De "Tufos de Domos" e "Operários Saindo da Fábrica" ou territórios desconhecidos

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De “Tufos de Domos” e “Operários Saindo da Fábrica” ou territórios desconhecidos Clara Saracho, 2013



Clara Saracho

De “Tufos de Domos” e “Operários Saindo da Fábrica” ou territórios desconhecidos

2013



Prefácio Este livro é um documento descritivo do trabalho fotográfico que venho a desenvolver. Nele apresento, de forma vigorosa e assumida, dois elementos da cultura visual do século XIX: uma fotografia americana, Tufa Domes de Timothy O’Sullivan (Nevada, 1867) e um dos primeiros filmes rodados em Portugal do kinetografo Aurélio da Paz dos Reis, A Saída dos Operários da Fábrica Confiança, (Porto, 1896). Divido o texto em dois momentos. No primeiro, pretendo elaborar uma análise aprofundada destas duas obras. No segundo, partindo da contextualização das obras, pretendo gerar uma reflexão crítica sobre as reproduções e acessibilidade das obras mencionadas, o que influencia na perspectivação das obras, assim como dotar às imagens de um significado e um conteúdo próprio. 5


Tufa Domes, Pyramid Lake (Nevada), 1867 de Timothy O’Sullivan impressão em albumina, 20 x 27 cm Smithsonian American Art Museum, Washington DC 6


Timothy H. O’Sullivan (Irlanda 1840 - Nova York, E.U.A 1882) foi um fotógrafo americano do século XIX. Enquanto assistente de Mathew B. Brady e Alexander Gardner, O’Sullivan produziu imagens icónicas da Guerra Civil Americana, também conhecida pela Guerra da Secessão (1861-1865). Depois da guerra, Timothy trabalhou como fotografo oficial em três expedições do governo dos Estados Unidos: a primeira expedição, chamada “The Geological Exploration of the Fortieth Parallel” comandada por Clarence King de 1867 a 1869; a segunda “The Darien Expedition” em Panama em 1870; e a terceira “The Geological Surveys West of the 100th Meridian”, dirigida por George Wheeler, entre 1871 a 1874. “The Geological Exploration of the Fortieth Parallel”, em 1867, foi a primeira expedição estatal no Oeste após a Guerra Civil Americana. Foi encarregue a Clarence King dirigir esta investigação geológica e topográfica do território entre as Rocky Mountains e as Montanhas da Sierra Nevada. Clarence King (1842-1901) era um geólogo americano e teve um especial reconhecimento pelo trabalho que desenvolveu nesta expedição, em que O’Sullivan participou como fotografo. King, além de cientista, era um amante das artes e, talvez por isso, apreciava o trabalho de O’Sullivan que tanto funcionava para 7


a investigação e documentação científica objectiva, como também, devido a sua vocação, para recolher paisagens fantásticas ocidentais americanas. O trabalho de O’Sullivan para a expedição de Clarence King, cobriu sensivelmente 1300 quilómetros de distância, abrangendo o caminho da estrada ferroviária transcontinental que atravessa desde o sul do Wyoming até a linha da Califórnia. Esta foi uma fase de especial relevância para a sua carreira, assim como para a história da fotografia americana. As fotografias de O’Sullivan de paisagens áridas, de formações geológicas curiosas e de manobras em minas de prata e de ouro representam uma visão crua e poderosa de um território pouco conhecido e progressivamente ocupado pelos americanos brancos. É interessante notar que neste período, os Estados Unidos estavam em plena aquisição e compra de territórios na zona ocidental do Norte da América, e, foi em 1864, três anos antes da expedição, que o território Nevada foi adquirido pelos E.U.A., sendo que era uma zona de um vasto deserto desconhecido habitado em parte por índios autóctones. Eram, portanto, terrenos a descobrir, novos territórios para os americanos, e O’Sullivan fotografou-os, deixando-nos imagens de grande perfeição e ao mesmo tempo envolvidos numa atmosfera de mistério e enigma que representa a união entre a intenção documental 8


e a artística, entre a realidade e a obra. Embora algumas destas imagens tenham sido amplamente reproduzidas, os originais são extremamente raros. Timothy O’Sullivan possuía uma boa técnica fotográfica, porém as condições não eram as mais favoráveis. Tirava fotografias através de uma câmara de madeira de manuseamento complicado, muito provavelmente utilizava ajudando-se de um tripé. Utilizava no processo fotográfico o colódio húmido e a albumina, o que significa que precisava, para cada tiragem, de fazer uma preparação prévia que incluía produtos químicos de sensibilização e de revelação, de chapas de vidro e de um laboratório de câmara escura ambulante. Foi, então, durante esta expedição em Nevada que O’Sullivan reuniu diversas fotografias, sobretudo, de paisagens com montanhas com o objetivo de fazer uma investigação geológica e topográfica. Uma dessas fotografias foi a famosa fotografia Tufa Domes, Pyramide Lake em 1867. É uma fotografia de carácter paisagístico, num formato horizontal, para uma documentação morfológica das rochas. Estas formações provenientes de matérias vulcánicos recebem o nome geológico de tufos de domos (“tufa domes”). Trata-se de uma 9


paisagem que abrange um vasto lago com rochas rodeado por um terreno desértico de montanhas. Do primeiro plano em diante, de forma contínua, apresentam-se três tufos rochosos no lago. Num último plano e de maneira quase imperceptível, está a margem do lago e o horizonte do céu. As rochas que estão em primeiro plano destacam-se pela sua textura bizarra e ao mesmo tempo bela. O rochedo mais afastado do observador e o mais central da composição tem forma de pirâmide, daí o nome do lago. A composição focaliza-se nas três rochas, no posicionamento entre as mesmas, na sua morfologia e textura. Tudo o resto permanece como que apagado: o lago, as margens e o horizonte. Numa interpretação mais sensível e menos científica, a imagem pode suscitar uma paisagem mística de três rochas flutuantes no ar, suspensas num ambiente nebuloso e, ao mesmo tempo, claro e luminoso. Desaparecendo as indicações do lago e do contexto, as rochas destacam-se, paradas, sem peso, num espaço irreal que indicia um lugar transcendente. Esta fotografia passou a ser um ícone de beleza de paisagem no século XIX. Por um lado, é romântica, pela sua aridez, a presença da natureza, a indefinição do espaço. Por outro, também é objetiva e real, simples, direta, sem ornamentos.

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A Saída dos Operários da Fábrica Confiança, 1896 de Aurélio da Paz dos Reis, documentário, 00:00:55, 16 fps 35 mm, PB, sem som 12


Depois de três décadas, do outro lado do Oceano Atlântico, chega a Portugal uma compilação de várias fotografias, a imagem em movimento, o cinema. Nos finais do século XIX, Portugal encontrava-se nos últimos anos da Monarquia. Foi uma época marcada por uma grande instabilidade política, numa crise económica. A classe trabalhadora, tanto no campo como nas fábricas urbanas, era explorada e vivia de forma precária resultando num descontentamento social. Surgiram novos partidos políticos como o Partido Republicano e o Partido Socialista que contestaram os governos monárquicos e o próprio regime em manifestações e revoltas defendendo a urgência de uma República. No século XIX faz-se a descoberta da fotografia e, posteriormente, do cinema. O cinema chega relativamente cedo a Portugal. Apenas um ano depois da apresentação em Paris do aparelho - cinematógrafo dos irmãos Lumière, foram projetadas no Porto as fitas de Aurélio da Paz dos Reis. Assim, o dia 12 de Novembro de 1896 e o nome de Paz dos Reis ficam gravados na memória como o da primeira experiência de cinema português, o filme intitulava-se “A Saída dos Operários da Fábrica Confiança”.

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Aurélio da Paz dos Reis (Porto, 1862 – Porto, 1931) era comerciante portuense na área da floricultura. No Porto, fundou o seu negócio de sementes, flores e artigos de jardinagem na loja “Flora Portuense”. A sua residência, na Rua de Nova Cintra, nº 125, era onde cultivava, no horto, plantas e flores. O floricultor Paz dos Reis, que chegou a ter relações comerciais com horticultores franceses e holandeses, era também um fotógrafo amador. Deste gosto pela fotografia, viria a curiosidade pela imagem em movimento, o cinema. Paz dos Reis comprou aos irmãos Werner um aparelho crono-fotográfico, uma variante do cinematógrafo, para uma utilização distinta, já que o que pretendia era filmar. Com este equipamento, o Kinematógrafo Portuguez, Paz dos Reis filmou em 1896 uma série de “documentários” que duravam apenas uns segundos. São precisamente estes filmes os primórdios do cinema português, muito limitados devido à incipiente tecnologia. Filmou vários cenários, como a saída de operários de uma fábrica, camponeses a dançar o vira, artes circenses demonstradas num jardim, entre outros. Paz dos Reis exibia as suas fitas, com o mesmo aparelho com que filmava no Porto e em Braga, chegando a ter algum êxito. A seguir, partiu para o Brasil com o seu aparelho, os seus filmes e com cartazes apelativos com a esperança de captar ao público. Fez várias 14


exibições dos seus filmes no Rio de Janeiro, porém não obteve o sucesso que tivera em Portugal. Desiludido pelos seus resultados, Paz dos Reis regressou a Portugal e afastou-se do cinema, virando-se para o seu negocio de floricultura. O filme A Saída dos Operários da Fábrica Confiança foi rodado por Aurélio da Paz dos Reis em 1896 e foi considerado um dos primeiros filmes rodados em Portugal por um português. Esta obra é hoje um ícone dos primórdios do cinema português. Filmado em película em 35 mm, a peça dura cerca de um minuto, sendo que tem 16 fotografias por segundo. É a preto e branco e não tem som. É filmado na rua, num plano que abrange um dos lados da rua em perspectiva. O filme documenta a saída dos operários de uma fabrica têxtil urbana. Estes operários saem pela porta principal da respectiva fábrica à hora do almoço. São numerosos trabalhadores, na maioria jovens mulheres. O edifício apresenta uma fachada de altas colunas trabalhadas com uma cimeira, assim como portas talhadas e pintadas num tom escuro. Todavia, na mesma fachada, fazem presença dois candeeiros de rua redondos e estilizados. O local deste acontecimento é numa das ruas portuenses, a Rua de Santa Catarina, uma das vias mais conhecidas e movimentadas da cidade. O pavimento da rua em 15


paralelo atravessado pelos carris de ferro, indicando o local de passagem do elétrico. Existe uma certa agitação na rua. Por um lado, saem muitos operários por uma porta, por outro, há um movimento continuo de pessoas no exterior. A um dado momento do filme, uma carroça puxada a cavalos transportando passageiros atravessa o plano cinematográfico da direita para a esquerda e, a seguir, outra carroça puxada por um boi carregando mercadoria atravessa na direção oposta. Durante todo o filme, os operários continuam a sair da fábrica, o que nos indica que se trata de uma grande industria, também pela grande quantidade de operários. O filme é de cariz documental, deixando registos muito variados: sociais, económicos, históricos, de costumes, etc.

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Tufa Domes e A Saída dos Operários da Fabrica Confiança foram dois elementos de estudo e de reflexão na minha prática artística. Ambas as obras são da segunda metade do século XIX. Porém, a primeira é uma fotografia americana e a segunda é imagem em movimento, portanto, cinema (num contexto português). É legítimo estar a comparar estes dois elementos distantes e distintos? Talvez não passe a comparação de sucessivas afirmações e negações, já que ambas as obras são realmente diferentes. Pode haver pequenos elementos ou características que ligam estas duas obras como, por exemplo, o carácter fotográfico, iconográfico e simbólico, ou até documental existente nas duas circunstâncias. No entanto, estas aproximações entre ambas parecem-me superficiais. Não é esse o critério que escolhi para refletir acerca destas obras. Na minha perspectiva, devemos partir de uma análise da composição dos objetos, das imagens que resultam das obras e de como estas se inserem na nossa cultura. Nesta análise, ponho de relevo os problemas da reprodutibilidade, da proliferação da imagem, entre outros. Parto, portanto, da proxblematização do acesso a estas obras e de como chegam a nós. É necessário realçar que para fazer esta análise baseiome numa descrição e reflexão sobre a fotografia e o filme, 19


porém, só tive acesso à fotografia e ao filme em reproduções, nunca vi os originais. Num texto de Rosalind Krauss, crítica de arte norteamericana, intitulado Photography’s Discursive Spaces de 1982, a autora refere-se à fotografia Tufa Domes, Pyramide Lake de Timothy O’Sullivan e apresenta, no artigo, uma fotolitografia o da mesma. A fotografia é do ano de 1867 e a sua reprodução é feita anos mais tarde em 1875. Esta reprodução tinha um propósito específico, era para um livro documental do repertório da expedição de Clarence King sobre a investigação geológica e topográfica. Para além de se distanciaram em tempo e em suporte e técnica, as duas imagens distanciam-se visualmente, no seu contexto e função, como descreve Rosalind Krauss. Num olhar do século XX, o original funciona como um modelo de uma beleza misteriosa e silenciosa, enquanto que a sua reprodução produzida para fins científicos é um objecto visual banal. A crítica de arte explica que por defeito de uma rápida exposição, o original não obteve uma imagem detalhada fazendo com que a paisagem mudasse, criando um ambiente estranho, mas ao mesmo tempo belo. De outro ponto de vista, a reprodução da fotografia foi um trabalho litográfico que clarificou certos detalhes e acrescen20


tou certo aspectos que não existiam, como por exemplo, a superfície das rochas sobre a água, criando uma melhor percepção visual. Krauss, com esta abordagem de Tufa Domes, apresenta esta dicotomia entre o original e a sua reprodução, entre espaços discursivos da exposição estética e do conhecimento sistemático. A fotografia original faz parte de uma coleção do museu Smithsonian American Art Museum, em Washington DC, mas a fotografia não se apresenta em modo expositivo. Na nossa era certas obras de arte, entre as quais fotografias, só são conhecidas por via da sua reprodução em livros, em posters, em formato digital (por exemplo na internet) e as originais estão guardadas. Transferindo a questão americana para a portuguesa, levanta-se a questão da acessibilidade às obras. No caso da obra de Aurélio Paz dos Reis, para além de os filmes serem praticamente inacessíveis aos seus originais, as suas reprodução ainda assim são de difícil acesso. Encontram-se vídeos e imagens em poucos documentários da internet, sendo certos frames de outras reproduções. As imagens que nos chegam são uma reprodução de outra reprodução, tendo, assim, a imagem uma viagem comprida do original à imagem a que temos acesso. 21


Este percurso torna a imagem num objecto de constante mutação, degradação e de transformação de suportes. Existe, neste caso, uma “não acessibilidade” das obras originais que, do meu ponto de vista, tem um carácter político e social, sendo as suas reproduções a visibilidade possível ao espectador que capta uma perspectiva totalmente diferente da original. Assim, levanto também a questão da legitimidade da originalidade da obra de arte.

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Bibliografia BOLTON, R., The Contest of Meaning: Critical Histories of Photography. Mit Press, 1992. CINEMATECA PORTUGUESA - Museu do Cinema, Aurélio da Paz dos Reis : 28 de Julho de 1862 - 19 de Setembro de 1931. Cinemateca Portuguesa, Lisboa, 1996. COSTA, A., Brêve história do cinema português (1896-1962). Instituto da Cultura Portuguesa, 1978 DO CARMO SERÉN, M., Manual do cidadão Aurélio da Paz dos Reis. CPF, 1998. KRAUSS, R., Photography’s Discursive Spaces: Landscape/View. Art Journal, 1982 (vol. 42 p. 311-319). MARIEN, M.W., Photography: A Cultural History. Laurence King Publishing, 2006. SACHS, A., The Humboldt Current: A European Explorer and His American Disciples. Oxford University Press, 2007. PINA, L. - História do cinema português. Lisboa, 1986. REGAN, M., The life of Timothy H. O’Sullivan. Tucson Weekly, March, 2003. SIMÃO, J., Manoel de Oliveira. Uma História do Cinema Português. Covilhã 2006.

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Filmografia PERES, Â., Aurélio da Paz dos Reis - Uma Biografia, 1983. Consulta de sites http://americanart.si.edu/ (Smithsonian American Art Museum, em Washington DC) http://www.artic.edu/exhibition/kingsurveywork (Art Institute Chicago) http://www.cpf.pt/ (Centro Português de Fotografia) http://www.cinemateca.pt/ (Cinemateca Portuguesa) http://www.davidrumsey.com/amica/ (AMICA Library - Art Museum Images from Cartography Associates) http://www.loc.gov/ (Library of Congress) http://www.lupa.com.pt/site/ (Lupa - Luis Pavão lda.)

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Porto, 2013 Concepção Clara Saracho Design Clara Saracho Revisão Marta Saracho Gráfica Sempre

Este texto foi elaborado com ocasião da obra fotográfica De Tufos de Domos e Operários Saindo da Fábrica de Clara Saracho, 2013.



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