Dinossauros: Novas Técnicas, Velhos Mitos

Page 1

Dinossauros: Novas Técnicas, Velhos Mitos Luís Azevedo Rodriques'

o presente

texto decorre da palestra proferida no dia 31 de Outubro de 2009, no Museu de Arqueologia da Amadora. Como tal, não pretende ser uma cópia integral e fidedigna do que foi apresentado, antes sim uma breve súmula das questões abordadas, tanto mais que muito do material audiovisual exposto não é aqui apresentado. Este artigo tem como objectivo, mais do que responder a muitas questões que surgem no âmbito da Paleobiologia de Dinossauros, ser uma breve resenha de dois pontos distintos do conhecimento em dinossauros, servindo de introdução quer aos mais recentes avanços científicos e tecnológicos no estudo dos dinossauros, quer ao entendimento da sua importância social. A primeira parte abordará sobretudo questões científicas do campo de conhecimento que é a Paleobiologia de Dinossauros, com particular atenção às técnicas mais recentes de investigação nesta área do conhecimento. A segunda parte deste texto lidará com o papel que os dinossauros desempenham na cultura popular, em campos tão distintos como o cinema, a música ou a mitologia. ~

1 NOVAS TÉCNICAS Antes de se exemplificarem as mais modernas técnicas de estudo destes animais extintos é importante responder à seguinte pergunta: o que são dinossauros? Os dinossauros são um grande grupo de animais, quer em termos de diversidade (número de espécies), quer em disparidade morfológica (tamanhos e formas corporais), que ocuparam praticamente todos os ecossistemas terrestres durante o Mesozóico (aproximadamente entre os 250 e os 65 milhões de anos). Estes animais apresentaram um grande número de modos de vida - havia-os carnívoros, como o famoso Tyrannosaurus, ou herbívoros, como o Iguanodon; os que viviam em grupo, como alguns saurópodes, ou os que, aparentemente, viviam de forma solitária; os que se movimentavam de forma bípede, como o Oeinonychus, ou os que eram quadrúpedes, como o Tríceratops. Se uma das características mais referidas quando se fala de dinossauros é o seu enorme tamanho, pois existiam dinossauros com mais de 30 metros de comprimento e centenas de toneladas, como o Argentinosaurus [1], também é certo que existiram vários dinossauros de tamanho muito mais reduzido, como o Mícroraptor, com poucas dezenas de centímetros de comprimento [2].

1

Paleontólogo (Ph.D.), professor

Ciência Ao Natural (blog) - http://cienciaaonatural.net laz.rodrigues@gmail.com

Rodrigues, L.A. (2011) Dinossauros: Novas Técnicas, Velhos Mitos. Escola Aberta do Património. Comunicações Janeiro de 2009 a Novembro de 2010. Câmara Municipal da Amadora. ISBN 978-972-8284-70-1.

101


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

102 Figura 1a) Úmero de Brachiosaurus brancai (Museu de História Natural de Berlim, Alemanha) comparado com úmero do autor.

b) Úmero de Gyposaurus sinensis (Instituto de Paleontologia de Vertebrados e Paleoantropologia, Pequim, China). Imagens - Luís Azevedo Rodrigues

De hábitos exclusivamente terrestres, à excepção dos grupos que foram antepassados das actuais aves, os dinossauros são muitas vezes confundidos com outros animais seus contemporâneos, como os pterossauros - répteis voadores e os ictiossauros, plesiossauros ou mosassuros - estes três últimos grupos répteis aquáticos. Ao nível do parentesco biológico, os dinossauros fazem parte de um grupo de animais amniotas designado de Archosauria, que inclui, para além dos referidos pterossauros, ictiossauros ou mosassauros, também os crocodilos e as aves. O sucesso evolutivo dos dinossauros, que se estendeu por quase 200 milhões de anos, pode ser explicado por vários factores, entre os quais e apenas a título de exemplo, a locomoção mais eficiente do que a de outros grupos contemporâneos e o desenvolvimento de tamanhos gigantescos. Este enorme sucesso biológico pode ser igualmente atestado pela vasta' diversidade de espécies e géneros que a Paleontologia já identificou'. Desde que, em 1824, foi proposto o nome do primeiro dinossauro, Mega/osaurus bucklandí, por William Buckland (1784 - 1856), os últimos quase 200 anos foram Alguns autores, utilizando modelos matemáticos, estimam que a totalidade de géneros de dinossauros nãoavianos, descobertos e por descobrir, deverá aproximar-se dos 1800 [4]. 2


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios"

28 de Novembro de 2009

de constante descoberta, descrição e aprofundamento de conhecimento, quer da anatomia, comportamento, alimentação ou mesmo da locomoção destes animais. Em seguida, apresentarei alguns exemplos de investigações recentes que têm contribuído para um maior conhecimento, quer da biologia, quer dos comportamentos, de um dos grupos animais que mais fascínio exerce sobre o ser humano: os dinossauros. Para além do cada vez maior número de espécies que todos os anos são descritas e publicadas, existem áreas da Paleontologia de dinossauros que não lidam directamente com a classificação e descrição de novas espécies. Esse grupo de conhecimentos resulta, por vezes, de campos do conhecimento directamente relacionados com o ser humano, como a Medicina, e envolvem cientistas que nunca antes imaginaram poder investigar restos fossilizados. O enorme fascínio que a maioria das pessoas tem pelos dinossauros, bem como o facto de sermos animais essencialmente visuais, originaram que uma das áreas científicas que tivesse nos últimos anos uma grande aplicação na Paleontologia fosse a Imagiologia.

103

ARCHOSAU

AMNIOTA

Figura 2 Relações filogenéticas de Amniota (cladograma sim

Recriar, reconstituir e simular quase todos os aspectos o parece ser a grande "moda" entre os dinossaurólogos. A ca a o menor custo dos equipamentos que permitem virtualizar e detalhe os restos fossilizados têm contribuído para esta tendên

e odri ues 2009.


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

Um conjunto de técnicas de análise de resistência de materiais, inicialmente utilizadas na engenharia e genericamente denominadas Análise de Elementos Finitos, tem sido aplicada em fósseis de dinossauro. Os trabalhos de Emily Rayfield [3] têm permitido, por exemplo, conhecer que áreas da mandíbula do Allosaurus estariam sujeitas a maiores tensões quando este carnívoro atacasse uma presa. Esse conhecimento sobre as forças associadas a uma mordidela permitem que os paleontólogos infiram padrões de comportamento de ataque, contribuindo, por exemplo, para que o modo de vida destes animais seja melhor compreendido.

104

Uma outra área em que a imagem tridimensional dos fósseis tem sido utilizada é a da reconstituição de áreas de tecido que não ficaram preservadas. Zonas do cérebro ou do ouvido interno dos dinossauros têm sido profusamente analisadas pela equipa de Larry Witmer [5]. Este investigador tem utilizado a ressonância magnética como metodologia de visualização e posterior análise funcional, procurando, por comparação e analogia com grupos de animais actuais e filogeneticamente próximos, reconstituir áreas do sistema nervoso destes animais. Incógnitas como o tamanho e funções cerebrais de vários dinossauros, ou mesmo a sua capacidade olfactiva, a postura do crâneo ou mesmo a capacidade de equilíbrio, têm sido estudadas pela equipa deste investigador da Universidade do Ohio. Todas as informações neurológicas, até há poucos anos absolutamente inacessíveis sem as técnicas imagiológicas descritas, contribuem para a diversificação do conhecimento sobre os dinossauros, bem como para a inferência de padrões de comportamento nestes animais até aqui desconhecidos.

Figura 3 a) Representações do esqueleto craneal e estruturas cerebrais de vários exemplares de Amniota - dados obtidos a partir tomografia axial computadorizada (TAC). Imagem do Laboratório de Larry Witmer, Universidade do Ohio

b) Modelo tridimensional de Análise de Elementos Finitos de Alloseurus. Adaptado de Rayfield 2007 [3].

Sendo a capacidade de se movimentar um dos factores de sucesso evolutivo da maioria dos animais, compreender a locomoção é fundamental para se perceber


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

como é que os dinossauros ocuparam a maioria dos ecossistemas terrestres durante centenas de milhões de anos. A verdadeira capacidade física de músculos e tendões é uma das questões biológicas que tem sido explorada pelo Laboratório de Locomoção Animal da Faculdade de Medicina Veterinária de Londres. Para além da compreensão do modo como os animais actuais se movimentam, John Hutchison e a sua equipa têm liderado estudos de locomoção em vários grupos de dinossauros [6]. A reconstituição e simulação da anatomia locomotora destes animais têm sofrido um estudo aprofundado por parte desta equipa, contribuindo para, por exemplo, se especular se o T. rex teria ou não a capacidade de corrida que os filmes de Steven Spielberg vulgarizaram. Segundo estes autores, parece que a corrida do grande dinossauro terá sido bastante ampliada por Hollywood [7]. Para além das novas tecnologias ao serviço de uma ciência que lida com seres com milhões de anos, têm sido igualmente importantes as novas descobertas de fósseis de uma das linhas evolutivas dos dinossauros: as aves. Desde a descoberta, em 1861, do Archaeopteryx lithographica, animal que apresentava características comuns às aves e aos répteis, os paleontólogos percorreram uma verdadeira cruzada científica para provar que as aves descendiam dos dinossauros. O Archaeopteryx apresentava verdadeiras asas e penas, o que o classificava como ave, mas, simultaneamente, podia-se observar que as suas asas apresentavam garras e o seu bico tinha uma série de dentes. A partir de meados da década de 80 do século passado, várias descobertas têm completado o trajecto de parentesco entre aves e dinossauros. A maioria dessas descobertas foi feita em jazidas chinesas, mas não só. Contudo, antes de apresentar estas novas "contratações" é importante referir que tanto o Archaeopteryx, como a maioria dos exemplares chineses, procedem de um tipo especial de jazida designada, a partir do alemão, de Konservat-Lagerstatten. Estas jazidas, pelas suas características geológicas, apresentam a propriedade de preservar em detalhe estruturas frágeis como, por exemplo, asas de insecto, pêlos de mamíferos e, importante para se perceber a evolução das aves, também as penas e os seus ossos frágeis. Se o Archaeopteryx procedia de um KonservatLagerstatten da Baviera alemã, a maioria das preciosidades paleontológicas descobertas a partir de 1984, são oriundas das jazidas de Liaoning, no nordeste da China [8]. Os paleontólogos de vertebrados costumam afimar, em jeito de brincadeira, que podemos esperar quase tudo de Liaoning. A inveja salutar subjacente a este comentário não minimiza, contudo, a realidade científica excepcional que os achados de Liaoning representam, tendo servido estes para comprovar quase todas as etapas evolutivas dos dinossauros para as aves, numa realidade científica sem precedentes. Confuciusornis, Changchengornis, Eoconfuciusornis ou Sinornis são algumas das espécies de aves primitivas que foram descobertas nas jazidas chinesas, podendo as morfologias corporais das aves actuais ser observadas nestes exemplares fósseis. Para além das penas, outras características anatómicas, como um bico córneo, banal nas aves da actualidade, pode ser observada pela primeira vez no grupo de aves primitivas a que pertencem Confuciusornis ou Eoconfuciusornis,

105


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

espécies que viveram num intervalo temporal que se estendeu entre os 120 e os 131 milhões de anos. A presença de penas assimétricas, características de um voo activo, pode já ser observada nalgumas aves primitivas de Liaoning. Apesar da enorme diversidade de aves primitivas provenientes da China, outros países têm contribuído para esta saga de conhecimento da transição evolutiva dinossauros-aves. Na jazida de Las Hoyas, em Cuenca, Espanha, foram descobertos os vestígios que permitiram classificar outra ave primitiva Iberomesomís romeralí [9]. Esta espécie contribuiu para a compreensão dos mecanismos de voo das primeiras aves, já que apresenta o que se designa por fúrcula, estrutura óssea que permite que os membros anteriores das aves executem os movimentos de voo semelhantes aos das aves modernas. Iberomesomís apresentava também as vértebras caudais distais fundidas, tal como as aves modernas. Mas outros exemplares de aves primitivas foram descobertos e descritos pela equipa de paleontólogos da Universidad Autónoma de Madrid, como Concomís lacustrís e Eoalulavís hoyasí. Recentemente, Las Hoyas revelou outra das etapas evolutivas, desta vez não das aves, mas ainda dos dinossauros não-avia nos, com a apresentação de Concavenator, o mais antigo dinossauro com evidências de penas na sua anatomia [10].

106

Figura 4 sanctus, esquerdo) superior adaotada

a) Esqueleto de Confuciusomis reconstituição (canto inferior e detalhe de pena caudal (canto direito). Imagem compósita de Chiaooe et aI. 1999.

b) Crâneo e mandíbula de Eoconfuciusomis Imagem de Zhang et aI. 2008.

zhengi.

Se os exemplos de aves primitivas apresentados e respectiva sequência de características anatómicas próximas às modernas atestam parte do percurso


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

evolutivo destes animais, também é possível verificar nos dinossauros ditos nãoavianos algumas particularidades anatómicas comuns à linhagem aviana, das quais saliento a presença de penas em várias espécies de dinossauros. A maioria dos não-especialistas apontaria a presença de penas como condição suficiente para a classificação de um animal como ave, já que esta estrutura não é encontrada actualmente em mais nenhum grupo zoológico. Contudo, o registo fóssil de penas em grupos de dinossauros não-avia nos tem vindo a crescer, quer na quantidade de dinossauros descritos, quer na sua antiguidade. Dinossauros como Sinosauropteryx, Shuvuuia, Beipiaosaurus, Caudipteryx, Sinornithosaurus ou Microraptor apresentavam penas, de diversos tipos e em zonas corporais distintas. Microraptor, dinossauro datado de há 128 milhões de anos, revelava penas não só nos membros anteriores, mas também nos membros posteriores, avançando alguns paleontólogos que este dinossauro poderia ter apresentado um padrão de voo planado semelhante ao observado em alguns mamíferos planadores actuais. Tanto o registo paleontológico das aves primitivas, como o dos dinossauros com penas, contribuíram para que o processo de evolução das penas fosse melhor conhecido. Os investigadores Richard Prum e Alan Brush, da análise do desenvolvimento embrionário das penas em aves actuais, foram capazes de identificar quatro etapas da formação daquelas estruturas, desde os precursores das penas até às penas propriamente ditas [11l. Estes investigadores foram capazes de reconhecer cada uma dessas etapas do desenvolvimento embrionário das penas e atribui-lo a um tipo particular de dinossauro emplumado. Assim, o desenvolvimento embrionário das penas actuais parece, de algum modo, reconstituir o percurso evolutivo dos dinossauros não-avia nos e do aparecimento de estruturas tão importantes como as penas. Outra das questões paleontológicas ainda por esclarecer cabalmente é o do aparecimento do voo. Esta capacidade das aves, que, como vimos, não são mais do que dinossauros actuais, permitiu-lhes serem o grupo de vertebrados mais diversificado que existe hoje em dia, à excepção dos peixes. Actualmente existem duas teorias que procuram explicar de que forma os dinossauros iniciaram o seu percurso pelos ares - assumindo que o voo apareceu neste grupo e não já nas aves. A primeira hipótese é a teoria do dinossauro corredor, ou seja, o dinossauro já com penas ou plumas que, na perseguição de uma presa ou em plena fuga de um perseguidor, efectuaria pequenas distâncias a planar. Estes períodos afastados do solo ofereceriam aos dinossauros uma vantagem evolutiva, quer sobre as eventuais presas, quer sobre os predadores. A outra explicação, a do dinossauro trepador, justifica o aparecimento do voo pelo planamento de um dinossauro a partir de um topo de árvore, para onde teria perseguido uma presa ou, simplesmente se escondera de um predador. Desta forma, os dinossauros utilizariam esse ponto alto como local de partida para as suas primeiras experiências aéreas. Ambas as explicações têm apoiantes e detractores e, para outros paleontólogos, as duas teorias não são mutuamente exclusivas. O estudo que apresento em seguida apoia uma delas e foi efectuado utilizando aves actuais.

107


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009 Tianyulong Psittacosaurus

Sinomithosaurus Anchiomis Sinosauropteryx Beipiaosaurus

B

A

Caudipteryx Protarchaeopteryx Microraptor Anchiomis

Epidexipteryx

Sinomithosaurus Beipiaosaurus

c

r

Protarchaeopteryx Sinomithosaurus Caudipteryx Anchiomis Dilong

D

Epidexipteryx

r E

F

H

Figura 5 Morfotipos de penas conhecidos em dinossauros não-avianos. Imagem adaptada de Xu & Guo 2009. 108

o grupo

de investigação de Kenneth Dial avaliou uma espécie de perdiz (Alectoris chukar) a fim de compreender de que forma o voo dessas aves actuais se desenvolveria, desde a fase cria até ao adulto [12]. Estas aves, desde fases muito precoces do seu desenvolvimento, utilizam o que se classificou como "voo assistido", ou seja, a propulsão gerada pelas suas asas é utilizada para aumentar a tracção em troncos de árvores, por exemplo. Assim, Dial e a sua equipa inferiram que este tipo de comportamento justifica uma das teorias para o aparecimento do voo: a teoria do dinossauro planador. Apesar de o que se sabia sobre dinossauros no século XIX ser uma ínfima parte do que qualquer leigo conhece actualmente, podemos também assegurar que há muito por ser feito, seja ao nível da reconstituição de hábitos e comportamentos, seja ao nível das relações de parentesco entre alguns grupos de dinossauros, a par de muitas outras questões científicas que surgem na Paleontologia de Dinossauros.

2 VELHOS MITOS Um dos motivos pelos quais a paleontologia de dinossauros parece exercer uma tão grande atracção quer sobre os adultos, quer sobre os mais novos, parece estar associado ao fascínio pelo "Aventureiro Explorador". Explico: a maioria das descobertas paleontológicas remete para um imaginário de zonas inóspitas e desérticas, onde a civilização parece não ter querido chegar e sítio no qual aventureiros destemidos enfrentam as adversidades da Natureza, como os


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

contratempos humanos. Há, assim, associado aos dinossauros, um lado de aventura e descoberta, de perigo e de revelação de mundos desaparecidos ou desconhecidos. A faceta Indiana Jones a que o paleontólogo de dinossauros é associado, voluntária ou involuntariamente, não é de todo indevida, já que na origem dessa personagem esteve um investigador que descobriu dinossauros. Nos anos 20 do século passado, e ao serviço do Museu Americano de História Natural, Roy Chapman Andrews (1884-1960) organizou a primeira de várias expedições americanas ao deserto de Gobi, na Mongólia. Andrews tinha inicialmente o objectivo de explorar áreas geográficas que pudessem ter sido berço da humanidade, suspeitando da importância da Mongólia para esta questão. As quatro expedições, iniciadas em 1922, integravam, para além dos camelos autóctones das planícies mongóis, vários Ford's T que permitiram a pesquisa das vastidões de um dos desertos mais inóspitos do mundo. Numa das suas fotografias mais emblemáticas, Andrews apresenta-se de chapéu e carabina, contemplando a vastidão do deserto. Roy Chapman Andrews poderia ser a principal fonte de inspiração dos criadores da personagem Indiana Jones - ambos eram arqueólogos, aventureiros de espaços longínquos e tinham um chapéu característico. A principal diferença entre a personagem Jones e o homem Andrews é que este último descobriu vários dinossauros, entre os quais o Ve/ociraptor e o Protoceratops, bem como ovos e ninhos de dinossauro. 109

Figura 6 Roy Chapman Andrews (1884-1960). Imagem adaptada de Fastovsky & Weishampel 2009.

Ao Protoceratops, descoberto pelas expedições de Chapman Andrews na Mongólia, está associada uma teoria que une os dinossauros e a mitologia grega. Adrienne Mayor, historiadora e antropóloga americana, propõe, no seu livro "The First Fossil Hunters", que na origem da figura mitológica Grifo terão estado os dinossauros. Como? No séc. VII A.C., os gregos estabelecem contactos com


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

nómadas Citas, exploradores de ouro no deserto de Gobi. Estes povos da Ásia central relatavam aos estrangeiros a existência de um monstro protector das reservas do metal dourado, com cabeça e asas de águia num corpo de leão - é o nascimento da lenda do grifo na cultura grega [13]. É enorme a semelhança morfológica entre os restos de Protoceratops, muito abundantes no deserto de Gobi, e a figura mitológica do grifo o que poderá explicar, segundo Mayor, que os primeiros gregos (desconhecedores dos dinossauros) tenham tomado conhecimento dos seres do Mesozóico muito antes de Richard Owen os formalmente propor no século XIX. O imaginário de aventura expedicionária tem sido perpetuado desde que o grande público tem conhecimento dos dinossauros, com várias expedições de paleontólogos a locais tão inóspitos e desconhecidos como a Patagónia, África e índia, entre muitos outros. Todos esses lugares apresentam características comuns: desconhecidos, desabitados e com condições de vida muito difíceis para o comum dos mortais. Ainda assim não tão difíceis como aquelas enfrentadas por dois dos "pais" da paleontologia de dinossauros: Othniel Charles Marsh (18311899) e Edward Orinker Cope (1840-1897).

110

Cope e Marsh lutaram científica e (quase) literalmente durante vários anos pelo pódio de quem encontraria e descreveria o maior número de espécies de dinossauros, numa batalha paleontológica que se designou de " As Guerras dos Ossos". Entre os resultados desta contenda, o mundo pôde contar com centenas de novas espécies de dinossauros e mamíferos. Curioso é o facto de, após se terem conhecido em Berlim, Cope e Marsh terem organizado em 1868 uma expedição conjunta de prospecção de dinossauros. Há quem afirme que, depois do regresso das jazidas, Cope viria a descobrir que Marsh havia subornado trabalhadores da expedição para que estes lhe enviassem os restos fossilizados para Yale [14]. A luta entre os dois paleontólogos acabava de nascer. A rivalidade entre estes dois vultos da paleontologia parece ser justificada não só pela sua enorme diferença de personalidades, mas também pelos seus percursos de vida. Marsh, originário de famílias ricas, pertencia à elitista Universidade de Yale e era dotado de um carácter metódico, calmo e conservador. Cope, pelo contrário, tinha origens humildes, trabalhava para a Academia de Ciências de Filadélfia e era absolutamente impulsivo e emotivo, tendo, por exemplo, publicado o seu primeiro artigo científico, sobre salamandras, aos 18 anos. Como qualquer cientista famoso, também Cope e Marsh têm as suas Leis Paleontológicas. A Lei de Marsh atesta que, em média, se verifica um aumento do tamanho cerebral ao longo de uma linhagem de aves ou mamíferos [15]. Por exemplo, se uma determinada espécie actual de mamífero ou ave apresentar um certo volume cerebral o seu antepassado apresentaria um volume menor, em média. A Lei de Cope atesta que se pode observar um aumento do tamanho corporal ao longo de uma linhagem de um grupo animal [16]. Esta lei, formulada em 1896, não é consensual nos dias que correm. Entre as técnicas de confronto adoptadas pelas duas equipas contam-se explosões em jazidas acabadas de prospectar, a fim de que os adversários não as pudessem já trabalhar; acordos com as tribos de índios da região, para facilitar a


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

prospecção nas suas terras e também evitar que os adversários o pudessem fazer.

Figura 7 Edward Drinker Cope (1840-1897) e Othniel Charles Marsh (1831-1899). Imagem adaptada de Fastovsky & Weishampel 2009. 111

Toda esta sene de eventos contribuiu ainda mais para que as expedições e descobertas de dinossauros estejam envoltas numa aura de fascínio e aventura. A primeira vez que um dinossauro fez a sua estreia no mundo do cinema ocorreu muito antes de Spielberg ter estreado Parque Jurássico, em 1993. Um dos primeiros filmes de animação tinha como principal intérprete um dinossauro, de cauda e pescoço compridos, que se chamava Gertie. Esta dinossauro saurópede desfilou nos ecrãs a preto-e-branco pela mão de Winsor McCay, em 1914, sendo esta a estreia dos dinossauros no mundo do cinema. "The Valley of Gwangi" (1969) ou "When Dinosaurs Ruled the Earth" (1970), são dois exemplos em que se pode verificar tanto a sincronia existencial de homens e dinossauros, como, sobretudo, a ruptura da estabilidade social que o dinossauro vem trazer. Se na cinematografia ocidental o dinossauro é representado, de forma fiel, a cultura cinematográfica oriental, nomeadamente a japonesa, altera a anatomia do dinossauro, transformando-o numa entidade diferente. Um monstro pós-nuclear é criado e vem destruir cidades e culturas. Vários autores apontam que o monstro, Godzilla, não é mais do que um fenómeno catártico colectivo da sociedade japonesa às explosões de Hiroshima e Nagasaki. A morfologia do dinossauro é alterada, quase como um efeito de mutação de origem nuclear.


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

"I'lHEN OINOSAURS RUlEO THE EARTH" V1cTORIA VETRI ROBtN HAWDON ·1'!1R1CJ\

_,-,,

_

112

Figura 8 a) Cartaz do filme de animação "Gertie, the Dinosaur" (1914), de Winsor McCay. Imagem de autor desconhecido. Fonte: http://bit.ly/7ZusdN.

__

·__

AI.lEN ·'MOGEN

~-=.--...

HISSAU.

llIr<:>trlM~·_

••J040"",,·_ •.'hISoa:-leo.:dII"

•••••• _

••'IIIIc:-a

b) Cartaz do filme "When Dinosaurs Ruled the Earth" (1970), de Vai Guest. Imagem de Tom Chantrell. Fonte: http://bit.ly/g2785g.

o dinossauro desempenha assim, pelo menos no ocidente, um papel que era tradicionalmente representado pelo dragão, monstro que encarnava todo o tipo de mal nas culturas judaico-cristãs. A actualização iconográfica, com a substituição do dragão pelo dinossauro, não é consensual para a maioria dos investigadores, embora seja sem dúvida apelativa, encontrando-se facilmente inúmeros exemplos deste fenómeno. A influência dos dinossauros na literatura surgiu pela mão de Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes. A descoberta de uma pegada de Iguanodon fossilizada, em 1909, impressionou de tal forma Conan Doyle que o inspirou na criação de um mundo fantástico, cheio de criaturas extintas e gigantescas, na América do Sul, no seu livro de 1912" O Mundo Perdido" [17]. "O político X é um dinossauro", já todos lemos por mais do que uma vez. Este baptismo pejorativo, na maioria dos casos, pretende sublinhar o carácter ultrapassado e decadente do nomeado. Há, assim, a associação do termo dinossauro a todo o tipo de pessoas e realidades que há muito deveriam estar reformadas ou apenas desaparecidas. Incorpora-se a realidade da extinção biológica na dimensão humana, conotando-se o dinossauro com o arcaico e ultrapassado humano. Os dinossauros diversificaram-se e sobreviveram durante quase 200 milhões de anos, mas a sobranceria de um grupo de mamíferos que escreve há poucos milhares de anos, para além de biologicamente embaraçosa, é


Escola Aberta do Património - "Paleontologia. O regresso dos dinossáurios" 28 de Novembro de 2009

injusta. O ser humano apenas caminha sobre a Terra há uma pequena fracção do tempo em que os dinossauros percorreram todos os ambientes terrestres.

Referências Bibliográficas [1] Bonaparte J. & Coria R 1993. Un nuevo y gigantesco sauropodo titanosaurio de la Formacion Rio Limay (Albiano-Cenomaniano) de la Provincia dei Neuquen, Argentina. Ameghiniana 30 (3): 271-282. [2] Xu X., Zhou Z., & Wang X. 2000. The smallest known nonavian theropod dinosaur. Nature 408: 705-708. [3] Rayfield, E.J. 2004. Cranial mechanics and feeding in Tyrannosaurus Proceedings of the Royal Society ofLondon B 271: 1451-1459.

rex.

Rayfield, E.J. 2007. Finite element analysis and understanding the biomechanics and evolution of living and fossil organisms. Annual Review of Earth and Planetary Sciences 35: 541-76. [4] Wang, S.C. & Dodson, P. 2006. Estimating the diversity of dinosaurs. Proceedings of the National Academy of Sciences 103: 13601-13605. [5] Witmer, L.M, Ridgely RC, Dufeau, D.L & Semones, M.C. 2008. Using CT to peer into the past: 3D visualization of the brain and ear regions of birds, crocodiles, and nonavian dinosaurs. pp. 67-88. In Anatomical imaging: towards a new morphology Endo, H. & Frey. R (eds.). Tokyo, Japan:Springer. [6] Hutchinson, J.R & Gatesy, S.M. 2006. Dinosaur locomotion: beyond the bones. Nature 440: 292-294. [7] Hutchinson, J.R & Garcia M. 2002. Tyrannosaurus was not a fast runner. Nature 415: 1018-1021. [8] Hou, L. & Liu, Z. 1984. A new fossil bird from Lower Cretaceous of Gansu and early evolution of birds. Scientific Sinica (Series B) 27(12): 1296-1302. [9] Sanz, J.L., J.F. Bonaparte, & Lacasa, A. 1988. Unusual Early Cretaceous birds from Spain. Nature 331: 433-435. [10] Ortega F., Escaso, F. & Sanz, J.L. 2010. A bizarre, humped Carcharodontosauria (Theropoda) from the Lower Cretaceous of Spain. Nature 467: 203-206. [11] Prum, R & Brush, A.H. 2002. The evolutionary origin and diversification of feathers. The Quarterly Review of Biology 77: 261-295. [12] Dial, K. 2003. Wing-assisted incline running and the evolution of flight. Science 299: 402-404. Dial, K.P., Jackson, B.E. & Segre, P. 2008. A fundamental avian wing-stroke provides a new perspective on the evolution of flight. Nature 451: 985-989. [13] Mayor, A. 2000. The First Fossil Hunters. 361 pp. Princeton University Press, Princeton, NJ,

113


Escola Aberta do Patrim贸nio - "Paleontologia. O regresso dos dinoss谩urios" 28 de Novembro de 2009

[14] Owen, E. & Daintith, E. (eds.) 2004. The Facts on File Dictionary of Evolutionary Biology. 248pp. Facts on File, Inc. [15] Butler, A. B. & Hodos, W., 1996. Comparative Vertebrate Neuroanatomy: Evolution and Adaptation. 744pp. New York, Wiley-Liss. [16] Cope, E.D. 1896. The Primary Factors of Organic Evolution. 492 pp. Open Court Publ. Co., New York, USA. [17] Sanz, J.L. 2002. Starring T. Rex - Dinosaur Mythology and Popular Culture. 153pp. Indiana University Press. Refer锚ncias imagens

114

Chiappe, L. M., Ji S., Ji Q., & M. A. Norell.1999. Anatomy and systematics of the Confuciusornithidae (Theropoda: Aves) from the Late Mesozoic of northeastern China. Bulletin of the American Museum of Natural History, 242: 1-89. Fastovsky, D.E. & Weishampel, D.B. 2009. Dinosaurs: A Concise Natural History. Cambridge University Press, 377 pp. Rodrigues, L.A. 2009. Sauropodomorpha (Dinosauria, Saurischia) appendicular skeleton disparity: theoretical morphology and Compositional Data Analysis. Tese de Doutoramento, Universidad Aut贸noma de Madrid, Espanha. Zhang F.C., Zhou Z.H. & Benton M.J. 2008. A primitive confuciusornithid bird from China and its implications for early avian flight. Sci China Ser D, 51: 625-639. Xu, X. & Guo, Y. 2009. The origin and early evolution of feathers: insights from recent paleontological and neontological data. Vertebrata PalAsiatica 47(4): 311329.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.