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O VENTO SOPRA, MAS A VELA TEM QUE ESTAR ESTENDIDA

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ABERTURA

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O VENTO SOPRA, MAS A VELA TEM QUE ESTAR ESTENDIDA

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A decisão de ir viver em São Paulo, ditada inicialmente pelo desejo de “romper” com o fato de ser estrangeiro, me levou a uma nova opção de vida: testemunhar os valores do Evangelho vivendo com o povo mais humilde, como operário. Sem perder, pelo contrário dando novo impulso à escolha fundamental de minha vida. A proximidade com Padre Angelo Gianola, conterrâneo e missionário do PIME, presente no Brasil já há muitos anos, foi o “vento” que me orientou na nova escolha. Ao mesmo tempo, no contato cotidiano com a vida, o trabalho, as dificuldades, os problemas, a luta do mundo operário no difícil contexto político brasileiro, a “vela” da minha vida se abriu cada vez mais. Pude definir com mais clareza e determinação o objetivo de uma vida operária, inserida na realidade de uma Igreja popular, comprometida em viver e testemunhar o

espírito renovador do Concilio Vaticano II. Durante os primeiros meses fiquei morando com Padre Angelo. Em março de 1971 arranjei um emprego numa metalúrgica de autopeças trabalhando como operador de torno. A partir daí me inscrevi no curso noturno do Senai de torneiro-mecânico. De imediato comecei a participar da oposição metalúrgica de São Paulo, as assembléias... Coincidentemente, nesta época começavam a se formar os primeiros núcleos de Pastoral Operária (PO) em São Paulo. A PO era constituída de grupos de operários cristãos que buscavam viver sua fidelidade ao Evangelho no meio operário. Isso se dava através de grupos de reflexão, que, partindo de textos evangélicos, buscava formas concretas de atuar no meio operário. Nessa época de regime militar o objetivo principal da luta operária era reconquistar a direção dos sindicatos das mãos dos ‘pelegos’ que estavam a serviço do regime, para transformá-los novamente no principal instrumento da organização e da luta da classe trabalhadora. Deste período eu lembro dois momentos que me marcaram. O primeiro foi junto ao movimento operário, participando das assembléias da categoria na sede do Sindicato dos Metalúrgicos. Foi quando comecei a perceber a real dimensão do contexto operário onde eu me encontrava, o que significava pertencer e participar daquele universo, foi aí que comecei a ter clara a visão de classe. Fui vivenciando os valores da classe trabalhadora que eram opostos aos valores do capitalismo defendidos pelas

lideranças sindicais da época. Valores de solidariedade, contrapostos ao individualismo; do desapego às coisas materiais em contraposição ao consumismo desmedido; o respeito à pessoa humana ao invés do lucro a todo custo; valores ligados ao trabalho humano como capacidade criativa em contraposição ao trabalho que visa unicamente o lucro. O outro momento significativo foi o encontro com D. Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo. Era mês de abril de 1972. Me chamaram para participar de uma reunião de membros da PO com o cardeal, em sua residência. Nos encontramos aproximadamente trinta pessoas e ele nos acolheu com a amabilidade que lhe era característica. O tema do encontro foi o seguinte: D. Paulo nos colocou que no momento de preparar a homilia para a missa de 1º de maio daquele ano ele se perguntou: “o que é que eu devo dizer aos trabalhadores de São Paulo no dia 1º de maio?” E a resposta a esta pergunta foi uma outra pergunta: “o que é que os trabalhadores esperam que o pastor diga a eles no dia 1º de maio?”. Então ele nos reuniu pra conversar sobre isso. Naquela noite preparamos junto com ele a homilia de 1º de maio. O impacto daquele encontro me marcou para o resto da vida, porque foi um gesto de abertura, de respeito à pessoa humana, de sensibilidade pastoral que, infelizmente, não é comum encontrar em nossos pastores. Essa é a razão pela qual daí pra frente minha vida ficou marcada definitivamente pelo compromisso com a classe trabalhadora e com a igreja dos pobres. O envolvimento direto com o movimento sindical

e com a vida operária naquela época significava colocarse numa atitude de enfrentamento com o regime. Todos aqueles que participavam desta luta eram vistos como subversivos e portanto inimigos do regime militar. Com tudo o que isso implicava de riscos pessoais e familiares, segurança pessoal, estabilidade no emprego... Por causa deste compromisso em 1974 enfrentei a prisão e a tortura. A experiência que vivi na prisão me ajudou quando fui seqüestrado pelo esquadrão da morte, quinze anos depois em Recife. Naquela ocasião revivi a situação de estar frente a pessoas que podiam fazer de mim o que quisessem, sabendo que ficariam totalmente impunes. A postura de não submissão e ao mesmo tempo de ‘tranqüilidade’ que consegui manter naquela circunstância foi resultado também do aprendizado nas sessões de interrogatórios e torturas sofridas no DOICODI de São Paulo durante a ditadura militar. A idéia de vir para o Nordeste foi assunto de várias conversas entre mim e Djanira. Mas até então eram apenas projetos, não existia algo muito concreto ainda. Em janeiro de 1979 recebemos a visita de um amigo do movimento operário3 de São Paulo acompanhado de um homem que não conhecíamos, que vinha de Recife e procurava em São Paulo alguém que estivesse disposto a trabalhar no Centro de Trabalho e Cultura (CTC) na capital de Pernambuco. Foi assim que conhecemos Carlúcio Castanha Júnior. Ele era militante político e _______________

3 Alcides, conhecido por Antonio. Ele era casado com Isa e vinha de Belo Horizonte foragido por causa de sua militância política lá. Em São Paulo participava do movimento sindical. Foi lá que nos conhecemos.

operário em Recife, esteve preso durante este período de ditadura por causa de seu engajamento e, por motivo de sua atuação na categoria metalúrgica em Recife ficou ‘marcado’ pelos empresários de Recife e por conta disso não conseguia emprego em lugar nenhum. Foi quando tomou a decisão de ir para São Paulo trabalhar e continuar sua participação na luta operária. Era ele quem estava lá naquele 25 de janeiro (feriado, aniversário de São Paulo). Ele que fez o convite para virmos ao Recife. Naquele período eu tinha um bom emprego na Wallita e Djanira estava se formando como assistente social, trabalhava no SOF (Serviço de Orientação da Família) e também estava no sétimo mês de gravidez de nossa terceira filha, Anaê. Conversamos bastante e analisamos os prós e os contras de aceitar o convite, mas antes de tomar a decisão definitiva eu resolvi viajar ao Recife para ver se a proposta feita ‘valia a pena’. Djanira disse que só aceitaria a mudança se também tivesse um trabalho garantido para ela em Recife. Falei com meu chefe sobre a proposta que havia recebido, solicitei uma semana de licença e, aproveitando o período de carnaval, eu vim ao Recife, passei uma semana, conheci o CTC e também descobri que na arquidiocese havia um possível trabalho para Djanira. Voltei a São Paulo, esperamos o nascimento de Anaê, pedimos demissão de nossos empregos e arrumamos a mudança. Optamos pelo Nordeste. Estávamos ambos bem empregados, ganhando salários razoáveis, com um círculo de relações bem estabelecido e era o momento de maior

crescimento no movimento sindical... Mas, optamos pelo Nordeste porque acreditávamos que poderíamos contribuir muito mais lá, com as lutas populares. O Nordeste era conhecido como a região mais ‘carente’ do Brasil e achávamos que poderíamos colocar nossas experiências, potenciais e capacidades a serviço do povo daqui. O primeiro impacto foi com o mundo operário do Nordeste através dos operários que freqüentavam todas as noites o CTC, no curso de Ajustagem Mecânica. Uma coisa me chamou atenção desde o começo: como os empresários daqui desrespeitavam as mínimas regras das relações de trabalho. Um fato relacionado a isto me deixara indignado na época: Abraão, um aluno meu do curso, havia sido demitido da empresa em que trabalhava e não recebera nenhuma indenização por conta da demissão. A empresa lhe disse que ele procurasse seus direitos na justiça! Como os processos trabalhistas sempre eram muitos demorados, os trabalhadores acabavam fazendo um acordo e recebiam muito menos do que eles tinham direito. Essa prática era muito comum e também demonstrava como o sindicato da categoria era ineficiente. Nesses primeiros meses tive contato com um grupo de metalúrgicos que estava se organizando para tirar o sindicato das mãos dos ‘pelegos’. Foi quando conheci o grupo do ‘Zé Ferrugem’. Fui me engajando na luta junto a eles. Saíamos de madrugada com o nosso fusquinha panfletando em todas as fábricas desde o município de Pontezinha (Cosinor – Companhia Siderúrgica do Nordeste), ao sul de Recife até o de Igarassu (Motogear),

ao norte da capital para ganhar o apoio da categoria para as eleições sindicais previstas para aquele ano. Graças a este trabalho de mobilização e organização, a chapa do ‘Zé Ferrugem’ ganhou as eleições. Foi o começo da reconquista dos sindicatos da região das mãos dos pelegos. O trabalho no CTC se tornou para mim um espaço privilegiado de conhecimento e de contato com a classe trabalhadora. O encontro cotidiano e intenso durante dez meses com um grupo de uma centena de trabalhadores possibilitou um envolvimento progressivo com os problemas, as lutas e a organização da classe trabalhadora da região. Porque paralelamente ao ensino profissionalizante havia um trabalho de formação política e cidadã que permitia conhecer e participar mais de perto das angústias e dos anseios dos trabalhadores. O meu engajamento junto à classe trabalhadora local motivou o convite de D. Helder – feito nesta mesma época – para colaborar no trabalho pastoral da Diocese incentivando os trabalhadores cristãos através da Pastoral Operária. Como surgiu este convite, se nem Dom Helder, então arcebispo de Olinda e Recife, me conhecia e nem eu conhecia D. Helder pessoalmente, me perguntei! Ainda em São Paulo, um ano antes de vir para Recife, um padre da Diocese daqui me conhecera num dos encontros da PO. Tendo tomado conhecimento de minha transferência para Recife ele sugeriu ao Dom que ele me fizesse este convite. Dom Helder me convidou para uma conversa, onde manifestou sua preocupação pastoral com os problemas da classe trabalhadora e me propôs de colaborar com a diocese nesta atividade.

Na noite de Natal de 1967 (eu nem sabia ainda que viria ao Brasil) eu fui com um padre amigo meu, celebrar a missa do Galo num pequeno vilarejo nos Appeninos italianos (uma cadeia de pequenas montanhas que corre ao longo da Itália). Enquanto esperávamos chegar a meia noite para iniciar a missa assistíamos um programa de televisão que falava do Nordeste brasileiro onde a figura de destaque era Dom Helder. A imagem dele e força das suas palavras denunciando a situação de injustiça daquela região me marcaram profundamente. Quando cheguei ao Brasil eu já tinha uma idéia muito marcante e positiva de Dom Helder. Tudo o que eu imaginava a respeito dele foi confirmado no primeiro encontro que tive com ele. A figura de um homem franzino e pequeno de estatura, mas que falava com uma força e um entusiasmo fora do comum! E daquele primeiro encontro nunca esqueço o final: quando terminamos a conversa ele levantou junto comigo e me acompanhou até a saída e ficou esperando no portão aberto até eu dobrar a esquina.Quando anos depois fui trabalhar na Obras de Frei Francisco, na Igreja das Fronteiras, onde Dom Helder morava, descobri que este seu gesto era comum, ele fazia isto com todo mundo: desde a maior autoridade até a mais humilde pessoa ele sempre acompanhava até a saída, demonstrando seu respeito com a pessoa humana. Após três anos de atuação na Pastoral Operária de Recife, em 1982, surge o convite para integrar a Comissão de Justiça e Paz. Atendendo ao apelo do papa Paulo VI em 1976, Dom Helder criou na Diocese de Olinda e Recife a Comissão de Justiça e Paz, instrumento da Igreja na

defesa dos Direitos Humanos. A primeira grande tarefa da comissão era de denunciar as atrocidades cometidas pela ditadura militar contra milhares de cidadãs e cidadãos que se opunham ao regime, além disso a comissão cuidava de defender os que estavam nas prisões e proteger os que eram procurados pelo regime. Com o fim do período mais duro da repressão as atenções da comissão se voltaram para os problemas da moradia: frente às ocupações urbanas e conseqüentes ações de despejo com repressão policial, a comissão intervinha para defender o direito dos cidadãos a ter um lugar onde morar. Com muita freqüência o próprio Dom Helder se fazia presente no lugar do conflito, respaldando desta forma o trabalho da comissão. Uma terceira fase de atuação da Comissão de Justiça e Paz deu prioridade à denúncia da violência policial e a uma série de ações legais em defesa das vítimas desta violência, principalmente contra crianças e adolescentes, fato que chamava atenção a nível local e internacional. Pois é neste período (19751980) que aparecem nas periferias das grandes cidades vários grupos de extermínio, conhecidos também como “esquadrões da morte” e a comissão se posiciona publicamente, denunciando e cobrando uma intervenção mais enérgica do poder público com relação a atuação destes grupos. Todo trabalho desenvolvido na comissão, primeiro como membro e depois como presidente, me permitiu conhecer mais de perto e de maneira mais intensa a

realidade da pobreza no Nordeste. Vivenciar de maneira mais direta e concreta os grandes contrastes sociais do Recife que sem dúvida retratam a realidade da maioria das grandes cidades brasileiras. Foi a atuação na comissão que causou um confronto ideológico, pastoral e de compromisso de fé com a autoridade eclesiástica local que assumiu o comando da diocese depois de Dom Helder, Dom José Cardoso Sobrinho. Acredito que também por conta da atuação na comissão, em 1990, Dom Helder me convida para coordenar os projetos sociais que eram desenvolvidos pela “Obras de Frei Francisco”, entidade social por ele criada ao deixar o comando da Diocese em 1985. Quando em 1990, Dom Helder lançou aqui no Recife a “Campanha Ano 2000 sem Miséria” surgiu uma nova oportunidade de engajamento na luta mais ampla em defesa da cidadania. As diversas iniciativas que foram surgindo na “Obras de Frei Francisco” na luta contra a miséria e a fome passaram a integrar a campanha nacional promovida pelo sociólogo Betinho “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida”. A minha atuação na “Obras” e a participação no Comitê da “Ação da Cidadania” foi se encerrando à medida que, por incentivo do próprio Dom e apoio de um grupo de amigos iniciamos um novo projeto: a Comunidade Emaús no Recife.

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