como resultado, mesmo as fábricas tradicionais, como a própria Stanley, permitem uma queda considerável nos seus padrões de qualidade. Nos Estados Unidos, por quinze dólares comprase uma cópia feita na China ou na Índia da Stanley número 5. A empresa continua fabricando a mesma número 5 que vende por cerca de cem dólares – mas a qualidade não é a de antes. Para um mercado altamente sofisticado, a versão desta plaina fabricada em bronze pela Lee Nielsen custa 460 dólares. As três plainas são morfologicamente idênticas, mas as diferenças de acabamento e precisão explicam as diferenças de preço de cada uma. Enquanto isso,

a indústria germânica continua produzindo suas refinadas plainas usando lignus vitae (pau santo) para a soleira e beech (faia) para o bloco. Em paralelo ao aparecimento de tornos, fresas, serras circulares, serras de fita etc. era inevitável que também a tarefa de produzir uma superfície plana pudesse ser feita com máquinas. Entrando no capítulo das máquinas operatrizes, as plainas fixas ou desengrossos são uma consequência natural dos avanços das máquinas-ferramentas. A mão não consegue igualar a velocidade de produção das máquinas, além de exigir muito mais destreza. A velha plaina ficou restrita a trabalhos de natureza mais artesanal ou artístico. Para fazer frisos e molduras, aparece a tupia, seja de mão, seja fixa. Na verdade, não passa de uma navalha giratória sobressaindo de uma mesa. O inverso do perfil da navalha será reproduzido na peça que nela toca.

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Quantas plainas tem o marceneiro? Marceneiros refinados hoje em dia, como há um século, têm muitas plainas em suas oficinas, mesmo que não sejam colecionadores. De fato, cada tarefa pede uma diferente. A grande maioria das plainas foi desenhada para produzir uma superfície plana. Mas isso não quer dizer que uma só seja suficiente para realizar a tarefa. Peças curtas requerem plainas pequenas, que podem ser operadas com uma só mão. Em luteria, na fabricação de instrumentos de corda, usa-se uma grande variedade de plainas minúsculas, bem menores do que as mãos que as empunham. Para lidar com as peças longas, as plainas antigas tinham uma soleira bem mais alongada, com até 1 metro. São as chamadas garlopas. Tanto podem ser metálicas como em madeira. No Brasil, até meio século atrás, seriam quase todas em madeira. Com o uso crescente de máquinas operatrizes, as garlopas gigantescas tornaram-se mais raras, embora ainda existam um pouco encurtadas. Hoje, as plainas mais comuns são as cópias dos modelos Stanley 4 e 5, chamados rebotes. Podem fazer o serviço das grandes e das pequenas, ainda que não tão bem ou com a mesma conveniência. Em usos normais, a superfície de corte da lâmina é reta. Contudo, em desbastes mais agressivos, são preparadas com uma razoável convexidade. São as

plainas desbastadoras. É uma diferença importante, mas não chama a atenção visualmente. Na preparação de encaixes do tipo meia madeira ou espigas, há um ajuste final que, com vantagens, pode ser feito com uma plaina. Na sua arquitetura convencional, as lâminas não atingem a largura total do corpo da plaina. Assim, plainando uma espiga, há vários milímetros de material que permanecem inatingíveis pelo objeto. Para lidar com essa limitação, foram criadas plainas em que o ferro é tão largo quanto o corpo da ferramenta. Resolvido o problema. Tais plainas são chamadas de guilhermes (guillaume, em francês). Algumas são estreitas (2 a 3 cm) outras têm largura normal (entre 4 e 6 cm). Até aqui, estamos lidando com diferentes tamanhos e variações de detalhes construtivos. Mas há diferenças maiores. Antes do aparecimento das tupias, para produzir o perfil de um friso era necessário usar uma plaina cujas lâmina e soleira tivessem o inverso do perfil desejado. Mesas, armários e muitos outros móveis têm perfis nas suas bordas. Como se pode verificar facilmente, a coleção de perfis usados é muito grande. Daí a necessidade de o marceneiro ter dezenas de plainas desse tipo, cada uma para um perfil. No caso de ranhuras e de machos e fêmeas, há plainas equipadas com guias, escoras ou réguas ajustáveis. São chamadas goivetes. Guiada por essas escoras, a ferramenta desliza em paralelo

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abaixo: Garlopa Lie Nielsen,

página ao lado, esquerda: Garlopa

página ao lado, direita: Plainas para

esmerada.

século XX.

diferente. As imagens são de peças antigas,

contemporânea, de construção

alemã, provavelmente do início do

produzir perfis. Cada tipo requer uma

mas ainda hoje se constroem ferramentas semelhantes, seja em fábricas, seja artesanalmente.

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ao comprimento da peça. Inevitavelmente, sua construção é bem mais complicada. Ainda assim, só podem produzir o único tipo de perfil para o qual foram construídas. Para substituir armários cheios de plainas diferentes, surgem,na segunda metade do século XIX, as plainas universais (Stanley 45, 50, 52 e muitas outras), oferecendo uma solução alternativa para lidar com a variedade de perfis com que se defronta um marceneiro. Uma mesma plaina (totalmente metálica) pode receber ferros com qualquer contorno desejado. Na verdade, essas ferramentas eram vendidas já com uma boa coleção incorporada. Embora tenham sido inventadas na segunda metade do século XIX, foram produzidas até recentemente. Muitas chegaram até o Brasil. Ter somente uma plaina, ao invés de muitas, parece uma boa ideia. Contudo, elas são complicadas, difíceis de operar, e é fácil perder as dezenas de peças móveis que as acompanhavam. A mecanização da marcenaria mudou completamente o panorama dessas ferramentas. Somente puristas e tradicionalistas ainda mantêm coleções de plainas com o perfil dos frisos que querem realizar ou então uma plaina universal. A tupia, seja de mesa, seja portátil, revolucionou esse aspecto da profissão, tornando obsoletas as centenas de plainas “de uma nota só”, bem como as complicadíssimas versões de múltiplas lâminas. Viraram caros objetos de coleção.

Uma plaina curiosa é a de número 115 da Stanley, a plaina de volta (em inglês, compass plane). Em vez de ter uma soleira rígida, esta é uma chapa de aço delgado e flexível. Um parafuso e um sistema de alavancas permitem mudar sua geometria. Torcendo para um lado, teremos uma soleira convexa. Torcendo para o outro, fica côncava. Foram criadas para a construção de carroças. Hoje não passam de objetos de desejo por parte dos colecionadores. Os toneleiros ou tanoeiros têm suas plainas especializadas para a construção de barris de madeira. Plainam curvas e não retas. Uma curiosidade do século XIX é uma plaina cujo objetivo não é o que acontece com a peça trabalhada, mas a fita ou o cavaco que produz. Sua geometria é tal que, em vez de produzir uma fita plana, ela se enrosca sobre si mesma. O resultado é uma tripa helicoidal. Na verdade, é a versão em madeira do que produzem tornos de metal. O objetivo desse enrolado, com um palmo de comprimento, é acender lampiões de gás nas ruas ou nas casas.

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ao lado: Raspilhos são plainas muito

na página ao lado:

peças curvas. Os dois primeiros, mais

em tábuas (como machos e fêmeas).

curtas que servem para trabalhar

antigos mas ainda fabricados, têm estrutura em madeira. O terceiro é

em ferro fundido e corresponde ao

Têm guias para manter o paralelismo do corte.

modelo que se tornou padrão.

Plaina Stanley 52, uma das muitas

abaixo: Tupia de fundo, usada para

Em vez de uma plaina para cada perfil,

acertar o fundo de uma ranhura.

A imagem mostrada é de uma peça antiga. As modernas são todas em ferro fundido.

Na verdade, não é o único caso de plainar para usar a fita produzida, pois esta pode ser usada como filtro para eliminar partículas do ar. Os cowpers que esquentam e insuflam ar nos altos fornos usavam essas fitas de madeira tiradas manualmente na plaina. Uma ferramenta ainda usada é a plaina ou tupia de fundo (ou de caneluras). Sua função é obter uma superfície plana no fundo de uma ranhura, onde nenhuma plaina comum pode atingir. Tampouco o formão consegue um bom acabamento. No Brasil, eram quase sempre de madeira. Mas hoje predominam as inteiramente metálicas. Consistem numa soleira larga e plana, na qual está fixada uma ferramenta de corte em forma de L. A parte afiada dessa lâmina é paralela à soleira, sendo fixada abaixo dela. Para ser usada, desliza-se a ferramenta sobre a superfície da madeira e a lâmina nivela o fundo da ranhura.

Goivetes são plainas para cortar perfis

variedades de plainas ditas universais. a fábrica já incluía uma boa coleção.

Plaina de Volta Stanley. A soleira é uma chapa fina e pode ser ajustada para

assumir uma forma convexa ou cônica.

A lógica da plaina é impor a uma lâmina um movimento perfeitamente paralelo ao fixá-la num bloco rígido e plano. Em contraste, o formão tem infinitas formas de cortar a madeira, pois é inteiramente guiado pela mão do operador. Mas há uma solução no meio do caminho. É uma plaina de soleira bem curta, permitindo acompanhar curvas e sinuosidades da peça trabalhada, mas mantendo o ângulo de incidência. Costuma ser chamada de raspilho, rasoura ou o estranhíssimo espoquisim (será corruptela de spokeshave em inglês, nome alusivo à sua origem para fazer raios de rodas de carroça?). Entre o formão e a plaina, oferece bastante liberdade ao operador, ao contrário da plaina, cuja ação é unívoca. Como as plainas convencionais, os raspilhos podem ser totalmente metálicos ou em madeira. Em alguns, a soleira é plana. Em outros, pode ser côncava ou convexa. Uma ferramenta difícil de classificar pelos critérios aqui adotados é aquela chamada de faca de tanoeiro, faca de arrasto ou ainda plaina raspadora (do inglês draw knife). Não se poderia se classificá-lo de machado, não é golpeado. Está entre uma faca, um formão e uma plaina. O termo espanhol se traduz por “faca com dois cabos”.

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Para que ainda serve uma plaina?

No fundo, é o que dizem os espanhóis: uma faca com um cabo em cada lado. É usada para lavrar peças arredondadas ou curvas. Como requer as duas mãos, a peça precisa ser presa numa morsa. Como sugere a própria palavra inglesa (draw), é puxada e não empurrada. É uma ferramenta pouco comum no Brasil. Mesmo marceneiros antigos desconhecem seu uso e seu nome. Grande parte dessas ferramentas está desaparecendo. A dificuldade de dar-lhes nome em português resulta justamente de sua raridade. Desafiando, contudo, as máquinas operatrizes, sobreviveu com galhardia a velha plaina tradicional para superfícies planas. Foi a primeira a nascer e parece que será a última a morrer. Tipicamente, são os modelos Stanley, de números 4 ou 5.

Tradicionalmente, o marceneiro recebia uma tábua talhada no machado ou com uma serra de traçar manual. Era hora de entrarem em cena as plainas para tornar plana e lisa sua superfície. Com serras de precisão, desengrossos e lixadeiras, essa tarefa penosa quase desapareceu. Que serviços haverá sobrado para a plaina? Na realidade, não são poucos. Na marcenaria contemporânea, a grande concorrente da plaina é a lixa – manual ou motorizada. Muitos tipos de acabamento podem ser feitos com lixa, mas tende a ser um processo mais trabalhoso e imperfeito. Para um marceneiro clássico, a lixa é a última alternativa, seja pela lentidão do trabalho, seja pelo baixo status. Uma plaina bem afiada e usada por mãos competentes produz uma superfície mais lisa do que se consegue com o desengrosso ou a lixa. Na marcenaria fina, não é pouca a proeza. A esperada perfeição e paralelismo das tábuas que recebemos da serraria nem sempre se materializa. Para as peças empenadas ou encanoadas, a plaina oferece o remédio, pois não podem ser retificadas no desengrosso. Quando se encontram duas peças, raramente estão exatamente no mesmo plano. Algumas passadas da plaina manual resolvem o problema. Na verdade, nem sempre cortamos a peça exatamente do tamanho desejado, sobretudo se

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ao lado: Encaixe de desenho típico japonês.

abaixo: Encaixe rabo de andorinha. Ao fundo, encaixe borboleta.

na página ao lado:

Plaina raspadora (em inglês, draw

knife), uma ferramenta para trabalhar pés de cadeira ou raios de carroça. É pouco comum no Brasil.

A posição do cabo pode variar, embora as lâminas sejam semelhantes.

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Guilherme, uma plaina cuja lâmina tem a mesma largura do corpo da

ferramenta. Usada para o ajuste fino de espigas.

devemos respeitar as dimensões do projeto. Aliás, para precaver-se do erro de cortar demais, costuma-se deixar uma margem de segurança. A plaina, cortando décimos de milímetro por vez, sem sustos, permite ir chegando à dimensão desejada. Após serrar as peças, é preciso eliminar as marcas de sua lâmina. Novamente, é trabalho para a plaina, embora nas fábricas isso tenda a ser feito por lixadeiras fixas, em que desliza uma cinta têxtil, impregnada com abrasivos próprios para lixas. A serra produz arestas vivas. Não são visualmente atraentes e deixam felpas, que costumam furar os dedos. Usando uma plaina, quebramos minimamente essas quinas ou formamos um chanfro bem largo. É a estética quem decide quanto cortar. Preparando uma espiga, fazemos para ela uma ranhura na qual deve entrar sem folga, mas sem precisar de golpes de martelo, que podem rachar a peça. Entra em cena a plaina para desbastar levemente, até que o ajuste seja perfeito. No caso, usamos um guilherme, cuja lâmina é tão larga ou maior que o corpo da plaina. Isso porque devemos desbastar toda a espiga, e não apenas a parte em que chega a lâmina de uma plaina comum.

No dia a dia da bancada, novas tarefas vão aparecendo. O progresso técnico não expulsou a plaina da bancada dos marceneiros. Ela continua lá e encontra usos frequentes. É a ferramenta queridinha dos tradicionalistas que estão sempre em busca de uma tarefa que justifique sua presença. Mencionamos que, ao contrário do formão, pilotar uma plaina é tarefa semelhante à do maquinista de trem. Como é o trilho que determina a trajetória, é a geometria e regulagem da plaina que fixam o trabalho que fará. Não é fácil usar uma plaina. Pelo contrário, é uma ferramenta cheia de caprichos. Para início de conversa, sua preparação prévia é crítica. Numa plaina caríssima, o fabricante estima que, após tirá-la da caixa, é preciso investir meia hora para que esteja pronta para cumprir seu papel. Uma plaina considerada boa pode requerer pelo menos uma hora de trabalho. Com plainas baratas, haja tempo e competência para afiná-las! Há quem afirme que mais vale recuperar uma plaina de meio século atrás, quando eram mais bem feitas, do que afiar uma plaina nova de má qualidade. Vencida com sucesso essa primeira tarefa, o trabalho fica muito simplificado. Mas os desafios não

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cessam. Uma ligeira torção ao empunhá-la resulta numa superfície que não está em ângulo reto com o plano da tábua. Ao começar o corte, a plaina deve estar perfeitamente paralela à tábua e devemos aplicar mais força na parte frontal da ferramenta. Caso contrário, preparamos uma superfície curva e não reta. Ao chegar ao fim do seu curso, deve haver mais força na mão que está atrás, para evitar que corte demais ao final. É da natureza da madeira que nem sempre as fibras sejam tão bem comportadas. Ou seja, recusam-se a seguir retas, no mesmo plano. Se a plaina “desce” na fibra da madeira, o corte é limpo. Mas se vai “morro acima”, em vez de cortar, a lâmina arreganha as fibras, esfolando a madeira e gerando um acabamento irregular. Ao notar que estamos “na contramão” da fibra, é preciso inverter a direção do corte. Melhor é examinar a peça antes e decidir em que direção começar. E o que fazer com as peças que, a meio caminho, muda a direção das fibras? Essas piruetas da fibra são a beleza da madeira, mas oferecem um pesadelo para o marceneiro. Plainar uma peça de topo é bem mais difícil, além de exigir uma ferramenta muito bem afiada. É preciso interromper o corte antes de chegar ao fim. Senão, há o risco de lascar a peça. Inverte-se então a direção do corte, para completar o serviço. Em suma, a plaina parece fácil de ser manejada, mas não é. Leva-se tempo para afiá-la. Não obstante,

mesmo um principiante pode obter bons resultados, se corretamente instruído e enfrentando as tarefas menos árduas.

Os raspadores Na ordenação nobiliárquica das ferramentas, os raspadores são os plebeus: sem sofisticação e sem charme. Mas nem por isso podem estar ausentes em uma oficina. Podemos até dizer que são os injustiçados da marcenaria. No fundo, um raspador é uma lâmina de aço com uma quina viva preparada para raspar. Mas a maneira de usar essa lâmina varia imensamente, gerando uma grande variedade de soluções.

A história dos raspadores Podemos presumir que os raspadores estão entre as primeiras ferramentas utilizadas pelos hominídeos. Qualquer objeto com algo que se pareça a um corte afiado deve haver sido usado para raspar a carne e o pelo das carcaças de animais caçados ou encontrados. O sílex lascado produz lâminas muito afiadas, gerando uma ferramenta de excelente qualidade. Mas até ossos, conchas e outros materiais se prestam para tarefas de raspar uma superfície.

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Com os avanços do aço e suas têmperas, os raspadores metálicos passam a fazer parte da caixa de ferramentas de qualquer carpinteiro ou marceneiro. Não se deseja muita dureza do aço. Pelo contrário, são afiados inicialmente com limas e, depois, com as mesmas pedras usadas para formões e plainas. Se fossem mais duros, sua afiação seria mais demorada. No fundo, não vão muito além de uma lâmina de aço com quinas vivas. Não passam de um retângulo de aço laminado e temperado. Mas os cabos, quando existem, podem ser muito diferentes.

Um raspador para cada uso Caminhemos por partes na descrição dos muitos tipos de raspadores – primeiro a anatomia do corte do raspador, depois a variedade de cabos existentes. Uma plaina (ou um formão) corta tirando uma fatia do material. Não é diferente de apontar um lápis com um canivete ou descascar uma laranja. Já os raspadores funcionam por um princípio diferente. Ao deslizarem sobre a peça a ser trabalhada, deslocam e empurram o que houver de irregular acima de sua superfície – tinta velha, por exemplo. Ou, então, rasgam as fibras soltas da madeira que sobressaem. Por aparar as irregularidades encontradas, deixam uma superfície mais lisa. Mas, ao contrário de formões ou plainas, não se corre o risco de penetrar na madeira, criando cicatrizes indesejadas. Pelo contrário, mercê de

sua anatomia, permanecem nivelados com a superfície da madeira. Isso acontecerá com qualquer tipo de lâmina. Mesmo cacos de vidro fazem esse trabalho, até com relativo sucesso. Na boa tradição da marcenaria, entretanto, a forma de afiar a lâmina do raspador sofreu uma discreta, ainda que radical, transformação. A rigor, uma lâmina em ângulo reto, com a quina bem viva, faz o serviço. Mas é possível melhorar. Começa-se retificando as superfícies da lâmina, tanto a parte plana quanto sua aresta. Inicia-se o trabalho com a lima, passando depois às pedras de afiar, até que as duas superfícies se encontrem sem qualquer abaulado. Em seguida, prendendo o raspador numa morsa, deslizamos sobre a aresta uma ferramenta de aço polido, como a haste de uma chave de fenda grande. Progressivamente, inclinamos a haste, para que toque apenas na borda da aresta. Por tratarse de um aço com têmpera relativamente suave, ao deslizar, a haste cria um repuxado. É uma minilâmina. Mal se vê a olho nu. Mas, passando a unha, notamos a saliência. Essa nova borda, de aparência tão insignificante, muda a natureza do corte. Passa a ser mais parecido com o de um formão ou de uma plaina. Ao deslizar sobre a madeira, corta, em vez de dilacerar as fibras. Mantido o ângulo correto, é uma miniplaina. Sendo uma superfície de corte muito curta, não penetra na madeira. Como sua superfície de corte é muito

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Raspador Stanley com cabo

na página ao lado: Coleção de

ferramenta sempre perfeitamente

perfis variados, para se ajustar a

pivotante, para manter a soleira da paralela à peça trabalhada.

raspadores de aço-carbono com tarefas diferentes.

Raspadores em aço-carbono, com

cabo improvisado pelo marceneiro.

curta, não penetra na madeira, portanto não faz os estragos de uma plaina cortando ao arrepio da fibra. E, obviamente, é muito mais eficiente do que a lixa. Puristas poderiam contestar o nome da ferramenta, já que vira uma plaina. Ou seja, corta, em vez de raspar. Mas deixemos de lado tais questões. Quando o objetivo explícito é remover alguma coisa de uma superfície bem lisa, há raspadores cuja lâmina pode ser semelhante à de uma faca, ou seja, afiada tradicionalmente. Raspadores assim são mais usados para tirar tinta de chapas metálicas ou vidro, já que não há o risco de uma penetração mais profunda e indesejada. Na marcenaria, há superfícies que não são planas. Nesse caso, usamos raspadores cujo perfil se adéqua à tarefa. Podem reproduzir, ao inverso, as sinuosidades de uma moldura. Podem ser curvos ou pontudos, para chegar a reentrâncias impossíveis para outras ferramentas. Se

não temos um com perfil exigido, com esmeril e lima, adaptamos um raspador velho para a nova tarefa. De algumas décadas para cá, aparece uma nova estirpe de raspadores. São conhecidos pelo nome dado pelo fabricante: Surform. No fundo, não passam de ferramentas semelhantes aos raladores de queijo parmesão: uma chapa de aço com dentes salientes e cortantes. Passando agora aos cabos dos raspadores, é grande sua variedade. A principal função deles é poupar as mãos dos marceneiros. De fato, raspar a pintura de uma porta inteira é tarefa para muitas e muitas horas. Os cabos mais simples são peças de madeira fixadas numa borda das tradicionais raspadeiras retangulares. Nada mais do que isso. Muito comuns são os raspadores com uma haste de madeira, como se fosse um pedaço de cabo de vassoura com um bloco na extremidade. Nele, há um sulco para a lâmina e um parafuso de fixação. Pela sua geometria, são puxados, e não empurrados. Alguns furos acima em complexidade estão os raspadores montados num chassi metálico ou de madeira e que fixa o ângulo de incidência da superfície cortante. Na verdade, são ferramentas muito próximas das plainas. Um parafuso ou cunha mantem a lâmina fixa na ferramenta. Sua soleira é muito semelhante à das plainas. Seriam plainas, não fossem duas diferenças. A primeira é a afiação da aresta. São afiados como raspadores, e não como plainas, portanto raspam

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mais do que cortam. A segunda é que o ângulo da lâmina é mais rombudo, mais em pé do que a das plainas. Alguns são construídos com blocos de madeira e usam cunhas semelhantes às de uma plaina. Outros têm uma lâmina ondulada, pois são usados para preparar as peças que vão receber um revestimento colado. Às vezes são chamados de plainas de dentes ou de arranhar. Há versões construídas como raspilhos, com os clássicos cabos em forma de asas. Existe também um tipo com chassis metálico e um cabo longo. Sua característica marcante é que o cabo pivota no chassis. Assim, ao ser puxado, o ângulo de corte se mantém fixo, já que a soleira corre com perfeita aderência à superfície da peça.

Os raspadores em ação Não será muito original dizer que raspadores são usados para raspar. Seja para tirar tinta velha, seja para limpar a superfície da madeira, seu uso é frequente numa marcenaria. Devemos pensar neles como uma alternativa à plaina, ao raspilho e à lixa. A plaina deve ser a primeira a ser lembrada, pela perfeição do acabamento e pela rapidez do corte. Mas está fora de cogitação se a superfície não é plana ou a peça não dá acesso a ela. A lixa é sempre uma solução que funciona. Entra em qualquer lugar e é de fácil uso. Mas é mais lenta e não permite uma superfície tão

perfeita. Além disso, quando desejamos uma aresta viva, a lixa tende a fazê-la abaulada. Os raspadores sem cabos requerem uma pega clássica. Só funcionam com as duas mãos. Vão os polegares no centro e os outros dedos, nas bordas. Se apenas deslizamos o raspador sobre a peça, a força exercida se distribui em toda a sua extensão e não corta quase nada. É necessário vergá-lo e dar uma ligeira inclinação, para que somente a parte central raspe a madeira. Nessa posição, podem ser puxados ou empurrados, dependendo da preferência individual. Os raspadores com cabos não requerem uma técnica especial, além daquela usada para sua afiação: é encontrar o ângulo melhor, puxar e ter e paciência para concluir o trabalho. Na marcenaria, os raspadores são usados para uma ampla variedade de tarefas. São aplicações clássicas: tirar tinta, limpar superfícies e eliminar rugosidades. Aonde não chega a plaina, eles podem chegar. Em molduras e talhas, funcionam até melhor do que lixas. Um uso nobre do raspador é para lidar com superfícies em que a fibra da madeira é arrevesada – um problema crônico da marcenaria. Em vez de deixála lisa, a plaina pode piorar a situação, escalavrando tudo, pois a direção certa para um pedaço é errada para o próximo. É aí que entra em cena o raspador. Mudamos a direção da sua trajetória sempre que necessário. Nesses casos, pode dar um acabamento superior ao da lixa.

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Serra japonesa para madeira (RyobaNoko). Caracteriza-se por ter lâmina

muito delgada e dentes usinados para trás. Portanto, cortam puxando (e não

empurrando, como nas serras ocidentais).

Serras, serrotes, corrupiões e afins4 A serra faz exatamente o que a palavra sugere: serra. Nada além disso. Em compensação, reaparece com uma grande variedade de versões. Há muitos materiais que necessitam ser serrados e há muitas maneiras de fazê-lo, de acordo com o caso. Portanto, há vários modelos de serras.

História da serra Comparada com machados, martelos e raspadores, a evidência arqueológica da serra é muito mais escassa. Possivelmente porque era muito precário o que seria possível construir antes dos metais. Foram achadas em pesquisas arqueológicas facas que parecem ter um serrilhado na superfície de corte, bem como pedacinhos de sílex ou dentes de peixes incrustrados em peças de madeira. Mas nada disso parece muito convincente para a tarefa de serrar. Na melhor das hipóteses, as primeiras serras serviam para cortar na transversal. Para cortes ao comprido da fibra da madeira, as cunhas eram usadas para rachar a peça.

4 A presente seção e a próxima, que tratam de serras motorizadas, se beneficiam do livro publicado pela empresa Henry Disston & Sons, The saw in history

(Philadelphia: Disston, 1919). O fundador da empresa, o próprio Disston, está para as serras como Stanley está para as plainas.

Em grande medida, antes do ferro, a serra não era uma fórmula viável. Mesmo quando passaram a ser feitas de cobre, faltava-lhes dureza para ser eficaz. Com o domínio do ferro e, depois, do aço, tudo muda de figura. No período da Roma clássica, começam a aparecer muitas soluções para serrar. Os modelos são bastante variados, prenunciando o que viria depois. Assim, algumas direções já podem ser discernidas. Na época, a metalurgia não permitia uma lâmina resistente e também delgada. A fina que se conseguia fabricar, por ser débil, se empurrada, travava na madeira e vergava. E lâminas espessas cortam muito lentamente. Diante dessa restrição tecnológica, três caminhos são tomados. Um deles é colocar um reforço de metal no seu dorso. Com isso, obtém-se a rigidez desejada. De resto, a serra de costas que temos hoje é exatamente isto: uma lâmina muito fina e um reforço de ferro ou latão no seu dorso. A desvantagem é que a serra só corta peças mais estreitas do que a distância entre os dentes e as costas. A outra solução é usinar os dentes de modo que cortem na puxada da serra, e não ao empurrá-la. É a solução clássica das serras japonesas. Puxando, elimina-se o problema de a serra entortar, sem abrir mão de lâminas delgadas. A desvantagem dessa opção não está na serra, mas na maneira de fixar a peça a ser cortada. Ela tem que ser bem fixada em algum cavalete ou morsa. Não basta seu peso – unido ao do joelho do marceneiro –, como no caso das serras que cortam

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Serrote tradicional, popularizado

pela fábrica americana Disston. Seu desenho tem mais de um século e

continua sendo produzido e vendido.

empurrando. Portanto, é mais trabalhoso. Assim que avançou a metalurgia, tal solução foi abandonada no Ocidente. A terceira alternativa é retesar a serra por meio de um arco. Presa nele, tanto faz se é puxada ou empurrada. É a serra de lâmina tensa. Essa solução sobrevive até hoje, sendo mais comum no norte da Europa. Daí que se encontram com mais frequência nas regiões brasileiras de imigração alemã. É mais conhecida no Brasil como serra de traçar ou serra de são José. Esses três tipos se difundem pelo mundo e sobrevivem até hoje. Independente do tipo de serra, um avanço importante, já do período clássico romano, é a técnica de travar os dentes. Ou seja, um é entortado para um lado e, o seguinte, para o outro. Assim conformados, os dentes abrem um sulco mais largo do que a espessura da lâmina, que não engasga no rasgo que está abrindo. A operação de travar os dentes leva ao desenvolvimento de uma coleção de ferramentas próprias para essa tarefa. A Revolução Industrial traz avanços na metalurgia, tornando possível produzir um serrote delgado e que pode cortar ao empurrar. É chamado de serra de lâmina livre. Essa mudança na qualidade da lâmina provoca um avanço interessante no desenho do cabo. Desde antes da metalurgia, a serra era não mais do que uma faca dentada, como as atuais facas de cortar

pão. No século XVIII, em vez de um cabo oblongo, adota-se um desenho semelhante à empunhadura de um revólver ou pistola. Pensando bem, se a serra tem que ser empurrada, um cabo como o de uma lima ou chave de fenda é bem menos conveniente. Adota-se então o cabo que conhecemos até hoje: o dos serrotes. Em meados do século XIX, definem-se desenhos e modelos clássicos de serrotes, que mudaram muito pouco desde então. O americano Disston torna-se para os serrotes o que Stanley virou para as plainas: a referência que todos copiam. É o modelo vencedor entre as serras manuais. De tão ubíquos, um uso novo e inesperado é encontrado para os serrotes: podem ser tocados com um arco de violino, produzindo um som muito peculiar. Ao dobrar-se sua lâmina, varia a nota produzida. Muitas composições para serrote foram criadas, e até hoje se promove um festival de músicas executadas neles. Inicialmente, serras compradas nas lojas de ferragens eram utilizadas. Com o tempo, chegam a aparecer, nos Estados Unidos, dez fabricantes de serrotes só para música. Marlene Dietrich frequentemente se apresentava tocando tal “instrumento musical”.5 5 Exemplos de música com serrotes:

<www.youtube.com/watch?v=zo97E2H2Ec8>, <www.youtube.com/

watch?v=3F9PVM-Yg0k>, <www.youtube.com/watch?v=cHP9YBNK5AU>, <www.youtube.com/watch?v=Hm1vUU52JAE> e <www.youtube.com/ watch?v=7E_U1xyK7Gw>.

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Numa Europa segmentada, cada pequeno reino tinha seu estilo de serrote. Enquanto se tratava de uma manufatura artesanal, isso não importava. Nasce o problema quando, em meados do século XIX, as ferramentas passam a ser produzidas em grandes fábricas. Como os mercados passam a ser continentes, e não mais sub-regiões de um país, Goldenberg, a tradicional fábrica alsaciana, se vê obrigada a ter no seu catálogo de 1.901 dezesseis modelos de serrotes, cada um atendendo a um pedacinho da Europa. Daí em diante, todavia, há uma reversão nessa balcanização dos desenhos de serrotes e outras ferramentas. É o início da globalização dos mercados. Reduzem-se as variantes de desenho e poucos modelos se difundem pelo mundo afora. Em paralelo a todas essas mudanças, a qualidade dos aços não para de evoluir, bem como suas têmperas e ligas. O chamado aço rápido resiste ao calor gerado pelo uso de motores, no caso das serras circulares. Cada vez mais as diferenças entre serras se resumem no desenho dos dentes, e cada uma é mais apropriada para uma tarefa ou tipo de madeira. Na verdade, os grandes progressos recentes estão no perfil dos dentes. São hoje muito decantados aqueles usados nas serras japonesas. Com a mecanização, evoluem as serras circulares, dispensando a força humana. É outra era que se inaugura. Felizmente, são camadas tecnológicas que

se sobrepõem, convivendo o arcaico, o tradicional e o moderno. Um serrote igual aos do século XIX convive com serras portáteis a bateria, para não falar de serras circulares que pesam meia tonelada.

A grande família das serras6 Como mencionado existem hoje quatro tipos principais de serras manuais. A serra de costas (ou serrote de dorso reforçado) é a alternativa clássica para fazer encaixes, pela sua precisão e pela estreiteza do corte. A lâmina delgada ganha rigidez pela chapa metálica encastrada no seu dorso. É pequena e relativamente fácil de ser manejada, mas sua desvantagem já era conhecida pelos romanos: não permite serrar peças largas, pela presença do reforço. Sua versão japonesa, o dosuki, está se popularizando no Ocidente, pela eficácia dos seus dentes numa lâmina muito delgada. A serra que corta ao ser puxada foi abandonada na Europa, mas volta às marcenarias e aos amadores sofisticados aquelas de origem japonesa, chamadas Ryoba-Noko. Seu uso hoje se difunde pelo mundo, chegando ao Brasil por competições internacionais

6 Para exemplos, ver: <www.youtube.com/watch?v=zo97E2H2Ec8>,

<www.youtube.com/watch?v=3F9PVM-Yg0k>, <www.youtube.com/

watch?v=cHP9YBNK5AU>, <www.youtube.com/watch?v=Hm1vUU52JAE> e <www. youtube.com/watch?v=7E_U1xyK7Gw>.

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Serra de costas, modelo que persiste através dos séculos, com mínimas variações.

Serra de traçar, ou de são José.

Comum no norte da Europa, mas presente no Brasil.

Serra de recortes ou tico-tico. Permite cortar curvas muito fechadas.

– no caso, a World Skills. Por ter uma lâmina muito delgada, é ótima para encaixes e trabalhos de precisão. É, contudo, uma serra difícil de ser usada. Como não é travada e abre um sulco estreito, não permite corrigir a direção do corte. A serra de traçar (ou serra de lâmina tensa), também conhecida no Brasil e na Itália como serra de são José – por alusão às imagens do pai de Jesus Cristo em sua oficina –, é uma ferramenta apreciada na Europa, sobretudo no norte. É versátil, corta em linha reta ou em curva e pode ser construída com ferramentas simples. Estrutura de madeira em forma de H, tem, de um lado, uma lâmina estreita e, de outro, uma corda ou tirante. Ao ser retesada, transmite o movimento à outra extremidade dos sarrafos, onde está a lâmina. Como resultado, o conjunto fica bastante rígido. É uma solução simples e elegante. De fato, usá-la com destreza é uma arte a ser aprendida. Não dá para improvisar. Na nossa tradição de trabalhos em madeira, a serra está quase sempre ausente, mas manejá-la ainda faz parte dos cursos de marcenaria do norte da Europa.

Uma de suas primas é a serra de recortes ou ticotico. Ela é muito menor, usa um arco metálico e lâminas muito finas. Serve para cortar arabescos de qualquer tamanho e também são usadas em joalheria para recortar chapas finas de latão, alpaca, prata ou ouro. Em anos recentes, o arco em forma de H deu lugar a serras com um tubo de metal em forma de C. São ferramentas para poda de árvores e outros serviços. Finalmente, falemos da solução que ganhou mundo e praticamente se universalizou: o serrote clássico, difundido pelo inglês Disston. É produzido em vários tamanhos e vem em dois modelos: um para serrar ao longo da fibra, com dentes maiores e mais agressivos, e outro para cortar transversalmente, com dentes menores. Alguns são mais estreitos e pontudos, outros são largos e pesados, para cortar tábuas maiores, com mais rendimento.

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Serra de traçar usada por duas

pessoas para cortar árvores ou abrir tábuas. Ainda usada em sociedades mais primitivas. Ilustração de um modelo médio.

O fato de serem travados permite pequenas correções de rumo. Portanto, são ideais para quem ainda não dominou completamente a arte de serrar. É difícil imaginar uma oficina em que serrotes não estejam presentes. Contudo, as serras circulares, estacionárias ou portáteis, fazem concorrência acirrada a essa ferramenta do século XIX. Cada vez mais, as manuais perdem espaço. A etimologia do nome serrote sugere sua pequenez. De fato, tem sua contrapartida nas longas lâminas, com dentes gigantes, usadas para desdobrar troncos em tábuas ou mesmo para cortar árvores. Algumas podem ser manobradas por uma só pessoa, mas as mais comuns precisam de duas. Em algumas, um carpinteiro fica de um lado da peça serrada e, um segundo, do lado oposto. Em trabalhos maiores, há um andaime ao qual o tronco fica apoiado, de modo que um operador fica em cima e o outro fica embaixo. É conhecida no Brasil como corrupião ou serra de traçar. Nesse caso, ficar na posição inferior é menos desejável, pois recebe no rosto a serragem que vai sendo produzida. Em regiões do mundo mais atrasadas, tais serras são ainda utilizadas.

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Furador japonês contemporâneo

e sovela de manufatura artesanal

brasileira. São as ferramentas mais básicas para fazer furos.

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3. O imperialismo do movimento giratório A história das ferramentas tem uma de suas origens na primeira tentativa de girar uma ponta de osso para perfurar uma pele. As ferramentas têm uma de suas origens na primeira tentativa de girar uma ponta de osso para perfurar uma pele. Ao girar o punho para furar alguma coisa, os hominídeos dão o primeiro passo na criação de uma vitoriosa família de ferramentas que se servem do movimento giratório para cortar. Quase todas as ferramentas de mão agem com um movimento linear: o machado e o enxó golpeiam, a faca e o formão cortam ao serem empurrados em linha reta, assim como a plaina. Com o serrote não é diferente. Na contramão dessa vasta coleção de ferramentas está a humilde sovela, que penetra ao ser girada. Segue-se a ela uma sequência de ferramentas que fazem o mesmo, com cada vez mais competência. Ou seja, em vez de movimento linear, a ferramenta gira. Nas ferramentas manuais, girar era uma exceção. Quase sempre, cortavase batendo ou empurrando. Tal contorcionismo era a característica única da furadeira. Tal contorcionismo era a característica única da furadeira. No que segue, retornamos à origem das ferramentas que furam, acompanhando seu desenvolvimento. Em seguida, descrevemos a transição das ferramentas manuais para as máquinas operatrizes. Ficamos no presente capítulo com a madeira e suas ferramentas. Adiante, entramos na mecânica e nos metais.

As furadeiras A partir do momento em que nossos antepassados começam a usar pedras para quebrar e cortar, é razoável supor que usaram também ossos pontiagudos para furar. Por exemplo, furar as peles dos animais caçados para fabricar as fundas em que se penduravam os bebês no corpo da mãe. Tudo isso, em tese, se deu há cerca de 2 mil anos, mas não há vestígios dessas antigas sovelas ou coisas no gênero. Não obstante, furar sempre foi uma operação essencial no trabalho com madeira, peles e outros materiais. Mais adiante, entram em cena os metais, também com necessidades de furos. As furadeiras pertencem à categoria das três ou quatro ferramentas fundamentais numa oficina.

A história das furadeiras Pela sua simplicidade, a sovela deve ter sido a primeira ferramenta dedicada a furar. É uma receita imutável: uma ponta dura e um cabo para dar melhor pega. Ademais, sovela e agulhas são ferramentas essenciais para costurar as peles que protegiam nossos antepassados dos rigores do clima ao fim da Idade Glacial. Para furar a madeira, no entanto, a eficácia de uma sovela é muito limitada. Para conseguir melhores resultados, emergem duas vertentes de

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Trado, usado ainda hoje, na

página ao lado:

fazer furos.

para furar madeira.

construção civil e naval, para

Verrumas, a mais modesta ferramenta

da esquerda para a direita: Furadeira

com eixo helicoidal. Para operá-la, devese empurrar para baixo a peça móvel.

Ferro de pua ajustável, permitindo fazer furos do diâmetro desejado, como uma única ferramenta.

Ferros de pua tradicionais, ainda usados na marcenaria.

furadeiras com vida paralela, mas não muito bem documentadas, dada a exiguidade dos testemunhos arqueológicos. São a furadeira de arco e o trado. Curiosamente, os vestígios mais antigos – achados arqueológicos e desenhos – mostram a primeira aparecendo antes do trado, apesar de ser uma ferramenta mais complexa. Mas faltam provas definitivas de sua precedência no tempo. É razoável pensar uma evolução natural do gesto de girar um bastão com a palma das mãos. Se houver uma ponta apropriada, é uma primeira furadeira circular. De resto, é a mesma técnica usada para fazer fogo. Possivelmente, essa solução evoluiu para um arco, com uma corda fina presa nas duas pontas e com algumas laçadas no eixo. Na sua extremidade, há uma ferramenta pontiaguda. O operador segura o topo do eixo com um calço e o empurra para baixo. Com a outra mão, avança e recua o arco, como se estivesse tocando um violino. Dessa forma, o eixo gira, ora numa direção, ora noutra. Uma ponta afiada é comprimida contra a peça a ser furada, permitindo que a rotação faça o furo. Como antigamente não havia outras formas de fixação, tudo era amarrado com tiras de couro ou outro material. Assim eram os móveis egípcios. Portanto, as furações eram vitais para a integridade do que quer que se estivesse construindo. Tanto quanto se pode deduzir da magra evidência disponível, os gregos também usavam essa furadeira. Em contraste, não há notícias de que usassem o trado, bem mais simples. Os romanos

também a usavam. De fato, parecem ter sido os primeiros a usar um arco curvo. Datada de cerca de 3 mil a.C., essa furadeira de arco ainda é usada não apenas em sociedades primitivas, mas em joalheria. Ainda no período romano, o arco começa a ter um concorrente: uma broca, que hoje chamaríamos de trado e que tem uma haste transversal no topo. Girando esse cabo, o operador consegue perfurar o material desejado. Com o progresso, a superfície de corte passa a ter o formato de uma colher com arestas afiadas. Esse tipo de trado ainda pode ser encontrado em brechós e antiquários. Trados com lâmina em forma de colher tornaramse populares na construção de barris. Não nos esqueçamos de que os tonéis eram a forma mais usual de transportar líquidos. Até hoje persiste sua manufatura artesanal, e os trados cônicos, de diferentes tamanhos, ainda são usados. Em meio a todos esses avanços, há o risco de esquecer de uma modalidade humilde e que sobrevive aos séculos: a verruma. Trata-se de um trado muito fino usado para fazer furos para parafusos cônicos, os típicos usados em madeira. Até hoje estão nas lojas. Mas, com o barateamento das furadeiras elétricas, é incerta sua sobrevivência. Com um maior domínio da usinagem, as ferramentas evoluem de forma significativa. Ao girar o cabo do trado,

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o operador precisava também aplicar considerável força para baixo, forçando a superfície de corte a penetrar na madeira. Era algo muito penoso e os resultados demoravam a aparecer. Entra em cena uma broca cônica na ponta do trado, nada diferente de um parafuso de hoje ou de um saca-rolhas. Ao girar, suas estrias avançam, penetrando na madeira. A partir de certo momento, deixa de ser necessário exercer pressão sobre o trado. Como é o caso dos parafusos e sacarolhas, basta torcer. Há duas lâminas transversais que incidem sobre a peça perfurada. É como se houvesse dois formões concêntricos escavando o buraco. Os trados – ainda usados na construção civil, nos barcos e nas jangadas – são muito parecidos aos de eras passadas. Ou seja, seu desenho inicial foi um avanço definitivo, mas evoluiu pouco. A evolução natural das furadeiras leva aos arcos de pua. Comparado com a haste transversal dos trados, é uma forma mais eficiente de fazer girar o ferro de pua, eliminando a intermitência. Desde 1.500 há notícias de arcos de pua, ainda usado hoje em dia com mínimas diferenças.

Trado usado por toneleiros para perfurar a lateral dos tonéis e instalar uma torneira.

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Arcos de pua. O da esquerda data

do século XIX, enquanto o da direita é contemporâneo.

Furadeiras antigas de engrenagens.

Desenhos usuais na primeira metade do século XX.

O arco elimina também a inversão de direção, no caso das furadeiras do tipo vai e vem. Isso é um passo essencial para o desenho do fio da broca. Como dito, a superfície de corte é como um formão. Se não tiver o ângulo certo, não corta. E o ângulo melhor para cortar numa direção não serve para o sentido inverso. Outra vantagem do arco de pua é que o peito pode ser usado para ajudar a empurrar o trado contra a peça que está sendo furada. Até aqui, estamos falando de três invenções significativas. A primeira é o arco e o barbante que fazem girar rapidamente a ferramenta de corte. A segunda é a evolução da broca, com seu parafuso seguido das navalhas concêntricas. A terceira é o arco de pua, que dá mais eficiência e fluidez ao movimento giratório. Isso tudo vem de longa data e sobrevive até hoje. O que é mais recente são as furadeiras com manivelas e engrenagens. Tal como na furadeira de arco, há um eixo. Numa de suas extremidades encaixase a ferramenta de corte. Na outra há um cabo, sobre o qual o operador exerce pressão, forçando a ferramenta contra a superfície que será perfurada. Em vez, entretanto, de um barbante que imprime um movimento de vai e vem, entram em cena duas engrenagens. Uma está no eixo em cuja extremidade vai a broca. A outra, perpendicular e maior, tem nela instalada uma manivela. Ao girá-la, movimenta-se o eixo. E como a engrenagem da manivela é maior, multiplica-se a rotação da ferramenta.

Essa invenção origina-se no século XIX. Tudo que veio depois é variação ou refinamento da mesma ideia. Algumas furadeiras são grandes, outras são pequenas. Há também aquelas com duas velocidades ou com velocidade variável. Um ponto crítico das furadeiras é o mandril, ou seja, o dispositivo que prende a broca ou ferro de pua no eixo. Além da busca por uma boa solução mecânica, há o desafio da padronização. Ilustrando a falta de padronização, foi encontrado um ferro de pua numa mina de ouro inglesa (em Minas Gerais), cujo corte se dá no sentido oposto ao dos ponteiros de um relógio. É um exemplo curioso. No período de evolução dos arcos de pua, ganha popularidade uma espécie de pirâmide na extremidade dos ferros. O arco tinha o oco com o mesmo desenho, as brocas se encaixando nele, sendo fixadas apenas por fricção. Mais adiante, parafusos com borboletas evitam que se solte a ferramenta. O passo seguinte é o desenvolvimento do mandril de duas castanhas, como bocas de jacaré. Sobre elas se atarraxa uma luva que força o conjunto a se fechar sobre as puas – que continuam com o mesmo formato piramidal. Com ínfimas mudanças, o procedimento é o mesmo até hoje. Com a difusão das furadeiras com engrenagens, aparece o mandril com três castanhas. Um avanço também irreversível é a introdução de um flange dentado na luva de fechamento, além de furos no seu corpo principal. Uma chave com uma engrenagem

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de mesmo passo se encaixa num dos furos e nos dentes da luva. Ao girá-la fica muito mais firme a fixação das brocas. Quando se dissemina a furadeira com engrenagens, esta deixa de ser privativa dos marceneiros e carpinteiros, migrando também para os trabalhos em metal. A mudança abre espaço para o desenvolvimento das brocas helicoidais, cujos descendentes continuam presentes em todas as oficinas. Pela sua arquitetura, tais brocas são feitas para furar metais. Contudo, sua ubiquidade leva seu uso também para a madeira, embora não sejam otimizadas para isso. Por essa razão, aparecem brocas parecidas, porém mais especializadas na furação de madeira. No tipo mais comum, uma ponta fina ajuda a localizar o furo no local certo, mas há também navalhas laterais que melhoram o acabamento da madeira quando a broca ultrapassa e sai do outro lado. De certo momento em diante, os grandes saltos se dão no metal com o qual são construídas as brocas. Até recentemente, pela sua dureza e pelo baixo preço, o aço-carbono vinha sendo a solução universal. Mas, com a motorização das furadeiras, o calor gerado tende a fazer com que percam sua têmpera, tornandose varetas de aço totalmente inúteis por perderem a dureza. Aparece então o chamado aço rápido, muito mais resistente ao calor. Ainda assim, se as furadeiras são apropriados para furar metais, revelam-se pouco duras para a pedra e a alvenaria. Surge então a Widia (do alemão

Wie Diamond, ou “como diamantes”). Seu uso inicial é nas ferramentas de torno, mas encontram lugar também nas para brocas de alvenaria e para concreto. A variedade de brocas não cessa de aumentar. Como os dentes das serras, é um campo fértil para refinamentos, ainda que sejam pouco visíveis para quem não é do ramo. As primeiras furadeiras com engrenagens podiam ser portáteis ou instaladas em estruturas fixas. Essa segunda versão permite que a pressão exercida para baixo seja obtida por uma alavanca ou pelo próprio peso da estrutura, em geral, de ferro fundido.7

As máquinas operatrizes: entrando no reino do que gira Quando a força humana começa a ser complementada com outras fontes de energia, o que era uma exceção vira a regra. Virtualmente, todas as máquinas operatrizes se servem do movimento circular para fazer seu trabalho. Por conseguinte, quanto mais o processo produtivo se afasta das operações impulsionadas pelo músculo do homem, mais entramos no reino das coisas que giram. Dizendo de outra forma, mais nos tornamos colonizados pelo que roda. 7 Ver: <www.youtube.com/watch?v=xRRj1x1AFOk>

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Furadeira manual de coluna Miller Falls. Segunda metade do século XIX.

Nas máquinas operatrizes, é preciso fazer chegar o movimento à operação-fim. É pertinente notar que ambas as etapas usam o movimento circular. Para movimentar a máquina, há motores com eixos girando e transmissões por correias, polias ou engrenagens. Para obter a boa velocidade, há reduções ou multiplicações do giro, obtidas com engrenagens ou polias. Não se consegue realizar nenhuma destas operações sem a intermediação do giro. No início do processo, um motor de combustão interna gera um movimento linear. Mas a biela e o virabrequim logo se livram dele, transformando o que era vai e vem num eixo que roda. Quando chegamos à usinagem, repete-se o ciclo de colonização da marcenaria e mecânica pelo movimento circular. Para serrar, temos um disco com dentes afiados e que gira. É a serra circular. Na serra de fita, a lâmina corre em duas polias. Para furar, temos um eixo com um mandril e uma broca que também gira. Para plainar, há um cilindro que roda com navalhas que desbastam o material. O torno é, obviamente, uma máquina para produzir peças redondas, portanto roda. Ou seja, não escapamos das máquinas que giram. Começa com a operação de trazer e domesticar o movimento requerido pela operação. Em seguida, entra a próprio processo de usinar. Portanto, quando deixamos de depender dos músculos humanos, caímos no reino da rotação. É bastante curioso que o homem não tenha conseguido domesticar o movimento, exceto fazendo as coisas girarem.

A força humana apenas permite o uso de ferramentas de mão. Com a Revolução Industrial, entram em cena a força da água, do vento e do vapor, superando a energia humana e permitindo a criação de máquinas poderosas e muito mais produtivas. Depois, os motores elétricos tornam tudo mais prático. Quase todas as máquinas operatrizes baseiam sua ação no movimento giratório. São máquinas cujo desenho se consolida no século XIX. De lá para cá, continua havendo pequenas modificações, visando aumentar sua produtividade, segurança ou conveniência. Mas, em geral, as soluções construtivas são as mesmas. Com a roda d’água ou o motor a vapor, entra na oficina um longo eixo que gira acoplado a polias e correias que fazem funcionar as máquinas. Posteriormente, é substituído por motores elétricos em cada máquina. Com a redução no tamanho e no peso dos motores, aparecem as máquinas portáteis, como furadeiras e serras. O aperfeiçoamento na tecnologia das baterias permite as máquinas sem fio elétrico. Praticamente todas elas tiveram uma evolução semelhante – das originais, pesando toneladas, até as contemporâneas, com menos de um quilo.

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O torno para madeira

Furadeiras a motor

O torno é a primeira das máquinas operatrizes. A rigor, aparece antes de haver formas de energia que não a humana, pois pode ser movido a pedal ou por um auxiliar. Assim eram os tornos na Idade Média. Até cerca de 1.900, nas fábricas pequenas havia tornos impulsionados a pedal, coetâneos aos das grandes fábricas, movidos a vapor ou elétricos. Seu funcionamento é bastante simples. A peça a ser torneada gira, presa numa placa ou mandril. Um formão ou goiva, apoiado numa barra metálica, toca na peça e vai desbastando-a. Não é muito diferente da maquininha de descascar laranja, na qual uma lâmina vai cortando uma espiral na casca. Mas, ao contrário da laranja, qualquer perfil pode ser torneado, até com relativa facilidade. Com o passar do tempo, os tornos se aperfeiçoam. A velocidade que era controlada por polias de diferentes tamanhos passa a variar em função de dispositivos eletrônicos. Por meio de pantógrafos, os tornos copiam o perfil de modelos predeterminados. Recentemente, estão se tornando mais acessíveis os formões de aço rápido ou mesmo Widias, em vez de aço-carbono. Inventam-se até tornos capazes de produzir peças não simétricas, como as coronhas de espingardas e fuzis. No pós-guerra, aparecem os controlados por computador. De certa maneira, os tornos para madeira acompanham as mesmas fórmulas de automação iniciadas naqueles que usinam metais.

Diante de furadeiras fixas e que usam alavancas para pressionar a broca contra a peça, o passo natural é fazê-las girar com um motor. É aí que surgem as furadeiras de coluna. Com a redução do tamanho dos motores, tornam-se máquinas de porte modesto e cada vez mais baratas. Historicamente, as furadeiras nascem nos trabalhos com madeira. Mais adiante, com a introdução das engrenagens, migram para a mecânica. Ocorre então mais uma migração reversa. As furadeiras desenvolvidas para a mecânica tornam-se tão convenientes e baratas que migram de volta para as marcenarias. Hoje são máquinas que tanto povoam as marcenarias quanto as oficinas mecânicas. Em 1.910, Duncan Black e Alonzo Decker eram donos de uma oficina mecânica. Sentados à mesa da cozinha, discutiam a possibilidade de inventar uma furadeira elétrica. Como eram fornecedores da fábrica de armas Colt, havia uma pistola à sua vista. Veio daí a ideia de usar uma empunhadura semelhante na máquina que planejavam. Foi um grande sucesso, e a marca Black & Decker continua vendendo furadeiras até hoje, todas com a empunhadura inspirada no revólver dos dois sócios. Esse avanço só é possível pela redução progressiva do peso dos motores, sobretudo pelo uso do alumínio. Mais recentemente, entram em cena os plásticos, e o maior rendimento das baterias permite que as furadeiras não tenham mais fios.

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Lâmina de serra circular com dentes de Widia soldados.

Serras circulares O uso de uma lâmina circular permite o salto da serra manual para a versão mecanizada, um grande avanço tecnológico. Não obstante, a força muscular humana não é suficiente para operar essas máquinas. Entram em cena, então, as rodas d’água. Os moinhos de vento também foram usados para girar serras circulares. Na Holanda, pode-se visitar um desses moinhos, com a estrutura de sua serra circular toda construída em madeira. As serras circulares fixas não passam de um mandril no qual se instala um disco de serra. Um mecanismo controlado por uma manivela ajusta quanto da lâmina emerge da mesa na qual vai deslizar a peça a ser serrada. Em madeiras espessas, a lâmina se expõe mais. Além disso, há mais dois acessórios clássicos. Um é uma régua paralela à lâmina da serra. O operador empurra a tábua, mantendo-a encostada na ferramenta para assegurar o paralelismo do corte. O outro é um guia que desliza num sulco na mesa também paralelo à lâmina. Apoiando a peça nessa escora e deslizando para a frente, garante-se um corte transversal no ângulo desejado. É interessante notar que em um século poucos avanços adicionais foram introduzidos. A serra estacionária de hoje pouco difere de outras bem mais antigas. Contudo, há avanços nos materiais com que são construídas. Se ela não precisa se mover, só precisamos nos preocupar com o peso do ferro

fundido. Mas logo ela se faz necessária nas obras e nas oficinas de amadores. Para atender a essa necessidade, a chapa dobrada, o alumínio e o plástico são cada vez mais usados. Além de aumentar a portabilidade, o preço é menor. Os motores elétricos compactos permitem o desenvolvimento das serras circulares de mão. As últimas versões têm baterias recarregáveis. Os avanços e as variações que vêm depois estão ligados à redução do tamanho dos motores. Ademais, o impacto global da mecanização muda completamente o cenário de carpintarias e marcenarias. Só oficinas muito artesanais permanecem exclusivamente no serrote. Ao serrar, os dentes da lâmina de uma serra circular comprimem a madeira contra a mesa, um fator de segurança. Mas no outro lado da lâmina os dentes estão subindo e vindo em direção ao operador. Se a peça de madeira enjambra em seu curso, pode ser capturada por estes dentes que sobem e se aproximam. Não é incomum que, violentamente, lancem para trás a ripa cortada, em uma flechada que pode ser fatal. Em uma fração de segundo, a madeira voa e a mão que empurrava a peça pode tocar os dentes da serra.8 Não é incomum ver marceneiros exibindo as duas mãos espalmadas, vangloriando-se de que ainda têm os dez dedos! 8 Ver: <www.finewoodworking.com/2008/11/01/fight-kickback-with-a-riving-knife>

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Serra circular elétrica portátil.

Serra de fita da

primeira metade do século XX.

Nos últimos anos, uma solução para esse pesadelo foi inventada. SawStop e Bosch criaram serras em que as lâminas, em milésimos de segundo, mergulham e desaparecem da superfície da mesa dessas máquinas. Isso porque a lâmina está eletricamente isolada e conectada a um circuito eletrônico que detecta o contato com qualquer objeto que não seja isolante, como é a madeira. Como o dedo do operador conduz eletricidade, se tocar na lâmina, ativa o mecanismo de segurança que, com um estampido, projeta a lâmina para baixo. A Bosch utiliza os mesmos sistemas usados nos seus airbags de veículos. Neles, o estouro é realmente a pólvora explodindo.

A ideia de uma serra de fita ocorre em inícios do século XIX. Contudo, somente os progressos subsequentes na metalurgia possibilitam a produção de lâminas muito flexíveis e com dentes temperadas, abrindo caminho para concretizar a ideia. Um complemento crítico para a construção dessa máquina foi uma patente francesa de um processo para soldar

As serras de fita Pela sua geometria, as serras circulares só cortam em linha reta. Para vencer o desafio das curvas, a evolução das ligas e das têmperas permite construir uma cinta flexível, com os dentes nela incisos. Isso dá lugar à serra de fita. Comparada com a serra circular, são máquinas bem mais seguras. Não há o risco de que um naco ou uma flecha de madeira seja violentamente projetada para trás, e sua operação requer bem menos pressão do operador sobre a peça. Portanto, é menor o risco de acidentes. Mas ainda assim tem a funcionalidade requerida para cortar fora um dedo em poucos segundos.

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Serra circular

elétrica portátil em uso.

Moto serra

contemporânea.

as duas pontas da lâmina, criando uma fita contínua. Curiosamente, foi inventado por uma mulher, em meados do século XIX. Na serra de fita, uma cinta metálica com dentes é montada entre duas polias grandes, criando uma máquina eficiente para muitos usos, sobretudo para fazer curvas, o que jamais vão permitir os discos circulares das serras convencionais. Uma vantagem nada desprezível da serra de fita é sua maior segurança, pois não se presta às diabruras da serra circular e a pressão sobre a peça é bem menor.

Os usos das serras Desde o abate das árvores as serras estão presentes na indústria da madeira. De fato, as motosserras vieram substituir o machado, com imensas vantagens. A imagem romântica do lenhador esconde um trabalho penoso e lento. Essa labuta foi aliviada pelo casamento de um pequeno motor a gasolina e uma corrente equipada com dentes afiados. Aliás, é preciso não pôr a culpa nessas máquinas pelas barbaridades ecológicas que ocorrem por aí. A França usa as motosserras para cortar suas florestas, mas como tem uma política inteligente de manejo, de um século para cá sua cobertura florestal é cada vez maior. Para abrir as toras, as serrarias usam gigantescas máquinas. São equipadas com várias lâminas em paralelo, presas a uma grande moldura que sobe e

desce. As toras estão fixadas numa mesa móvel que avança em direção à serra. De uma só vez, um tronco é cortado em várias tábuas. Abertas as tábuas, as serras circulares entram na lida para cortar as peças no tamanho desejado para a obra. Pode ser uma serra estacionária para a construção de uma mesa ou uma portátil para as formas de concreto. Se houver curvas, é hora da serra de fita. E se o trabalho é mais artesanal, serrotes, serras de costas e tico-tico entram em cena. Apesar de não terem a mesma fama das plainas manuais ou dos formões japoneses, as serras são a presença mais constante em todo o ciclo da madeira. Em virtude, entretanto, de sua grande eficiência, economizase muito tempo. Em uma oficina, entre cinco e dez marceneiros não conseguem ocupar plenamente o tempo disponível de uma única serra.

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Plainas e desengrossos

A tupia

Enquanto as plainas manuais têm movimentos lineares, nas mecanizadas, para aplicar energia de outras fontes – como os motores a vapor ou elétricos –, a solução encontrada é fazer com que duas ou mais lâminas sejam instaladas num cilindro metálico que gira. Uma mesa de aço tem um rasgo transversal no meio, onde está instalado o cilindro giratório. A tábua, deslizando sobre a mesa, encontra as navalhas giratórias que ultrapassam ligeiramente a sua altura. Portanto, são desbastadas pelas lâminas, antes de voltar a se apoiar na continuação da mesa, que está no mesmo nível das navalhas. No desengrosso, o processo de corte é o mesmo, mas a peça é impulsionada por roletes, em vez de ser empurrada manualmente. Em boa medida, são máquinas bem mais seguras, pois as mãos do operador não chegam perto da navalha, escondida num túnel. Os possíveis acidentes acontecem quando, antes de tirar o fio da tomada, mete-se o dedo onde jamais deveria ir.

As plainas manuais eram a única solução para produzir perfis nas bordas das tábuas. A tupia a substitui quando aparece a força motriz do vapor. Hoje há também suas portáteis. A tupia é uma máquina bastante simples. A um eixo que gira na vertical é acoplada uma navalha com o inverso do perfil que se deseja usinar. Como na plaina, esta fica montada no meio de uma régua dividida em dois. Ao deslizar a peça, ao longo desse suporte ajustável, a peça é usinada pela navalha. Tal como a serra circular, trata-se de uma ferramenta perigosa, pois a peça é empurrada pela mão do operador. Se houver um erro, pode-se cortar a mão. Sua versão portátil não passa de um motor com um mandril que empolga uma navalha giratória, como a da tupia fixa. Há uma pequena mesa de dentro da qual o mandril com sua navalha emerge na conta certa da operação desejada. O operador segura a máquina com sua mesa apoiada na superfície da

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Armário de venda de bilhetes ferroviários reciclado para

servir de caixa de ferramentas do autor.

página ao lado: Painel de ferramentas montado na

exposição A arte do ofício.

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peça. Em seguida, empurra a navalha, que gira contra a peça a ser usinada. Na maioria dos cortes, há uma régua determinando a trajetória da máquina ou um rolamento na navalha que serve de guia. Embora a rotação possa ultrapassar 20 mil giros por minuto, como as mãos do operador estão firmemente segurando seus punhos, o perigo é menor. Mas pode haver acidentes, pois a velocidade do motor produz um efeito giroscópio que dá à máquina uma vontade própria de se mover.

Os mecânicos e suas ferramentas Há 2 milhões de anos os hominídeos começaram a construir objetos de madeira. Em contraste, o metal e suas ferramentas apareceram há menos de 5 mil anos. O avanço foi inicialmente lento, pois era muito trabalhosa e ineficiente a redução dos minérios. Como resultado, os metais eram muito caros. Como já mencionado, os avanços subsequentes foram nada menos do que espetaculares. Podemos classificar processos e ferramentas para dar forma aos metais em duas categorias meio óbvias. Em primeiro lugar estão as operações básicas por meio de ferramentas manuais. Em segundo, há máquinasferramentas e processos industriais, que aumentaram a utilidade dos metais. Examinamos também um problema clássico da mecânica: os métodos de fixação com materiais e

ferramentas. Para terminar esta seção, examinamos as medidas e seus instrumentos, bem como o desafio da padronização e os ganhos de precisão que vão sendo obtidos. Podemos reler a história das ferramentas em três períodos. (1) Os hominídeos passaram 2 milhões de anos aprendendo a fazer ferramentas com os materiais que encontravam, como paus, pedras e ossos. (2) Com o domínio dos metais, há um espantoso salto nas ferramentas e no que se podia fazer com elas. (3) Depois da Idade Média, o ritmo de progresso volta a acelerar, desembocando na Revolução Industrial. Nela, não só se amplia a gama do que era possível fazer, como a escala de produção permite que boa parte da humanidade, de uma forma ou de outra, participe dos frutos desse processo. Incluem-se nessa democratização as ferramentas baratas e acessíveis a quase todos. Até a década de 1950, ter uma furadeira elétrica era privilégio de poucos. Hoje, são vendidas até em camelôs.

A forja, a bigorna e o martelo: tudo começa aí Durantes alguns milênios, somente o calor permitia trabalhar os metais, em especial o ferro, bem mais duro do que o cobre. As ferramentas não tinham a dureza requerida para cortar e desbastar a frio. Para isso acontecer, havia que esperar os avanços na produção

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do aço. De resto, a sua produção artesanal até o século XIX era demorada e penosa. Portanto, era na forja que as coisas aconteciam. Dada a importância dos metais para a manufatura e a guerra, da forja vinha a mágica que transformava um pedaço disforme de metal em arma ou ferramenta. Não por acaso forjas e fundições estão quase sempre associadas à iconografia de Vulcano e às diabruras de deuses. Mesmo nos dias de hoje, o equipamento eletrônico de última geração da Yamaha traz na sua logo as tenazes cruzadas. Não obstante os progressos em muitas direções, a forja mudou pouco ao longo do tempo — a única diferença é que o fole foi substituído por uma ventoinha. Além disso, entram em cena a bigorna, o martelo e a tenaz, que serve para segurar a peça quente. Para perfurar e cortar, há punções e talhadeiras. Alguns desses instrumentos podem ter muitas variantes, mas estão sempre presentes. Para certos trabalhos, a forja ainda é a melhor solução. As de hoje em dia são quase iguais às primeiras. A única inovação relevante é o martelo pneumático. Quem já teve a experiência de martelar um ferro quente deve ter lamentado o fim da era da forja e da bigorna. Hoje em dia há formas mais produtivas de lidar com os metais e os ferreiros são profissionais praticamente extintos. Atualmente, a sobrevivência das forjas deve-se à produção de portões, janelas, balaustradas e sacadas. A forja artística continua sendo uma manifestação

criativa, embora praticada por poucos. Observase também hoje uma volta dos passeios a cavalo recriando um mercado para mestres ferradores.

Como cortar metais a frio O aço temperado, que se dissemina no mundo a partir de 1.500 a.C., revela-se apto para cortar chapas de ferro e peças de ferro fundido. Assim, talhadeiras, punções e bedames pertencem à caixa de ferramenta de todos que trabalham com mecânica. Ainda que sejam de uso ocasional nos dias de hoje, continuam úteis. Não à toa, nos cursos de mecânica, cortar chapas com talhadeira é assunto da primeira aula. Com o aparecimento de aços de melhor qualidade, torna-se cada vez mais viável trabalhar os metais a frio: pode-se cortar, desbastar e dobrar sem recorrer às altas temperaturas. O ganho de produtividade é grande, pois não passa de poucos minutos o período em que a peça mantém uma temperatura suficientemente elevada para permitir ser moldada pelo martelo. Logo tem que ser levada de volta à forja, sendo necessários vários minutos para voltar ao rubro. De acordo com historiadores, os primeiros ferreiros a temperar o aço foram os hititas, por volta de mil anos a.C. Essa era a operação que diferenciava boas espadas e punhais, que podiam ser a diferença entre ganhar ou perder a guerra. Curiosamente, a Península Ibérica, região que jamais se destacou industrialmente, teve

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avanços admiráveis na feitura de espadas que não quebravam nem perdiam o fio. A cutelaria de Toledo foi por muito tempo celebrada, e alguns autores sugerem que Portugal tinha também um grande domínio na produção de espadas.9 É essa mesma operação de têmpera e revenimento que permite criar talhadeiras que cortam o ferro. Mas como o aço era muito caro, até a Revolução Industrial seu uso era limitado. Com a drástica redução de preço, as ferramentas de corte a frio passam a tomar conta das oficinas. O clássico martelo do ferreiro se recicla perfeitamente para o trabalho a frio. Na mecânica, poucas mudanças são observadas.

Arcos de serra O homem já havia desenvolvido serras primitivas, usando o serrilhado natural de rochas como sílex, pederneira, obsidiana, ou encastoando dentes de tubarão numa peça de madeira. Mas isso só funcionava para cortar substâncias macias. Com o bronze e o ferro, as serras ganham em funcionalidade. Contudo, sem o aço temperado, não podiam cortar metais. Esse avanço na metalurgia se inicia ao fim da Idade Média. No fundo, a operação de serrar consiste em raspar a superfície com uma aresta de material mais duro, 9 Miguel Sanches Baêma, “O gladius hispaniensis” (sem referências)

mas bem estreito, para criar um sulco. É apenas isso que faz uma serra. Seus dentes oferecem uma sucessão de arestas capazes de obter bom rendimento ao cortar cavacos no metal a ser trabalhado. Nas serras para madeira, como comentado, o desafio era conseguir uma lâmina que não dobrasse ao ser empurrada. Uma das soluções encontradas é montar a lâmina num arco que a retesa. Essa se revelou a melhor fórmula para o corte de metais. Praticamente todas as serras para metais estão montadas num arco. O avanço na competência dos ferreiros leva à construção de arcos muito parecidos com os que hoje conhecemos. Em contraste, os progressos que restam são na metalurgia, que produz dentes cada vez mais afiados e duráveis.

A tesoura muda de desenho e passa a cortar até metais A tesoura, banal ou sofisticada, consiste em duas pernas simétricas que pivotam uma na outra. As primeiras usando esse desenho e feitas de bronze entre aparecem entre os romanos um século antes de

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Tesoura inglesa de tosquiar ovelhas.

Tesoura de poda.

Tesoura de alfaiate.

página ao lado: Coleção de

tesouras, tal como montada na exposição A arte do ofício.

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Cristo. Não obstante, versões mais rudimentares já eram conhecidas dos egípcios cerca de 1500 a.C. Ainda assim, somente no século XVII sua fabricação regular reaparece na Europa. Tecnicamente, trata-se de uma dupla alavanca, com o fulcro funcionando como um farafuso ou rebite que une as duas pernas. Ao contrário de facas, machados e formões, a tesoura corta por cisalhamento. No encontro das duas lâminas, o material é como se fosse rasgado. Quanto mais perfeitas e afiadas as lâminas – no ângulo certo para cada material –, mais suave e bem acabado é o corte. Os antepassados da tesoura, contudo, tinham uma configuração diferente. Voltando às suas origens, as primeiras tesouras tinham duas peças separadas. Uma delas, talvez como se fosse uma régua com arestas vivas, escorava o que ia ser cortado. A outra era uma lâmina que deslizava sobre a aresta. Assim os índios cortavam o cabelo. Curiosamente, as tesouras industriais da atualidade, em forma de guilhotina, são o descendente mais próximo das que usavam nossos antepassados e que usam até hoje sociedades primitivas. O passo seguinte começa a nos aproximar da tesoura igual à que temos hoje. Trata-se de unir as duas pernas, construídas com desenhos simétricos. Mas ainda não é a tesoura do nosso cotidiano, e sim a versão usada para tosquiar carneiros. As lâminas estão unidas por uma mola numa das extremidades ou é dobrada no meio, encontrando-se as superfícies de

corte no outro lado. É uma construção mais fácil, considerando os parcos recursos das forjarias à época. O modelo das duas pernas, pivotando no meio, se revela o mais prático e eficiente. Algumas tesouras servem para cortar papel, outras são usadas em cirurgias ou para cortar a ponta do charuto. São muitas finalidades. Inicialmente, eram feitas na forja, requerendo a usinagem de superfícies em planos diferentes. As mais caras ainda são construídas dessa forma hoje em dia. Contudo, com os avanços na injeção de plástico, é possível construí-las com uma chapa de aço plano, ficando o plástico com arabescos requeridos para dar conforto à mão do operador. Com isso, tornam-se ferramentas muito baratas e ao alcance de todos. Conforme o uso, o princípio da alavanca é usado. Para cortarem mais rápido, no caso de materiais mais dóceis, o lado do cabo é mais curto. São assim as tesouras clássicas de alfaiates. Com pouco movimento da mão, a lâmina avança. No caso de materiais resistentes, como os metais, o cabo é longo e a lâmina, menor, permitindo aplicar mais força no ponto em que se dá o corte. Naturalmente, as tesouras usadas em oficinas para cortar chapas finas são mais robustas do que as caseiras. Quando o objetivo é cortar metais mais espessos, aparecem as tesouras fixas em forma de guilhotina. Com os avanços da mecânica, passam a ser operadas com os pés, cujos músculos são mais robustos do que os dos braços. Além disso, dessa

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forma ambas as mãos ficam livres para guiar a peça a ser cortada. O corte das chapas metálicas é uma operação requerida na manufatura de inúmeros produtos. Com o passar do tempo, as técnicas de corte de metal vão mudando. De acordo com a natureza e espessura do material, a técnica de corte varia. De cortes retos, essas máquinas passam a ser capazes de cortar curvas, mais ou menos como faz uma forma de biscoito. Do ponto de vista de produtividade, a manufatura de peças em metal cortado, dobrado e prensado muda completamente seus custos. Uma peça assim construída custa uma fração de outra feita por processos mais convencionais, como fundição e usinagem em tornos e fresas. É interessante comparar máquinas ou quaisquer aparelhos mais antigos com suas versões contemporâneas, seja um projetor de cinema, seja um de automóvel. Grande parte dos componentes que eram fundidos ou usinados passam a ser feitos de chapa cortada a frio e dobrada. As soluções para cortar metal passaram muitos decênios sem grandes novidade. Adiante, os maçaricos de oxiacetileno se tornam capazes de cortar chapas de metal até bastante espessas. Mas na segunda metade do século XX há alguns avanços importantes, como a utilização de laser voltadas para o corte. A eletroerosão é outra técnica também recente. Há uma técnica de corte que utiliza fios metálicos e também outra que usa um jato de água misturada com grânulos de metal duro.

Como dobrar metais Dobrar chapas de metal é a operação clássica de funileiros e caldeireiros. Se a chapa for fina, isso pode ser feito a frio e manualmente. Parece uma operação fácil, mas obter precisão na dobra oferece certos desafios. Quem já trabalhou com lata sabe que é preciso acertar da primeira vez. Uma chapa fina dobrada, desdobrada e representa um trabalho malfeito. A quina de uma bancada pode servir para guiar a dobra. O mordente de uma morsa é o local favorito para dobras em peças pequenas. Com chapas mais longas é difícil obter bons resultados sem uma máquina própria para esse serviço. É como se fosse uma dobradiça de porta, só que gigante. A peça é presa numa das bandas e forçada a uma dobra perfeita pela outra.

A lima A ferramenta clássica para desbastar o metal é a lima. Suas antecessoras são os diferentes tipos de raspadores, que vêm de épocas pré-históricas. Na Idade do Bronze e do Ferro começam a aparecer as limas, que eram uma barra de ferro na qual dentes são forjados. Para isso, uma talhadeira bem afiada é martelada na lâmina, criando dentes. Podemos entender melhor o processo inclinando um formão e golpeando

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Limas diversas para desbastar metal.

levemente em uma ripa de madeira. Ao retirá-lo, podemos ver que ele levanta um cavaco, como se fosse um dente. É exatamente como os dentes da lima. Ao fim da Idade Média, as limas ganham outras utilidades. Lá pelo ano 1100, começam a ser temperadas, melhorando, portanto, o desempenho, mas com uso ainda limitado. No século XIII, os ferreiros de Paris começam a usar limas nas obras de ferro batido ornamental, mas só mais adiante seu uso se expande. Podemos pensar a lima como uma sucessão de lâminas de serra colocadas lado a lado. Em vez de cortar ao longo de uma linha, ela corta numa faixa que corresponde à largura do conjunto. Como dito, na

fabricação, as limas ganham ranhuras transversais. São criados por uma talhadeira montada num braço que golpeia a peça de aço aquecida, formando cada dente. As limas são ferramentas que permitem aumentar a precisão na usinagem. O desafio de um mecânico ajustador é limar uma ou mais superfícies até que atinjam uma especificação exata. Lá pelo fim do século XIX, a lima era uma ferramenta central na construção de máquinas e quaisquer outros mecanismos. As peças, para serem encaixadas no resto do conjunto, precisavam ser ajustadas uma a uma, já que os processos de forjaria e fundição não permitiam nem o acabamento nem a precisão dimensional exigida. A solução ideal estava na lima. Portanto, a competência no uso desse objeto era um dos elementos que diferenciavam um bom oficial. Até os dias de hoje, a formação de ajustadores inclui muitas horas na lima. O aprendiz recebe um pedaço de ferro e tem como tarefa produzir uma superfície perfeitamente plana. Em seguida, passa para outra que exige limar ângulos perfeitamente retos. Usinar um cubo de ferro com suas dimensões especificadas no desenho técnico é a prova da competência final a ser adquirida. Não há uma boa oficina mecânica hoje que não disponha de uma coleção de limas. Umas cortam mais rápido e são chamadas de bastardas. Outras dão melhor acabamento: são as murças. Algumas sua

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superfície plana e outras são triangulares (para afiar serras e serrotes), meio cana, redondas ou quadradas. Os avanços na precisão obtida na fundição, na laminação ou na usinagem reduzem a necessidade das limas. Mas sempre aparecem peças que requerem um formato especial ou ajustes finais. Portanto, mesmo com o passar dos anos, elas não desaparecem das oficinas. O domínio do seu uso ainda faz parte dos ritos de aprendizagem da mecânica.

As lixas Uma alternativa à lima são as lixas, que têm uma série de funções. Nascem na China, onde conchas trituradas são usadas como abrasivo e coladas num substrato de pergaminho. Somente em meados do século XIX aparece a lixa tal como a conhecemos hoje. O vidro triturado ou a areia são colados a um material flexível, em processos que permitem a fabricação em massa. O uso do carboneto de sílica, muito mais duro e de colas impermeáveis permite a fabricação de lixas d’água. Na verdade, podemos pensar a lixa como uma lima flexível feita de grânulos duros, colados a um papel ou pano. A lixa corta ou arranha com esses fragmentos de material friável fixados ao papel. Como são milhões, desbastam a superfície. O próprio vidro triturado é capaz de riscar o metal. Mas hoje se desenvolveram materiais superiores, quase todos sintéticos.

As furadeiras de manivela Como na madeira, o uso do movimento giratório para formar peças de metal é um avanço definitivo. Ao entrarmos nas máquinas operatrizes para usinar metais, veremos que quase todas envolvem o movimento giratório para obter os cortes desejados. Furar é uma operação mais do que central na mecânica, pois sempre precisamos unir duas partes. É somente com a disseminação do aço que os furos em metal deixam de ser feitos na forja. As primeiras furadeiras eficazes são as mesmas clássicas da madeira: um eixo com um mandril na extremidade, girado por uma engrenagem acoplada a uma manivela. Ao longo dos anos, essas máquinas pouco evoluíram. A grande revolução foram os motores elétricos, sobre o qual falaremos quando discutirmos as máquinas operatrizes.

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4. As máquinas substituem as mãos As máquinas fazem mais ou menos o mesmo que as ferramentas manuais, mas muito mais rapidamente e com uma qualidade bem superior. Portanto, sem elas, o homem comum teria pouco mais do que uma faca e uma colher de metal. Com algumas exceções, as máquinas são o avanço natural das ferramentas manuais, quando se torna possível usar fontes mais robustas de energia. No caso, falamos de água, carvão e petróleo.

Furadeiras A furadeira de coluna, inicialmente, não passa da motorização das furadeiras fixas que já estavam disponíveis antes. Dentro da solução clássica, a fonte de movimento é conectada a um eixo que serve todas as máquinas da oficina. Nele, as múltiplas polias permitem acionar cada máquina usando-se correias de couro plano. Inicialmente, o aparecimento do motor elétrico não muda a forma de transmissão central do movimento. Acoplado a um único e enorme motor, os grandes eixos continuam atravessando toda a extensão da fábrica. Porém, com a evolução e a queda de preço dos motores, cada máquina passa a ter o seu. Ganha-se em flexibilidade e na possibilidade de colocá-las onde melhor se integram ao fluxo produtivo. A automação e o resultante barateamento das furadeiras de coluna fazem com que tenham se tornado

presença certa em qualquer oficina. Motores mais leves permitem criar as furadeiras portáteis, já no início do século XX. Com a evolução das baterias, passa a ser possível tê-las sem fio.

Esmeris e rebolos O esmeril é uma máquina simples, mas de uso generalizado. Não passa de um disco abrasivo circular, acoplado ao eixo de um motor. Ao contrário da maioria das máquinas operatrizes, o esmeril não usa ferramentas de corte, mas uma pedra abrasiva sintética. Versões a manivela existem há muito tempo, mas é com a motorização que se tornam comuns.

Tornos mecânicos Os tornos para madeira existem há mais de 2 mil anos. Suas versões em metal, porém, são muito mais recentes, pois esse elemento químico só se popularizou há pouco mais de dois séculos e o desenvolvimento tecnológico passou a exigir um material mais resistente. Podemos pensar em dois grandes marcos na evolução do torno. O primeiro é o cabeçote móvel, no qual se fixa solidamente a ferramenta cortante. Sua operação

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Torno mecânico atual. na página dupla anterior: Torno de madeira.

se dá por meio de duas manivelas ortogonais que permitem deslizar a ferramenta ao longo de dois eixos, acompanhando rigorosamente a trajetória desejada. O segundo é a sincronização do avanço do cabeçote com o do eixo onde está a placa ou o mandril que sustenta a peça. Com as engrenagens de avanço escolhidas corretamente, passa a ser possível abrir roscas no torno. Por volta da metade do século XX, há uma mudança que facilita muito sua operação. Antes, os tornos vinham da fábrica com uma coleção de engrenagens. Era necessário escolher uma combinação que produzisse o avanço no carrinho, correspondendo ao passe desejado. Aparece então o que fica conhecido como “caixa Norton”. Em vez de trocar engrenagens, operam-se alavancas que, por assim dizer, trocam as marchas do torno. É a mesma ideia das caixas de mudanças dos automóveis.

Tornos programados por computador O grande salto recente nos tornos é a introdução de computadores e programação digital para sua operação. A sequência de passos realizadas manualmente é repetida pela programação da máquina. São os tornos de CNC.

Fresas Outras máquinas importantes são as fresas. Sem elas, não teria sido possível usinar engrenagens, tão essenciais em praticamente todas as máquinas de certa complexidade. Na sua geometria, as fresas são variantes da furadeira de coluna. Em vez de brocas, giram navalhas com o perfil desejado, por exemplo, para usinar os dentes de uma engrenagem. Ao contrário do torno, a peça usinada permanece fixa. Move-se apenas quando termina o corte de um dente e passa-se ao próximo.

Retíficas Se em vez de ferramentas cortantes, como no torno, temos um esmeril ou rebolo fixado ao carrinho, passamos a ter uma retífica. Troca-se o corte pela abrasão. É interessante notar que essa é uma máquina em que há, simultaneamente, dois movimentos giratórios: o do rebolo e o da peça.

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Fresas de diferentes perfis, para madeira.

Plainas e tornos limadores Curiosamente, todas as máquinas que vimos até agora utilizam o movimento giratório. De uso generalizado, existem apenas duas que transformam em linear o movimento giratório do motor: as plainas e os tornos limadores. Não por acaso, sua missão é gerar superfícies planas. Num modelo, a peça fica fixa e há uma ferramenta cortante presa a um braço que avança e recua. A cada movimento, desbasta um filete da peça. Em seguida, a peça é ligeiramente deslocada para que seja usinado um trecho contíguo. Na verdade, é exatamente a versão mecanizada de uma plaina de madeira. Como nesta última, a lâmina desliza sobre a peça, desbastando-a. Na passada seguinte, o operador desloca a ferramenta para o lado, avançando em território virgem. Na outra versão dessa mesma máquina, a ferramenta fica fixa e a peça vai e vem, presa numa plataforma que desliza para a frente e para trás. Essas ferramentas ainda estão presentes nas oficinas mecânicas, mas vêm perdendo espaço para outras, que produzem superfícies planas.

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5. As tecnologias de fixação Se queremos fixar ou juntar uma peça à outra, a mecânica vem acumulando um bom número de soluções. Como já sugerido na classificação das ferramentas, essa fixação pode ser temporária ou permanente. Comecemos descrevendo as fixações permanentes. Em geral, falamos das diversas modalidades de solda e, recentemente, da cola. Nas soluções temporárias, temos aquelas momentâneas para trabalhar uma peça, como grampos e morsas, e as que podem ser desmontadas, como os parafusos.

O caldeamento A primeira solução para unir duas peças de metal é na forja, em uma operação chamada de caldeamento. Nele, as duas peças são aquecidas a uma temperatura próxima da fusão e marteladas juntas. Progressivamente, os dois metais se fundem em um, criando uma fixação definitiva. Do ponto de vista dos resultados, é uma solução impecável, pois não é uma solda, mas uma fusão das duas peças. Essa tecnologia amadurece na Idade do Ferro e, por volta do ano 1000 a.C, dissemina-se pelo mundo. Tradicionalmente, ferramentas encabadas, como machados, eram formadas de uma lâmina que dava uma volta e se encontrava novamente no meio do seu corpo, produzindo a alça onde entrava o cabo. A junção

era então martelada até caldear. Contudo, é uma operação trabalhosa e inviável em muitos casos. Hoje, o caldeamento é pouco usado, por ser demorado, caro e pouco versátil. Foi substituído por um sem-número de outras técnicas.

Solda a ponto Há uma nova variante do processo de caldear que é a solda a ponto, muito utilizada nas montagem de aparatos feitos de chapa de ferro, como as carrocerias de automóveis e os eletrodomésticos. Ao passar uma corrente de alta amperagem num ponto em que as duas peças se encontram, gerase uma alta temperatura que funde ou caldeia as duas chapas.

Solda branca A primeira solda de sucesso é a chamada solda branca. Há 5 mil anos a.C., artesãos da Mesopotâmia já usavam esse método de unir dois metais. Nos dias de hoje, os mais avançados circuitos eletrônicos continuam usando o mesmo tipo de solda. Parece inacreditável que, nas grandes proezas da tecnologia informática e das telecomunicações, a melhor maneira de estabelecer contato entre dois componentes tenha sido inventada há tanto tempo.

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Maçarico oxiacetileno. página 113:

Maçarico oxiacetileno.

Nos primórdios do uso dos metais, a vantagem decisiva da solda branca era sua baixa temperatura de fusão. Com os meios que existiam na época, altas temperaturas eram mais do que problemáticas. Os artesãos da Mesopotâmia descobriram que, misturando chumbo com zinco, criavam uma liga que derrete a menos de 200ºC. Curiosamente, com pequenas variações, é a mesma fórmula usada até hoje. Descobriu-se também que, adicionando-se prata a essa liga, a solda fica muito mais resistente, aumentando a temperatura necessária para derreter a nova liga. Na solda branca, as peças a serem soldadas são esquentadas com o que hoje chamamos de ferro de solda. Até um século atrás, era um bloco de cobre pontudo preso a uma haste e com um cabo na outra extremidade. A cabeça de cobre era levada a uma fogueira para que atingisse uma temperatura suficiente. Com a eletricidade, em vez de fogueira, uma resistência aquecia a ponta de cobre. Uma vez aquecidas as peças, encosta-se no ponto certo uma barrinha ou um fio de solda. A temperatura das peças deve ser suficiente para derreter a solda, que se espalha pelas peças, unindo-as. É quase uma mágica, a solda derretida cobre rapidamente a peça quente. Para que a solda se espalhe, no entanto, é necessário que as superfícies estejam limpas e sem qualquer oxidação. Ora, o mero fato de esquentar a peça provoca a oxidação quase instantânea. Por isso, é necessário usar alguma substância que impeça a oxidação e,

se possível, ajude na limpeza das superfícies que receberão a solda. Tradicionalmente, ao lado de cada ferro de solda havia uma latinha de uma pasta amarelada que servia justamente para limpar quimicamente e impedir a oxidação. Mais recentemente, esse fluido já vem dentro do fio de solda. Há uma grande variedade de substâncias que fazem esse serviço, cada uma com suas vantagens e problemas. Vale enfatizar uma vantagem dessa solda, que é a perfeita condutividade elétrica dos componentes assim fixados. Se fossem colados, poderiam até ficar mecanicamente firmes, mas o fluxo elétrico não seria garantido. Para fazer um funil de lata, a velha solda de chumbo e estanho é mais do que adequada. Na joalheria e em certas construções mecânicas, a solda com prata é mais apropriada.

Solda oxiacetileno De um século para cá, uma das soldas mais importantes é a oxiacetileno. O gás acetileno, resultado da mescla de água com carbonato de cálcio, é misturado com o oxigênio num maçarico. A chama resultante é muito quente, permitindo soldar inúmeros metais. Embora a produção de acetileno tenha sido dominada em meados do século XIX, é somente ao início do XX que passa a ser uma tecnologia vencedora.

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Em geral, um eletrodo que parece um arame é derretido pela chama do maçarico, depositando-se nas partes a serem soldadas, previamente aquecidas. Assim como na solda branca, é necessário usar alguma substância que impeça o calor de oxidar a peça.

Solda elétrica com eletrodo revestido O passo seguinte, muito radical para reduzir custos, é a solda elétrica. Ao estabelecer um contato entre dois condutores ligados a uma fonte de alta amperagem, se essa junção não for firme, geram-se centelhas e um calor intenso. Podemos examinar as pontas que tocaram e verificar que chegam a derreter. A alta temperatura produzida por esse curto-circuito permite derreter um eletrodo revestido que vai unir as peças a serem soldadas. Seu uso é relativamente recente. Somente depois da Primeira Grande Guerra torna-se uma tecnologia confiável e passa a ser a forma predominante de unir peças pesadas, como chapeamento de navios e estruturas na construção civil.

Nas últimas décadas, aparecem alternativas à solda com eletrodo revestido. Mais conhecidos são as do tipo MIG e Mag. Gases raros são utilizados para proteger a superfície das peças soldadas. Da mesma forma, um rolo de arame pode substituir a barrinha do eletrodo revestido tradicional.

Grampos e morsas Há casos em que precisamos segurar uma peça para ser limada, cortada, furada ou soldada. Uma vez terminada a operação, deve ser liberada. Para isso temos morsas, grampos e sargentos. Todas essas ferramentas são aplicações do princípio do parafuso. Os grampos são estruturas metálicas em forma de C com uma espera em uma extremidade e um parafuso na outra. As peças a serem firmadas são apertadas entre os dois. Numa bancada de mecânica, sempre haverá uma morsa, popularmente chamada de torno e que passa de um grande parafuso que aperta dois mordentes. Um deles é fixo numa estrutura de ferro e o outro desliza numa espécie de túnel. A peça a ser fixada é colocada entre os dois.

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Sargento antigo brasileiro, em madeira. Sargento pequeno em metal. Morsa de mão usada por armeiros e ferramenteiros.

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Parafusos e porcas, simples mas indispensáveis na mecânica.

Pinos, rebites e parafusos Ao deixarmos as variedades de solda, soluções que não permitem desmontagem, passamos para a longa evolução de pinos, rebites e parafusos. Para unirmos duas peças de metal, a primeira ideia é atravessá-las por um pino, também metálico. Para isso, é necessário um bom ajuste, para que haja suficiente fricção, impedindo que escape. O próximo avanço é adicionar ao pino uma cabeça – como se fosse um prego. Martelando-se o lado oposto ao da cabeça, o pino se desponta nas bordas, impedindo que saia do lugar. Esta solução é conhecida como rebite, é barata e firme. A desvantagem é ser bem mais penosa a sua remoção. É ótima para estruturas metálicas de edifícios ou navios, mas péssima para máquinas que exigem desmontagem para a sua manutenção. Para uma desmontagem rápida, surgem chavetas e contrapinos, ferramentas, porém, muito limitadas. O parafuso e sua porca correspondem a uma pequena revolução na mecânica. São fáceis de pôr e tirar e oferecem muita resistência à tração. É difícil imaginar a Revolução Industrial sem roscas. Segundo a história, a geometria do parafuso foi bem mapeada na Grécia, 400 anos a.C. Seu uso prático mais relevante era nas prensas de uva e azeite. Naturalmente, era um parafuso com rosca de madeira. Como Gutenberg se inspirou nas prensas de vinho,

a primeira máquina de imprimir também usava parafusos de madeira. Como elemento de fixação, os parafusos e as porcas começam a aparecer no Renascimento. Algumas vezes, eram usados em armaduras. Leonardo da Vinci chegou a desenhar máquinas para abrir roscas e produzir parafusos. Seu uso mais intenso, porém, só começa com a consolidação da Revolução Industrial, em meados do século XVIII. Para isso, aparecem os primeiros tornos capazes de uma produção substancial e a preços razoáveis. O perfil da rosca resultou de muita experimentação. As cabeças variam de acordo com o uso. O passe da rosca também, gerando muita perplexidade para a sua padronização. De que material será feito? Há inúmeras alternativas. Isso tudo para não falar dos tamanhos, desde o parafusinho que arma a carcaça de um relógio até aqueles usados nas grandes turbinas hidroelétricas. Combinando as opções existentes em cada um de seus aspectos – cabeça, rosca etc. –, são muitos milhares de variedades. Mas a lógica do seu funcionamento é sempre a mesma: a resistência ao cisalhamento dos filetes permite uma fixação previsível, sólida e desmontável.

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Coleção de alicates especializados para

funções muito específicas numa oficina ou fábrica.

no alto: Alicates tradicionais.

Alicates e chaves A difusão de parafusos e porcas gera a necessidade de ter ferramentas apropriadas para sua instalação e desinstalação. Daí a multiplicação de chaves de todos os tipos. Para instalar e retirar essas fixações, nascem as chaves de boca, de estria e de cachimbo. E mais

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aparelhos, aparecem soluções mais misteriosas, como as cabeças Torx. Em geral, montar, desmontar, por e tirar, entortar e desentortar, tudo isso tem que ser feito em uma oficina. Daí a necessidade de ferramentas apropriadas para tais missões. Uma oficina, entretanto, tem tarefas genéricas e meio imprevisíveis. É aí que entra em cena um descendente das tenazes usadas nas forjas: o alicate. São dezenas de modalidades: de bico, entortados, para cortar ou para apertar.

Quem diria, colar metais! um curinga para todas as horas, as chaves inglesas. Para girar a cabeça dos parafusos há as chaves de fenda, adaptadas para a cabeça de cada tamanho de parafusos. Com o tempo, vão aparecendo outras fórmulas. A fenda cruzada das chaves Philips aumenta o torque e facilita o uso de furadeiras para apertá-los. Quando os fabricantes não querem que os compradores se metam a desmontar seus

Até meio século atrás, seria impensável unir dois metais com cola. Hoje em dia, porém, Araldite e SuperBonder são apenas a ponta do iceberg de um desenvolvimento vigoroso da química. Hoje, há casos de chapas de alumínio coladas em aviões, em vez de rebitadas. Muitos usos têm sido encontrados para essas colas.

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6. Pensar, projetar, medir e marcar Mesmo quem nunca viu um martelo ou uma serra, logo deduz seu uso. Imaginemos um ianomâmi ou um xavante pescado de uma aldeia remota e apresentado a tais ferramentas. Talvez leve um tempinho, mas ambos acabam por entender para que servem, apesar de seu funcionamento ser regido por algumas teorias e conceitos da física nem tão simples assim. Em contraste, ao olhar um compasso, um esquadro ou uma régua, o xavante estaria diante de ferramentas cuja concepção sua existência desconhece. Provavelmente não entenderiam para que servem, mesmo diante de explicações detalhadas. Tais instrumentos só fazem sentido se tivermos ideia do que significa medir, ou seja, comparar alguma dimensão física de um objeto com a de um outro objeto ausente, o que só pode acontecer se o conceito de medida já existir em nossa mente antes de se materializar, por exemplo, nos tracinhos gravados numa régua. Medir tem como precondição o domínio do conceito de números. Tribos primitivas, como as ainda existentes no Brasil, têm um sistema muito rudimentar de numeração. Algumas só conhecem os números 1 e 2. Um estudo antropológico recente com os índios Munduruku mostra que só conseguem contar até quatro. A partir do 5, classificam os números como “muitos”.10 10 Citado por Alex Bellos, Here’s Looking at Euclid (New York: Free Press, 2011) Chapter Zero

Esses índios teriam muita dificuldade de entender nossos instrumentos de medida, mesmo que explicados detalhadamente. Falta-lhes uma arquitetura mental que não existia ou não existe na sua cultura. Contar é uma “teoria” que, lentamente, evolui na história do homem. Inicialmente, contam-se com conchas, sementes ou outros objetos que possam ser claramente dispostos. Um grande salto de abstração consiste em associar o número de conchinhas com alguma quantidade equivalente no mundo real. Por exemplo, o mesmo número conchinhas e de ovelhas no rebanho. Os maias já haviam transposto essa fase inicial e tinham conceitos muito mais sofisticados de números. De fato, tinham um sistema próprio de matemática que não era decimal, mas de base 20. Portanto, a ideia de medida estaria muito próxima do seu mundo. Confrontados com nossa régua e esquadro, não teriam grandes dificuldades de entender nossas explicações. Juntamente com o conceito de números, medir deve ter sido um dos primeiros saltos da abstração humana. Envolve comparar uma coisa presente com outra ausente, mas que existe na nossa cabeça. Medir, todavia, introduz uma complicação adicional. As conchinhas são números discretos: ou são duas ou são três. O mesmo acontece ao contar seus machados de pedra: ou são dois ou são três, não há a noção de meio machado. Contudo, o ato de medir é de natureza diferente. Em certas situações, o

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Estojo clássico com instrumentos de

desenho técnico, usado por engenheiros e arquitetos.

mundo real é mais complicado. Medir é um conceito muito mais difícil e abstrato. Trata-se de comparar o tamanho de um objeto com um outro que foi definido como unidade de medida. Ao fazer isso, quebramos a fronteira rígida entre um número e o seguinte. Ao comparar nosso objeto real com alguma unidade de medida, podemos encontrar que mede um palmo e mais meio dedo. O pedaço de tecido que queremos trocar por um machado de pedra tem um tamanho que varia de forma contínua; não há fronteiras ou descontinuidades. Ao contar ovelhas, não há o caso de três ovelhas e meia. Mas ao medir o pedaço de tecido, qualquer tamanho é possível: cinco palmos e mais uma unha. Não foram poucos os séculos até os saltos de abstração exigidos pelo desenvolvimento de sistemas de medidas. Quando dizemos que o tampo desta mesa tem dois metros de comprimento, significa que tem duas vezes o tamanho de um metro, definido como o intervalo entre duas marquinhas em uma barra de platina iridiada, cuidadosamente guardada em um subúrbio de Paris. Aqui damos outro salto: comparamos a medida observada com outra que foi definida remotamente. O carpinteiro pode não saber da tal barra de platina, mas sabe que alguém definiu essa distância fixa que está marcada na sua fita métrica. Com ela, pode comparar tamanhos e saber que o metro da serraria onde compra madeira é o mesmo da sua trena. Ou seja, ele venceu a barreira intelectual das unidades de medida.

Diante dessas ponderações, entender instrumentos de medida é uma dupla excursão: um passeio pela sua história e concepção, um exame de como o homem construiu ferramentas para aplicar as medidas. A primeira é um passeio pelas ideias. A segunda é um capítulo sobre as artes mecânicas e como foram aplicadas para pôr em prática a ideia de mensuração.

As ferramentas para comparar, marcar, medir e projetar As operações de desbastar, serrar e plainar podem oferecer desafios enormes na sua execução. Por exemplo, transformar uma árvore num tampo de mesa perfeitamente plano ou esculpir uma cabeça humana. No entanto, as ideias envolvidas nessas operações são muito simples e requerem pouca abstração. Comecemos, pois, por etapas abstratas. A primeira é conceber na imaginação o projeto. Em seguida, fazer migrar para o papel tal ideia. Após isso é que vêm medir e marcar. Nesta seção, examinamos as ferramentas usadas para comparar, medir, marcar e projetar. Na próxima, voltaremos à história das medidas e do salto conceitual que representa sua invenção. Aproximando uma tábua de outra, temos a possibilidade de marcar nelas o mesmo comprimento, para que ambas sejam cortadas iguais. Mas pelo seu tamanho ou peso, isso pode ser penoso e, às vezes,

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Réguas de jacarandá, tradicionais na marcenaria brasileira.

Ferramenta japonesa tradicional

para marcar uma linha reta numa tábua.

Trena tradicional em material têxtil.

na página ao lado:

Painel de instrumentos de medida, montado na exposição A arte do ofício.

impossível. A solução mais imediata é usar um sarrafo, marcando a medida numa tábua e levando-o até a outra. É o nascimento da régua. As mais antigas eram sempre feitas de madeira, material ainda adotado em alguns casos. Essa ferramenta tanto serve para comparar distâncias lineares quanto para traçar linhas retas, essencial para serrar uma peça sem meandros. Mas há outro recurso muito antigo para marcar linhas retas, por exemplo, para serrar à mão uma tábua longa. Podemos fixar temporariamente um prego no início da reta desejada e outro ao seu fim. Se atarmos entre os dois pregos um barbante empapado em pó de carvão ou giz, temos aí um instrumento muito preciso. Basta levantar o barbante e soltá-lo em seguida. Com o impacto na sua volta, deixa uma trilha branca (ou preta), seguindo uma linha reta impecável, pois está

retesado. Essa solução milenar é usada até hoje, tanto no Ocidente quanto no Oriente. No início, a régua não passava de um sarrafo de madeira com as medidas marcadas com tracinhos. Com os avanços da metalurgia, aparecem réguas de aço. Para medir vários metros, constroem-se réguas em ziguezague, de dobrar. Já os romanos tinham réguas feitas com duas barras de ferro articuladas. Quando dobradas, seu comprimento se reduzia à metade. Se as distâncias são de muitos metros, tradicionalmente se usam fitas de tecido chamadas de trenas. Como qualquer instrumento desse tipo, são marcadas com as distâncias. E, após o uso, são enroladas num carretel fechado. Avanços na tecnologia do aço, já no século XX, permitem a construção de trenas flexíveis. São pequenas, cabem no bolso, são práticas e baratas. Mas os velhos marceneiros não abrem mão abrem de suas réguas dobráveis.

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Com a régua, traçamos retas nas peças que serão cortadas. Se queremos marcar uma paralela a uma das arestas da peça, basta fazer duas marcações iguais, uma em cada extremidade da peça, e marcar o corte com uma régua. Mas são mais duas operações de medir e marcar, que sempre introduzem erros, além do tempo gasto. Entra em cena, então, o graminho. É também uma ferramenta muito antiga, já visível em pinturas e alto-relevos das épocas romanas. De fato, é uma ferramenta com desenho tão perfeito que continua hoje igual às de outrora. O graminho nada mais é do que uma peça de madeira através da qual passa uma haste corrediça, em cuja extremidade há uma ponta ou estilete curto. Sua operação é deveras simples. Ajusta-se à corrediça de tal forma que a distância entre o bloco de madeira e a ponta fixada na haste móvel corresponda à distância que se quer marcar. Feito isso, desliza-se a ferramenta de modo que a ponta arranhe a madeira, ao longo do trajeto. Como permanece constante a distância entre o bloco e a ponta cortante, a linha traçada é paralela à aresta da peça. Esse é o princípio; o resto são variações. Muitos graminhos têm duas barras, em vez de uma. Dessa forma, pode guardar duas medidas diferentes. Em muitos, a barra é construída bem justa no rasgo correspondente, para que não se perca acidentalmente a medida ajustada. Em outros, há uma cunha de madeira para fixar a haste.

As réguas e similares têm a precisão determinada pela qualidade da manufatura, incluindo a nitidez dos tracinhos gravados. Mas não é só isso: há as limitações da visão humana. Com o avanço das construções mecânicas, já no século XVIII, a precisão das réguas ultrapassa o que o olho humano pode captar. Portanto, os limites deixam de estar no instrumento e passam para a visão de quem os utiliza. Essa constatação gera uma série de soluções para compensar as fragilidades da visão humana. Um ganho substancial de precisão vem da invenção dos paquímetros, chamados de calibres pelos mecânicos. A ideia é simples e nasce em meados do século XIX. Uma régua metálica termina num encosto a 90º. Na régua, desliza uma corrediça que também tem um encosto, simétrico ao primeiro. Uma janela na corrediça tem tracinhos adjacentes às marcações da

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Micrômetro, usado por torneiros e fresadores, para obter um alto grau de precisão nas medidas.

na página ao lado: Graminho metálico

contemporâneo, repetindo desenho tradicional. Graminho duplo em jacarandá, construído por marceneiro.

Graminho em jacarandá com guarnições em latão, ainda fabricado hoje.

Paquímetros, incluindo um digital. Ferramenta de mecânicos, ocasionalmente usada na marcenaria.

régua. Ao tocar nos dois lados da peça a ser medida, os encostos trazem o erro de medida a praticamente zero. Sobra apenas o erro na leitura das medidas obtidas, ao ler os tracinhos na janela. Cedo, os paquímetros ganham um dispositivo chamado de “vernier” – em homenagem ao matemático francês de mesmo nome. Consiste num conjunto de marcas na janela que desliza, com espaçamento menor do que os tracinhos na régua (para ser exato, nove décimos de milímetro). Dependendo de qual tracinho se alinhe aos da régua, temos a contagem de décimos de milímetro. Eis uma ideia simples e genial. Passamos a uma precisão além do que a visão nos permitia. Em virtude do seu custo razoável, o paquímetro estava ao alcance mesmo das pequenas oficinas da época. Tornou-se uma ferramenta universal. Hoje há modelos de plástico vendidos a preço de banana. Para usos simples, até funcionam. Mas os avanços na precisão das medidas não podiam parar aí. Como o instrumento é muito mais preciso do que o olho do operador, é na interface que se pode reduzir o erro. Durante alguns anos, em vez de vernier, passou-se a usar um mostrador circular, muito mais sensível a pequenas variações. Curiosamente, essa aplicação da relojoaria está condenado ao lixo da história, enquanto o paquímetro

barato sobrevive, pelo seu baixo preço e grande praticidade. O mostrador circular foi superado pela leitura digital das medidas, eliminando totalmente a imprecisão do olho humano. Como tudo que é eletrônico, o preço do paquímetro digital está caindo vertiginosamente. Para lidar com usinagens que requerem um altíssimo grau de precisão, desde meados do século XIX há um instrumento chamado micrômetro. Tratase de uma ferramenta cujo princípio de ajuste é um pouco diferente do paquímetro. Mal comparando, o micrômetro se parece a um grampo, desses usados para colar peças de madeira. A peça a ser medida é colocada entre dois apoios, e um deles se fecha até encostar nela. Uma diferença com relação ao paquímetro é que, em vez de uma corrediça que desliza, há um parafuso que vai sendo apertado até que as duas esperas toquem na peça. Em volta desse parafuso há uma luva com marcações, como numa régua. Qual a vantagem? É grande. Digamos que os tracinhos na luva distem um milímetro um do outro, distância totalmente perceptível. Para avançar ou recuar a posição do encosto de um milímetro, a luva terá que avançar 30 tracinhos. Em outras palavras, pequeníssimas diferenças dimensionais na peça medida correspondem a um giro substancial da luva, facilmente visível. Dito de outra forma, se vemos na luva um intervalo de um milímetro, isso corresponde a uma variação de um trigésimo de milímetro na medida da peça.

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Diferentes modelos de compassos metálicos.

Esquadros de madeira e de aço. na página ao lado:

Sutas de marceneiros e caldeireiros para medir ou copiar ângulos.

Os ganhos recentes da eletrônica e da computação permitiram proezas ainda mais impressionantes. Pensemos nas mandriladoras controladas por computador que permitem furar ou fresar uma peça de qualquer direção. Se em vez de navalhas tivermos uma ponta, chamada de apalpador, o braço da máquina pode tocar em qualquer lugar da peça. Naturalmente, a máquina está programada para interromper o movimento ao mais leve toque. As coordenadas dos pontos em que o apalpador toca a peça são então registradas na memória. Isso é tudo de que ela precisa para gerar um desenho da peça em três dimensões. Voltando a instrumentos mais simples, se é preciso traçar círculos, o compasso é a ferramenta óbvia, conhecida desde a Grécia clássica. Sua

construção pode ser simples ou muito refinada. No primeiro caso, podem ser dois sarrafos, unidos nas extremidades por um prego. No outro lado, os sarrafos têm pontas. Essa construção rústica não deixa de ser um compasso. Como qualquer outro, é capaz de traçar círculos ou comparar distâncias. Pode ter duas pontas (ditas secas) ou um lápis preso numa delas. A partir de certo momento na história, passa-se a construir essa mesma ferramenta em metal. Até um século e tanto atrás, seria de latão, sendo uma obra de fundição. Mais adiante, o ferro passou a predominar. Construir um compasso de ferro ainda é uma bela tarefa para um ferreiro. No uso, um marceneiro ou mecânico dá pequenas batidas com a perna do compasso na bancada para conseguir um ajuste fino, chegando à abertura que deseja. Para facilitar, um parafuso pode ser instalado entre as duas pernas. Com isso, fica facilitado o ajuste. Girando a borboleta, abrem-se ou fecham-se as pontas alguns décimos de milímetro. Sejam móveis, máquinas ou casas, em quase todas as construções as peças se encontram em ângulo reto. Para lidar com isso nasce o esquadro, que não passa de dois sarrafos conectados solidamente nas extremidades e formando um ângulo de 90º. Os materiais construtivos variam ao longo do tempo e da prosperidade do proprietário. Historicamente, os primeiros são feitos de madeira, que ainda são usados. Mais adiante, passam a ser feitos de metal,

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seja ferro, seja latão. Até hoje, na marcenaria, os mais aristocráticos têm uma das pernas em jacarandá com guarnições em latão. Os mecânicos adotam soluções mais sóbrias, construindo suas ferramentas totalmente em metal e raramente com decorações. Às vezes, necessitamos marcar um grande ângulo reto, como para as fundações de uma casa. Nesses casos, uma velha técnica entra em cena: divide-se uma corda em pedaços iguais e marcase no chão o equivalente a nove pedaços (três ao quadrado). Em seguida, com o mesmo tamanho dos pedaços já usados, tomamos agora dezesseis pedaços (quatro ao quadrado), formando um ângulo aproximadamente reto. Medimos agora 25 pedaços (cinco vezes cinco) e reajustamos o ângulo, para coincidirem as pontas das duas linhas já marcadas. Como demonstrou Pitágoras no teorema que leva seu nome, temos aqui um triângulo retângulo. Ou seja, traçamos um ângulo reto apenas com um barbante. Por que o homem tem essa mania do ângulo reto? É uma pergunta interessante, considerando que a natureza não tem qualquer predileção por ele. Suas construções o ignoram por completo.

Para responder, voltemos a outra indagação semelhante e mais básica. Por que o homem constrói usando elementos retos? Tampouco a natureza é pródiga em construções lineares. No entanto, há muitas razões para isso. Além de outras vantagens, uma peça reta é muito mais resistente à tração e à compressão. Se tracionarmos um arame de aço sem ferramentas especiais, ele não espichará. Mas se for enrolado em forma de mola, cede facilmente. Uma pessoa pode se apoiar num bastão reto e nada vai acontecer. Mas, for curvo, corre o risco de vergar e quebrar. Seja metal, seja madeira, nossas ferramentas têm muito mais facilidade de cortar retas do que curvas. Para transportar, vigas retas são mais fáceis do que curvas. E nas montagens, é mais fácil fazer um móvel, uma máquina ou uma casa com peças retas. Se fossem curvas, teriam diferentes ângulos a serem definidos e igualados. Mas a reta é simples e única. Ou seja, ganhase em padronização. Quando uma peça se encontra com outra, se estão em ângulo reto, os quatro ângulos formados têm os mesmos 90 graus. Assim, tudo fica simétrico, facilitando a construção. E pensando bem, se os planos não são paralelos, não dá para fazer gavetas.

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Nas poucas ocasiões em que os ângulos não são retos, usamos transferidores e sutas. Os primeiros transferem para a peça em construção as medidas definidas em graus de ângulos. No caso, uma fração dos 360 graus em que, historicamente, se divide o círculo. As sutas prescindem de medidas de ângulo. Medem um ângulo numa peça e o reproduzem em outra. Nesse sentido, requerem um grau menor de abstração, pois se trata apenas de duplicar o mesmo ângulo, qualquer que seja a sua medida.

Da ideia de medir ao sistema métrico Se tenho que comprar uma porta para ser ajustada a um portal, pode não ser conveniente levar para a loja uma régua marcada com suas dimensões e, menos ainda, o portal. Mas se o vendedor tem uma régua com marcações semelhantes às da minha, basta fazer chegar a ele a medida do portal. Esta ideia hoje nos parece óbvia, mas as primeiras unidades de medida aparecem muito recentemente, há apenas alguns poucos milhares de anos. Minhas próprias medidas podem me servir a contento. Porém, se meu “metro” é o meu palmo, isso não me permite trocar informações, comprar ou vender, já que poucos conhecem o tamanho da minha mão. Portanto, faz todo o sentido definir algumas unidades de medidas que possam ser usadas por

todos. Historicamente, as dimensões do corpo humano se revelaram como as mais óbvias. O braço, o pé e o tamanho da passada, por exemplo. Ou a distância entre a ponta dos dedos e o ombro. Para distâncias mais longas, o alcance de uma flecha poderia ser a unidade de medida. A distância que um homem pode percorrer em um dia era uma medida frequente. A polegada é um caso curioso, pois foi definida como onze avos do palmo. A palavra “inch” (para polegada em inglês) é uma variante do onze em latim (unciae). Escolhia-se qualquer parte da anatomia, por que não o palmo? Ou o pé? Esse não é o problema. Mas se for o pé, é o de quem, já que as diferenças individuais são grandes? Naturalmente, escolhe-se o pé do mais poderoso, o rei. O problema é que, na Europa, cada lugar tinha seu rei. Em meados do século XIX, ainda havia um pé e uma polegada diferentes em cada uma das cidades grandes europeias. Se os comerciantes de seda em Lion quisessem vender 100 pés da sua mercadoria, seus potenciais clientes alhures não saberiam quanta seda viria, pois não conheciam o tamanho do pé do monarca local. Diante da desordem das medidas, por volta de 1800 convocou-se uma comissão de sábios franceses para escolher unidades universais. Para as medidas de comprimento, escolheram uma fração da distância entre dois meridianos terrestres – que foi marcada numa barra de platina. A distância entre as marcas foi chamada de “metro”. A subdivisão decimal

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foi escolhida – de resto, uma solução amplamente superior às frações de polegada do sistema imperial inglês. Escolher uma medida real da terra para definir o metro parecia uma boa ideia. Contudo, medidas estão sujeitas a erros e dependem da qualidade dos instrumentos usados. Com novas medidas, feitas com aparelhos mais precisos, descobriu-se que o metro real era um pouquinho diferente do que havia sido usado como referência. O que fazer? Redefinir o metro? Percebeu-se que, dentro de pouco tempo, haveria uma estimativa ainda mais precisa para a distância entre meridianos. Mudar de novo? Era um caminho errado. A melhor solução foi abandonar a referência ao meridiano e, simplesmente, dizer que “metro” é o intervalo entre os tracinhos da tal barra de platina. Um segundo problema é que, mesmo na França, seu país de origem, transcorreu mais de um século antes que a população abandonasse a cornucópia de medidas tradicionais. Fora em outros países. Nos países periféricos, a balbúrdia podia ser até maior. Na América Central, a gasolina se vendia em galões, a velocidade máxima era em quilômetros e as pessoas estimavam distância por “varas” (medida espanhola arcaica). Felizmente, para a conveniência de todos, aos poucos, mesmo os países mais longínquos da Ásia, aceitaram o sistema decimal. Por muito que se acuse o imperialismo europeu, pelo menos nesse aspecto foi benéfico, ao impor sistemas comuns de

medidas. O Brasil participa das comissões de cientistas encarregados de implantar tais medidas desde meados do século XIX. A Inglaterra foi a grande retardatária e só nas últimas décadas começou a conversão para o Sistema Decimal. Os Estados Unidos optaram pelo que parece ser a pior solução: usam metro na ciência e o Sistema Imperial no todo dia (ou seja, pés e polegadas). Uma ilustração dramática da confusão reinante foi a destruição de uma nave espacial, resultado da confusão entre centímetros e polegadas, na fabricação de uma junta de vedação. Uma das diferenças entre homem e primata é construir na cabeça o que vai ser construído no mundo real. Como comentou Marx, um passarinho não faz um projeto mental de como vai ser seu ninho. Somente o homem concebe uma imagem de sua casa antes de assentar o primeiro tijolo. De fato, a abstração é uma das grandes diferenças entre homens e outros animais. Em algum momento, a imagem na cabeça adquire uma etapa intermediária, antes de ser executada. Ou seja, migra para sua representação em papel. As primeiras pinturas rupestres eram religiosas. Mas, havendo dominado a arte de representar objetos e animais, o homem percebe que poderia usar essa técnica para explicitar o que gostaria de construir: casas, móveis ou ferramentas. Leonardo da Vinci nos deixa uma enorme quantidade de croquis e desenhos técnicos dos aparelhos que havia concebido, consolidando

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os avanços do desenho técnico. É no próprio Renascimento que as regras de projeção e perspectiva passam a disciplinar tais representações, inicialmente, para a pintura. Mas o desenho técnico pega carona, adquirindo regras bem-definidas de como apresentar uma planta ou um desenho. Daí para frente, nada de complicado se constrói sem ser precedido por um desenho ou uma planta. No processo, inventam-se as ferramentas próprias para realizar os desenhos: prancheta, compassos, réguas, esquadros e tira-linhas. Alguns seriam espartanos na sua construção. Outros poderiam ter guarnições de ébano e marfim. Com o advento do CAD (Computer-Aided Design), tudo fica mais fácil. Mais espetacular é a mudança instantânea da perspectiva em que o desenho pode ser observado. É como se andássemos em volta de uma casa, observando-a de todos os seus lados. Todavia,

para aqueles com pouco nível de escolaridade, cria-se uma horrenda barreira. Isso não acontece apenas com o CAD, mas com todas as novas novas tecnologias no mundo do trabalho.

Padronização e precisão Entre a primeira régua com suas toscas marquinhas e os sistemas atuais de medir e desenhar, a mudança foi muito grande. Mas foram necessários enormes ganhos em precisão da manufatura para ampliar a gama do que conseguiríamos fabricar. Uma roda de carro de boi lavrada no enxó e não muito concêntrica vai funcionar perfeitamente. Mas uma roda de locomotiva ou uma turbina têm outras exigências. Seu encaixe no eixo tem que ser perfeito. A precisão é de centésimos de milímetro.

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página ao lado, de cima para baixo: Perspectiva explodida de uma

máquina do Codex Antalicius, de Leonardo da Vinci.

Estojo clássico com instrumentos de desenho técnico, usado por engenheiros e arquitetos.

Sem avanços na precisão dos componentes, não se realizam os sonhos dos inventores. Ao pensarmos os avanços da indústria, raramente nos detemos nos assuntos de padronização. No entanto, são aspectos fundamentais para viabilizar o desenvolvimento industrial. Foram séculos para conseguir que todos se entendessem e padronizassem seus produtos.

O parafuso de um fabricante entra na porca de outro? Como fazer com que os parafusos fabricados por um mecânico possam caber nas porcas feitas por outro? Entra aí um dos processos mais essenciais na difusão tecnológica: a padronização. É preciso que todos se ponham de acordo com relação a medidas, bitolas e passes das roscas. O espaçamento entre os dois trilhos ferroviários foi um problema durante muito tempo. Os vagões usados em um país não andavam nos trilhos dos outros. Conseguir padronizar trilhos e tudo o mais foi um marco da Revolução Industrial, em momentos em que não havia qualquer mecanismo voluntário ou governamental para fixar normas. A padronização dos parafusos veio da iniciativa de Joseph Withworth, modesto mecânico que se torna um fabricante bem-sucedido em Manchester. Consegue se pôr de acordo com outros produtores

para definir o que lhe parecia ser o melhor perfil e ângulo para os filetes de rosca. Naquele momento, criou um padrão praticamente mundial. Numa loja de ferragens no interior do Brasil, é possível pedir um parafuso de um quarto de polegada com rosca Withworth e receber exatamente o que aquele mecânico inglês havia desenhado. O desenvolvimento do Sistema Métrico Decimal não deixa de ser o resultado de um grande esforço de padronizar unidades de medida. Mas numa indústria com um tecido industrial complexo, grande parte dos componentes também precisa ser padronizado. Não é possível saber a espessura da chapa de ferro a ser usada num automóvel, a rosca das lâmpadas, a viscosidade do óleo, os tamanhos dos rolamentos, as especificações mínimas de isoladores elétricos sem que todos se ponham de acordo com relação à bitola das peças e componentes, bem como em muitos outros elementos. Os países anglo-saxões sempre caminharam pela via das normas voluntárias e discutidas pelos interessados. Já outros países, como França e Alemanha, confiaram mais em ações do Estado para estabelecer padrões. O caminho foi longo e cheio de acidentes de percurso. E em muitas áreas, como a informática, dado o voluntarismo dos fabricantes americanos, estamos longe de haver chegado a padrões suficientes, embora os mecanismos estejam muito mais azeitados do que antes. Talvez seja correto dizer que caminhamos para soluções intermediárias, combinando o público e o

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privado. A ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas), o órgão normativo do Brasil, é uma instituição privada, sem fins lucrativos e que funciona com comitês de interessados no desenvolvimento dessa ou daquela norma. É importante notar que as normas não têm força de lei. Para que sejam obrigatórias, o Estado tem que criar e aprovar legislação sobre o assunto – o que pode fazer ou não. Quando há questões de segurança envolvidos, as normas costumam se transformar em imposições legais. Vale registrar que a ISO (International Standards Office) é a correspondente internacional da ABNT. Por meio dessa associação, as normas de um país podem ser compatibilizadas com as de outro, o que é um grande avanço. Qualquer que seja a boa vontade dos parceiros, o processo de criar e aprovar normas é lento e enfadonho. As discussões podem ser infindáveis. A utilidade disso pode não ser aparente, mas é impossível subestimar a importância de ter normas corretas para quase tudo que diz respeito à indústria. Afinal, sem normas, como fazer com que as brocas de um fabricante sejam do tamanho do parafuso do outro? Há, todavia, outro aspecto das normas que é menos conhecido. Na discussão e aprovação de um conjunto de normas, os membros dos comitês buscam soluções que lhes tragam benefícios próprios. Na Itália, o espaguete é seco em varas de madeira, desde Marco Polo, sem que se registrem

problemas fitossanitários. No Brasil, os fabricantes do equipamento conseguiram aprovar uma norma que exige secadores de aço inox. Atuaram na discussão das normas e defenderam seus interesses comerciais. Os pequenos produtores, provavelmente, não estavam nas reuniões para defender que não havia problemas com o uso da madeira. E as novas tomadas elétricas, que tantas reclamações recebem? A norma recém-aprovada cria uma demanda adicional por tomadas e adaptadores muito bem-vinda pelos fabricantes. O que terá acontecido nas reuniões? Não adianta culpar a ABNT, que simplesmente administra um fórum dos produtores e consumidores. Em suma, normalização é uma necessidade impreterível. Mas a fabricação de normas é um processo em que se confrontam interesses que podem ser conflitantes. Dependendo do ativismo de uns e da passividade de outros, os resultados não serão os mesmos.

Mais precisão, menos lima Ao longo do tempo, aumenta a precisão na fabricação de componentes. De fato, há inventos que requerem certas tolerâncias e se inviabilizam sem elas. No início do século XIX, Savery, Newcomen e James Watt já pensavam em construir bombas e motores a vapor. Porém, não davam certo porque faltava precisão

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na usinagem de cilindros e pistões. O resultado era uma pífia compressão, impossibilitando sua eficácia. Foram precisos consideráveis avanços na precisão da usinagem para que houvesse suficiente compressão nos cilindros. Mesmo no desenvolvimento científico, em que se pensa automaticamente que primeiro vem a ciência e depois sua aplicação na tecnologia, nem sempre é assim. Muitas vezes são precisos avanços na tecnologia para que a ciência adquira os instrumentos requeridos para seu avanço. A qualidade de microscópios e telescópios dependia da precisão no polimento das lentes. Enquanto essas técnicas não avançavam, os cientistas não podiam fazer as observações que fizeram depois e revolucionaram a física. Até a segunda metade do século XIX, a figura mais importante numa fábrica de relógios suíços era quem fazia a montagem final dos componentes dentro do chassis. Isso porque as pequenas diferenças dimensionais tinham que ser corrigidas na lima, quando uma peça era confrontada com a outra. O mesmo ocorria com as armas. Na montagem do fecho de um rifle usado na Guerra Civil americana, cada componente tinha que receber uma limadinha final. Porém, as fábricas da Nova Inglaterra conseguem um avanço extraordinário. Desenvolvem técnicas para aumentar a precisão na manufatura dos componentes das suas armas. Com isso, deixam de ser necessários os ajustes individuais na montagem, promovendo um grande salto de produtividade. Historiadores

mencionam que tal avanço teria sido um fator importante para a vitória do Norte. As mesmas técnicas migraram para as fábricas de relógios americanas. A grande exposição internacional inglesa no Cristal Palace, exibe suas máquinas de usinar peças de relógio. Assustados, os visitantes suíços se dão conta de que não poderiam competir com os americanos. Isto é, salvo se fizessem o mesmo. E foi isso que aconteceu, mudando o panorama mundial da manufatura nesse e em outros produtos. Um engenheiro da Tchecoslováquia que imigrou para o Brasil contava de sua experiência naquele país, ocupado pela Alemanha durante a Segunda Guerra. Construía componentes mecânicos para motores de avião enviados para as fábricas alemãs. Naturalmente, os engenheiros da fábrica não estavam nada felizes em abastecer a indústria nazista. Mas tinham que produzir e seguiam estritamente os calibres fixos estipulados para as peças. Não se sabe como, porém, os calibres originais foram substituídos por outros praticamente iguais. Só que praticamente não é igual! Ao se montarem os motores na Alemanha, as peças não se encaixavam por estarem centésimos de milímetro fora da dimensionalidade exigida.

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7. A história dos materiais Os materiais sofreram, ao longo dos séculos, uma gigantesca evolução. O homem não poderia ter provocado tantas mudanças no mundo sem que os materiais à sua disposição houvessem também se modificado dramaticamente. O que se faz com os novos materiais não seria possível com os que havia antes. Exceto pela madeira maciça, dos materiais que vemos à nossa frente, nenhum existia há 5 mil anos e poucos existiam antes do Império Romano. Em casa ou no escritório, ao olhar em redor, pouquíssimos dos materiais que nos cercam existiam antes do nascimento de pessoas que ainda estão vivas. Um material novo e melhor para certos usos, no entanto, não necessariamente relega os outros ao desuso. Quando chegam novos materiais, alguns são abandonados, como o bakelite, mas outros permanecem. Além das propriedades definidas pelos engenheiros e exigida para algumas tarefas, a estética e a nobreza não deixam de contar na escolha dos materiais. Uma tábua de jacarandá não perde o seu encanto. Os mármores e os granitos continuam sendo usados, assim como o fascínio pelo ouro. Na busca pela performance (que significa propriedades superiores, para responder a cada situação), aumenta duplamente o grau de complexidade envolvido. Aumenta a complexidade do processo produtivo e a proporção de objetos construídos com mais de um material, para atender aos usos desejados.

Cortar uma árvore na floresta é mais simples do que produzir aço, que, por sua vez, é mais simples do que produzir os novos materiais cerâmicos mais duros do que o próprio aço. Mesmo um objeto que mal tem um século, como o automóvel, hoje embarca uma variedade muito maior de materiais. Ao pensar em materiais, há que considerar as suas origens e a forma de produzi-los. Para a madeira, basta cortar a árvore e deixar secar o tronco. Os metais são o resultado de uma redução em forjas ou fornos. Os plásticos (polímeros) não existem na natureza e são criados a partir de matérias-primas inesperadas, como o petróleo. Os materiais cerâmicos são cada vez mais importantes e surpreendentes. Quem diria, uma faca de cerâmica, o mesmo material do vaso de porcelana que se despedaça, com um mero esbarrão! Respondendo às necessidades do uso, a escolha depende das propriedades fundamentais dos diferentes materiais: compressão, flexão, cisalhamento, tração, densidade, dureza e condutividade elétrica. Mas há que se considerar também o custo (do material e da usinagem) e sua estabilidade (resistência à degradação, por exemplo, pela ferrugem). Igualmente, hoje pensamos no seu impacto negativo sobre o meio ambiente. Qualquer que seja o material, impõe custos para o meio ambiente, na sua extração, produção, uso e descarte. Trata-se do gasto de energia (renovável ou não) requerido para sua extração e produção, e mais o

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Típica moringa andina précolombiana.

na página ao lado:

Boneco dos índios Cunas do Panamá.

eventual impacto ambiental negativo da sua aplicação. E finalmente, o custo de dar um fim apropriado ao que deixou de ter função. No extremo, o arsênico e o DDT se revelaram trágicos para o meio ambiente. Alguns materiais, como a madeira, são renováveis, pois se consumidos podem ser novamente produzidos pela natureza, se as condições forem corretas. Para outros, como o petróleo, o estoque total foi determinado há milhões de anos. Algum dia vai acabar. Além disso, é poluente. No momento em que nos tornamos mais e mais conscientes das agressões ao meio ambiente e dos danos que isso pode causar, devemos ponderar se é uma boa escolha, tendo também em vista seu impacto ambiental. Ao decidir o que usar, consideramos todas a suas propriedades e sempre buscamos a melhor combinação entre propriedades e custos, diante de alternativas cada vez mais variadas

Os materiais que nos cercam11 Por muitos milênios, toda a tecnologia do homem se valia de pouquíssimos materiais. Na verdade, além de pau, pedra e osso, pouco havia. Talvez uma concha aqui, uma embira ali ou uma pele de animal acolá. As ferramentas possíveis com paus e pedras são muito limitadas. No entanto, sem os materiais que vieram depois, não há como pensar na construção de melhores ferramentas. Os primeiros grandes saltos foram a cerâmica queimada e os metais. Foi preciso esperar o decurso de 2 milhões de anos dos hominídeos até que tais avanços fossem conseguidos. De fato, ocorreram pouco antes da era cristã. Ou seja, é tudo muito recente. A metalurgia surge há pouco mais de 3 mil anos. O vidro só se dissemina durante o Império Romano. O papel é mais antigo, mas não tanto. Os plásticos começam a aparecer em meados do século XIX. As grandes novidades cerâmicas somente emergem em meados do século XX. Mas desde então multiplica-se rapidamente a variedade de novos materiais. Repetindo, a pletora de materiais que nos cercam tem menos de dois séculos de história. Só a madeira existe na natureza, pronta ou quase pronta para o uso. Os outros materiais foram construídos pelo homem. 11 Esta seção muito se beneficiou da leitura do livro de Mark Miodownik, Stuff Matters (Boston: Mariner Books, 2015)

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Passamos em revista os principais materiais de que dispõe hoje o homem. Foi excluída a pedra, apesar de continuar sendo usada. De fato, não parece que seu consumo haja reduzido. Contudo, pela sua simplicidade, não justifica um tratamento mais longo.

Madeira, nossa amiga de sempre No momento em que começa a inventar objetos e ferramentas, os primeiros hominídeos encontram pedras e paus à sua frente. Esses são os primeiros materiais com que convivem e até hoje continuam em cena. Como muito se sabe e se falou sobre madeira, o presente texto pode ser breve. Vale repetir que a madeira é o único material da lista que existe sem a intervenção necessária do homem. Todos os outros foram criados por ele. Nos climas temperados, as florestas têm pouca variedade. Dez espécies de árvores são usualmente citadas. Lá, um marceneiro provavelmente já trabalhou com todas ou quase todas elas. É quase nada, comparado, por exemplo, com a Amazônia ou a Mata Atlântica. Entre nós, a variedade de essências é estonteante. Uma pesquisa antiga identificou 300 espécies num só hectare da Amazônia. Tipicamente, um profissional não conhece senão umas poucas espécies. Na verdade, apenas cerca de dez por cento das espécies da Amazônia são comercializadas.

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Cada madeira tem um uso ou conjunto de usos diferentes. Algumas são fáceis de trabalhar, como o mogno ou o cedro. O pinho é fácil de trabalhar e barato, mas é demasiado plebeu. Outras são difíceis, por serem duras e terem as fibras arrevesadas, como o jacarandá ou o Gonçalo Alves. Mas é entre as raras e difíceis que estão as mais belas. Algumas são mais resistentes, prestando-se à construção civil, como o ipê. Na verdade, a duração de uma peça de madeira depende de muitos fatores, incluindo a espécie considerada. Algumas resistem melhor às agressões do cupim e da podridão, como a candeia ou o pau ferro. Portanto, podem ficar ao ar livre, dispensando maiores cuidados. Não podemos, contudo, ignorar a influência forte das técnicas construtivas usadas. Madeiras que tocam o solo tornam-se muito mais vulneráveis. Mesmo com as mais resistentes, é apenas uma questão de tempo para que sejam infestadas. A madeira não teme a água. O que a compromete são as técnicas construtivas que não permitem uma

boa drenagem da água e da umidade. Os carpinteiros japoneses do século VII já sabiam disso. Por essa razão, apoiavam os esteios em blocos de pedra acima do nível do solo. Graças a esse cuidado, muitas peças de pinho instaladas nessa época sobrevivem até hoje. Não foram poucos os países que cortaram mais do que a capacidade de regeneração natural. Em alguns casos, a terra foi desertificada. Em outros, como nos países europeus, foram adotadas políticas enérgicas para reflorestar. Nações como a França têm hoje superávit de lenha e madeira para todos os fins. No Japão medieval, a construção de templos praticamente esgotou o estoque dos troncos mais longos. Motivada pela falta de árvores seculares, nasceu a sofisticação deste país nos encaixes necessários para usar peças mais curtas. De fato, nenhuma outra sociedade desenvolveu na construção civil igual variedade de encaixes e emendas para madeiras. O Brasil avançou depressa demais, destruindo quase toda a Mata Atlântica e boa parte da Amazônia. Felizmente, há hoje uma consciência crescente do

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ao lado e página anterior:

Detalhes da exposição A Arte do Ofício.

problema e tentativas sérias de reverter a situação. Mas quanto às matas nativas, o jogo está empatado, na melhor das hipóteses. Diante de uma escassez crescente de boas madeiras, vários caminhos são tomados. O mais óbvio é o reflorestamento, de preferência com essências nativas. Mas essa opção consome tempo, pois são árvores de crescimento muito lento. Daí o reflorestamento com espécies que crescem rápido. O eucalipto, com suas centenas de variedades, é a mais usada. Vale notar que não faz sentido arrasar uma floresta nativa para plantar eucalipto. Contudo, carecem de base científica as condenações simplistas ao uso dessa espécie nos projetos de reflorestamento. O pinus eliotis é outra madeira plantada em larga escala. Variedades exóticas também são usadas, particularmente o mogno africano e a teca. Por resistirem melhor às pragas, costumam ser mais vantajosas do que as variedades brasileiras. Merece nota o avanço brasileiro na engenharia genética do eucalipto. Além dos ganhos na velocidade de crescimento, há tentativas de usar a árvore para a marcenaria. O desafio clássico é que o tronco tem um grau muito elevado de umidade. Por essa razão, o processo de secagem leva à criação de tensões que acabam por rachá-lo, ficando inutilizável. Novas técnicas de secagem permitem controlar o problema, e é de se notar um uso nobre dessa madeira em outros países.

O avanço mais criativo foi o desenvolvimento da variedade Lyptus, voltada para usos em marcenaria. Embora a sua produção ainda seja limitada, parece ser um caminho altamente promissor. Outro caminho inevitável é usar melhor a madeira cortada. As perdas nas serrarias são um problema subestimado, pouco entendido e mal equacionado. Dados o primitivismo dos operadores e o mau estado das máquinas, as estatísticas de perdas são assustadoras. Esse é um assunto a merecer bem mais atenção. Uma área em que há avanços é no reaproveitamento das sobras. Peças curtas são coladas umas às outras. Os cavacos viram serragem, que, misturada com cola e comprimida em prensas poderosas, torna-se Eucatex, MDF ou OSB. A limitação desse reaproveitamento é a pequena escala de muitas serrarias, não justificando a construção local das fábricas voltadas para esses subprodutos. Apesar de haverem dominado o mercado de móveis de cozinha e banheiro, há um certo preconceito contra estes materiais que não passam de serragem ou cavacos colados. Quem trabalha com eles pejorativamente chamado de “caixoteiro”. Mas vejamos um fato curioso. O que é a madeira maciça? Na verdade, ela é composta de fibras de celulose coladas por uma substância produzida pelas próprias árvores e chamada de lignita. Ou seja, tudo é celulose colada. Na árvore, com uma cola natural. No MDF, com alguma cola desenvolvida pelo homem.

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Facão tradicional gurka, do Nepal. Desenhado para decepar cabeças.

Ao contrário de produtos desse tipo, incluindo o compensado, a madeira maciça está permanentemente sujeita à contração e dilatação, causadas pelas mudanças de umidade do ambiente. Assim, as técnicas construtivas devem permitir esse movimento – o lateral é muito mais acentuado do que na direção das fibras. A não se tomar tais cuidados, rachaduras e empenos são inevitáveis. As primeiras tentativas de exportar móveis brasileiros para países em que há aquecimento dos ambientes durante o inverno resultou em desastre comercial. Ao chegar o inverno, com a secura do ar, os móveis se rachavam. Em boa medida, esse problema está sob controle. É notável o crescimento dos materiais que substituem ou podem substituir a madeira. Metais perfilados, plásticos de todos os tipos, cerâmicas: a lista não tem fim. Há excelentes razões para evitar um material adorado pelos cupins, irregular, sujeito a empenos e que racha no último retoque de um móvel trabalhosíssimo. Os automóveis, faz tempo, já não usam mais madeira na carroceria. A madeira está saindo também de portas e janelas. Não obstante, há escassez de madeira, e a pirataria e o contrabando de essências raras não recuam. Maior prova da resiliência econômica desse material é que os preços não caem. Mais de 95% das casas americanas são totalmente armadas em madeira. Alemanha e França constroem edifícios grandes e ousados totalmente feitos de lâminas de madeira coladas.

Há pelo menos duas razões para a madeira não sair de cena. Uma delas é que apresenta uma combinação de preços e propriedades físicas que é difícil obter. A madeira resiste à tração, à compressão e à flexão. Manejada com juízo, é um produto sustentável. A segunda razão é o charme, a beleza e o status. Não é por acaso que os Roll-Royce ainda exibem madeira no painel de instrumentos. Quem ama concreto? Quem tem paixão por vidro? Quem é enamorado por ferro? Quem tem uma relação afetiva com um semicondutor? Em contraste, a madeira desperta emoções. É o material que queremos bem perto de nós, em nossas casas. De todos os materiais que são usados para fazer um cabo de faca ou canivete, possivelmente a madeira é a pior escolha. No entanto, quanto mais cara e refinada for a lâmina, maior a probabilidade de que use um cabo de madeira.

Sem ferro barato, nada feito No museu com vista para o encantador lago de Bled, nos Alpes eslovenos, há uma vitrine que ilustra a raridade do ferro. Em algum momento na Idade Média, pressentindo uma invasão inimiga, uma família enterra os seus objetos mais valiosos. Dessa gente nada se sabe. Contudo, o tesouro é encontrado e descobre-se que tudo não passa de um punhado de pregos, que a família considerava seu bem mais valioso.

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Boneca de prata encontrada em ruínas na beira do Lago Titicaca.

No século XVIII, o início da Revolução Industrial corresponde a uma profunda transformação no processo produtivo do ferro e, depois, do aço. A esses avanços corresponde uma explosão em ferramentas e maquinarias necessárias para produção e usinagem dos metais. Antes disso, um artesão tinha não mais do que poucos quilogramas de ferro. Eram suas poucas ferramentas e os pregos das suas portas e janelas. Um operário industrial de hoje, além do ferramental que está na fábrica, terá um carro pesando mais de uma tonelada. De fato, hoje o ferro é barato e está por todas as partes, na construção e nos objetos do cotidiano. O cobre é o primeiro metal a ser usado pelo homem. Otzi, que viveu por volta de 5300 anos atrás, já portava um machado de cobre. Na verdade, o trabalho do cobre precede os avanços na siderurgia, pois ocorre na natureza em estado metálico. Sendo extremamente dúctil, no martelo, é fácil dar-lhe a forma desejada. Mais adiante, lidando com a queima da cerâmica, o homem descobre que, ao esquentar certas pedras esverdeadas (malaquite), elas viram cobre metálico. Por ter uma temperatura de fusão relativamente baixa, é com o cobre que nasce a metalurgia. Mas nasce com uma característica que a acompanha por 5 mil anos e inclui todos os metais. A produção nem sempre dá certo, e ninguém entende bem por quê. A arte dos metais avança por tentativa e erro e pelo trabalho nas oficinas. Tudo é meio mágico e totalmente

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Muiraquitã encontrado na fronteira de Costa Rica com Panamá.

incompreensível. É somente no século XX que se passa a entender a química e a física da metalurgia. É fácil explicar o porquê quando consideramos que essa compreensão requer os avanços da física quântica. Com 300 mil talhadeiras de cobre foram construídas as três grandes pirâmides do Egito. Mas o que faz o cobre fácil de conformar, também o torna pouco apto para ferramentas de corte. A rigor, uma lâmina de cobre fica cega após um único uso. Outro grande salto é dado quando se descobre que, derretendo o cobre e adicionando algum estanho, obtém-se o bronze, uma liga muito mais dura do que qualquer um dos seus componentes. Com o bronze, fabricam-se machados e martelos bem mais robustos. Como entendemos hoje, ao se mesclarem quaisquer metais, a liga resultante é mais dura. Isso porque, ao se misturarem os átomos de um com o do outro, os deslocamentos ocorridos resultam numa estrutura que resiste melhor a forças externas. O desenvolvimento do ferro representa um novo salto em dureza e, portanto, eficiência. Mas requer um domínio de processos metalúrgicos mais complexos, pois sua temperatura de fusão é mais elevada do que a do cobre (próxima de 1500 graus). Decorrem 2 mil anos antes que isso aconteça. As peças de ferro mais antigas foram encontradas no Egito e são de 3500 a.C. Porém, as análises realizadas determinaram ser o metal originário de meteoritos, que caem em poucas quantidades da Terra, a cada ano.

Por volta de 1600 a.C., os hititas, na região da Anatolia, começaram a produzir ferro a partir de minério. Considera-se que, por volta de 1200 a.C., a humanidade tenha entrado na Idade do Ferro. Simultaneamente e em muitas partes do mundo, aparecem sociedades capazes de reduzir os minérios, chegando ao ferro metálico. As nações que dominam sua produção obtêm uma grande superioridade militar, conquistando seus vizinhos. A produção de ferro e aço, entretanto, permanece muito trabalhosa e, portanto, cara. Dessa forma, todos os avanços que culminam na Revolução Industrial, começando no século XVII, dependem do preço do ferro. Há várias maneiras de transformar o minério em ferro metálico. A chamada forja catalã e suas variações são uma tecnologia simples e que pode ser reproduzida em qualquer lugar. Em Minas Gerais, no século XIX, havia um bom número de forjas desse tipo produzindo ferro em pequena escala. Tal método precedeu e conviveu por muito tempo com o alto forno, um empreendimento de maior porte e que permitiu grandes ganhos de produtividade. Os chineses já o conheciam há mais de 2 mil anos. Lá pelo fim da Idade Média reaparece em vários lugares da Europa. Entre nós, apenas em 1900 é iniciada a campanha de um alto forno a carvão vegetal, em Itabirito. Ao contrário de duas outras tentativas efêmeras (Ipanema e Morro do Pilar), essa operação sobrevive até os dias de hoje.

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Como todos os altos fornos usavam carvão vegetal, a expansão da siderurgia inglesa causou o desaparecimento das florestas próximas a ela. O problema era tão sério que, por volta de 1700, a produção de ferro naquele país chegou a diminuir. O primeiro grande avanço, mais ou menos nessa época, é o uso do coque em vez do carvão vegetal. Sendo abundante e usado para aquecimento domiciliar, permite o primeiro grande salto na produção do ferro. Em meados do século XIX, descobre-se que a injeção de ar quente aumenta consideravelmente o rendimento dos altos fornos (os grandes tubos onde é aquecido o ar chamam-se cowpers). Além desses dois avanços, muitos outros contribuíram para que a produção aumentasse e o custo baixasse. Sem tais avanços, não haveria a Revolução Industrial, como viemos a conhecê-la. Há séculos, objetos de chapa fina estão presentes nos mercados. Por exemplo, funis, raladores, lanternas, acabamentos para quinas de malas e móveis de trabalho, bem como inúmeros outros apetrechos. Outro uso são rufos e acabamentos de telhado. Na sua fabricação, basta cortar e dobrar. Complementado com o uso da solda branca (liga de estanho e chumbo), obtém-se uma junção fácil, impermeável e relativamente sólida dos componentes. Dadas as suas docilidade (tecnicamente ductilidade) e facilidade de trabalhar, o cobre vem sendo usado desde o domínio de sua produção, dois ou três milênios antes de Cristo. Com o barateamento das

chapas de ferro, a partir da Revolução Industrial, muitos objetos passaram a ser feitos com esse material. Praticamente todos os eletrodomésticos usam chapa de ferro em seus componentes. O mesmo se dá com a lataria dos automóveis. O grande inimigo da chapa de ferro é a corrosão, no caso, a ferrugem. Daí o esforço para encontrar maneiras de proteger sua superfície, ou seja, torná-la resistente à oxidação. A chamada folha de flandres não passa de uma chapa de ferro recoberta por uma capa finíssima de algum material resistente à oxidação. Ao longo dos anos, esse processo continua evoluindo, seja do ponto de vista da durabilidade do produto, seja da aparência física. A competitividade da chapa de ferro depende dos avanços constantes no seu tratamento de superfície. Em que pese a importância dos produtos construídos com chapa de ferro, o barateamento do plástico e das técnicas de injeção trazem ao mercado um concorrente formidável para elas. Grande parte do que era feito de lata pode ser feito de plástico, a uma fração do seu custo. Tudo indica que a chapa metálica vai sobreviver, mas tem que compartilhar o mercado com plásticos cada vez mais variados e resistentes. Em paralelo aos esforços de produzir o ferro, desenrola-se a misteriosa aventura do aço. Ferro e aço? Qual a diferença? No essencial, é a quantidade de carbono que contêm. Se é pouco (1%), estamos diante do ferro batido ou ferro doce. Para ilustrar,

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Imagens da exposição A arte do ofício.

são os vergalhões usados nas construções. É macio e dúctil, mas não permite uma lâmina de corte. Se aumenta o carbono (2% a 3%), é aço, com toda a sua dureza e valentia. Se aumenta mais ainda (4%), é o ferro fundido, duro, mas que trinca com facilidade. Isso é o que sabemos hoje. Antes, não se entendia nada nem havia clareza quanto a processos e mágicas usados para obter o aço. Percebia-se que a maneira de esfriar o metal tinha algo a ver com suas propriedades físicas. Aquecendo e bruscamente esfriando o aço na água ou no óleo, ele transforma-se num metal cuja dureza podia ser controlada, ainda que não tão bem assim. Esses processos são hoje chamados de têmpera e revenimento. Ainda assim, era necessário esquentar o bloco de ferro dezenas de vezes e seguir malhando, até que o carbono do carvão se incorporasse ao ferro rubro. As espadas medievais, mesmo as dos reis, eram afiadas à perfeição, mas em pleno campo de batalha, podiam se partir no meio. Até o século XX, contudo, ninguém superou as tecnologias japonesas, desenvolvidas nas épocas medievais. A famosa espada dos samurais é uma obra-prima de artesanato, pois consiste num núcleo flexível recoberto na forja por uma fina camada de aço muito duro. De tão competentes, permitiam, de um só golpe, decepar a cabeça do adversário. Reproduzindo a mesma tecnologia, uma espada de luxo leva hoje seis meses para ser produzida. Mas as cópias chinesas invadem o mercado, a preços baixíssimos.

Por causa de um inglês chamado James Bessemer, os processos misteriosos, dominados apenas por certas pessoas, começam a perder terreno no século XIX. Seus experimentos levam-no a injetar oxigênio no ferro líquido, até que seja atingido o teor de carbono desejado. Não era tão fácil assim e decorre quase meio século antes que a fórmula produza resultados previsíveis. Contudo, aumenta a possibilidade de fazer aço bom e barato. Nos Estados Unidos, Andrew Carnegie, investindo no seu aperfeiçoamento, consegue baixar o custo do aço de 170 dólares a tonelada, em 1867, para 14 dólares, antes do fim do século. Após a Primeira Grande Guerra, na busca de uma liga de aço melhor, H. Brearley começa a adicionar ao aço tudo que lhe ocorria. Na verdade, os resultados foram pífios. Porém um dia, entrando no laboratório meio escuro, nota que na sucata dos experimentos fracassados havia uma peça que brilhava. Examinando, viu que, ao contrário do resto da pilha, ela não havia enferrujado. Foi ver com que havia misturado o aço e descobriu que era cromo. Como hoje sabemos, há certa proporção de carbono com cromo que impede a ferrugem. Foi a primeira peça de aço inoxidável, uma fórmula que se revelou vencedora. Com sua disseminação, ao comer, desfrutamos o paladar da comida, não o gosto de ferro dos talheres. A essa longa sequência de avanços corresponde uma expansão nas ferramentas produzidas. Com ferro

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Correia transportadora usada na fabricação de cimento.

e aço baratos, tudo se torna possível e acessível. Muitas fábricas de ferramentas são criadas. Os modelos se multiplicam. Algumas marcas sobrevivem até hoje.

O cimento entra e sai de cena A história do cimento é bastante curiosa. Teve um espetacular desenvolvimento no Império Romano, porém seu uso praticamente desaparece a partir da Idade Média. Somente no século XIX é que volta a ser usado como um extraordinário material de construção. É bem verdade que tudo regrediu com o esboroamento do Império Romano, mas somente o cimento desaparece de todo, mesmo no Renascimento. Por que um material tão resistente, versátil e barato passou quase 2 mil anos esquecido? Tanto é robusto que ainda se encontram perfeitamente íntegras lajes de cimento dos tempos romanos. O mistério se esclarece quando aprendemos que o cimento romano foi um acidente da natureza. Ocorria perto de Nápoles, expelido por erupções vulcânicas poderosas, gerando as temperaturas que derretem as pedras. Para reduzir o cheiro de enxofre que exalava, bastava minerar e misturar com calcário. Com a entropia tecnológica que traz a Idade Média, a técnica foi esquecida. Até o século XIX, ninguém tinha ideia da química que se passava dentro de um bloco de cimento. Ainda

não havia como produzi-lo. De fato, sua produção requer técnicas que estavam além dos níveis atingidos até a Revolução Industrial. Na teoria, é simples. Basta misturar carbonato de cálcio (calcário) moído com algum silicato. Contudo, para completar o processo, essa combinação precisa ser aquecida a 1450 graus. Com o domínio dos processos térmicos que amadurece na Revolução Industrial, torna-se possível e prático obter as temperaturas necessárias. Com isso, o cimento volta a ser um material de construção de primeira linha. O resultado é o que chamamos de cimento Portland, um material bastante peculiar. Somente no século XX começamos a entender a sua química. Ao verter água sobre ele, fenômenos curiosos começam a acontecer. A água é sugada pelo cimento e se combina com ele, convertendo-se a mistura em uma gelatina. A água torna-se parte do cimento, ao mesmo tempo que o torna impermeável. Essa reação química produz uma espécie de ouriço, cheio de tentáculos. Em seguida, esses tentáculos se enredam um nos outros, tornando-se a gelatina mais sólida. Ao cabo de algumas horas, já é uma substância dura, embora leve cerca de um ano para completar-se a cura. Foi logo percebido que esse material tem uma extraordinária capacidade de resistir à compressão. Portanto, é a matéria-prima ideal para fundações de casas e edifícios. Mesclado com brita, o cimento vira concreto, também um material imbatível.

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da esquerda para a direita:

Baixo-relevo inspirado no Modulor em

parede de concreto do edifício do bairro Firminy em Marselha, França. Le Corbusier.

Desenho Modulor estabelecendo

as relações entre o corpo humano e a arquitetura.

Fundação Le Corbusier, Paris. na página ao lado: Le Corbusier.

Desenho Modulor em nanquim e gouache, 1950.

Fundação Le Corbusier, Paris.

Contudo, viu-se também que não resiste a qualquer outro tipo de esforço. Por exemplo, uma coluna inclinada esboroa com facilidade. Diante de suas fraquezas, continuou sendo não mais do que alicerce para as construções. Até que entra em cena Joseph Mounier, um florista francês. Além das flores, fabricava os vasos em que eram vendidas. Usava cerâmica para as suas criações. Porém, além de ser um material bem mais caro, era muito frágil. Resolve então tentar o cimento. Inevitavelmente, encontra os mesmos problemas: os vasos se espatifavam. Vem então a intuição de gênio. Como lidava sempre com arame, para enrijecer o caule das suas flores, pensou em fazer uma gaiola deste material. Em volta dela verteria o cimento? Fez um vaso de planta de concreto armado. Deu certo. Estava completo o ciclo. Cimento com brita vira concreto. E com arames dentro, vira concreto armado. Os avanços ousados da arquitetura moderna logo passaram a se valer desse material para construir vigas, curvas, volutas, marquises e tudo o mais. A imaginação do arquiteto era o limite. O que saía das pranchetas virava edifício. Corbusier e Niemeyer foram os arautos desse uso inovador do concreto armado. No museu do Olho, em Curitiba, vemos a sua ode às curvas: “O que me atrai é a curva livre e sensual. A curva que encontro nas montanhas do meu país, no curso sinuoso dos rios, nas nuvens do céu, no corpo da mulher amada.” E com concreto as curvas tornam-se possíveis.

Antes dos terremotos estéticos da arquitetura moderna, a aparência do concreto era vista de forma muito negativa. Que arquiteto se permitiria mostrar uma superfície cinza e sem brilho? Ótimo para dar estrutura à obra, mas era mister escondêlo com materiais atraentes, como o mármore ou a cerâmica. Em oposição, as justificativas filosóficas e estéticas da arquitetura moderna mandam mostrar os materiais construtivos. Pregavam os líderes: se usamos algum material, não devemos escondê-lo. Assim, o concreto começa a aparecer discretamente em alguns pontos da obra. Chega um momento em que os ícones do movimento, como Mies Van Der Rohe, criam edifícios em que o concreto é totalmente aparente. Aí está Brasília para ilustrar as novas estéticas. Até hoje, o concreto armado é insuperável como material construtivo. Baixo custo, total liberdade de criação e vida longa. Até barcos já foram construídos com concreto armado. Talvez não seja o melhor uso, mas não afundaram.

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Operários egípcios soprando vidro.

Fábrica de vidro da Revolução Industrial (Inglaterra). na página ao lado:

Fabricação de objetos de vidro soprado.

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O vidro, de tão discreto, é transparente É bem verdade que antes do Império Romano já se conhecia o vidro, mas ele era de péssima qualidade e mais opaco do que transparente. Foi a grande onda de globalização promovida pelo Império Romano que permitiu a escala necessária para a criação de fábricas de vidro. A matéria-prima do vidro é a sílica, ou seja, areia, um dos materiais mais abundantes na face da Terra, ao contrário do ouro e das pedras preciosa. Ao microscópio podemos ver que é composta de minúsculos cristais de quartzito, portanto não passa de rocha desintegrada. A metamorfose da areia num cristal ou num tubo de ensaio foi o resultado de uma longa e árdua história. Em tese, basta esquentar a areia até que se transforme no vidro que conhecemos. É simples. O calor gerado pelos raios que atingem a areia do deserto funde a areia e gera bastões irregulares de vidro chamados de fulgurite, que não tem serventia prática. O principal problema na fabricação é a temperatura de fusão da sílica (1200 graus), muito acima da competência exibida pela tecnologia da era romana. Finalmente, descobre-se que, adicionando carbonato de sódio, é possível derreter a areia com uma temperatura mais branda, além de dar transparência ao vidro. Inicialmente, era produzido com a cinza de plantas queimadas. Depois, como uma transformação

química do sal de cozinha. Era tudo que se precisava para o desenvolvimento do vidro. Inicialmente, o vidro era fundido em moldes, como se fazia com o chumbo. Mas como não fluía bem, o produto era muito rudimentar. Na mesma Itália, descobre-se que, com um pedaço de ferro, é possível pescar um naco de vidro derretido. Com muito jeito, pode-se fazer com que tome as formas desejadas. Igualmente, se for um tubo, é possível soprar, criando peças ocas, como garrafas, copos etc. Muitos turistas em Veneza visitam oficinas de soprar vidro que utilizam uma tecnologia não muito distante daquela usada no Império Romano. Descobriu-se também que era possível derramar o vidro derretido numa forma plana. Dessa forma, ele liso embaixo, pois era perfeitamente plano o seu fundo. E ficava liso em cima, pela ação da mesma gravidade que faz perfeitamente plana a água numa bacia. Assim se inventa o vidro plano e transparente, cujos usos são quase infinitos. As casas que precederam a invenção das vidraças permaneciam escuras ou sob chuva e frio, além de não terem janelas. O vidro resolve brilhantemente todos esses problemas de uma vez só. A janela equipada com um painel de vidro é um grande avanço na construção civil. De início, a capacidade de produzir painéis de vidro de certo tamanho era muito limitada. Para aumentar a área envidraçada, era necessário emendar vários pedaços de vidro usando caixilhos de chumbo. Mas essa dificuldade foi aos poucos superada.

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Operários fabricam placas de vidro. Fabricação de um vaso de Murano, Itália.

na página ao lado: Preparação de um jarro em vidro soprado.

Se as casas eram escuras, o que dizer de templos e catedrais? A solução óbvia era o vidro. Nesse momento, começam a entrar nas construções religiosas as preocupações estéticas. Os avanços na produção de vidros coloridos abrem as portas para os vitrais, cada vez mais trabalhados e lindos. Quem não viu reproduções dos que estão na Catedral de Chartres, na França? De uma forma ou de outra, as janelas de vidro vieram para ficar. Mas no século XX, com a possibilidade de fabricar grandes painéis de vidro, a transparência passa a ser um elemento estratégico da arquitetura. O “fora de casa” vira “dentro de casa”, ao se usarem grandes vidraças.

Mies van der Hoe lança a moda das paredes totalmente de vidro. O material se metamorfoseia numa solução estética em si mesmo. Contudo, países de clima tropical, como o Brasil, imitam essa moda das enormes vidraças. O resultado é o grande desconforto térmico dos moradores, pois as casas viram estufas. Para remediar o calor, instalam-se os aparelhos de ar-condicionado, recuperando o conforto, à custa de contas de eletricidade infladas. Copos e taças de vidro trazem uma nova experiência gustativa. Além disso, permitem examinar a bebida que está a ponto de ser ingerida. Apenas isso faz aumentar as exigências de higiene e qualidade do produto. Acredita-se que tomar vinho em taças de vidro trouxe um novo padrão de expectativas dos consumidores. Ainda mais dramática foi a invenção da garrafa. O vinho, sem contato com o ar, tem uma vida que pode se alongar por muitos anos. Porém, logo que começa a ser servido do tonel, não há como evitar o ar que o substitui. Portanto, ainda que o primeiro gole possa ser maravilhoso, começa a oxidação e a perda de qualidade. Diante disso, são poucos os incentivos para preparar um vinho que, apenas nos primeiros goles, seja de excelente qualidade. A invenção da garrafa muda tudo, pois o vinho passa a ser armazenado por alguns poucos dias, tempo insuficiente para a oxidação. Essa novidade dá um impulso incalculável na produção de bons vinhos. Ulisses, na sua Odisseia, comenta a qualidade

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Com o passar do tempo, descobriu-se que componentes nobres como o chumbo e o bário transferiam ao vidro um

aprimoramento na qualidade. Surge então o vidro conhecido como “cristal”.

na página ao lado: A madeira tornou-se a principal matéria-prima para a fabricação do papel, graças a invenção do triturador. Com o uso de máquinas aumentou a velocidade de produção de papel.

dos vinhos desse ou daquele rei de quem foi conviva. Mas é razoável imaginar que se estivesse habituado os vinhos, hoje comuns e correntes em supermercados, não teria a mesma opinião sobre os que provou. Nos últimos dois milênios, todas as comparações mostram a dianteira da China em matéria de inovações, pelo menos até o Renascimento. Mas há um aspecto em que a superioridade do Ocidente teve um impacto devastador. Embora conhecesse os processos de sua fabricação, a China praticamente não usou o vidro. Conveniências à parte, sem o vidro não há telescópios nem microscópios. Todo o desenvolvimento científico que depende de ver mais longe ou mais perto ficou profundamente prejudicado pela ausência desses dois instrumentos. A astronomia e o estudo das bactérias que corroem nossa saúde não têm como avançar. A transparência do vidro permite um ganho espantoso de conveniência nos laboratórios de química. Como saber a cor do líquido que está dentro de um tubo de ensaio feito de cerâmica? Como examinar um líquido num Becker de latão? Está turvo ou transparente? O vidro, plebeu como o conhecemos, não parou de evoluir. No lado artístico, transforma-se em lustres, taças e muitos outros objetos de beleza fulgurante. Para ganhar status, muda de nome, vira cristal. Mas é apenas um processo mais refinado de fabricação do mesmo e velho vidro.

No século XX, começa outro ciclo de avanços na fabricação do vidro. No Pyrex, a adição de óxido de boro controla as tensões internas do vidro. Isso impede que um aumento de temperatura desequilibre a estrutura molecular do objeto, levando à sua fratura. Isso nos permite assistir ao frango sendo assado no forno e a cozinhar em recipientes de vidro. Ao se quebrar uma vidraça, produz-se um sem-número de guilhotinas, prontas para ferir ou decapitar quem estiver próximo. O chamado “vidro temperado” multiplica as fraturas resultantes. Como resultado, em vez de lâminas pesadas e cortantes, vira tudo uma infinidade de pequenos estilhaços. São capazes de arranhar ou esfolar, mas não representam o mesmo perigo de antes. Ao intercalar ao vidro películas de plástico, aumenta a sua resistência. Conforme o arranjo escolhido, torna-se um material à prova de bala de diferentes calibres. Em anos recentes, desenvolvemse películas e outros revestimentos que bloqueiam a irradiação de calor através do vidro. Antes de mudar de assunto, vale a pena mencionar um primo do vidro, de excepcional importância. É o parente ilustre da família. Apesar de muito pequeno, mudou nossas vidas. Trata-se do semicondutor. Incluímos aqui, junto com o vidro, pois tal como ele não passa de uma manifestação do silício. Onde está a eletrônica – e está por todas as partes – estará também um transistor construído com um semicondutor de silício.

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O papel: plebeu e fundamental Ainda mais plebeu que o vidro, pouca atenção damos ao papel, que, de tão essencial, passa despercebido. Sua origem está na China, sendo considerado uma das quatro grandes invenções daquele país. Lá pelo século III começou a ser usado para a escrita. No século VI, encontra um uso menos nobre mas não menos conveniente: papel higiênico. No fundo, o papel não passa muito de rapas de celulose moídas até que virem fibras microscópicas. Misturadas com a água, produzem uma papa que é depositada em superfícies planas, para que seque. Não é muito diferente disso o que fazem as gigantescas fábricas de papel dos dias de hoje. A fonte principal de celulose é a madeira. De fato, é com ela que a natureza constrói o tronco das árvores. Essa celulose permite que as árvores fiquem de pé, por estarem as suas fibras coladas umas às outras. A cola que realiza tal proeza e á lignita.

Até aqui, vamos bem. Mas para produzir papel com esta celulose é necessário retirar dela a cola, a lignita. Esse é o problema maior. A solução tradicional é moer a madeira numa granulação bem fina, misturar com água e ferver longamente após adicionar substâncias capazes de ajudar no processo. Esses procedimentos se mecanizam, tornam-se mais complicados e eficientes, não parando de avançar. O papel chega ao Ocidente pelo mundo islâmico, onde se havia disseminado a partir do século VIII. Seu uso mais nobre durante a Idade Média era como registro escrito de informações. Um avanço importante na época é a transição do rolo de papel para o livro. Isso permite usar os dois lados, em vez de um único. Além disso, dá acesso imediato a qualquer trecho da obra, obra. Com os rolos de papel, é difícil saltar de um lugar para o outro. Uma característica notável do papel é combinar baixo preço com grande capacidade de estocagem.

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Fabricação de papel. In: Encyclopédie de Diderot et d’Alembert, 1751-66.

qr code: Com Gutenberg, cada caractere

tipográfico metálico era

cuidadosamente alinhado em uma caixa. Mais

adiante, com o linotipo, ao

apertar teclas, o chumbo fundido se transforma em letras. Esse método é sucedido por placas

metálicas gravadas que, por sua vez, desembocam nas impressoras de computador, eficientes e

baratas. Hoje, as impressoras 3D produzem objetos, programados por códigos de computador.

De fato, as folhas finas usadas para a escrita ocupam pouco espaço. Junto com o desenvolvimento da impressora com tipos móveis, cria-se uma forma imbatível de arquivar e disseminar informações. A Bíblia passa a ser impressa, sendo o seu custo de produção drasticamente reduzido. Nessa nova forma, ganha o mundo. Isso vai contra os preceitos da Igreja Católica de que a Bíblia não é para ser lida por qualquer um e, ainda menos, interpretada. A novidade não foi apreciada pela Igreja. Ademais, junto com ela, passam a circular as ideias de Lutero, opostas às do catolicismo. Sem papel e sem Gutenberg, é difícil imaginar que o Protestantismo se tornasse uma força a ser enfrentada pelo Vaticano – não necessariamente com grande sucesso. Entre os usos do papel, vale lembrar que o papelão é o esteio de toda a indústria de embalagens. Ainda não apareceu no horizonte algum produto que possa disputar com ele esse mercado. Vale a pena mencionar algo que, além de outros usos, tem um significado afetivo enorme: a fotografia. A nobreza perenizava seus antepassados com pinturas a óleo. Para um contato mais íntimo, os entes queridos eram pintados em medalhões ou relicários e pendurados ao pescoço. E os outros mortais menos prósperos? Não tinham recursos para contratar pintores que eternizariam as imagens familiares. Entra em cena o papel fotográfico. Qualquer casa brasileira, por modesta que seja, sempre terá pendurada na parede as fotografias de casamento

ou dos antepassados – sempre exageradamente retocadas. E dentro de alguma gaveta haverá alguns “instantâneos”, já amarelados. E o papel-moeda? Com toda a popularidade dos cartões de crédito, as notas ainda são a forma predominante de fazer pagamentos. Por razões óbvias, é infinitamente maior o cuidado requerido para produzir o seu papel e imprimir as notas, comparado com qualquer outro uso. De fato, não há outro papel que haja recebido mais atenções na sua manufatura.

Os plásticos e suas múltiplas encarnações Cimento é cimento, vidro é vidro, mas o plástico é feito de qualquer coisa. Pode ser de derivados do petróleo, ácido nítrico com polpa de papel, ou de outros ingredientes. Na prática, o que chamamos de plástico não é uma matéria-prima ou um material específico, mas uma propriedade atribuída a qualquer coisa que tenha uma base orgânica – ou seja, contenha carbono. Em termos muito simples, é algo que pode adquirir formas variadas e complexas, de acordo com nosso desejo. Na sua primeira encarnação, plástico é celuloide, inventado por um químico amador chamado John Wesley Hyatt, lá pelo fim do século XIX. Curioso, teimoso e ambicioso, ele viu um anúncio de uma grande fábrica de bilhares e sinucas oferecendo um generoso prêmio a quem produzisse uma bola que não

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fosse de marfim. Com a popularidade crescente desse jogo, o marfim estava escasseando. Ao que tudo indicava, a mistura de celulose com ácido nítrico poderia ser a solução. Como atendia a todas as exigências de uma bola de sinuca, começou a ser produzida e distribuída. Só que tinha uma propriedade adicional indesejada. Quando o jogador exagerava na força do taco, a bola explodia, com consequências graves para quem estivesse por perto. Além do que, diante da explosão misteriosa, os clientes do estabelecimento puxavam suas armas. Esses percalços, porém, não foram suficientes para intimidar Hyatt, que passou a fabricar pentes, cabos de escova ou de facas com a adição de nafta à sua fórmula. Uma das virtudes do celuloide é ser capaz de imitar a cor e a textura de materiais muito mais caros, como o marfim, o ébano ou a madrepérola. O negócio prosperou, até que, por uma injunção judicial, o celuloide e sua fabricação tornaram-se de domínio público. Era o que o mercado precisava para alimentar as aspirações de uma onda de gente que se tornava mais próspera, mas não a ponto de poder comprar objetos feitos com esses materiais mais nobres. Alguns outros usos foram tentados, sem sucesso. Por exemplo, dentaduras de celuloide não tinham a rigidez necessária, além do gosto ruim da cânfora com a qual era feita. Mais adiante, Hyatt foi visitado por George Eastman, que produzia equipamentos fotográficos.

Segundo entendia, as chapas de vidro prestavam-se maravilhosamente para receber emulsões fotográficas e produzir imagens de esplêndida qualidade. Porém, dez placas fotográficas era o máximo que um fotógrafo conseguia carregar, a não ser que contasse com o auxílio de assistentes. Filmes de celuloide, muito mais leves, permitiriam tornar a fotografia uma atividade ao alcance de todos. De fato, George Eastman desenvolveu um filme de celuloide e criou uma máquina simples e barata que chamou de Kodak. Era tão grande a sua preocupação de tornar fácil o seu uso que já vinha com um filme instalado. Ao terminar, o cliente levava a máquina para a loja, onde o filme seria trocado por um virgem e as fotos, reveladas. O passo seguinte é o uso do filme de celuloide na nova máquina que estava sendo desenvolvida na entrada do século XX. Sem ele, faltaria a Edison e os irmãos Lumiere um elemento essencial para viabilizar o projeto. Daí em diante, não cessa mais o fluxo de novos materiais plásticos. Seguindo o celuloide, aparece a bakelite, que é o resultado da mistura de formol com fenol, inventado por um químico americano de origem belga. Suas pesquisas visavam desenvolver um verniz que penetrasse na madeira. Mas, ao cabo de mutações sucessivas, chegou a esse material plástico de incontáveis virtudes. Até a década de 1940 acima: Detalhes da Exposição A Arte do Ofício.

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Grânulos de plástico para ser usado em máquinas de injeção. Exposição A arte do ofício.

ao lado: Ceramista Wagner da Mata

Sudário, que participou da Exposição A arte do ofício.

não tinha concorrentes e era usada para uma série de coisas. O clássico telefone preto é de bakelite, assim como rádios e outros aparelho eletrônicos. Assim como distribuidores para motores de automóvel, biqueiras de cachimbo e por aí afora. Ainda hoje é usado em blindagens térmicas de foguetes. Na maioria dos casos, no entanto, superado por novos produtos. O primeiro deles é o nylon, produto do pós-guerra. As meias de seda eram o resultado de um processo inescapavelmente caro. Já as de nylon estavam ao alcance de praticamente todas as mulheres. O vinil revolucionou a indústria de discos fonográficos. O silicone dá asas à imaginação dos cirurgiões plásticos. O PVC, com seu baixo preço, é usado para trazer compras para casa ou levar o lixo. Todos esses usos demonstram que havia imenso espaço para materiais baratos que pudessem ser facilmente moldados, qualquer que fosse a forma desejada. Os metais fazem isso, mas apenas ao cabo de um processo trabalhoso e caro. A madeira já vem pronta da árvore, não pode ser moldada. Com ela fazemos uma mesa ou um caixão de defunto, mas não o gabinete de um telefone ou uma furadeira portátil. Máquinas de injetar plástico produzem milhares de peças por hora. Mas são todas iguais. Com as impressoras 3D, fazemos de plástico peças únicas, seguindo não mais do que nossos humores e imaginação.

A cerâmica e seus dois mundos A cerâmica esteve no cotidiano do homem por muitos milhares de anos. Ao andar pela casa ou pelo escritório, topamos com ela a cada momento. Nada mais banal, nada chama menos a atenção. Contudo, esse mesmo material tem outra vida paralela, quase desconhecida da maioria de nós. Alguns produtos classificados de cerâmica têm propriedades extraordinárias e realizam feitos espantosos. Quando compramos uma bonequinha de barro cozido na feira de Caruaru, levamos para casa um objeto muito parecido com os que brincavam nossos antepassados, muitos mil anos atrás. Semelhante não só na forma, mas também na queima. Estima-se que o homem começou a lidar com a cerâmica há cerca de 24 mil anos. Misturando argila com água, era possível construir figurinhas de animais e pessoas. Uma grande descoberta é que o fogo endurecia aquela massa, tornando as peças muito mais resistentes. Continuando a andar pelo mercado, podemos achar interessante uma tigela de barro. Provavelmente, em estilo e fabricação, não será muito diferente das que faziam os homens de dez mil anos atrás. De fato, transcorrem mais de dez mil anos até que o material desses brinquedos (ou figuras religiosas?) seja usado para fins práticos. Nascem então panelas, potes, ânforas, moringas e tudo o mais que facilita a vida cotidiana. Assim a cerâmica

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é o primeiro material criado pelo homem e usado como implemento doméstico. Pelas mesmas razões que hoje compramos uma máquina de lavar pratos, nossos antepassados construíam um pote de cerâmica Desde então, a cerâmica se torna cada vez mais presente na vida do homem. Multiplicam-se os usos e sofistica-se a manufatura. Pela facilidade oferecida pelo meio, torna-se um veículo para as artes visuais. A cerâmica micênica é de extraordinária beleza. Entre os índios andinos e mesmo entre os nossos de Santarém e Marajó, a cerâmica é uma manifestação artística de primeira qualidade. Com ou sem arte, as técnicas avançam. O torno do oleiro é uma das primeiras máquinas a usar o movimento circular. Mas há outras maneiras de moldar o barro. Também na queima há avanços, aumentando a temperatura do forno e desenvolvendo as técnicas de vitrificação que criam uma superfície sem porosidade. Estamos cercados de cerâmica. É o tijolo das paredes, imbatível há dezenas de séculos. Há os azulejos no chão ou na parede. As telhas de barro ou cerâmica são igualmente tradicionais. Algumas panelas de cerâmica resistem a fornos e fogões. À mesa, jamais faltam. Na cabeça dos mais desavisados, cerâmica é coisa velha, barata e confiável. Mas a cerâmica virou um material que ultrapassa esses usos. Nas suas novas encarnações é usada de forma surpreendente. Tem êxito onde outros materiais

falham. Antes de entrar nesses novos usos, vejamos as suas propriedades genéricas. A cerâmica é dura, resiste à compressão, mas é quebradiça e pouco resistente ao cisalhamento. Mas, acima de tudo, não é afetada por ácidos e outras substâncias corrosivas. Melhor ainda, resiste a temperaturas de até 1600 graus. Essas propriedades são o ponto de partida para muitos dos seus novos usos, além dos tradicionais, como tijolos, telhas e azulejos. O primeiro uso técnico da cerâmica foi ainda no fim da Idade Média, quando começa a ser usada para confeccionar tijolos refratários. De fato, se precisamos de 1500 graus para fundir o ferro, a operação tem que se dar dentro de um forno que resista a essa temperatura. Até hoje, os refratários são parte da metalurgia. Estão tecnicamente longe de seus antepassados medievais, mas não são muito diferentes. Em anos recentes, a cerâmica toma novos rumos, ocupando um espaço crítico na manufatura. Nos automóveis, é usada em alguns rolamentos, bombas de gasolina, freios, embreagens e velas. Na indústria aeroespacial, tem muitos usos, incluindo as barreiras térmicas, que impede que os foguetes peguem fogo ao entrarem na atmosfera. Na indústria elétrica, capacitores, dielétricos e isoladores têm a cerâmica como material padrão. O cidadão comum não presta muita atenção à presença da cerâmica em milhares de produtos desse

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naipe. Ainda assim, são usos que já se tornaram tradicionais. Mas novos e inesperados usos surgem a cada momento. São o resultado de muita pesquisa e experimentação. Ferramentas de corte feitas de cerâmica têm um desempenho que pode ser superior ao melhor dos aços. Vidraças com elementos de cerâmica em sanduíche controlam automaticamente o fluxo de calor dentro dos recintos. Esferas de cerâmica são usadas em pacientes com câncer, para atenuar os sintomas e melhorar a qualidade de vida. Quem já notou que são usados na ortodontia, para alinhar os dentes? Próteses cerâmicas aliviam a vida de muitos pacientes. Drogas que precisam ser lentamente liberadas têm na cerâmica um método conveniente. Não tem fim os usos da cerâmica. É o mais velho dos materiais criados pelo homem. Mas é também um dos que mais evoluem em anos recentes.

As grandes transformações dos materiais Ao longo dos anos, somando-se aos que sempre nos serviram, aparece um sem-número de novos materiais. Cada vez mais são criados em laboratórios. No que segue, chamamos a atenção para algumas tendências gerais dessa evolução.

1. A revolução dos materiais. A transformação dos materiais é comparável à que sucedeu na manufatura e na energia. Ou seja, não podemos imaginar que o homem pudesse provocar tantas mudanças no mundo sem que os materiais à sua disposição tenham também se modificado drasticamente. Em particular, talvez a mais radical transformação esteja nos materiais com os quais o homem constrói suas ferramentas. Afinal, é com elas que constrói tudo que o cerca. Como já dito, durante muitos milênios, as únicas matérias-primas para confeccionar ferramentas eram a madeira, a pedra e o osso. Mas, para tais usos, suas limitações são grandes. É o aparecimento dos metais que permitirá ao homem mudar a face da Terra, pois apenas nesse momento ele passa a ter ferramentas poderosas.

Peça pré-colombiana das culturas do Peru.

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2. Aumenta de forma exponencial a variedade de materiais O ritmo de aparecimento de novos materiais acelera cada vez mais. Muitos que hoje nos cercam não existiam até há pouco tempo. Se pensamos nos nossos objetos de uso pessoal, quais deles seriam feitos com os mesmos materiais de um século atrás. Talheres? Facas? Pentes? Escovas? Panelas? Tecidos? Canetas? Roupas? Sapatos?

3. Um material novo e melhor não necessariamente relega os outros ao abandono A madeira convive com MDF, metais e plástico na construção de móveis. Coriander não levou ao abandono do mármore. Sisal e Kevlar convivem, apesar de haverem sido descobertos com muitos séculos de diferença. Casas são construídas de madeira, bambu, lata, vigas metálicas, adobe, tijolos ou concreto. Roupas podem ser de algodão, linho ou de uma variedade grande de materiais sintéticos. E agora podem ser impregnadas com produtos da nanotecnologia, ficando impermeáveis ou repelindo sujeira. Certos materiais são abandonados definitivamente, pelo menos para alguns usos tradicionais. Foi o que aconteceu com os canos de chumbo, o cimentoamianto, o bakelite e o DDT. Quem se lembra das solas de sapato pregadas com tachas?

Quando nada, por razões econômicas, peças fundidas e usinadas em latão são substituídas por outras estampadas em chapas, fundidas em Zamak ou moldadas em plástico.

4. Aumenta a complexidade nos novos materiais Na busca pela performance (que significa melhores propriedades, para responder a cada situação), aumenta duplamente o grau de complexidade envolvido. Aumenta a complexidade do processo produtivo. E aumentam as combinações de materiais, na busca de certos resultados. Uma mochila de um século atrás seria totalmente construída com algum tecido de algodão grosseiro. Uma atual pode ter mais de três tecidos sintéticos diferentes. Pode ter varetas de alumínio, barbatanas de fibra de carbono, acolchoados de poliuretano, batentes de nylon e plástico. E também zíper de nylon e metal. Cada um desses materiais é o resultado de um processo produtivo bastante complexo e sofisticado. Para ilustrar, muitas décadas transcorreram entre a primeira tentativa de inventar o que veio a ser chamado de zíper e suas versões comerciais. Isso para não falar das pesquisas químicas, na busca de novos materiais plásticos.

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5. A estética e a nobreza não deixam de contar A função não é tudo, pelo menos em certos produtos. Sobretudo aqueles voltados para o consumidor final. Além das propriedades especificadas pelos engenheiros, há outros elementos culturais, de moda ou puramente estéticos. Uma tábua de jacarandá não encontra substituto à altura nas fábricas, apesar de ser cara e difícil de trabalhar. Apesar de testes sucessivos em laboratórios especializados, os assoalhos de tábua corrida não perdem seus admiradores, preterindo outros de durabilidade superior, manutenção mais simples e mais baratos (por exemplo, laminados e PVC). O ouro e a prata eram usados em joalheria, pela facilidade da manufatura e pela durabilidade do brilho. Mas hoje são símbolos de status e elegância, pois qualquer joia pode ser feita com materiais muito mais baratos e igualmente formosos. O diamante era apenas uma pedra preciosa a mais. Uma campanha inteligente dos grandes produtores criou para eles uma aura de elegância, associada ao casamento. Visitando Governador Valadares, um francês examinava as pedras semipreciosas oferecidas no comércio. Ao perguntar se uma delas não estava cara demais, o vendedor trouxe outra e perguntou se gostava dela. Diante da resposta afirmativa, revelou que não passava da lapidação de um caco de garrafa de cerveja. Esse pequenino exemplo sugere que uma pedra falsa raramente será identificada como tal pelo

universo de pessoas que a contemplarão. Por que então gastar até fortunas por pedras que somente os profissionais do ramo conseguem diferenciar de reles vidros de garrafas lapidados?

Propriedades dos materiais: o que serve para quê? Um material é escolhido pelas suas propriedades. Na lógica da produção, há critérios muito específicos e precisos para decidir os usos de um material ou para encontrar aquele que responde às exigências técnicas e econômicas. Boa parte dos critérios se refere às suas propriedades físicas, imediatamente mensuráveis. Aí se incluem compressão, flexão, cisalhamento, tração, densidade, atrito e dureza. Em certos usos, devemos pensar na sua estabilidade (resistência à degradação, por exemplo, pela ferrugem). Em alguns casos, interessa a condutividade elétrica. Devemos incluir também o impacto negativo sobre o meio ambiente, pois percebemos hoje como isso é importante para o futuro da humanidade. Finalmente, há um critério que quase nunca pode estar ausente: o custo. Se apenas existe um material com as propriedades exigidas, o custo pode não ser um critério decisivo. Se próteses humanas têm que ser feitas de platina, mesmo que seja cara, lamentamos, mas esse não é o critério de escolha.

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qr code, abaixo: Uma animação fácil de entender demonstra os conceitos da tração, flexão e atrito dos materiais.

qr code, abaixo à direita: A animação demonstra os

conceitos básicos de dureza, compressão, cisalhamento e densidade dos materiais.

Na maioria das vezes, a escolha é o resultado da confrontação entre o custo e o atendimento às propriedades exigidas. Como condutor elétrico, a platina é excelente. Mas seu custo é proibitivo. Já o cobre tem um custo modesto. Portanto, será sempre escolhido. Vejamos, uma a uma, as propriedades dos materiais que interessam na escolha do mais apropriado.

Tração Como o nome sugere, tração se refere à resistência de uma material quando puxado ou estirado. Imaginemos um cabo de guerra puxado por umas tantas pessoas. Se o número de pessoas for aumentando de ambos os lados, chega um momento em que a corda arrebenta. Nesse ponto, foi ultrapassada a sua resistência à tração. Outro exemplo simples seria um guindaste elevando uma carga cada vez mais pesada. Os materiais usados na indústria são testados antes de sua venda. A resistência à tração é especificada na documentação oferecida ao público. Para isso, os laboratórios de metrologia têm máquinas que estiram o corpo de prova, registrando o peso máximo que suportam.

Compressão Muitos materiais resistem a pesos colocados sobre eles. Dizemos que resistem à compressão. Imaginemos uma estrutura de pilotis. Sobre tais pilotis construímos uma casa de um andar. Podemos então adicionar um segundo andar e, depois, um terceiro e um quarto. Haverá um número de andares em que os pilotis se desintegram. Ou seja, a carga ultrapassou a sua resistência à compressão. A engenharia civil tem um forte interesse em conhecer quanto peso resiste uma coluna ou laje. Daí a rotina de testar a compressibilidade dos materiais. Como o concreto é o material mais usado para a estrutura de edifícios, os testes de compressão são ensaios comuns, feitos em qualquer escola de engenharia.

Flexão A flexão de um material também é um conceito útil quando planejamos um uso onde pode vir a ser vergado. A flexão é mais complicada do que a tração, pois, quando encurvados os materiais, várias consequências são possíveis. Queremos saber se, após ser flexionado, volta à forma inicial. Testamos então a sua elasticidade. Diz-se que tem resiliência se

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é capaz de voltar ao que era. Mas se entorta e assim permanece, dizemos que são plásticos. Pode também ocorrer uma ruptura na tentativa de dobrá-lo – como é o caso do vidro. No caso das molas, os engenheiros querem aços elásticos, que voltem à sua forma original quando se retira a força. Contudo, podem se romper, como uma mola de caminhão, no extremo da sua flexão funcional, resultado de um enorme buraco na estrada. Outros materiais são plásticos e dobram, não recuperando a forma original, como uma chapa de ferro doce ou uma folha de papel. Se buscamos um material para confeccionar uma mola, queremos que volte à sua geometria original – ou seja, que tenha boa resiliência. Não gostaríamos que a mola de um veículo ficasse afundada após o buraco. Pior, não queremos que se parta. No caso de asas de avião, queremos saber qual a sua capacidade de resistir a turbulências geradas pela meteorologia. Uma visita à Embraer pode incluir um pavilhão onde as asas são testadas exaustivamente, para que o fabricante possa assegurar a integridade da aeronave em condições radicais. Igualmente, marquises de concreto e viadutos precisam resistir a certos níveis de carga, para que não desabem. Quando isso acontece, é notícia de jornal por um bom tempo, e o responsável não terá uma vida fácil daí por diante. Se queremos dobrar uma chapa de ferro em uma prensa, para que adquira uma forma definida, ela não

deve voltar ao que era. Para fabricar uma geladeira, precisamos de chapas que permaneçam dobradas, sem voltar à forma original e sem se partir ou perder a resistência. Dadas as preocupações em fabricar carros que protejam os passageiros, em caso de acidente, cada componente da carroceria deve entortar ou quebrar de forma previsível, para amortecer a desaceleração do choque e preservar a integridade da cabine. O que esse exemplo nos diz é que ser duro ou ser mole, ser elástico ou não, pode ser virtude ou defeito, dependendo do uso. A mola deve voltar após o buraco na estrada. A chapa dobrada para fazer a porta da geladeira deve assim permanecer. Em suma, a construção, mecânica ou civil não pode prescindir de conhecer as propriedades de flexão dos materiais que usa.

Cisalhamento O cisalhamento é uma propriedade importante dos materiais. Mas tende a ser menos entendida do que as outras. Segurando uma vara de bambu com as duas mãos, podemos empurrar uma para a frente e puxar a outra para o nosso corpo. Dificilmente conseguiremos partir o bambu dessa forma. Dizemos então que tem grande resistência ao cisalhamento. Para contrastar, podemos preparar um bastão de cimento com as mesmas dimensões do bambu.

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Ao fazer o mesmo teste, provavelmente vai se partir, até com certa facilidade. Embora por compressão seja quase impossível destruir essa peça de cimento, vemos que sua resistência ao cisalhamento é pequena. Podemos repetir o teste da compressão com o bambu, apoiando uma extremidade no solo e apoiando nele o nosso peso. Certamente, vai entortar, mostrando pouca resistência à compressão. Na prática, quando pensamos em cisalhamento, pensamos em parafusos. De fato, queremos saber quanto resistem, antes de espanar a rosca e desabar nossa montagem. Podemos unir duas peças com um parafuso e sua porca. Se tentamos separar, puxando as peças em sentido oposto, estamos testando a resistência ao cisalhamento dos filetes da rosca desse conjunto parafuso-porca. Aplicando uma força cada vez maior, haverá um ponto em que os filetes não resistem e são entortados ou decepados, escapulindo o parafuso. Esse é o limite de resistência ao cisalhamento oferecido por essa fixação. Podemos construir um carrinho de mão ignorando a resistência ao cisalhamento dos parafusos usados. Mas, no caso de um avião, as chamadas normas AN especificam exatamente a carga máxima que podem receber. E para que possam ser usados em aviação, os parafusos tem que ser produzidos em fábricas certificadas internacionalmente no padrão AN. De fato, tem gravados na sua cabeça a marca da certificação.

Dureza Engenheiros definem dureza por vários critérios. Contudo, há uma noção mais intuitiva de dureza. Em termos simples, qual material risca qual ou é riscado pelos outros? Com efeito, o mais duro risca. O menos duro é riscado. Tomemos um pedaço de vidro plano. Podemos tentar riscá-lo com um lápis. Nada acontecerá. Passando a um prego, o vidro ainda permanece intacto. Mas se deslizarmos um anel de diamante, aparecerá um risco no vidro. O que aprendemos? Simples, o vidro é mais duro do que o lápis e o prego. Mas é menos duro que o diamante. Ao confeccionar ferramentas de corte, o critério mais importante é a dureza do material usado. Quanto mais duro o aço, mais a superfície cortante resiste ao uso. Se escolhemos um aço de baixa dureza, a ferramenta terá que ser afiada com muita frequência. Mas se for dura demais, torna-se muito difícil a sua afiação, além do risco de que se quebre, caso seja golpeado com força. Os testes convencionais de dureza usam punção com uma mola de elasticidade calibrada. O aparelho tem uma ponta de material muito duro que golpeia a substância a ser testada (o corpo de prova). A profundidade da pequena cratera deixada pelo impacto da ponta mede a sua dureza. Como é muito pequena, os aparelhos têm um microscópio para examinar o resultado. É interessante registrar que há muitas medidas de dureza (Rockwell, Brinell, Mohl etc). Por razões

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históricas, não se revelou possível convergir para um único padrão.

Densidade Em termos intuitivos, a densidade de um material é proporcional ao seu peso, comparado com outro de mesmas dimensões. Assim dizemos que uma esfera de isopor é menos densa do que uma bola de bilhar de mesmo diâmetro. Colocando em uma balança esferas feitas de materiais diferentes, mas de mesmo tamanho, podemos comparar a sua densidade. Um material cuja densidade seja menor do que a da água vai boiar. Se for maior, afunda.

Atrito ou arraste O atrito refere-se à resistência que um objeto encontra ao ser movimentado. Se empurramos uma canoa na beira da praia, há que se fazer força para que se mova. Mas uma vez flutuando, podemos empurrá-la apenas com um dedo. No primeiro caso, dizemos que há muito atrito. No segundo, pouco. A partir do século XVII, começa uma atividade febril de construir canais na Europa, para o transporte de carga. A razão é exatamente esta: reduzir o atrito e o trabalho requerido. Um homem ou um cavalo puxa,

de terra, uma barcaça cuja carga exigiria um batalhão ou uma tropa de cavalos para fazer o mesmo serviço se fosse arrastada em terra. Como ninguém gosta de fazer força, há uma busca permanente para reduzir o atrito. Nossos antepassados descobriram que, colocando roletes sob um barco empurrado para fora da água, a força necessária era muito menor do que arrastando na areia. Esse sistema é o precursor da roda, uma invenção que reduz enormemente o atrito. Em vez de arrastar o que quer que seja pelo chão afora, com a roda não há fricção com o solo. Diferentes segmentos dela vão tocando o solo, sucessivamente. Logo se descobriu que, aplicando algum tipo de óleo entre duas peças que se movem, reduz-se o atrito. Daí a ideia, hoje trivial, de lubrificar mancais e peças que deslizam uma contra a outra. Na roda, o ganho em redução do atrito é parcialmente perdido na fricção do eixo com o mancal. Portanto, lubrificá-lo com frequência é sempre uma boa ideia. Porém, não elimina o atrito. O novo salto tecnológico foi a invenção dos rolamentos de esferas ou roletes. São como se fossem rodas, só que dentro do mancal. Nada arrasta contra nada. Tudo rola suavemente. Mas não é só contra o atrito que o homem luta. Há casos em que o problema é a sua ausência ou insuficiência. Muitas vezes, queremos que não haja deslizamento. Assim é o caso dos sapatos: queremos que não derrapem. Queremos também que os pneus

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qr code: A lei da condutividade, como ela funciona,

como podemos compreendê-la, explicada de uma forma objetiva e rápida.

e as pastilhas ou lonas de freio exerçam muito atrito, para frear o veículo. Nem sempre o atrito é um objeto esfregando no outro. O ar exerce um grande atrito sobre um avião em voo. Mesmo automóveis em alta velocidade são afetados pelo arraste do ar. Isso porque o atrito aumenta com o quadrado da velocidade. Daí o uso de túneis de vento, para medir o efeito do arraste e criar formas mais aerodinâmicas que o reduzam.

Condutividade elétrica Falamos acima de atrito. Fenômeno semelhante ocorre com o fluxo elétrico. Alguns materiais são como canos d’água lisos por dentro. A eletricidade flui livremente, sem atrito. Dizemos que têm baixa resistência à circulação elétrica. Outros são como aqueles tubos de esgoto, esclerosados por acúmulo de resíduos. A eletricidade pode até fluir, mas com muito mais dificuldades. São materiais condutores, mas nem tanto. No limite, o tubo pode estar tão bloqueado que não permite o fluxo de água. O mesmo pode ocorrer com o fluxo elétrico, não conseguindo atravessar certos materiais. Estes últimos são ditos isolantes, isto é, isolam um polo elétrico do outro. Na natureza, temos materiais isolantes e condutores. Madeira, carne humana, água, água

salgada, platina, cobre, cimento e ar, cada um tem a sua resistência própria. Alguns conduzem, mas oferecendo dificuldades ao livre fluxo dos elétrons. Outros permitem o livre fluxo. Ou não conduzem nada. Conhecer essas propriedades de isolar ou conduzir é crítico para o uso da eletricidade. Queremos condutores para levá-la onde é necessária. E queremos que sejam isolantes os materiais nos quais o fio toca. Por exemplo, o fio de cobre é bom condutor, já a capa plástica que cobre esse fio foi escolhida por ser isolante. Se aumentarmos o fluxo elétrico, alguns materiais se iluminam, passando ao rubro e depois ao amarelo. Pensando nisso, Edison e outros desembocaram na lâmpada incandescente. Fiat Lux. Existe, desde muito tempo, um aparelho que mede a resistência elétrica oferecida por um material. É chamado de galvanômetro (descrito mais adiante). Tocando os fios de prova nas duas extremidades da peça a ser testada, o ponteiro mede a sua resistência. No passado, eram bem caros os aparelhos que mediam resistência (na prática, eram integrados com medições de voltagem ou amperagem). Com a radical queda de preços dos materiais eletrônicos, o mesmo aconteceu com eles. Pelo preço de uma entrada de cinema, podemos comprar um multímetro digital perfeitamente adequado. Ou seja, jogado em um fundo de gaveta pode haver um instrumento de medida superior àqueles de que técnicos em eletricidade e pesquisadores dispunham até pouco tempo atrás e pelos quais pagavam caro.

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Gastos de energia para a produção de diversos materiais de construção Material Alumínio Tijolos Cimento Cobre Explosivos Vidro Cascalho Ferro Madeira Papel Plásticos Madeira Compensada Areia Aço Aço Pedra

Custo de Energia (MJ/kg) 175-200 1-2 2-5 90-100 10-70 4-10 <1 12-20 1-3 23-35 60-120 3-7

Processo Metal extraído da bauxita Construídos de argila queimada Produzido pela queima do calcário Extraído de diversos minérios Combinação de matérias primas Produzido a partir da sílica Recolhido no solo Redução do minério de ferro Extraída de troncos de árvores Extraído de troncos de árvores Produzido a partir de hidrocarbonetos Extraída de troncos de árvores

<1 20-25 10-12 <1

Recolhida do solo Produzida a partir do ferro gusa Reciclando sucata de ferro Extraída de pedreiras

Degradação física Uma tábua usada para fazer uma forma de concreto não precisa durar mais do que o período da obra. Em contraste, há templos japoneses com madeiras originais, instaladas mil anos atrás. Ou seja, em cada uso, precisamos de diferentes resistências à degradação física. Em tapumes, não precisamos de um tempo de duração tão longo. Em móveis de estilo, seria uma pena que o esforço de produzir uma obra de arte se perca pela deterioração da madeira. Em oposição, gostaríamos que as embalagens se degradassem após descartadas. Há muitas razões para que se degrade um material. A madeira pode ter uma vida indefinida, mas cupins e podridão podem dar cabo dela. O ferro tem uma vida muito longa, mas está sujeito à oxidação, que gera a ferrugem. Já o aço inoxidável resiste à oxidação. Quando sujeitos a vibrações, tensões ou deformações, os metais podem sofrer fadiga. Se tomarmos um pedaço de lata e dobramos para um lado e para o outro, vai acabar se rompendo. Fenômenos equivalentes podem acontecer com pontes de aço ou estruturas de aeronaves. O cimento tem uma vida também longa, mas não indefinida, podendo ser afetado por fungos, além de sua degradação natural. Em qualquer uso a esperança de vida do material deve ser considerada. Em alguns casos, vale a pena pagar mais para obter maior durabilidade. Em outros, nem tanto. Já em uma terceira categoria, queremos

Energia embutida em materiais de construção brasileiros Material Aço – laminado CA Alumínio lingote Alumínio anodizado Alumínio reciclado – extrudado Areia Argamassa – mistura Borracha natural – latex Borracha sintética Brita Cal virgem Cerâmica bloco 8 furos Cerâmica branca ...

EE (MJ/Kg) EE (MJ/m3) 30,00 235500,00 98,20 265140,00 210,00 567000,00 17,30 46710,00 0,05 80,00 2,10 3906,00 69,00 62480,00 135,00 160650,00 0,15 247,50 3,00 4500,00 2,90 4060,00 25,00 52075,00 Outros materiais em TAVARES (2006)

que tenham vida curta. Portanto, a estabilidade sempre será um dos critérios de escolha dos materiais a serem empregados em algum projeto.

Impacto ambiental Qualquer que seja o material, a sua produção, uso e descarte impõe sacrifícios para o meio ambiente. Hoje, as informações a esse respeito estão cada vez mais disponíveis. Trata-se do gasto de energia (renovável ou não) requerido para a sua produção, bem como do impacto ambiental do seu uso e das consequências de longo prazo da maneira pela qual será descartado. As certificações de construções no padrão LEED (Leadership in Energy and Environmental Design) incluem considerações desse tipo. Alguns materiais, como a madeira, são renováveis, ou seja, mesmo após serem consumidos, são novamente produzidos pela natureza. Outros, como o petróleo, tiveram o seu estoque total determinado há milhões de anos. Materiais como os metais, o papel, os plásticos e o vidro exigem o uso de muita energia para a sua produção. O cimento, nem tanto. E a energia usada pode ser poluente ou não. Esse gasto de energia terá que ser confrontado com sua vida útil e com a facilidade/ dificuldade de reciclagem ou descarte. A madeira se decompõe, produzindo resíduos inofensivos. O plástico pode durar séculos.

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O critério não pode ser apenas o impacto da sua produção sobre o meio ambiente. Se tiver vida longa, pode se justificar, mesmo que gaste muita energia para ser produzido. Por outro lado, há materiais claramente prejudiciais ao meio ambiente – nesses casos, os critérios podem ser mais drásticos. Chumbo, arsênio e mercúrio podem poluir gravemente as águas. Materiais radioativos são um pesadelo para o descarte seguro. Não se conseguiu produzir uma substância tão eficaz quanto o DDT – para eliminar insetos indesejados. No entanto, sua cumulatividade na cadeia biológica levou à sua proibição total. Em um momento em que nos tornamos mais e mais conscientes das agressões ao meio ambiente e dos males que isso pode causar, devemos pensar na escolha dos materiais, tendo também em vista essa dimensão. Não é a única, mas não deve estar ausente.

Sem saber o preço, não há como escolher Como em quase tudo na vida, diante de uma escolha, devemos considerar os benefícios – monetários ou não – e confrontá-los com o seu preço. Em particular, comparamos vantagens e desvantagens de opções alternativas. Tudo que foi dito sobre as propriedades dos materiais, em algum momento, tem que ser confrontado com o seu custo. Não será diferente a escolha dos materiais usados para produzir a multidão de produtos que saem das

fábricas. Cada material tem seu preço, seus méritos e suas desvantagens. Um quilo de platina custa muitas vezes menos do que um quilo de ferro. É um material aconselhável? Depende do uso. Na construção civil, não haveria razões para usar vergalhões de platina. Mas tampouco há justificativas para instalar uma prótese de ferro para substituir um fêmur.

Um material para cada uso As aplicações dos materiais são feitas considerando suas propriedades físicas, entre outros critérios. A escolha é baseada na melhor combinação entre propriedades e custos.

• Madeira e alumínio podem ser usados na construção de aviões. A balsa é usada em aeronaves leves e aeromodelos. São todos leves e resistentes à flexão, além de baratos. Concreto, apesar de ser barato, não serve, pois é pesado e tem mau desempenho na flexão. • Para fundações de edifícios, concreto é melhor do que madeira ou balsa, pois resiste à compressão e tem uma vida útil mais longa, mesmo ao ar livre. • Uma viga em balanço, se feita de cimento, desaba. Mas com a armação, feita com vergalhões de ferro, adquire a necessária resistência à flexão

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Arco composto, laminado com diferentes madeiras

• O ferro é barato e tem excelentes propriedades

• O aparecimento de plásticos mais resistentes

para a construção de estruturas. Mas é é sujeito à corrosão, se estiver ao ar livre. Por Por outro lado, o tratamento preventivo é caro e recorrente. Ao decidir entre uma ponte de de ferro ou de concreto, há que se considerar as opções. Aceitamos o custo inicial mais baixo o maior custo de pintar e repintar, pelos anos afora? Já concreto é caro, mas praticamente livre de manutenção.

permite seu uso em automóveis, substituindo peças que antes eram de chapa de ferro. A redução de peso e custos é duplamente vantajosa.

• Cada corda para um uso. Nas escaladas, usam-se cordas para reduzir os perigos de uma queda. Mas caso isso aconteça, as cordas são flexíveis, espichando até 10% ao retesarem-se. Desta forma, amortecem o choque. Mas as cordas de bungee-jumping têm uma flexibilidade excessiva para dar segurança em escaladas. Em caso de queda, o alpinista pode mesmo chocar-se contra o solo, ao alongar-se a corda.

• O arco composto era feito na Europa de uma árvore (teixo) que tem propriedades distintas ao longo de sua secção. Uma camada é elástica à compressão e outra tem grande elasticidade na tração. Na Guerra dos Cem Anos, a vitória da Inglaterra se deveu ao uso de arcos compostos, cujas flechas conseguiam penetrar nas armaduras medievais. Além de seu impacto imediato sobre esse conflito, mudou completamente o equilíbrio de poder entre nobres e plebeus, pois camponeses broncos passaram a ser capazes de abater os cavaleiros andantes, com suas armaduras caríssimas.

• O avanço na tecnologia de produção de cerâmicas resultou em novos materiais de extraordinária dureza, próprios para ferramentas de corte. Quem poderia imaginar que a mais simples loja venderia facas de cerâmica?

• Na confecção de roupas, quando usar tecidos naturais de algodão e quando usar sintéticos, como polipropileno? O primeiro é mais elegante e agradável ao toque. Mas o sintético não enruga e, quando molhado, não empapa. No caso de roupas técnicas para uso ao ar livre, esse último critério é decisivo.

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8. A história da energia Não podemos entender a evolução das ferramentas do homem sem considerar as fontes de energia que conseguiu dominar. E não é só usar, mas usar cada vez melhor e com mais eficácia. Começando com o uso exclusivo da sua musculatura, o homem domina várias outras fontes e hoje consegue energia de células fotovoltaicas. Não foram proezas menores. Mais precisamente, a evolução do homem se dá pari passu à sua crescente capacidade de usar melhor sua musculatura, bem como o salto que foi desenvolver outras fontes de energia. Vendo de outro ângulo, tudo que conseguiu realizar com suas ferramentas e materiais não teria sido possível sem os avanços paralelos no uso de novas fontes de energia. Afinal, como pôr em movimento uma máquina operatriz sem haver dominado a energia dos ventos, da água ou do carvão? Leslie White diz a mesma coisa de maneira mais concisa. É a Lei do Desenvolvimento Cultural. Segundo ele, “tudo mais permanecendo constante, o grau de desenvolvimento cultural de uma sociedade varia diretamente com o nível de energia per capita que é captada e posta a seu serviço”. Stanley Jevons chama a atenção para um paradoxo. Quanto mais eficiente a produção e o uso da energia, mais fortes as razões para usá-la. Os ganhos de eficiência, em vez de levarem à sua economia, estimulam um uso maior. Antes de prosseguir, vale chamar a atenção para a gigantesca massa de conhecimentos sobre energia

a que somos obrigados a voltar as costas no presente capítulo. A começar pela própria definição do que é. O próprio Richard Feynman, Nobel de física, nos diz que “na física de hoje não temos conhecimento do que é energia”. Assim, a narrativa segue um caminho que evita as complicações teóricas e apenas conta a história dos avanços do homem em dominar fontes cada vez mais eficazes de energia.

O uso inteligente da força humana12 Na sua dotação de força física, o homem não ultrapassa os outros primatas. Pelo contrário, é mais fraco do que a maioria deles. Contudo, em virtude da criatividade com que usa sua escassa força, consegue grandes proezas que estão longe das possibilidades de qualquer outro animal. Inicialmente, o homem usava seus braços para quebrar cocos, raspar e descascar alimentos, preparar e usar armas rudimentares e desenvolver uma infinidade de atividades. Isso lhe permitia um crescente domínio sobre a natureza. Ao inventar tais técnicas, lentamente, vai se diferenciando dos outros animais. Como a sua força física é limitada, ele aprende a usá-la com mais inteligência. Vendo de outro 12 Os exemplos pré-históricos vem do livro de Otis T. Mason, The Origin of Invention (New York: Scribner & Sons, 1895) reproduzido pela Google.

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O parafuso, uma das máquinas simples mais definitivas no salto para a industrialização.

na página ao lado: Polia, a máquina

simples que desemboca em centenas de usos, como guindastes e muitas outras.

ângulo, sua evolução caminhou na direção de perder sua força física, por exemplo, nos braços, em comparação com outros primatas. Isso aconteceu porque sua imaginação o levou a melhor usar seus músculos. Justamente por isso eles puderam se tornar menos robustos. Um grande salto corresponde ao que veio se chamar de máquinas simples: a alavanca, a cunha, o plano inclinado, o parafuso e a polia. Como sabemos, esses dispositivos foram bem estudados pelos gregos clássicos. Não obstante, sem entender as leis da física que lhes correspondem, vem sendo usados há muito mais tempo. O princípio mais abrangente nessas máquinas é a transformação de pouco movimento requerendo muita força em muito movimento requerendo pouca força. Ou vice-versa, pouco movimento vira muito movimento. Em ambos os casos, é a chamada “vantagem mecânica”. No movimento giratório, quanto mais longe do eixo, mais rápido o movimento. O machado converte um gesto relativamente lento do lenhador em um movimento rápido da lâmina. Ao atingir o alvo, a energia cinética da ferramenta é muito maior do que se conseguiria com um machado sem cabo. Isso é fácil testar, basta segurar uma lâmina com a mão e golpear. O impacto é muito mais débil. Esse é um caso de transformar pouco movimento – o gesto dos braços do lenhador – em muita velocidade na lâmina.

O plano inclinado é uma das primeiras máquinas elementares. Diante do peso, pode ser impossível levantá-lo e colocá-lo em um nível superior. Mas é possível construir um plano inclinado e deslizar para cima o mesmo peso. Troca-se um percurso curto e árduo por um longo e suave. Com uma alavanca, pode-se elevar uma pedra que jamais se moveria na força bruta. Mas para cada um centímetro elevado, na outra extremidade da alavanca corresponde um deslocamento de quase um metro. Ou seja, move-se um metro com pouca força, obtendo-se a elevação de um centímetro que exigiria uma força que talvez a pessoa não tivesse. A cunha é uma forma de alavanca. Seu uso para rachar troncos data de muito antes de os gregos estudarem os princípios de sua ação. O impacto de um martelo sobre a cunha faz com que penetre na madeira. Mas para cada centímetro que afunda, abre uma fenda na madeira de não mais do que 1 milímetro. Portanto, transforma 10 unidades de movimento longitudinal em uma unidade de movimento transversal. Com o parafuso, conseguimos um aperto que seria impossível sem ele. Pensando bem, o parafuso não passa de uma cunha. O movimento circular se converte em um movimento longitudinal de muito menor curso. Uma volta no parafuso resulta em um avanço milimétrico, apertando com uma força muito maior do que aquela usada para torcê-lo.

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Sociedades primitivas conheceram e usaram o princípio do parafuso. Por exemplo, os esquimós faziam tampões rosqueados para impedir que escapasse pela cicatriz do arpão o sangue das baleias. Não é tão diferente dos parafusos que usamos hoje. O tipiti dos nossos índios é uma forma de parafuso. Torcendo a esteira cilíndrica, trançada de fibras, a redução do seu volume comprime a mandioca, escorrendo o líquido venenoso. A invenção da roda é um ato de genialidade, por reduzir muito o arraste de um veículo. Aparece por volta de 5000 anos a.C. Mas é interessante notar que civilizações bastante avançadas, como os índios andinos, não a utilizavam, possivelmente, pela topografia acidentada e a ausência de bons candidatos a animal de tiro. Mas a roda tem outros usos. No mesmo período em que começa a ser usada em carros, vira o torno do oleiro. Contudo, a roda é o final de um processo de inovações nessa linha. Como já mencionado, muito antes, troncos roliços foram usados para rolar objetos pesados, reduzindo drasticamente o atrito com o solo. Grandes matacões de granito só assim puderam ser movidas, e essa medida vem também sendo usada para tirar barcos da água. Ao voltarem do mar, sob as jangadas se enfiam roletes, para conduzi-las ao bom local de estacionamento. O mesmo efeito era obtido com o uso de bolsas de pele infladas de ar. Sendo flexíveis, colocadas sob o objeto a ser transportado, iam rolando sem

dificuldades. A esteira de um trator ou tanque de guerra funciona sob o mesmo princípio: rola em vez de arrastar. A polia é mais uma máquina simples. Uma extremidade da corda é atada ao teto, há uma roldana solta no meio da corda e uma segunda também atada ao teto. Para cada metro puxado na corda, o balde pendurado na roldana solta sobe apenas meio metro. Contudo, é necessária a metade da força. Encadeando várias roldanas, vamos reduzindo a força necessária para erguer o balde – ou qualquer peso. O mesmo exercício de trocar muito movimento por muita força reaparece nos sistemas de engrenagens. Ao acoplar grandes com pequenas, um eixo gira rápido e o outro, lento. Assim funciona a caixa de câmbio de um automóvel. Ao longo de sua história, o homem consegue dominar muitas fontes de energia, como descrito adiante. Todavia, não deixa de usar os seus músculos, só que de forma cada vez mais competente. Por exemplo, em vez de labutar no serrote, usa muito menos força para empurrar a madeira em direção à lâmina de uma serra circular. Curiosamente, já em um período avançado da Revolução Industrial, há uma evolução muito curiosa no uso da força humana. Quando poderíamos pensar que tais avanços seriam incongruentes com a Idade da Máquina, eis que se volta a imaginação do homem para melhor aplicar seus músculos. Por que tão tarde?

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Barco a remo moderno, com banco deslizante, visando aproveitar a musculatura do tórax e coxa.

É simples, sem os avanços da fundição e da mecânica, isso não teria sido possível. Torna-se possível construir estruturas leves de ferro fundido, peças torneadas, rolamentos de baixa fricção, correntes e muitos outros dispositivos que não existiam antes.13 Três princípios entram em cena nesse renascimento das máquinas movidas pela força humana. O primeiro é a constatação de que as pernas têm músculos muito mais robustos do que os braços. Ademais, estão muito mais preparadas para fazer esforço, já que, ao andar, as exercitamos sistematicamente. Assim se usarmos as pernas para acionar o que quer que seja, obtemos muito mais resultado do que com os braços. O remo é um exemplo clássico. Desde as galeras gregas, eram os braços a fazer força. Dois mil anos depois, há um grande salto de eficiência com a introdução de um banco que desliza nos barcos a remo de competição. Dessa forma, é possível transferir o trabalho para as pernas. Ao mover-se o carrinho, o que impulsiona o remo são as pernas e o diafragma, músculos muito poderosos. Uma vantagem adicional e nada subalterna de usar as pernas é que passamos a ter as duas mão livres para trabalhar. Um esmeril de manivela, vendido nas lojas de ferragem até recentemente, obriga a segurar a peça 13 Esta parte foi inspirada no ensaio “The short history of early pedal powered machines”, Low-Tech Magazine (http://www.lowtechmagazine.com/2011/05/ history-of-pedal-powered-machines.html).

que está sendo usinada apenas com uma das mãos. Se for a pedal, temos as duas disponíveis. O segundo princípio é trocar movimentos curtos por um contínuo, capitalizando na inércia do corpo e dos mecanismos acionados – inclusive, um volante pesado. Entram em cena os pedais em movimento circular (como na bicicleta). Comparado com pedais que sobem e descem, é significativo o ganho resultante da continuidade do movimento. O terceiro é trocar muita força e pouco movimento por pouca força e mais velocidade. Pesquisas recentes de ergonomia mostram que somos mais eficientes quando movimentamos pernas ou braços com mais velocidade. Naturalmente, isso requer um uso que ofereça pouca resistência. Com os avanços da mecânica, tais ideias se materializam, a partir de 1870, em uma enxurrada de máquinas tocadas a pedal. No caso, usa-se um pedal circular e não os pedais de vai e vem, usados nos tornos de então e nas máquinas de costura. Naturalmente, a grande vedete é a bicicleta. Mercê de sua incrível eficiência, não foram engolidas pelo turbilhão de novos meios de transporte. Estudos recentes sugerem que nenhum animal ou máquina consegue se mover com um consumo tão pequeno de calorias. A introdução das marchas na bicicleta ilustra o que foi mencionado antes sobre a ergonomia humana. Com uma marcha desmultiplicada, girando rapidamente o pedal, vencemos uma ladeira que não seria possível com outras marchas.

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Na virada do século XX, multiplicam-se as máquinas operatrizes tocadas a pedal. Os tornos já existiam, mas ganham eficiência com o pedal circular. Furadeiras, serras, serras tico-tico, esmeris e brocas de dentista são lançados no mercado em rápida sucessão. Respondiam às necessidades das pequenas oficinas, em que os motores a vapor ou elétricos não se justificavam, pelo tamanho e pelo. Eram máquinas leves, com estrutura de ferro fundido, todas elas com um banquinho para o operador. Caem em desuso, com o barateamento dos motores. Na crise do petróleo, tiveram um renascimento, mas foi tão curto quanto o tempo necessário para o óleo barato reaparecer. Sobrou a bicicleta. Seja como for, não é correto dizer que a máquina substituiu a força humana. O que ela fez foi reduzir o esforço. Em vez de fazer girar uma furadeira de manivela, a força só é usada para empurrar a furadeira elétrica. O esforço é muito menor. No limite, a automação praticamente elimina a intervenção humana na operação da máquina. Mas sem o uso dos músculos, não há como instalar a máquina, regulá-la e fazer sua manutenção.

A musculatura superior de bois, cavalos e muares Entre os anos 5000 e 10000 a.C., o homem aprende a domesticar cavalos e bois. Com isso, abrem-se as portas para usar a sua força física, muito maior que a humana. Puxar o cabresto de um cavalo ou segurar um arado consome menos energia do que fazer o mesmo serviço na força bruta. Ao contrário do que pode parecer, a capacidade de carga de um cavalo não se mantém estável ao longo da história. Há transformações profundas, hoje pouco lembradas. A primeira é no sistema de atrelamento do cavalo. Descobriu-se que, com novos desenhos, o cavalo pode puxar uma carga mais pesada. Os colarinhos, apoiando o arreio no músculo peitoral, aproveitam melhor a sua força. São avanços originários da China e que chegam à Europa ao fim da Idade Média. A outra mudança é na genética. Mesmo os primeiros cavalos, extensivamente usados pelo homem, já são o resultado de transformações impostas pela seleção dos mais aptos para o trabalho desejado. Esse processo não tem fim, e até hoje continua o seu aperfeiçoamento genético. Naturalmente, cada modificação visa a uso distinto: carga, montaria, arado ou guerra. Nos cavalos para puxar carroças, seu tamanho aumenta. Um percheron de hoje pode pesar mais de 2 toneladas – mais do que o dobro de um cavalinho árabe, muito mais ágil. Naturalmente, sua capacidade de carga aumenta proporcionalmente.

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O monjolo, milenar mais ainda

encontrado no Brasil. Usa a força da água para moer milho.

A energia que vem das águas Os egípcios usavam diversos mecanismos para elevar a água, sobretudo na irrigação. Já conheciam o que veio a ser chamado de parafuso de Arquimedes. Tinham também os monjolos, até hoje utilizados no interior do Brasil. No período clássico romano, avançam as maneiras de transformar em movimento giratório a correnteza de rios caudalosos. Materializam-se as primeiras rodas d’água. Como com quase tudo, ao longo da Idade Média houve uma completa estagnação nesses dispositivos mecânicos. Mas com os avanços técnicos, a partir do século XVII, tornou-se possível uma transformação dramática nas oficinas. Essas inovações promovem o início da Revolução Industrial, no século XVIII. Mais adiante, passando das ferramentas manuais para as máquinas-ferramenta, rompe-se o limite severo ao que se pode fazer usando a musculatura do homem. Na Revolução Industrial, a roda d’água acopla-se a um longo eixo, cheio de polias. Com correias planas de couro cru, esse movimento giratório é transmitido a cada máquina da fábrica. Inaugura-se um novo patamar de produtividade, com inúmeras máquinas operando simultaneamente. Contudo, esse salto no uso da energia requer um padrão muito especial de localização geográfica das fábricas. Necessariamente, tinham que estar à beira de rios com uma correnteza capaz de impulsionar as pás de uma roda.

Uma limitação inerente a essa forma de energia é segregar as fábricas a locais em que a água tinha condições favoráveis de ser utilizada. Para um moinho de farinha ou uma serraria, isso não era problema. De fato, os moinhos de farinha abundavam pelo Brasil afora e alguns ainda estão produzindo. Mas os problemas de localização impediam a verdadeira nucleação fabril. No fundo, a grande limitação era a dificuldade de levar a energia gerada mais longe do que um eixo pode chegar. A solução final tarda mas chega: transformar o movimento em eletricidade. A corrente gerada é transportada por um par de fios. Mas isso ocorre muito mais tarde. Esta combinação turbina-gerador elétrico é uma fórmula vencedora. Não polui e tem um custo operacional baixíssimo. Por isso, não há um só rio apropriado e perto de centros urbanos que não esteja já no limite do seu aproveitamento. Com os avanços na eficiência das linhas de transmissão, vale a pena ir muito longe, à busca do rio com potencial hidroelétrico. Belo Monte é um exemplo. Por longo tempo, quanto maior a hidroelétrica, mais vantajosa é a sua operação. As pequenas foram sendo abandonadas ao longo das décadas, com a criação das grandes malhas de transmissão elétrica e com as centrais térmicas e nucleares. Diante dos problemas de aquecimento global, resultantes do uso excessivo de hidrocarbonetos, a pequena hidroelétrica volta a ser vista como uma fórmula atraente. Diante do rechaço a energias

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Moinhos de vento na Holanda. Roda d’água primitiva, construída de madeira.

qr code: Dois elementos

poderosos e perigosos, que com a

criatividade e as mãos do homem

foram transformados em energia.

poluentes, vivem um novo ciclo de expansão. É uma eletricidade relativamente barata e eficiente. Havendo uma rede, garantindo o fornecimento, mesmo que tenham suas falhas e paradas, cumprem um papel que, no somatório de todas elas, pode ser substancial.

O vento e os moinhos O vendaval que destrói tudo é a manifestação sinistra do mesmo vento que pode substituir a força humana em muitas tarefas. O primeiro uso sistemático do vento é na vela dos barcos. Consta que os primeiros moinhos de vento aparecem na China, há pelo menos 2 mil anos. Na Europa, chegam muito mais tarde, com um desenho diferente nas pás e na orientação do eixo. Ao fim da Idade Média, aparecem os primeiros moinhos de vento para triturar grãos. Na Holanda, os moinhos tornam-se muito importantes naquele país de muitos ventos e poucos rios favoráveis às rodas d’água. Mas moinhos têm o mesmo problema da energia hidráulica. Precisam estar localizados onde está o vento e não onde seria mais conveniente instalar a indústria. Ainda mais caprichosos que as águas, sopram ou desistem de soprar, ao longo do dia ou das estações do ano. Com o carvão e os geradores a vapor, mais adiante, com os combustíveis derivados do petróleo, os velhos moinhos de vento viraram não mais do que uma

atração turística. Com essas novas fontes de energia, a ditadura da localização foi eliminada. A fábrica vai para onde é mais conveniente para o processo produtivo. Sobraram apenas os nostálgicos cata-ventos rurais, para bombear água dos poços. Trata-se de uma invenção norte-americana do século XIX. Afora esse caso, praticamente desistiu-se do vento. Contudo, tal como na roda d’água, a eletricidade se revelou a solução mágica para transportar o movimento do eixo do moinho de vento para onde é necessário. Mesmo assim, enquanto os combustíveis fósseis eram baratos e considerados saudáveis, o vento perdeu seu papel de gerar energia. Com as crises de petróleo e o aquecimento global, a velha energia eólica volta ao primeiro plano. Porém, traz um avanço considerável na sua tecnologia. As pás de varas e tecidos são substituídas por hélices, desenvolvidas nos mesmos túneis de vento em que se testam os aviões. Igualmente, inspiram-se na última tecnologia das velas de barcos de competição. Em paralelo, os inventores caseiros não deixaram de inovar em alternativas eólicas que podem ser construídas com materiais reciclados ou baratos. E como não se paga pelo vento, geram eletricidade a custos operacionais desprezíveis. Mais um exemplo do vai e vem da tecnologia. Tudo depende do capricho dos ventos. Em alguns lugares, os ventos não justificam qualquer esforço nessa direção. Em outros, podem ser fortes

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qr code: Ao longo da Revolução Industrial,

são encontradas fontes mais convenientes de energia. A roda d’água foi um grande avanço,

mas exigia que as fábricas estivessem próximas dos rios. Já o carvão pode ser transportado para

as fábricas. A eletricidade aumenta ainda mais a transportabilidade da energia.

e previsíveis, mas seus horários não correspondem necessariamente aos anseios dos homens e das fábricas. Paradoxalmente, quanto maior o provimento de energia de outras fontes, mais a energia do vento é útil e prática, complementando a oferta, apesar do seu suprimento irregular.

Carvão e vapor fazem rodar as fábricas14 Quis o destino que no país institucionalmente mais bem preparado para a Revolução Industrial se encontrassem amplas jazidas de carvão mineral – e também de minério de ferro. Como em todas as partes, o carvão sempre foi usado para o aquecimento doméstico, portanto era já bem conhecido e explorado. Em plena fase inicial da industrialização inglesa, começa uma corrida, visando usar o calor do carvão para operar máquinas. Na transição do século XVIII para o XIX, começam a aparecer tecnologias confiáveis. Curiosamente, a busca inicial não é por motores, mas por bombas para esgotar a água no fundo das minas de carvão, um problema crônico e intratável. As primeiras bombas práticas aparecem no início do século XIX. Sua criação está associada a William

Savery e Newcomen. Essas bombas a vapor resolvem um problema grave. De fato, bombas operadas pelas rodas d’água funcionam a contento. Contudo, as minas raramente estão na beira dos rios. Portanto, de nada servem. Mas as bombas a vapor podem ser instaladas onde se queira, pois o carvão é transportável – no caso, está ali mesmo. Pouco depois, James Watt consegue construir um motor a vapor confiável e eficiente. Com ele, as fábricas começam a se liberar do jugo dos cursos d’água. Como resultado, seu tamanho deixa de ter limites. Entramos então na era das gigantescas fábricas do século XIX, com suas chaminés imensas cuspindo fumo. Até recentemente, a fumaceira das fábricas era mostrada com grande orgulho, pois representava progresso e riqueza. Logo que os motores a vapor se tornam práticos, inicia-se a corrida para dar-lhes outros usos. Carroças a vapor são a primeira tentativa. Mas logo a ideia de estradas de ferro ganha vigência. Em 1829, Stevenson cria a primeira locomotiva confiável, a Rocket. Daí em diante não cessa o fluxo de novas versões, maiores, mais eficientes e mais econômicas. O carvão, o motor a vapor, a ferrovia e as grandes fábricas constituem-se no tecido do processo de industrialização do século XIX. Quase tudo era viável sem eles, mas não na escala em que possibilitaram.

14 Esta seção beneficiou-se da leitura do livro de William Rosen, The Most Powerful Idea in the World (New York: Random House, 2010).

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Sonda de petróleo flutuante.

O petróleo e seus motores Comparado com o vento e a água, o carvão mineral é eminentemente transportável. Sem tal portabilidade, é difícil pensar no que teria sido a Revolução Industrial. É possível levar o carvão para uma fábrica. É até viável abastecer uma locomotiva em movimento. Todavia, diante do sonho de um veículo muito mais leve, como um automóvel ou caminhão, o carvão é um grande estorvo. De fato, foram feitas muitas tentativas de criar caminhões, automóveis e até aviões a vapor. Contudo, os resultados não foram nada encorajadores. Durante a Segunda Guerra Mundial, popularizaramse no Brasil os gasogênios, queimando carvão vegetal. Funcionavam, mas era uma solução muito inconveniente. Pela manhã, os proprietários enchiam as caldeiras de carvão, atiçavam fogo e giravam uma ventoinha de manivela. Meia hora depois, o automóvel estava pronto para dar a partida. Voltando ao final do século XIX, registrase uma novidade que vai mudar o cenário do transporte individual: o motor de combustão interna, popularmente conhecido como motor a explosão. Sem dúvidas, esse invento de Nicolaus Otto revoluciona os transportes, a partir da primeira metade do século XX. Ao longo do século XX, a eficiência desses motores não parou de subir, e não há indicações de que

isso ocorra breve. Ao mesmo tempo, com o uso do alumínio, os motores tornaram-se mais leves. Esses avanços impulsionam o seu uso em aviões, além de motocicletas, geradores portáteis, ceifadeiras, motosserras e inúmeras outras máquinas. Em paralelo e mais ou menos na mesma época, aparecem os motores a diesel, obra de Rudolf Diesel. São mais pesados, porém, consomem menos combustível. Praticamente acabam por dominar a cena dos veículos maiores, como caminhões e ônibus. Para que isso tudo acontecesse, foi necessário refinar o petróleo por destilação fracionada, uma considerável proeza de engenharia química. Mais recentemente, o xisto, uma alternativa ao petróleo, passa a ser explorável comercialmente, forçando para baixo o preço do petróleo que dera um grande salto. Apesar de sua imbatível conveniência e confiabilidade, os motores de combustão interna são poluentes. No último meio século, muito se fez para reduzir as suas emissões. De fato, os avanços não foram pequenos. Ainda assim, se conseguimos minimizar as emissões, não sabemos eliminá-las. Com a pressão política para a redução do consumo de hidrocarbonetos, começam a aparecer automóveis movidos à eletricidade. O Tesla é o mais conhecido, mas muitos outros andam por aí. Em muitas utilizações, as turbinas se revelam superiores aos motores a pistom. Na Segunda Guerra, começam a aparecer os aviões a jato puro. Pouco depois, os motores turboélice combinam a hélice

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Torres de transmissão de energia elétrica de alta

voltagem, usando cabos de cobre ou alumínio.

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qr code: Oriundas da necessidade de levar energia até

os grandes centros urbanos, foram desenvolvidas duas

teorias: a teoria da corrente alternada (Nikola Tesla) e a teoria da corrente continua (Thomas Edison).

com turbinas, em soluções mais apropriadas para pequenas aeronaves. Desenvolvimento paralelo ocorre com os navios que passam dos velhos motores a vapor para as turbinas ou o diesel.

A eletricidade: luz e transporte de energia Vento, água, carvão e petróleo são fontes de energia. Eletricidade não é. Ou há uma fonte disponível, ou não há eletricidade. Contudo, a eletricidade é imbatível como forma de transformar movimento em energia elétrica, transmiti-la (por fios) e transformá-la de novo em movimento. Um gerador ou dínamo transforma o movimento giratório em eletricidade, com uma perda de energia de menos de 10% (considere-se que uma lareira perde quase 90% das calorias queimadas e um motor a gasolina perde de 70 a 75%). Ou seja, perde-se pouco da energia gerada pelo movimento, seja de uma roda d’água, um moinho de vento ou uma caldeira a vapor. Os fios de cobre revelaram-se a mais conveniente forma de transportar a eletricidade – e, por consequência, de transportar energia. Em linhas de alta voltagem, as perdas são bastante reduzidas. Estima-se que, nos Estados Unidos, as perdas de energia nas redes interestaduais sejam da ordem de apenas 6%.

No caso dos motores elétricos, a perda de energia é também pequena, como nos dínamos – afinal, é a mesma máquina, funcionando ao inverso. Em contraste, as lâmpadas incandescentes transformam apenas 2% da energia em luz (o resto vira calor). Já as fluorescentes têm uma eficiência de 7 a 9%, e as de LED, de 4 a 18%. Diante do desafio de economizar energia, é inevitável que a iluminação migre para essas novas soluções mais eficientes. Tradicionalmente, a eletricidade era gerada em hidroelétricas e termoelétricas. Mais recentemente, aparecem os reatores atômicos, as turbinas eólicas e os coletores fotovoltaicos. A escolha depende dos recursos naturais que a região tem a oferecer. Por exemplo, na Islândia, o vapor de fontes subterrâneas de água quente faz operar turbinas acopladas a geradores. Chegando ao local de uso, a eletricidade pode ser transformada em luz, movimento, som e muito mais. Tudo muito simples e conveniente. O século XX testemunhou um grande avanço nos motores elétricos. Mas ao contrário dos motores à explosão, cuja eficiência vem crescendo, pouco se pode ganhar nas taxas de conversão dos motores elétricos, já muito elevadas nas suas primeiras versões. O uso do alumínio e, mais adiante, do plástico levou a uma redução dramática no seu peso, tornandoos aptos para máquinas de mão, como furadeiras e muitas outras. Em 1910, um motor de 5 HP pesava cinco vezes mais do que o protótipo atual de um motor da mesma potência.

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De início, um único motor movia todas as máquinas da fábrica. A redução contínua no seu tamanho e preço permitiu o seu uso individual. Ou seja, cada máquina passa a ter o seu, em vez de depender das complexas soluções com eixos, polias e correias – que ademais impõe uma localização não necessariamente apropriada para o fluxo da produção. Em contraste ao carvão e ao petróleo, guardar eletricidade é um desafio sério. No fundo, é a sua maior limitação. É óbvio, uma forma indireta de guardar é não produzir, como no caso das usinas termoelétricas, que, quando cai a demanda, reduzem a marcha ou são desligadas. As hidroelétricas que têm bacia de acumulação podem também desligar algumas turbinas. Poupar água equivale a armazenar energia. Em alguns casos, é possível reverter a direção das turbinas e bombear a água de volta, fora dos horários de grande consumo. Já as usinas de fio d’água (sem bacias de acumulação) não permitem armazenar energia. Mas, propriamente, guardar eletricidade, somente com as pilhas ou baterias. E esse é o seu calcanhar de Aquiles. Como regra geral, as baterias são pesadas, caras e de pouca capacidade. Estão melhorando lentamente, fruto de grandes esforços. Mas ainda são o aspecto mais acanhado da eletricidade. Contudo, os avanços presentes já permitem o seu uso em furadeiras, serras e muitas outras máquinas

portáteis. Observa-se uma conversão inexorável das máquinas portáteis com fio para as sem fio.

Energia atômica: grandes ideias, grandes perigos Falando de energia, há que se mencionar a atômica. Não cabe aqui falar de seus usos militares ou médicos. Como discutimos energia, há que mencionar os geradores termonucleares. No fundo, voltamos à ideia de uma caldeira a vapor. Em vez de carvão, usamos uma reação nuclear para esquentar a água e gerar o vapor. A geração elétrica pela via nuclear teve um ciclo ascendente após a Segunda Guerra. Praticamente todos os países mais avançados criaram uma rede de geradores nucleares. Mesmo no Brasil, temos as usinas de Angra dos Reis. Contudo, após os acidentes de Chernobil e Three Miles Island, houve uma desaceleração na criação de novas usinas. Um tsunami no Japão criou um terceiro acidente nuclear grave. Diante disso, o ciclo nuclear sofreu um revés considerável. Dificilmente haverá novas usinas, e, pressionadas pela opinião pública, é possível que muitas centrais venham a ser fechadas. O assunto é altamente controverso, pois, no alto: Usina termo-nuclear. qr code: Pequena explicação sobre a

energia nuclear e a energia limpa do sol.

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fora o risco de um acidente, é uma energia limpa – o que não é o caso com os hidrocarbonetos de todos os tipos.

Células fotovoltaicas: a energia do futuro? As propriedades fotovoltaicas são conhecidas desde muito tempo. Há mais de meio século que a fotografia usa fotômetros, baseados nas propriedades de alguns metais de produzir ou conduzir energia elétrica quando expostos à luz. Mais recentemente, torna-se possível desenvolver células fotovoltaicas que já começam a fazer sentido comercialmente. Em outras palavras, a energia do sol é convertida em eletricidade, sem a intermediação de vapor, caldeira ou outros aparatos. Simplesmente, temos um painel que, exposto ao sol, gera eletricidade. As limitações presentes são de eficiência e custos. Estima-se que ambos os parâmetros continuarão melhorando, como fizeram até agora. No presente, já é uma alternativa economicamente viável em certas situações. No longo prazo, é difícil superestimar o impacto dessa forma tão limpa e simples de gerar eletricidade. De fato, neste momento, um avião movido exclusivamente a energia fotovoltaica está dando a volta ao mundo.

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9. A fantástica história da eletricidade e da eletrônica As mitologias e religiões oferecem explicações curiosas ou mirabolantes para raios e trovões, uma manifestação terrível da eletricidade. Contudo, entender a eletricidade é uma façanha somente lograda nos últimos dois séculos. Resulta de muito experimentar e de grandes saltos da imaginação. O relâmpago assusta, incendeia e eletrocuta. Mas entrando no século XX, o fluxo de elétrons é domesticado e se torna o mais dócil dos escravos do homem: a eletricidade. Mais adiante, os malabarismos dos elétrons começam a produzir os milagres da eletrônica. Com eles, a vida do homem nunca mais será a mesma. Durante toda a história da humanidade, houve sempre um grande esforço para entender e intervir em processos visíveis. Ferramentas, metais, cata-ventos e rodas d’água, caldeiras e motores: tudo foi um desafio para a imaginação e a teimosia do homem. Mas com a eletricidade ele se defronta com algo novo, uma forma invisível de energia. Portanto, a história da eletricidade é a saga de um grande esforço de capturar um ente invisível e colocá-lo a seu serviço. No que segue, começamos falando de eletricidade e de seus usos práticos. Passamos então para a eletrônica, que desemboca na informática.

Eletricidade: desvendando os mistérios Desde o século XVIII observa-se uma atividade crescente de especulação, experimentação e divertimento com fenômenos elétricos. É curioso notar que em paralelo a ser um objeto de estudos sistemáticos, a eletricidade virou entretenimento. Nos teatros de variedade, havia demonstrações das mágicas feitas por ela e distribuíam-se choques. Era chamada a Fada Elétrica. Contudo, nos salões não havia a mais remota ideia do que seria nem a preocupação de desvendar seus segredos. Em paralelo ao lado teatral, foram os séculos da descoberta dos princípios fundamentais da eletricidade. Em grande medida, isso ocupa todo o período. Todavia, antes do seu término, aparecem as duas inovações que mudam o mundo do século seguinte: o “motor (e seu, oposto que é o gerador)” e a lâmpada incandescente. Ou seja, começamos com atividades totalmente inúteis, da perspectiva de usos práticos, mas terminamos com duas inovações revolucionárias. E também muitas promessas que só desabrochariam no século seguinte.

qr code:

qr code:

qr code: A evolução

sobre

armazenamento

comunicação desde

da informação.

até o radinho de

Minicurso eletricidade e eletrônica.

A evolução no

dos meios de

e na divulgação

o início dos tempos pilha portátil.

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qr code: pavor marca o primeiro encontro do homem com a eletricidade. São os

raios e trovões, deixando uma esteira de

destruição. Mas incêndios eram também

a única forma de obter o fogo, um grande salto na evolução humana.

Raios: pavores e explicações Os raios e os relâmpagos chegaram à vida do homem sem que ele tomasse qualquer iniciativa. De repente, um grande estalo e o risco de morrer eletrocutado. E também os incêndios causados por eles. Não é por acaso que todas as culturas tinham uma explicação para essas medonhas erupções da natureza: era uma manifestação da ira dos deuses. Os gregos pré-clássicos acreditavam que Zeus se enfureceu com as traições de seu pai, Cronos. Para se vingar, encomenda os raios aos ciclopes, excelentes ferreiros. Com essa arma, derrota o pai e se torna o rei do Universo. Passa então a usar os raios a seu belprazer, para gerar chuvas e tempestades pela Terra. Quando seus humores azedam, lança um raio para cá ou uma enchente para lá. Os países nórdicos têm também a sua versão para os raios. O filho de Odin, Thor, com a sua barba ruiva, é o equivalente escandinavo de Zeus, sendo também temido por seus humores coléricos. Suas armas são os raios e relâmpagos. Mas, para dominar o mundo, usa o seu martelo mágico. Um dia, sua arma é roubada. Disfarçado de Frejia, a quem Thym, o rei dos gigantes, gostaria de esposar, Thor vai ao seu reino. Através de seu amigo Loki, convence o monarca a oferecer o martelo mágico, como sinal de submissão. Era tudo que queria Thor. Recuperando

seu martelo, torna-se novamente o senhor dos deuses. Entre os hindus, Indra é o senhor da chuva, dos relâmpagos e dos raios. Após complicadas manobras para vencer Vishnu, provoca uma grande enchente, mata as serpentes e volta a sua posição de domínio sobre a terra. China e Japão têm narrativas semelhantes para explicar raios e trovões. Na África, também há explicações tradicionais. Os índios da Amazônia têm a sua versão. Dandose conta do desaparecimento de sua mulher, um jovem convence um grande pássaro a levá-lo ao reino dos céus. Lá encontra a mulher amada, que revela ser filha do deus dos trovões. Para protegê-lo do pai irascível, presenteia-o com um bastão de ouro. Depois de uma terrível e inconclusiva batalha, o rei decide abandonar o mundo dos homens. Mas jamais os dois se reconciliam. Segundo a lenda, raios e trovões sinalizam as formidáveis e perenes batalhas entre o jovem e seu sogro. Custou até que a ciência fosse capaz de oferecer uma explicação melhor do que essas. De fato, uma teoria explicando por que elétrons zangados cruzavam os ares de forma violenta estava muito além do que se poderia decifrar até muito recentemente. Em seu benefício, há cerca de 500 mil anos. Antes que conseguisse acender uma fogueira à sua vontade os raios eram a única chance que tinham de ter fogo. Daí a importância vital de não deixar a fogueira

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qr code: Uma breve animação sobre a história da eletricidade, a partir dos experimentos de Tales e assando pela Garrafa de Leyden e magnetismo.

apagar. Esse era um dos assuntos mais discutidos nas povoações primitivas. Entre os nossos índios, a preocupação também persiste. Após passar tempo com os xavantes e xerentes, Maybury-Lewis narra que, ao saírem às expedições, tinham que levar uma brasa, protegida para que não se extinguisse. Mas isso às vezes acontecia, para grande consternação e querelas dentro do grupo.15

Eletricidade estática Os primeiros experimentos com eletricidade estática estão associados ao nome de Tales de Mileto, no período clássico grego, cinco séculos antes da era cristã. Esfregando um pelo de gato em uma barra de âmbar (uma substância transparente, na verdade, um vegetal petrificado), notou que passava a atrair pedacinhos de qualquer coisa leve, como palha ou tecido. Para Tales, essa atração revelava a existência de uma alma em cada objeto, vivo ou não. Mas ainda que a explicação não pareça hoje verossímil, o que importa é a sua observação sistemática da eletricidade estática. 15 David Maybury-Lewis, The Savage and the Innocent (New York:Beacon Press, 1997).

A descoberta seguinte, já no século XVII, é demonstrar que a eletricidade estática não ocorre apenas com o âmbar, mas com muitas substâncias parecidas. Contudo, ainda se estava muito longe de entender que o indisciplinado raio e as palinhas atraídas pelo âmbar eram manifestações do mesmo fenômeno. Na verdade, já existiam alguns indícios, pois esfregações mais enérgicas podiam produzir centelhas. Mas seria querer muito ter alguma teoria coerente com o que se sabia então. No século XIX, esses experimentos são retomados. O centelhamento é explorado por meio de aparatos que aumentam muito o nível de eletrização dos objetos esfregados. Essa linha desemboca no conhecido gerador de Van der Graaf, inventado pelo físico de mesmo nome, em 1929. Nele, há uma cinta que gira próxima de um material diferente. Isso tudo está dentro de uma campânula de metal. Como resultado, a diferença de potencial pode atingir 100 mil volts em modelos simples. As centelhas geradas são raios em miniatura. Mas esse aparelho foi inventado muito mais tarde. No século XIX ainda estávamos longe de uma explicação para a eletricidade. Muitas hipóteses se entrecruzam e observações se acumulam, sugerindo certas explicações. Mas, no fundo, entendia-se quase nada. Em certos casos, nem é preciso armar experimentos para demonstrar a eletricidade estática. Em climas secos, como em Brasília, o arrastar dos sapatos pelos tapetes dos ministérios é suficiente para produzir uma carga elétrica no corpo. Em um desses dias de

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secura, um ex-reitor, ao entrar numa reunião já em curso e tocar tocar na maçaneta metálica da porta, leva um belo choque. Sua avantajada pança arrebenta os botões da calça, que cai aos seus pés. Eis um reitor entrando de cuecas em uma reunião na burocracia da corte! Circulava entre seus amigos uma teoria de que, desde então, passou a andar de suspensórios. Foi um involuntário seguidor de Tales nos experimentos com eletricidade estática. Somente no século XX, toma forma a ideia de que eletricidade é o resultado dos elétrons que caminham pelos materiais condutores. E por que se chamam elétrons? É simples, pois é a palavra grega que denomina o âmbar amarelo.

Fluxo elétrico De alguma forma, as observações sugeriam a existência de fluxos elétricos, ou seja, alguma “coisa” tinha uma grande “vontade” de se mover de um lado para outro, segundo fluxos que se tornavam cada vez mais previsíveis. Alguns materiais, como os metais, descarregavam a eletricidade estática. Outros retinham a carga por algum tempo. Era o caso do âmbar, do vidro e de muitos outros materiais que hoje chamamos isolantes, em contraste com outros ditos condutores. Um homem de infindável curiosidade e iniciativa, Benjamim Franklin também se interessa

pelos mistérios da eletricidade – que não tinha esse nome na época. Interessante registrar que faz claramente a conexão entre os raios e a ideia de fluxos elétricos, ou seja, a eletricidade andando dentro de certos materiais. Tanto é assim que inventou o para-raios. Considerando o grande número de inventos de Franklin e a sua contribuição para a exemplar Constituição dos Estados Unidos, foi muita sorte para a humanidade não haver sido fulminado em seus experimentos com raios. Um dia, prometendo tempestade magnética, voou uma pipa, para testar se a eletricidade caminharia pela sua linha molhada. Um homem conhecido pela sua prudência e comedimento, poderia haver sido eletrocutado naquele momento. Felizmente, ao espocar um relâmpago onde voava sua pipa, já não mais tinha as mãos na linha. Mas a ideia estava plantada. O que quer que fosse, andava por dentro de certos materiais e não andava em outros. A conexão do raio com a atração e as centelhas do âmbar friccionado tornava-se mais bem estabelecida. Franklin fareja o poder da Fada Eletricidade. Ali havia alguma coisa bem importante. Para chamar a atenção, oranizou um banquete no qual o peru chegava vivo à mesa, mas era eletrocutado ali mesmo. Em seguida, a ave era cozinhada por algum aparelho elétrico. E não pararam aí as suas demonstrações.

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Volta, o inventor da pilha

elétrica, ao lado de uma das suas primeiras versões.

Pilha elétrica Partindo de um mundo completamente diferente e ainda desconectado da eletricidade estática e dos raios, começam a ser feitos experimentos químicos que geram eletricidade. Sem esse avanço, o resto da pesquisa nesse campo ficaria limitada ao pouco que se pode fazer esfregando este material naquele. Atribui-se a Alessandro Volta os primeiros sucessos nessa linha. Observa que metais diferentes, mergulhados em uma cuba com água acidulada, criam o que veio a ser chamado de diferença de potencial. No fundo, é a mesma eletricidade, só que agora produzida por uma reação química. Não há limites à variedade de materiais e ácidos que podem ser usados para fazer uma pilha. Pode-se gerar eletricidade até espetando dois pregos de metais diferentes em um limão. O que acontece? Temos uma pilha de limão. Começa a ficar claro que esse fluxo misterioso tinha uma grande “vontade” de andar sempre que encontrava um material condutor. É como se fosse fatalmente atraído pelo outro polo. Tocando fios conectados a cada um dos metais, gera-se uma centelha, nada diferente das outras produzidas por Tales e pelos muitos curiosos e cientistas que experimentavam a eletricidade, esfregando diferentes materiais. Volta desenvolvia a mãe ou a avó da pilha que conhecemos hoje. Aos poucos, fruto de milhares de

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experimentos, materiais mais adequados e aparatos mais convenientes são desenvolvidos para fabricar as pilhas. Sempre que colocamos metais diferentes, separados por um meio ácido, cria-se uma diferença de potencial. Hoje temos uma medida para o seu nível, os volts. Não por acaso, homenageia Volta. Eles medem a “vontade” ou a força que faz esse fluido para migrar para o outro polo do circuito. Por razões complicadas, quaisquer que sejam os metais ou os ácidos usados, sempre produzem 1,5 volts. Para conseguir 3 volts, temos que construir dois experimentos similares e ligar um atrás do outro. Mas por que não encadear três ou quatro? A eletricidade gerada terá mais força, ou mais volts. Na apresentação de Volta, assistida por Napoleão, 100 unidades estão encadeadas. Se abandonamos as cubas e usamos materiais embebidos no ácido, podemos colocar um em cima do outro, como fez Volta. Dito de outra forma, fazemos uma pilha de artefatos similares. Daí o nome de pilha para as que compramos na loja para acender a lanterna. Se quisermos ser rigorosos na semântica, as de 1,5 volts não empilham elementos. Mas o nome ficou. A palavra bateria tem a mesma origem, denominando originalmente um conjunto encadeado de artefatos de 1,5 volts.

Voltagem, amperagem e watts De posse das pilhas de Volta, capazes de produzir eletricidade de forma simples e confiável, torna-se possível estudar os fluxos elétricos. Prestigitadores, curiosos e cientistas passam a ter uma fonte confiável desse fluido misterioso que veio a se chamar eletricidade. Como já dito, alguma coisa revela uma grande “vontade” de migrar de um fio para outro. Ao cabo de muitos experimentos, começa-se a perceber que esse fluxo tem duas dimensões bem marcadas e diferentes. Uma delas é a maior ou menor “vontade” de ir de um fio para o outro, completando o circuito e descarregando a pilha, se o circuito permanece conectado. A outra dimensão é a “quantidade” de eletricidade que migra. Para entender a diferença, pensemos em canos de água. Se temos um cano vertical e vamos despejando água nele, na sua extremidade inferior, a água fará cada vez mais força, quanto mais alto estiver o nível da água. A medida dessa força seria a “voltagem” da água. Na eletricidade é a mesma coisa. Quanto mais voltagem, resultado de mais pilhas ligadas uma atrás da outra, mais a eletricidade “quer ir” para o outro lado. Se multiplicamos indefinidamente o número de pilhas, há um momento em que a eletricidade não mais se contém no seu fio. Ela salta, gerando uma centelha, como no gerador de Van der Graaff. É assim que funciona a vela de um automóvel.

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Voltemos aos canos, para examinar a outra dimensão. Quanto maior o diâmetro do cano, mais água passa. Por um canudinho de refresco passa menos água do que na torneira da cozinha. Ou seja, por um cano grosso passa mais água. Podemos pensar na mesma ideia para a eletricidade. Por um fio mais “grosso” passa mais eletricidade. A intensidade desse fluxo recebeu o nome de amperagem, em homenagem a André-Marie Ampere, um genial e polivalente cientista francês que realizou estudos substanciais nesse tópico. Temos então voltagem e amperagem. A primeira é a “força” da eletricidade que quer fluir no circuito. A segunda é a “quantidade” de eletricidade que flui. Esses são os conceitos mais fundamentais dos circuitos elétricos. Um eletricista lida permanentemente com eles. É 110v ou 220v? O fusível é de 15 ou 20 amperes? Mais uma vez, voltemos à analogia da água. Podemos ter um circuito mais “fino”, mas pelo qual a eletricidade passa mais depressa (tem mais voltagem). Ou um mais “grosso” em que a velocidade é lenta, mas passa muita eletricidade ao mesmo tempo (tem mais amperagem). Temos o direito de perguntar quanta eletricidade passou por esse circuito. Dito de outra forma, é o consumo de eletricidade. O mesmo tanto de eletricidade pode haver passado mais depressa, com mais voltagem. Ou mais devagar, com mais amperagem.

Nos canos, temos os litros. E na conta de luz, não importa se a água entrou depressa por um cano fino ou devagar em um grosso. O que interessa são os litros d’água que passaram pelo hidrômetro. O número de litros capta perfeitamente o consumo de água da casa. Não seria interessante ter uma medida de quanta eletricidade circulou? Não poderíamos inventar um litro de eletricidade? Na verdade, temos tal medida, que não são litros, mas Watts – merecida homenagem a James Watt, inventor do primeiro motor a vapor confiável e prático. Basta multiplicar os volts do circuito pela sua amperagem e temos os watts consumidos – em uma unidade de tempo, já que é um fluxo. De fato, mesmo no caso dos litros de água, temos que explicitar o intervalo de tempo da mensuração. A companhia que fornece água não diz apenas “tantos litros”, mas sim “tantos litros por mês”. Na conta de luz, o que interessa é a quantidade. Se o chuveiro elétrico é de 220v, ele gera um dado consumo que é somado ao da lâmpada de 110v. Se temos um pequeno aparelho de solda elétrica, o eletrodo pode precisar de 60 amperes para derreter. Mas a voltagem é muito baixa, de alguns poucos volts, e nem chega a dar choque. Assim, é a multiplicação da amperagem pela voltagem que nos dá o consumo. Uma vela de automóvel gera uma centelha, porque a voltagem é da ordem de 20 mil volts. Mas a amperagem é baixíssima – não fora assim, morreria eletrocutado quem recebesse um choque do fio da vela.

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Caixa com componentes elétricos para ensino de eletricidade.

qr code: Esta animação mostra a condutividade e a resistência elétrica, cujos princípios estão formalizados na Lei de Ohm.

Mostra também o aproveitamento do calor gerado pela resistência, bem como o seu uso na lâmpada elétrica”.

Recapitulando, temos voltagens, amperagens e watts. Com esses três conceitos essenciais conhecemos quase tudo que se precisa para lidar com circuitos elétricos. Um mede a velocidade do fluxo; outro, quantidade de eletricidade que passa. O terceiro mede o consumo do circuito.

Resistência e a Lei de Ohm Às vezes, em circuitos elétricos, é preciso reduzir ou travar o fluxo de elétrons. Se for excessivo, pode queimar a instalação. Nesses casos, introduzimos nele um resistor (antes chamado de resistência). Estamos falando de materiais que deixam fluir a eletricidade, mas não sem opor alguns obstáculos. São maus condutores, mas não chegam a ser isolantes. É como se fosse uma estrada ruim que força o carro a andar mais devagar. Se criarmos um circuito começando em um dos polos da pilha, passando por uma lâmpada, esta vai acender. Mas se entre a lâmpada e a pilha introduzirmos um resistor, ele vai parcialmente bloquear o fluxo elétrico, fazendo com que a lâmpada produza uma luz mais mortiça. Muitas vezes queremos que isso aconteça. Por exemplo, em alguns tipos de motores elétricos, conforme o resistor usado, teremos o seu eixo girando em velocidades diferentes. Algumas furadeiras

elétricas têm ajustes de velocidade baseados nesse princípio. Em outros casos, porém, queremos reduzir a resistência de uma instalação elétrica, pois pode causar um desperdício de energia. Por exemplo, ao fazer a instalação elétrica de uma casa, queremos usar fios com baixa resistência para reduzir essa perda e também para evitar o risco de que peguem fogo, caso a carga aplicada se revele excessiva. Para isso, precisamos conhecer a resistência dos fios usados. Se o fio tiver um diâmetro muito pequeno, sua alta resistência vai reduzir substancialmente a corrente que passa, além de esquentar. Muitas vezes, ao ligar o chuveiro elétrico, notamos que as lâmpadas ficam mais mortiças, indicando que foi usado um fio fino demais. Devemos então usar um de bitola superior, com menos resistência, ainda que mais caro, por usar mais cobre. Se esfregarmos as palmas das mãos, notamos que esquentam. É o atrito resultante de que não são lisas. O mesmo acontece com materiais que conduzem eletricidade, mas que opõe uma resistência

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qr code: Para conhecer os princípios básicos do Eletromagnetismo. Eletroímã primitivo

qr code: Para entender a teoria de Galvani.

a esse fluxo. Como entendemos hoje, ao se chocar com obstáculos dentro do fio, o fluxo de elétrons produz calor. Materiais como o níquel-cromo permitem usar o calor nele gerado para esquentar a água, por exemplo, em um chuveiro elétrico. Ou mesmo construir um fogão ou um radiador para dias de frio. Em 1827, um cientista alemão chamado Georg Ohm estudou detidamente esses fenômenos. Como resultado de suas pesquisas, foi capaz de definir uma fórmula matemática associando a resistência do material com a voltagem e com a amperagem. Na verdade, foi o primeiro tratamento matemático da eletricidade. Não por acaso, esse princípio recebe o seu nome: Lei de Ohm. Segundo a fórmula proposta, a intensidade da corrente que flui em um circuito depende diretamente da voltagem e inversamente da sua resistência. Brilhante! Só que o Ministério da Educação alemão da época julgou que um professor pregando tais heresias não era digno de ensinar ciência. Sua proposta não passava de uma divagação a esmo. Mas tempos depois a descoberta foi reconhecida e louvada. As pesquisas de Ohm foram feitas com o auxílio de um galvanômetro, instrumento que mede a corrente que flui em um circuito. Seu desenvolvimento está associado aos nomes de Luigi Galvani e Hans Oersted. Seu funcionamento baseia-se no fato de que um eletroímã atrai peças de ferro (assunto mais bem explicado adiante, quando discutimos o

eletromagnetismo). Se tivermos um ponteiro metálico mantido em uma posição inicial por uma mola muito sensível, ao passar uma corrente por um eletroímã que está a sua volta, o ponteiro vai ser atraído e girar. A magnitude da deflexão do ponteiro mede a intensidade da corrente que flui no solenoide. Essa construção se converteu no aparelho universal para medidas elétricas. É mais ou menos como se fosse a fita métrica dos eletricistas. Com justa causa, a unidade de medida de resistência acaba por ser batizada de Ohm. Uma resistência de chuveiro elétrico tem algo em torno de 10 Ohms. Nos circuitos eletrônicos convencionais, são empregados resistores com milhares ou milhões de Ohms de resistência. Ou seja, tais componentes impõem obstáculos muito árduos para o fluxo elétrico. Na multidão de aparelhos elétricos e eletrônicos, o uso dos resistores é mais do que comum. É difícil imaginar algum em que não tenha.

Circuitos elétricos (série e paralelo) Ao falar de pilhas, mencionamos que as vezes queremos encadear uma na outra. Para assim ligálas, conectamos o positivo de uma com o negativo da outra. Com essa ligação, somam-se as voltagens de cada uma. Duas pilhas de 1,5 volts produzem 3 volts, entre

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Cabos elétricos com alma de cobre ou alumínio.

os polos extremos do circuito. Na verdade, podemos conectar quantas pilhas desejarmos. A cada uma adicional, a voltagem aumenta 1,5 volts. Chamamos de ligações em série essa maneira de conectar componentes. No caso das pilhas, são usados para aumentar a voltagem. Mas podemos fazer diferente. Ligamos as pilhas uma ao lado da outra. Positivo com positivo, negativo com negativo. São as chamadas ligações em paralelo. A voltagem oferecida no circuito são os mesmos 1,5 volts, mas como há mais componentes ligados, permitem um fluxo mais amplo. Em vez de uma lâmpada, podemos ligar várias. É o equivalente a dizer que a caixa d’água tem mais capacidade, portanto pode abastecer um consumo maior, digamos, um grande chuveiro, em vez de um acanhadinho. Essas duas categorias de ligações podem ser feitas com pilhas ou com quaisquer outros componentes. Ao instalarmos a eletricidade em uma casa, usamos sempre ligações em paralelo, pois tudo que temos instalado opera com a mesma voltagem. Nesse caso, a eletricidade que passa em uma lâmpada não passa na outra. É o contrário das ligações em série, nas quais a eletricidade passa em uma e logo em outra. Mas como é o mesmo fluxo, os amperes que passam são os mesmos em qualquer uma delas.

Pensemos em moinhos de farinha, cada um tocado por uma roda d’água. Instalamos um e, logo abaixo no córrego, vem um segundo, mais adiante um terceiro. Estão ligados em série. O gasto de água será sempre o mesmo, qualquer que seja o número de moinhos no curso d’água. Mas se instalamos todos os moinhos no mesmo trecho do rio, cada um consome a sua água. Se forem três, será o triplo do consumo. Para resumir, há dois tipos elementares de ligações elétricas: em série e em paralelo. Cada uma tem suas propriedades que podem se revelar adequadas ou não, dependendo do que queremos fazer.

Capacitor O capacitor, também chamado de condensador, é um dos três componentes passivos usados na eletricidade e eletrônica. A saber, resistor, bobina ou solenoide e capacitor. A pilha seria um quarto elemento fundamental, mas como produz eletricidade, não é considerado passivo. À primeira vista, uma pilha e um capacitor parecem coisas bem parecidas. Ambos podem ter eletricidade guardada. Mas há uma diferença. A pilha produz eletricidade, como resultado de uma reação química.

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O capacitor apenas guarda a carga que receber, quando conectado a uma fonte de eletricidade. A característica fundamental de qualquer circuito elétrico é que, do lado positivo, estão elétrons “querendo ir” para o lado negativo. A corrente elétrica ocorre justamente por essa atração que o lado negativo exerce sobre o positivo. Se ligarmos os fios, a corrente flui, eliminando o represamento e equilibrando o sistema. Ou seja, extingue-se qualquer fluxo, pois os dois polos estarão com cargas iguais. Se for uma pilha, ela será descarregada pela ligação. Os capacitores não produzem eletricidade, mas se carregam quando conectados a uma fonte elétrica. São construídos por duas superfícies metálicas próximas, separadas por um isolante, chamado de dieletro. Se ligarmos as placas em uma pilha, os elétrons do lado positivo se acumulam na placa correspondente, pois são atraídos pela outra com carga negativa. Historicamente, o primeiro capacitor foi construído pelo físico holandês Pieter van Musschenbroe, morador da cidade de Leiden. Daí o nome de Garrafa de Leiden, que era um frasco com uma película de metal do lado de fora e outra do lado de dentro. O vidro isolava os dois lados: era o dieletro. Dizemos que o capacitor está carregado quando, mesmo depois de desligada a pilha, o acúmulo de elétrons em uma das placas persiste. Se com um fio ligarmos as duas, com espantosa velocidade os elétrons acumulados de um lado migram para o outro. O processo costuma produzir uma centelha,

tamanha é a força com que fluem de um polo ao outro. Lidando com um aparato desse tipo, von Kleist levou um tremendo choque. Chegou a afirmar em carta que “Eu não levaria um segundo choque pelo reino de França”. De fato, quem tocar nos bornes de um capacitor carregado vai levar o mesmo choque de von Kleist, pois os elétrons usam o corpo como caminho para migrar para o polo negativo. A medida de capacitância é o Farads, derivado do nome do grande cientista inglês Michael Faraday. Tendo sido um dos maiores físicos do século XIX, qualquer homenagem é justificada. Mas, curiosamente, Faraday nada descobriu de muito importante sobre capacitores. São muitos os usos para um capacitor na indústria elétrica. Vejamos um fácil de entender. Ao ligar um motor elétrico, a corrente precisa superar a inércia do próprio motor, do eixo e do implemento ao qual está acoplado. Se nesse momento um capacitor carregado é ligado ao sistema, ele vai aplicar no circuito um pique de corrente, um empurrão, ajudando a pôr o conjunto em movimento. Em eletrônica, muitas vezes precisamos de uma corrente contínua bem estável. Se houver um capacitor ligado no circuito, ele vai carregar mais quando há um pique para cima e descarregar quando há uma queda. Como resultado, a corrente fica mais estável. Como dito, os capacitores são elementos essenciais em qualquer aparato elétrico ou eletrônico. Conforme

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o tamanho e a sua capacidade de carga, são construídos com diferentes materiais. O dieletro pode ser papel ou qualquer outro isolante. As chapas podem ser de algum tipo de folha metálica.

Magnetismo O terceiro elemento, o último faltante, é o solenoide, vulgarmente conhecido como bobina. Na prática, não passa de um fio de cobre enrolado, como se fosse linha em um carretel. Jean-Marie Ampere foi um dos primeiros a experimentarem ímãs e eletroímãs. No fundo, suas propriedades são as mais misteriosas dos três. O resistor freia o fluxo elétrico. O capacitor armazena uma carga elétrica. Mas e o solenoide? O solenoide cria um campo magnético, uma força bem diferente do fluxo de elétrons. Os elétrons não andam pelo ar, não andam em materiais isolantes. São como uma manada bem comportada, seguindo pelos caminhos delimitados para eles. O campo magnético está no ar. Ainda hoje há certa ambiguidade quanto à sua natureza. Mas vale reter que é uma forma de energia imaterial, invisível. Um segundo mistério é que os solenoides são, em muitos sentidos, equivalentes aos ímãs que tão bem conhecemos. Façamos o experimento clássico. Tomemos um ímã forte. Sobre ele pousamos uma placa de vidro ou

de cartolina. Sobre essa placa despejemos limalhas de ferro. O que acontece? Surpresa! A limalha vai se organizar em torno do ímã, formando um quase círculo cheio de volutas. Há um semicírculo que se forma no polo positivo e outro em torno do negativo. A primeira conclusão é que alguma coisa sai do ímã e age sobre a limalha, obrigando-a a se espalhar e assumir essa forma tão simétrica e previsível. Ou seja, essa força consegue atravessar o vidro que sabemos ser isolante. E se substituímos o ímã por um solenoide? Ligamos nele uma pilha e despejamos a limalha. O que acontece? Exatamente o mesmo que com o ímã. O desenho formado é semelhante e previsível. Essas ondas, chamadas eletromagnéticas, podem parecer apenas uma curiosidade. Mas dentro da eletricidade e eletrônica podem prestar serviços valiosos. Podemos construir um experimento enrolando um fio de cobre em um pau, ou, melhor, prego que o torna mais eficiente. Ligando as extremidades do fio a uma pilha, vemos que atrai objetos de ferro. É um eletroímã. Podemos brincar com ele, atraindo peças de ferro e depois desligando, para vê-las se soltar. Mas se for um eletroímã grande, pode levantar um automóvel. Podemos criar mecanismos em que, ligada a corrente, uma peça de ferro é atraída e se desloca em direção ao solenoida. Ou seja, a atração vence a inércia e provoca o movimento. Essa propriedade nos permite

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James Clerk Maxwell, um cientista escocês brilhante e criativo, o primeiro a formular matematicamente a explicação de que as ondas magnéticas eram semelhantes às de luz. Isso o conduz à explicação de que se trata de um fenômeno ondulatório. Tais especulações abrem as portas para os avanços que culminaram depois na invenção do rádio. comandar a abertura de uma porta, por exemplo. O eletroímã atrai uma barra de ferro que se desloca, soltando o trinco. E permitiu também gravar em papel os pontos e traços do primeiro telégrafo. Experimentando com eletroímãs, foi feita uma observação que abre as portas para inventos que mudaram o mundo. Notou-se que, se tivermos dois eletroímãs, um próximo do outro, ao ligar a eletricidade em um, cria-se também um pique elétrico no outro, que não está ligado a nada. Esse é o ponto de partida para uma multidão de usos, incluindo os motores elétricos e o rádio, mais adiante descritos. Mas é crítico entender: se mantivermos ligado o circuito de um lado, nada acontece do outro. É somente no instante de ligar e desligar que se observa a atividade elétrica também no outro. Michael Faraday teve uma contribuição definitiva para entender o eletromagnetismo. Foi seguido por

Transformadores Como dito, as pesquisas sobre magnetismo mostram a criação de um fluxo elétrico em uma bobina que está próxima de outra, ligada a uma corrente. Ou seja, ao conectar-se uma corrente elétrica em uma bobina, outra que esteja próxima será ativada, produzindo também uma corrente elétrica, apesar de não estar ligada a qualquer outro circuito. Essas descobertas ocorreram na primeira metade do século XIX e estão associadas a cientistas húngaros. Mas os primeiros usos comerciais dessa propriedade começam a aparecer na segunda metade do século. O modelo vencedor foi criado pelo americano William Stanley. Aos poucos, transformadores tornam-se aparelhos frequentes em fábricas e residências.

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Registrou-se, já nessas épocas, que a relação entre o número de espiras de cada solenoide determina a voltagem que vai aparecer na bobina dita secundária, ou seja, a que não está ligada. Se na primária temos 100 espiras e na secundária temos 50 a voltagem observada na secundária se reduzira à metade. Por exemplo, se a rede for de 220 volts, a saída será de 110 volts. Isso significa que torna-se possível transformar voltagens. Abrem-se então as portas para os transformadores, que nada mais fazem do que isso. Para cima ou para baixo, tudo depende da relação entre as espiras do primário e as do secundário. Como as redes elétricas são de 110 ou 220 volts e muitos aparelhos hoje funcionam com voltagens que vão de 1,5 a 16 volts, tornaram-se peças do nosso cotidiano, para evitar o uso das pilhas nas dezenas de instrumentos elétricos, como celulares e rádios. É bom recapitular: a corrente somente é criada quando o circuito do primário é ligado e desligado da fonte de eletricidade. Ligar e deixar ligado apenas cria um pique inicial e nada mais. É preciso uma intermitência ou uma inversão de voltagem para que ocorra o fenômeno. Daí a criação da corrente alternada, mudando de polaridade 50 ou 60 vezes por minuto. Com ela, os transformadores podem funcionar. Depois do desenvolvimento da lâmpada elétrica, um invento de extraordinário apelo público, havia uma grande discussão acerca da maneira de levar a eletricidade à casa das pessoas. O grande problema tem

a ver com a resistência dos fios elétricos usados para esse transporte. Fios de grande secção oferecem pouca resistência ao fluxo elétrico. Mas são mais caros. Fios mais delgados trazem uma perda de energia, apesar de serem mais baratos. Mas isso é apenas a metade do problema. Descobriu-se que a perda depende da voltagem da linha. As de baixa voltagem têm uma perda maior. No limite, inviabilizam a transmissão em uma larga distância. Isso porque precisam de mais amperagem para compensar a voltagem menor. Daí as vantagens de uma alta voltagem nas linhas de transmissão. Porém, Edison dizia que uma voltagem alta dentro da casa das pessoas criaria um grande risco de choque elétrico. Ansioso por vender as lâmpadas que havia inventado, advertia insistentemente sobre riscos de morte por eletrocussão. Tentava vender suas instalações de baixa voltagem, apesar dos problemas das perdas nas linhas. Um dos assistentes mais brilhantes de Edison, Nikola Tesla, um servo-croata de personalidade difícil, acaba brigando e colocando-se no campo oposto da discussão. Insistia que o transporte da eletricidade, com as voltagens das lâmpadas, resultaria em uma perda enorme. Pelos seus cálculos, seria necessário criar um gerador elétrico para cada quarteirão. Tentar levar os fios mais longe acarretaria um desperdício intolerável.

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A solução era alternar a polaridade da corrente, por exemplo, 60 vezes por minuto. Com a corrente alternada, seria possível usar um transformador para tornar a voltagem muitas vezes mais alta. Essa eletricidade seria transportada nos postes e, em cada quarteirão, passaria por outro transformador, para que voltasse a um nível seguro para as pessoas e compatível com as lâmpadas incandescentes. A briga dos dois é um dos casos mais clássicos de desavença barulhenta entre cientistas. Eram dois colossos. Edison, metódico e insistente, tinha por trás todo o peso de sua empresa. Tesla, brilhante e brigão, associa-se a Westinhouse, uma promissora empresa produtora de materiais elétricos. Os lances são teatrais, mesclando-se os choques de egos avantajados com interesses comerciais. Mas o futuro estava selado, pois a solução de Edison não era nada prática. Nesse momento, toma-se uma decisão que afeta o que aconteceu na indústria elétrica do mundo inteiro. Opta-se pela corrente alternada, com seus transformadores e as vantagens de usar altas voltagens nas linhas de transmissão. Tesla ganhou o embate sobre corrente alternada. Porém, a batalha da mídia ganhou Edison, pois virou quase um símbolo do americano obstinado e criativo. Tesla tinha uma personalidade complicada. Largou a Westinghouse, foi esquecido e morreu quase na miséria. É bem recente a redescoberta da sua importância como físico.

A eletricidade que trabalha no fio No capítulo anterior, descrevemos um conjunto de avanços, tanto na compreensão dos fenômenos elétricos como no desenvolvimento dos componentes principais de tudo que é elétrico: pilhas, capacitores, resistores e solenoides. Tudo isso aconteceu no século XIX e um pouco antes. Era a matéria-prima para trabalhar com eletricidade. Mas nada disso mudava a vida das pessoas. Eram avanços ainda nas cabeças e nos laboratórios. As grandes transformações vieram próximo da virada do século XX. Os três avanços definitivos são os geradores elétricos os motores elétricos e as lâmpadas. Com eles, tornou-se possível criar uma variedade extraordinária de aplicações que mudaram os processos produtivos e o conforto humano. A eletricidade vem ao resgate da energia hidráulica, permitindo o seu transporte para longe dos rios. Esse processo se dá em três etapas. Em uma primeira, o movimento do eixo da roda d’água é transformado em energia elétrica por um aparato conhecido como gerador ou dínamo. Em seguida, fios de cobre transportam a eletricidade para onde se faz necessária. Finalmente, motores elétricos a transformam de volta em movimento. As consequências dessas inovações são incalculáveis. Aparecem, à época, outras promessas, mas são para desenvolvimentos futuros. Além dos mencionados acima, é apenas um deles que se materializa para o grande público, ainda no século XIX: o telégrafo (com fio).

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Geradores e motores Examinemos aqui a primeira parte desta tríade: o gerador. Para conduzir experimentos, as pilhas são uma fonte conveniente de eletricidade. Mas para as atividade utilitárias são de pouca serventia, pelo pouco trabalho que podem produzir. Entra em cena Zenobe Gramme, um belga de pouca escolaridade, muita disciplina de trabalho e muitíssima imaginação. Em seu ofício de modelar em madeira as peças que seriam fundidas em uma fábrica de equipamentos elétricos, começa a se interessar pela eletricidade e seus usos. Ele parte da constatação já generalizada de que ímãs, quando aproximados de bobinas, geram nelas um fluxo elétrico. Sendo possível instalar bobinas em torno de um eixo apoiado em mancais, alguma coisa pode acontecer. De fato, já se havia experimentado tais montagens. Ao aproximar o ímã de uma série de bobinas montadas concentricamente em um eixo, será criada uma corrente elétrica, cada vez que uma se aproxima do ímã. Essa eletricidade gerada é transmitida para um par de fios por meio do que hoje chamamos de coletor. Na prática, é um anel de metal construído por segmentos isolados uns dos outros. Uma escova encostada nesse coletor captura a eletricidade gerada. Ao girar mais o eixo, a eletricidade gerada pela bobina é captada pelo outro setor do coletor. E assim por diante, completando o círculo de bobinas. Cada bobina, através do coletor, joga na linha uma corrente elétrica, em sucessão.

Diante das outras alternativas existentes, essa solução é amplamente superior e faz muito sucesso na exposição de Paris de 1881. Com seu espírito pratico, Gramme cria uma fábrica de geradores e seu negócio prospera. Curioso registrar que, avesso às teorias e aos eventos públicos, dorme durante a exposição. Ao acordar, verifica que cientistas interessados pelo seu invento haviam rabiscado fórmulas matemáticas em um quadro-negro, para tentar explicar o que viam na prática. Retruca então, mal-humorado, que jamais teria inventado o dínamo se dependesse daquela baboseira escrita no quadro.

O motor elétrico e a revolução no conforto O mesmo Gramme vai apresentar seu dínamo em uma exposição em Viena, onde muitos deles seriam instalados. Na correria dos últimos minutos de preparação, um operário, por engano, liga um dínamo no outro. Ao rodar o eixo de um deles, notou que o outro passou a rodar sozinho, sem que houvesse alguma força a movimentá-lo. Ou seja, o dínamo não passa de um motor elétrico usado ao contrário. Esse curioso incidente traz à luz o fato de dínamos e motores serem máquinas muito parecidas. Se alguma força física girar o eixo do dínamo, sai eletricidade. Mas se for ligada a eletricidade nele, começa a girar, funcionando como motor elétrico.

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Um alternador de automóvel, ao girar o motor, produz a eletricidade que carrega a bateria. Mas retirando o alternador do carro e ligando-o na bateria, vai rodar como um motor elétrico. Naturalmente, depois de Gramme, há uma enorme sucessão de motores e dínamos, cada vez mais eficientes. Werner Siemens é outra pessoa a quem se atribui o desenvolvimento de motores e geradores elétricos. Os motores de Gramme eram de corrente contínua. Uma vantagem é que, com um reostato (um resistor variável), é fácil controlar a sua velocidade. Mas os motores de corrente alternada tem outras vantagens e hoje predominam na indústria. Sua velocidade é

precisamente determinada pela ciclagem da corrente (50 ou 60 ciclos por segundo, dependendo do país e da região). Os primeiros motores tinham coletores com escovas para estabelecer o contato entre as partes móveis e as fixas. Esta solução persiste até hoje, mas há outros sem coletores. Siemens e Gramme criam dois aparatos que transformam as fábricas e as casas. Os motores elétricos estão por toda parte: desde o ínfimo motor ajustando o foco das lentes fotográficas até os gigantescos das locomotivas elétricas. Com diferentes tipos de motores funcionam trens, bondes, geladeiras, aparelhos de ar-condicionado, furadeira, impressoras e muito mais.

Ilustração de um dínamo de Gramme.

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Thomas Edison, inventor e homem de

negócios estadunidense, era conhecido como “O mago de Menlo Park”.

Entre outros feitos, desenvolveu um

sistema de transmissão de energia por corrente contínua.

à direita: Thomas Edison com a lâmpada incandescente e com o fonógrafo.

Os eletrodomésticos Na virada do século XX, estava consolidada a geração eficiente de eletricidade. Os postes elétricos se espalham pelas cidades. Logo entra nas fábricas. Aos poucos, avança nas áreas rurais. Com a capilaridade da energia elétrica, os motores podem ser usados em um sem-número de situações. As fábricas se convertem para a eletricidade, mais conveniente e eficaz. Mas no fundo faziam com mais vantagens o mesmo que os motores a vapor realizavam. Foi um avanço, mas menos espetacular. Onde os motores mudam a vida das pessoas de forma dramática é dentro de casa. Os edifícios tinham o número de andares limitados pela disposição dos moradores de subir escadas. Os motores viabilizam os elevadores, tornando viáveis edifícios de muitos andares. Mais adiante, com elevadores mais aperfeiçoados, os arranha-céus aparecem. Por séculos, tudo que era gelado era um luxo de quem comprava gelo, às vezes trazido de outros países e cuidadosamente guardados em serragem para aguentar até o verão. Com os motores, torna-se possível criar geladeiras que produzem gelo em casa. As máquinas de lavar liberam o tempo das mulheres, para que possam se dedicar a outros afazeres ou ao lazer. O médico sueco Hans Rosling afirma que nada fez tanto pela qualidade de vida das mulheres quanto as máquinas de lavar roupa.

O ar-condicionado mudou os padrões geográficos de ocupação do território. Antes, como era relativamente fácil aquecer a casa e impossível resfriála, morar em um lugar mais frio trazia mais conforto térmico. Com o ar-condicionado, regiões mais quentes tornam-se mais atraentes, pois passa a ser possível refrigerar as casas no verão e desfrutar de um inverno mais suave. E, naturalmente, os resistores podem ser usados para gerar calor. Fogões elétricos e chuveiros tornam-se parte da coleção de aparatos que aumentam o conforto das nossas casas. Não tem limite a coleção de aparelhos que aumentam o conforto domiciliar, graças a seus motores. Aspiradores de pó, lava-pratos, batedeiras e liquidificadores tornam a nossa vida cada vez mais confortável.

Lâmpada incandescente Da profusão de experimentos e inventos gerados no século XIX, poucos dão resultados práticos ainda naquele século. Além de motores e geradores, mencionados acima, a terceira exceção é a lâmpada elétrica. Diante da promessa de um material que, aplicada uma corrente elétrica, esquenta até produzir alguma luz, começa uma corrida para achar a boa solução para a lâmpada incandescente. Muitos pesquisadores

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entraram nela. O grande problema é que, quando a corrente é suficiente para produzir alguma luz, é mais do que suficiente para queimar tudo. O engenheiro alemão Heinrich Gobel migrou para Nova York, onde abriu uma relojoaria. Como se deu muito bem, teve tempo para fazer experimentos com pilhas. Aliás, nem sempre bem-sucedidos, pois frequentemente, os bombeiros tinham que intervir, apagando incêndios em sua casa. Mas, progressivamente, as coisas começam a dar certo. Tirando um pedaço de fibra de bambu de sua bengala e usando o vidro da sua água de colônia para, lá dentro, gerar vácuo, consegue criar uma lâmpada bem-sucedida. Mas o lado comercial não funciona. Como usava pilhas, era muito limitado o seu uso. Edison celebrizou-se como o mais teimoso, trabalhador e disciplinado dos inventores. Perguntado em que data se aposentaria, respondeu que seria no dia seguinte à sua morte. Quando insistem para que trabalhe menos, concorda em reduzir sua jornada para 16 horas por dia. Nesse regime, por mais de meio século, criou uma quantidade espantosa de inventos que deram certo. Vendo as possibilidades da luz elétrica, começou também a experimentar com centenas de materiais para construir o filamento: platina, bambu, tungstênio, tudo que tinha uma remota chance de acender e não queimar. Um grande passo foi dado quando se começou a colocar o filamento dentro de um vidro,

no qual se inseria um gás inerte ou se fazia vácuo. A sua obstinação deu certo: construiu uma lâmpada incandescente viável, ou seja, acendia e não se queimava logo. De posse de sua lâmpada e de um grande talento de marketing, o sucesso não tardou. Depois dela, boa parte da humanidade trocou o dia pela noite. Acordar com as galinhas e dormir pouco depois delas deixou de ser a rotina universal. Fotos da Terra, tiradas por satélites, mostram como a noite virou dia em boa parte do mundo. Muitos anos depois da lâmpada incandescente, aparecem novas formas tecnicamente mais sofisticadas de produzir luz, com menos consumo de energia. Lá pela metade do século XX, as fluorescentes começam a funcionar bem, abocanhando um bom naco do mercado por muitos decênios. Outras soluções aparecem, mas o grande salto, no fim do século XX, são as lâmpadas baseada em diodos que emitem luz (LEDs). Há muito se sabia que, assim como as antigas válvulas que emitiam elétrons do seu catodo, os diodos têm a mesma capacidade. Usar isso para sensibilizar algum material que pode gerar luz é o próximo passo. Com a progressiva queda de preço em sua produção, lentamente começam a tomar o lugar de todas as outras, com muitas vantagens, sobretudo na durabilidade e no baixo consumo.

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Manipulador usado no telégrafo para transmitir o código Morse.

qr code: O telégrafo criado por Samuel Morse, utiliza um código

permitindo converter todas as letras e números em apenas traços e

pontos. Trata-se de uma revolução nas comunicações.

Telégrafo A eletricidade prometia muitos milagres, mercê do exército de pesquisadores, inventores e engenheiros experimentando com seus aparatos misteriosos. Mas faltavam os degraus intermediários que só se materializaram no século XX. Não obstante, havia um invento que podia ser fabricado com as tecnologias já dominadas na época: o telégrafo. O uso da corrente elétrica já estava resolvido, assim como os eletroímãs. A pilha de Volta era suficiente para as necessidades. Mas faltava um método para transformar letras em impulsos elétricos. Muitas alternativas foram tentadas. Várias delas usavam um fio para cada letra (até 35, no total). Era uma solução complicada e cara. Gauss chega a gerar um alfabeto digital, revelando o seu enorme talento, pois se trata de uma ideia fundamental na computação, revivida mais de cem anos depois. Seu telégrafo operou em uma estrada de ferro alemã. Mas o caminho definitivo foi dado nos Estados Unidos, por Samuel Morse, um pintor de certo renome. Ele define um alfabeto baseado em traços e pontos. Os traços eram gerados quando se ligava o circuito por certo tempo. Os traços eram gerados quando se deixava o circuito ligado por certo tempo. No ponto,

o período ligado era mais breve. Cada letra tinha a sua correspondência definida por certa sequência de traços e pontos. Ligando uma pilha a um par de fios, a corrente podia ser captada no outro extremo. Assim, um eletroímã nessa outra ponta podia ser ativado pela corrente, movendo um estilete que registrava traços ou pontos em um rolo de papel. Para transmitir, cria-se o manipulador, uma alavanca comandada pelas mãos do telegrafista e que, na outra extremidade, tinha um contato elétrico. Bastava variar o tempo em que o manipulador era pressionado para gerar traços e pontos. O telégrafo não era mais do que isso. Com o adensamento das redes ferroviárias, era preciso que uma estação se comunicasse com a outra, para que os desvios estivessem na boa posição quando se aproximavam os trens. Graças ao telégrafo, tal comunicação podia agora se processar de forma confiável. Dessa forma, a expansão das redes de telégrafo ferroviário cresceram junto com as ferrovias. Antes de virar médico e, depois, entrar na política, Juscelino Kubishek era telegrafista.

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Em 10 de março de 1876

aconteceu a primeira conversa telefônica, quando o inventor Graham Bell ligou para seu assistente.

qr code: Esta animação mostra

como funcionavam os primeiros telefones, simultaneamente

inventado por G. Bell e outros.

Naturalmente, logo se viu que traços e pontos podiam fazer mais do que comandar os trens. Permitiam passar telegramas, estabelecendo uma comunicação muito mais rápida do que por qualquer outro meio existente. O primeiro teste da eficácia desta comunicação se deu quando um assassino escapa, tomando um trem rumo a Londres. Antes do telegrafo, teria desembarcado e se embrenhado no que era então a maior cidade do mundo. Todavia, uma mensagem do telegrafista da estação faz com que desembarcasse nas mãos da polícia que o esperava. Daí para frente, o telégrafo se converte na forma mais eficaz e conveniente de comunicar-se com quem estava longe. Vencer oceanos com cabos submarinos foi a proeza seguinte, demandando muita pesquisa para encontrar os materiais que resistissem à vida submarina. No caso, o látex se revelou o mais interessante. O telégrafo durou por cerca de 150 anos. Foi derrotado pelo telefone e pela internet.

Telefone

A ideia de que sinais poderiam caminhar dentro de fios elétricos já estava mais do que consolidada pela difusão do telégrafo. Mas eram apenas traços e pontos. Ou seja, ligado e desligado.

Faz tempo que as crianças já brincam com barbantes esticados, tendo em cada ponta uma lata, copo de papel ou de plástico, vibrando quando atingidas pelas ondas sonoras. A vibração é transmitida pelo barbante e recebida do outro lado. Não deixa de ser um telefone. Em um tom mais sério, havia a comunicação por tubos, como usada até hoje nos navios, para conectar a ponte de comando com a casa de máquinas. Faltava juntar a comunicação de voz com as soluções elétricas. Muitos tentaram e tiveram sucesso. Portanto, a invenção do telefone é um cipoal de ações legais, demandas e controvérsias. Para haver um telefone, era preciso transformar as ondas sonoras da voz em corrente elétrica. Entra em cena o microfone de carvão, inventado por Edison. O intervalo entre duas membranas de metal, uma delas bem fina, é preenchido por pedaços de carvão. Ao atingir a membrana delgada, as ondas sonoras a empurram, comprimindo o carvão. Como a resistência que oferece o carvão à circulação elétrica varia com a compressão que recebe, cria-se um circuito que transforma a voz em impulsos elétricos equivalentes. Essa variação de corrente é ligada a um par de fios em cuja outra extremidade estava um aparato que fazia exatamente o oposto: transformava corrente elétrica pulsante em som. Era uma bobina que, recebendo a corrente elétrica, era atraída por um bloco de ferro. Como estava presa a um diafragma de papel,

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o telefone começa a se difundir, chegando ao que conhecemos hoje. Graham Bell desfruta de merecida fama pelo seu invento, bem como os resultados econômicos de sua patente. Contudo, muitos outros inventores reivindicam a autoria. De fato, entrou no Departamento de Patentes outro pedido para um telefone. Mas atrasou-se algumas horas com relação ao de Graham Bell. Por isso, não pode ser registrado.

A eletrônica entra em cena

este vibrava, exatamente nas mesmas frequências da voz humana que captou o microfone. Um som grave no microfone criava uma oscilação na corrente de 100 ciclos por segundo. Do outro lado, a bobina andava para a frente e para trás, também 100 vezes. Como estava acoplada a um diafragma, empurrava o ar nessa mesma frequência, reproduzindo o mesmo som grave. O mesmo acontecia com qualquer frequência captada pelo microfone. Na exposição de Saint Louis, em 1876, D. Pedro II era um dos jurados, para avaliar a relevância dos inventos lá apresentados. Ao ver as proezas de Graham Bell, chama a atenção de todos para o futuro que tinha um tal aparato. Daí por diante,

Ao mesmo tempo que a lâmpada e o motor começam a mudar a vida de todos, aparecem outras grandes invenções, cheias de promessas, mas ainda condenadas a permanecer como curiosidades. É gestada a revolução das comunicações. São novas direções, rondando a transmissão de voz e música. É o telefone, o rádio, os cilindros (e depois discos) gravados. Tudo muito interessante, mas nada muito prático. O telegrafo (com fio) é o único grande avanço nessa época que se dissemina em grande escala, sobretudo para apoiar o gigantesco desenvolvimento das estradas de ferro. É preciso que entrem em cena as válvulas – e depois os transistores – para que passem a ser viáveis muitas dessas ideias, particularmente a transmissão por ondas de rádio. Os usos para a válvula e o transistor são imediatos, seja nos fonógrafos, seja no rádio – e em tudo o mais.

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H Hertz, físico alemão do fim do

página ao lado de cima para baixo:

experimentos que deram origem

Unidos.

século XIX, conduziu os primeiros

Central telefônica nos Estados

ao rádio

Gráfico das ondas eletromagnéticas.

Primeiros experimentos com telefones

Esse avanço permite a explosão das novas formas de transmitir música e voz. Crescem as vendas de rádios, amplificadores, tocadores de discos e depois de fita magnética. A própria televisão é fruto desse avanço, sendo o cinescópio uma variante da válvula. Surgem então o fax e outras invenções. Todos os aparelhos que tomaram um grande impulso com as válvulas recebem outro empurrão ainda mais impressionante com os transistores. Tudo fica melhor, mais fiel, mais barato, mais eficiente e menor. Os aparelhos de rádios e TVs encolhem drasticamente. O mesmo se dá com quase tudo o mais. O transistor não traz novas ideias, mas promove um salto nas velhas, como já haviam feito as válvulas. O fax, os gravadores, os walkie-talkies pequenos aparecem nessa mesma onda. Até então, os avanços estavam em usos da eletricidade, que, bem comportada, caminhava dentro de fios, antes de fazer o seu serviço, através de lâmpadas, bobinas e resistores. Mas na virada do século XX, começa um novo ciclo de inovações, nas quais a eletricidade e as comunicações passam a andar pelos ares. É o nascimento da eletrônica.

Ondas hertzianas Sabia-se bem que fios de cobre enrolados em um carretel ou em torno de um núcleo ferroso, se conectados a uma pilha, produziam um campo

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magnético. E também que outros solenoides nas proximidades seriam afetados pelas ondas eletromagnéticas produzidas. De fato, os transformadores se baseiam nesse princípio. Mas o físico meio alemão, meio judeu Heinrich Hertz descobre algo bem surpreendente. Em seu experimento, descarrega um capacitor (uma garrafa de Leiden), produzindo uma centelha entre duas pontas próximas. Surpresa! Um solenoide, colocado relativamente longe, recebe nesse momento uma descarga elétrica. Ou seja, a centelha do primeiro é captada pelo segundo. Em seus experimentos, Hertz consegue que o solenoide pudesse ser afastado a mais de dez metros da centelha produzida, ainda assim recebendo a descarga. Ou seja, as ondas eletromagnéticas, pressentidas por Maxwell, conseguem navegar pelo ar. Muito interessante, pensa ele. Mas não deve servir para nada essa descoberta. Diante dessa conclusão, vai cuidar de outros assuntos – nos quais tem um papel destacado. Eis um cientista brilhante, com contribuições na meteorologia, na mecânica, que provocou uma revolução nas teorias de Maxwell, mas

que, ao demonstrar a existência prática das ondas eletromagnéticas, acha que é um achado curioso, mas inútil. Felizmente para quem gosta do que veio depois, ele estava redondamente enganado. As ondas geradas, mais adiante chamadas de Herzianas, em sua homenagem, são o princípio que dá origem ao rádio e a tudo o mais que usa a transmissão de sinais pelo ar.

Telégrafo sem fio e o Titanic Um jovem italiano, Guglielmo Marconi, começa a perceber que a tal descoberta de Hertz talvez não fosse tão inútil assim. Se em um experimento tosco era possível captar as ondas da centelha a dez metros de distância, quem sabe, melhorando as técnicas usadas, essa distância poderia aumentar? Começa então a fazer experimentos na propriedade da família, conseguindo fazer com que os sinais fossem captados cada vez mais longe. Seu sucesso logo sugere o uso dessas ondas para as comunicações.

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Partida do Titanic, em sua primeira e última viagem

página ao lado: G. Marconi, cujo telégrafo sem fio salvou 700 passageiros do Titanic qr code: Filmagens da época mostram o

Titanic em sua primeira e última viagem. O telégrafo sem fio que permitiu salvar 700 vidas é também exibido.

No telégrafo com fio, é a duração do contato que determina se é traço ou ponto. Mas o mesmo pode ser feito com os métodos de Hertz. Se dura pouco o centelhamento que produz as ondas hertzianas, é um ponto. Se dura mais, é um traço. A cada distância maior que consegue captar o sinal, mais longe podem alcançar as comunicações por esse meio. Aí está a origem do telégrafo sem fio. Onde basta plantar alguns postes e instalar fios, por que toda a trabalheira de transmitir pelo ar? Mas e os navios, que não podem ser ligados por postes às centrais telegráficas? Com essas elucubrações e um sólido capital de investidores ingleses, Marconi começa a produzir aparelhos de transmissão e recepção de telégrafo sem fio. Com grande relutância e pouco entusiasmo, os navios começam a ser equipados com seus aparelhos, e estações fixas são criadas. Bem mais tarde, em 1931, uma delas se instala na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro. O edifício original ainda está de pé. Em 1912, constrói-se o maior e o mais seguro navio de passageiros, o Titanic, uma obra-prima da

engenharia naval inglesa. Não podia deixar de ser equipado com transmissores e receptores de telégrafo sem fio. Afinal, tais equipamentos tornavam-se mais um dos ícones da modernidade. As peripécias do afundamento do Titanic são bem conhecidas. O acidente põe em xeque a engenharia naval da época, a qualidade das chapas de aço, a imprudência de prosseguir quando se sabia haver icebergs na vizinhança. Porém, há uma consequência inesperada e extraordinária. Entre os 2 mil e tantos passageiros, 700 se salvam graças ao socorro trazido por um navio que estava próximo e foi alertado pelo transmissor de Marconi. Tragédia à parte, os resultados do acidente foram auspiciosos para os negócios de Marconi. Desde então, torna-se inconcebível um navio sem um telégrafo sem fio. Estava claro para todos que as ondas se propagam em linha reta, portanto, com a curvatura da terra, não poderiam ser captadas muito longe. Porém uma grata surpresa os esperava. De fato, as ondas não fazem curva, mas existem camadas na estratosfera que refletem de volta para a terra os sinais que lá chegam. Graças a isso, os sinais podiam ir bem mais longe do que se supunha. O telégrafo sem fio abre espaço para um novo hobby: o radioamadorismo. Milhares de aficionados, pelo mundo afora, passam a se comunicar por seus transmissores de rádio, já então bem mais evoluídos do

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Receptor de rádio de galena, de 1925.

qr code: Animação demonstra o

funcionamento de

um rádio de galena, inventado por volta de 1920.

que o que equipava o Titanic. Naturalmente, usavam o mesmo código Morse. Até pouco tempo, havia exames para radioamadores, nos quais deveriam mostrar a sua capacidade de transmitir e receber mensagens cifradas nesse código. Em inúmeras situações de crise e catástrofe, foram o único meio de comunicação, prestando inestimáveis serviços.

O rádio de galena Decorar o código Morse é como aprender outro alfabeto. Adquirir fluência no seu uso é outro degrau penoso. Assim, sempre ficou restrito a profissionais e amadores dedicados. No caso do telefone, os avanços do telégrafo com fio ofereceram os alicerces para o salto. Em vez de traços e pontos, as vibrações em frequências variadas da voz passam a ser transmitidas pelo fio. O rádio é um avanço semelhante. A consolidação do telégrafo sem fio pavimenta o caminho para substituir traços e pontos pela modulação da voz. Mas o caminho é bem mais complicado. Nesse momento, o centelhamento usado para produzir as ondas herzianas já havia sido abandonado. Sistemas de bobinas e capacitores permitem transmitir sinais melhores e em frequências bem definidas. O próximo passo é transmitir a modulação da voz.

Muitos tentam, inclusive o próprio Marconi. Em 1900, Landell de Moura, um padre brasileiro, faz grandes progressos nessa direção, conseguindo resultados bem impressionantes de transmissão de voz. Transmitiu do Alto do Santana para a Avenida Paulista. Obtém então uma patente brasileira. Mas o meio cultural era muito acanhado e não há como prosseguir. Ele se muda para os Estados Unidos, conseguindo registrar três patentes. Mas infelizmente para ele passam à sua frente outros pesquisadores mais bem providos de meios financeiros. Lá pelos anos 1920, começam a aparecer estações comerciais de rádio. Várias técnicas eram usadas, seja para transmitir, seja para receber. Mas na popularização dos receptores havia uma limitação que atrapalhava. Era preciso transformar sinais de corrente alternada em corrente contínua, para ser possível ouvir as transmissões. As válvulas estavam engatinhando e seu uso ainda era limitado. Na época, a única solução que existia na maior parte do mundo era um metal chamado galena. Quando tocado por uma estilete, dava passagem à corrente, apenas em uma direção. Na década de 1930, multiplicam-se os rádios de galena pelo mundo afora. Nos anos 1950, ainda se vendiam kits de rádios com retificadores de galena para estimular os jovens a se interessarem pela eletrônica. Muito interessante e muito divertido, mas não se poderia imaginar uma dona de casa lutando

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Válvulas eletrônicas da

década de 1930 a 1960. qr code: Retificando e

amplificando a corrente, as

válvulas de rádio trouxeram uma transformação

radical na eletrônica.

Seu funcionamento é

demonstrado por animações.

com uma agulha para achar o ponto exato em que a pedrinha se dignava a retificar. Eram uma curiosidade, não um produto de consumo de massa. Para que se desse a transformação, era necessário esperar pelo desenvolvimento das válvulas.

Válvulas que retificam (diodos) e que amplificam (triodos) A invenção das válvulas muda completamente o cenário da eletrônica, a partir da década de 1920. Tudo que se fazia nessa área travava em duas grandes barreiras. A primeira era a necessidade de retificar as ondas hertzianas recebidas, pois eram corrente alternada. A segunda é que os sinais captados eram muito fracos, que mal podiam ser ouvidos em fones. Era imperativo amplificá-los. Na década de 1920, começam a emergir avanços. Obra de John A. Fleming, o primeiro achado é que, sob vácuo, se um eletrodo é aquecido por uma resistência, os elétrons saltam para o outro polo. Assim, constróise uma ampola de vidro e extrai-se dela o seu ar. Dentro dela estão dois eletrodos, chamados catodo e anodo, que são ligados a uma pilha. Se através de uma resistência elétrica o filamento lá instalado esquenta o catodo, os elétrons passam a saltar para o anodo, coisa que não aconteceria em outras circunstâncias.

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A grande importância desse fenômeno é que os elétrons só saltam do eletrodo que foi aquecido. Se a corrente elétrica ligada ao anodo e catodo for invertida, o salto é interrompido, pois só se dá em uma direção. Na outra, nada acontece. Ora, isso faz com que a válvula receba uma corrente alternada e a transforme em contínua, pois o fluxo inverso foi suprimido. Que belo e confiável substituto para o imprevisível galena que nem sempre se dispõe a retificar! Com isso, o primeiro grande problema está resolvido. Mas não param aí as proezas da válvula. Se entre o catodo e o anodo for introduzida uma telinha metálica, um feito memorável pode ser realizado. Para chegar ao anodo, os elétrons tem que passar dentro da malha da tela, chamada de grade. Se for injetada uma corrente nessa grade, de acordo com a sua polaridade e voltagem, ela pode bloquear parcial ou totalmente o fluxo de elétrons. A característica interessante dessa grade é que basta uma mínima alteração de voltagem para mudar muito o fluxo entre anodo e catodo. O americano Lee de Forest é o pioneiro nessa linha. Pensemos bem no uso dessa propriedade. Uma variação de voltagem bem pequena causa uma variação bem grande no fluxo entre catodo e anodo. Em outras palavras, a válvula amplifica, no fluxo entre catodo e anodo, as variações da voltagem da grade. Os usos dessas válvulas são óbvios. Um sinal débil, vindo do éter, é injetado na grade. Como resultado,

uma variação de sinal, muito mais forte, é registrada no fluxo entre catodo e anodo. É tudo que se precisava para criar um rádio eficiente. Mas o rádio não fica só nisso. Um conjunto bastante complexo de componentes eletrônicos otimiza a recepção do sinal hertziano e amplifica os sinais de áudio. Em vez de fones, agora há potência suficiente para tocar alto-falantes. A válvula viabiliza um grande número de aparelhos eletrônicos. Os rádios passam a ser parte do mobiliário de praticamente todas as casas. Amplificadores de áudio, toca-discos e tudo o mais que conhecemos não poderiam existir sem a retificação e a amplificação conseguida pelas válvulas. Põe-se em marcha o desenvolvimento de rádios, amplificadores e um sem-número de outras aplicações. As lojas passam a vender profusamente estes aparelhos. Uns grandes, com gabinetes majestosos, de madeira de lei. Outros mais modestos, mas todos capazes de receber os sinais de emissoras. Chega a eles a música e os noticiários. Novelas radiofônicas são produzidas, eletrizando os ouvintes do mundo inteiro. Na hora do jantar, todos estão ligados. Por meio do rádio, a Segunda Guerra entra nas salas de estar do mundo. Hitler, com seus discursos inflamados, anuncia que vai ocupar a Europa com a sua poderosa Wermacht. Churchill, em um dos seus discursos mais famosos, retruca que a Inglaterra vai resistir, no solo, no mar e nos ares.

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Semicondutores e a física do estado sólido Na década de 1950, tomam corpo experimentos no que veio a se chamar de Física do Estado Sólido. Lidava-se com materiais que conduziam eletricidade em um só sentido. Foram chamados de semicondutores. O galena já era conhecido de longa data. Mas era mal comportado e imprevisível. Iniciam-se pesquisas para descobrir a melhor forma de usar metais como o germânio, com propriedades semicondutoras. Já em princípios dos anos 1950, são lançados no mercado retificadores de germânio capazes de fazer com total previsibilidade o que fazia a mal comportada galena. A corrente passava em um sentido, mas era bloqueada no outro. Na prática, cria-se um substituto para as válvulas retificadoras. Aliás, muito melhor, pois não precisa do filamento que esquenta o catodo. Portanto, consome menos eletricidade. E também dura muito mais. Ademais, tem o tamanho de um grão de arroz, em comparação com as válvulas de antes, grossas como um cabo de vassoura e com dez centímetros de altura. O passo seguinte é equivalente ao que se fez com as válvulas que amplificam um sinal. Notou-se que um semicondutor, se for polarizado por uma corrente trazida por um ponta que nele encosta, causa variações muito mais amplas na sua condução elétrica. Funciona exatamente como a grade da válvula. Pequenas variações na corrente, aplicada na pontinha que toca o

semicondutor, provocam grandes variações no fluxo. Ou seja, o semicondutor amplifica o sinal, tal como faz a válvula. A ideia estava clara para muitos pesquisadores. Mas havia o desafio de construir um modelo que funcionasse. Finalmente, as equipes do Bell Laboratory conseguem encontrar uma forma de montar o quebracabeças. Esse pequeno semicondutor ao qual foi adicionado um terceiro elemento foi chamado de transistor. Tal avanço foi precedido por muitos experimentos, em locais diferentes. Contudo, foi William Shokley e seus auxiliares que ganharam o prêmio Nobel pela façanha, em 1948. No fundo, os diodos de estado sólido e os transistores não fazem nada que não seja também feito pelas válvulas. No entanto, fazem o mesmo muito melhor, pois têm maior durabilidade, não quebram, esquentam menos e são muito menores. Dado seu ínfimo tamanho, comparado com as válvulas, certos projetos se tornam viáveis. Por exemplo, walkie-talkies, radinhos portáteis, telefones celulares, relógios, GPS e por aí afora. Não só são menores, mas requerem uma pilha menor e de mais baixa voltagem: ganha-se dos dois lados. Dada a sua superioridade, progressivamente, tudo o que era de válvula vai sendo transformado em aparelhos usando diodos e transistores. Como são muito pequenos, cabem em qualquer lugar, ocupando pouco espaço.

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qr code: Animações explicam o

funcionamento e a evolução do rádio.

O passo seguinte é o seu agrupamento em blocos. Cada vez mais, torna-se possível enfiar mais transistores dentro de um único componente. São os circuitos integrados. Uma das aplicações de consequências mais dramáticas é nos computadores. Os que existiam então eram de válvula, como todos os rádios da época. Um rádio podia ter até dez válvulas. Ocupavam o espaço de um engradado de cerveja. Mas um computador exigia milhares de válvulas. O Burroughs, comprado pelo IBGE para o Censo de 1960, ocupava uma casa inteira. O térreo era usado pela usina de ar-condicionado, necessária para refrigerar as válvulas. Ocupando todo o andar de cima ficava o computador. Para ilustrar o progresso subsequente da automação, um relógio digital, comprado hoje no camelô, tem mais capacidade computacional do que aquele monstro do IBGE. E o que é pior, tinha tantos problemas que não conseguiu processar o Censo. Em suma, sem fazer nada diferente, o transistor revoluciona a eletrônica e a informática, pelo seu tamanho diminutivo, baixo consumo e confiabilidade.

Transmissão de imagem: televisão e fax Pensemos bem no que é uma televisão. No fundo, não passa de um rádio que transmite imagens e sons, em vez de apenas sons. Seguindo essa linha de raciocínio, é um salto semelhante ao que foi passar do telégrafo

para o rádio. De apenas traço e ponto, torna-se capaz de transmitir as modulações da voz. A ideia de transmitir imagens pelo rádio vem do princípio do século XX. Durante décadas, os métodos eram mecânicos, usando discos giratórios com furinhos. Assim se gravava a imagem. Eram os precursores do Fax (de fac símile). Mas era tudo muito complicado e pouco eficaz. É somente com os avanços da eletrônica que se abandona a ideia de usar aparatos mecânicos e se avançam em métodos mais promissores. O que possibilita a televisão é uma eletrônica capaz de ler luz e sombra. Em sua essência, é uma ideia simples. Pensemos em uma imagem visual como sendo composta de um conjunto de pontos. Uns são brancos, outros são pretos ou cinza. Como não é fácil lidar eletronicamente com o cinza, se os pontinhos forem menores, alternam-se pontos brancos com pretos, dando a impressão de meio tons. Na verdade, não há grandes novidades nisso. Se tomarmos uma lente com um aumento de dez vezes, vamos ver que uma imagem de jornal é feita de pontinhos brancos e pretos. Como nossa vista não pode ver os pontinhos, mas apenas uma mancha, temos a impressão de branco, preto e cinza. O salto tecnológico que abre as portas para a televisão é um aparato que lê os pontinhos. Para que forme uma imagem, precisa ir lendo os pontinhos projetados em uma tela, um a um. Para isso, segue uma

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à esquerda: TV Philco Predicta, 1950, à direita: Fax.

rotina sistemática. Vai lendo uma linha – imaginária – até chegar ao fim. Nesse momento, volta ao ponto inicial e desce um pouquinho, para ler a linha seguinte. No falar técnico, faz uma varredura, lendo linha por linha, até completar a imagem. Como a imagem se move, precisa repetir a leitura da ordem de vinte vezes por segundo para iludir a nossa visão, dando a impressão de que lê movimento. Na realidade, lê imagens estáticas que se sucedem rapidamente. Não há grande novidades nisso, pois, no início do século XX, Louis Lumiere inventa o cinema. É a mesma coisa: não há movimento nas imagens gravadas em filme, e sim uma sucessão de imagens ligeiramente diferentes, dando a impressão de movimento. Na eletrônica, para fazer a varredura, um feixe de elétrons é guiado por eletroímãs potentes, dirigindo-o a cada pontinho da tela. Se é branco, o circuito reage de uma forma; se é negro, de outra. É tudo que se necessita para transformar uma imagem em um fluxo elétrico que se altera de acordo com o que lê em cada local da tela. Daí para frente, entramos no mundo conhecido do rádio. O sinal modulado com a imagem é transmitido pelos ares, pelas velhas ondas hertzianas. Sendo recebido pelo aparelho que está na casa do telespectador, o processo inverso é realizado. Termina tudo em um grande tubo de vidro, chamado de cinescópio. Nele, um feixe de elétrons percorre o mesmo caminho que gerou a varredura

no estúdio. Uma linha por vez, o feixe de elétrons varre a tela, feita de uma superfície fosforescente que se ilumina quando atingida pelo feixe de elétrons, mas permanece escura onde se interrompe o fluxo. E isto é tudo. A imagem captada pela câmera dos estúdios volta a ser recomposta no cinescópio do televisor. Anos mais adiante, o mesmo processo consegue ler cores, produzindo a televisão colorida. E para melhorar a qualidade da imagem, cada vez há mais linhas para serem varridas. O fax já havia sido tentado antes, mas dependia de aparatos mecânicos pouco práticos. Mas no fundo é um aparelho semelhante à televisão, aliás, bem mais simples, pois lida com imagens estáticas em uma folha de papel. A lógica é a mesma. Mediante uma varredura da imagem, vai lendo claros e escuros. Esses sinais são transmitidos por uma linha telefônica. Na outra ponta, há a recomposição da imagem, que é registrada em uma impressora. Com os avanços técnicos trazidos pela televisão, construir uma máquina de fax eficaz torna-se possível. É uma televisão simplificada, operando pelo telefone, e não através de ondas hertzianas. Interessante notar que os sinais visuais são transformados em som para serem transmitido. Ao chegar ao outro lado, são novamente transformados em pontos negros e brancos. Como a televisão, o fax tem um imenso sucesso, pois o telefone passa a ser capaz de transmitir imagens

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e não apenas a nossa voz. Como são relativamente simples, os aparelhos tornam-se cada vez mais difundidos. Passam a ser universalmente usados para transmitir, em poucos minutos, textos escritos ou imagens. O grande paradoxo do fax é ser um grande retrocesso em economia de informações transmitidas. Quando criado, já existiam maneiras eficientes de transmitir letras e números. Cada uma tinha um código, parecido com o criado por Morse. As máquinas de telex já usavam tal código. Mas o fax ignora esse avanço e usa o seu mecanismo de varredura para desenhar as letras, uma a uma. Para imagens, isso é estritamente necessário. Mas para letras é um grande desperdício. Muitos sinais são usados para desenhar uma letra que poderia ser transmitida de forma muito mais econômica, através de um código já existente. Não é por acaso que o fax teve grande sucesso no Japão, pois com três alfabetos, todos complicadíssimos, não havia conversão possível de cada letra para um código predefinido. Aparelhos eficientes e baratos começam a sair das linhas de produção japonesas, espalhando-se pelo mundo. Assim adota-se com entusiasmo uma solução que encantou um país cujos alfabetos desafiam essa codificação. Somente a internet, muito mais tarde, retorna a transmissão de letras para um caminho eficiente: uma sequência curta de sinais para cada letra. A lógica muito mais eficiente do Telex é retomada.

Paradoxalmente, pelo mundo afora, os aparelhos de Telex, quase do tamanho de uma escrivaninha, foram abandonados em prol de uma tecnologia muito mais atrasada: desenhar letras, em vez de enviar o seu código binário. Na época, ninguém se lembrou de simplificar o Telex, para que pudesse operar através dos aparelhos telefônicos existentes nas casas.

Celulares e smartphones Se a televisão usa o rádio para transmitir imagens, o celular faz a mesma coisa com a voz. Em vez de seguir pelo fio, como o telégrafo inventado por Graham Bell, o sinal é transmitido através de ondas de rádio. Em princípio, a ideia nada tem de novo. Só que foi preciso esperar a miniaturização dos componentes para que os aparelhos se tornassem portáteis. Já durante a Segunda Guerra havia transmissores e receptores portáteis, ligados a uma central de comunicação. Eram os walkie-talkies que todos vimos nos filmes de guerra. No fundo, não são fundamentalmente diferentes dos celulares. Mas eram aparelhos grandes e vorazes consumidores de pilhas, pois usavam válvulas. Por vários anos, os celulares não faziam mais do que sua proposta original: eram telefones portáteis e convenientes. Mas aos poucos começam a realizar outras tarefas úteis. A primeira é ter na memória

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Evolução do telefone celular.

um caderno de endereços, para que pudessem estar imediatamente disponíveis para seus usuários. Em seguida, vem um calendário, e assim por diante. Nos dias que correm, os celulares adquirem missões complexas e eminentemente úteis. Muito do que fazem os computadores e sistemas de áudio é nele embarcado. Qualquer proprietário de um smartphone sabe que há dezenas de milhares de aplicativos que podem instalar neles. Para nossos antepassados remotos, o martelo e o machado eram as ferramentas que serviam para quase tudo. Hoje o celular se torna essa ferramenta universal, oferecendo uma cornucópia de usos. E, a cada dia, mais alguns são incorporados.

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Em 1642, Blaise Pascal inventou um “computador” mecânico de madeira ou uma “calculadora” que tinha entrada de

seis dígitos. Primeiro chamado de Máquina Aritmética,

Calculadora de Pascal e mais tarde Pascalina, sua invenção foi principalmente concebida como uma máquina de adição que poderia somar e subtrair dois números diretamente, embora sua descrição pudesse ser estendida a uma “calculadora mecânica” com a qual era possível multiplicar e dividir por repetição.

qr code: Uma prática explicação sobre a evolução do

computador, passando pela internet e se desenvolvendo em um chip.

Computador, pau para toda obra Com o desenvolvimento da mecânica de precisão, nos séculos XVIII e XIX, alguns começam a se perguntar: se as máquinas fazem tantas coisas diferentes, será que não poderiam também fazer contas? A resposta é que podiam. Babbage constrói uma calculadora complicadíssima, caríssima e gigantesca. Até que funcionava, mas não era prática. Somente em meados do século XX aparecem calculadoras mecânicas, aptas para somar e subtrair. Multiplicar e dividir era mais difícil e leva mais um tempinho. São um grande sucesso. Mas como porta de entrada para o que veio a se chamar de computador, eram um beco sem saída. Engrenagens e eixos não são um bom ponto de partida para criar tais os sonhados “cérebros eletrônicos”. Com o passar do tempo, novas ideias circulam. Algumas no campo puramente teórico. Não se tratava mais de calcular as engrenagens de uma máquina pensante, mas de criar modelos teóricos do que seriam tais máquinas. Alan Turing celebrizou-se pela sua concepção de uma máquina que seguia instruções. Antes disso, a partir do início do século XX, desenvolve-se a chamada lógica simbólica. Trata-se de uma tentativa de aproximar a lógica aristotélica da matemática.

Nessa linha, as ideias de um matemático do século XIX, George Boole, são revividas. Segundo ele, há leis universais do pensamento e que admitem uma formulação matemática. Mais especificamente, Claude Shannon propõe que suas ideias sobre estatística abrem espaço para enfrentar o desafio de criar instruções para uma tal máquina de base eletrônica. Se X acontece, então Y pode acontecer, ou não pode acontecer. Ou Z também acontece. São jogos de lógica, que pareciam perfeitamente inúteis, mas que acabam oferecendo a transição entre as ideias originais de Turing e a sua materialização em aparatos eletrônicos.

Decimal para humanos, digital para as máquinas Entra em cena um segundo bloco de ferramentas que permitem outro salto: a digitalização dos sinais. Ou seja, a conversão de números e letras em um código mais fácil de ser tratado pela eletrônica. Já se materializa no código Morse a ideia de transmitir números e letras por um sistema numérico mais econômico. Em vez de quase trinta letras e dez algarismos, torna possível transmitir as mesmas informações com apenas três: traço, ponto e silêncio. Do ponto de vista da conversão em impulsos elétricos, é um grande avanço. Não é preciso considerar frequência ou volume, apenas a presença do sinal

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Computador Mecânico proposto por Charles Babbage em 1837.

É o sucessor de outro anterior do

próprio Babbage e baseia-se em uma

estrutura lógica que antecipa o que veio depois com os computadores digitais.

qr code: Abre-se a linha do tempo em formato eletrônico, mostrando-nos o

rápido e engenhoso desenvolvimento dos computadores, até os dias atuais.

A era dos computadores grandalhões

e a sua duração (traço e ponto). Mas ainda é pouco. O passo seguinte e mais radical: digitalização. Com ela, temos apenas “ligado/desligado”, “sim/não” ou “zero/ um”. É a inauguração de um novo sistema de contar, o binário. Em vez de dez números, temos apenas zero e um. Se queremos dois, será 10. Três será 11. Quatro 100. A imensa vantagem deste novo sistema é que se presta a ser representado por circuitos elétricos que apenas estão ligados ou desligados. Ou seja, três é representado por: ligado e ligado. Quatro é: ligado, desligado e desligado. Todos os números podem ser representados por impulsos elétricos e ausência de impulsos (=zero). A digitalização permite que calculadoras que apenas faziam contas se transformem em máquinas que recebem instruções e são capazes de realizar quaisquer tarefas que possam ser convertidas em passos lógicos. De fabricantes de máquinas de contabilidade, a IBM se transforma em fabricante de computadores.

Enfiar essas ideias em uma engenhoca eletrônica é o próximo desafio. Ainda durante a guerra, foram tentadas as válvulas. Faziam o serviço, mas de forma particularmente cara e ineficiente. Além de falhas, pois se queimavam com frequência, paralisando tudo. A lógica do computador requer criar grandes redes de circuitos interligados, nos quais cada unidade pode estar ligada ou desligada. A partir daí, regras de decisão são criadas: se x está ligado, z está ligado e y desligado, então.... Não foi um desafio menor passar dessas cogitações teóricas para um computador que funcionasse e fizesse coisas úteis. Ajudar a decifrar a competentíssima máquina de criptografia alemã, a Enigma, foi a primeira tarefa importante que os computadores enfrentaram. Outra tarefa tentada durante a guerra foi o cálculo da trajetória de projetis, então penosamente realizada com calculadoras de mesa. Funcionar funcionou, mas só depois de acabar a guerra. Além disso, era um monstro de trinta toneladas, ocupando 300 metros quadrados. Ainda assim, além da ajuda para decifrar a Enigma, alguns sucessos são colhidos. Contrariando muitos observadores, um computador previu a vitória de Eisenhower para presidente.

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Mas eram máquinas tão caras e complicadas que se chegou a dizer que bastavam três ou quatro no mundo inteiro. Não obstante, o uso de transistores e circuitos integrados permite encolher dramaticamente o seu tamanho, tornando-as mais baratas e confiáveis. Tudo isso leva aos grandes computadores, capazes de resolver equações tenebrosas, fazer previsões meteorológicas ou executar banais folhas de pagamento. Eram os chamados computadores mainframe. De tão caros, somente as grandes empresas, capitaneadas pelas IBM, podiam ter. Mas faziam seu trabalho com galhardia. Eram chamadas de “cérebros eletrônicos”. Mas não era um bom nome, pois o que faziam magistralmente era seguir instruções precisas. Desde então, cada vez mais essas instruções requerem trabalho da máquina

para interpretar. Algum dia poderão pensar? Segundo Alan Turing, estarão pensando quando, ao dialogar com um humano, este não saberá se é outro humano ou uma máquina. Progressivamente, os computadores se tornam capazes de realizar tarefas cada vez mais distantes de sua concepção original. Por exemplo: buscar a palavra “tijolo” no dicionário e, seguida, mostrar na tela o verbete que corresponde a ela. É o nascimento e expansão do computador que faz quase tudo. E obviamente esse exemplo é um desafio fácil. Aos poucos, enfrentam tarefas cada vez mais complexas, como vencer o campeão mundial de xadrez.

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Computador a válvula. Primeiro microcomputador IBM, década de 1970.

Os hippies da informática e a democratização dos computadores No meio de tantos avanços técnicos, há uma revolução sociológica que emerge na década de 1970. Os computadores nascem nos grandes laboratórios e nas forças armadas. Ao se tornarem civis, são perfilhados pelas gigantescas empresas, como a IBM. Ficam, portanto, identificados pela sua proximidade ao Big Business e ao Big Brother. Na década de 1960, o movimento hippie da Califórnia destila a sua filosofia de autossuficiência e empoderamento dos pequenos. Junto com os primeiros hackers do MIT, começa a grande festa de tomar componentes de prateleira e juntá-los no que veio a ser chamado de Personal Computer (PC). A meta é democratizar os computadores. Não há grandes avanços técnicos, mas apenas o uso diferente do já estava disponível. Cria-se o computador leve e portátil, dispensando o terno e a gravata dos CPDs e dispensando o “chofer”. Linguagens mais “user friendly” – como o BASIC – são desenvolvidas, seja para operar, seja para programar. O sucesso é tamanho que as grandes empresas são obrigadas a entrar na mesma onda. Um uso explicitamente desdenhado no universo dos grandes computadores é o processamento de texto. Na década de 1980, equipes de CPD das empresas achavam e proclamavam que o computador não merecia um uso tão bastardo. Mas os processadores de

texto vieram do submundo hippie da computação e ganharam o mundo mais engravatado, tornando-se o software mais usado. Talvez tão importante quanto os avanços tecnológicos seja a democratização dos microcomputadores realizada por eles. Com o tempo, o computador torna-se uma máquina que pode ser comprada e operada por quase todos, mesmo em um país como o Brasil. Um sistema de comunicação do Exército americano, o Arpanet, criado para o caso de romperem-se as linhas convencionais, é cooptado

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pela comunidade informática e vira a internet. Graças a Berners-Lee, cria-se uma gigantesca base de dados, o World Wide Net. Google e Amazon revolucionam as buscas e as compras pela internet. Fazer um livro envolvia um desenhista, um tipógrafo, uma gráfica enorme e uma rede de distribuição, tudo sempre complicado, caro e imperfeito. Hoje, o autor senta-se ao teclado, usa um software gráfico para criar uma cara gráfica, tecla a sua obra-prima e posta na internet. Esse mesmo mecanismo de distribuição, dito de cauda longa, muda o acesso à música. Todos podem ter acesso a tudo. No início, era um desenvolvimento que se dava em grandes laboratórios, produzindo máquinas que só as gigantescas organizações poderiam usar. Mas subitamente o processo se democratiza, dando a quase todos as ferramentas que conhecemos. A onda seguinte leva à convergência das funções. O aparelho que fazia uma coisa, passa a fazer muitas. Quase todos os produtos eletrônicos se aproximam do computador. A música, o telefone, as bases de dados, a comunicação entre pessoas convergem para esse instrumento. Com a miniaturização crescente, o computador migra para o celular, criando o smartphone, a culminância dessa convergência de funções em um mesmo aparelho. Estamos longe de chegar ao fim ou mesmo de percebermos o que haverá neste fim. Mas o caminho vertiginosamente percorrido já nos traz calafrios.

História do armazenamento de informações De 5 mil anos para cá, o homem cria formas mais refinadas de contar. Ao mesmo tempo, impacienta-se com a fragilidade da sua memória. Sua primeira ideia é criar algum tipo de representação física para esses números que passam a medir quantidades cada vez maiores. Pilhas de conchinhas, contas ou sementes. Na China, é o número de nós em uma corda. O passo seguinte é criar sinais para esses números, em vez de amontoar conchas ou perder-se em de nós. Aparecem então os algarismos. Os chineses tem os seus. Os romanos também, mas são pouco convenientes para fazer contas. Os algarismos, hoje chamados arábicos, são os vencedores nessa competição pela grafia das quantidades. Praticamente são usados em todo o mundo, incluindo China e Japão, que tinham seus sistemas próprios, hoje quase desaparecidos. Um avanço de extraordinárias consequências é a invenção do zero. Sem ele, para contar até 1 milhão, seria necessário um milhão de sinais gráficos. Fazer contas continuaria sendo um pesadelo. Seguindo uma história particularmente desconhecida, as palavras também necessitam ser registradas, pois a memória é limitada e falível. Obras monumentais como a Ilíada e a Odisseia dos gregos eram decoradas por algumas pessoas e recitadas para

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qr code: Documentário sobre os primeiros registros gráficos deixados pelo homem.

Começam com pinturas rupestres, desenhos

e altos-relevos. Evoluem então para hieróglifos e escrita cuneiforme.

o público. Funcionava, pois graça a essa tradição oral chegaram até nossos dias. Mas quantas obras-primas poderiam ser mantidas na cabeça das poucas pessoas com essa prodigiosa memória? Começa então a tomar corpo a ideia de gravar em algum meio permanente as palavras, como se começava a fazer com os números. No Ocidente, aparece a escrita cuneiforme, gravada em tabletes de barro úmido e que depois secava. A partir desse momento, diferentes culturas buscam sua própria escrita. A ideia vencedora no Ocidente era decompor as palavras em seus sons elementares e criar um sinal gráfico para cada um deles. Aparecem então os alfabetos. Encurtando um longo e esgarçado desenvolvimento, chegamos aos gregos clássicos, com seu alfabeto e sua capacidade de registro rigoroso das palavras. Mais adiante, com o poder militar de Roma, é o alfabeto latino que de dissemina pela Europa e pelo mundo. A China e as culturas próximas seguem por outro caminho. Em vez de grafar sons, criam um símbolo para cada ideia – um ideograma. O resultado é bem mais complicado, mas não impediu que, por muitos séculos, aquele país estivesse à frente do mundo em quase todos os aspectos que considerássemos. O passo seguinte é descobrir as melhores maneiras de gravar ou eternizar esses sinais. No Oriente

Próximo, sobretudo no estuário do Tigre e do Eufrates, os mesmos tabletes de barro são usados para isso. O papiro tem sucesso na China. Os pergaminhos, produzidos com pele de carneiro, se universalizam na Europa. Mas o papel é o vencedor. Quando fervemos uma mistura de serragem com água, separa-se a celulose da cola que a natureza utiliza para dar rigidez à madeira. Purificada, é disposta em uma camada delgada que é deixada secar: o papel é não mais do que isso. Até hoje, esse processo é usado em projetos escolares e em um artesanato simpático. Mas para quem não quer produzir o seu próprio papel, as máquinas se encarregam de jogar no mundo uma quantidade espantosa, de todos os tipos, para todos os usos. O livro, ou códex, foi um avanço importante sobre os rolos de papiro ou papel. Permite usar os dois lados e ter acesso imediato a qualquer parte do texto. Essa proeza é impossível para os rolos que só permitem uma leitura sequencial. Durante séculos, o que havia de importante para ser registrado era cuidadosamente caligrafado em papel. Fazer esse registro era uma profissão importante. Como os poucos letrados tendiam a estar na igreja, uma grande tradição de copistas de documentos ali se formou. Essa tradição tão acanhada é rompida no Ocidente, pela invenção de uma impressora com caracteres tipográficos móveis. Isso ocorre em meados do século XVI, sendo obra de Gutemberg.

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Manuscrito medieval. Caixa com tipos de impressão tradicionais, em chumbo. Apoiada nela está a armação

onde são montados e fixados. Este sistema de impressão, muito próximo do que

inventou Gutenberg, foi progressivamente abandonado, a partir de meados do século XX.

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Não obstante, a Coreia já havia inventado algo parecido duzentos anos antes. Esse avanço torna possível a difusão de livros, em uma escala então inimaginável. Vivendo antes de Gutemberg, o enciclopédico Leonardo da Vinci tinha apenas quarenta livros. Até muito recentemente, o livro era o melhor que tínhamos como ferramenta de armazenamento de informações. Com a microfotografia, passa a ser possível usar microfilmes como arquivos. É um avanço, mas dura pouco, pois aparecem soluções melhores. De fato, outras formas de armazenamento se desenvolvem. O disco e o filme não deixam de ser maneiras de guardar informação, no caso, som e imagem. Progressivamente, a informática vai se tornando a ferramenta mais eficaz para guardar e recuperar informações. Durante muito tempo, o desafio era armazenar a informação. Recuperar o que havia sido guardado era relativamente fácil, porque a capacidade de armazenar era muito limitada. Mas quanto mais se guarda, mais complicado fica achar nos arquivos o que precisamos. Com o avanço da velocidade e capacidade de armazenamento de informações, os computadores

Oficina de impressão com tipos de madeira e a sua forma de montagem.

acima, à esquerda: Gutemberg

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começam a ser usados explicitamente com o objetivo de virar uma grande memória, ou biblioteca. Na verdade, independentemente do que mais possam fazer, se convertem na forma mais eficiente e econômica de guardar e acessar qualquer tipo de informação – até fotografias. Há mesmo projetos de digitalizar todos os livros publicados em toda a história da humanidade. Tecnicamente, é até fácil. Os problemas são legais: a propriedade intelectual e suas complicações. Em si, a digitalização já se configura como uma gigantesca revolução. E a cada dia o megabyte de armazenagem se torna mais barato. Passamos da gravação em fio metálico, para a fita magnética, para os discos flexíveis e rígidos, para os discos ópticos, para as memórias de estado sólido, com o pendrive se tornando um objeto do cotidiano. O passo seguinte é migrar para a nuvem.

A beleza das ferramentas informáticas é que tanto impressionam pela sua capacidade de guardar a baixo custo como oferecem mecanismos de recuperação que nem sequer podíamos imaginar antes dela. Apenas para ilustrar, em uma biblioteca, os livros estão por assunto, jamais por tamanho ou data de publicação. Mas se estão por assunto, não podem estar por ordem alfabética do autor. Com a informática, podemos consultar a biblioteca por qualquer desses critérios, ou por nenhum. Se desejarmos um livro, o computador vai buscá-lo exatamente na estante em que está. Para resumir, o armazenamento e a recuperação oferecem uma história que se acelera nos últimos anos. O uso de bits e bytes se torna a forma mais barata e mais fácil de guardar e ter acesso ao que quer que seja.

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Digitalização do acervo

documental de periódicos de

Santa Catarina (FCC E UDESC).

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10. Da pedra lascada aos smartphones: conclusões A tecnologia é uma criação do homem. E foi ela quem permitiu as grandes mudanças evolutivas no próprio homem. A partir de certo momento, garantem a ele sua existência física, sem os custos, sustos e tropeços fatais que ocorriam na pré-história. No cerne do que estamos discutindo, cumpre enfatizar uma consequência fundamental da tecnologia: libera tempo antes dedicado à sobrevivência. A agricultura e a domesticação de animais dão a partida nesse processo. Cada um ganha um tempo livre que pode usar como lhe aprouver. E o excedente agrícola permite a muitos se dedicarem totalmente a outros misteres. Ter tempo livre abre as portas para artes, cultura e todas as ruminações intelectuais da humanidade. Para quem sabe usar esse ócio, é uma bênção, um presente. Mas e quem não sabe e atola em um pântano existencial? Tudo aquilo que chamamos de civilização está imbricado nos avanços da tecnologia. O próprio conjunto de pensamentos e valores que dão corpo ao Humanismo, de uma forma ou de outra, são um produto do estilo de vida permitido pela tecnologia – afinal, se todo o tempo e energia se canalizam para a sobrevivência, não há como criar a arte, a cultura e as regras do bem viver. A qualidade material da vida, o conforto e a eliminação dos trabalhos mais árduos não pararam de evoluir. E nos últimos séculos o ritmo aumentou de forma dramática. A esperança de vida triplica e a existência ganha qualidade e desfrute. Mais ainda, o

tempo disponível para o lazer continua aumentando, bem como as opções de uma vida interessante e criativa. A dor passa a ser episódica, e não crônica. Muitas enfermidades são evitadas, curadas ou atenuadas. A coleção de mudanças com sinal positivo é muito grande. Mas nem tudo são flores. A mesma tecnologia que salva vidas também aumenta a eficácia com que são tiradas, em guerras e conflitos. Mas mesmo nesse campo o balanço não é tão negativo. Por anti-intuitivo que possa parecer, as estatísticas de mortes violentas no mundo mostram quedas ao longo dos anos. Nunca a humanidade viveu em um mundo tão seguro. Não há como negar o impacto da tecnologia no aumento da capacidade do homem de destruir o meio ambiente. A motosserra é o grande ícone da devastação. Mas é também a tecnologia que permite prodígios no processo de reverter danos causados à natureza. No fundo, os impactos da tecnologia no cotidiano do homem são poderosos e fáceis de entender, sejam positivos ou negativos. Temos até boas medidas dos avanços e recuos. As grandes perplexidades estão no que a tecnologia faz com a nossa alma. Seremos mais felizes com ela? Estudando tribos primitivas na Amazônia, antropólogos mostraram que seu desenvolvimento tecnológico dista de 10 mil anos da nossa civilização de smartphones. Viram também que seus membros parecem ser muito felizes, sempre rindo e brincando, o que não acontece na nossa sociedade. Para eles,

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o suicídio é um ato incompreensível. Mas como contrapartida, três quartos das suas crianças não sobrevivem aos primeiros anos de vida. Aparentemente, bastaria um pouquinho de medicina moderna para reduzir a mortalidade, aperfeiçoando uma sociedade feliz. Infelizmente, não é assim. Essa brutal mortalidade é essencial para manter a baixa densidade demográfica, pois a caça, complementada por uma agricultura tosca, limita severamente o sustento oferecido pelo espaço físico. É o equilíbrio malthusiano, na sua versão mais brutal. Para medir felicidade, pouco avança a pesquisa. Mas discutindo questões de sobrevivência, a ciência nos ajuda, permitindo rigor em um aspecto fundamental dos prós e dos contras da nossa civilização tecnológica. Como sabemos, apenas é possível alimentar e manter um padrão de vida minimamente aceitável para 7 bilhões de habitantes porque a tecnologia permite níveis de produtividade imprensáveis no passado. Sem a Revolução Verde, continuaríamos dependendo da fome, das guerras e das catástrofes naturais para manter a demografia em linha com a produtividade de outrora. Para ilustrar, se voltássemos duzentos anos na produtividade agrícola, alguns bilhões de pessoas iriam morrer de fome. Dessa forma brutal foi controlada a demografia durante um bom tempo da história recente do homem. Contudo, decidir se essa fórmula era melhor ou pior depende de juízos de valor, não de argumentos lógicos e científicos.

Mas é preciso reconhecer: sobrevida e conforto material não são tudo que queremos. Para ilustrar as dificuldades de fazer conjecturas sobre felicidade, nada melhor do que citar Freud: “Parece certo que não nos sentimos confortáveis na civilização atual, mas é muito difícil formar uma opinião sobre se, e em que grau, os homens de épocas anteriores se sentiram mais felizes, e sobre o papel que suas condições culturais desempenharam nessa questão… Os homens se orgulham de suas realizações e têm todo o direito de se orgulharem. Contudo, parecem ter observado que o poder recentemente adquirido sobre o espaço e o tempo, a subjugação das forças da natureza, a consecução de um anseio que remonta a milhares de anos, não aumentou a quantidade de satisfação prazerosa que poderiam esperar da vida e não os tornou mais felizes. Reconhecendo esse fato, devemos contentar-nos em concluir que o poder sobre a natureza não constitui a única precondição da felicidade humana, assim como não é o único objetivo do esforço cultural.” 16 Já que recrutamos um grande titã intelectual da virada dos século XX, por que não trazer um segundo, do mesmo naipe e falando também das consequências da invasão do processo produtivo pelas novas tecnologias? Segundo Marx, “ao nascimento da mecanização e da indústria moderna (...) seguiu-se um 16 Sigmund Freud, O mal da civilização (Texto copiado integralmente da edição eletrônica das obras de Freud, versão 2.0 por TupyKurumin) p. 17.

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violento abalo, como uma avalanche, em intensidade e extensão. Todos os limites da moral e da natureza, de idade e sexo, de dia e noite, foram rompidos. O capital celebrou suas orgias”.17 Há uma conclusão inevitável para nossos propósitos – que não incluem aprofundar o que dizem os dois autores. São sólidos os ganhos materiais trazidos pelo uso de tecnologias que se tornam cada vez mais eficazes e produtivas. Não obstante, suas consequências sobre os valores e sobre a felicidade humana são bem mais opacas. Não se trata de criar uma dicotomia do tipo: tecnologia gera bens materiais, mas gera também alienação e infelicidade. O mundo é bem mais complicado do que isso. Escudamo-nos nesses dois nomes apenas para sugerir que não há respostas claras nem únicas. A revolução do consumo libera o homem do desconforto e dos sacrifícios físicos com os quais sempre conviveu a humanidade. Mais ainda, para alguns, a abundância permite mais desprendimento diante das tentações do consumo. Não obstante, os paroxismos do consumo são aspectos feios e alienantes. É preciso reconhecer que cada vez mais nossa identidade está imbricada na tecnologia que nos rodeia. Percebemo-nos como seres vivendo e interagindo com elas. O problema é que muitas almas estão se escravizando à tecnologia que nós mesmos

produzimos. Uma distorção preocupante é o excesso de devoção aos bens materiais por parte de segmentos muito pobres da sociedade. É o lado lúgubre. Entrevistas em profundidade com grupos de jovens extremamente pobres no Sul do Brasil mostram que sua identidade se constrói na posse daqueles bens de consumo que estão na moda. Não fazem planos de futuro que não a posse dos objetos de desejo. Ironicamente, são mais siderados pelo consumo os que menos têm condições de sê-lo. Hoje é tênis, celular e boné. Não sabemos o que será no futuro. Para eles, apequenaram-se os valores que alguns consideram a grande herança da nossa Civilização Ocidental. Ameaça esses avanços a mesma tecnologia que nos permitiu desenvolver os valores e tradições do Humanismo, com as suas artes e filosofias. Como nos ensina Ortega y Gassett, não podemos condenar o uso pela existência do abuso. Os ganhos têm sido muito grandes e não podemos desconsiderálos por causa de alguns exageros e desvios de rota. Mas nem por isso devemos nos conformar com eles. Administrar esses conflitos faz parte das missões que herdamos de nossos antepassados.

17 Karl Marx, em O Capital, volume I

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Leituras adicionais

O nascimento do Homo sapiens Timoty Taylor, The artificial ape (New York: Macmillan). Outro livro recente e de valia para a construção desse capítulo e do próximo é o de Leonard Modinow, De Primatas e Astronautas (Rio de Janeiro: Zahar) Sobre o desenvolvimento das mãos, é muito sugestivo o livro de Frank Wilson, The Hand ( New York: Vintage Books, 1999). Este capítulo recebeu comentários e críticas particularmente úteis do arqueólogo João. Carlos Moreno de Souza. Naturalmente, ele não é responsável por possíveis equívocos no texto.

A história da tecnologia contada por suas ferramentas O presente capítulo apoia-se em várias obras. Dentre elas, destacamos: Otis T. Mason, The Origin of Inventions (London: Scribner & Sons, 1895). Merece leitura o conhecido livro de Jared Diamond, Guns, Germs and Steel (New York: W.W. Norton, 1999) Capítulo 13. Também útil foi o livro de George Basalla, A Evolução da Tecnologia (Porto: Porto Editora, 2001).

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Para um tratamento técnico da evolução das ferramentas de marcenaria, olivro clássico é W. L. Goodman, The History of Woodworking Tools (New York, D. McKay, 1964). Foi consultado o estudo de Bernd Scheel, Egyptian Metalworking and Tools (Bucks: Shire Publications, 1989). Sobre ferramentas antigas para madeira, ver Grahm Blackburn, The illustrated Enciclopedia of Woodworking Handtools, Instruments and Devices (New York: Simon and Schuster, 1974) Também, Alex Bealer, Old ways of working wood (Massacchussetts: Barre, 1972)

O imperialismo do movimento giratório Esta seção beneficiou-se da leitura do livro de William Rosen, The Most Powerful Idea in the World (New York: Random House, 2010) E também, George Basalla, A Evolução da Tecnologia op.cit. Para um tratamento bastante técnico, vejase Heinrich Gerling, Alredor de las máquinasherramientas (Barcelona: Reverté, 1964) Karl Heinz Mommertz, Bohren, Drehen und Frasen (Deutsches Museum, 1981)

A História dos Materiais Uma leitura agradável e fascinante é o livro de Mark Miodownik, Stuff Matters (New York: Mariner Books, 2015). Para um tratamento mais técnico, veja-se Fernando Pacheco Torgal, A sustentabilidade dos materiais de construção (Lisboa: TecMinho, 2010)

A História da Energia Vaclav Smil, Energy and Civilization: A History (Cambridge: MIT Press, 2017) Alfred W. Crosby, Children of the Sun: A History of Humanity’s Unappeasable Appetite For Energy (New York: Norton, 2016)

A fantástica história da Eletricidade e da Eletrônica A maioria dos casos pitorescos citados vieram do livro de Nicolas Viot, Les Aventuriers de l’Energie (Timée Editions, sem data) Sobre a origem dos microcomputadores, vejase Steven Levy, Hackers: Heroes of the computer revolution (New York: Dell, 1984) Sobre o impacto dos computadores sobre a sociedade, veja-se Sherry Turkle, The Second Self (New York: Simon & Schuster, 1984)

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formato: 23 x 28 cm papel (miolo): Couché matte 150g/m2 papel capa: Cartão Supremo 300g/m2 tipografia: The Antiqua e The Sans número de páginas: 240 tiragem: 1000 impressão: Ipsis

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua crb-8/7057 Castro, Claudio de Moura A arte do ofício : a evolução do homem contada por suas ferramentas / Claudio de Moura Castro. — Rio de Janeiro : EMC, 2017. 240 p. : il., color.

Bibliografia isbn 978-85-87933-35-5

1. Ferramentas – História 2. Tecnologia - História 3. Implementos, utensílios, etc – História 4. Inovações tecnológicas 5. Máquinas – História 6. Energia – História I. Título cdd 609 17-1837 Índices para catálogo sistemático: 1. Ferramentas - História

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