9. A fantástica história da eletricidade e da eletrônica As mitologias e religiões oferecem explicações curiosas ou mirabolantes para raios e trovões, uma manifestação terrível da eletricidade. Contudo, entender a eletricidade é uma façanha somente lograda nos últimos dois séculos. Resulta de muito experimentar e de grandes saltos da imaginação. O relâmpago assusta, incendeia e eletrocuta. Mas entrando no século XX, o fluxo de elétrons é domesticado e se torna o mais dócil dos escravos do homem: a eletricidade. Mais adiante, os malabarismos dos elétrons começam a produzir os milagres da eletrônica. Com eles, a vida do homem nunca mais será a mesma. Durante toda a história da humanidade, houve sempre um grande esforço para entender e intervir em processos visíveis. Ferramentas, metais, cata-ventos e rodas d’água, caldeiras e motores: tudo foi um desafio para a imaginação e a teimosia do homem. Mas com a eletricidade ele se defronta com algo novo, uma forma invisível de energia. Portanto, a história da eletricidade é a saga de um grande esforço de capturar um ente invisível e colocá-lo a seu serviço. No que segue, começamos falando de eletricidade e de seus usos práticos. Passamos então para a eletrônica, que desemboca na informática.
Eletricidade: desvendando os mistérios Desde o século XVIII observa-se uma atividade crescente de especulação, experimentação e divertimento com fenômenos elétricos. É curioso notar que em paralelo a ser um objeto de estudos sistemáticos, a eletricidade virou entretenimento. Nos teatros de variedade, havia demonstrações das mágicas feitas por ela e distribuíam-se choques. Era chamada a Fada Elétrica. Contudo, nos salões não havia a mais remota ideia do que seria nem a preocupação de desvendar seus segredos. Em paralelo ao lado teatral, foram os séculos da descoberta dos princípios fundamentais da eletricidade. Em grande medida, isso ocupa todo o período. Todavia, antes do seu término, aparecem as duas inovações que mudam o mundo do século seguinte: o “motor (e seu, oposto que é o gerador)” e a lâmpada incandescente. Ou seja, começamos com atividades totalmente inúteis, da perspectiva de usos práticos, mas terminamos com duas inovações revolucionárias. E também muitas promessas que só desabrochariam no século seguinte.
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qr code: A evolução
sobre
armazenamento
comunicação desde
da informação.
até o radinho de
Minicurso eletricidade e eletrônica.
A evolução no
dos meios de
e na divulgação
o início dos tempos pilha portátil.
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qr code: pavor marca o primeiro encontro do homem com a eletricidade. São os
raios e trovões, deixando uma esteira de
destruição. Mas incêndios eram também
a única forma de obter o fogo, um grande salto na evolução humana.
Raios: pavores e explicações Os raios e os relâmpagos chegaram à vida do homem sem que ele tomasse qualquer iniciativa. De repente, um grande estalo e o risco de morrer eletrocutado. E também os incêndios causados por eles. Não é por acaso que todas as culturas tinham uma explicação para essas medonhas erupções da natureza: era uma manifestação da ira dos deuses. Os gregos pré-clássicos acreditavam que Zeus se enfureceu com as traições de seu pai, Cronos. Para se vingar, encomenda os raios aos ciclopes, excelentes ferreiros. Com essa arma, derrota o pai e se torna o rei do Universo. Passa então a usar os raios a seu belprazer, para gerar chuvas e tempestades pela Terra. Quando seus humores azedam, lança um raio para cá ou uma enchente para lá. Os países nórdicos têm também a sua versão para os raios. O filho de Odin, Thor, com a sua barba ruiva, é o equivalente escandinavo de Zeus, sendo também temido por seus humores coléricos. Suas armas são os raios e relâmpagos. Mas, para dominar o mundo, usa o seu martelo mágico. Um dia, sua arma é roubada. Disfarçado de Frejia, a quem Thym, o rei dos gigantes, gostaria de esposar, Thor vai ao seu reino. Através de seu amigo Loki, convence o monarca a oferecer o martelo mágico, como sinal de submissão. Era tudo que queria Thor. Recuperando
seu martelo, torna-se novamente o senhor dos deuses. Entre os hindus, Indra é o senhor da chuva, dos relâmpagos e dos raios. Após complicadas manobras para vencer Vishnu, provoca uma grande enchente, mata as serpentes e volta a sua posição de domínio sobre a terra. China e Japão têm narrativas semelhantes para explicar raios e trovões. Na África, também há explicações tradicionais. Os índios da Amazônia têm a sua versão. Dandose conta do desaparecimento de sua mulher, um jovem convence um grande pássaro a levá-lo ao reino dos céus. Lá encontra a mulher amada, que revela ser filha do deus dos trovões. Para protegê-lo do pai irascível, presenteia-o com um bastão de ouro. Depois de uma terrível e inconclusiva batalha, o rei decide abandonar o mundo dos homens. Mas jamais os dois se reconciliam. Segundo a lenda, raios e trovões sinalizam as formidáveis e perenes batalhas entre o jovem e seu sogro. Custou até que a ciência fosse capaz de oferecer uma explicação melhor do que essas. De fato, uma teoria explicando por que elétrons zangados cruzavam os ares de forma violenta estava muito além do que se poderia decifrar até muito recentemente. Em seu benefício, há cerca de 500 mil anos. Antes que conseguisse acender uma fogueira à sua vontade os raios eram a única chance que tinham de ter fogo. Daí a importância vital de não deixar a fogueira
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qr code: Uma breve animação sobre a história da eletricidade, a partir dos experimentos de Tales e assando pela Garrafa de Leyden e magnetismo.
apagar. Esse era um dos assuntos mais discutidos nas povoações primitivas. Entre os nossos índios, a preocupação também persiste. Após passar tempo com os xavantes e xerentes, Maybury-Lewis narra que, ao saírem às expedições, tinham que levar uma brasa, protegida para que não se extinguisse. Mas isso às vezes acontecia, para grande consternação e querelas dentro do grupo.15
Eletricidade estática Os primeiros experimentos com eletricidade estática estão associados ao nome de Tales de Mileto, no período clássico grego, cinco séculos antes da era cristã. Esfregando um pelo de gato em uma barra de âmbar (uma substância transparente, na verdade, um vegetal petrificado), notou que passava a atrair pedacinhos de qualquer coisa leve, como palha ou tecido. Para Tales, essa atração revelava a existência de uma alma em cada objeto, vivo ou não. Mas ainda que a explicação não pareça hoje verossímil, o que importa é a sua observação sistemática da eletricidade estática. 15 David Maybury-Lewis, The Savage and the Innocent (New York:Beacon Press, 1997).
A descoberta seguinte, já no século XVII, é demonstrar que a eletricidade estática não ocorre apenas com o âmbar, mas com muitas substâncias parecidas. Contudo, ainda se estava muito longe de entender que o indisciplinado raio e as palinhas atraídas pelo âmbar eram manifestações do mesmo fenômeno. Na verdade, já existiam alguns indícios, pois esfregações mais enérgicas podiam produzir centelhas. Mas seria querer muito ter alguma teoria coerente com o que se sabia então. No século XIX, esses experimentos são retomados. O centelhamento é explorado por meio de aparatos que aumentam muito o nível de eletrização dos objetos esfregados. Essa linha desemboca no conhecido gerador de Van der Graaf, inventado pelo físico de mesmo nome, em 1929. Nele, há uma cinta que gira próxima de um material diferente. Isso tudo está dentro de uma campânula de metal. Como resultado, a diferença de potencial pode atingir 100 mil volts em modelos simples. As centelhas geradas são raios em miniatura. Mas esse aparelho foi inventado muito mais tarde. No século XIX ainda estávamos longe de uma explicação para a eletricidade. Muitas hipóteses se entrecruzam e observações se acumulam, sugerindo certas explicações. Mas, no fundo, entendia-se quase nada. Em certos casos, nem é preciso armar experimentos para demonstrar a eletricidade estática. Em climas secos, como em Brasília, o arrastar dos sapatos pelos tapetes dos ministérios é suficiente para produzir uma carga elétrica no corpo. Em um desses dias de
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secura, um ex-reitor, ao entrar numa reunião já em curso e tocar tocar na maçaneta metálica da porta, leva um belo choque. Sua avantajada pança arrebenta os botões da calça, que cai aos seus pés. Eis um reitor entrando de cuecas em uma reunião na burocracia da corte! Circulava entre seus amigos uma teoria de que, desde então, passou a andar de suspensórios. Foi um involuntário seguidor de Tales nos experimentos com eletricidade estática. Somente no século XX, toma forma a ideia de que eletricidade é o resultado dos elétrons que caminham pelos materiais condutores. E por que se chamam elétrons? É simples, pois é a palavra grega que denomina o âmbar amarelo.
Fluxo elétrico De alguma forma, as observações sugeriam a existência de fluxos elétricos, ou seja, alguma “coisa” tinha uma grande “vontade” de se mover de um lado para outro, segundo fluxos que se tornavam cada vez mais previsíveis. Alguns materiais, como os metais, descarregavam a eletricidade estática. Outros retinham a carga por algum tempo. Era o caso do âmbar, do vidro e de muitos outros materiais que hoje chamamos isolantes, em contraste com outros ditos condutores. Um homem de infindável curiosidade e iniciativa, Benjamim Franklin também se interessa
pelos mistérios da eletricidade – que não tinha esse nome na época. Interessante registrar que faz claramente a conexão entre os raios e a ideia de fluxos elétricos, ou seja, a eletricidade andando dentro de certos materiais. Tanto é assim que inventou o para-raios. Considerando o grande número de inventos de Franklin e a sua contribuição para a exemplar Constituição dos Estados Unidos, foi muita sorte para a humanidade não haver sido fulminado em seus experimentos com raios. Um dia, prometendo tempestade magnética, voou uma pipa, para testar se a eletricidade caminharia pela sua linha molhada. Um homem conhecido pela sua prudência e comedimento, poderia haver sido eletrocutado naquele momento. Felizmente, ao espocar um relâmpago onde voava sua pipa, já não mais tinha as mãos na linha. Mas a ideia estava plantada. O que quer que fosse, andava por dentro de certos materiais e não andava em outros. A conexão do raio com a atração e as centelhas do âmbar friccionado tornava-se mais bem estabelecida. Franklin fareja o poder da Fada Eletricidade. Ali havia alguma coisa bem importante. Para chamar a atenção, oranizou um banquete no qual o peru chegava vivo à mesa, mas era eletrocutado ali mesmo. Em seguida, a ave era cozinhada por algum aparelho elétrico. E não pararam aí as suas demonstrações.
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Volta, o inventor da pilha
elétrica, ao lado de uma das suas primeiras versões.
Pilha elétrica Partindo de um mundo completamente diferente e ainda desconectado da eletricidade estática e dos raios, começam a ser feitos experimentos químicos que geram eletricidade. Sem esse avanço, o resto da pesquisa nesse campo ficaria limitada ao pouco que se pode fazer esfregando este material naquele. Atribui-se a Alessandro Volta os primeiros sucessos nessa linha. Observa que metais diferentes, mergulhados em uma cuba com água acidulada, criam o que veio a ser chamado de diferença de potencial. No fundo, é a mesma eletricidade, só que agora produzida por uma reação química. Não há limites à variedade de materiais e ácidos que podem ser usados para fazer uma pilha. Pode-se gerar eletricidade até espetando dois pregos de metais diferentes em um limão. O que acontece? Temos uma pilha de limão. Começa a ficar claro que esse fluxo misterioso tinha uma grande “vontade” de andar sempre que encontrava um material condutor. É como se fosse fatalmente atraído pelo outro polo. Tocando fios conectados a cada um dos metais, gera-se uma centelha, nada diferente das outras produzidas por Tales e pelos muitos curiosos e cientistas que experimentavam a eletricidade, esfregando diferentes materiais. Volta desenvolvia a mãe ou a avó da pilha que conhecemos hoje. Aos poucos, fruto de milhares de
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experimentos, materiais mais adequados e aparatos mais convenientes são desenvolvidos para fabricar as pilhas. Sempre que colocamos metais diferentes, separados por um meio ácido, cria-se uma diferença de potencial. Hoje temos uma medida para o seu nível, os volts. Não por acaso, homenageia Volta. Eles medem a “vontade” ou a força que faz esse fluido para migrar para o outro polo do circuito. Por razões complicadas, quaisquer que sejam os metais ou os ácidos usados, sempre produzem 1,5 volts. Para conseguir 3 volts, temos que construir dois experimentos similares e ligar um atrás do outro. Mas por que não encadear três ou quatro? A eletricidade gerada terá mais força, ou mais volts. Na apresentação de Volta, assistida por Napoleão, 100 unidades estão encadeadas. Se abandonamos as cubas e usamos materiais embebidos no ácido, podemos colocar um em cima do outro, como fez Volta. Dito de outra forma, fazemos uma pilha de artefatos similares. Daí o nome de pilha para as que compramos na loja para acender a lanterna. Se quisermos ser rigorosos na semântica, as de 1,5 volts não empilham elementos. Mas o nome ficou. A palavra bateria tem a mesma origem, denominando originalmente um conjunto encadeado de artefatos de 1,5 volts.
Voltagem, amperagem e watts De posse das pilhas de Volta, capazes de produzir eletricidade de forma simples e confiável, torna-se possível estudar os fluxos elétricos. Prestigitadores, curiosos e cientistas passam a ter uma fonte confiável desse fluido misterioso que veio a se chamar eletricidade. Como já dito, alguma coisa revela uma grande “vontade” de migrar de um fio para outro. Ao cabo de muitos experimentos, começa-se a perceber que esse fluxo tem duas dimensões bem marcadas e diferentes. Uma delas é a maior ou menor “vontade” de ir de um fio para o outro, completando o circuito e descarregando a pilha, se o circuito permanece conectado. A outra dimensão é a “quantidade” de eletricidade que migra. Para entender a diferença, pensemos em canos de água. Se temos um cano vertical e vamos despejando água nele, na sua extremidade inferior, a água fará cada vez mais força, quanto mais alto estiver o nível da água. A medida dessa força seria a “voltagem” da água. Na eletricidade é a mesma coisa. Quanto mais voltagem, resultado de mais pilhas ligadas uma atrás da outra, mais a eletricidade “quer ir” para o outro lado. Se multiplicamos indefinidamente o número de pilhas, há um momento em que a eletricidade não mais se contém no seu fio. Ela salta, gerando uma centelha, como no gerador de Van der Graaff. É assim que funciona a vela de um automóvel.
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Voltemos aos canos, para examinar a outra dimensão. Quanto maior o diâmetro do cano, mais água passa. Por um canudinho de refresco passa menos água do que na torneira da cozinha. Ou seja, por um cano grosso passa mais água. Podemos pensar na mesma ideia para a eletricidade. Por um fio mais “grosso” passa mais eletricidade. A intensidade desse fluxo recebeu o nome de amperagem, em homenagem a André-Marie Ampere, um genial e polivalente cientista francês que realizou estudos substanciais nesse tópico. Temos então voltagem e amperagem. A primeira é a “força” da eletricidade que quer fluir no circuito. A segunda é a “quantidade” de eletricidade que flui. Esses são os conceitos mais fundamentais dos circuitos elétricos. Um eletricista lida permanentemente com eles. É 110v ou 220v? O fusível é de 15 ou 20 amperes? Mais uma vez, voltemos à analogia da água. Podemos ter um circuito mais “fino”, mas pelo qual a eletricidade passa mais depressa (tem mais voltagem). Ou um mais “grosso” em que a velocidade é lenta, mas passa muita eletricidade ao mesmo tempo (tem mais amperagem). Temos o direito de perguntar quanta eletricidade passou por esse circuito. Dito de outra forma, é o consumo de eletricidade. O mesmo tanto de eletricidade pode haver passado mais depressa, com mais voltagem. Ou mais devagar, com mais amperagem.
Nos canos, temos os litros. E na conta de luz, não importa se a água entrou depressa por um cano fino ou devagar em um grosso. O que interessa são os litros d’água que passaram pelo hidrômetro. O número de litros capta perfeitamente o consumo de água da casa. Não seria interessante ter uma medida de quanta eletricidade circulou? Não poderíamos inventar um litro de eletricidade? Na verdade, temos tal medida, que não são litros, mas Watts – merecida homenagem a James Watt, inventor do primeiro motor a vapor confiável e prático. Basta multiplicar os volts do circuito pela sua amperagem e temos os watts consumidos – em uma unidade de tempo, já que é um fluxo. De fato, mesmo no caso dos litros de água, temos que explicitar o intervalo de tempo da mensuração. A companhia que fornece água não diz apenas “tantos litros”, mas sim “tantos litros por mês”. Na conta de luz, o que interessa é a quantidade. Se o chuveiro elétrico é de 220v, ele gera um dado consumo que é somado ao da lâmpada de 110v. Se temos um pequeno aparelho de solda elétrica, o eletrodo pode precisar de 60 amperes para derreter. Mas a voltagem é muito baixa, de alguns poucos volts, e nem chega a dar choque. Assim, é a multiplicação da amperagem pela voltagem que nos dá o consumo. Uma vela de automóvel gera uma centelha, porque a voltagem é da ordem de 20 mil volts. Mas a amperagem é baixíssima – não fora assim, morreria eletrocutado quem recebesse um choque do fio da vela.
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Caixa com componentes elétricos para ensino de eletricidade.
qr code: Esta animação mostra a condutividade e a resistência elétrica, cujos princípios estão formalizados na Lei de Ohm.
Mostra também o aproveitamento do calor gerado pela resistência, bem como o seu uso na lâmpada elétrica”.
Recapitulando, temos voltagens, amperagens e watts. Com esses três conceitos essenciais conhecemos quase tudo que se precisa para lidar com circuitos elétricos. Um mede a velocidade do fluxo; outro, quantidade de eletricidade que passa. O terceiro mede o consumo do circuito.
Resistência e a Lei de Ohm Às vezes, em circuitos elétricos, é preciso reduzir ou travar o fluxo de elétrons. Se for excessivo, pode queimar a instalação. Nesses casos, introduzimos nele um resistor (antes chamado de resistência). Estamos falando de materiais que deixam fluir a eletricidade, mas não sem opor alguns obstáculos. São maus condutores, mas não chegam a ser isolantes. É como se fosse uma estrada ruim que força o carro a andar mais devagar. Se criarmos um circuito começando em um dos polos da pilha, passando por uma lâmpada, esta vai acender. Mas se entre a lâmpada e a pilha introduzirmos um resistor, ele vai parcialmente bloquear o fluxo elétrico, fazendo com que a lâmpada produza uma luz mais mortiça. Muitas vezes queremos que isso aconteça. Por exemplo, em alguns tipos de motores elétricos, conforme o resistor usado, teremos o seu eixo girando em velocidades diferentes. Algumas furadeiras
elétricas têm ajustes de velocidade baseados nesse princípio. Em outros casos, porém, queremos reduzir a resistência de uma instalação elétrica, pois pode causar um desperdício de energia. Por exemplo, ao fazer a instalação elétrica de uma casa, queremos usar fios com baixa resistência para reduzir essa perda e também para evitar o risco de que peguem fogo, caso a carga aplicada se revele excessiva. Para isso, precisamos conhecer a resistência dos fios usados. Se o fio tiver um diâmetro muito pequeno, sua alta resistência vai reduzir substancialmente a corrente que passa, além de esquentar. Muitas vezes, ao ligar o chuveiro elétrico, notamos que as lâmpadas ficam mais mortiças, indicando que foi usado um fio fino demais. Devemos então usar um de bitola superior, com menos resistência, ainda que mais caro, por usar mais cobre. Se esfregarmos as palmas das mãos, notamos que esquentam. É o atrito resultante de que não são lisas. O mesmo acontece com materiais que conduzem eletricidade, mas que opõe uma resistência
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qr code: Para conhecer os princípios básicos do Eletromagnetismo. Eletroímã primitivo
qr code: Para entender a teoria de Galvani.
a esse fluxo. Como entendemos hoje, ao se chocar com obstáculos dentro do fio, o fluxo de elétrons produz calor. Materiais como o níquel-cromo permitem usar o calor nele gerado para esquentar a água, por exemplo, em um chuveiro elétrico. Ou mesmo construir um fogão ou um radiador para dias de frio. Em 1827, um cientista alemão chamado Georg Ohm estudou detidamente esses fenômenos. Como resultado de suas pesquisas, foi capaz de definir uma fórmula matemática associando a resistência do material com a voltagem e com a amperagem. Na verdade, foi o primeiro tratamento matemático da eletricidade. Não por acaso, esse princípio recebe o seu nome: Lei de Ohm. Segundo a fórmula proposta, a intensidade da corrente que flui em um circuito depende diretamente da voltagem e inversamente da sua resistência. Brilhante! Só que o Ministério da Educação alemão da época julgou que um professor pregando tais heresias não era digno de ensinar ciência. Sua proposta não passava de uma divagação a esmo. Mas tempos depois a descoberta foi reconhecida e louvada. As pesquisas de Ohm foram feitas com o auxílio de um galvanômetro, instrumento que mede a corrente que flui em um circuito. Seu desenvolvimento está associado aos nomes de Luigi Galvani e Hans Oersted. Seu funcionamento baseia-se no fato de que um eletroímã atrai peças de ferro (assunto mais bem explicado adiante, quando discutimos o
eletromagnetismo). Se tivermos um ponteiro metálico mantido em uma posição inicial por uma mola muito sensível, ao passar uma corrente por um eletroímã que está a sua volta, o ponteiro vai ser atraído e girar. A magnitude da deflexão do ponteiro mede a intensidade da corrente que flui no solenoide. Essa construção se converteu no aparelho universal para medidas elétricas. É mais ou menos como se fosse a fita métrica dos eletricistas. Com justa causa, a unidade de medida de resistência acaba por ser batizada de Ohm. Uma resistência de chuveiro elétrico tem algo em torno de 10 Ohms. Nos circuitos eletrônicos convencionais, são empregados resistores com milhares ou milhões de Ohms de resistência. Ou seja, tais componentes impõem obstáculos muito árduos para o fluxo elétrico. Na multidão de aparelhos elétricos e eletrônicos, o uso dos resistores é mais do que comum. É difícil imaginar algum em que não tenha.
Circuitos elétricos (série e paralelo) Ao falar de pilhas, mencionamos que as vezes queremos encadear uma na outra. Para assim ligálas, conectamos o positivo de uma com o negativo da outra. Com essa ligação, somam-se as voltagens de cada uma. Duas pilhas de 1,5 volts produzem 3 volts, entre
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Cabos elétricos com alma de cobre ou alumínio.
os polos extremos do circuito. Na verdade, podemos conectar quantas pilhas desejarmos. A cada uma adicional, a voltagem aumenta 1,5 volts. Chamamos de ligações em série essa maneira de conectar componentes. No caso das pilhas, são usados para aumentar a voltagem. Mas podemos fazer diferente. Ligamos as pilhas uma ao lado da outra. Positivo com positivo, negativo com negativo. São as chamadas ligações em paralelo. A voltagem oferecida no circuito são os mesmos 1,5 volts, mas como há mais componentes ligados, permitem um fluxo mais amplo. Em vez de uma lâmpada, podemos ligar várias. É o equivalente a dizer que a caixa d’água tem mais capacidade, portanto pode abastecer um consumo maior, digamos, um grande chuveiro, em vez de um acanhadinho. Essas duas categorias de ligações podem ser feitas com pilhas ou com quaisquer outros componentes. Ao instalarmos a eletricidade em uma casa, usamos sempre ligações em paralelo, pois tudo que temos instalado opera com a mesma voltagem. Nesse caso, a eletricidade que passa em uma lâmpada não passa na outra. É o contrário das ligações em série, nas quais a eletricidade passa em uma e logo em outra. Mas como é o mesmo fluxo, os amperes que passam são os mesmos em qualquer uma delas.
Pensemos em moinhos de farinha, cada um tocado por uma roda d’água. Instalamos um e, logo abaixo no córrego, vem um segundo, mais adiante um terceiro. Estão ligados em série. O gasto de água será sempre o mesmo, qualquer que seja o número de moinhos no curso d’água. Mas se instalamos todos os moinhos no mesmo trecho do rio, cada um consome a sua água. Se forem três, será o triplo do consumo. Para resumir, há dois tipos elementares de ligações elétricas: em série e em paralelo. Cada uma tem suas propriedades que podem se revelar adequadas ou não, dependendo do que queremos fazer.
Capacitor O capacitor, também chamado de condensador, é um dos três componentes passivos usados na eletricidade e eletrônica. A saber, resistor, bobina ou solenoide e capacitor. A pilha seria um quarto elemento fundamental, mas como produz eletricidade, não é considerado passivo. À primeira vista, uma pilha e um capacitor parecem coisas bem parecidas. Ambos podem ter eletricidade guardada. Mas há uma diferença. A pilha produz eletricidade, como resultado de uma reação química.
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O capacitor apenas guarda a carga que receber, quando conectado a uma fonte de eletricidade. A característica fundamental de qualquer circuito elétrico é que, do lado positivo, estão elétrons “querendo ir” para o lado negativo. A corrente elétrica ocorre justamente por essa atração que o lado negativo exerce sobre o positivo. Se ligarmos os fios, a corrente flui, eliminando o represamento e equilibrando o sistema. Ou seja, extingue-se qualquer fluxo, pois os dois polos estarão com cargas iguais. Se for uma pilha, ela será descarregada pela ligação. Os capacitores não produzem eletricidade, mas se carregam quando conectados a uma fonte elétrica. São construídos por duas superfícies metálicas próximas, separadas por um isolante, chamado de dieletro. Se ligarmos as placas em uma pilha, os elétrons do lado positivo se acumulam na placa correspondente, pois são atraídos pela outra com carga negativa. Historicamente, o primeiro capacitor foi construído pelo físico holandês Pieter van Musschenbroe, morador da cidade de Leiden. Daí o nome de Garrafa de Leiden, que era um frasco com uma película de metal do lado de fora e outra do lado de dentro. O vidro isolava os dois lados: era o dieletro. Dizemos que o capacitor está carregado quando, mesmo depois de desligada a pilha, o acúmulo de elétrons em uma das placas persiste. Se com um fio ligarmos as duas, com espantosa velocidade os elétrons acumulados de um lado migram para o outro. O processo costuma produzir uma centelha,
tamanha é a força com que fluem de um polo ao outro. Lidando com um aparato desse tipo, von Kleist levou um tremendo choque. Chegou a afirmar em carta que “Eu não levaria um segundo choque pelo reino de França”. De fato, quem tocar nos bornes de um capacitor carregado vai levar o mesmo choque de von Kleist, pois os elétrons usam o corpo como caminho para migrar para o polo negativo. A medida de capacitância é o Farads, derivado do nome do grande cientista inglês Michael Faraday. Tendo sido um dos maiores físicos do século XIX, qualquer homenagem é justificada. Mas, curiosamente, Faraday nada descobriu de muito importante sobre capacitores. São muitos os usos para um capacitor na indústria elétrica. Vejamos um fácil de entender. Ao ligar um motor elétrico, a corrente precisa superar a inércia do próprio motor, do eixo e do implemento ao qual está acoplado. Se nesse momento um capacitor carregado é ligado ao sistema, ele vai aplicar no circuito um pique de corrente, um empurrão, ajudando a pôr o conjunto em movimento. Em eletrônica, muitas vezes precisamos de uma corrente contínua bem estável. Se houver um capacitor ligado no circuito, ele vai carregar mais quando há um pique para cima e descarregar quando há uma queda. Como resultado, a corrente fica mais estável. Como dito, os capacitores são elementos essenciais em qualquer aparato elétrico ou eletrônico. Conforme
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o tamanho e a sua capacidade de carga, são construídos com diferentes materiais. O dieletro pode ser papel ou qualquer outro isolante. As chapas podem ser de algum tipo de folha metálica.
Magnetismo O terceiro elemento, o último faltante, é o solenoide, vulgarmente conhecido como bobina. Na prática, não passa de um fio de cobre enrolado, como se fosse linha em um carretel. Jean-Marie Ampere foi um dos primeiros a experimentarem ímãs e eletroímãs. No fundo, suas propriedades são as mais misteriosas dos três. O resistor freia o fluxo elétrico. O capacitor armazena uma carga elétrica. Mas e o solenoide? O solenoide cria um campo magnético, uma força bem diferente do fluxo de elétrons. Os elétrons não andam pelo ar, não andam em materiais isolantes. São como uma manada bem comportada, seguindo pelos caminhos delimitados para eles. O campo magnético está no ar. Ainda hoje há certa ambiguidade quanto à sua natureza. Mas vale reter que é uma forma de energia imaterial, invisível. Um segundo mistério é que os solenoides são, em muitos sentidos, equivalentes aos ímãs que tão bem conhecemos. Façamos o experimento clássico. Tomemos um ímã forte. Sobre ele pousamos uma placa de vidro ou
de cartolina. Sobre essa placa despejemos limalhas de ferro. O que acontece? Surpresa! A limalha vai se organizar em torno do ímã, formando um quase círculo cheio de volutas. Há um semicírculo que se forma no polo positivo e outro em torno do negativo. A primeira conclusão é que alguma coisa sai do ímã e age sobre a limalha, obrigando-a a se espalhar e assumir essa forma tão simétrica e previsível. Ou seja, essa força consegue atravessar o vidro que sabemos ser isolante. E se substituímos o ímã por um solenoide? Ligamos nele uma pilha e despejamos a limalha. O que acontece? Exatamente o mesmo que com o ímã. O desenho formado é semelhante e previsível. Essas ondas, chamadas eletromagnéticas, podem parecer apenas uma curiosidade. Mas dentro da eletricidade e eletrônica podem prestar serviços valiosos. Podemos construir um experimento enrolando um fio de cobre em um pau, ou, melhor, prego que o torna mais eficiente. Ligando as extremidades do fio a uma pilha, vemos que atrai objetos de ferro. É um eletroímã. Podemos brincar com ele, atraindo peças de ferro e depois desligando, para vê-las se soltar. Mas se for um eletroímã grande, pode levantar um automóvel. Podemos criar mecanismos em que, ligada a corrente, uma peça de ferro é atraída e se desloca em direção ao solenoida. Ou seja, a atração vence a inércia e provoca o movimento. Essa propriedade nos permite
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James Clerk Maxwell, um cientista escocês brilhante e criativo, o primeiro a formular matematicamente a explicação de que as ondas magnéticas eram semelhantes às de luz. Isso o conduz à explicação de que se trata de um fenômeno ondulatório. Tais especulações abrem as portas para os avanços que culminaram depois na invenção do rádio. comandar a abertura de uma porta, por exemplo. O eletroímã atrai uma barra de ferro que se desloca, soltando o trinco. E permitiu também gravar em papel os pontos e traços do primeiro telégrafo. Experimentando com eletroímãs, foi feita uma observação que abre as portas para inventos que mudaram o mundo. Notou-se que, se tivermos dois eletroímãs, um próximo do outro, ao ligar a eletricidade em um, cria-se também um pique elétrico no outro, que não está ligado a nada. Esse é o ponto de partida para uma multidão de usos, incluindo os motores elétricos e o rádio, mais adiante descritos. Mas é crítico entender: se mantivermos ligado o circuito de um lado, nada acontece do outro. É somente no instante de ligar e desligar que se observa a atividade elétrica também no outro. Michael Faraday teve uma contribuição definitiva para entender o eletromagnetismo. Foi seguido por
Transformadores Como dito, as pesquisas sobre magnetismo mostram a criação de um fluxo elétrico em uma bobina que está próxima de outra, ligada a uma corrente. Ou seja, ao conectar-se uma corrente elétrica em uma bobina, outra que esteja próxima será ativada, produzindo também uma corrente elétrica, apesar de não estar ligada a qualquer outro circuito. Essas descobertas ocorreram na primeira metade do século XIX e estão associadas a cientistas húngaros. Mas os primeiros usos comerciais dessa propriedade começam a aparecer na segunda metade do século. O modelo vencedor foi criado pelo americano William Stanley. Aos poucos, transformadores tornam-se aparelhos frequentes em fábricas e residências.
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Registrou-se, já nessas épocas, que a relação entre o número de espiras de cada solenoide determina a voltagem que vai aparecer na bobina dita secundária, ou seja, a que não está ligada. Se na primária temos 100 espiras e na secundária temos 50 a voltagem observada na secundária se reduzira à metade. Por exemplo, se a rede for de 220 volts, a saída será de 110 volts. Isso significa que torna-se possível transformar voltagens. Abrem-se então as portas para os transformadores, que nada mais fazem do que isso. Para cima ou para baixo, tudo depende da relação entre as espiras do primário e as do secundário. Como as redes elétricas são de 110 ou 220 volts e muitos aparelhos hoje funcionam com voltagens que vão de 1,5 a 16 volts, tornaram-se peças do nosso cotidiano, para evitar o uso das pilhas nas dezenas de instrumentos elétricos, como celulares e rádios. É bom recapitular: a corrente somente é criada quando o circuito do primário é ligado e desligado da fonte de eletricidade. Ligar e deixar ligado apenas cria um pique inicial e nada mais. É preciso uma intermitência ou uma inversão de voltagem para que ocorra o fenômeno. Daí a criação da corrente alternada, mudando de polaridade 50 ou 60 vezes por minuto. Com ela, os transformadores podem funcionar. Depois do desenvolvimento da lâmpada elétrica, um invento de extraordinário apelo público, havia uma grande discussão acerca da maneira de levar a eletricidade à casa das pessoas. O grande problema tem
a ver com a resistência dos fios elétricos usados para esse transporte. Fios de grande secção oferecem pouca resistência ao fluxo elétrico. Mas são mais caros. Fios mais delgados trazem uma perda de energia, apesar de serem mais baratos. Mas isso é apenas a metade do problema. Descobriu-se que a perda depende da voltagem da linha. As de baixa voltagem têm uma perda maior. No limite, inviabilizam a transmissão em uma larga distância. Isso porque precisam de mais amperagem para compensar a voltagem menor. Daí as vantagens de uma alta voltagem nas linhas de transmissão. Porém, Edison dizia que uma voltagem alta dentro da casa das pessoas criaria um grande risco de choque elétrico. Ansioso por vender as lâmpadas que havia inventado, advertia insistentemente sobre riscos de morte por eletrocussão. Tentava vender suas instalações de baixa voltagem, apesar dos problemas das perdas nas linhas. Um dos assistentes mais brilhantes de Edison, Nikola Tesla, um servo-croata de personalidade difícil, acaba brigando e colocando-se no campo oposto da discussão. Insistia que o transporte da eletricidade, com as voltagens das lâmpadas, resultaria em uma perda enorme. Pelos seus cálculos, seria necessário criar um gerador elétrico para cada quarteirão. Tentar levar os fios mais longe acarretaria um desperdício intolerável.
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A solução era alternar a polaridade da corrente, por exemplo, 60 vezes por minuto. Com a corrente alternada, seria possível usar um transformador para tornar a voltagem muitas vezes mais alta. Essa eletricidade seria transportada nos postes e, em cada quarteirão, passaria por outro transformador, para que voltasse a um nível seguro para as pessoas e compatível com as lâmpadas incandescentes. A briga dos dois é um dos casos mais clássicos de desavença barulhenta entre cientistas. Eram dois colossos. Edison, metódico e insistente, tinha por trás todo o peso de sua empresa. Tesla, brilhante e brigão, associa-se a Westinhouse, uma promissora empresa produtora de materiais elétricos. Os lances são teatrais, mesclando-se os choques de egos avantajados com interesses comerciais. Mas o futuro estava selado, pois a solução de Edison não era nada prática. Nesse momento, toma-se uma decisão que afeta o que aconteceu na indústria elétrica do mundo inteiro. Opta-se pela corrente alternada, com seus transformadores e as vantagens de usar altas voltagens nas linhas de transmissão. Tesla ganhou o embate sobre corrente alternada. Porém, a batalha da mídia ganhou Edison, pois virou quase um símbolo do americano obstinado e criativo. Tesla tinha uma personalidade complicada. Largou a Westinghouse, foi esquecido e morreu quase na miséria. É bem recente a redescoberta da sua importância como físico.
A eletricidade que trabalha no fio No capítulo anterior, descrevemos um conjunto de avanços, tanto na compreensão dos fenômenos elétricos como no desenvolvimento dos componentes principais de tudo que é elétrico: pilhas, capacitores, resistores e solenoides. Tudo isso aconteceu no século XIX e um pouco antes. Era a matéria-prima para trabalhar com eletricidade. Mas nada disso mudava a vida das pessoas. Eram avanços ainda nas cabeças e nos laboratórios. As grandes transformações vieram próximo da virada do século XX. Os três avanços definitivos são os geradores elétricos os motores elétricos e as lâmpadas. Com eles, tornou-se possível criar uma variedade extraordinária de aplicações que mudaram os processos produtivos e o conforto humano. A eletricidade vem ao resgate da energia hidráulica, permitindo o seu transporte para longe dos rios. Esse processo se dá em três etapas. Em uma primeira, o movimento do eixo da roda d’água é transformado em energia elétrica por um aparato conhecido como gerador ou dínamo. Em seguida, fios de cobre transportam a eletricidade para onde se faz necessária. Finalmente, motores elétricos a transformam de volta em movimento. As consequências dessas inovações são incalculáveis. Aparecem, à época, outras promessas, mas são para desenvolvimentos futuros. Além dos mencionados acima, é apenas um deles que se materializa para o grande público, ainda no século XIX: o telégrafo (com fio).
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Geradores e motores Examinemos aqui a primeira parte desta tríade: o gerador. Para conduzir experimentos, as pilhas são uma fonte conveniente de eletricidade. Mas para as atividade utilitárias são de pouca serventia, pelo pouco trabalho que podem produzir. Entra em cena Zenobe Gramme, um belga de pouca escolaridade, muita disciplina de trabalho e muitíssima imaginação. Em seu ofício de modelar em madeira as peças que seriam fundidas em uma fábrica de equipamentos elétricos, começa a se interessar pela eletricidade e seus usos. Ele parte da constatação já generalizada de que ímãs, quando aproximados de bobinas, geram nelas um fluxo elétrico. Sendo possível instalar bobinas em torno de um eixo apoiado em mancais, alguma coisa pode acontecer. De fato, já se havia experimentado tais montagens. Ao aproximar o ímã de uma série de bobinas montadas concentricamente em um eixo, será criada uma corrente elétrica, cada vez que uma se aproxima do ímã. Essa eletricidade gerada é transmitida para um par de fios por meio do que hoje chamamos de coletor. Na prática, é um anel de metal construído por segmentos isolados uns dos outros. Uma escova encostada nesse coletor captura a eletricidade gerada. Ao girar mais o eixo, a eletricidade gerada pela bobina é captada pelo outro setor do coletor. E assim por diante, completando o círculo de bobinas. Cada bobina, através do coletor, joga na linha uma corrente elétrica, em sucessão.
Diante das outras alternativas existentes, essa solução é amplamente superior e faz muito sucesso na exposição de Paris de 1881. Com seu espírito pratico, Gramme cria uma fábrica de geradores e seu negócio prospera. Curioso registrar que, avesso às teorias e aos eventos públicos, dorme durante a exposição. Ao acordar, verifica que cientistas interessados pelo seu invento haviam rabiscado fórmulas matemáticas em um quadro-negro, para tentar explicar o que viam na prática. Retruca então, mal-humorado, que jamais teria inventado o dínamo se dependesse daquela baboseira escrita no quadro.
O motor elétrico e a revolução no conforto O mesmo Gramme vai apresentar seu dínamo em uma exposição em Viena, onde muitos deles seriam instalados. Na correria dos últimos minutos de preparação, um operário, por engano, liga um dínamo no outro. Ao rodar o eixo de um deles, notou que o outro passou a rodar sozinho, sem que houvesse alguma força a movimentá-lo. Ou seja, o dínamo não passa de um motor elétrico usado ao contrário. Esse curioso incidente traz à luz o fato de dínamos e motores serem máquinas muito parecidas. Se alguma força física girar o eixo do dínamo, sai eletricidade. Mas se for ligada a eletricidade nele, começa a girar, funcionando como motor elétrico.
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Um alternador de automóvel, ao girar o motor, produz a eletricidade que carrega a bateria. Mas retirando o alternador do carro e ligando-o na bateria, vai rodar como um motor elétrico. Naturalmente, depois de Gramme, há uma enorme sucessão de motores e dínamos, cada vez mais eficientes. Werner Siemens é outra pessoa a quem se atribui o desenvolvimento de motores e geradores elétricos. Os motores de Gramme eram de corrente contínua. Uma vantagem é que, com um reostato (um resistor variável), é fácil controlar a sua velocidade. Mas os motores de corrente alternada tem outras vantagens e hoje predominam na indústria. Sua velocidade é
precisamente determinada pela ciclagem da corrente (50 ou 60 ciclos por segundo, dependendo do país e da região). Os primeiros motores tinham coletores com escovas para estabelecer o contato entre as partes móveis e as fixas. Esta solução persiste até hoje, mas há outros sem coletores. Siemens e Gramme criam dois aparatos que transformam as fábricas e as casas. Os motores elétricos estão por toda parte: desde o ínfimo motor ajustando o foco das lentes fotográficas até os gigantescos das locomotivas elétricas. Com diferentes tipos de motores funcionam trens, bondes, geladeiras, aparelhos de ar-condicionado, furadeira, impressoras e muito mais.
Ilustração de um dínamo de Gramme.
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Thomas Edison, inventor e homem de
negócios estadunidense, era conhecido como “O mago de Menlo Park”.
Entre outros feitos, desenvolveu um
sistema de transmissão de energia por corrente contínua.
à direita: Thomas Edison com a lâmpada incandescente e com o fonógrafo.
Os eletrodomésticos Na virada do século XX, estava consolidada a geração eficiente de eletricidade. Os postes elétricos se espalham pelas cidades. Logo entra nas fábricas. Aos poucos, avança nas áreas rurais. Com a capilaridade da energia elétrica, os motores podem ser usados em um sem-número de situações. As fábricas se convertem para a eletricidade, mais conveniente e eficaz. Mas no fundo faziam com mais vantagens o mesmo que os motores a vapor realizavam. Foi um avanço, mas menos espetacular. Onde os motores mudam a vida das pessoas de forma dramática é dentro de casa. Os edifícios tinham o número de andares limitados pela disposição dos moradores de subir escadas. Os motores viabilizam os elevadores, tornando viáveis edifícios de muitos andares. Mais adiante, com elevadores mais aperfeiçoados, os arranha-céus aparecem. Por séculos, tudo que era gelado era um luxo de quem comprava gelo, às vezes trazido de outros países e cuidadosamente guardados em serragem para aguentar até o verão. Com os motores, torna-se possível criar geladeiras que produzem gelo em casa. As máquinas de lavar liberam o tempo das mulheres, para que possam se dedicar a outros afazeres ou ao lazer. O médico sueco Hans Rosling afirma que nada fez tanto pela qualidade de vida das mulheres quanto as máquinas de lavar roupa.
O ar-condicionado mudou os padrões geográficos de ocupação do território. Antes, como era relativamente fácil aquecer a casa e impossível resfriála, morar em um lugar mais frio trazia mais conforto térmico. Com o ar-condicionado, regiões mais quentes tornam-se mais atraentes, pois passa a ser possível refrigerar as casas no verão e desfrutar de um inverno mais suave. E, naturalmente, os resistores podem ser usados para gerar calor. Fogões elétricos e chuveiros tornam-se parte da coleção de aparatos que aumentam o conforto das nossas casas. Não tem limite a coleção de aparelhos que aumentam o conforto domiciliar, graças a seus motores. Aspiradores de pó, lava-pratos, batedeiras e liquidificadores tornam a nossa vida cada vez mais confortável.
Lâmpada incandescente Da profusão de experimentos e inventos gerados no século XIX, poucos dão resultados práticos ainda naquele século. Além de motores e geradores, mencionados acima, a terceira exceção é a lâmpada elétrica. Diante da promessa de um material que, aplicada uma corrente elétrica, esquenta até produzir alguma luz, começa uma corrida para achar a boa solução para a lâmpada incandescente. Muitos pesquisadores
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entraram nela. O grande problema é que, quando a corrente é suficiente para produzir alguma luz, é mais do que suficiente para queimar tudo. O engenheiro alemão Heinrich Gobel migrou para Nova York, onde abriu uma relojoaria. Como se deu muito bem, teve tempo para fazer experimentos com pilhas. Aliás, nem sempre bem-sucedidos, pois frequentemente, os bombeiros tinham que intervir, apagando incêndios em sua casa. Mas, progressivamente, as coisas começam a dar certo. Tirando um pedaço de fibra de bambu de sua bengala e usando o vidro da sua água de colônia para, lá dentro, gerar vácuo, consegue criar uma lâmpada bem-sucedida. Mas o lado comercial não funciona. Como usava pilhas, era muito limitado o seu uso. Edison celebrizou-se como o mais teimoso, trabalhador e disciplinado dos inventores. Perguntado em que data se aposentaria, respondeu que seria no dia seguinte à sua morte. Quando insistem para que trabalhe menos, concorda em reduzir sua jornada para 16 horas por dia. Nesse regime, por mais de meio século, criou uma quantidade espantosa de inventos que deram certo. Vendo as possibilidades da luz elétrica, começou também a experimentar com centenas de materiais para construir o filamento: platina, bambu, tungstênio, tudo que tinha uma remota chance de acender e não queimar. Um grande passo foi dado quando se começou a colocar o filamento dentro de um vidro,
no qual se inseria um gás inerte ou se fazia vácuo. A sua obstinação deu certo: construiu uma lâmpada incandescente viável, ou seja, acendia e não se queimava logo. De posse de sua lâmpada e de um grande talento de marketing, o sucesso não tardou. Depois dela, boa parte da humanidade trocou o dia pela noite. Acordar com as galinhas e dormir pouco depois delas deixou de ser a rotina universal. Fotos da Terra, tiradas por satélites, mostram como a noite virou dia em boa parte do mundo. Muitos anos depois da lâmpada incandescente, aparecem novas formas tecnicamente mais sofisticadas de produzir luz, com menos consumo de energia. Lá pela metade do século XX, as fluorescentes começam a funcionar bem, abocanhando um bom naco do mercado por muitos decênios. Outras soluções aparecem, mas o grande salto, no fim do século XX, são as lâmpadas baseada em diodos que emitem luz (LEDs). Há muito se sabia que, assim como as antigas válvulas que emitiam elétrons do seu catodo, os diodos têm a mesma capacidade. Usar isso para sensibilizar algum material que pode gerar luz é o próximo passo. Com a progressiva queda de preço em sua produção, lentamente começam a tomar o lugar de todas as outras, com muitas vantagens, sobretudo na durabilidade e no baixo consumo.
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Manipulador usado no telégrafo para transmitir o código Morse.
qr code: O telégrafo criado por Samuel Morse, utiliza um código
permitindo converter todas as letras e números em apenas traços e
pontos. Trata-se de uma revolução nas comunicações.
Telégrafo A eletricidade prometia muitos milagres, mercê do exército de pesquisadores, inventores e engenheiros experimentando com seus aparatos misteriosos. Mas faltavam os degraus intermediários que só se materializaram no século XX. Não obstante, havia um invento que podia ser fabricado com as tecnologias já dominadas na época: o telégrafo. O uso da corrente elétrica já estava resolvido, assim como os eletroímãs. A pilha de Volta era suficiente para as necessidades. Mas faltava um método para transformar letras em impulsos elétricos. Muitas alternativas foram tentadas. Várias delas usavam um fio para cada letra (até 35, no total). Era uma solução complicada e cara. Gauss chega a gerar um alfabeto digital, revelando o seu enorme talento, pois se trata de uma ideia fundamental na computação, revivida mais de cem anos depois. Seu telégrafo operou em uma estrada de ferro alemã. Mas o caminho definitivo foi dado nos Estados Unidos, por Samuel Morse, um pintor de certo renome. Ele define um alfabeto baseado em traços e pontos. Os traços eram gerados quando se ligava o circuito por certo tempo. Os traços eram gerados quando se deixava o circuito ligado por certo tempo. No ponto,
o período ligado era mais breve. Cada letra tinha a sua correspondência definida por certa sequência de traços e pontos. Ligando uma pilha a um par de fios, a corrente podia ser captada no outro extremo. Assim, um eletroímã nessa outra ponta podia ser ativado pela corrente, movendo um estilete que registrava traços ou pontos em um rolo de papel. Para transmitir, cria-se o manipulador, uma alavanca comandada pelas mãos do telegrafista e que, na outra extremidade, tinha um contato elétrico. Bastava variar o tempo em que o manipulador era pressionado para gerar traços e pontos. O telégrafo não era mais do que isso. Com o adensamento das redes ferroviárias, era preciso que uma estação se comunicasse com a outra, para que os desvios estivessem na boa posição quando se aproximavam os trens. Graças ao telégrafo, tal comunicação podia agora se processar de forma confiável. Dessa forma, a expansão das redes de telégrafo ferroviário cresceram junto com as ferrovias. Antes de virar médico e, depois, entrar na política, Juscelino Kubishek era telegrafista.
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Em 10 de março de 1876
aconteceu a primeira conversa telefônica, quando o inventor Graham Bell ligou para seu assistente.
qr code: Esta animação mostra
como funcionavam os primeiros telefones, simultaneamente
inventado por G. Bell e outros.
Naturalmente, logo se viu que traços e pontos podiam fazer mais do que comandar os trens. Permitiam passar telegramas, estabelecendo uma comunicação muito mais rápida do que por qualquer outro meio existente. O primeiro teste da eficácia desta comunicação se deu quando um assassino escapa, tomando um trem rumo a Londres. Antes do telegrafo, teria desembarcado e se embrenhado no que era então a maior cidade do mundo. Todavia, uma mensagem do telegrafista da estação faz com que desembarcasse nas mãos da polícia que o esperava. Daí para frente, o telégrafo se converte na forma mais eficaz e conveniente de comunicar-se com quem estava longe. Vencer oceanos com cabos submarinos foi a proeza seguinte, demandando muita pesquisa para encontrar os materiais que resistissem à vida submarina. No caso, o látex se revelou o mais interessante. O telégrafo durou por cerca de 150 anos. Foi derrotado pelo telefone e pela internet.
Telefone
A ideia de que sinais poderiam caminhar dentro de fios elétricos já estava mais do que consolidada pela difusão do telégrafo. Mas eram apenas traços e pontos. Ou seja, ligado e desligado.
Faz tempo que as crianças já brincam com barbantes esticados, tendo em cada ponta uma lata, copo de papel ou de plástico, vibrando quando atingidas pelas ondas sonoras. A vibração é transmitida pelo barbante e recebida do outro lado. Não deixa de ser um telefone. Em um tom mais sério, havia a comunicação por tubos, como usada até hoje nos navios, para conectar a ponte de comando com a casa de máquinas. Faltava juntar a comunicação de voz com as soluções elétricas. Muitos tentaram e tiveram sucesso. Portanto, a invenção do telefone é um cipoal de ações legais, demandas e controvérsias. Para haver um telefone, era preciso transformar as ondas sonoras da voz em corrente elétrica. Entra em cena o microfone de carvão, inventado por Edison. O intervalo entre duas membranas de metal, uma delas bem fina, é preenchido por pedaços de carvão. Ao atingir a membrana delgada, as ondas sonoras a empurram, comprimindo o carvão. Como a resistência que oferece o carvão à circulação elétrica varia com a compressão que recebe, cria-se um circuito que transforma a voz em impulsos elétricos equivalentes. Essa variação de corrente é ligada a um par de fios em cuja outra extremidade estava um aparato que fazia exatamente o oposto: transformava corrente elétrica pulsante em som. Era uma bobina que, recebendo a corrente elétrica, era atraída por um bloco de ferro. Como estava presa a um diafragma de papel,
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o telefone começa a se difundir, chegando ao que conhecemos hoje. Graham Bell desfruta de merecida fama pelo seu invento, bem como os resultados econômicos de sua patente. Contudo, muitos outros inventores reivindicam a autoria. De fato, entrou no Departamento de Patentes outro pedido para um telefone. Mas atrasou-se algumas horas com relação ao de Graham Bell. Por isso, não pode ser registrado.
A eletrônica entra em cena
este vibrava, exatamente nas mesmas frequências da voz humana que captou o microfone. Um som grave no microfone criava uma oscilação na corrente de 100 ciclos por segundo. Do outro lado, a bobina andava para a frente e para trás, também 100 vezes. Como estava acoplada a um diafragma, empurrava o ar nessa mesma frequência, reproduzindo o mesmo som grave. O mesmo acontecia com qualquer frequência captada pelo microfone. Na exposição de Saint Louis, em 1876, D. Pedro II era um dos jurados, para avaliar a relevância dos inventos lá apresentados. Ao ver as proezas de Graham Bell, chama a atenção de todos para o futuro que tinha um tal aparato. Daí por diante,
Ao mesmo tempo que a lâmpada e o motor começam a mudar a vida de todos, aparecem outras grandes invenções, cheias de promessas, mas ainda condenadas a permanecer como curiosidades. É gestada a revolução das comunicações. São novas direções, rondando a transmissão de voz e música. É o telefone, o rádio, os cilindros (e depois discos) gravados. Tudo muito interessante, mas nada muito prático. O telegrafo (com fio) é o único grande avanço nessa época que se dissemina em grande escala, sobretudo para apoiar o gigantesco desenvolvimento das estradas de ferro. É preciso que entrem em cena as válvulas – e depois os transistores – para que passem a ser viáveis muitas dessas ideias, particularmente a transmissão por ondas de rádio. Os usos para a válvula e o transistor são imediatos, seja nos fonógrafos, seja no rádio – e em tudo o mais.
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H Hertz, físico alemão do fim do
página ao lado de cima para baixo:
experimentos que deram origem
Unidos.
século XIX, conduziu os primeiros
Central telefônica nos Estados
ao rádio
Gráfico das ondas eletromagnéticas.
Primeiros experimentos com telefones
Esse avanço permite a explosão das novas formas de transmitir música e voz. Crescem as vendas de rádios, amplificadores, tocadores de discos e depois de fita magnética. A própria televisão é fruto desse avanço, sendo o cinescópio uma variante da válvula. Surgem então o fax e outras invenções. Todos os aparelhos que tomaram um grande impulso com as válvulas recebem outro empurrão ainda mais impressionante com os transistores. Tudo fica melhor, mais fiel, mais barato, mais eficiente e menor. Os aparelhos de rádios e TVs encolhem drasticamente. O mesmo se dá com quase tudo o mais. O transistor não traz novas ideias, mas promove um salto nas velhas, como já haviam feito as válvulas. O fax, os gravadores, os walkie-talkies pequenos aparecem nessa mesma onda. Até então, os avanços estavam em usos da eletricidade, que, bem comportada, caminhava dentro de fios, antes de fazer o seu serviço, através de lâmpadas, bobinas e resistores. Mas na virada do século XX, começa um novo ciclo de inovações, nas quais a eletricidade e as comunicações passam a andar pelos ares. É o nascimento da eletrônica.
Ondas hertzianas Sabia-se bem que fios de cobre enrolados em um carretel ou em torno de um núcleo ferroso, se conectados a uma pilha, produziam um campo
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magnético. E também que outros solenoides nas proximidades seriam afetados pelas ondas eletromagnéticas produzidas. De fato, os transformadores se baseiam nesse princípio. Mas o físico meio alemão, meio judeu Heinrich Hertz descobre algo bem surpreendente. Em seu experimento, descarrega um capacitor (uma garrafa de Leiden), produzindo uma centelha entre duas pontas próximas. Surpresa! Um solenoide, colocado relativamente longe, recebe nesse momento uma descarga elétrica. Ou seja, a centelha do primeiro é captada pelo segundo. Em seus experimentos, Hertz consegue que o solenoide pudesse ser afastado a mais de dez metros da centelha produzida, ainda assim recebendo a descarga. Ou seja, as ondas eletromagnéticas, pressentidas por Maxwell, conseguem navegar pelo ar. Muito interessante, pensa ele. Mas não deve servir para nada essa descoberta. Diante dessa conclusão, vai cuidar de outros assuntos – nos quais tem um papel destacado. Eis um cientista brilhante, com contribuições na meteorologia, na mecânica, que provocou uma revolução nas teorias de Maxwell, mas
que, ao demonstrar a existência prática das ondas eletromagnéticas, acha que é um achado curioso, mas inútil. Felizmente para quem gosta do que veio depois, ele estava redondamente enganado. As ondas geradas, mais adiante chamadas de Herzianas, em sua homenagem, são o princípio que dá origem ao rádio e a tudo o mais que usa a transmissão de sinais pelo ar.
Telégrafo sem fio e o Titanic Um jovem italiano, Guglielmo Marconi, começa a perceber que a tal descoberta de Hertz talvez não fosse tão inútil assim. Se em um experimento tosco era possível captar as ondas da centelha a dez metros de distância, quem sabe, melhorando as técnicas usadas, essa distância poderia aumentar? Começa então a fazer experimentos na propriedade da família, conseguindo fazer com que os sinais fossem captados cada vez mais longe. Seu sucesso logo sugere o uso dessas ondas para as comunicações.
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Partida do Titanic, em sua primeira e última viagem
página ao lado: G. Marconi, cujo telégrafo sem fio salvou 700 passageiros do Titanic qr code: Filmagens da época mostram o
Titanic em sua primeira e última viagem. O telégrafo sem fio que permitiu salvar 700 vidas é também exibido.
No telégrafo com fio, é a duração do contato que determina se é traço ou ponto. Mas o mesmo pode ser feito com os métodos de Hertz. Se dura pouco o centelhamento que produz as ondas hertzianas, é um ponto. Se dura mais, é um traço. A cada distância maior que consegue captar o sinal, mais longe podem alcançar as comunicações por esse meio. Aí está a origem do telégrafo sem fio. Onde basta plantar alguns postes e instalar fios, por que toda a trabalheira de transmitir pelo ar? Mas e os navios, que não podem ser ligados por postes às centrais telegráficas? Com essas elucubrações e um sólido capital de investidores ingleses, Marconi começa a produzir aparelhos de transmissão e recepção de telégrafo sem fio. Com grande relutância e pouco entusiasmo, os navios começam a ser equipados com seus aparelhos, e estações fixas são criadas. Bem mais tarde, em 1931, uma delas se instala na praia do Arpoador, no Rio de Janeiro. O edifício original ainda está de pé. Em 1912, constrói-se o maior e o mais seguro navio de passageiros, o Titanic, uma obra-prima da
engenharia naval inglesa. Não podia deixar de ser equipado com transmissores e receptores de telégrafo sem fio. Afinal, tais equipamentos tornavam-se mais um dos ícones da modernidade. As peripécias do afundamento do Titanic são bem conhecidas. O acidente põe em xeque a engenharia naval da época, a qualidade das chapas de aço, a imprudência de prosseguir quando se sabia haver icebergs na vizinhança. Porém, há uma consequência inesperada e extraordinária. Entre os 2 mil e tantos passageiros, 700 se salvam graças ao socorro trazido por um navio que estava próximo e foi alertado pelo transmissor de Marconi. Tragédia à parte, os resultados do acidente foram auspiciosos para os negócios de Marconi. Desde então, torna-se inconcebível um navio sem um telégrafo sem fio. Estava claro para todos que as ondas se propagam em linha reta, portanto, com a curvatura da terra, não poderiam ser captadas muito longe. Porém uma grata surpresa os esperava. De fato, as ondas não fazem curva, mas existem camadas na estratosfera que refletem de volta para a terra os sinais que lá chegam. Graças a isso, os sinais podiam ir bem mais longe do que se supunha. O telégrafo sem fio abre espaço para um novo hobby: o radioamadorismo. Milhares de aficionados, pelo mundo afora, passam a se comunicar por seus transmissores de rádio, já então bem mais evoluídos do
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Receptor de rádio de galena, de 1925.
qr code: Animação demonstra o
funcionamento de
um rádio de galena, inventado por volta de 1920.
que o que equipava o Titanic. Naturalmente, usavam o mesmo código Morse. Até pouco tempo, havia exames para radioamadores, nos quais deveriam mostrar a sua capacidade de transmitir e receber mensagens cifradas nesse código. Em inúmeras situações de crise e catástrofe, foram o único meio de comunicação, prestando inestimáveis serviços.
O rádio de galena Decorar o código Morse é como aprender outro alfabeto. Adquirir fluência no seu uso é outro degrau penoso. Assim, sempre ficou restrito a profissionais e amadores dedicados. No caso do telefone, os avanços do telégrafo com fio ofereceram os alicerces para o salto. Em vez de traços e pontos, as vibrações em frequências variadas da voz passam a ser transmitidas pelo fio. O rádio é um avanço semelhante. A consolidação do telégrafo sem fio pavimenta o caminho para substituir traços e pontos pela modulação da voz. Mas o caminho é bem mais complicado. Nesse momento, o centelhamento usado para produzir as ondas herzianas já havia sido abandonado. Sistemas de bobinas e capacitores permitem transmitir sinais melhores e em frequências bem definidas. O próximo passo é transmitir a modulação da voz.
Muitos tentam, inclusive o próprio Marconi. Em 1900, Landell de Moura, um padre brasileiro, faz grandes progressos nessa direção, conseguindo resultados bem impressionantes de transmissão de voz. Transmitiu do Alto do Santana para a Avenida Paulista. Obtém então uma patente brasileira. Mas o meio cultural era muito acanhado e não há como prosseguir. Ele se muda para os Estados Unidos, conseguindo registrar três patentes. Mas infelizmente para ele passam à sua frente outros pesquisadores mais bem providos de meios financeiros. Lá pelos anos 1920, começam a aparecer estações comerciais de rádio. Várias técnicas eram usadas, seja para transmitir, seja para receber. Mas na popularização dos receptores havia uma limitação que atrapalhava. Era preciso transformar sinais de corrente alternada em corrente contínua, para ser possível ouvir as transmissões. As válvulas estavam engatinhando e seu uso ainda era limitado. Na época, a única solução que existia na maior parte do mundo era um metal chamado galena. Quando tocado por uma estilete, dava passagem à corrente, apenas em uma direção. Na década de 1930, multiplicam-se os rádios de galena pelo mundo afora. Nos anos 1950, ainda se vendiam kits de rádios com retificadores de galena para estimular os jovens a se interessarem pela eletrônica. Muito interessante e muito divertido, mas não se poderia imaginar uma dona de casa lutando
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Válvulas eletrônicas da
década de 1930 a 1960. qr code: Retificando e
amplificando a corrente, as
válvulas de rádio trouxeram uma transformação
radical na eletrônica.
Seu funcionamento é
demonstrado por animações.
com uma agulha para achar o ponto exato em que a pedrinha se dignava a retificar. Eram uma curiosidade, não um produto de consumo de massa. Para que se desse a transformação, era necessário esperar pelo desenvolvimento das válvulas.
Válvulas que retificam (diodos) e que amplificam (triodos) A invenção das válvulas muda completamente o cenário da eletrônica, a partir da década de 1920. Tudo que se fazia nessa área travava em duas grandes barreiras. A primeira era a necessidade de retificar as ondas hertzianas recebidas, pois eram corrente alternada. A segunda é que os sinais captados eram muito fracos, que mal podiam ser ouvidos em fones. Era imperativo amplificá-los. Na década de 1920, começam a emergir avanços. Obra de John A. Fleming, o primeiro achado é que, sob vácuo, se um eletrodo é aquecido por uma resistência, os elétrons saltam para o outro polo. Assim, constróise uma ampola de vidro e extrai-se dela o seu ar. Dentro dela estão dois eletrodos, chamados catodo e anodo, que são ligados a uma pilha. Se através de uma resistência elétrica o filamento lá instalado esquenta o catodo, os elétrons passam a saltar para o anodo, coisa que não aconteceria em outras circunstâncias.
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A grande importância desse fenômeno é que os elétrons só saltam do eletrodo que foi aquecido. Se a corrente elétrica ligada ao anodo e catodo for invertida, o salto é interrompido, pois só se dá em uma direção. Na outra, nada acontece. Ora, isso faz com que a válvula receba uma corrente alternada e a transforme em contínua, pois o fluxo inverso foi suprimido. Que belo e confiável substituto para o imprevisível galena que nem sempre se dispõe a retificar! Com isso, o primeiro grande problema está resolvido. Mas não param aí as proezas da válvula. Se entre o catodo e o anodo for introduzida uma telinha metálica, um feito memorável pode ser realizado. Para chegar ao anodo, os elétrons tem que passar dentro da malha da tela, chamada de grade. Se for injetada uma corrente nessa grade, de acordo com a sua polaridade e voltagem, ela pode bloquear parcial ou totalmente o fluxo de elétrons. A característica interessante dessa grade é que basta uma mínima alteração de voltagem para mudar muito o fluxo entre anodo e catodo. O americano Lee de Forest é o pioneiro nessa linha. Pensemos bem no uso dessa propriedade. Uma variação de voltagem bem pequena causa uma variação bem grande no fluxo entre catodo e anodo. Em outras palavras, a válvula amplifica, no fluxo entre catodo e anodo, as variações da voltagem da grade. Os usos dessas válvulas são óbvios. Um sinal débil, vindo do éter, é injetado na grade. Como resultado,
uma variação de sinal, muito mais forte, é registrada no fluxo entre catodo e anodo. É tudo que se precisava para criar um rádio eficiente. Mas o rádio não fica só nisso. Um conjunto bastante complexo de componentes eletrônicos otimiza a recepção do sinal hertziano e amplifica os sinais de áudio. Em vez de fones, agora há potência suficiente para tocar alto-falantes. A válvula viabiliza um grande número de aparelhos eletrônicos. Os rádios passam a ser parte do mobiliário de praticamente todas as casas. Amplificadores de áudio, toca-discos e tudo o mais que conhecemos não poderiam existir sem a retificação e a amplificação conseguida pelas válvulas. Põe-se em marcha o desenvolvimento de rádios, amplificadores e um sem-número de outras aplicações. As lojas passam a vender profusamente estes aparelhos. Uns grandes, com gabinetes majestosos, de madeira de lei. Outros mais modestos, mas todos capazes de receber os sinais de emissoras. Chega a eles a música e os noticiários. Novelas radiofônicas são produzidas, eletrizando os ouvintes do mundo inteiro. Na hora do jantar, todos estão ligados. Por meio do rádio, a Segunda Guerra entra nas salas de estar do mundo. Hitler, com seus discursos inflamados, anuncia que vai ocupar a Europa com a sua poderosa Wermacht. Churchill, em um dos seus discursos mais famosos, retruca que a Inglaterra vai resistir, no solo, no mar e nos ares.
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Semicondutores e a física do estado sólido Na década de 1950, tomam corpo experimentos no que veio a se chamar de Física do Estado Sólido. Lidava-se com materiais que conduziam eletricidade em um só sentido. Foram chamados de semicondutores. O galena já era conhecido de longa data. Mas era mal comportado e imprevisível. Iniciam-se pesquisas para descobrir a melhor forma de usar metais como o germânio, com propriedades semicondutoras. Já em princípios dos anos 1950, são lançados no mercado retificadores de germânio capazes de fazer com total previsibilidade o que fazia a mal comportada galena. A corrente passava em um sentido, mas era bloqueada no outro. Na prática, cria-se um substituto para as válvulas retificadoras. Aliás, muito melhor, pois não precisa do filamento que esquenta o catodo. Portanto, consome menos eletricidade. E também dura muito mais. Ademais, tem o tamanho de um grão de arroz, em comparação com as válvulas de antes, grossas como um cabo de vassoura e com dez centímetros de altura. O passo seguinte é equivalente ao que se fez com as válvulas que amplificam um sinal. Notou-se que um semicondutor, se for polarizado por uma corrente trazida por um ponta que nele encosta, causa variações muito mais amplas na sua condução elétrica. Funciona exatamente como a grade da válvula. Pequenas variações na corrente, aplicada na pontinha que toca o
semicondutor, provocam grandes variações no fluxo. Ou seja, o semicondutor amplifica o sinal, tal como faz a válvula. A ideia estava clara para muitos pesquisadores. Mas havia o desafio de construir um modelo que funcionasse. Finalmente, as equipes do Bell Laboratory conseguem encontrar uma forma de montar o quebracabeças. Esse pequeno semicondutor ao qual foi adicionado um terceiro elemento foi chamado de transistor. Tal avanço foi precedido por muitos experimentos, em locais diferentes. Contudo, foi William Shokley e seus auxiliares que ganharam o prêmio Nobel pela façanha, em 1948. No fundo, os diodos de estado sólido e os transistores não fazem nada que não seja também feito pelas válvulas. No entanto, fazem o mesmo muito melhor, pois têm maior durabilidade, não quebram, esquentam menos e são muito menores. Dado seu ínfimo tamanho, comparado com as válvulas, certos projetos se tornam viáveis. Por exemplo, walkie-talkies, radinhos portáteis, telefones celulares, relógios, GPS e por aí afora. Não só são menores, mas requerem uma pilha menor e de mais baixa voltagem: ganha-se dos dois lados. Dada a sua superioridade, progressivamente, tudo o que era de válvula vai sendo transformado em aparelhos usando diodos e transistores. Como são muito pequenos, cabem em qualquer lugar, ocupando pouco espaço.
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qr code: Animações explicam o
funcionamento e a evolução do rádio.
O passo seguinte é o seu agrupamento em blocos. Cada vez mais, torna-se possível enfiar mais transistores dentro de um único componente. São os circuitos integrados. Uma das aplicações de consequências mais dramáticas é nos computadores. Os que existiam então eram de válvula, como todos os rádios da época. Um rádio podia ter até dez válvulas. Ocupavam o espaço de um engradado de cerveja. Mas um computador exigia milhares de válvulas. O Burroughs, comprado pelo IBGE para o Censo de 1960, ocupava uma casa inteira. O térreo era usado pela usina de ar-condicionado, necessária para refrigerar as válvulas. Ocupando todo o andar de cima ficava o computador. Para ilustrar o progresso subsequente da automação, um relógio digital, comprado hoje no camelô, tem mais capacidade computacional do que aquele monstro do IBGE. E o que é pior, tinha tantos problemas que não conseguiu processar o Censo. Em suma, sem fazer nada diferente, o transistor revoluciona a eletrônica e a informática, pelo seu tamanho diminutivo, baixo consumo e confiabilidade.
Transmissão de imagem: televisão e fax Pensemos bem no que é uma televisão. No fundo, não passa de um rádio que transmite imagens e sons, em vez de apenas sons. Seguindo essa linha de raciocínio, é um salto semelhante ao que foi passar do telégrafo
para o rádio. De apenas traço e ponto, torna-se capaz de transmitir as modulações da voz. A ideia de transmitir imagens pelo rádio vem do princípio do século XX. Durante décadas, os métodos eram mecânicos, usando discos giratórios com furinhos. Assim se gravava a imagem. Eram os precursores do Fax (de fac símile). Mas era tudo muito complicado e pouco eficaz. É somente com os avanços da eletrônica que se abandona a ideia de usar aparatos mecânicos e se avançam em métodos mais promissores. O que possibilita a televisão é uma eletrônica capaz de ler luz e sombra. Em sua essência, é uma ideia simples. Pensemos em uma imagem visual como sendo composta de um conjunto de pontos. Uns são brancos, outros são pretos ou cinza. Como não é fácil lidar eletronicamente com o cinza, se os pontinhos forem menores, alternam-se pontos brancos com pretos, dando a impressão de meio tons. Na verdade, não há grandes novidades nisso. Se tomarmos uma lente com um aumento de dez vezes, vamos ver que uma imagem de jornal é feita de pontinhos brancos e pretos. Como nossa vista não pode ver os pontinhos, mas apenas uma mancha, temos a impressão de branco, preto e cinza. O salto tecnológico que abre as portas para a televisão é um aparato que lê os pontinhos. Para que forme uma imagem, precisa ir lendo os pontinhos projetados em uma tela, um a um. Para isso, segue uma
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à esquerda: TV Philco Predicta, 1950, à direita: Fax.
rotina sistemática. Vai lendo uma linha – imaginária – até chegar ao fim. Nesse momento, volta ao ponto inicial e desce um pouquinho, para ler a linha seguinte. No falar técnico, faz uma varredura, lendo linha por linha, até completar a imagem. Como a imagem se move, precisa repetir a leitura da ordem de vinte vezes por segundo para iludir a nossa visão, dando a impressão de que lê movimento. Na realidade, lê imagens estáticas que se sucedem rapidamente. Não há grande novidades nisso, pois, no início do século XX, Louis Lumiere inventa o cinema. É a mesma coisa: não há movimento nas imagens gravadas em filme, e sim uma sucessão de imagens ligeiramente diferentes, dando a impressão de movimento. Na eletrônica, para fazer a varredura, um feixe de elétrons é guiado por eletroímãs potentes, dirigindo-o a cada pontinho da tela. Se é branco, o circuito reage de uma forma; se é negro, de outra. É tudo que se necessita para transformar uma imagem em um fluxo elétrico que se altera de acordo com o que lê em cada local da tela. Daí para frente, entramos no mundo conhecido do rádio. O sinal modulado com a imagem é transmitido pelos ares, pelas velhas ondas hertzianas. Sendo recebido pelo aparelho que está na casa do telespectador, o processo inverso é realizado. Termina tudo em um grande tubo de vidro, chamado de cinescópio. Nele, um feixe de elétrons percorre o mesmo caminho que gerou a varredura
no estúdio. Uma linha por vez, o feixe de elétrons varre a tela, feita de uma superfície fosforescente que se ilumina quando atingida pelo feixe de elétrons, mas permanece escura onde se interrompe o fluxo. E isto é tudo. A imagem captada pela câmera dos estúdios volta a ser recomposta no cinescópio do televisor. Anos mais adiante, o mesmo processo consegue ler cores, produzindo a televisão colorida. E para melhorar a qualidade da imagem, cada vez há mais linhas para serem varridas. O fax já havia sido tentado antes, mas dependia de aparatos mecânicos pouco práticos. Mas no fundo é um aparelho semelhante à televisão, aliás, bem mais simples, pois lida com imagens estáticas em uma folha de papel. A lógica é a mesma. Mediante uma varredura da imagem, vai lendo claros e escuros. Esses sinais são transmitidos por uma linha telefônica. Na outra ponta, há a recomposição da imagem, que é registrada em uma impressora. Com os avanços técnicos trazidos pela televisão, construir uma máquina de fax eficaz torna-se possível. É uma televisão simplificada, operando pelo telefone, e não através de ondas hertzianas. Interessante notar que os sinais visuais são transformados em som para serem transmitido. Ao chegar ao outro lado, são novamente transformados em pontos negros e brancos. Como a televisão, o fax tem um imenso sucesso, pois o telefone passa a ser capaz de transmitir imagens
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e não apenas a nossa voz. Como são relativamente simples, os aparelhos tornam-se cada vez mais difundidos. Passam a ser universalmente usados para transmitir, em poucos minutos, textos escritos ou imagens. O grande paradoxo do fax é ser um grande retrocesso em economia de informações transmitidas. Quando criado, já existiam maneiras eficientes de transmitir letras e números. Cada uma tinha um código, parecido com o criado por Morse. As máquinas de telex já usavam tal código. Mas o fax ignora esse avanço e usa o seu mecanismo de varredura para desenhar as letras, uma a uma. Para imagens, isso é estritamente necessário. Mas para letras é um grande desperdício. Muitos sinais são usados para desenhar uma letra que poderia ser transmitida de forma muito mais econômica, através de um código já existente. Não é por acaso que o fax teve grande sucesso no Japão, pois com três alfabetos, todos complicadíssimos, não havia conversão possível de cada letra para um código predefinido. Aparelhos eficientes e baratos começam a sair das linhas de produção japonesas, espalhando-se pelo mundo. Assim adota-se com entusiasmo uma solução que encantou um país cujos alfabetos desafiam essa codificação. Somente a internet, muito mais tarde, retorna a transmissão de letras para um caminho eficiente: uma sequência curta de sinais para cada letra. A lógica muito mais eficiente do Telex é retomada.
Paradoxalmente, pelo mundo afora, os aparelhos de Telex, quase do tamanho de uma escrivaninha, foram abandonados em prol de uma tecnologia muito mais atrasada: desenhar letras, em vez de enviar o seu código binário. Na época, ninguém se lembrou de simplificar o Telex, para que pudesse operar através dos aparelhos telefônicos existentes nas casas.
Celulares e smartphones Se a televisão usa o rádio para transmitir imagens, o celular faz a mesma coisa com a voz. Em vez de seguir pelo fio, como o telégrafo inventado por Graham Bell, o sinal é transmitido através de ondas de rádio. Em princípio, a ideia nada tem de novo. Só que foi preciso esperar a miniaturização dos componentes para que os aparelhos se tornassem portáteis. Já durante a Segunda Guerra havia transmissores e receptores portáteis, ligados a uma central de comunicação. Eram os walkie-talkies que todos vimos nos filmes de guerra. No fundo, não são fundamentalmente diferentes dos celulares. Mas eram aparelhos grandes e vorazes consumidores de pilhas, pois usavam válvulas. Por vários anos, os celulares não faziam mais do que sua proposta original: eram telefones portáteis e convenientes. Mas aos poucos começam a realizar outras tarefas úteis. A primeira é ter na memória
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Evolução do telefone celular.
um caderno de endereços, para que pudessem estar imediatamente disponíveis para seus usuários. Em seguida, vem um calendário, e assim por diante. Nos dias que correm, os celulares adquirem missões complexas e eminentemente úteis. Muito do que fazem os computadores e sistemas de áudio é nele embarcado. Qualquer proprietário de um smartphone sabe que há dezenas de milhares de aplicativos que podem instalar neles. Para nossos antepassados remotos, o martelo e o machado eram as ferramentas que serviam para quase tudo. Hoje o celular se torna essa ferramenta universal, oferecendo uma cornucópia de usos. E, a cada dia, mais alguns são incorporados.
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Em 1642, Blaise Pascal inventou um “computador” mecânico de madeira ou uma “calculadora” que tinha entrada de
seis dígitos. Primeiro chamado de Máquina Aritmética,
Calculadora de Pascal e mais tarde Pascalina, sua invenção foi principalmente concebida como uma máquina de adição que poderia somar e subtrair dois números diretamente, embora sua descrição pudesse ser estendida a uma “calculadora mecânica” com a qual era possível multiplicar e dividir por repetição.
qr code: Uma prática explicação sobre a evolução do
computador, passando pela internet e se desenvolvendo em um chip.
Computador, pau para toda obra Com o desenvolvimento da mecânica de precisão, nos séculos XVIII e XIX, alguns começam a se perguntar: se as máquinas fazem tantas coisas diferentes, será que não poderiam também fazer contas? A resposta é que podiam. Babbage constrói uma calculadora complicadíssima, caríssima e gigantesca. Até que funcionava, mas não era prática. Somente em meados do século XX aparecem calculadoras mecânicas, aptas para somar e subtrair. Multiplicar e dividir era mais difícil e leva mais um tempinho. São um grande sucesso. Mas como porta de entrada para o que veio a se chamar de computador, eram um beco sem saída. Engrenagens e eixos não são um bom ponto de partida para criar tais os sonhados “cérebros eletrônicos”. Com o passar do tempo, novas ideias circulam. Algumas no campo puramente teórico. Não se tratava mais de calcular as engrenagens de uma máquina pensante, mas de criar modelos teóricos do que seriam tais máquinas. Alan Turing celebrizou-se pela sua concepção de uma máquina que seguia instruções. Antes disso, a partir do início do século XX, desenvolve-se a chamada lógica simbólica. Trata-se de uma tentativa de aproximar a lógica aristotélica da matemática.
Nessa linha, as ideias de um matemático do século XIX, George Boole, são revividas. Segundo ele, há leis universais do pensamento e que admitem uma formulação matemática. Mais especificamente, Claude Shannon propõe que suas ideias sobre estatística abrem espaço para enfrentar o desafio de criar instruções para uma tal máquina de base eletrônica. Se X acontece, então Y pode acontecer, ou não pode acontecer. Ou Z também acontece. São jogos de lógica, que pareciam perfeitamente inúteis, mas que acabam oferecendo a transição entre as ideias originais de Turing e a sua materialização em aparatos eletrônicos.
Decimal para humanos, digital para as máquinas Entra em cena um segundo bloco de ferramentas que permitem outro salto: a digitalização dos sinais. Ou seja, a conversão de números e letras em um código mais fácil de ser tratado pela eletrônica. Já se materializa no código Morse a ideia de transmitir números e letras por um sistema numérico mais econômico. Em vez de quase trinta letras e dez algarismos, torna possível transmitir as mesmas informações com apenas três: traço, ponto e silêncio. Do ponto de vista da conversão em impulsos elétricos, é um grande avanço. Não é preciso considerar frequência ou volume, apenas a presença do sinal
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Computador Mecânico proposto por Charles Babbage em 1837.
É o sucessor de outro anterior do
próprio Babbage e baseia-se em uma
estrutura lógica que antecipa o que veio depois com os computadores digitais.
qr code: Abre-se a linha do tempo em formato eletrônico, mostrando-nos o
rápido e engenhoso desenvolvimento dos computadores, até os dias atuais.
A era dos computadores grandalhões
e a sua duração (traço e ponto). Mas ainda é pouco. O passo seguinte e mais radical: digitalização. Com ela, temos apenas “ligado/desligado”, “sim/não” ou “zero/ um”. É a inauguração de um novo sistema de contar, o binário. Em vez de dez números, temos apenas zero e um. Se queremos dois, será 10. Três será 11. Quatro 100. A imensa vantagem deste novo sistema é que se presta a ser representado por circuitos elétricos que apenas estão ligados ou desligados. Ou seja, três é representado por: ligado e ligado. Quatro é: ligado, desligado e desligado. Todos os números podem ser representados por impulsos elétricos e ausência de impulsos (=zero). A digitalização permite que calculadoras que apenas faziam contas se transformem em máquinas que recebem instruções e são capazes de realizar quaisquer tarefas que possam ser convertidas em passos lógicos. De fabricantes de máquinas de contabilidade, a IBM se transforma em fabricante de computadores.
Enfiar essas ideias em uma engenhoca eletrônica é o próximo desafio. Ainda durante a guerra, foram tentadas as válvulas. Faziam o serviço, mas de forma particularmente cara e ineficiente. Além de falhas, pois se queimavam com frequência, paralisando tudo. A lógica do computador requer criar grandes redes de circuitos interligados, nos quais cada unidade pode estar ligada ou desligada. A partir daí, regras de decisão são criadas: se x está ligado, z está ligado e y desligado, então.... Não foi um desafio menor passar dessas cogitações teóricas para um computador que funcionasse e fizesse coisas úteis. Ajudar a decifrar a competentíssima máquina de criptografia alemã, a Enigma, foi a primeira tarefa importante que os computadores enfrentaram. Outra tarefa tentada durante a guerra foi o cálculo da trajetória de projetis, então penosamente realizada com calculadoras de mesa. Funcionar funcionou, mas só depois de acabar a guerra. Além disso, era um monstro de trinta toneladas, ocupando 300 metros quadrados. Ainda assim, além da ajuda para decifrar a Enigma, alguns sucessos são colhidos. Contrariando muitos observadores, um computador previu a vitória de Eisenhower para presidente.
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Mas eram máquinas tão caras e complicadas que se chegou a dizer que bastavam três ou quatro no mundo inteiro. Não obstante, o uso de transistores e circuitos integrados permite encolher dramaticamente o seu tamanho, tornando-as mais baratas e confiáveis. Tudo isso leva aos grandes computadores, capazes de resolver equações tenebrosas, fazer previsões meteorológicas ou executar banais folhas de pagamento. Eram os chamados computadores mainframe. De tão caros, somente as grandes empresas, capitaneadas pelas IBM, podiam ter. Mas faziam seu trabalho com galhardia. Eram chamadas de “cérebros eletrônicos”. Mas não era um bom nome, pois o que faziam magistralmente era seguir instruções precisas. Desde então, cada vez mais essas instruções requerem trabalho da máquina
para interpretar. Algum dia poderão pensar? Segundo Alan Turing, estarão pensando quando, ao dialogar com um humano, este não saberá se é outro humano ou uma máquina. Progressivamente, os computadores se tornam capazes de realizar tarefas cada vez mais distantes de sua concepção original. Por exemplo: buscar a palavra “tijolo” no dicionário e, seguida, mostrar na tela o verbete que corresponde a ela. É o nascimento e expansão do computador que faz quase tudo. E obviamente esse exemplo é um desafio fácil. Aos poucos, enfrentam tarefas cada vez mais complexas, como vencer o campeão mundial de xadrez.
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Computador a válvula. Primeiro microcomputador IBM, década de 1970.
Os hippies da informática e a democratização dos computadores No meio de tantos avanços técnicos, há uma revolução sociológica que emerge na década de 1970. Os computadores nascem nos grandes laboratórios e nas forças armadas. Ao se tornarem civis, são perfilhados pelas gigantescas empresas, como a IBM. Ficam, portanto, identificados pela sua proximidade ao Big Business e ao Big Brother. Na década de 1960, o movimento hippie da Califórnia destila a sua filosofia de autossuficiência e empoderamento dos pequenos. Junto com os primeiros hackers do MIT, começa a grande festa de tomar componentes de prateleira e juntá-los no que veio a ser chamado de Personal Computer (PC). A meta é democratizar os computadores. Não há grandes avanços técnicos, mas apenas o uso diferente do já estava disponível. Cria-se o computador leve e portátil, dispensando o terno e a gravata dos CPDs e dispensando o “chofer”. Linguagens mais “user friendly” – como o BASIC – são desenvolvidas, seja para operar, seja para programar. O sucesso é tamanho que as grandes empresas são obrigadas a entrar na mesma onda. Um uso explicitamente desdenhado no universo dos grandes computadores é o processamento de texto. Na década de 1980, equipes de CPD das empresas achavam e proclamavam que o computador não merecia um uso tão bastardo. Mas os processadores de
texto vieram do submundo hippie da computação e ganharam o mundo mais engravatado, tornando-se o software mais usado. Talvez tão importante quanto os avanços tecnológicos seja a democratização dos microcomputadores realizada por eles. Com o tempo, o computador torna-se uma máquina que pode ser comprada e operada por quase todos, mesmo em um país como o Brasil. Um sistema de comunicação do Exército americano, o Arpanet, criado para o caso de romperem-se as linhas convencionais, é cooptado
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pela comunidade informática e vira a internet. Graças a Berners-Lee, cria-se uma gigantesca base de dados, o World Wide Net. Google e Amazon revolucionam as buscas e as compras pela internet. Fazer um livro envolvia um desenhista, um tipógrafo, uma gráfica enorme e uma rede de distribuição, tudo sempre complicado, caro e imperfeito. Hoje, o autor senta-se ao teclado, usa um software gráfico para criar uma cara gráfica, tecla a sua obra-prima e posta na internet. Esse mesmo mecanismo de distribuição, dito de cauda longa, muda o acesso à música. Todos podem ter acesso a tudo. No início, era um desenvolvimento que se dava em grandes laboratórios, produzindo máquinas que só as gigantescas organizações poderiam usar. Mas subitamente o processo se democratiza, dando a quase todos as ferramentas que conhecemos. A onda seguinte leva à convergência das funções. O aparelho que fazia uma coisa, passa a fazer muitas. Quase todos os produtos eletrônicos se aproximam do computador. A música, o telefone, as bases de dados, a comunicação entre pessoas convergem para esse instrumento. Com a miniaturização crescente, o computador migra para o celular, criando o smartphone, a culminância dessa convergência de funções em um mesmo aparelho. Estamos longe de chegar ao fim ou mesmo de percebermos o que haverá neste fim. Mas o caminho vertiginosamente percorrido já nos traz calafrios.
História do armazenamento de informações De 5 mil anos para cá, o homem cria formas mais refinadas de contar. Ao mesmo tempo, impacienta-se com a fragilidade da sua memória. Sua primeira ideia é criar algum tipo de representação física para esses números que passam a medir quantidades cada vez maiores. Pilhas de conchinhas, contas ou sementes. Na China, é o número de nós em uma corda. O passo seguinte é criar sinais para esses números, em vez de amontoar conchas ou perder-se em de nós. Aparecem então os algarismos. Os chineses tem os seus. Os romanos também, mas são pouco convenientes para fazer contas. Os algarismos, hoje chamados arábicos, são os vencedores nessa competição pela grafia das quantidades. Praticamente são usados em todo o mundo, incluindo China e Japão, que tinham seus sistemas próprios, hoje quase desaparecidos. Um avanço de extraordinárias consequências é a invenção do zero. Sem ele, para contar até 1 milhão, seria necessário um milhão de sinais gráficos. Fazer contas continuaria sendo um pesadelo. Seguindo uma história particularmente desconhecida, as palavras também necessitam ser registradas, pois a memória é limitada e falível. Obras monumentais como a Ilíada e a Odisseia dos gregos eram decoradas por algumas pessoas e recitadas para
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qr code: Documentário sobre os primeiros registros gráficos deixados pelo homem.
Começam com pinturas rupestres, desenhos
e altos-relevos. Evoluem então para hieróglifos e escrita cuneiforme.
o público. Funcionava, pois graça a essa tradição oral chegaram até nossos dias. Mas quantas obras-primas poderiam ser mantidas na cabeça das poucas pessoas com essa prodigiosa memória? Começa então a tomar corpo a ideia de gravar em algum meio permanente as palavras, como se começava a fazer com os números. No Ocidente, aparece a escrita cuneiforme, gravada em tabletes de barro úmido e que depois secava. A partir desse momento, diferentes culturas buscam sua própria escrita. A ideia vencedora no Ocidente era decompor as palavras em seus sons elementares e criar um sinal gráfico para cada um deles. Aparecem então os alfabetos. Encurtando um longo e esgarçado desenvolvimento, chegamos aos gregos clássicos, com seu alfabeto e sua capacidade de registro rigoroso das palavras. Mais adiante, com o poder militar de Roma, é o alfabeto latino que de dissemina pela Europa e pelo mundo. A China e as culturas próximas seguem por outro caminho. Em vez de grafar sons, criam um símbolo para cada ideia – um ideograma. O resultado é bem mais complicado, mas não impediu que, por muitos séculos, aquele país estivesse à frente do mundo em quase todos os aspectos que considerássemos. O passo seguinte é descobrir as melhores maneiras de gravar ou eternizar esses sinais. No Oriente
Próximo, sobretudo no estuário do Tigre e do Eufrates, os mesmos tabletes de barro são usados para isso. O papiro tem sucesso na China. Os pergaminhos, produzidos com pele de carneiro, se universalizam na Europa. Mas o papel é o vencedor. Quando fervemos uma mistura de serragem com água, separa-se a celulose da cola que a natureza utiliza para dar rigidez à madeira. Purificada, é disposta em uma camada delgada que é deixada secar: o papel é não mais do que isso. Até hoje, esse processo é usado em projetos escolares e em um artesanato simpático. Mas para quem não quer produzir o seu próprio papel, as máquinas se encarregam de jogar no mundo uma quantidade espantosa, de todos os tipos, para todos os usos. O livro, ou códex, foi um avanço importante sobre os rolos de papiro ou papel. Permite usar os dois lados e ter acesso imediato a qualquer parte do texto. Essa proeza é impossível para os rolos que só permitem uma leitura sequencial. Durante séculos, o que havia de importante para ser registrado era cuidadosamente caligrafado em papel. Fazer esse registro era uma profissão importante. Como os poucos letrados tendiam a estar na igreja, uma grande tradição de copistas de documentos ali se formou. Essa tradição tão acanhada é rompida no Ocidente, pela invenção de uma impressora com caracteres tipográficos móveis. Isso ocorre em meados do século XVI, sendo obra de Gutemberg.
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Manuscrito medieval. Caixa com tipos de impressão tradicionais, em chumbo. Apoiada nela está a armação
onde são montados e fixados. Este sistema de impressão, muito próximo do que
inventou Gutenberg, foi progressivamente abandonado, a partir de meados do século XX.
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Não obstante, a Coreia já havia inventado algo parecido duzentos anos antes. Esse avanço torna possível a difusão de livros, em uma escala então inimaginável. Vivendo antes de Gutemberg, o enciclopédico Leonardo da Vinci tinha apenas quarenta livros. Até muito recentemente, o livro era o melhor que tínhamos como ferramenta de armazenamento de informações. Com a microfotografia, passa a ser possível usar microfilmes como arquivos. É um avanço, mas dura pouco, pois aparecem soluções melhores. De fato, outras formas de armazenamento se desenvolvem. O disco e o filme não deixam de ser maneiras de guardar informação, no caso, som e imagem. Progressivamente, a informática vai se tornando a ferramenta mais eficaz para guardar e recuperar informações. Durante muito tempo, o desafio era armazenar a informação. Recuperar o que havia sido guardado era relativamente fácil, porque a capacidade de armazenar era muito limitada. Mas quanto mais se guarda, mais complicado fica achar nos arquivos o que precisamos. Com o avanço da velocidade e capacidade de armazenamento de informações, os computadores
Oficina de impressão com tipos de madeira e a sua forma de montagem.
acima, à esquerda: Gutemberg
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começam a ser usados explicitamente com o objetivo de virar uma grande memória, ou biblioteca. Na verdade, independentemente do que mais possam fazer, se convertem na forma mais eficiente e econômica de guardar e acessar qualquer tipo de informação – até fotografias. Há mesmo projetos de digitalizar todos os livros publicados em toda a história da humanidade. Tecnicamente, é até fácil. Os problemas são legais: a propriedade intelectual e suas complicações. Em si, a digitalização já se configura como uma gigantesca revolução. E a cada dia o megabyte de armazenagem se torna mais barato. Passamos da gravação em fio metálico, para a fita magnética, para os discos flexíveis e rígidos, para os discos ópticos, para as memórias de estado sólido, com o pendrive se tornando um objeto do cotidiano. O passo seguinte é migrar para a nuvem.
A beleza das ferramentas informáticas é que tanto impressionam pela sua capacidade de guardar a baixo custo como oferecem mecanismos de recuperação que nem sequer podíamos imaginar antes dela. Apenas para ilustrar, em uma biblioteca, os livros estão por assunto, jamais por tamanho ou data de publicação. Mas se estão por assunto, não podem estar por ordem alfabética do autor. Com a informática, podemos consultar a biblioteca por qualquer desses critérios, ou por nenhum. Se desejarmos um livro, o computador vai buscá-lo exatamente na estante em que está. Para resumir, o armazenamento e a recuperação oferecem uma história que se acelera nos últimos anos. O uso de bits e bytes se torna a forma mais barata e mais fácil de guardar e ter acesso ao que quer que seja.
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Digitalização do acervo
documental de periódicos de
Santa Catarina (FCC E UDESC).
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