Revista Noctua

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É com imensa satisfação que apresento a vocês a primeira edição da Revista Noctua, uma revista que fala, em sua essência, sobre literatura. A revista surgiu a partir de um projeto acadêmico na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), na disciplina de prática projetual em design gráfico 3, ministrada pelos professores Genilda Araujo, Murilo Scoz e em seu princípio também ministrada pela professora Gabriela Mager. Possui a literatura como sua temática principal, busca aproximar os jovens da literatura de clássicos, mostrando como a literatura pode ser interessante e que já está presente no seu dia-a-dia de alguma forma. Para isso traz tanto livros clássicos como livros contemporâneos, buscando, dessa maneira, interessar o público. Gostaria de agradecer a apoio da família, que me ouviu sempre e não deixou esmorecer ante as dificuldades do caminho. Agradecer aos amigos e colegas de curso, em especial a Adriana Villa Real e Jaislan Gregate, que estiveram presentes durante todo o processo de criação, auxiliando, dando ideias, fazendo braistorm, apontando erros e acertos. Por fim agradeço aos professores por toda a paciência, disponibilidade dentro e fora de sala de aula, e principalmente todas as críticas feitas ao trabalho durante todo o processo, pois é dessa maneira que temos a oportunidade de crescer e aprender. Na primeira edição vamos conhecer um pouco do universo visual que compreende a obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, viajar até a argentina para ler os quadrinhos da Mafalda, conhecer a vida e obra de Clarice Lispector, conversar com os atores mirins do filme A invenção de Hugo Cabret, saber mais sobre as novas formas de leitura, ver criativos cartazes para clássicos da Disney, descobrir quais os livros mais lidos e desejados, entre muitas outras matérias escolhidas para você. Boa leitura!

Ciliane Pereira


Editor: Roberto Civita Conselho Editorial: Roberto Civita (Presidente), Thomaz Souto Corrêa (Vice-Presidente), Elda Müller, Fábio Colletti Barbosa, Giancarlo Civita, Jairo Mendes Leal, José Roberto Guzzo, Victor Civita Presidente Executivo Abril Mídia: Jairo Mendes Leal Diretor de Assinaturas: Fernando Costa Diretor Geral Digital: Manoel Lemos Diretor Financeiro e Administrativo: Fabio Petrossi Gallo Diretor Geral de Publicidade: Thais Chede Soares Diretor de Planejamento e Negócios: Daniel Gomes Diretora de Recursos Humanos: Paula Traldi Diretor de serviços Editoriais: Alfredo Ogawa Diretora de Redação: Maria Rita Alonso Redatora-Chefe: Ana Cristina Gonçalves Diretora de Arte: Roberta Monteiro D’Albuquerque Editora Assistente: Fabiana Moritz Repórteres: Camila Leite, Manuella Menezes Designers: Débora Sene, Luiz Carlos Manoel CTI: Alvaro Zeni (supervisor), André Hauly, Edvânia Silva, Erika Nakamura, Juarez Macedo, Leandro Marcinari, Leo Ferreira, Regina Sano, Vanessa Dalberto, Zeca França NOCTUA ONLINE Editora Chefe: Eliana Sanches Editora: Bruna Bauer Editora assistente: Katiane Romero Webmaster: Marcos Franceschi Reportagem: Camila Gaio e Mariana Pontual Designer: Marina Cardoso Colaboradores: Larissa Drumond e Renata Sagradi (reportagem), Renata Kameda (arte) e Michell Lott (mídias sociais) Estagiários: Daniel Zito, Patrícia Soares Trigo e Rebeca Pru-

CAPA

O universo visual de Alice no País das Maravilhas

dente (arte), Fernanda Jacob (reportagem) e Julyane Lima (programação) Conselho de Administração: Roberto Civita (Presidente), Giancarlo Civita (Vice-Presidente), Esmaré Weideman, Hein Brand, Victor Civita Presidente Executivo: Fábio Colletti Barbosa www.noctua.com.br

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Canto da leitura • Mudanças na leitura, tecnologia digital e conteúdo Biografia • Clarice Lispector Projeção • A invenção de Hugo Cabret Matéria de Capa • O universo visual de Alice no País das Maravilhas Entrevista • Ferreira Gullar fala sobre a arte de criar Ilustração • Cartazes de clássicos Disney por Rowan Stocks-Moore

7 Top 10 • Melhores personagens da literatura brasileira 8 Acervo • Dom Casmurro 9 Lançamento • Os homens que não amavam as mulheres 10 Quadrinhos • Mafalda 12 Luis Fernando Veríssimo • Outra Alexandria 14 Fábula • O leão apaixonado 16 Jovem escritor • Helen Bampi

Livros • Mais recentes, lidos, lendo, quero ler 56 Cristovão Tezza • Viagem 60 Poesia • Vinícius de Moraes 62 Crônica • A invenção da laranja 64 Arnaldo Jabor • Os burros e os pavões 66 Prateleira • O melhor das livrarias em junho 2012 68 Texto colaborativo • Rubem Fonseca 70


Cartas

Carne e osso

Marcel Proust

Noctua me surpreende a cada número. É a literatura em carne e osso, foi o que senti lendo a entrevista de Ferreira Gullar. Uma sugestão que eu faço é vocês focalizarem também em autores hispano-americanos. Márcia Regina Vanzo, São Paulo

Muito boa a abordagem de Marcel Proust no número cinco de Noctua. Ficam aqui os meus sinceros parabéns. Jediel Gonçalves-Freydier, via Facebook

Projeção

Muito interessante a entrevista com Maria Adelaide Amara, publicada na Noctua cinco. Assim conseguimos saber mais coisas, que às vezes ficam ocultas, sobre esses autores de novela. Larissa Cordeiro, via Facebook

Olá! Sou professora de literatura e leitora assídua da Noctua desde o primeiro número. Gosto muito das reportagens e da proposta da revista. Em especial destaco, na edição número seis, a seção Projeção, que trata do filme “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, de Beto Brant. Sílvia de Paula, via e-mail

Sou fã Estimada Ciliane, este uruguaio que escreve é fã de Noctua, uma revista diferente sobre literatura. Já estou na edição número 5, e na quinta ou sexta releitura, geralmente a duas ou mais pessoas, criticando, formando opinião, desfrutando (ou degustando) alguns ensaios e matérias. Pedro Olmedo, São José dos Campos

Escreva para contato@noctua.com.br

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Maria Adelaide Amaral

Biografia proibidas Parabéns pelo belo texto na última edição da Noctua sobre a polêmica das biografias. Meu livro “Você é mulher, Marta!” (sobre a craque de futebol alagoana Marta Vieira da Silva) não pode ser comercializado, apesar de eu ter uma autorização assinada pela própria biografada. Márcia Regina Vanzo, São Paulo

Jorge Amado Gostei muito da reportagem sobre Jorge Amado e da entrevista dada por sua filha, Paloma Amado, em que ela conta como era a rotina do escritor. Brígida Fernandes Vanzo, por e-mail

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Top 10

OS 10 MELHORES PERSONAGENS DA LITERATURA BRASILEIRA 1 - Bras Cubas, de Memórias Póstumas de Bras Cubas - Machado de Assis: Só podia dar ele, que mesmo depois de morto, usou sarcasmos, e digamos até pitadas de humor negro para narrar sua história diretamente do além. 2 - Capitu, de Dom casmurro - Machado de Assis: Emblemática. A linda mulher, cuja discussão segue até hoje traiu ou não o marido. É o que digo, se fizer, faça bem feito. 3 - Capitão Rodrigo, de O tempo e o Vento - Érico Veríssimo: Valente, o personagem faz parte de um livro ambientado na revolução farroupilha, o que faz muita gente acreditar que ele tenha realmente existido.

8 - O analista de Bagé, de Luis Fernando Veríssimo: Freudiano, gaúcho e psicanalista, o personagem é de longe o mais bem humorado da literatura nacional; 9 - Ed Mort, de Luis Fernando Veríssimo: O detetive trapalhão é uma paródia escrachada a literatura policial estrangeira, e uma promessa de risos, aventura e todo tipo de encrenca. 10 - Iracema, de José de Alencar: A índia Tabajara é recheada de poesia num nítido romance histórico-indianista.

4 - Emília, de O sítio do Pica-pau Amarelo Monteiro Lobato: A espevitada boneca de pano é o melhor personagem da literatura juvenil brasileira, ambientada no mágico universo de Lobato. 5 - O menino maluquinho, de Ziraldo: As travessuras do menino o transformaram num dos melhores personagens, em grande parte pela identificação de cada um de nós com os tempos de molecagem. 6 - Mandrake, de Rubem Fonseca: O advogado Paulo Mendes vive tanto no submundo quanto próximo a gente rica. Especializado em chantagens e extorsões, sua figura se assemelha a um detetive, e viu sua popularidade aumentar com a série exibida na HBO. 7 - João Romão, de O cortiço - Aluiso de Azevedo: Avarento e ganancioso o personagem ergue seu próprio império no cortiço, onde o zooformismo ataca cada um de seus habitantes.

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Acervo

DOM CASMURRO Narrada em primeira pessoa pelo próprio protagonista, essa é a história de Bento, apelidado de Dom Casmurro por ter hábitos isolados e ser bastante fechado. Órfão de pai, Bentinho é criado pela mãe, Dona Glória, os tios, Justina e Cosme e o padrinho José Dias. O enredo começa no ano de 1857, na rua de Mata-Cavalos, quando o menino, então com 15 anos, se apaixona por sua vizinha e grande amiga Capitu, também adolescente. O sentimento entre eles é contado pelo narrador como algo passional. Capitu seria uma menina provocante, mesmo na sua inocência.

Dom Casmurro Machado de Assis Editora Martin Claret Coleção Imas Educativos - RAI 223 páginas R$: 14,90

Os dois acabam separando-se em razão de uma promessa feita por Dona Glória. A mãe, ao perder o primeiro filho, prometeu que se tivesse outro filho varão ele seguiria carreira religiosa. Bento, então, mesmo sem vontade, foi mandado para um seminário. Lá ele conhece Ezequiel Escobar, também seminarista e que vem a tornar-se seu melhor amigo. Por medo de perder Capitu e por não agradar-se da vida religiosa, Bento acaba deixando o seminário e vai estudar Direito, aos 22 anos já era bacharel. Em 1865 ele e Capitu se casam. Após dois anos, Bento começa a lamentar o fato de ainda não terem tido filhos. Os amigos, Sancha, de Capitu, e Ezequiel, de Bentinho, também casados, passam a dar muitos conselhos a eles. Finalmente, Capitu engravida e tem um filho. O casal então resolve dar a ele o nome de Ezequiel, em homenagem ao amigo Escobar. Alguns anos passados e Bento começa a desconfiar da fidelidade de Capitu. Ao ver uma foto de Escobar quando jovem encontra traços parecidos com os de seu filho Ezequiel e acaba alimentando desconfianças sobre sua paternidade. Escobar acaba morrendo enquanto nadava e no seu enterro Bentinho percebe a atitude diferente de Capitu que parecia desesperada demais. Á medida que cresce, Ezequiel se torna cada vez mais parecido com Escobar. Bentinho muito ciumento, chega a planejar o assassinato da esposa e do filho, seguido pelo seu suicídio, mas não tem coragem. O casal se separa e Capitu viaja com o filho para a Europa, onde morre anos depois. Ezequiel, já mais velho, volta ao Brasil para visitar o pai que acaba encontrando ainda mais semelhanças entre o filho e seu amigo Escobar. O garoto volta a viajar e morre também. Bento fica cada vez mais fechado em suas dúvidas e põe-se a contar sua história. Ezequiel, já mais velho, volta ao Brasil para visitar o pai que acaba encontrando ainda mais semelhanças entre o filho e seu amigo Escobar. O garoto volta a viajar e morre também. Bento fica cada vez mais fechado em suas dúvidas.

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Lançamento

OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES Vem da Suécia um dos maiores êxitos no gênero de mistério dos últimos anos: a trilogia Millennium - da qual este romance, Os homens que não amavam as mulheres, é o primeiro volume. Seu autor, Stieg Larsson, jornalista e ativista político muito respeitado na Suécia, morreu subitamente em 2004, aos cinqüenta anos, vítima de enfarte, e não pôde desfrutar do sucesso estrondoso de sua obra. O motivo do sucesso reside em vários fronts. Um deles é a forma original com que Larsson engendra a trama, fazendo-a percorrer variados aspectos da vida contemporânea, da ciranda financeira feita de corrupção à invasão de privacidade, da violência sexual contra as mulheres aos movimentos neofascistas e ao abuso de poder de uma maneira geral. Outro é a criação de personagens extremamente bem construídos e originais, como a jovem e genial hacker Lisbeth Salander, magérrima, com o corpo repleto de piercings e tatuagens e comportamento que beira a delinqüência. O terceiro é a maestria em conduzir a narrativa, repleta de suspense da primeira à última página. Os homens que não amavam as mulheres é um enigma a portas fechadas - passa-se na circunvizinhança de uma ilha. Em 1966, Harriet Vanger, jovem herdeira de um império industrial, some sem deixar vestígios. No dia de seu desaparecimento, fechara-se o acesso à ilha onde ela e diversos membros de sua extensa família se encontravam. Desde então, a cada ano, Henrik Vanger, o veelho patriarca do clã, recebe uma flor emoldurada - o mesmo presente que Harriet lhe dava, até desaparecer. Ou ser morta. Pois Henrik está convencido de que ela foi assassinada. E que um Vanger a matou.

Os homens que não amavam as mulheres Stieg Larsson Editora Cia das Letras Coleção Trilogia Millenium 528 páginas R$: 31,50

Quase quarenta anos depois o industrial contrata o jornalista Mikael Blomkvist para conduzir uma investigação particular. Mikael, que acabara de ser condenado por difamação contra o financista Wennerström, preocupa-se com a crise de credibilidade que atinge sua revista, a Millennium. Henrik lhe oferece proteção para a Millennium e provas contra Wennerström, se o jornalista consentir em investigar o assassinato de Harriet. Mikael descobre que suas inquirições não são bem-vindas pela família Vanger. E que muitos querem vê-lo pelas costas. De preferência, morto. Com o auxílio de Lisbeth Salander, que conta com uma mente infatigável para a busca de dados - de preferência, os mais sórdidos -, ele logo percebe que a trilha de segredos e perversidades do clã industrial recua até muito antes do desaparecimento ou morte de Harriet. E segue até muito depois.... até um momento presente, desconfortavelmente presente.

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Título da seção

MAFALDA Histórias em quadrinhos não são efêmeras nem servem apenas para diversão. A personagem argentina Mafalda, por exemplo, que deixou de ser publicada há quase 40 anos, permanece encantando leitores. Seu criador, Joaquín Salvador Lavado, o Quino, que em 2012 completará 80 anos, é reconhecido internacionalmente pela pequena menina questionadora. Além de ajudar no espanhol, caso o estudante opte pela edição original de Mafalda, a leitura das tiras também serve para entender a realidade sociocultural e a formação econômica da Argentina. A ideia para a personagem nasceu de um trabalho para uma agência de publicidade, que precisava de um ilustrador para o lançamento de uma linha de produtos eletrodomésticos chamados Mansfield - daí o nome Mafalda, que lembrava a marca, por começar com a letra "M". O anúncio acabou não sendo publicado, mas a ideia sobreviveu. Em setembro de 1964, a personagem foi finalmente apresentada ao público, na revista semanal Primera Plana. Daí, Mafalda se mudou para o jornal diário El Mundo, um ano depois. Sua última morada foi na revista semanal Siete Días Ilustrados,

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onde ficou de 1967 até o final de sua "vida", em junho de 1973. Suas mais de 1,9 mil tiras já foram publicadas em mais de 20 idiomas, incluindo russo, polonês, norueguês e, claro, português. Com seu humor ingênuo e muita perspicácia, a pequena menina questiona o mundo ao seu redor e leva o leitor a refletir sobre a realidade. Mafalda é, sobretudo, uma personagem crítica, que não aceita o mundo que 'recebeu', que o questiona constantemente a partir de seus referenciais, num movimento híbrido", explica o mestre em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor de História Carlos Eduardo Rebuá Oliveira. Para Rebuá, a personagem intercala ações de uma criança típica, que tem medo, depende dos pais e é ingênua, e atitudes de uma criança excepcional, que constrói belas metáforas, saindo da dimensão do concreto, que caracteriza a criança em seus anos iniciais. "Lúcida e crítica, Mafalda consegue discutir a Guerra do Vietnã, por exemplo, e muitas vezes colocar os adultos em situações embaraçosas", constata.


Quadrinhos

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OUTRA ALEXANDRIA

Alexandria acabou sendo vítima do seu próprio cosmopolitismo, do qual a biblioteca era o maior exemplo.

Não sei se a internet e seus instrumentos comunicantes tiveram mesmo tanta influência nessa revolução no Egito como dizem, mas se tiveram não deixa de ser curioso que o mais novo meio de compartilhar informação tenha sublevado a terra onde floresceu a ideia do conhecimento compartilhado. Três mil anos, mais ou menos, separam o facebook e o tuiter, para não falar do Google, da biblioteca de Alexandria, onde pela primeira vez se quis reunir e expor tudo que se sabe do mundo. O que também foi uma revolução. Foi Demetrius, um ex-aluno do Liceu de Atenas fundado por Aristóteles quem começou a biblioteca, sob ordens de Ptolomeu I, em cuja corte ele foi uma espécie de filósofo residente. Demetrius costumava se maquiar e pintar os cabelos de loiro, gostava tanto de mulheres quanto de rapazes e dava grandes banquetes que acabavam em orgias, mas ficou na História como construtor da primeira biblioteca universal de que se tem notícia, pois a vontade de Ptolomeu era ter em um só lugar toda a memória da antiguidade e todo o pensamento humano. A biblioteca de Alexandria surgiu numa época de transição, em que a escrita substituía a fala na transmissão da cultura e do conhecimento e toda uma tradição oral, como a memorização e repetição dos épicos homéricos, cedia ao texto manuscrito que durante algum tempo foi considerado coisa de maus espíritos, entre os gregos. A mudança tecnológica é análoga à que se vê hoje, quando discutem se o livro eletrônico

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Luis Fernando Veríssimo Escritor, jornalista, humorista e cronista brasileiro, filho do escritor Érico Veríssimo. É o escritor que mais vende livros no Brasil.

vai ou não matar o livro tradicional e levar nossa alma junto. Com sua biblioteca, Demetrius, discípulo de Aristóteles, fortaleceu a linha oposta à dos velhos gregos Platão, que preferia o debate verbal à escrita, e Sócrates, que nunca escreveu nada. Dizem que, no seu auge, a biblioteca de Alexandria chegou a ter meio milhão de livros, lembrando que alguns livros eram constituídos por vários rolos. Eram acessíveis ao grande público mas principalmente a escolásticos e à nobreza. (É atraente imaginar a Cleópatra percorrendo as suas estantes atrás de alguma coisa leve para ler no fim de semana.) Mas, acima de tudo, a biblioteca contribuiu para transformar Alexandria na capital intelectual do mundo helênico e da civilização do Mediterrâneo, uma inspiração para outros povos. Compare-se isso com o poder da internet de atravessar fronteiras e criar comunidades de informação e conhecimento com uma só língua. No fim, Alexandria acabou sendo vítima do seu próprio cosmopolitismo, do qual a biblioteca era o maior exemplo. Os diferentes grupos atraídos pelo mix cultural e religioso da cidade entraram em conflito. A presença de sucessivos poderes autoritários - ptolomaico, depois romano, bizantino e islâmico - evitou uma ruptura maior, mas não impediu a decadência da cidade. Há várias versões sobre o fim da biblioteca. Uma culpa Júlio César, que precisando fugir do seu palácio e chegar até seus navios no porto teria incendiado tudo no caminho, inclusive a biblioteca.


Título da seção


Fábula

O LEÃO APAIXONADO

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Donzela gentil, cujos encantos servem de modelo às Graças, e que é toda bela, até em seus modos desdenhosos… aceitaria com benevolência uma inocente fábula, onde verá um leão dominado pelo amor? O Amor! Esse temível e estranho sentimento! Feliz aquele que por sua própria experiência nunca o conheceu e dele nunca ouviu dizer! Falar dele pode ser ofensivo, mesmo quando se diz a verdade; porém, com a fábula se pode consentir essa licença: afeto e gratidão a guiam para entregá-la, a seus pés, com a devida aceitação.

como todas, aos galãs de pêlos no peito. Sem se atrever a negar, o pai para esclarecer o pretendente, lhe disse: “minha filha é tímia e delicada; se for acariciá-la, com suas garras, ao expô-las a machucaria. Deixe que lhe cortem as unhas, e ao mesmo tempo, que limem seus dentes e presas. Serão mais suaves seus beijos, e mais gostosos, porque minha filha, perdendo o medo, retribuirá melhor suas carícias.” O leão consentiu, tão cego estava! Terminou sem dentes e sem garras, como uma fortaleza desmantelada. E então, lançam os cães sobre o indefeso leão.

Antigamente, quando os animais falavam, os leões solicitaram nossa aliança. Não havia motivos para negacear: naqueles tempos, os leões valiam tanto quanto nós; eram corajosos, inteligentes e ademais possuíam magníficas jubas. Aconteceu que, certo leão presunçoso, ao passar por um prado, viu uma pastorinha que lhe pareceu perfeita: imediatamente a pediu em casamento. O pai teria preferido um genro não tanto formidável. Era difícil concedê-la; negá-la, perigoso. Por outro lado, uma negativa talvez resultasse num casamento clandestino, porque a menina era aficionada,

Amor! Amor! Quando caímos em suas mãos, podemos dizer: Adeus, cautela!

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Sem se atrever a negar, o pai para esclarecer o pretendente, lhe disse: “minha filha é tímia e delicada; se for acariciá-la, com suas garras, ao expô-las a machucaria. Deixe que lhe cortem as unhas, e ao mesmo tempo, que limem seus dentes e presas. Serão mais suaves seus beijos, e mais gostosos, porque minha filha, perdendo o medo, retribuirá melhor suas carícias.” O leão consentiu, tão cego estava!



Jovem Escritor

"As letras, para mim, têm o poder de minimizar a frieza daqueles que fazem do mundo um lugar ao qual só podemos imaginar maravilhoso nas histórias que inventamos."

HELEN BAMPI Cem anos de solidão (Adaptação da obra de Gabriel García Márquez)

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendia haveria de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Era apenas um garotinho, mas a realidade o fizera ser forte e crítico desde pequeno. Sempre cauteloso, procurou descrever impecavelmente os fatos ocorridos naquele dia em seu diário. Parte dos acontecimentos havia sido descrida como “estúpida”. Um leve risco de lápis e letras mal apagadas no papel amarelado indicam que a expressão anterior fora alterada para “IMPORTANTE”.

Helen nasceu no dia 30 de Abril de 1993, na cidade de Farroupilha, RS. Com apenas oito anos escreveu seu primeiro poema, ‘Seleção Brasileira’. Cresceu apaixonada pelas letras. Hoje, com 17 anos de idade, participa de saraus literários, concursos (tendo, já, obtido vários prêmios). É colunista, poetisa, além de ter textos publicados em várias antologias. Seu livro de estreia, Vidas Traçadas, está sendo avaliado para publicação. É aluna do curso de Letras da UCS - Universidade de Caxias do Sul. Contato: helen.bampi@terra.com.br

“O que eu queria com um punhado de neve e flocos caindo sucessivamente sobre a minha cabeça? O que havia de tão surpreendente assim em um dia tão frio – quase sombrio – para deixar papai com aquele sorriso de vitorioso presente no rosto? Por que sua mão não parava de tocar minha face, num gesto quase instintivo, porém ao mesmo tempo tão carinhoso? Ele me levou até o pico da montanha. Apontou-me um enorme galho seco, onde nos acomodamos. Iniciou sua história, a longa história sobre como tornar-se um herói diante da neve. ‘Há quem diga que nos tempos futuros uma nevasca irá atingir o mundo, e a destruição será incomensurável. Mas você não pode ter medo dela, filho. ’ Uma tolice. Ora, que tolice! Pensei: o que será que papai acha que pode acontecer comigo para estar-me dizendo isso? Que vou tropeçar, cair, machucar-me e não-sei-mais-o-quê? Não pude conter o riso. Contudo, a resposta de meu pai foi um exausto olhar de repreensão. Igualzinho àquele da professora na escola, quando você não faz o dever de casa. Ficamos até o fim da tarde. A neve estava caindo com mais fúria quando iniciamos a nossa descida. Nunca me dera conta do tanto que aquele monte era elevado. Pedi ao papai que brincássemos um pouquinho. Quem acertasse mais neve no outro tinha direito a uma xícara a mais de chocolate quente. Eu venci.

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Enquanto lanchávamos, perguntei ao papai algo de que me arrependi em seguida. ‘Por que há tanta guerra?’ Ele não respondeu. Somente reforçou a ideia de que era preciso tomar cuidado com a Grande Neve. Quando pousei a cabeça no travesseiro, tudo aquilo que papai me dissera parecia ainda mais irreal e distante. Logo adormeci. Lá fora, a neve caía sem cessar.” Quase quarenta anos depois, um breve texto borrado, porém legível, fora rabiscado na descrição daquela tarde de Outubro. “Então eu me considerava um menino inteligente, crítico, sábio. Entretanto, se ao invés de achar graça no que papai dizia, eu tivesse agido com um grande garoto, tudo seria diferente. Talvez, se eu tivesse escutado atentamente ao meu velho pai, ainda teria a minha esposa e meus dois filhos junto a mim. Sim, sou um fracassado. Deixei-os para a grande nevasca. Perdi-os e estou sozinho. Não, eu não estou totalmente na solidão. Tente imaginar o porquê. Isso mesmo. A janela está entreaberta. A neve há pouco começou a cair.”

Barquinho de papel Eis aqui o barquinho de papel Que esbocei, tão simples, à caneta Tracei linhas multicores com o pincel Um pouco de verde, vermelho, até violeta Vai tomando vida rapidamente Voejando no embalo das borboletas Pelo mar segue tranquilamente Guiado pelas constelações Tudo é alegria, tudo é envolvente E assim se vai: segue o ritmo das canções A brisa sopra devagar E a noite está repleta de emoções.



Canto da Leitura

MUDANÇAS NA LEITURA, TECNOLOGIA DIGITAL E CONTEÚDO Na Flip 2010, em Paraty, os historiadores da cultura Peter Burke e Robert Darnton debateram o futuro do livro em papel e do livro digital. Burke disse que os livros que sobreviverem serão mais curtos, fáceis para a leitura em máquinas como o Kindle. Os leitores do futuro poderão saltar entre tópicos de um texto assim como fazemos com as manchetes e fotos de um jornal. Ele aponta que tem o medo das gerações futuras perderem a habilidade de ler devagar. A tendência é a publicação de livros mais curtos e sem muita profundidade nos e-books. Com minhas referências atuais concordo que temos a tendência de textos mais curtos nos ebooks. Mas ao observar o que temos de concreto hoje diria que a leitura passa a ser primordialmente de textos curtos devido à educação e a dinamicidade da sociedade, nos mais diversos países. Vejamos o caso dos jornais impressos que vem sofrendo redução de tamanho e conteúdo. E muitos, como os cariocas “Meia Hora” e “Expresso da Informação”, nem tem como público alvo o leitor da era digital, mas a população de baixa renda e que não teve educação adequada. Não é uma situação local, mas mundial, a busca por textos mais curtos na área jornalística, o que abre caminho para a redução de leitura de textos densos em livros.

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Mas não devemos confundir a leitura de textos mais curtos com ler menos. O ser humano se depara cada vez mais com uma necessidade – ou presença – de informação, de ler mais, de escutar e ver mais, porém, muito de pouco. A dinâmica dos dias de hoje pede isto e não é algo necessariamente ruim, já que poderá permitir aqueles com menor tendência a leitura do ato de ler.

Não devemos confundir a leitura de textos mais curtos com ler menos

Como abordado no segundo parágrafo à leitura de textos curtos, que tem influencia dos dispositivos eletrônicos, estaria mais associada à questão educacional e a dinâmica da sociedade. O equipamento eletrônico em si não é o problema, principalmente se observarmos estudos relativos a telas que permitam a leitura nestes dispositivos por um tempo maior sem cansar a visão. Tudo o que foi visto até então é relacionado ao que tínhamos até aproximadamente um ano atrás. Mas parece que estamos entrando em mais uma fase ( já perdi as contas) deste processo com a inserção dos tablets no mercado. Nos e-readers tínhamos um equipamento dedicado a leitura, com poucas funções a mais, mas agora temos dispositivos que entregam ao utilizador um número extenso de recursos. Mas já não tínhamos isto com os computadores, notebooks, netbooks e smartfones? Sim, já tínhamos. Porém, nos primeiros, a dificuldade de locomoção ou acomodação para a leitura em variadas situações complica o uso para a finalidade de “leitura” de conteúdo em qualquer lugar, e no último, o reduzido tamanho de tela é um fator negativo. Mas os tablets chegaram com tamanho de tela razoável (de 7 a 9 polegadas atualmente), beneficiados por uma pré-experiência (ou expectativa) com os e-readers e a com um número maior de recursos.

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Título da seção

O aumento de recursos no dispositivo é que tende a realmente fazer com que a forma de leitura mude devido à tecnologia. Neste momento poderia afirmar que todas as mudanças na forma de apresentar ou ler um conteúdo (que alguns observam como problemas) tem influencia da tecnologia, mas também (e em grau maior) de outros aspectos. Mas os tablets estão fazendo com que a tecnologia tenha uma interferência maior no conteúdo e pode ser que (não é possível afirmar) acelere o padrão do texto curto. O que ocorre é que nesta fase experimental do uso do tablet para a leitura (o pioneiro IPAD tem apenas um ano de existência), as possibilidades permitidas pelos aparelhos estão fazendo com que a indústria de livros e jornalística testem inovações, utilizem outros recursos que não apenas o texto. O maior exemplo até o momento é da versão de Alice no país das maravilhas para IPAD, onde é possível interagir com o “cenário” que dá suporte ao texto. Nas palavras de Lourdes Magalhães, no site da primavera editorial, “quem já teve a oportunidade de ler um livro no iPad vai perceber a diferença e quem teve a oportunidade de ler a versão digital de “Alice no País das Maravilhas” para crianças vai concordar que todos os meios a favor da literatura de qualidade são válidos. Os leitores vão continuar associando o livro a bons momentos, acrescentando a eles as opções de interagir com o texto, com imagens… Em “Alice”, os leitores vivem a emoção de fazer parte da história e do cenário. Um “dispositivo” de conhecimento concreto, palpável e que nos leva a vivenciar e criar uma história única, pessoal. Apesar de o conteúdo ter sido escrito por um autor, todo o cenário – embora tecnológico – continua a depender da imaginação do leitor. E a imaginação é muito estimulada entre os leitores contemporâneos.”

O maior exemplo até o momento é da versão de Alice no país das maravilhas para IPAD, onde é possível interagir com o “cenário” que dá suporte ao texto

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Canto da Leitura

Mas as experiências não param por ai e tendem a mesclar tecnologias, como o anuncio da revista VEJA de que terá edição para tablets com visualização em 3D com o uso de óculos apropriados (que no futuro não serão mais necessários).

Isto é ruim? Muitos criticam, como se o livro da forma que conhecemos sempre tivesse existido. Pode até ser que seja ruim para a sociedade como está moldada atualmente, porém, inocente é que acredita que estas mudanças irão modificar apenas o hábito de ler.

A questão é que os tablets permitem uma mobilidade de equipamento tecnológico associada a uma boa experiência de leitura nunca antes produzida. E estes tablets trazem as obras outros elementos que não sejam apenas palavras, influenciando o uso de textos mais curtos, mas não conteúdo reduzido, já que temos o uso de sons, movimentos de cenários, imagens, vídeos…

A sociedade tende a mudar, gerando um cenário onde a leitura tradicional poderá não se a única forma exigida, ou até mesmo dispensável. Isto é ruim? Se observarmos a sociedade com os olhos voltados estritamente para o passado recente a resposta é sim! Mas se olharmos no passado as mudanças que já ocorreram na forma de produzir e ler conteúdos, e repensarmos o futuro adequado às novas necessidades informacionais do ser humano poderemos chegar a um ponto ideal.

A leitura nunca foi a mesma! Com a imprensa e um maior volume de publicações passamos a ter textos mais curtos e uma maior quantidade de títulos disponíveis. O mesmo acontece com a tecnologia digital que traz mais uma redução de textos, mais títulos e uma experiência de interligação de tipos de leitura como texto, áudio, imagens e vídeos.

A questão é não criticar as novas relações entre conteúdo e leitor apenas por que se viveu em uma experiência diferente, mas também não aceitar tudo que é novo apenas pelo fato de ser novo, já que por vivermos um momento de mudança muito do que temos vive num estado de testes, ou como é comum dizer na tecnologia digital, em fase beta. Voltado a cita Loudes em seu texto no Primavera Digital: “Embora os novos tempos causem um certo atordoamento – o mesmo de Alice – acredito que além de inevitável, a convivência com as novas tecnologias dos livros contemporâneos pode ser prazerosa. Entretanto, essa experiência será mais intensa à medida que houver coragem para tirar proveito do passado sem temer o novo. Estamos diante de uma aventura extraordinária, da qual podemos ser protagonistas!”




Biografia

CLARICE LISPECTOR Ao mesmo tempo que ousava desvelar as profundezas de sua alma em seus escritos, Clarice Lispector costumava evitar declarações excessivamente íntimas nas entrevistas que concedia, tendo afirmado mais de uma vez que jamais escreveria uma autobiografia. Contudo, nas crônicas que publicou no Jornal do Brasil entre 1967 e 1973, deixou escapar de tempos em tempos confissões que, devidamente pinçadas, permitem compor um auto-retrato bastante acurado, ainda que parcial. Isto porque Clarice por inteiro só os verdadeiramente íntimos conheceram e, ainda assim, com detalhes ciosamente protegidos por zonas de sombra. A verdade é que a escritora, que reconhecia com espanto ser um mistério para si mesma, continuará sendo um mistério para seus admiradores. De origem judaica, Clarice foi a terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. Nasceu na cidade de Tchetchelnik enquanto seus pais percorriam várias aldeias da Ucrânia por conta da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa de 1918-1921. Chegou ao Brasil quando tinha dois meses de idade[1], e sempre que questionada de sua nacionalidade, Clarice afirmava não ter nenhuma ligação com a Ucrânia - “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo” - e que sua verdadeira pátria era o Brasil.

Perto do coração selvagem - 1943 Primeiro livro publicado Editora Rocco - 202 páginas R$32,00

A família chegou a Maceió em março de 1922, sendo recebida por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin. Por iniciativa de seu pai todos mudaram de nome, exceto Tânia, sua irmã. O pai passou a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia, sua irmã, Elisa; e Haia, por fim, Clarice. Pedro passou a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante. Com dificuldades de relacionamento com Rabin e sua família, Pedro decide mudar-se para Recife, então a cidade mais importante do Nordeste. Clarice Lispector começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade do Recife, onde passou parte da infância no bairro de Boa Vista. Estudou no Ginásio Pernambucano de 1932 a 1934. Falava vários idiomas, entre eles o francês e o inglês. Cresceu ouvindo no âmbito domiciliar o idioma materno, o iídiche. Sua mãe morreu em 21 de setembro de 1930 (Clarice tinha apenas 9 anos), após vários anos sofrendo com as consequências da Sífilis, supostamente contraída por conta de um estupro sofrido durante a Guerra Civil Russa, enquanto a família ainda estava na Ucrânia. Clarice sofreu com a morte da mãe, e muitos de seus textos refletem a culpa que a autora sentia.

A legião estrangeira - 1964 Editora Rocco - 104 páginas R$21,00

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Biografia

Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.

Quando tinha 15 anos seu pai decidiu se mudar para o Rio de Janeiro. Sua irmã Elisa conseguiu um emprego no ministério, por intervenção do então ministro Agamemnon Magalhães, enquanto seu pai teve dificuldades em achar uma oportunidade na capital. Clarice estudou em uma escola primária na Tijuca, até ir para o curso preparatório para a Faculdade de Direito. Foi aceita para a Escola de Direito na então Universidade do Brasil em 1939. Se viu frustrada com muitas das teorias ensinadas no curso, e descobriu um escape: a literatura. Em 25 de maio de 1940, com apenas 19 anos, publicou seu primeiro conto “Triunfo” na Revista Pan.

A mulher que matou os peixes - 1968 Editora Rocco - 32 páginas R$29,00

Três depois, após uma cirurgia simples para a retirada de sua vesícula biliar, seu pai Pedro morre de complicações do procedimento. As filhas ficam arrasadas com as circunstâncias da morte tão inesperada, e como consequência Clarice se afasta da religião judaica. No mesmo ano, Clarice chama a atenção (provavelmente com o conto “Eu e Jimmy”) de Lourival Fontes, então chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda (órgão responsável pela censura no Estado Novo de Getúlio Vargas), e é alocada para trabalhar na Agência Nacional, responsável por distribuir notícias aos jornais e emissoras de rádio da época. Lá conheceu o escritor Lúcio Cardoso, por quem se apaixonou (não correspondido, já que Lúcio era homossexual) e de quem se tornou amiga íntima. Em 1943, no mesmo ano de sua formatura, casou-se com o colega de turma Maury Gurgel Valente, futuro pai de seus dois filhos. Maury foi aprovado no concurso de admissão na carreira diplomática, e passou a fazer parte do quadro do Ministério das Relações Exteriores. Em sua primeira viagem como esposa de diplomata, Clarice morou na Itália onde serviu durante a Segunda Guerra Mundial como assistente voluntária junto ao corpo de enfermagem da Força Expedicionária Brasileira. Também morou em países como Inglaterra, Estados Unidos e Suíça, países para onde Maury foi escalado. Apesar disso, sempre falou em suas cartas a amigos e irmãs como sentia falta do Brasil.

Felicidade clandestina - 1971 Editora Rocco - 159 páginas R$25,50

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Em 10 de agosto de 1948, nasce seu primeiro filho, Pedro, em Berna na Suiça. Quando criança Pedro se destacava por sua facilidade de aprendizado, porém na adolescência sua falta de atenção e agitação foram diagnosticados como esquizofrenia. Clarice se sentia de certa forma culpada pela doença do filho, e teve dificuldades para lidar com a situação.


Biografia

Minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem de grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.

Em 10 de fevereiro de 1953, nasce Paulo, o segundo filho de Clarice e Maury, em Washington, D.C., nos Estados Unidos. Em 1959 se separou do marido que ficou na Europa e voltou permanentemente ao Rio de Janeiro com seus filhos, morando no Leme. No mesmo ano assina a coluna “Correio feminino - Feira de Utilidades”, no jornal carioca Correio da Manhã, sob o pseudônimo de Helen Palmer. No ano seguinte, assume a coluna “Só para mulheres”, do Diário da Noite, como ghost-writer da atriz Ilka Soares. Provoca um incêndio ao dormir com um cigarro acesso em 14 de setembro de 1966, seu quarto fica destruído e a escritora é hospitalizada entre a vida e a morte por três dias. Sua mão direita é quase amputada devido aos ferimentos, e depois de passado o risco de morte, ainda fica hospitalizada por dois meses. Em 1975 foi convidada a participar do Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria, em Cali na Colômbia. Fez uma pequena apresentação na conferência, e falou do seu conto “O ovo e a Galinha”, que depois de traduzido para o espanhol fez sucesso entre os participantes. Ao voltar ao Brasil, a viagem de Clarice ganhou ares mitológico, com jornalistas descrevendo (falsas) aparições da autora vestida de preto e coberta de amuletos. Porém, a imagem se formou, dando a Clarice o título de “a grande bruxa da literatura brasileira”. Seu próprio amigo Otto Lara Resende disse sobre a obra de Lispector: “não se trata de literatura, mas de bruxaria.”

A vida íntima de Laura - 1974 Editora Rocco - 32 páginas R$26,50

Foi hospitalizada pouco tempo depois da publicação do romance A Hora da Estrela com câncer inoperável no ovário, diagnóstico desconhecido por ela. Faleceu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu 57° aniversário. Foi enterrada no Cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro, em 11 de dezembro. Até a manhã de seu falecimento, mesmo sob sedativos, Clarice ainda ditava frases para sua amiga Olga Borelli. Durante toda sua vida Clarice teve diversos amigos de destaque como Fernando Sabino, Lúcio Cardoso, Rubem Braga, San Tiago Dantas e Samuel Wainer, entre diversos outros literários e personalidades. Durante toda sua vida Clarice teve diversos amigos de destaque como Fernando Sabino, Lúcio Cardoso, Rubem Braga, San Tiago Dantas e Samuel Wainer, entre diversos outros literários e personalidades.

A hora da estrela - 1977 Editora Rocco - 88 páginas R$20,00

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Projeção

A INVENÇÃO DE HUGO CABRET Dos cineastas surgidos em Hollywood nos anos 1970 que também atuavam como historiadores, críticos ou pesquisadores, como Peter Bogdanovich e Paul Schrader, Martin Scorsese é o mais célebre. Faz todo o sentido que o seu primeiro filme em 3D, a adaptação do premiado livro A Invenção de Hugo Cabret, remeta ao passado - e mostre que o cinema já usava efeitos tridimensionais nos anos 1890. Depois da morte do seu pai relojoeiro, o protagonista Hugo (Asa Butterfield) passa a viver na Gare du Nord, a majestosa estação de trem em Paris cujos relógios o órfão acerta diariamente. Como herança, Hugo ganhou não apenas o talento com engrenagens miúdas, mas também um misterioso autômato, que o garoto tenta remontar com peças que ele rouba de uma loja de brinquedos na estação. Transcorrem os anos 1930 e ninguém desconfia que o deprimido dono da loja é, na verdade, o velho cineasta Georges Méliès (Ben Kingsley), mas isso Hugo logo descobre, quando o caminho dos dois se cruza. Quem não conhece Méliès (1861-1938) terá em Hugo Cabret, antes de mais nada, uma tocante introdução aos filmes do diretor de Viagem à Lua (1902). Enquanto os irmãos Lumière, criadores do cinematógrafo, filmavam banalidades do cotidiano em seus curtas, Méliès, veterano do

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teatro de variedades, levou para o cinema seus espetáculos de ilusionismo. Com seus truques de montagem e encenação, o francês foi pioneiro não só nos efeitos visuais como originou, com sua produção de mais de 500 filmes, toda a ideia do cinema como uma fábrica de sonhos. É por seu valor pedagógico que Hugo Cabret se destaca, com Scorsese usando o 3D para potencializar o efeito dos truques de Méliès no ótimo flashback que relembra o processo do mestre (como a ilusão do tanque de lagostas). Quando faz essa ponte entre o primordial (o cinema de proscênio, teatro filmado) e o novidadeiro (o 3D retrabalhando a sobreposição de camadas), o filme de Scorsese beira a epifania, a revelação.Dois olhares: Há um segundo jogo duplo em curso, porém. Hugo Cabret lida com duas visões: a do cinema como artifício e fabulação, como substituição da realidade, cujo pai é Méliès, e a do cinema como registro do efêmero, do não-encenado, que observa e ambiciona flagrar o real - o cinema como concebido pelos Lumière. O cenário dessa segunda disposição é a estação de trem (o “tema” lumieriano essencial), que Scorsese elege como microcosmo de Paris logo na primeira cena: Hugo, alter-ego do cineasta, observa a estação de dentro do relógio menor e depois observa Paris do relógio maior. A sinédoque não poderia ser mais clara. Hugo vê o flerte do guarda com a florista, dos idosos e seus cães, vê os órfãos perseguidos pela polícia - compreensivelmente, a Paris de Scorsese é a Cidade Luz mítica, dos apaixonados e dos pequenos delinquentes autodidatas - pelas frestas do relógio, como

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um projecionista enxerga um filme pela sua cabine (em certo momento, a luz intermitente e o barulho das engrenagens dentro do relógio são idênticos aos de uma saleta de projeção). Cinema é luz, tudo reflete luz neste filme, e Scorsese deve ter escolhido Asa Butterfield para protagonizá-lo porque, com seus olhos azuis gigantes, o menino talvez seja capaz de absorver mais dessa luz do que qualquer pessoa. Mas que outra coisa faz Hugo além de observar? Há uma certa desimportância nos atos do personagem que o roteiro, talvez mais preocupado com a pedagogia (ou paternalismo?), não soluciona direito. Fica a impressão de que o “Hugo escada” - não inventa nada, mas faz funcionar; não sabe quem foi Méliès, mas acha alguém que saiba - nunca chega a tornar-se “Hugo protagonista” plenamente, capaz de interferir nas coisas que acontecem ao seu redor. Ele se encarrega dos relógios da estação, por exemplo, mas o roteiro não elabora nenhuma situação de crise entre trens e passageiros quando os relógios param de funcionar. Talvez essa dificuldade em dar mais gravidade ao personagem venha daquele jogo duplo entre as visões de Méliès e dos Lumière. No início do cinema talvez houvesse uma separação, mas o século 20 aprendeu que essas duas visões não são excludentes - o olhar isento é uma utopia, todo registro tem seus artifícios, assim como existe verdade no ilusório. Enquanto observador neste filme, Hugo se encanta com tudo, talvez porque pense que possa permanecer assim, observando, sem macular nada. Na verdade, a capacidade de ver já implica a capacidade de transformar.


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Conversamos com os atores mirins Asa Butterfield (Hugo) e Cloë Moretz (Isablle). Se você não reconhece o rosto de Asa Butterfield ainda, não se preocupe, pois irá em breve. Além de “Hugo”, Asa será o protagonista de uma nova adaptação literária para o cinema em 2013 chamada “Ender’s Game”, da Summit Enterteinment - a mesma produtora que trouxe “Crepúsculo” para a tela grande. Em “Hugo”, Asa foi escalado após longo processo de testes de elenco, assim como Chloë. “Eram inúmeras crianças fazendo testes para o papel. Nós dois enviamos fitas para o diretor de elenco e depois, quando eles filtraram apenas dois candidatos, Scorsese pediu que eu fosse a Nova York para realizar um teste na frente dele. Depois de alguns dias eu ganhei o papel”, conta o ator, acrescentando que apesar de ter visto alguns dos filmes de Scorsese, não sabia muito sobre o diretor. “Eu fiquei nervoso em encontrá-lo pela primeira vez, porque ele é Martin Scorsese! Mas foi muito legal. Ele nos fez ficar muito relaxados, e até se apresentou no início - ‘Olá, sou Martin Scorsese’”, diz Asa. Indagados sobre a filmografia de Scorsese, claramente não recomendada para menores de 18, os dois foram categóricos. “Nós assistimos ‘O Aviador’, ‘Os Infiltrados’ e ‘Ilha do Medo’.” Entretanto, Chloë, que já participou de filmes violentos, como “Deixe-me Entrar” e “Kick Ass - Quebrando Tudo”, confessa; “Eu também assisti ‘Touro Indomável’ e ‘Gangues de Nova York’ com tranquilidade. Mas um filme como ‘Taxi Driver’, por exemplo, acho mais difícil de digerir aos 14 anos. Talvez aos 15 ou 16”, diz a garota.

A invenção de Hugo Cabret Brian Selznick Editora Edições SM 536 páginas R$: 42,00

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Indagada se seus pais a deixam assistir aos filmes que faz, Chloë é rápida na resposta. “Claro que sim! Eu assisto todos. Eu estava na pré-estreia dos filmes, portanto, claro que assisti”, diz ela, ponderando; “Minha mãe sempre me pede para discernir filmes da realidade e, exatamente por isso, eu acho que nossos pais permitem que trabalhemos como atores; porque nós entendemos essa diferença”, completa.

A história de “A Invenção de Hugo Cabret” mistura a mágica com a inspiração que dá vida ao cinema, algo trazido pelo pioneiro cineasta francês, Georges Méliès

Conversar com Asa e Chloë certamente nos faz esquecer de que estamos falando com pré-adolescentes. Mas será que os jovens atores são maduros o suficiente para entender e sentir os personagens que interpretam? “Hugo é muito mais maduro que eu. Ele teve que crescer muito mais rápido que qualquer outra criança”, diz Asa. “Quando eu estava lendo o roteiro, eu gostei muito daquela parte sobre o propósito das pessoas na vida; Aquilo me fez refletir bastante. Eu concordo que ninguém vai encontrar propósito, é algo inconsciente”, comenta o ator. Sacha Baron Cohen, o comediante por trás dos personagens Borat, Ali G e Bruno, interpreta um inspetor na estação de trens parisiense onde vive o órfão interpretado por Asa. Indagado se Sacha é mesmo engraçado fora do set, ele diz: “Trabalhar com Sacha foi ótimo, embora eu achasse que ele era mais engraçado. Quando você olha para ele, você lembra de tantos personagens, mas no set ele é bem serio. Um ator bem metódico, eu diria. Inspirador. Ajudou Chloë e eu a fazer o mesmo”. A história de “A Invenção de Hugo Cabret” mistura a mágica com a inspiração que dá vida ao cinema, algo trazido pelo pioneiro cineasta francês, Georges Méliès (interpretado por Ben Kingsley). “Sabíamos muito pouco sobre Méliès. Sabíamos que ele era o pai do cinema, basicamente”, dizem Asa e Chloë. “Eu nunca tinha visto nenhum dos filmes, só algumas imagens famosas, como aquela da lua atingida por uma bala”, conta Asa, acrescentando que foi um prazer trabalhar com Ben Kingsley - o ator notoriamente manteve a formalidade e rigidez do personagem fora do set durante oito meses. “Ele foi um dos atores que mais me trouxeram inspiração; me deu várias dicas e conselhos”, diz o jovem. Asa interpreta um órfão, Hugo, de 12 anos, que vive secretamente em uma estação de trem parisiense enquanto tenta consertar um robô que seu pai (Jude Law) resgatara e começara a consertar antes de falecer. O robô, um homem mecânico, tem uma mensagem especial que os introduz ao mundo do cineasta francês Georges Méliès. Os atores mirins confessam que Scorsese os deu muito dever de casa antes de gravar Hugo, “Foram vários filmes para assistir”, dizem. “Você conversa com Scorsese e no dia seguinte ele te manda uma caixa repleta

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de DVDs sobre os filmes que ele falou no dia anterior”, conta Chloë. Indagados se assistiram aos filmes, eles sorriem. “Tentamos assistir o máximo possível. Os melhores que ele nos enviou foram os do Akira Kurosawa”, conta Asa, empolgado. “’Os Sete Samurais’, ‘Yojimbo’... Tinha uma caixa de filmes dele”. O diretor japonês É conhecido por filmes de samurais ultraviolentos. Quando perguntado se não achou o material um pouco pesado em comparação com filmes que está acostumado a assistir, Asa é categórico. “Hum... Eu acho que os filmes de hoje em dia são muito mais pesados que aqueles da década de 1930”, diz com firmeza. Chloë interrompe. “Era um pouco mais fantástico naquela época”. “Hugo” tem orçamento de U$170 milhões. Será que os jovens atores sentem a pressão de participar de produções tão grandes? “Não, não, a atmosfera no set geralmente é muito boa. Você trabalha com aquela mesma equipe por vários meses, e todos ficam bem próximos. Você não sente muito a pressão porque ninguém te julga; todos estão tentando fazer o melhor trabalho”, conta Chloë. Asa acrescenta: “A experiência toda foi incrivelmente divertida, mas cansativa e longa. Nós filmamos em um estúdio superquente por oito meses e meio”. A vida de atores mirins pode não ser tão divertida como a de qualquer criança de 14 anos, mas Asa e Chloë afirmam que mantêm uma vida normal ao lado de todos os compromissos profissionais que incluem participar de uma grande produção. “Eu estudo de casa há cinco anos. Não vou à escola. É mais fácil. Porém, não tenho muitos amigos. Eu viajo muito também”, diz Chloë. Asa confessa: “Eu sei que este filme vai mudar minha vida; a maneira que as pessoas olham para mim. Mas eu não me importo”. “O melhor desta carreira é poder encontrar pessoas fascinantes”, defende ele, acrescentando que gosta de atividades “normais” para sua idade também, como videogame. Chloë vai além. “Eu adoro moda. Isso é o mais legal. Poder vestir roupas diferentes, marcas”, confessa a jovem com gostos bem maduros. “Quando estou com os amigos, minha mãe não me deixa comprar roupas de marca. Ela não acha que seja certo. Eu sou bem normal quando estou com os meus amigos. Nós dois somos”, defende a jovem atriz, que se tornou famosa no papel da herói boca-suja Hit-Girl, de “Kick Ass” (2010).

Eu gostaria de ser James Bond. Uma versão mais jovem de Bond. Seria o máximo. - Asa

Quais papéis os jovens gostariam de interpretar futuramente? “Eu gostaria de ser James Bond. Uma versão mais jovem de Bond. Seria o máximo”, diz Asa, enquanto Chloë, animada, interrompe. “Eu quero ser a vilã! Eu gosto de papéis mais pesados”, conta a atriz que também estará no novo filme da dupla Tim Burton/Johnny Depp, “Dark Shadows”, com estreia prevista para maio.

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ilustração de Arthur Rackham


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O UNIVERSO VISUAL DE ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS É impossível negar que John Tenniel, o ilustre desenhista-cartunista de Punch, a mais famosa revista inglesa de humor no século XIX, se tornou um clássico com as gravuras para as Alices. Seu relacionamento com Dodgson foi péssimo, e o mínimo que Tenniel disse foi que ele era um “pernosticozinho”. Foi difícil Carroll convencê-lo a ilustrar também Through the looking-glass, recusado por outros ilustradores, talvez temerosos da fama de impertinente do autor. O fato é que Tenniel passou à posteridade ao ter o nome ligado ao de Carroll, e hoje é impossível dissociar um do outro, pois Tenniel foi universalmente “adotado” pelos editores de todo o mundo como o ilustrador “oficial” das Alices. Tampouco é possível desprezar suas gravuras. Equivocadas ou não (Carroll teria confessado a outro ilustrador, Harry Furniss, que não gostara do trabalho de Tenniel, exceto a criação de Humpty-Dumpty para o Looking-glass), são magistrais. É certo que são rígidas, que a sua Alice é inexpressiva e que as figuras são às vezes acadêmicas. Neste item, compare-se com a de Carroll, por exemplo, a sua série de quadros de “You are old, Father William”: ela é bem-comportada diante da série de desenhos hiper-espirituosos do autor. Este último, na óptica moderna, dá de cem a zero. Diz-se que Carroll era um “amador” se comparado à maestria técnica de Tenniel. Mas é preciso que se discuta o sentido desse termo. O que é ser “amador” dentro de artes tão individuais como, por exemplo, a poesia, a composição musical, sobretudo a

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não-mass media, a escultura, sem objetivo público, ou o desenho criativo, não-técnico? Tem sentido o termo nesses casos (e muitos outros)? Em troca da inventividade inquietante de Carroll, o desenhista dito naïf, as gravuras do “profissional” Tenniel atingem um grau máximo de homogeneidade e são tecnicamente perfeitas. Muito embora hoje não se valorize, tanto quanto no século XIX, o “acabamento” no processo artístico. Por exemplo, hoje parecem se valorizar bem mais os esboços e as peças inacabadas, como sucedeu nos casos das paisagens de Constable e no Balzac de Rodin. As gravuras de Tenniel estabelecem um padrão de valor mínimo de identificação com o texto e a elas sempre se pode recorrer. Talvez a loura Alice não satisfaça tanto (e desgostou a Carroll, que fez uma Alice de cabelos negros e finos, e recomendava a Tenniel que não pusesse tanta “crinolina” (fibra feita de crina) em Alice, referindo-se, talvez, à vasta cabeleira loura…), mas outros personagens são nele memoráveis, como a Duquesa, o Gato de Cheshire e o Chapeleiro Louco, em Wonderland. Na abertura de Looking-glass, temos uma imagem notável de Alice atravessando, de costas, o espelho, e saindo do outro lado. Ela atravessa o espelho e a página, e esta imagem curiosa de relação isomórfica texto-imagem deve ser creditada a Tenniel (a não ser que Carroll a tivesse sugerido, o que não seria impossível, mas não há comprovação). Chame-se a atenção,

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ilustração de John Tenniel


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ilustração de Arthur Rackham

nesse livro, para as imagens de Tweedledum & Tweedledee, da Morsa e do Carpinteiro e, particularmente, de Humpty-Dumpty. São criações originais de Tenniel, sem nenhuma indicação anterior de Carroll, que inspirariam depois numerosos ilustradores. Elas estabeleceram um padrão básico universalmente adotado e incansavelmente imitado. Este padrão tornou-se uma marca registrada do universo carrolliano, transmitida através dos anos. Um rival mais sério poderia ter sido Arthur Rackham, ilustrador famosíssimo do começo do século XX, ao qual se devem ilustrações notáveis, inclusive as (posteriormente) muito celebradas dos contos de Edgar Allan Poe. A edição ilustrada de Wonderland por Rackham é de 1907 e foi recebida com tantas controvérsias que, parece, não estimularam Rackham a ilustrar também o Looking-glass. Os admiradores fanáticos de Tenniel protestaram contra a “invasão” do que supunham ser um universo privado. Por outro lado, houve

um comentador que disse ser a Alice de Tenniel uma “boneca rígida [stiff puppet]”, enquanto a de Rackham era viva. O periódico Punch, órgão de origem de Tenniel, zombou dos novos ilustradores e em particular de Rackham numa charge intitulada “A Alice de Tenniel reina suprema”, na qual Alice, entronizada, pergunta ao Chapeleiro quem eram aquelas criaturazinhas engraçadas ao ver outras Alices, e, quando chega às imagens de Rackham, exclama ironicamente: “Curiouser and curiouser!” (exclamação de Alice quando seu pescoço se encomprida). Rackham, por sua vez, expressava todo o respeito por Tenniel e certamente o tomou como base para suas próprias ilustrações, mas Carroll (com certeza, a fonte primária de Tenniel) talvez tenha sido a fonte com quem mais se tenha identificado. Para começar, sua própria Alice, mesmo loura, diverge da de Tenniel pela suavidade do traço e pela simplicidade. As belas ilustrações coloridas de Alice entre os animais do lago superam de longe o tratamento dado ao episódio por Tenniel. A lição de radicalidade dos desenhos de

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ilustração de Charles Robinson

Carroll está presente em Rackham. Esta similaridade se vê, por exemplo, no violento contraste entre as imagens de Alice com o pescoço crescido e depois quando diminui vertiginosamente a ponto de o queixo tocar o chão. A imagem de Rackham para esta segunda situação tem semelhanças com a de Carroll. Nela, o pescoço esticado se desenvolve em curva, lembrando, segundo o crítico Patrick Hearn, a “linha serpentina” (linea serpentinata, que veio da arte maneirista de meados do século XVI e foi incorporada à estética art nouveau).

ilustração de Lewis Carroll

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O pescoço se enreda nos galhos da árvore e faz a pomba gritar “Serpente!”, supondo que Alice quisesse roubar-lhe os ovos do ninho. Enquanto a arte tradicionalista de Tenniel respeita o equilíbrio clássico da composição, a de Rackham, bem mais “maneirista” no sentido moderno do século XIX, tende à distorção e ao labirinto nessa imagem do pescoço confundido entre os galhos de árvore. Segundo Hearn, Tenniel é teatral e hierático na sua arte (e por isso a imagem da “stiff


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puppet”), enquanto Rackham é dramático. Ele adotou, além disso, uma extrema liberdade de composição, como as criaturas amontoadas no quadro em que representa a “lagoa de lágrimas”, que seguiu, sem dúvida, a lição carrolliana, mas extremando-a, com uma nova interpretação do episódio. A casa da Duquesa em Rackham exprime a idéia de ritmo e caos do episódio (linhas curvas de fumaça, figuras convulsionadas de Alice e da Cozinheira, pratos e panelas esvoaçantes) com perfeição, embora as figuras da Duquesa e da Cozinheira permaneçam inexcedíveis em Tenniel. Muitos detalhes, enfim, fazem da edição de Wonderland por Rackham uma preciosidade à parte.

surpreendentemente renovada e inspirada no estilo art déco, com traços muito nítidos e definidos. A Alice de Pogany é, segundo os comentadores, uma garota americana típica, bobby soxer, de saia e meias curtas e com o cabelo bem curto da época, no estilo page boy americano. Pogany também incorpora outras americanices, como o desfile de cartas como o naipe de paus que parecem cadetes de West Point, enquanto as de ouros e copas lembram Ziegfeld Follies Chorus Line. Um detalhe característico do ambiente americano é a ilustração da casa da Duquesa, em que se vê uma cozinheira negra, ainda comum na América, mas não imaginável numa cozinha tradicional inglesa vitoriana.

As inumeráveis versões ilustradas de Alice pós-Tenniel começaram desde o ano da morte de Carroll, com a edição brilhantemente ilustrada por Blanche McManus em 1898, com o autor ainda vivo (mas não há registros de comentários dele sobre McManus). Entre 1899 e 1904, registraram-se outras edições, sendo a mais conhecida a de Peter Newell. A partir de 1907, com a extinção do copyright inglês, as edições explodiram por toda parte. Assinalem-se como as mais interessantes, além das do próprio Rackham, as de Charles Robinson, Harry Furniss, A.E. Jackson e A.L. Bowley. Mas só em 1929 surge, segundo os comentários críticos de hoje, outra edição de grande destaque, com o trabalho de Willy Pogany, que nos trouxe uma Alice

Já da segunda metade do século XX é o trabalho de Ralph Steadman, em 1967, o primeiro a tentar, a partir de traços decididamente modernos, uma reinterpretação do universo carrolliano, drasticamente distante das origens da iconografia aliciana. Há também, pouco acessíveis, edições muito limitadas e raras com ilustrações de Salvador Dalí (1969) e de Max Ernst (1970). Tudo isso quanto às ilustrações para Wonderland, que foi realmente o livro de Carroll preferido para as edições ilustradas diversificadas. Through the looking-glass tem muito menos ilustradores. Tenniel, que assinou a edição básica, criou protótipos que seriam depois recriados incessantemente. Veja-se a versão-chave de Tenniel para compor a imagem de

ilustração de Peter Newell

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ilustração de Peter Blake

Humpty-Dumpty, e compare-se particularmente com a imagem criada por Philip Gough em 1940: a de Tenniel assinala o lado caricato, o seu Humpty-Dumpty é mais perfeitamente um homem-ovo, enquanto Gough destaca a vaidade e elegância dândi do personagem com roupas finas, cartola e bengala, mas esquece-se da confusão entre cinto-ou-gravata de Alice. Assinalem-se as edições com ilustrações de Blanche McManus (1899), Peter Newell (1901), Franklin Hughes e Philip Gough, especialmente destacadas pela crítica. Segundo a recepção crítica Mervyn Peake (1954), teria sido mais bem-sucedido como ilustrador de Looking-glass do que com Wonderland. Mas o grande destaque são as aquarelas brilhantemente coloridas de Peter Blake em 1970, chamando-se a atenção para o fato de que Blake era um pintor bastante famoso nos meios artísticos. Por isso, talvez, o aspecto plástico brilhante e o colorido exuberante sejam mais marcados do que o aspecto semântico (isto é, suas conotações de sentido) nessas ilustrações. Alguns pontos merecem ser assinalados: a) folha-de-rosto da edição de 1907, de Chatto & Windus, ilustrada por Millicent Sowerby, com duas aves enormes de longos bicos que se tocam, formando uma “moldura”; b) o delicioso infantilismo das ilustrações de A.L. Bowley, de 1921, em que Alice aparece com um vestido curto e florido e meias curtas, ao contrário da tradição do vestido e meias longos desde Tenniel até Newell (1902), Thomas Maybank (1907), Thomas Heath Robinson (1922), Gough (1940) e outros; em contraste, versões despojadas como a de Helen Munro (1933) e sobretudo a de Willy Pogany, com vestidos e cabelos curtos, derrubaram o estereótipo vitoriano para impor uma visão moderna da personagem; c) seria curioso,

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ainda, comparar, por exemplo, as versões de Tenniel e Pogany para o capítulo “A quadrilha da lagosta”: o contraste entre a rigidez da dança em Tenniel com a lepidez de quase vôo da corrida de Alice com o Grifo em Pogany; d) veja-se a notável versão de Philip Gough, com o traço nítido da sua gravura, para “You are old Father William”, e observe-se como ele fundiu e reinterpretou as lições de Carroll e Tenniel; e) enfim, as versões do tribunal valeriam muitas comparações: enquanto Thomas Maybank e K.M.R., por exemplo, mostram uma Alice espectadora, a de Harry Furniss (1926) expõe uma garota assustada que assume uma posição defensiva em meio à desordem. As inúmeras possibilidades simbólicas interpretativas alicianas, aqui mal enumeradas, existem por causa da riqueza referencial desses textos. Outros textos não foram tão férteis. Rhyme? and reason?, livro que contém poemas diversos e o célebre The Hunting of the Snark, depois muitas vezes editado em separado, foi, na primeira edição, espirituosamente ilustrado por Arthur B. Frost quanto aos poemas humorísticos, e Henry Holiday tornou-se o ilustrador clássico para The Hunting of the Snark. Tanto Frost quanto Holiday são bons quando o texto lhes fornece um fundamento que gere a originalidade do traço. No resto, as ilustrações são muito bem acabadas, em adequação ao espírito da época. Também as ilustrações de Harry Furniss para Sylvie and Bruno tornaram-se “oficiais” para esse livro desigual, mas eventualmente rico de referências e de elementos nonsense. As melhores imagens de Furniss são as dos melhores momentos do livro, como, por exemplo, de “A canção do jardineiro”. Mas são em boa parte pictorialmente convencionais, como também muitas passagens do livro.


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ilustração Salvador Dalí43 junho 2012 de Noctua



Entrevista

FERREIRA GULLAR Reconhecido como um dos maiores poetas vivos do Brasil, o personagem dessa entrevista nasceu José Ribamar Ferreira. Mas, logo tratou de adotar um nome artístico quando soube que os versos pouco inspirados de um tal de José Ribamar Pereira estavam sendo atribuídos a ele. Desde garoto, estava convencido do potencial de sua obra. E foi por essa razão que, a partir do sobrenome da mãe, Alzira Ribeiro Goulart, inventou para si um novo nome, Ferreira Gullar. Ao longo das décadas, a poesia do autor de A luta corporal, Dentro da noite veloz e Poema sujo se confirmou tão inconfundível quanto seu nome. Hoje, aos 81 anos, Ferreira Gullar tem sua obra reconhecida dentro e fora do país. O recém-conquistado Prêmio Moacyr Scliar de Literatura já é o terceiro concedido ao seu mais recente livro, Em alguma parte alguma – que levou as categorias Poesia e Livro do Ano no Jabuti de 2011. A seguir, em entrevista à Noctua, Ferreira Gullar fala do merecido reconhecimento de seu trabalho, analisa o relançamento de sua obra pela José Olympio e admite que viver de poesia não é tarefa das mais simples. “Costumo dizer, de brincadeira, que poesia não vale nada no mercado porque vende pouco. Mas, é importante porque transforma a dor em alegria e o sofrimento em beleza”, afirma.

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Entrevista

Em fevereiro, você foi escolhido, entre 152 candidatos, o vencedor do 1º Prêmio Moacyr Scliar de Literatura, antes, em 2011, também ganhou o Jabuti. Qual é a importância que você atribui a este tipo de premiação?

É sempre bom ganhar um prêmio literário. Não vou dizer que não é. Como é bom ganhar dinheiro em função do seu trabalho. Mas a coisa mais importanteé o reconhecimento da qualidade do seu trabalho. Não escrevo para mim. Escrevo para o outro. Na hora que escrevo, escrevo para satisfazer a minha necessidade de expressão. Mas o sentido da arte é dialogar com o outro. Caso contrário, não teria sentido. O reconhecimento do outro é importante, sobretudo quando se trata de um júri categorizado. Mas, para falar a verdade, eu nem sabia que estava concorrendo a esse prêmio [o Moacyr Scliar]. Como sempre acontece, não sou eu quem me inscrevo nessas premiações. É a José Olympio que toma a iniciativa. De modo que posso garantir que foi uma dupla surpresa agradável.

Ao longo dos anos, sua poesia ganhou os mais diferentes adjetivos: engajada, transgressora, vanguardista. Como você definiria a poesia do Ferreira Gullar?

Essas qualificações correspondem a momentos da minha trajetória artística. A minha experiência como poeta começou de um determinado modo, mas, em função do que eu ia aprendendo e descobrindo, foi mudando ao longo dos anos. Não posso definir a minha poesia com um adjetivo qualquer. Não quero dizer simplesmente que ela é isso ou aquilo. Na verdade, a minha poesia é algo que foi sendo inventada ao longo dos anos. Confesso a você que, das qualificações que você citou,não sei se o termo vanguarda se aplica ao meu trabalho. Se analisarmos bem, vanguarda é uma atitude supostamente revolucionária. Essa ideia veio do Manifesto Comunista de Marx, de 1848. Assim como os manifestos políticos, os manifestos vanguardistas também prometem coisas que não cumprem. É mais demagogia do que outra coisa. E eu nunca fui isso. Nunca fiz manifesto prometendo coisas que não realizei.

Em 1976, Vinícius de Moraes disse que você era “o último grande poeta brasileiro”. Você concorda com ele? Ou, em sua opinião, há outro “último grande poeta brasileiro”?

Sou a pessoa menos indicada para falar desse assunto… (Risos). Quando alguém emite uma opinião dessa natureza, está querendo manifestar, na verdade, o seu entusiasmo pelo que leu, pela poesia da pessoa a que se refere. Isso não pode ser entendido ao pé da letra. Existem muitos poetas e, dependendo da perspectiva, você pode achar que esse é melhor do que

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aquele ouque aquele tem mais expressão do queessee assim por diante. O próprio Drummond, quando falavam que ele era o maior poeta brasileiro,costumava responder: “Vocês mediram com que régua? Qual foi a medida que vocês usaram?” (Risos)

Este ano, a José Olympio pretende relançar sua obra completa, com novo projeto gráfico. Esse tipo de iniciativa ajuda a apresentar a obra do Ferreira Gullar a uma nova geração de leitores?

Ajuda, sim!Não tenho dúvida de que essa ideia da José Olympio é ótima e que vai ajudar muito na divulgação dos meus livros. Mas o que eu digo sempre é: o jovem já gosta da minha poesia. Grande parte do leitor da minha poesia é gente jovem. Sei disso porque, quando ando na rua, encontro com eles. Às vezes, quando vou fazer uma palestra, boa parte do público que me assiste é de gente jovem. Não sei exatamente o porquê disso, mas acho que minha poesia diz algo aos jovens. Talvez seja porque, ao longo dos anos, a minha poesia atravessou várias fases. Alguns jovens podem se interessar mais pela minha poesia de caráter político. Outros, pelo período mais neoconcreto da minha poesia. E assim por diante.

O que você teria a dizer a um jovem que sonha em ganhar a vida como poeta?

Viver de poesia é difícil. Ganhei a minha como jornalista. Costumo dizer, de brincadeira, que poesia não vale nada no mercado. Poesia vende muito pouco. Mesmo poetas consagrados como Drummond, Bandeira e Pessoa não vendem tanto quanto romancistas como Jorge Amado. A poesia é importante porque vai fundo nas questões. Muitas vezes, dá alegria ao leitor em um momento difícil em que ele se encontra desamparado. Mas não é leitura fácil. Poesia não é divertimento. Você pode ler um bom romance para se distrair. Mas ninguém vai ler poesia para se distrair. Até quem gosta de poesia, não lê poesia todos os dias. Por isso, a venda é reduzida. Se o sujeito pensa que vai viver de poesia, não vai.

Em 2010, você lançou Em alguma parte alguma. Até então, seu último livro era Muitas vozes, de 1999. Será que teremos que esperar mais 11 anos para ler um novo livro de poesia do Ferreira Gullar?

Ainda não sei se haverá um próximo livro. Veja bem: o último poema que eu escrevi foi em novembro de 2009. Desde então, não escrevi mais nada. Não sei se voltarei a escrever poesia. Espero que sim, mas não sei. Eu não governo a minha poesia. Não sei quando


Entrevista

ela vai nascer. Não sou eu que determino o nascimento dela. Essa decisão não é voluntária, compreende? A poesia nasce de uma coisa a que eu chamo de espanto. É preciso que algo me espante, surpreenda ou atordoe para eu escrever poesia. Neste estado, e só neste estado de espanto, é que o poema consegue nascer. Escrever poesia não é como escrever crônica. “Ah, hoje eu vou escrever uma crônica sobre o prédio que desabou no Centro do Rio!” Vou lá, sento e escrevo. Escrever poema não é tão fácil. Escrevo um hoje. Daqui a um mês, escrevo outro. E assim vai. Se eu não estiver neste estado de espanto, nem adianta tentar porque não vai dar certo.

Você já disse que, no momento, prefere reler a ler. Que autores você tem relido ultimamente?

Sempre que posso, releio (Rainer Maria) Rilke. Gosto de reler poemas que já conheço, entende? Muitas vezes, esses poemas somem da minha memória e não me dou conta disso. Às vezes, é um Drummond. Outras vezes, um Pessoa. Mais adiante, um T.S Eliot. Gosto de reler poetas que fazem parte da minha história. Esses poetas contribuíram muito para a minha formação. Ninguém inventa literatura, não é verdade? Se a minha poesia existe, é porque ela nasceu da leitura desses poetas. Ainda hoje, me lembro da primeira vez em que li o Rilke, Elegias de Duíno. Aquilo para mim foi uma revelação. De certo modo, eu achava que poesia era outra coisa.Mas, daquele dia em diante, ganhou outra dimensão. A mesma coisa aconteceu quando li T.S. Eliot. Tudo isso me ajudou a entender o que é poesia. Você precisa saber o que é para tentar escrever. Você tem que saber onde fica o Piauí, se quiser chegar lá, entende? (risos)

cheiro…”. O que isso tem a ver com tangerina? (Risos) Assim que cheguei em casa, continuei a escrevê-lo. Escrever poesia é uma coisa meio mágica. É uma relação de acaso e necessidade. Fazer poesia é tornar o acaso, necessário. É tornar o possível, realidade.

Dois dos temas mais recorrentes em sua obra são silêncio e morte. Do que você mais tem medo?

Se você me perguntar se eu tenho medo da morte, vou responder que não. Não quero morrer. Nem vivo pensando nisso. Aliás, não tenho motivos para isso. Aos 81 anos, me considero uma pessoa bastante saudável. Outro dia, fui fazer um check-up e a médica ficou abismada: “Mas o senhor não tem colesterol alto, pressão alta, nada disso? O que o senhor come?”. Respondi: não como! Ela começou a rir. É claro que eu como, mas como muito pouco. A Cláudia (Ahimsa, poetisa gaúcha), minha companheira, já me apelidou de “meia porção”. Quando vou ao restaurante, só como a metade do prato… (risos). Mas, voltando à pergunta, não tenho medo da morte. Mas também não gosto de filosofar sobre ela porque viver é uma coisa meio sem explicação, sabe? Como é que você vai explicar para alguém a existência do cosmo? Se parar para pensar, você não passa de um grão de poeira perto da imensidão do

Em sua opinião, o poeta já nasce poeta? Ou qualquer um de nós pode se arriscar a escrever poesia?

Há uma boa dose de técnica na poesia. Disso, não tenho dúvida. Mas, veja bem: técnica é necessária, mas não é suficiente. Não basta saber fazer. Se fosse assim, eu escreveria 10 poemas por dia, não concorda? Saber fazer não resolve. É aí que entra o espanto. Se algo não me espanta, surpreende ou atordoa, não vou conseguir fazer poesia. Quando você escreve, tem diante de si uma página em branco. E, diante desta página em branco, tudo é possível. Outro dia, senti um forte cheiro de tangerina aqui em casa. Até tentei, mas não consegui escrever nada. No dia seguinte, comecei a pesquisar sobre o assunto. Dali a alguns dias, eu estava a caminho da praia, quando me ocorreu o primeiro verso: “Com raras exceções, os minerais não têm

caricatura de Ferreira Gullar por Baptistão

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Entrevista

universo. O que estou fazendo aqui? Não faço a menor ideia. Nem quero saber… (Risos) Não acredito em Deus, mas entendo quem acredita. Deus é a única resposta plausível para explicar a imensidão do universo.

muitos, mas são legais. Sou considerado pela minha poesia. Sinal de que o meu trabalho deu certo.

Uma de suas frases mais famosas é “Não quero ter razão, quero ser feliz”. Você é uma pessoa feliz?

Puxa, nunca parei para pensar nisso!(pausa) Gostaria de ser lembrado pelo poema que dá significado à vida de cada um dos meus leitores. Às vezes, um poema toca o coração de uma pessoa e não toca o de outra. Quero que o leitor se lembre de mim pela alegria que a minha poesia transmitiu a ele em um momento de sua vida. Poesia só tem sentido se transforma a dor em alegria e o sofrimento em beleza. Outro dia, passeando pelo calçadão de Copacabana, eu me lembrei do meu filho Marcos (que morreu em 1992). Assim que cheguei em casa, escrevi: “Os mortos veem a vida pelos olhos dos vivos”. É doído, não é? Mas é consolador também. Sei que meu filho está vivo dentro de mim. Não quero transmitir o meu desespero a ninguém.

Um dia, marquei com a Claudia para irmos ao cinema. Aí, ela chegou e começamos a conversar. Lá pelas tantas, ela falou alguma coisa, discordei, ela retrucou e começou a discussão… Pouco depois, ela perdeu a paciência, apanhou a bolsa e foi embora, batendo a porta. Nessa, falei: “Ué, agora estou cheio de razão e infeliz! Que sentido tem isso? Eu não quero ter razão. Eu quero ser feliz!”. (risos) Não existe felicidade permanente. No geral, eu me considero uma pessoa feliz.Tenho minha companheira, com quem me relaciono muito bem. Tenho filhos e netos, pessoas que constituem a minha vida afetuosa. Tenho meus amigos, não são

Se você tivesse que escolher um único poema para ser lembrado daqui a 100 anos, qual seria?

Ferreira Gullar em seu apartamento no Rio de Janeiro

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Ilustração

Belos cartazes alternativos para filmes Disney Hoje trago pra vocês o trabalho de Rowan Stocks Moore que tive a oportunidade de ver através do blog Thaeger e publicado originalmente no site TQS Magazine. Tratam-se de uma releitura das clássicas histórias da Disney e aplicadas de forma criativa e minimalista. Mas o que quero reforçar é o uso agressivo princípio do fechamento (Gestalt), que neste caso, foi muito bem trabalhado. O Fechamento ocorre quando nós conseguimos identificar formas que na verdade não estão desenhadas, são formadas por ora no contorno de objetos como na maça da Branca de Neve ou mesmo pela sobreposição de formas, como no cartaz de A Pequena Sereia e AristoCats. Outros tantos princípios podem ser identificados com facilidade como

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a “Proximidade e Semelhança” no agrupamento dos pontos que ao fim identificam a forma de um dálmata. Bom, não vou adentrar muito na reflexão gestaltista, deixo esse exercício para você leitor: Analise as unidades presentes em cada cartaz, suas subunidades e a forma como interagem entre si e em conjunto. Tente identificar outros princípios (sim existem vários) e avalie a forma como o foi utilizado e a mensagem e carga de significados que cada unidade possui…

Sobre o autor : Graduado em design gráfico, de Liverpool, Inglaterra, com uma paixão por capas de livros e filmes, assim como um amor para o design em geral!






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Mais recentes

Deslembrança Cat Patrick Editora Intrinseca 256 páginas R$: 24,90

Laços de amor eterno James Van Praagh Editora Sextante 206 páginas R$: 19,90

No jardim das feras Erik Larson Editora Intrinseca 448 páginas R$: 39,90

A última carta de amor Adalgisa Campos da Silva Editora Intrinseca 384 páginas R$: 29,90

DESLEMBRANÇA História linda, um livro muito bom, de fácil leitura, adorei! Sílvia de Paula

Se você gosta de um romance super fofo e um pouco de mistério, esse é um livro para você. Jenifer Fernandes

O livro é muito bom e me deixou uma lição com seus personagens principais London e Luke. Lindoooooo, amei! Anne Pereira

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Em Deslembrança, quando London Lane recosta a cabeça no travesseiro à noite e dorme, cada mínimo detalhe do dia que passou desaparece de sua memória. Pela manhã, restam-lhe apenas lembranças do futuro: pessoas e acontecimentos que ainda estão por vir. Para conseguir manter uma rotina minimamente normal, London escreve bilhetes para si própria e recorre à sempre fiel melhor amiga. Já acostumada a tudo isso, ela tenta encarar a perda de memória mais como uma fatalidade do que como uma limitação. As coisas começam a se complicar com a chegada de um garoto novo no colégio, Luke Henry. Os dois se apaixonam e começam a namorar, mas misteriosamente London não consegue enxergá-lo no seu futuro. Dessa forma, todo dia é como se o conhecesse pela primeira vez. Quando conturbadas imagens de um funeral invadem sua mente, London percebe que é hora de começar a decifrar passado esquecido, para conseguir mudar o futuro que a assombra. Sem saber de quem é o funeral, ela vai acabar esbarrando em segredos da família que seriam melhor não serem revelados. O livro foca em London, uma adolescente que sempre que dorme vislumbra o futuro, porém esquece o passado. Para conseguir se “misturar” em meio ao ambiente escolar e seu dia a dia, London escreve bilhetes antes de dormir e toda manhã os lê para que possa se inteirar sobre sua própria vida e que seu problema possa passar despercebido aos outros! London tem apoio de sua mãe e de sua melhor amiga Jamie nessa rotina nada comum que tem que enfrentar todos os dias! Quando conhece Luke Henry sua vida começa a mudar e suas lembranças também! O pai de London é ausente, ela não tem lembranças dele e só sabe aquilo que sua mãe conta, porém ao mexer nas coisas da mãe London descobre que seu pai por diversas vezes tentou manter contato.


Mais lidos

Dom Casmurro Machado de Assis Editora Martin Claret 223 páginas R$: 14,90

O cacador de pipas Khaled Hosseini Editora Nova Fronteira 368 páginas R$: 39,90

A menina que roubava livros Markus Zusak Editora Intrinseca 480 páginas R$: 39,90

O pequeno príncipe Antoine de Saint-Exupery Editora Agir 94 páginas R$: 29,90

O PEQUENO PRÍNCIPE O narrador recorda-se do seu primeiro desenho de criança, tentativa frustrada de os adultos entender o mundo infantil ou o mundo das pessoas de alma pura. Ele havia desenhado um elefante engolido por uma jibóia, porém os adultos só diziam que era um chapéu. Quando cresceu, testava o grau de lucidez das pessoas, mostrando-lhes o desenho e todas respondiam a mesma coisa. Por causa disto, viveu sem amigos com os quais pudesse realmente conversar. Pelas decepções com os desenhos, escolhera a profissão de Piloto e, em certo dia, houve uma pane em seu avião, vindo a cair no Deserto de Saara. Na primeira noite, ele adormeceu sobre a areia. Ao despertar do dia, uma voz estranha o acordou, pedindo para que ele desenhasse um carneiro. Era um pedacinho de gente, um rapazinho de cabelos dourados, o Pequeno Príncipe. O narrador mostrou-lhe o seu desenho. O Pequeno Príncipe disse-lhe que não queria um elefante engolido por uma jibóia e sim um carneiro. Ele teve dificuldades para desenhá-lo, pois fora desencorajado de desenhar quando era pequeno. Depois de várias tentativas, teve a idéia de desenhá-lo dentro de uma caixa. Para surpresa do narrador, o Pequeno aceitou o desenho. Foi deste modo que o narrador travou conhecimentos com o Pequeno Príncipe. Ele contou-lhe que viera de um planeta, do qual o narrador imaginou ser o asteróide B612, visto pelo telescópio uma única vez, em 1909, por um astrônomo turco. O pequeno Planeta era do tamanho de uma casa. O Pequeno Príncipe contou o drama que ele vivia, em seu Planeta, com o baobá, árvore que cresce muito; por este motivo, ele precisava de um carneiro para comer os baobás enquanto eram pequenos. Através do Pequeno Príncipe, o narrador aprendeu a dar valor às pequenas coisas do dia-a-dia; admirar o pôr-do-sol, apreciar a beleza de uma flor, contemplar as estrelas… Ele acreditava que o pequeno havia viajado, segurando nas penas dos pássaros selvagens, que emigravam.

É uma história infanto-juvenil, mas com uma lição para todas as pessoas. Lição de vida, porque no fundo todos nós um dia fomos crianças. Anne Rocha

Um livro para ser lido e relido, nas mais variadas idades. Ele traz lições importantes, instigando a reflexão sobre a infância e a vida adulta Jenifer Fernandes

Retrata, em belas e delicadas frases, a realidade em que devemos viver Gysele Maciel

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Mais lendo

O mundo de Sofia Jostein Gaarder Editora Cia das Letras 552 páginas R$: 49,50

As crônicas de Nárnia C. S. Lewis Editora Martins Fontes 751 páginas R$: 99,90

A guerra dos tronos George R. R. Martin Editora Leya Brasil 592 páginas R$: 49,90

A menina que roubava livros Markus Zusak Editora Intrinseca 480 páginas R$: 39,90

O MUNDO DE SOFIA Trabalha a filosofia muito bem,de um modo voltado para os jovens: não enjoa,é viciante, é cativante e trabalha com nossa curiosidade... Natália Souza

Só tenho certeza de uma coisa: Minha filha se chamará Sofia! Amanda Santos

A cada página você encontra razões para continuar lendo,até relido..como no meu caso Layse Soares

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O livro “O Mundo de Sofia” do escritor norueguês, Jostein Gaarder, conta a história de uma adolescente que leva uma vida aparentemente normal, até que um fato curioso começou a tirar o seu sossego, cartas misteriosas, com algumas perguntas estranhas: Quem é você? De onde vem o mundo? Sofia ficou perplexa, essas questões não estavam no cronograma de estudos do seu cotidiano escolar. Buscou no seu esconderijo, o silêncio necessário para pensar a respeito. Então, resolveu fazer-lhe as mesmas perguntas que havia recebido: Quem é você? Ao observar-se em frente ao espelho viu que a sua imagem refletida repetia os mesmos movimentos, e também refletiu sobre o outro questionamento: De onde surgiu o mundo? Lembrou-se das aulas de religião e pensou ‘’O mundo foi criado por Deus, e tudo o que nele há’’, mas pensou de novo e se perguntou: De onde veio Deus? Naturalmente para Sofia tudo tem uma causa, para ela, Deus também foi criado, então ficou em dúvida e pensou de novo: haveria de ter uma explicação mais plausível para estas perguntas. Sofia realmente estava empolgadíssima com as cartas misteriosas, já não conseguia manter a concentração na escola, e tudo o que os professores tinham a ensinar, não eram questões relacionadas ao cotidiano das pessoas. A partir daí Sofia passou a entender que as pessoas se preocupavam com as banalidades da vida. Sua colega de escola percebeu a sua indiferença, quando a convidou para jogar baralho e peteca, a resposta de Sofia foi seca, “tenho coisas mais importantes a pensar”. Ao chegar em casa logo foi correndo para a caixa de correio e lá havia mais uma correspondência endereçada a Hilde Knag que estava aos cuidados de Sofia, cujo remetente é seu pai que está no Líbano.


Mais quero ler

As crônicas de Nárnia C. S. Lewis Editora Martins Fontes 751 páginas R$: 99,90

O menino do pijama listrado John Boyne Editora Cia das Letras 192 páginas R$: 36,00

O morro dos ventos uivantes Emily Bronte Editora Lua de Papel 200 páginas R$: 31,90

A menina que roubava livros Markus Zusak Editora Intrinseca 480 páginas R$: 39,90

A MENINA QUE ROUBAVA LIVROS Entre 1939 e 1943, Liesel Meminger encontrou a Morte três vezes. E saiu suficientemente viva das três ocasiões para que a própria, de tão impressionada, decidisse nos contar sua história, em “A Menina que Roubava Livros”, livro há mais de um ano na lista dos mais vendidos do “The New York Times”. Desde o início da vida de Liesel na rua Himmel, numa área pobre de Molching, cidade desenxabida próxima a Munique, ela precisou achar formas de se convencer do sentido da sua existência. Horas depois de ver seu irmão morrer no colo da mãe, a menina foi largada para sempre aos cuidados de Hans e Rosa Hubermann, um pintor desempregado e uma dona de casa rabugenta. Ao entrar na nova casa, trazia escondido na mala um livro, “O Manual do Coveiro”. Num momento de distração, o rapaz que enterrara seu irmão o deixara cair na neve. Foi o primeiro de vários livros que Liesel roubaria ao longo dos quatro anos seguintes.E foram estes livros que nortearam a vida de Liesel naquele tempo, quando a Alemanha era transformada diariamente pela guerra, dando trabalho dobrado à Morte. O gosto de roubá-los deu à menina uma alcunha e uma ocupação; a sede de conhecimento deu-lhe um propósito. E as palavras que Liesel encontrou em suas páginas e destacou delas seriam mais tarde aplicadas ao contexto a sua própria vida, sempre com a assistência de Hans, acordeonista amador e amável, e Max Vanderburg, o judeu do porão, o amigo quase invisível de quem ela prometera jamais falar. Há outros personagens fundamentais na história de Liesel, como Rudy Steiner, seu melhor amigo e o namorado que ela nunca teve, ou a mulher do prefeito, sua melhor amiga que ela demorou a perceber como tal. Mas só quem está ao seu lado sempre e testemunha a dor e a poesia da época em que Liesel Meminger teve sua vida salva diariamente pelas palavras, é a nossa narradora. Um dia todos irão conhecê-la. Mas ter a sua história contada por ela é para poucos. Tem que valer a pena.

Um livro cheio de emoção e um chamado muito forte da nossa atenção para a força e o valor de viver. Izabel Goulart

Muito bem escrito, e realmente envolvente. Me surpreendi com o final, esperava algo totalmente diferente. Martha de França

Vale a pena conhecer um pouco mais a pequena ladra de livros e deixar-se envolver pela sua jornada! Mayara Trupel

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Cristovão Tezza Escritor e professor universitário, o mais premiado autor brasileiro em 2008, recebeu os prêmios Jabuti, Bravo!, entre outros.

VIAGEM

E senti poder: nada pode me tocar. Tudo é irremediável, e isso, pelo menos aqui, é muito bom

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17 – brilhou o número. Entreguei minha senha. São cinco mil reais, ela disse, sem olhar para mim, preenchendo um formulário. Aquilo me pareceu muito seco. E o tempo? – eu quis saber, passando-lhe o cheque. Por esse preço, eles devem ganhar muito dinheiro. Tempo? – e ela sorriu, não exatamente com ironia. Talvez ela me achasse ingênuo. Uma pequena ansiedade – já havia alguém com a ficha na mão, esperando o 18 brilhar. Sempre sorrindo, a funcionária apontou o dedo para o fundo do corredor. É a última porta, ela disse. Eu me sinto idiota nesses momentos. No meio do caminho lembrei do imposto de renda – sem recibo, eu poderia descontar? Quase voltei, mas ela já atendia o 18. E ela não me falou do tempo – o dinheiro que estou pagando não é pouco. Imaginei o que dizer a algum porteiro que encontrasse ao abrir a porta, mas quando a porta se abriu senti uma vertigem breve, o clarão de luz, um baque nas pernas, a tontura. Abri os olhos e vivi o pânico da estranheza. Uma tarde tranqüila naquela rua que, primeira impressão, me pareceu pequena demais, como uma fraude. É aqui mesmo? Tentei lembrar do que eu havia escrito na requisição e sorri, nervoso, pensando naquele seriado imbecil, A Ilha da Fantasia. Eis o meu desejo: o tempo. Pois bem, parece que é isso – ou só isso. No momento seguinte senti uma brutal felicidade: sim, era aquela casa mesmo, cinqüenta anos antes. E senti poder: nada pode me tocar. Tudo é irremediável, e isso, pelo menos aqui, é muito bom. Avancei para o portão, com uma sem-cerimônia afinal grosseira, percebi, quando o menino largou o carrinho de maté-

ria plástica no degrau e me olhou assustado: quem é esse homem barrigudo?, ele parecia perguntar, e naqueles olhos arredios como que adivinhei cada fiapo de idéia. Avisar o pai, é o que ele queria, o que me deu a senha: O seu pai está? – e sorri. E só então – o momento mais brutal da minha vida – percebi quem afinal era o menino e senti a densa hostilidade com que me olhava. As crianças são seres totalizantes, eu mesmo me desculpei. Ele não pode imaginar o que – o quê? Ele só pode imaginar. A hostilidade aparente se transformou numa concha de medo, mas não muito. Esticou o braço sem tirar os olhos dos meus olhos – foi a minha vez de sentir estranheza. A calça curta, os suspensórios, a camisa, a boina. A imagem de uma nitidez absurda, e no entanto sem paz – um cromo vivo e tenso. Talvez ele me acusasse, se soubesse. Contornei a casa branca – tudo menor do que eu imaginara – e vi meu pai atrás de uma pequena cerca divisória, erguendo uma galinha pelas pernas, como um troféu. Sem camisa, costelas à mostra, a magreza de um branco queimado. Era quase como um retorno triunfal, eu sonhei durante dois passos, até receber nos olhos aqueles olhos de então – toda a sua fria beleza se concentrava neles – e a galinha silenciou abrupta, na paz da cabeça para baixo. Ele esperava que eu falasse – talvez eu quisesse comprar a galinha. Ou. Ele aguardava a minha palavra: na imediata organização daquele cenário eu era o mais velho e o mais importante. O mais alto também, espantei-me. Ele foi baixando a galinha, que evitava o escândalo, e continuou a me olhar, à espera.


Título da seção


Poesia

VINÍCIUS DE MORAES Pela luz dos olhos teus Quando a luz dos olhos meus E a luz dos olhos teus Resolvem se encontrar Ai que bom que isso é meu Deus Que frio que me dá o encontro desse olhar Mas se a luz dos olhos teus Resiste aos olhos meus só p’ra me provocar Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar Meu amor, juro por Deus Que a luz dos olhos meus já não pode esperar Quero a luz dos olhos meus Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará Pela luz dos olhos teus Eu acho meu amor que só se pode achar Que a luz dos olhos meus precisa se casar. Marcus Vinicius de Melo Moraes já compunha versos ao cursar os estudos secundários em sua cidade natal. Em 1930, ingressou na Faculdade Nacional de Direito, onde conheceu e se ligou a nomes que se destacariam no panorama intelectual e político brasileiro, como Otávio de Faria, San Thiago Dantas e Plínio Doyle. Formou-se em 1933, mesmo ano em que lançou seu primeiro livro de poemas, “O Caminho para a Distância”. Não se dedicou muito tempo à advocacia, ingressando no Ministério da Educação para exercer o cargo de censor cinematográfico. Em 1938, porém, recebeu uma bolsa do Conselho Britânico para estudar língua e literatura inglesa na Universidade de Oxford. Ainda na Inglaterra, casou-se por procuração com Beatriz Azevedo de Melo. Voltou ao Brasil em 1939, devido ao início da Segunda Guerra Mundial.

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Soneto da separação De repente do riso fez-se o pranto Silencioso e branco como a bruma E das bocas unidas fez-se a espuma E das mãos espalmadas fez-se o espanto. De repente da calma fez-se o vento Que dos olhos desfez a última chama E da paixão fez-se o pressentimento E do momento imóvel fez-se o drama. De repente, não mais que de repente Fez-se de triste o que se fez amante E de sozinho o que se fez contente. Fez-se do amigo próximo o distante Fez-se da vida uma aventura errante De repente, não mais que de repente.


Poesia

Soneto de fidelidade

Soneto do amor total

De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento.

Amo-te tanto, meu amor ... não cante O humano coração com mais verdade ... Amo-te como amigo e como amante Numa sempre diversa realidade.

Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento

Amo-te afim, de um calmo amor prestante E te amo além, presente na saudade. Amo-te, enfim, com grande liberdade Dentro da eternidade e a cada instante.

E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Amo-te como um bicho, simplesmente De um amor sem mistério e sem virtude Com um desejo maciço e permanente.

Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.

E de te amar assim, muito e amiúde É que um dia em teu corpo de repente Hei de morrer de amar mais do que pude.

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Crônica

A INVENÇÃO DA LARANJA Fernando Sabino A laranja foi um dia inventada por um grande industrial americano, cujo nome prefiro calar, mas em circunstâncias que merecem ser contadas. Fruta cítrica, suculenta e saborosa, ela começou sendo chupada às dúzias por este senhor, então um simples molecote de fazenda no interior da Califórnia. Com o correr dos anos o molecote virou moleque e o moleque virou homem, passando por todas as fases lírico-vegetativas a que se sujeita uma juventude transcorrida à sombra dos laranjais: apaixonou-se pela filha do dono da fazenda, meteu-se em peripécias amorosas que já inspiraram dois filmes em Hollywood e que culminaram nas indefectíveis flores de laranjeiras, até que um dia, para encurtar, se viu ele próprio casado, com uma filha que outros moleques cobiçavam e dono absoluto da plantação. Passou a vender laranjas. Como, porém, invencível fosse a concorrência de outras fazendas mais próperas e a sua assim não propesrasse, resolveu um dia dar o grande passo que foi o segredo do sucesso do inventor de coca-cola, resumida num sábio conselho

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que lhe deram: engarrafe-a. Impressionado com essa história, resolveu engarrafar as suas laranjas. Pior foi a emenda que o soneto, no caso a garrafa que a própria casca: depois de empatar todo o seu dinheiro numa moderna e gigantesca maquinaria de espremer laranjas, que dava conta não só das suas mas da produção de todos os outros plantadores da região, que passou a comprar, verifico que a garrafa não era o recipiente ideal para o caldo assim obtido, não só porque o preço dela não compensasse, mas também e principalmente porque o vidro não preservava devidamente as qualidade naturais do produto em estoque, que, com o correr do tempo, acabava se azedando. Tinha mania de perfeição, o nosso homem, e possibilitada pelas virtudes alimentícias da própria fruta, levaram-no à prosperidade que ele, hoje, sem trocadilho, desfruta. Tendo, pois, implicado com a garrafa, e disposto a fazer chegar ao consumidor o suco da laranja com todo o cítrico frescor que a fruta diretamente chupada proporciona, houve por bem que enlatá-lo seria a solu-


ção. Lamentável engano! Cedo percebeu que o produto assim acondicionado apresentava, entre outras desvantagens, a de não dar lucro nenhum. Mas, o que era pior, para que o suco em conserva não adquirisse, com o correr do tempo, aquele sabor característico dos alimentos enlatados, tornava-se necessário adicionar-lhe alguns ingredientes químicos — o que, evidentemente, ia de encontro à mais específica das virtudes do seu produto, que era a de ser natural. Experimentou então as caixinhas de papelão parafinado, sem tampa, mas tão-somente com um pequeno orifício obturado, pelo qual o consumidor introduziria um canudinho, podendo assim beneficiar-se do produto sem que este se expusesse aos efeitos nocivos a que o sujeitam as mudanças de recipiente. Logo verificou, porém, que esta embalagem também apresentava sérias desvantagens, como a de sua fragilidade, quando submetida aos rigores dos transportes de cidade para cidade em grande quantidade. Depois de tentar sem resultado todas as espécies de recipientes existentes, desde a madeira até a matéria plástica, começava a desanimar, quando lhe chamou a atenção a quantidade de casca de laranja que diariamente sua fábrica confiava à eficiência expedita dos lixeiros. Talvez a idéia tenha nascido apenas da necessidade de aliviar o trabalho deles, diminuindo o lixo e aumentando o lucro — o certo é que se pôs a cismar numa maneira de aproveitar tamanha quantidade de cascas (sabia, por experiência, que ao

consumidor desagradavam as laranjas espremidas com casca) quando tal cisma se ligou à outra, relativa ao recipiente — e a idéia nasceu. Então imaginou, encomendou e mandou instalar uma aparelhagem completamente nova, destinada apenas a extrair o miolo da laranja através de um orifício, sem inutilizar-lhe a casca. Em pouco apareciam no mercado as primeiras laranjas contendo no seu interior o suco já espremido. A idéia não foi avante. Para que a casca, assim transformada em recipiente, não murchasse em poucos dias, tornava-se necessário um beneficiamento artificial extremamente dispendioso, que garantisse o permanente frescor do caldo como só a película natural dos gomos até então fora capaz. Eis que o nosso grande industrial descobre repentinamente que o suco, para se manter fresco e natural, deverá ser conservado no interior dos próprios gomos da laranja e os gomos no interior da própria casca, inventando assim o melhor acondicionamente de seu produto que jamais tivera a ventura de imaginar. Com a grande vantagem, entre tantas outras, de poder ir diretamente das árvores ao consumidor, o que assegurava um mínimo de trabalho e um máximo de rendimento. Deslumbrado com sua invenção, correu à repartição pública mais próxima e encaminhou um pedido de patente. Tempos mais tarde, vendeu-a justamente com sua aparelhagem e seus laranjais a um própero fazendeiro da vizinhança, mudou-se para Nova Iorque e com o dinheiro comprou um rico apartamento em Park Avenue, onde, dizem, vive muito feliz, chupando laranja o dia todo.

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OS BURROS E OS PAVÕES

Já houve um tempo em que a literatura era importante

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Arnaldo Jabor Escritor, crítico, cineasta e jornalista carioca. Possui vários livros publicados, sem perder o seu humor ácido, nem o tom crítico.

Já houve um tempo em que a literatura era importante. As escolas literárias se digladiavam sobre estilos e temas, em busca de um sentido maior que nos definisse como país, dentro de um mundo ainda analógico. Um povo mestiço? Cultura ou barbárie? Civilização nos trópicos? Dilemas vividos pelos letrados de século passado, preocupados em fundar a nação brasileira. Roberto Ventura, um intelectual sério que já não está entre nós, nos mostrou, em seu livro Estilo Tropical, figuras como Silvio Romero, o crítico arrebatado, em luta contra tudo e contra todos, que pregava um ideário modernizante, combinando naturalismo e evolucionismo à causa da República. Brigou com todo o mundo, com Machado de Assis, José Veríssimo, Araripe Jr. e Joaquim Nabuco.

hipertextos da época pós pós; claro que algum dia isso vai dar em novos valores de ‘qualidade’, de ‘importância’, destilados dos alambiques da internet. Estamos numa fase da exaltação da ‘quantidade’, como se a profusão de temas e criações substituíssem a velha categoria da ‘qualidade’. Essa nova era nos ensinou que não chegaremos a nenhum destino definitivo, mas alguns parâmetros de valor estético terão de ser recolocados na literatura. Em geral, as diagnoses sobre as mutações a que assistimos hoje em dia se dividem ou em lamentos por um passado de ilusões perdidas ou em euforia por um admirável mundo novo em que todos sejam autores e leitores, nessa democracia da falta de critérios. Em teoria, tudo bem, mas ‘ideias’ em poesia e literatura significam na forma.

Antes havia debates para ver quem tinha razão. Hoje, todos têm razão e ai daquele que criticar tendências em nome de critérios e paradigmas seculares da arte. A inteligência foi substituída pela sacralização da irrelevância massificada; a própria ideia de “estética” é considerada por muitos como individualismo neoconservador, autoritário, produzindo parâmetros repressivos. A libertação da tutela dos chamados “maîtres à penser”, dos seres que nos guiavam orgulhosamente para algum Sentido foi uma coisa boa, mas abriu as portas para um vale-tudo formal que desqualifica qualquer tentativa de crítica literária, vista como um ataque contra a liberdade da estupidez. Claro que é bem-vinda a esfuziante aparição de milhares de criadores, dos blogueiros dos twiteiros, dos

Por que falo essas coisas graves? Porque outro dia achei na estante um livro de Agripino Grieco, um dos grandes polemistas do início do século 20 e demolidor dos burros e farsantes da época. E ele diz, numa entrevista de 1944: “A obra dos julgadores de livros vale pela forma em que está vazada, pela ironia, pela irreverência, pelo que possa representar de negação dos valores oficiais. O que vale é a forma”. E ele acrescenta: “Ai do romance em que o enredo interessa mais que o estilo”. Ou seja, os mistérios do mundo revelados pela grande arte literária são florações da forma; e é isso que lhes fornece durabilidade, relevância na observação da vida, sua razão de ser. Grieco era um intelectual.


Título da seção


Prateleira

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O mundo de Sofia Jostein Gaarder Editora Cia das Letras 552 páginas - R$: 49,50

As crônicas de Nárnia C. S. Lewis Editora Martins Fontes 751 páginas - R$: 99,90

A guerra dos tronos George R. R. Martin Editora Leya Brasil 592 páginas - R$: 49,90

A menina que roubava livros Markus Zusak Editora Intrinseca 480 páginas - R$: 39,90

Cartas anônimas começam a chegar à caixa de correio da menina Sofia. Elas trazem perguntas sobre a existência e o entendimento da realidade. Por meio de um thriller emocionante, Gaarder conta a história da filosofia, dos pré-socráticos aos pós-modernos, de maneira acessível a todas as idades. Cartas anônimas começam a chegar à caixa de correio da menina Sofia. Elas trazem perguntas sobre a existência e o entendimento da realidade. Por meio de um thriller emocionante, Gaarder conta a história da filosofia, dos pré-socráticos aos pós-modernos, de maneira acessível a todas as idades. Cartas anônimas começam a chegar à caixa de correio da menina.

Viagens ao fim do mundo, criaturas fantásticas e batalhas épicas entre o bem e o mal - o que mais um leitor poderia querer de um livro? O livro que tem tudo isso é “O leão, a feiticeira e o guarda-roupa”, escrito em 1949 por Clive Staples Lewis. Mas Lewis não parou por aí, seis outros livros vieram depois e, juntos, ficaram conhecidos como “As crônicas de Nárnia”. Nos últimos cinquenta anos, “As crônicas de Nárnia” transcenderam o gênero da fantasia para se tornar parte do cânone da literatura clássica. Casa um dos sete livros é uma obra-prima, atraindo o leitor para um mundo em que a magia encontra a realidade, e o resultado é um mundo ficcional.

Quando Eddard Stark, lorde do castelo de Winterfell, recebe a visita do velho amigo, o rei Robert Baratheon, está longe de adivinhar que a sua vida, e a da sua família, está prestes a entrar numa espiral de tragédia, conspiração e morte. Durante a estadia, o rei convida Eddard a mudar-se para a corte e a assumir a prestigiada posição de Mão do Rei. Este aceita, mas apenas porque desconfia que o anterior detentor desse título foi envenenado pela própria rainha - uma cruel manipuladora do clã Lannister. Assim, perto do rei, Eddard tem esperança de o proteger da rainha. Mas ter os Lannister como inimigos é fatal - a ambição dessa família não tem limites.

Entre 1939 e 1943, Liesel Meminger encontrou a Morte três vezes. E saiu suficientemente viva das três ocasiões para que a própria, de tão impressionada, decidisse nos contar sua história, em “A Menina que Roubava Livros”, livro há mais de um ano na lista dos mais vendidos do “The New York Times”. Desde o início da vida de Liesel na rua Himmel, numa área pobre de Molching, cidade desenxabida próxima a Munique, ela precisou achar formas de se convencer do sentido da sua existência. Horas depois de ver seu irmão morrer no colo da mãe, a menina foi largada para sempre aos cuidados de Hans e Rosa Hubermann, um pintor desempregado.

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Prateleira

No jardim das feras Erik Larson Editora Intrinseca 448 páginas - R$: 39,90

O menino do pijama listrado John Boyne Editora Cia das Letras 192 páginas - R$: 36,00

O morro dos ventos uivantes Emily Bronte Editora Lua de Papel 200 páginas - R$: 31,90

O cacador de pipas Khaled Hosseini Editora Nova Fronteira 368 páginas - R$: 39,90

De forma inesperada, o professor William E. Dodd, da Universidade de Chicago, é convidado para assumir a embaixada dos Estados Unidos na Alemanha em 1933. Junto com a esposa e os dois filhos adultos, ele parte para Berlim, decidido a manter-se neutro em relação ao governo de Adolf Hitler. A animada vida social e o charme dos homens do Terceiro Reich a princípio encantam sua jovem filha Martha. Mas o deslumbramento não dura. Com o tempo, a família Dodd testemunha a crescente perseguição aos judeus, a censura à imprensa e a implantação de assustadoras leis. Em No Jardim das Feras, o escritor Erik Larson reconstitui o ambiente cada vez.

Bruno tem nove anos e não sabe nada sobre o Holocausto e a Solução Final contra os Judeus. Também não faz idéia de que seu país está em guerra com boa parte da Europa, e muito menos de que sua família está envolvida no conflito. Na verdade, Bruno sabe apenas que foi obrigado a abandonar a espaçosa casa em que vivia em Berlim e mudar-se para uma região desolada, onde ele não tem ninguém para brincar nem nada para fazer. Da janela do quarto, Bruno pode ver uma cerca, e, para além dela, centenas de pessoas de pijama, que sempre o deixam com um frio na barriga. Em uma de suas andanças Bruno conhece Shmuel, um garoto do outro lado da cerca que.

Na fazenda chamada Morro dos Ventos Uivantes nasce uma paixão devastadora entre Heathcliff e Catherine, amigos de infância e cruelmente separados pelo destino. Mas a união do casal é mais forte do que qualquer tormenta: um amor proibido que deixará rastros de ira e vingança. “Meu amor por Heathcliff é como uma rocha eterna. Eu sou Heathcliff”, diz a apaixonada Cathy. O único romance escrito por Emily Brontë e uma das histórias de amor mais belas de todos os tempos, O morro dos ventos uivantes é um clássico da literatura inglesa e tornou-se o livro favorito de milhares de pessoas. O morro dos ventos uivantes é um clássico.

O caçador de pipas é considerado um dos maiores sucessos da literatura mundial dos últimos tempos. Este romance conta a história da amizade de Amir e Hassan, dois meninos quase da mesma idade, que vivem vidas muito diferentes no Afeganistão da década de 1970. Amir é rico e bem-nascido, um pouco covarde, e sempre em busca da aprovação de seu próprio pai. Hassan, que não sabe ler nem escrever, é conhecido por coragem e bondade. Os dois, no entanto, são loucos por histórias antigas de grandes guerreiros, filmes de caubói americanos e pipas. E é justamente durante um campeonato de pipas, no inverno de 1975, que Hassan dá a Amir a chance.

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Texto Colaborativo

PASSEIO NOTURNO Rubem Fonseca Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar. Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar? A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos uma conta bancária conjunta. Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu. Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua for-

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ça em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu osom da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem nomeio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho doimpacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como umfoguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpotodo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, dessesbaixinhos de casa de subúrbio.Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, ospára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas. A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntouminha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos,respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.




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