3. O imperialismo do movimento giratório A história das ferramentas tem uma de suas origens na primeira tentativa de girar uma ponta de osso para perfurar uma pele. As ferramentas têm uma de suas origens na primeira tentativa de girar uma ponta de osso para perfurar uma pele. Ao girar o punho para furar alguma coisa, os hominídeos dão o primeiro passo na criação de uma vitoriosa família de ferramentas que se servem do movimento giratório para cortar. Quase todas as ferramentas de mão agem com um movimento linear: o machado e o enxó golpeiam, a faca e o formão cortam ao serem empurrados em linha reta, assim como a plaina. Com o serrote não é diferente. Na contramão dessa vasta coleção de ferramentas está a humilde sovela, que penetra ao ser girada. Segue-se a ela uma sequência de ferramentas que fazem o mesmo, com cada vez mais competência. Ou seja, em vez de movimento linear, a ferramenta gira. Nas ferramentas manuais, girar era uma exceção. Quase sempre, cortavase batendo ou empurrando. Tal contorcionismo era a característica única da furadeira. Tal contorcionismo era a característica única da furadeira. No que segue, retornamos à origem das ferramentas que furam, acompanhando seu desenvolvimento. Em seguida, descrevemos a transição das ferramentas manuais para as máquinas operatrizes. Ficamos no presente capítulo com a madeira e suas ferramentas. Adiante, entramos na mecânica e nos metais.
As furadeiras A partir do momento em que nossos antepassados começam a usar pedras para quebrar e cortar, é razoável supor que usaram também ossos pontiagudos para furar. Por exemplo, furar as peles dos animais caçados para fabricar as fundas em que se penduravam os bebês no corpo da mãe. Tudo isso, em tese, se deu há cerca de 2 mil anos, mas não há vestígios dessas antigas sovelas ou coisas no gênero. Não obstante, furar sempre foi uma operação essencial no trabalho com madeira, peles e outros materiais. Mais adiante, entram em cena os metais, também com necessidades de furos. As furadeiras pertencem à categoria das três ou quatro ferramentas fundamentais numa oficina.
A história das furadeiras Pela sua simplicidade, a sovela deve ter sido a primeira ferramenta dedicada a furar. É uma receita imutável: uma ponta dura e um cabo para dar melhor pega. Ademais, sovela e agulhas são ferramentas essenciais para costurar as peles que protegiam nossos antepassados dos rigores do clima ao fim da Idade Glacial. Para furar a madeira, no entanto, a eficácia de uma sovela é muito limitada. Para conseguir melhores resultados, emergem duas vertentes de
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Trado, usado ainda hoje, na
página ao lado:
fazer furos.
para furar madeira.
construção civil e naval, para
Verrumas, a mais modesta ferramenta
da esquerda para a direita: Furadeira
com eixo helicoidal. Para operá-la, devese empurrar para baixo a peça móvel.
Ferro de pua ajustável, permitindo fazer furos do diâmetro desejado, como uma única ferramenta.
Ferros de pua tradicionais, ainda usados na marcenaria.
furadeiras com vida paralela, mas não muito bem documentadas, dada a exiguidade dos testemunhos arqueológicos. São a furadeira de arco e o trado. Curiosamente, os vestígios mais antigos – achados arqueológicos e desenhos – mostram a primeira aparecendo antes do trado, apesar de ser uma ferramenta mais complexa. Mas faltam provas definitivas de sua precedência no tempo. É razoável pensar uma evolução natural do gesto de girar um bastão com a palma das mãos. Se houver uma ponta apropriada, é uma primeira furadeira circular. De resto, é a mesma técnica usada para fazer fogo. Possivelmente, essa solução evoluiu para um arco, com uma corda fina presa nas duas pontas e com algumas laçadas no eixo. Na sua extremidade, há uma ferramenta pontiaguda. O operador segura o topo do eixo com um calço e o empurra para baixo. Com a outra mão, avança e recua o arco, como se estivesse tocando um violino. Dessa forma, o eixo gira, ora numa direção, ora noutra. Uma ponta afiada é comprimida contra a peça a ser furada, permitindo que a rotação faça o furo. Como antigamente não havia outras formas de fixação, tudo era amarrado com tiras de couro ou outro material. Assim eram os móveis egípcios. Portanto, as furações eram vitais para a integridade do que quer que se estivesse construindo. Tanto quanto se pode deduzir da magra evidência disponível, os gregos também usavam essa furadeira. Em contraste, não há notícias de que usassem o trado, bem mais simples. Os romanos
também a usavam. De fato, parecem ter sido os primeiros a usar um arco curvo. Datada de cerca de 3 mil a.C., essa furadeira de arco ainda é usada não apenas em sociedades primitivas, mas em joalheria. Ainda no período romano, o arco começa a ter um concorrente: uma broca, que hoje chamaríamos de trado e que tem uma haste transversal no topo. Girando esse cabo, o operador consegue perfurar o material desejado. Com o progresso, a superfície de corte passa a ter o formato de uma colher com arestas afiadas. Esse tipo de trado ainda pode ser encontrado em brechós e antiquários. Trados com lâmina em forma de colher tornaramse populares na construção de barris. Não nos esqueçamos de que os tonéis eram a forma mais usual de transportar líquidos. Até hoje persiste sua manufatura artesanal, e os trados cônicos, de diferentes tamanhos, ainda são usados. Em meio a todos esses avanços, há o risco de esquecer de uma modalidade humilde e que sobrevive aos séculos: a verruma. Trata-se de um trado muito fino usado para fazer furos para parafusos cônicos, os típicos usados em madeira. Até hoje estão nas lojas. Mas, com o barateamento das furadeiras elétricas, é incerta sua sobrevivência. Com um maior domínio da usinagem, as ferramentas evoluem de forma significativa. Ao girar o cabo do trado,
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o operador precisava também aplicar considerável força para baixo, forçando a superfície de corte a penetrar na madeira. Era algo muito penoso e os resultados demoravam a aparecer. Entra em cena uma broca cônica na ponta do trado, nada diferente de um parafuso de hoje ou de um saca-rolhas. Ao girar, suas estrias avançam, penetrando na madeira. A partir de certo momento, deixa de ser necessário exercer pressão sobre o trado. Como é o caso dos parafusos e sacarolhas, basta torcer. Há duas lâminas transversais que incidem sobre a peça perfurada. É como se houvesse dois formões concêntricos escavando o buraco. Os trados – ainda usados na construção civil, nos barcos e nas jangadas – são muito parecidos aos de eras passadas. Ou seja, seu desenho inicial foi um avanço definitivo, mas evoluiu pouco. A evolução natural das furadeiras leva aos arcos de pua. Comparado com a haste transversal dos trados, é uma forma mais eficiente de fazer girar o ferro de pua, eliminando a intermitência. Desde 1.500 há notícias de arcos de pua, ainda usado hoje em dia com mínimas diferenças.
Trado usado por toneleiros para perfurar a lateral dos tonéis e instalar uma torneira.
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Arcos de pua. O da esquerda data
do século XIX, enquanto o da direita é contemporâneo.
Furadeiras antigas de engrenagens.
Desenhos usuais na primeira metade do século XX.
O arco elimina também a inversão de direção, no caso das furadeiras do tipo vai e vem. Isso é um passo essencial para o desenho do fio da broca. Como dito, a superfície de corte é como um formão. Se não tiver o ângulo certo, não corta. E o ângulo melhor para cortar numa direção não serve para o sentido inverso. Outra vantagem do arco de pua é que o peito pode ser usado para ajudar a empurrar o trado contra a peça que está sendo furada. Até aqui, estamos falando de três invenções significativas. A primeira é o arco e o barbante que fazem girar rapidamente a ferramenta de corte. A segunda é a evolução da broca, com seu parafuso seguido das navalhas concêntricas. A terceira é o arco de pua, que dá mais eficiência e fluidez ao movimento giratório. Isso tudo vem de longa data e sobrevive até hoje. O que é mais recente são as furadeiras com manivelas e engrenagens. Tal como na furadeira de arco, há um eixo. Numa de suas extremidades encaixase a ferramenta de corte. Na outra há um cabo, sobre o qual o operador exerce pressão, forçando a ferramenta contra a superfície que será perfurada. Em vez, entretanto, de um barbante que imprime um movimento de vai e vem, entram em cena duas engrenagens. Uma está no eixo em cuja extremidade vai a broca. A outra, perpendicular e maior, tem nela instalada uma manivela. Ao girá-la, movimenta-se o eixo. E como a engrenagem da manivela é maior, multiplica-se a rotação da ferramenta.
Essa invenção origina-se no século XIX. Tudo que veio depois é variação ou refinamento da mesma ideia. Algumas furadeiras são grandes, outras são pequenas. Há também aquelas com duas velocidades ou com velocidade variável. Um ponto crítico das furadeiras é o mandril, ou seja, o dispositivo que prende a broca ou ferro de pua no eixo. Além da busca por uma boa solução mecânica, há o desafio da padronização. Ilustrando a falta de padronização, foi encontrado um ferro de pua numa mina de ouro inglesa (em Minas Gerais), cujo corte se dá no sentido oposto ao dos ponteiros de um relógio. É um exemplo curioso. No período de evolução dos arcos de pua, ganha popularidade uma espécie de pirâmide na extremidade dos ferros. O arco tinha o oco com o mesmo desenho, as brocas se encaixando nele, sendo fixadas apenas por fricção. Mais adiante, parafusos com borboletas evitam que se solte a ferramenta. O passo seguinte é o desenvolvimento do mandril de duas castanhas, como bocas de jacaré. Sobre elas se atarraxa uma luva que força o conjunto a se fechar sobre as puas – que continuam com o mesmo formato piramidal. Com ínfimas mudanças, o procedimento é o mesmo até hoje. Com a difusão das furadeiras com engrenagens, aparece o mandril com três castanhas. Um avanço também irreversível é a introdução de um flange dentado na luva de fechamento, além de furos no seu corpo principal. Uma chave com uma engrenagem
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de mesmo passo se encaixa num dos furos e nos dentes da luva. Ao girá-la fica muito mais firme a fixação das brocas. Quando se dissemina a furadeira com engrenagens, esta deixa de ser privativa dos marceneiros e carpinteiros, migrando também para os trabalhos em metal. A mudança abre espaço para o desenvolvimento das brocas helicoidais, cujos descendentes continuam presentes em todas as oficinas. Pela sua arquitetura, tais brocas são feitas para furar metais. Contudo, sua ubiquidade leva seu uso também para a madeira, embora não sejam otimizadas para isso. Por essa razão, aparecem brocas parecidas, porém mais especializadas na furação de madeira. No tipo mais comum, uma ponta fina ajuda a localizar o furo no local certo, mas há também navalhas laterais que melhoram o acabamento da madeira quando a broca ultrapassa e sai do outro lado. De certo momento em diante, os grandes saltos se dão no metal com o qual são construídas as brocas. Até recentemente, pela sua dureza e pelo baixo preço, o aço-carbono vinha sendo a solução universal. Mas, com a motorização das furadeiras, o calor gerado tende a fazer com que percam sua têmpera, tornandose varetas de aço totalmente inúteis por perderem a dureza. Aparece então o chamado aço rápido, muito mais resistente ao calor. Ainda assim, se as furadeiras são apropriados para furar metais, revelam-se pouco duras para a pedra e a alvenaria. Surge então a Widia (do alemão
Wie Diamond, ou “como diamantes”). Seu uso inicial é nas ferramentas de torno, mas encontram lugar também nas para brocas de alvenaria e para concreto. A variedade de brocas não cessa de aumentar. Como os dentes das serras, é um campo fértil para refinamentos, ainda que sejam pouco visíveis para quem não é do ramo. As primeiras furadeiras com engrenagens podiam ser portáteis ou instaladas em estruturas fixas. Essa segunda versão permite que a pressão exercida para baixo seja obtida por uma alavanca ou pelo próprio peso da estrutura, em geral, de ferro fundido.7
As máquinas operatrizes: entrando no reino do que gira Quando a força humana começa a ser complementada com outras fontes de energia, o que era uma exceção vira a regra. Virtualmente, todas as máquinas operatrizes se servem do movimento circular para fazer seu trabalho. Por conseguinte, quanto mais o processo produtivo se afasta das operações impulsionadas pelo músculo do homem, mais entramos no reino das coisas que giram. Dizendo de outra forma, mais nos tornamos colonizados pelo que roda. 7 Ver: <www.youtube.com/watch?v=xRRj1x1AFOk>
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Furadeira manual de coluna Miller Falls. Segunda metade do século XIX.
Nas máquinas operatrizes, é preciso fazer chegar o movimento à operação-fim. É pertinente notar que ambas as etapas usam o movimento circular. Para movimentar a máquina, há motores com eixos girando e transmissões por correias, polias ou engrenagens. Para obter a boa velocidade, há reduções ou multiplicações do giro, obtidas com engrenagens ou polias. Não se consegue realizar nenhuma destas operações sem a intermediação do giro. No início do processo, um motor de combustão interna gera um movimento linear. Mas a biela e o virabrequim logo se livram dele, transformando o que era vai e vem num eixo que roda. Quando chegamos à usinagem, repete-se o ciclo de colonização da marcenaria e mecânica pelo movimento circular. Para serrar, temos um disco com dentes afiados e que gira. É a serra circular. Na serra de fita, a lâmina corre em duas polias. Para furar, temos um eixo com um mandril e uma broca que também gira. Para plainar, há um cilindro que roda com navalhas que desbastam o material. O torno é, obviamente, uma máquina para produzir peças redondas, portanto roda. Ou seja, não escapamos das máquinas que giram. Começa com a operação de trazer e domesticar o movimento requerido pela operação. Em seguida, entra a próprio processo de usinar. Portanto, quando deixamos de depender dos músculos humanos, caímos no reino da rotação. É bastante curioso que o homem não tenha conseguido domesticar o movimento, exceto fazendo as coisas girarem.
A força humana apenas permite o uso de ferramentas de mão. Com a Revolução Industrial, entram em cena a força da água, do vento e do vapor, superando a energia humana e permitindo a criação de máquinas poderosas e muito mais produtivas. Depois, os motores elétricos tornam tudo mais prático. Quase todas as máquinas operatrizes baseiam sua ação no movimento giratório. São máquinas cujo desenho se consolida no século XIX. De lá para cá, continua havendo pequenas modificações, visando aumentar sua produtividade, segurança ou conveniência. Mas, em geral, as soluções construtivas são as mesmas. Com a roda d’água ou o motor a vapor, entra na oficina um longo eixo que gira acoplado a polias e correias que fazem funcionar as máquinas. Posteriormente, é substituído por motores elétricos em cada máquina. Com a redução no tamanho e no peso dos motores, aparecem as máquinas portáteis, como furadeiras e serras. O aperfeiçoamento na tecnologia das baterias permite as máquinas sem fio elétrico. Praticamente todas elas tiveram uma evolução semelhante – das originais, pesando toneladas, até as contemporâneas, com menos de um quilo.
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O torno para madeira
Furadeiras a motor
O torno é a primeira das máquinas operatrizes. A rigor, aparece antes de haver formas de energia que não a humana, pois pode ser movido a pedal ou por um auxiliar. Assim eram os tornos na Idade Média. Até cerca de 1.900, nas fábricas pequenas havia tornos impulsionados a pedal, coetâneos aos das grandes fábricas, movidos a vapor ou elétricos. Seu funcionamento é bastante simples. A peça a ser torneada gira, presa numa placa ou mandril. Um formão ou goiva, apoiado numa barra metálica, toca na peça e vai desbastando-a. Não é muito diferente da maquininha de descascar laranja, na qual uma lâmina vai cortando uma espiral na casca. Mas, ao contrário da laranja, qualquer perfil pode ser torneado, até com relativa facilidade. Com o passar do tempo, os tornos se aperfeiçoam. A velocidade que era controlada por polias de diferentes tamanhos passa a variar em função de dispositivos eletrônicos. Por meio de pantógrafos, os tornos copiam o perfil de modelos predeterminados. Recentemente, estão se tornando mais acessíveis os formões de aço rápido ou mesmo Widias, em vez de aço-carbono. Inventam-se até tornos capazes de produzir peças não simétricas, como as coronhas de espingardas e fuzis. No pós-guerra, aparecem os controlados por computador. De certa maneira, os tornos para madeira acompanham as mesmas fórmulas de automação iniciadas naqueles que usinam metais.
Diante de furadeiras fixas e que usam alavancas para pressionar a broca contra a peça, o passo natural é fazê-las girar com um motor. É aí que surgem as furadeiras de coluna. Com a redução do tamanho dos motores, tornam-se máquinas de porte modesto e cada vez mais baratas. Historicamente, as furadeiras nascem nos trabalhos com madeira. Mais adiante, com a introdução das engrenagens, migram para a mecânica. Ocorre então mais uma migração reversa. As furadeiras desenvolvidas para a mecânica tornam-se tão convenientes e baratas que migram de volta para as marcenarias. Hoje são máquinas que tanto povoam as marcenarias quanto as oficinas mecânicas. Em 1.910, Duncan Black e Alonzo Decker eram donos de uma oficina mecânica. Sentados à mesa da cozinha, discutiam a possibilidade de inventar uma furadeira elétrica. Como eram fornecedores da fábrica de armas Colt, havia uma pistola à sua vista. Veio daí a ideia de usar uma empunhadura semelhante na máquina que planejavam. Foi um grande sucesso, e a marca Black & Decker continua vendendo furadeiras até hoje, todas com a empunhadura inspirada no revólver dos dois sócios. Esse avanço só é possível pela redução progressiva do peso dos motores, sobretudo pelo uso do alumínio. Mais recentemente, entram em cena os plásticos, e o maior rendimento das baterias permite que as furadeiras não tenham mais fios.
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Lâmina de serra circular com dentes de Widia soldados.
Serras circulares O uso de uma lâmina circular permite o salto da serra manual para a versão mecanizada, um grande avanço tecnológico. Não obstante, a força muscular humana não é suficiente para operar essas máquinas. Entram em cena, então, as rodas d’água. Os moinhos de vento também foram usados para girar serras circulares. Na Holanda, pode-se visitar um desses moinhos, com a estrutura de sua serra circular toda construída em madeira. As serras circulares fixas não passam de um mandril no qual se instala um disco de serra. Um mecanismo controlado por uma manivela ajusta quanto da lâmina emerge da mesa na qual vai deslizar a peça a ser serrada. Em madeiras espessas, a lâmina se expõe mais. Além disso, há mais dois acessórios clássicos. Um é uma régua paralela à lâmina da serra. O operador empurra a tábua, mantendo-a encostada na ferramenta para assegurar o paralelismo do corte. O outro é um guia que desliza num sulco na mesa também paralelo à lâmina. Apoiando a peça nessa escora e deslizando para a frente, garante-se um corte transversal no ângulo desejado. É interessante notar que em um século poucos avanços adicionais foram introduzidos. A serra estacionária de hoje pouco difere de outras bem mais antigas. Contudo, há avanços nos materiais com que são construídas. Se ela não precisa se mover, só precisamos nos preocupar com o peso do ferro
fundido. Mas logo ela se faz necessária nas obras e nas oficinas de amadores. Para atender a essa necessidade, a chapa dobrada, o alumínio e o plástico são cada vez mais usados. Além de aumentar a portabilidade, o preço é menor. Os motores elétricos compactos permitem o desenvolvimento das serras circulares de mão. As últimas versões têm baterias recarregáveis. Os avanços e as variações que vêm depois estão ligados à redução do tamanho dos motores. Ademais, o impacto global da mecanização muda completamente o cenário de carpintarias e marcenarias. Só oficinas muito artesanais permanecem exclusivamente no serrote. Ao serrar, os dentes da lâmina de uma serra circular comprimem a madeira contra a mesa, um fator de segurança. Mas no outro lado da lâmina os dentes estão subindo e vindo em direção ao operador. Se a peça de madeira enjambra em seu curso, pode ser capturada por estes dentes que sobem e se aproximam. Não é incomum que, violentamente, lancem para trás a ripa cortada, em uma flechada que pode ser fatal. Em uma fração de segundo, a madeira voa e a mão que empurrava a peça pode tocar os dentes da serra.8 Não é incomum ver marceneiros exibindo as duas mãos espalmadas, vangloriando-se de que ainda têm os dez dedos! 8 Ver: <www.finewoodworking.com/2008/11/01/fight-kickback-with-a-riving-knife>
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Serra circular elétrica portátil.
Serra de fita da
primeira metade do século XX.
Nos últimos anos, uma solução para esse pesadelo foi inventada. SawStop e Bosch criaram serras em que as lâminas, em milésimos de segundo, mergulham e desaparecem da superfície da mesa dessas máquinas. Isso porque a lâmina está eletricamente isolada e conectada a um circuito eletrônico que detecta o contato com qualquer objeto que não seja isolante, como é a madeira. Como o dedo do operador conduz eletricidade, se tocar na lâmina, ativa o mecanismo de segurança que, com um estampido, projeta a lâmina para baixo. A Bosch utiliza os mesmos sistemas usados nos seus airbags de veículos. Neles, o estouro é realmente a pólvora explodindo.
A ideia de uma serra de fita ocorre em inícios do século XIX. Contudo, somente os progressos subsequentes na metalurgia possibilitam a produção de lâminas muito flexíveis e com dentes temperadas, abrindo caminho para concretizar a ideia. Um complemento crítico para a construção dessa máquina foi uma patente francesa de um processo para soldar
As serras de fita Pela sua geometria, as serras circulares só cortam em linha reta. Para vencer o desafio das curvas, a evolução das ligas e das têmperas permite construir uma cinta flexível, com os dentes nela incisos. Isso dá lugar à serra de fita. Comparada com a serra circular, são máquinas bem mais seguras. Não há o risco de que um naco ou uma flecha de madeira seja violentamente projetada para trás, e sua operação requer bem menos pressão do operador sobre a peça. Portanto, é menor o risco de acidentes. Mas ainda assim tem a funcionalidade requerida para cortar fora um dedo em poucos segundos.
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Serra circular
elétrica portátil em uso.
Moto serra
contemporânea.
as duas pontas da lâmina, criando uma fita contínua. Curiosamente, foi inventado por uma mulher, em meados do século XIX. Na serra de fita, uma cinta metálica com dentes é montada entre duas polias grandes, criando uma máquina eficiente para muitos usos, sobretudo para fazer curvas, o que jamais vão permitir os discos circulares das serras convencionais. Uma vantagem nada desprezível da serra de fita é sua maior segurança, pois não se presta às diabruras da serra circular e a pressão sobre a peça é bem menor.
Os usos das serras Desde o abate das árvores as serras estão presentes na indústria da madeira. De fato, as motosserras vieram substituir o machado, com imensas vantagens. A imagem romântica do lenhador esconde um trabalho penoso e lento. Essa labuta foi aliviada pelo casamento de um pequeno motor a gasolina e uma corrente equipada com dentes afiados. Aliás, é preciso não pôr a culpa nessas máquinas pelas barbaridades ecológicas que ocorrem por aí. A França usa as motosserras para cortar suas florestas, mas como tem uma política inteligente de manejo, de um século para cá sua cobertura florestal é cada vez maior. Para abrir as toras, as serrarias usam gigantescas máquinas. São equipadas com várias lâminas em paralelo, presas a uma grande moldura que sobe e
desce. As toras estão fixadas numa mesa móvel que avança em direção à serra. De uma só vez, um tronco é cortado em várias tábuas. Abertas as tábuas, as serras circulares entram na lida para cortar as peças no tamanho desejado para a obra. Pode ser uma serra estacionária para a construção de uma mesa ou uma portátil para as formas de concreto. Se houver curvas, é hora da serra de fita. E se o trabalho é mais artesanal, serrotes, serras de costas e tico-tico entram em cena. Apesar de não terem a mesma fama das plainas manuais ou dos formões japoneses, as serras são a presença mais constante em todo o ciclo da madeira. Em virtude, entretanto, de sua grande eficiência, economizase muito tempo. Em uma oficina, entre cinco e dez marceneiros não conseguem ocupar plenamente o tempo disponível de uma única serra.
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Plainas e desengrossos
A tupia
Enquanto as plainas manuais têm movimentos lineares, nas mecanizadas, para aplicar energia de outras fontes – como os motores a vapor ou elétricos –, a solução encontrada é fazer com que duas ou mais lâminas sejam instaladas num cilindro metálico que gira. Uma mesa de aço tem um rasgo transversal no meio, onde está instalado o cilindro giratório. A tábua, deslizando sobre a mesa, encontra as navalhas giratórias que ultrapassam ligeiramente a sua altura. Portanto, são desbastadas pelas lâminas, antes de voltar a se apoiar na continuação da mesa, que está no mesmo nível das navalhas. No desengrosso, o processo de corte é o mesmo, mas a peça é impulsionada por roletes, em vez de ser empurrada manualmente. Em boa medida, são máquinas bem mais seguras, pois as mãos do operador não chegam perto da navalha, escondida num túnel. Os possíveis acidentes acontecem quando, antes de tirar o fio da tomada, mete-se o dedo onde jamais deveria ir.
As plainas manuais eram a única solução para produzir perfis nas bordas das tábuas. A tupia a substitui quando aparece a força motriz do vapor. Hoje há também suas portáteis. A tupia é uma máquina bastante simples. A um eixo que gira na vertical é acoplada uma navalha com o inverso do perfil que se deseja usinar. Como na plaina, esta fica montada no meio de uma régua dividida em dois. Ao deslizar a peça, ao longo desse suporte ajustável, a peça é usinada pela navalha. Tal como a serra circular, trata-se de uma ferramenta perigosa, pois a peça é empurrada pela mão do operador. Se houver um erro, pode-se cortar a mão. Sua versão portátil não passa de um motor com um mandril que empolga uma navalha giratória, como a da tupia fixa. Há uma pequena mesa de dentro da qual o mandril com sua navalha emerge na conta certa da operação desejada. O operador segura a máquina com sua mesa apoiada na superfície da
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Armário de venda de bilhetes ferroviários reciclado para
servir de caixa de ferramentas do autor.
página ao lado: Painel de ferramentas montado na
exposição A arte do ofício.
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peça. Em seguida, empurra a navalha, que gira contra a peça a ser usinada. Na maioria dos cortes, há uma régua determinando a trajetória da máquina ou um rolamento na navalha que serve de guia. Embora a rotação possa ultrapassar 20 mil giros por minuto, como as mãos do operador estão firmemente segurando seus punhos, o perigo é menor. Mas pode haver acidentes, pois a velocidade do motor produz um efeito giroscópio que dá à máquina uma vontade própria de se mover.
Os mecânicos e suas ferramentas Há 2 milhões de anos os hominídeos começaram a construir objetos de madeira. Em contraste, o metal e suas ferramentas apareceram há menos de 5 mil anos. O avanço foi inicialmente lento, pois era muito trabalhosa e ineficiente a redução dos minérios. Como resultado, os metais eram muito caros. Como já mencionado, os avanços subsequentes foram nada menos do que espetaculares. Podemos classificar processos e ferramentas para dar forma aos metais em duas categorias meio óbvias. Em primeiro lugar estão as operações básicas por meio de ferramentas manuais. Em segundo, há máquinasferramentas e processos industriais, que aumentaram a utilidade dos metais. Examinamos também um problema clássico da mecânica: os métodos de fixação com materiais e
ferramentas. Para terminar esta seção, examinamos as medidas e seus instrumentos, bem como o desafio da padronização e os ganhos de precisão que vão sendo obtidos. Podemos reler a história das ferramentas em três períodos. (1) Os hominídeos passaram 2 milhões de anos aprendendo a fazer ferramentas com os materiais que encontravam, como paus, pedras e ossos. (2) Com o domínio dos metais, há um espantoso salto nas ferramentas e no que se podia fazer com elas. (3) Depois da Idade Média, o ritmo de progresso volta a acelerar, desembocando na Revolução Industrial. Nela, não só se amplia a gama do que era possível fazer, como a escala de produção permite que boa parte da humanidade, de uma forma ou de outra, participe dos frutos desse processo. Incluem-se nessa democratização as ferramentas baratas e acessíveis a quase todos. Até a década de 1950, ter uma furadeira elétrica era privilégio de poucos. Hoje, são vendidas até em camelôs.
A forja, a bigorna e o martelo: tudo começa aí Durantes alguns milênios, somente o calor permitia trabalhar os metais, em especial o ferro, bem mais duro do que o cobre. As ferramentas não tinham a dureza requerida para cortar e desbastar a frio. Para isso acontecer, havia que esperar os avanços na produção
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do aço. De resto, a sua produção artesanal até o século XIX era demorada e penosa. Portanto, era na forja que as coisas aconteciam. Dada a importância dos metais para a manufatura e a guerra, da forja vinha a mágica que transformava um pedaço disforme de metal em arma ou ferramenta. Não por acaso forjas e fundições estão quase sempre associadas à iconografia de Vulcano e às diabruras de deuses. Mesmo nos dias de hoje, o equipamento eletrônico de última geração da Yamaha traz na sua logo as tenazes cruzadas. Não obstante os progressos em muitas direções, a forja mudou pouco ao longo do tempo — a única diferença é que o fole foi substituído por uma ventoinha. Além disso, entram em cena a bigorna, o martelo e a tenaz, que serve para segurar a peça quente. Para perfurar e cortar, há punções e talhadeiras. Alguns desses instrumentos podem ter muitas variantes, mas estão sempre presentes. Para certos trabalhos, a forja ainda é a melhor solução. As de hoje em dia são quase iguais às primeiras. A única inovação relevante é o martelo pneumático. Quem já teve a experiência de martelar um ferro quente deve ter lamentado o fim da era da forja e da bigorna. Hoje em dia há formas mais produtivas de lidar com os metais e os ferreiros são profissionais praticamente extintos. Atualmente, a sobrevivência das forjas deve-se à produção de portões, janelas, balaustradas e sacadas. A forja artística continua sendo uma manifestação
criativa, embora praticada por poucos. Observase também hoje uma volta dos passeios a cavalo recriando um mercado para mestres ferradores.
Como cortar metais a frio O aço temperado, que se dissemina no mundo a partir de 1.500 a.C., revela-se apto para cortar chapas de ferro e peças de ferro fundido. Assim, talhadeiras, punções e bedames pertencem à caixa de ferramenta de todos que trabalham com mecânica. Ainda que sejam de uso ocasional nos dias de hoje, continuam úteis. Não à toa, nos cursos de mecânica, cortar chapas com talhadeira é assunto da primeira aula. Com o aparecimento de aços de melhor qualidade, torna-se cada vez mais viável trabalhar os metais a frio: pode-se cortar, desbastar e dobrar sem recorrer às altas temperaturas. O ganho de produtividade é grande, pois não passa de poucos minutos o período em que a peça mantém uma temperatura suficientemente elevada para permitir ser moldada pelo martelo. Logo tem que ser levada de volta à forja, sendo necessários vários minutos para voltar ao rubro. De acordo com historiadores, os primeiros ferreiros a temperar o aço foram os hititas, por volta de mil anos a.C. Essa era a operação que diferenciava boas espadas e punhais, que podiam ser a diferença entre ganhar ou perder a guerra. Curiosamente, a Península Ibérica, região que jamais se destacou industrialmente, teve
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avanços admiráveis na feitura de espadas que não quebravam nem perdiam o fio. A cutelaria de Toledo foi por muito tempo celebrada, e alguns autores sugerem que Portugal tinha também um grande domínio na produção de espadas.9 É essa mesma operação de têmpera e revenimento que permite criar talhadeiras que cortam o ferro. Mas como o aço era muito caro, até a Revolução Industrial seu uso era limitado. Com a drástica redução de preço, as ferramentas de corte a frio passam a tomar conta das oficinas. O clássico martelo do ferreiro se recicla perfeitamente para o trabalho a frio. Na mecânica, poucas mudanças são observadas.
Arcos de serra O homem já havia desenvolvido serras primitivas, usando o serrilhado natural de rochas como sílex, pederneira, obsidiana, ou encastoando dentes de tubarão numa peça de madeira. Mas isso só funcionava para cortar substâncias macias. Com o bronze e o ferro, as serras ganham em funcionalidade. Contudo, sem o aço temperado, não podiam cortar metais. Esse avanço na metalurgia se inicia ao fim da Idade Média. No fundo, a operação de serrar consiste em raspar a superfície com uma aresta de material mais duro, 9 Miguel Sanches Baêma, “O gladius hispaniensis” (sem referências)
mas bem estreito, para criar um sulco. É apenas isso que faz uma serra. Seus dentes oferecem uma sucessão de arestas capazes de obter bom rendimento ao cortar cavacos no metal a ser trabalhado. Nas serras para madeira, como comentado, o desafio era conseguir uma lâmina que não dobrasse ao ser empurrada. Uma das soluções encontradas é montar a lâmina num arco que a retesa. Essa se revelou a melhor fórmula para o corte de metais. Praticamente todas as serras para metais estão montadas num arco. O avanço na competência dos ferreiros leva à construção de arcos muito parecidos com os que hoje conhecemos. Em contraste, os progressos que restam são na metalurgia, que produz dentes cada vez mais afiados e duráveis.
A tesoura muda de desenho e passa a cortar até metais A tesoura, banal ou sofisticada, consiste em duas pernas simétricas que pivotam uma na outra. As primeiras usando esse desenho e feitas de bronze entre aparecem entre os romanos um século antes de
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Tesoura inglesa de tosquiar ovelhas.
Tesoura de poda.
Tesoura de alfaiate.
página ao lado: Coleção de
tesouras, tal como montada na exposição A arte do ofício.
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Cristo. Não obstante, versões mais rudimentares já eram conhecidas dos egípcios cerca de 1500 a.C. Ainda assim, somente no século XVII sua fabricação regular reaparece na Europa. Tecnicamente, trata-se de uma dupla alavanca, com o fulcro funcionando como um farafuso ou rebite que une as duas pernas. Ao contrário de facas, machados e formões, a tesoura corta por cisalhamento. No encontro das duas lâminas, o material é como se fosse rasgado. Quanto mais perfeitas e afiadas as lâminas – no ângulo certo para cada material –, mais suave e bem acabado é o corte. Os antepassados da tesoura, contudo, tinham uma configuração diferente. Voltando às suas origens, as primeiras tesouras tinham duas peças separadas. Uma delas, talvez como se fosse uma régua com arestas vivas, escorava o que ia ser cortado. A outra era uma lâmina que deslizava sobre a aresta. Assim os índios cortavam o cabelo. Curiosamente, as tesouras industriais da atualidade, em forma de guilhotina, são o descendente mais próximo das que usavam nossos antepassados e que usam até hoje sociedades primitivas. O passo seguinte começa a nos aproximar da tesoura igual à que temos hoje. Trata-se de unir as duas pernas, construídas com desenhos simétricos. Mas ainda não é a tesoura do nosso cotidiano, e sim a versão usada para tosquiar carneiros. As lâminas estão unidas por uma mola numa das extremidades ou é dobrada no meio, encontrando-se as superfícies de
corte no outro lado. É uma construção mais fácil, considerando os parcos recursos das forjarias à época. O modelo das duas pernas, pivotando no meio, se revela o mais prático e eficiente. Algumas tesouras servem para cortar papel, outras são usadas em cirurgias ou para cortar a ponta do charuto. São muitas finalidades. Inicialmente, eram feitas na forja, requerendo a usinagem de superfícies em planos diferentes. As mais caras ainda são construídas dessa forma hoje em dia. Contudo, com os avanços na injeção de plástico, é possível construí-las com uma chapa de aço plano, ficando o plástico com arabescos requeridos para dar conforto à mão do operador. Com isso, tornam-se ferramentas muito baratas e ao alcance de todos. Conforme o uso, o princípio da alavanca é usado. Para cortarem mais rápido, no caso de materiais mais dóceis, o lado do cabo é mais curto. São assim as tesouras clássicas de alfaiates. Com pouco movimento da mão, a lâmina avança. No caso de materiais resistentes, como os metais, o cabo é longo e a lâmina, menor, permitindo aplicar mais força no ponto em que se dá o corte. Naturalmente, as tesouras usadas em oficinas para cortar chapas finas são mais robustas do que as caseiras. Quando o objetivo é cortar metais mais espessos, aparecem as tesouras fixas em forma de guilhotina. Com os avanços da mecânica, passam a ser operadas com os pés, cujos músculos são mais robustos do que os dos braços. Além disso, dessa
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forma ambas as mãos ficam livres para guiar a peça a ser cortada. O corte das chapas metálicas é uma operação requerida na manufatura de inúmeros produtos. Com o passar do tempo, as técnicas de corte de metal vão mudando. De acordo com a natureza e espessura do material, a técnica de corte varia. De cortes retos, essas máquinas passam a ser capazes de cortar curvas, mais ou menos como faz uma forma de biscoito. Do ponto de vista de produtividade, a manufatura de peças em metal cortado, dobrado e prensado muda completamente seus custos. Uma peça assim construída custa uma fração de outra feita por processos mais convencionais, como fundição e usinagem em tornos e fresas. É interessante comparar máquinas ou quaisquer aparelhos mais antigos com suas versões contemporâneas, seja um projetor de cinema, seja um de automóvel. Grande parte dos componentes que eram fundidos ou usinados passam a ser feitos de chapa cortada a frio e dobrada. As soluções para cortar metal passaram muitos decênios sem grandes novidade. Adiante, os maçaricos de oxiacetileno se tornam capazes de cortar chapas de metal até bastante espessas. Mas na segunda metade do século XX há alguns avanços importantes, como a utilização de laser voltadas para o corte. A eletroerosão é outra técnica também recente. Há uma técnica de corte que utiliza fios metálicos e também outra que usa um jato de água misturada com grânulos de metal duro.
Como dobrar metais Dobrar chapas de metal é a operação clássica de funileiros e caldeireiros. Se a chapa for fina, isso pode ser feito a frio e manualmente. Parece uma operação fácil, mas obter precisão na dobra oferece certos desafios. Quem já trabalhou com lata sabe que é preciso acertar da primeira vez. Uma chapa fina dobrada, desdobrada e representa um trabalho malfeito. A quina de uma bancada pode servir para guiar a dobra. O mordente de uma morsa é o local favorito para dobras em peças pequenas. Com chapas mais longas é difícil obter bons resultados sem uma máquina própria para esse serviço. É como se fosse uma dobradiça de porta, só que gigante. A peça é presa numa das bandas e forçada a uma dobra perfeita pela outra.
A lima A ferramenta clássica para desbastar o metal é a lima. Suas antecessoras são os diferentes tipos de raspadores, que vêm de épocas pré-históricas. Na Idade do Bronze e do Ferro começam a aparecer as limas, que eram uma barra de ferro na qual dentes são forjados. Para isso, uma talhadeira bem afiada é martelada na lâmina, criando dentes. Podemos entender melhor o processo inclinando um formão e golpeando
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Limas diversas para desbastar metal.
levemente em uma ripa de madeira. Ao retirá-lo, podemos ver que ele levanta um cavaco, como se fosse um dente. É exatamente como os dentes da lima. Ao fim da Idade Média, as limas ganham outras utilidades. Lá pelo ano 1100, começam a ser temperadas, melhorando, portanto, o desempenho, mas com uso ainda limitado. No século XIII, os ferreiros de Paris começam a usar limas nas obras de ferro batido ornamental, mas só mais adiante seu uso se expande. Podemos pensar a lima como uma sucessão de lâminas de serra colocadas lado a lado. Em vez de cortar ao longo de uma linha, ela corta numa faixa que corresponde à largura do conjunto. Como dito, na
fabricação, as limas ganham ranhuras transversais. São criados por uma talhadeira montada num braço que golpeia a peça de aço aquecida, formando cada dente. As limas são ferramentas que permitem aumentar a precisão na usinagem. O desafio de um mecânico ajustador é limar uma ou mais superfícies até que atinjam uma especificação exata. Lá pelo fim do século XIX, a lima era uma ferramenta central na construção de máquinas e quaisquer outros mecanismos. As peças, para serem encaixadas no resto do conjunto, precisavam ser ajustadas uma a uma, já que os processos de forjaria e fundição não permitiam nem o acabamento nem a precisão dimensional exigida. A solução ideal estava na lima. Portanto, a competência no uso desse objeto era um dos elementos que diferenciavam um bom oficial. Até os dias de hoje, a formação de ajustadores inclui muitas horas na lima. O aprendiz recebe um pedaço de ferro e tem como tarefa produzir uma superfície perfeitamente plana. Em seguida, passa para outra que exige limar ângulos perfeitamente retos. Usinar um cubo de ferro com suas dimensões especificadas no desenho técnico é a prova da competência final a ser adquirida. Não há uma boa oficina mecânica hoje que não disponha de uma coleção de limas. Umas cortam mais rápido e são chamadas de bastardas. Outras dão melhor acabamento: são as murças. Algumas sua
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superfície plana e outras são triangulares (para afiar serras e serrotes), meio cana, redondas ou quadradas. Os avanços na precisão obtida na fundição, na laminação ou na usinagem reduzem a necessidade das limas. Mas sempre aparecem peças que requerem um formato especial ou ajustes finais. Portanto, mesmo com o passar dos anos, elas não desaparecem das oficinas. O domínio do seu uso ainda faz parte dos ritos de aprendizagem da mecânica.
As lixas Uma alternativa à lima são as lixas, que têm uma série de funções. Nascem na China, onde conchas trituradas são usadas como abrasivo e coladas num substrato de pergaminho. Somente em meados do século XIX aparece a lixa tal como a conhecemos hoje. O vidro triturado ou a areia são colados a um material flexível, em processos que permitem a fabricação em massa. O uso do carboneto de sílica, muito mais duro e de colas impermeáveis permite a fabricação de lixas d’água. Na verdade, podemos pensar a lixa como uma lima flexível feita de grânulos duros, colados a um papel ou pano. A lixa corta ou arranha com esses fragmentos de material friável fixados ao papel. Como são milhões, desbastam a superfície. O próprio vidro triturado é capaz de riscar o metal. Mas hoje se desenvolveram materiais superiores, quase todos sintéticos.
As furadeiras de manivela Como na madeira, o uso do movimento giratório para formar peças de metal é um avanço definitivo. Ao entrarmos nas máquinas operatrizes para usinar metais, veremos que quase todas envolvem o movimento giratório para obter os cortes desejados. Furar é uma operação mais do que central na mecânica, pois sempre precisamos unir duas partes. É somente com a disseminação do aço que os furos em metal deixam de ser feitos na forja. As primeiras furadeiras eficazes são as mesmas clássicas da madeira: um eixo com um mandril na extremidade, girado por uma engrenagem acoplada a uma manivela. Ao longo dos anos, essas máquinas pouco evoluíram. A grande revolução foram os motores elétricos, sobre o qual falaremos quando discutirmos as máquinas operatrizes.
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