Revista Enviado Especial

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EnviadoEspecial Publicação do programa Jornalismo Sem Fronteiras

Riachuelo: um rio em busca de oxigênio

Reportagem sobre JMJ é destaque no site da Folha de S.Paulo

Agosto de 2013 - Edição nº 2

Música argentina muito mais que tango



editorial

EnviadoEspecial

Aprendizado e ação

Diretora Editorial Claudia Rossi claudia.rossi@linkconsultoria.com.br

Por claudia rossi

Editora Natália Rossi natalia@linkconsultoria.com.br Repórteres Bárbara Blum, Clésio Oliveira, Deborah Rezaghi, Fernanda Matricardi, Gabriela Rodriguez, Isabela Yu, Julia Mello, Mariana Marinho, Mariana Stocco, Natália Rossi, Teresa Espallargas Arte e Design Rafaela Malvezi rafamalvezi@gmail.com Palestrantes Alejandro Rebossio, Ariel Palacios, Clóvis Rossi e Janaína Figueiredo Uma publicação do programa

Idealização e realização:

Contato Rua Caicanga, 133 - Mirandópolis 04051-040, São Paulo, SP - Brasil Telefone: (11) 2577-6480 Celular: (11) 98753-0991 contato@linkconsultoria.com.br www.linkconsultoria.com.br

S

er enviado especial é uma entre as muitas possibilidades de atuação que a profissão de jornalista proporciona. É instigante, sedutora. Um grande desafio que envolve diferentes competências: conhecer a realidade de outro país, entendê-la, traduzi-la para o seu leitor, conseguir se comunicar em outro idioma, mover-se por um lugar desconhecido... Esta 2ª edição da revista-laboratório Enviado Especial é resultado do Programa “Jornalismo sem Fronteiras” de 2013. O objetivo do programa é proporcionar uma imersão na experiência de ser um enviado especial. Uma semana de trabalho intenso e poucas horas de sono. Diversas atividades ocuparam os dias dos participantes. Nas palestras com experientes correspondentes internacionais conheceram um pouco da trajetória de cada um deles, ouviram muitas histórias e dicas valiosas para a profissão. Durante a visita ao jornal Clarín, o principal da Argentina, tiveram a oportunidade de conversar com Gustavo Sierra, premiado jornalista que fez a cobertura de diversas guerras. Puderam conhecer, em primeira mão, o aplicativo produzido pelo Clarin em parceria com a Folha para a visita do Papa ao Brasil. A visita do Papa, aliás, rendeu muito! Os participantes foram convidados para participar de uma entrevista coletiva a respeito do lançamento do documentário sobre o Papa Francisco. Com direito a dicas de Ariel Palacios e de Janaina Figueiredo, correspondentes do “Estadão” e de “O Globo. Aproveitando a Jornada da Juventude, acompanharam a saída da caravana rumo ao Brasil para fazer uma matéria que foi publicada na Folha. Como o objetivo também era ampliar o repertório cultural dos futuros jornalistas, nada de City Tour convencional! Para entender um pouco do país, fizeram uma visita guiada pela cidade com um sociólogo que levou o grupo a marcos de grandes acontecimentos históricos em Buenos Aires. Como tiveram a sorte de contar com a presença de Clóvis Rossi, colunista da “Folha”, no mesmo hotel, uma das nossas “futura enviada especial” entrevistou o jornalista da Folha para entender sobre o governo Cristina Kirchner. Tudo isso para compor a bagagem necessária para as matérias que iriam escrever. Os participantes foram protagonistas de todas as fases do processo: definição das pautas, apuração, entrevistas, produção de fotografias, vídeos e de textos. Trouxeram na bagagem diversas experiências novas e muita historia para compartilhar. Algumas delas, podem ser vistas nas reportagens produzidas. agosto de 2013 | enviado especial

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SUMÁRIO

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ECONOMIA

2001: uma odisseia argentina Por Deborah Rezaghi

PALESTRANTES

06 Conheça os correspondentes internacionais Por Claudia Rossi

DESTAQUE

15 Jornada Mundial da Juventude mobiliza jovens argentinos Por Rafaela Malvezi

PERFIL

16 Conversando com Alessandro Rebossio Por Bárbara Blum 21

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Conversando com Ariel Palacios Por Barbara Blum

Enviado Especial | agostO de 2013

EQUIPE

08 Conheça os repórteres Por Claudia Rossi

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DIÁRIO DE VIAGEM

Os bastidores da reportagem Por Rafaela Malvezi

POLÍTICA

A morte da viúva negra Por Bárbara Blum

35 Hasta nunca mais! Por IsabelaYu 38 Morto peronomucho Por Teresa Espallargas


MEIO AMBIENTE

40 Os caminhos do Riachuelo Por Deborah Rezaghi

LAZER

48 Um dia na natureza (não tão) selvagem Por Mariana Stocco

CIDADE

54 Diário porteño Por Fernanda Matricardi

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COMPORTAMENTO

60 Argentina: entre desgostar e não abandonar Por Gabriela Rodriguez 64 Os sinos dobram por todos Por Julia Mello 70 Um abraço com palavras Por Gabriela Rodriguez

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CULTURA

O mundo colorido da imaginação Por Mariana Stocco

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80 El arte callejera Por Fernanda Matricardi 84 Buenos Aires em cena Por Mariana Marinho 90 Quem, então, agora eu seria? Por IsabelaYu 96 No ritmo tangueiro: 1 para trás, 2 para a frente Por Teresa Espallargas

90 agosto de 2013 | enviado especial

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palestrantes > correspondentes internacionais

conheça os

Saiba mais sobre os correspondentes internacionais que falaram sobre

fotos: link consultoria

alejandro rebossio

ariel palacios

É especializado em Economia. Trabalha no jornal espanhol “El País” como correspondente em Buenos Aires. Ele tem o seu próprio blog no El País, “Eco Americano”, onde analisa a economia latino-americana. Também é colunista da Rádio Continental, de Buenos Aires e escreve no jornal argentino La Nación e na Anfibia, uma revista digital de Gabriel García Márquez. Foi convidado pela Fundação Tomas Eloy Martínez para expor sobre como fazer jornalismo investigativo. É formado em Comunicação Social e Mestre em Jornalismo pela Faculdade do El País e da Universidad Autónoma de Madrid.

Fez o Master de Jornalismo do jornal El País (Madri) em 1993. Desde 1995 é o correspondente de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires. Além da Argentina, também cobre o Uruguai, Paraguai e Chile. Ele foi correspondente da rádio CBN (1996-1997) e da rádio Eldorado (1997-2005). Ariel também é correspondente do canal de notícias Globo News desde 1996. Em 2009 “Os Hermanos“ recebeu o prêmio de melhor blog do Estadão (prêmio compartilhado com o blogueiro Gustavo Chacra).

blogs.elpais.com/eco-americano

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blogs.estadao.com.br/ariel-palacios


palestrantes

a profissão aos participantes desta edição do Jornalismo Sem Fronteiras

clóvis rossi

janaína figueiredo

Além de editor e repórter, faz coberturas internacionais há mais de 35 anos e foi correspondente em Buenos Aires e Madri pelo jornal Folha de S. Paulo. Repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha, ganhou os prêmios Maria Moors Cabot (EUA) e da Fundación por un Nuevo Periodismo Iberoamericano. É autor, entre outras obras, de “Enviado Especial: 25 Anos ao Redor do Mundo” e “O Que é Jornalismo”. Escreve às terças, quintas e domingos na versão impressa do caderno “Mundo” e às sextas no site. Como enviado especial, tanto no “Estadão” como na “Folha”, produziu reportagens em todos os cinco continentes.

Correspondente há 14 anos em Buenos Aires do jornal O Globo, faz reportagens não só na Argentina, mas também em países como Uruguai, Venezuela, Paraguai, Equador, Peru e Colômbia. Antes de trabalhar para o jornal carioca, a jornalista já havia trabalhado para jornais argentinos. Em 2004 conseguiu um grande furo ao cobrir um referendo sobre a permanência ou não de Hugo Chávez no poder: foi a única jornalista brasileira que conseguiu uma entrevista com o então presidente da Venezuela.

www1.folha.uol.com.br/colunas/clovisrossi

oglobo.globo.com/blogs/janaina

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equipe > repórteres

conheça os repórteres Saiba quem participou e fez acontecer a edição de 2013 do programa Jornalismo Sem Fronteiras. Descubra o que os participantes faziam na época da viagem, suas áreas de interesses e planos para o futuro em relação à profissão de jornalista Por claudia rossi

fotos: Link consultoria

Bárbara Blum Faculdade Cásper Líbero Aluna do 1º ano de Jornalismo. Gosta de conhecer novas culturas, de estudar novos idiomas e de viajar. Sonha em atuar como correspondente internacional na área política e como jornalista de conflito. 8

Enviado Especial | agostO de 2013

claudia rossi Link Consultoria Diretora executiva da Link Consultoria e Assessoria. Idealizadora do Programa Jornalismo Sem Fronteiras, cujo objetivo é fazer estudantes aprenderem sobre o trabalho de correspondente internacional.

clésio oliveira ESPM Estudante do 5º semestre de Jornalismo na Escola Superior de Propaganda e Marketing. Apaixonado por TV, pretende seguir os passos de seus ídolos: Boni, Chateaubriand e Silvio Santos.


Equipe do Jornalismo Sem Fronteiras reunida a bordo do avião em direção a Buenos Aires, Argentina, em julho de 2013

deborah rezaghi Faculdade Cásper Líbero Estudante do 3º ano de Jornalismo. Trabalha com televisão, na reportagem, edição e produção do programa Edição Extra, da TV Gazeta. Tem interesse em trabalhar com audiovisual, seja na televisão ou no rádio.

fernanda matricardi Faculdade Cásper Líbero Cursa o 1º ano de Jornalismo. Gosta muito de ler e fazer trabalhos voluntários. Possui interesse em escrever sobre arte, literatura e lazer do Brasil e do mundo, além de produzir documentários e publicar um livro.

gabriela rodriguez Faculdade Cásper Líbero Cursa o 2º ano de Jornalismo. Tem interesse na área de cultura e gosta bastante de tudo que possa envolver o universo da fotografia. Acredita que o jornalismo faz parte da História do cotidiano. agosto de 2013 | enviado especial

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isabela yu Faculdade Cásper Líbero Estudante do 1º ano de Jornalismo. Suas áreas de interesse no jornalismo variam entre cultura, política e música. Ainda não decidiu a ordem de preferência entre elas.

julia mello Faculdade Cásper Líbero Cursa o segundo ano de Jornalismo. Prefere design, arte e literatura, mas acredita que o Jornalismo em si já é suficiente para gerar histórias e vivências.

mariana marinho Faculdade Cásper Líbero Cursa o 3º ano de Jornalismo. Gosta de escutar boas histórias e de enfrentar novos desafios. Ama teatro, cinema, literatura e fotografia, e por isso pretende atuar na área cultural.

mariana stocco ESPM Cursa o 2º semestre de Jornalismo. Pretende atuar na área de esportes ou de política. Seus principais meios para se manter informada são jornais e portais de notícias.

Natália rossi Escola Santi Estágiaria de Comunicação na Escola Santi, atua na área desde 2011, trabalhando com mídias sociais, produção de textos e vídeos. Além disso, realiza coberturas fotográficas.

teresa espallargas Faculdade Cásper Líbero Cursa o 1º ano de Jornalismo na Cásper e o de Letras na FFLCH-USP. Ama fotografia e poesia. Pretende atuar como correspondente ou como repórter de viagem e cultura.

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diário de viagem > bastidores

os bastidores da reportagem Do início ao fim da viagem para Buenos Aires, registramos a rotina da equipe do Jornalismo Sem Fronteiras. Confira na sessão de fotos a seguir desde a realização das palestras até a produção das matérias que compõem esta publicação Por RAFAELA MALVEZI

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A arte de sujar os sapatos

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divulgação

Destaque

Jornada Mundial da Juventude em pauta Matéria feita por participantes do Jornalismo Sem Fronteiras é publicada no site da Folha de S.Paulo Por rafaela malvezi

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m julho de 2013, Clésio Oliveira e Deborah Rezaghi, participantes do programa Jornalismo Sem Fronteiras, aproveitaram a experiência em Buenos Aires e elaboraram uma matéria sobre a Jornada Mundial da Juventude, que apesar de ter ocorrido no Rio de Janeiro, Brasil, teve grande repercussão entre os argentinos por causa da nacionalidade do Papa. A matéria acabou publicada no site da Folha de S.Paulo! Confira o texto na íntegra com o QR Code.

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perfil

Conversando com

Alejandro Rebossio Por Bárbara Blum

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esde as 9 da manhã, esperávamos pelo jornalista argentino Alejandro Rebossio no prédio onde se localiza a redação do El País. Depois de meia hora pediram que subíssemos ao segundo andar para esperar por Alejandro, que se atrasara por causa do trânsito. Já lá em cima, no conforto de sofás e aquecedores, a simpática Jéssica nos ofereceu café e nos instalamos nas mesas organizadas em semicírculo enquanto Alejandro não chegava. Às 10h15, ele entrou na sala. De aparência tipicamente argentina — barba por fazer, cabelos um pouco compridos e bagunçados, bem vestido — ele se desculpou pelo atraso de 15 minutos; estava preso no trânsito por causa da manifestação dos 19 anos do maior atentado terrorista islâmico da história da Argentina. Nunca saberemos se fomos nós que confundimos o horário e chegamos uma hora antes ou se ele se enganou. Finalmente, nos ajeitamos nas mesas e Alejandro adiantou dizendo que ficamos esperando por algo

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“não tão interessante”. Modéstia, como fomos descobrir ao fim da entrevista. Ligamos os gravadores e começamos a perguntar. Primeiramente, pedimos que contasse como começou no jornalismo e ele, em um espanhol rapidíssimo, respondeu que antes de querer ser jornalista, queria ser político, mas não conseguiria ter disciplina partidária e “defender tudo que o partido quisesse”. Já no colégio pensava em ser jornalista, e, como parte de sua família vive na Espanha, acabou gostando especificamente do jornal de lá, o El País. Decidiu, então, que quando acabasse a faculdade de jornalismo faria o master do El País. No último ano da faculdade, começou a estagiar em um importante jornal econômico argentino chamado Ámbito Financiero, semelhante ao Valor Econômico brasileiro. Sua entrada formal no veículo se deu por uma coincidência: a jornalista que entraria adoeceu e ele optou por trabalhar durante o verão, sacrificando as férias, para aprovei-

tar a oportunidade, “Às vezes, a casualidade é o que te permite entrar para o jornalismo”, disse. Alejandro enfatizou, inclusive, que devemos sempre aproveitar essas pequenas oportunidades que podem ser um grande passo na carreira, como foi para ele. A primeira experiência de Alejandro como correspondente foi durante o master de periodismo do El País em Madrid, onde escrevia para o jornal argentino La Nación, atualmente alinhado ao governo Cristina Kirchner. Embora não fosse o correspondente oficial de Madrid, fazia freelas sobre economia, assunto pouco tratado pelo outro correspondente. Aproveitando que a Repsol, empresa petrolífera espanhola, havia comprado a Argentina YPF, Alejandro fazia ao mesmo tempo matérias, um apanhado do que lia em jornais locais, e o master: “Eu ficava louco”, disse entre risos. “Escrevia à noite”. De volta a Buenos Aires, Alejandro procurou um colega do El País e pediu para escrever sobre a


natalia rossi

Alejandro Rebossio, do jornal espanhol El País, fala aos repórteres do programa Jornalismo Sem Fronteiras

Argentina no suplemento dominical de economia. Como já havia um correspondente responsável por isso, Alejandro escrevia sobre o resto da América Latina, com exceção do Brasil. “Muitos correspondentes ficam responsáveis por toda a América Latina”, comentou. Quando começou a trabalhar tanto para o El País quanto para o La Nación, ficou sobrecarregado: “Eu trabalhava ate 16 horas por dia”. Nesse momento percebeu que seu casamento e sua relação com suas duas filhas estavam abalados: “Ia me divorciar, o que é algo muito comum no jornalismo”, riu, “E ia ter duas filhas que recriminariam minha ausência na adolescência.” Ao mesmo tempo, sofreu pressão dos veículos em que trabalhava: enquanto o El País, cuja situação financeira não era das melhores, oferecia um blog de economia latino-ame-

“Às vezes, a casualidade é o que te permite entrar para o jornalismo” ricana, o La Nación pedia cada vez mais artigos. Alejandro deixou formalmente o La Nación, mas seguiu fazendo freelas enquanto trabalhava no El País, que “pagava melhor”. Desviamos um pouco do assunto “trajetória de vida” e pedimos algumas dicas. Alejandro enfatizou a importância dos idiomas dizendo que “O inglês é como um commodity” e que “Outros idiomas podem abrir outras portas” Para Rebossio, a América Latina representa um mercado em expansão, ou seja, devemos vender artigos e matérias

aqui. Ele, por escrever para um jornal espanhol, sentiu os efeitos da crise europeia, mas ao mesmo tempo teve oportunidade de expandir seus projetos, graças ao ‘tempo livre’ que o El País lhe deixava: ele fez rádio, escreveu mais para o La Nación e escreveu para a revista digital Anfíbia, de caráter mais literário. Foi com base em um artigo para essa revista que surgiu seu livro “Estoy verde: Dólar una pasión argentina”. O artigo era exatamente sobre essa paixão dos argentinos pelo dólar americano. Porém, desagosto de 2013 | enviado especial

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divulgação/editora aguilar

“Os jornais falam muito do mercado ilegal de dólares, mas nunca haviam contado como funciona”

Do artigo ao livro Alejandro percebeu que o tema era muito mais profundo que apenas um artigo que falava sobre a paixão dos argentinos pelo dólar americano e vendeu sua ideia à editora: “Os jornais falam muito do mercado ilegal de dólares, mas nunca haviam contado como funciona.” A ideia do artigo deu lugar ao livro Estoy verde: Dólar una pasión argentina (foto acima)

cobriu que essa paixão envolvia todo um mercado ilegal de dólares. Para escrever o livro, Rebossio visitou as “cuevas”, que são casas de câmbio normais com ‘portinhas’ ao fundo onde são realizadas as operações ilegais. “Não é um prostibulo ou um lugar onde vendam drogas”, explicou. Ao falar com os cueveiros, contou que “Todos aparecem com siglas”, justamente por ser uma atividade ilegal, mas que conseguiu descobrir como era o dia -a-dia dessas pessoas. Ainda sobre os dólares, Alejandro nos contou que a Argentina é 18

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o país com mais dólares per capita, fora os Estados Unidos: “É uma raridade argentina que haja tanta loucura pelo dólar”. Além disso, explicou que a imposição de um limite de dólares para viajar fez com que muitos procurassem “el blue”, ou seja, o mercado ilegal. Além disso, como o peso é uma moeda muito instável, desde os anos de 1970 a compra e venda de imóveis aqui é feita com dólares e em dinheiro vivo. Para ilustrar, falou sobre a sua mudança em janeiro. Nesse dia, ele foi coma mulher a um banco, onde retiraram 100 mil dólares em dinheiro. Para andar duas quadras até o outro banco, onde seria feita a compra do apartamento, os dois espalharam dinheiro pelo corpo, temendo chamar a atenção de assaltantes. Essa mesma técnica é utilizada pelo “delivery de dólares”, que são as pessoas do mercado negro que entregam em casa os dólares e voltam com os pesos. Suas meias tem bolsos onde são colocados “bolinhos” de 10 mil dólares, posteriormente trocados pelos pesos. A complicação está justamente na troca, uma vez que o volume de pesos que levam de volta é bem maior que os dólares. Esses casos moveram o interesse de Alejandro em escrever o livro,

algo inédito, no qual foram exploradas as histórias dos ganhadores e dos perdedores, que, de acordo com ele, costumam ser os imigrantes, representam 13,5% da população argentina. Estes, sem contato com os ‘cueveros’, apelam para os ‘arbolitos’, pessoas que ficam paradas em pontos específicos da cidade, como a turística Calle Florida, sussurrando “câmbio”. Essas pessoas são as mais prejudicadas pelas limitações do dólar, pois precisam recorrer ao mercado negro para enviar o dinheiro para suas famílias. Deixamos o assunto dólar e perguntamos do dia-a-dia: como é, afinal, escrever do seu próprio país para um veículo espanhol? Alejandro disse que ler jornais é fundamental, sendo que lê quatro jornais gerais e três econômicos: “É uma obrigação, já não desfruto mais.” Em seguida, procura manchetes na internet e lê o artigo completo caso essa desperte-lhe o interesse. Então, relê o que escreveu no El País anteriormente, “para que não me repita”, riu. Só depois de toda essa preparação, Rebossio começa a escrever. Geralmente, ele mesmo sugere os temas, mas quando está com muito trabalho, deixa que o chefe proponha. Entretanto, não são as informações pontuais que ele trans-


natalia rossi

Alejandro contou sobre sua trajetória profissional e aproveitou para abordar o funcionamento da dinâmica jornalística

mite, “Não interessa o dia-a-dia”. Para exemplificar, falou de futebol: quando há um campeonato argentino, Rebossio só escreve quando este acaba e ele comenta o campeão, mas não fala sobre todos os jogos, todos os domingos. Apesar de ser um tema que o interesse, “estraga um pouco a organização familiar”, pois ele precisa ir ao estádio e passar quase que o dia todo lá. Quando o River caiu de divisão, Alejandro estava no estádio, “Foi histórico!”, disse. Depois do jogo, torcedores depredaram e queimaram todo o estádio, com raiva. “Foi uma aventura.”, recorda Alejandro. Alejandro acredita na “arte de sujar os sapatos”, ou seja, acredita que os jornalistas não devem trabalhar só por telefone e por internet,

“No jornalismo, tem que estar em contato com gente. A chave é ganhar a confiança da fonte” “No jornalismo, tem que estar em contato com gente. Vir ao centro, conversar com gente, tomar um café com a fonte...” Ilustrando isso, contou-nos sobre os protestos do INDEC (como um IBGE argentino), e de como, por ir para a rua e por falar com os manifestantes, conseguiu um documento comprovando que o governo argentino subestimava a

inflação desde janeiro de 2007. Essa informação foi publicada e Rebossio foi posteriormente chamado pelo juiz que investigou essa mentira para testemunhar. “A chave é ganhar a confiança da fonte”, disse. Como não é só de glórias que vive um jornalista, Alejandro nos contou da maior “metida de pata” que já cometeu durante a profisagosto de 2013 | enviado especial

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são. Ao fim do governo de Nestor Kirchner, o ministro da economia renuncia e nomeiam um jovem economista, que na época tinha apenas 37 anos, chamado Martin Lousteau para assumir o cargo. “Parecia mais roqueiro que ministro de economia”, brincou Rebossio. No dia que o anunciam como, ele e outros

guntaram ao governador se era o plano de Lousteau, ele disse que não sabia , mas os jornalistas publicaram a informação mesmo assim. No dia seguinte, saiu no Página 12, um dos jornais aliados do kirchnerismo, que esses veículos, no caso o jornal La Nación e a revista Perfil, atribuíram uma política econômica Natalia rossi

O jornalista deu conselhos e dicas sobre a profissão durante toda a palestra

“Não se deve publicar algo a não ser que esteja hiper confirmado. O pior é perder a credibilidade” jornalistas estavam em um ato, no qual também estavam o governador da província de Buenos Aires e Cristina Kirchner, foi passado um powerpoint com os dez pilares básicos do plano econômico de um “economista que ia entrar no próximo governo”. Quando per20

Enviado Especial | agostO de 2013

neoliberal ao novo ministro e tentaram “‘marcar a agenda’ dele, sendo que esse plano era de um diretor de banco, não do jovem economista”. Dessa história, Alejandro concluí que “Não se deve publicar algo a não ser que esteja hiper confirmado”. Felizmente, na época não era

tão conhecido e a “metida de pata” não o marcou para sempre. “O pior é perder a credibilidade”, adicionou. Perto de encerrar a entrevista, levantamos uma questão importante, que intriga qualquer futuro jornalista: como fica a vida pessoal? “A qualquer dia podem chamar”, disse Alejandro. Para ele, correspondentes sofrem ainda mais que repórteres, pois precisam trabalhar sempre que acontece alguma coisa. “É difícil compensar o descanso.”, comentou. Outra dificuldade é o trabalho em casa: às vezes precisa assistir futebol para o trabalho e sua filha pede para assistir desenhos. “Como é pequena, é difícil explicar.” Alejandro contorna a situação deixando um espaço em casa especificamente para o trabalho, mas não escapa de situações como a filha menor, de 1 ano, começar a chorar durante uma entrevista via Skype e ele não poder fazer nada. “Não posso matar minha filha”, brincou. “Em jornalismo nos acostumamos a trabalhar com barulho” Já nas últimas perguntas, havíamos passado mais de uma hora conversando, focamos no uso das redes sociais. Alejandro explicou que o El País incentiva o uso do Twitter e do Facebook para difundir os artigos, pois as pessoas já não compram tanto o jornal impresso e não procuram nos sites. “No começo tive vergonha”, conta. Atualmente, Rebossio usa as redes sociais tanto para divulgar seus artigos e seu livro quanto para procurar fontes. Essa técnica já se mostrou bastante eficaz, pois as pessoas sempre respondem e ele consegue o que precisa. No fim da entrevista, Alejandro nos deu um conselho final: “Não seja um commodity” e voltamos para a rua, entre vento e protestos.


perfil

natalia rossi

Ariel Palacios, correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, fala aos repórteres do programa Jornalismo Sem Fronteiras

Conversando com

Ariel palacios

Por Bárbara Blum

A

ssim que entramos no tradicional café La Biela, local escolhido pelo próprio Ariel Palacios, temi que o ruído das (muitas) conversas interferisse na gravação do áudio. Porém, lembrei-me que, alguns dias antes, havíamos trocado algumas palavras no lançamento do documentário “O papa do fim do mundo”, que foram suficientes para evidenciar que as dicas, e mais ainda, as histórias por trás delas, eram tão interessantes que nenhum gravador seria necessário. Pontualmente às 18h30, Ariel

entrou no salão de chá com um elegante terno e se sentou no centro da junção de cinco mesas, necessária para acomodar a todos. Pediu um café com leite e começou a conversar conosco sem nenhuma timidez. Tecnicamente, a primeira a falar seria Janaína Figueiredo, correspondente d’O Globo, mas suas dicas e histórias eram sempre complementadas com detalhes empolgados de Ariel. A conversa começou com comentários sobre editores, sobre agências de notícias e sobre o cotidiano de um correspondente

em Buenos Aires. Depois de contar sua história — e de derramar algumas lágrimas — Janaína saiu apressada e ficamos a sós com Ariel. Ele começou contando como decidiu ser jornalista. Até os sete anos, quando vivia em São Paulo, sonhava em ser arqueólogo. Aos dez, queria ser historiador. Em tom cômico, explicou que seus pais o desaconselharam nos dois casos, “para que não morresse de fome”. Aos quatorze anos, decidiu ser diplomata e se estruturou para tal, fazendo faculdade de Direito em Londrina, onde agosto de 2013 | enviado especial

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morava com os pais. Entretanto, quando estava no primeiro ano do curso, descobriu que brasileiros naturalizados não podem seguir carreira diplomática. Ariel, nascido na Argentina, estava, portanto, impedido. Como cursava Direito especificamente com essa finalidade, deixou a faculdade a tempo de prestar o vestibular novamente. Finalmente, decidiu tentar jornalismo, já sonhando em trabalhar como correspondente. No novo curso, Ariel se interessou por matérias como Semiologia e decidiu seguir carreira acadêmica, certo que um jornalista formado em Londrina jamais competiria com os do eixo Rio-São Paulo-Brasília por uma vaga de correspondente. Assim, ao fim da faculdade, iniciou um mestrado na ECA-USP, mas antes de terminar foi para Curitiba, onde seus pais estavam vivendo. Lá, alternava entre alguns trabalhos como freelancer e cursos: “Eu era meio filhinho de papai”, admite, envergonhado. Os pais de Ariel decidiram presentear a filha, formada em Biologia, com um pequeno sítio. Para ele, que na época já tinha 26 anos, pagariam um curso no exterior, caso pas-

sasse em algum “master”. Ariel se candidatou ao master do El País, em Madri, “Fiz a prova achando que não ia passar... E passei.”. Ao final do curso, cuja duração é de um ano, Ariel teve de voltar ao Brasil, pois o visto de estudante havia expirado. De volta a Curitiba, começou a trabalhar e economizar dinheiro para procurar oportunidades de trabalho em São Paulo com segurança. Porém, reencontrou sua exprofessora de italiano — por quem já fora “interessado” — e os dois começaram a namorar. Ariel estava de férias com Miriam em Buenos Aires durante a reeleição de Menen, um período político bastante agitado, quando um amigo, correspondente do El País na Argentina, sugeriu que se candidatasse a um posto em jornais brasileiros como correspondente aqui em Buenos Aires. Apesar da insegurança, novamente por não ser formado no eixo Rio-SP e por não ser de família de jornalistas, Ariel mandou a proposta e currículo para vários lugares. Finalmente, recebeu retorno d’O Estado de S. Paulo, dizendo que estudariam a possibili-

divulgação

Os Argentinos

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Enviado Especial | agostO de 2013

Desde 1995, Ariel Palacios cobre para o jornal O Estado de S. Paulo o dia a dia argentino. Essa experiência de quase 20 anos possibilitou ao jornalista nascido em Buenos Aires, mas que migrou para o Brasil com 3 anos, conhecer e entender os argentinos. Esse conhecimento é reunido agora em um livro que traz um panorama político, econômico e social e desmistifica clichês existentes sobre a Argentina

dade de pedir freelas quando ele estivesse instalado na Argentina. “Eu vim na loucura”, conta Ariel. “Não recomendaria isso para ninguém” Ele ficou, instalou-se e começou a trabalhar. Durante dez meses, o jornal quase não pedia artigos, apenas dois ou três por mês. “O dinheiro não dava.” Ariel pensava em voltar para o Brasil, quando houve a crise no governo Menen. Estava gerado o interesse: o jornal pedia cada vez mais matérias, “Comecei a mandar de 3 matérias por mês, 3 matérias por dia.”, relata Ariel. Nesse momento, veículos como a rádio CBN e a recém-criada Globo News pediram colaborações. Ironicamente, a crise no governo havia estabilizado Ariel na nova cidade. Terminada sua história, Ariel tomou alguns goles de seu café com leite e nos passou algumas dicas para entrevistas. De acordo com ele, jornalistas não devem se atrasar, nem tratar os entrevistados com agressividade: “Há formas de fazer uma pergunta incisiva, que você bota o cara contra a parede, mas com sutileza, com elegância.” Ariel nos recomendou, ainda, o manual de redação do The Economist, revista cujos jornalistas são elogiados pela elegância ao entrevistar. Para ilustrar a importância do vestuário em entrevistas, ele nos contou sobre uma entrevista com um roqueiro argentino. Ele havia entrevistado esse roqueiro havia cinco anos, como sempre de terno e gravata. Na segunda entrevista, o jornalista apareceu com a mesma elegância da primeira vez, fazendo com que o roqueiro o reconhecesse. Ele, então, desabafou que todos achavam que podiam entrevistá-lo com roupas informais. “Eu gosto de respeito!”, disse Ariel, imitando o entrevistado.


natalia rossi

Sempre bem vestido, Ariel aconselhou “Não é porque você vai entrevistar um roqueiro que precisa ir vestido como um fã” Dessa história, ele concluí que “Não é porque você vai entrevistar um roqueiro que você precisa ir vestido que nem um fã de Rolling Stones.” Ariel refletiu, ainda, que essa formalidade é necessária para manter o distanciamento da fonte. Com um sorriso no rosto, Cláudia Rossi pediu que ele nos contasse a história da cobertura dos terremotos no Chile, ocorrido em fevereiro de 2010. Finalmente, havia chegado a hora mais aguardada da entrevista. Nos ajeitamos nas cadeiras e nos aproximamos do jornalista. Em fevereiro de 2010, Ariel se preparava para tirar férias na China, pela segunda vez, com sua esposa Miriam. Como não gosta de fazer coisas de ultima hora, preparara uma

mala com 10 dias de antecedência. Na sexta-feira, Ariel estava especialmente cansado e decidiu postergar o banho para a manhã de sábado. “Grande erro”, diz entre risos. “Não deixem para amanhã o que podem fazer hoje!”, acrescentou. No dia seguinte, acordou com telefonemas da Globo News pedindo que comentasse sobre o terremoto e transmitiu as poucas informações disponíveis, junto com um histórico dos terremotos do Chile. Ainda pela manhã, deixou recados no Estadão, perguntando se gostariam que fosse ao Chile. Sem resposta, continuou fazendo os noticiários da Globo News. Por via das dúvidas, ligou para seu agente de turismo, Sebastián, e pediu que reservasse

uma passagem para Santiago. Nesse momento, soube que o aeroporto estava fechado. Ariel ligou para sua amiga Carmen, também jornalista, e os dois começaram a discutir possíveis maneiras de chegar ao destino: as cidades de Concepción e Talcahuano. Ficou resolvido que iriam até Bariloche, de onde atravessariam a fronteira pelo Sul e iriam de carro até as cidades mais afetadas. Novamente, Sebastián foi acionado e deixou passagens reservadas. A mala da China foi transformada em mala para o Chile, ainda por via das dúvidas, e assim que o jornal confirmou a necessidade da viagem, Miriam já chamara o taxi. O sonhado banho foi novamente postergado. agosto de 2013 | enviado especial

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natalia rossi

Palacios contou aos atentos repórteres do Jornalismo Sem Fronteiras sobre a cobertura dos terremotos no Chile em 2010 Chegando a Bariloche, Ariel e Carmen encontraram um amigo dela, Juan, que se uniu à dupla. Os três contrataram um motorista para levá-los até Concepción, aonde chegaram às 7 da manhã do dia seguinte. Além de destruída pelos tremores, a cidade estava sem água, sem energia elétrica e totalmente saqueada. O primeiro hotel que tentaram não os aceitou; todos os hóspedes estavam no hall, aguardando para sair dali o mais rápido possível, pois havia risco de queda do edifício. Do outro lado da rua, encontraram a mesma situação, mas 24

Enviado Especial | agostO de 2013

havia um quarto pouco afetado no quinto andar, rapidamente aceito pelos três jornalistas. Água, comida e eletricidade eram sonhos distantes, mas Ariel fez o que podia: “Não havia água nos banheiros, mas como o hotel estava vazio, você podia ir usando todos os banheiros dos outros quartos”. Como estavam os três no mesmo quarto e só havia uma cama, Ariel e Juan deixaram-na para Carmen e dormiram em colchas enroladas. Os três dormiam de botas e lanternas na mão, caso houvesse outros tremores. Todos os meios de comunica-

ção pareciam bloqueados, mas “De repente, entrou uma mensagem de texto da minha mulher no Blackberry”. Ariel respondeu e pediu que ela avisasse ao jornal que ele estava vivo e em Concepción. A mensagem chegou e ele recebeu uma resposta da esposa. Nesse momento, lhe ocorreu que essa seria a única forma de mandar sua matéria, uma vez que não havia internet ou telefone. Assim, Ariel foi escrevendo as matérias em pedacinhos e mandava por mensagem de texto para que Miriam colasse tudo num email e encaminhasse ao jornal. Essa si-


“Ver um terremoto é uma coisa que depois você diz: a gente reclama de tanta besteira”

tuação seguiu durante o fim de semana, até que surgisse outra dificuldade técnica: a bateria do celular precisava ser recarregada. Os poucos lugares que estavam com energia elétrica, como a empresa telefónica, eram disputadíssimos. Entretanto, as pessoas compreendiam a situação dos correspondentes ao mesmo tempo em que queriam que o mundo soubesse o que se passava no Chile, permitindo que carregassem, por alguns minutos, os celulares. No terceiro dia, o sistema de e-mails estava de volta. Os dias se passavam e a viagem

à China se aproximava. Ainda sem banho e com a barba por fazer, Ariel se desesperou: “Eu fiz a barba com Coca-Cola”. Por ser alcalina, não lhe causou irritações, por ser light não deixou seu rosto grudento. A situação melhorou no quinto dia, quando o trio encontrou um hotel intacto e com água. “Fria, mas era água!”, comemorou Ariel, empolgadíssimo. Finalmente, tomou banho e voltou para Buenos Aires a tempo de suas merecidas férias. “Ver um terremoto é uma coisa que depois você diz ‘a gente reclama de tanta besteira’”, reflete Ariel, “Não é o tipo de coisa que depois você pode contar para família.” Apesar de ter coberto desastres naturais, Ariel nunca esteve em uma guerra, “Só golpe e tentativa de golpe de estado.” Como se fosse menos empolgante. Dei uma olhada rápida no gravador, para me certificar que estava mesmo gravando, e vi que já passávamos de uma hora de conversa. Terminada a história do Chile, continuamos pedindo dicas, agora focadas na relação entre correspondentes. “Tem que saber escolher com quem você vai andar”, disse Ariel, um pouco mais sério. De acordo com ele, algumas pessoas tentam tirar proveito, outras têm atitudes prejudiciais. Dentro do grupo de correspondentes, há um subgrupo que se dá muito bem – no

qual estão incluídos Ariel e Janaína Figueiredo–, mas ainda “É importantíssimo você, como Parecendo aflito, Ariel checa o relógio e responde mensagens no celular. Havia tempo para poucas perguntas. Perguntamos sobre coisas importantes em um jornalista e ele, admirador de Borges e Julian Barnes, logo apontou o estilo como uma das principais, “Estou quase achando o meu”. Em seu blog (http:// blogs.estadao.com.br/ariel-palacios/), esse estilo fica bem evidente: Ariel usa várias referências históricas e dá dicas de músicas portenhas, quase sempre de Astor Piazzolla. Na última pergunta, colocamos a questão de manter um olhar adequado ao público brasileiro após tantos anos (18) vivendo na Argentina. “Tem que manter certo distanciamento”, mas ao mesmo tempo “ficar emergido” na cultura argentina. Em tom sério, Ariel admitiu nunca ter pensado muito nessa questão, mas acredita que coisas pequenas, como escrever todos os dias, ser casado com uma brasileira e falar português em casa impedem que ele corra o risco de se esquecer do olhar brasileiro. Ariel, sempre simpático, pediu que se tivéssemos mais perguntas mandássemos e-mails ou mensagens no Facebook. Com pressa, despediu-se de nós enquanto digeríamos a conversa. agosto de 2013 | enviado especial

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economia

2001:

uma odisseia

Panelaço, piquete, desemprego, déficit público, “corralito”, entre outras, foram palavras que fizeram parte do vocabulário argentino durante a crise. E elas não estão só no dicionário, mas também na memória dos nossos vizinhos... Por deborah rezaghi

O

dia 11 de setembro de 2001 está na memória de muita gente. As pessoas tentam se lembrar o que faziam no exato momento em que dois aviões atingiam as torres gêmeas do World Trade Center. O noticiário foi tomado pelo incidente. O mundo virou seus olhos para Nova York. Todos queriam entender o que estava acontecendo. Por qual motivo aquelas duas torres estavam ruindo? Enquanto muitos olhavam incrédulos para o hemisfério norte, no hemisfério sul também algo ruía. Só que não eram duas torres, e sim, uma economia. Na Argentina, no ano de 2001 também aconteceu

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Enviado Especial | agostO de 2013

um abalo. O PIB despencou 11%, a inflação chegou a 41% e o desempregou bateu na casa dos 25%. É obvio que na mídia, entre uma economia que desmorona e duas torres em igual situação, a segunda chama mais atenção. Apesar de muitos se lembrarem de 2001 por ser o ano em que houve o ataque às torres, os argentinos tem uma lembrança amarga desse período por outro motivo. Para eles, esse também é um ano para ser esquecido. Um pouquinho de história

Para entender os motivos que levaram o país à bancarrota em 2001, é bom voltarmos um pouco no tempo.

Gonzalo Martínez / Prensa Intervención Urbana / ARGRA

argentina

A Argentina alcançou a independência em 1816. O fazendeiro e militar Juan Manuel de Rosas foi proclamado governador e capitãogeral da província de Buenos Aires em 1829. Ok, não precisamos voltar tanto no tempo assim apara entender uma crise que aconteceu no século XXI. Mas alguns pontos da história econômica argentina são importantes de se ressaltar. Desde cedo, o país pôde de beneficiar das suas condições naturais. Vastas áreas de solo fértil, clima temperado, fácil acesso ao mar. Com tudo isso a seu favor, a Argentina tornou-se um dos maiores ex-


portadores de carne, trigo, milho e linhaça. E foi uma das nações mais ricas do planeta. Com um dos portos mais movimentados do mundo, o país se posicionou em oitavo lugar entre as nações, em valor das exportações, e nono em comércio total. Pausa nos números para a curiosidade: os argentinos nesse período eram tão ricos que os franceses, para falar de alguém com dinheiro demais, se utilizavam da expressão “rico como um argentino”. Em 1907 foi descoberto petróleo na Patagônia e o primeiro metrô da América Latina começou a funcionar no país em 1913 (50 anos antes do metrô de São Paulo).

De volta para o futuro

Depois de uma breve passadinha pela história do país, vamos ao que interessa: o que levou a Argentina à crise de 2001? Para entender isso, vamos voltar no tempo, mas não há séculos atrás, apenas alguns anos. A Argentina, assim como muitos outros países, entre eles o Brasil, enfrentou o problema da dívida externa na década de 80. Como a década anterior, a de 70, havia sido de muita abundância de capitais, os países se sentiram atraídos a tomar empréstimos, afinal as taxas eram baixas e os créditos abundantes. “Os bancos estavam com muito capital, e podia se dizer que eles até ‘forçavam a

barra’ para que os países pegassem dinheiro emprestado”, explica o economista Adalton Diniz, professor da Faculdade de Economia da PUC e da Cásper Líbero. Mas tudo que é bom dura pouco. E esse clima de abundância econômica foi abalado no final da década de 70 com a segunda crise do Petróleo. Nesse momento, o FED (Banco Central Americano) elevou as taxas de juro, o que tornou a dívida dos países impagáveis. Veio a década de 80, e com ela a crise, falta de recursos, inflação... enfim, a “década perdida”. O que fazer para resolver esse problema? Os países começaram a planejar alguns planos econômicos. agosto de 2013 | enviado especial

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Domingos Cavallo

arquivo lanacion.com/hernán zenteno

Economista e político, foi importante personagem da crise de 2001. Foi o responsável pela Lei da Conversibilidade, implantada durante o governo de Carlos Menem, do qual era ministro. Foi nomeado novamente ministro em 2001 pelo presidente Fernando de la Rúa e suas medidas para tentar sanar a crise não foram muito populares, como é o caso do “corralito”.

2ª Crise do Petróleo

Flickr/hilmir arnarson

Ficou conhecida pelo corte na venda e distribuição deste item por parte do segundo maior produtor mundial, o Irã, em meio à Revolução Fundamentalista de 1979. As mudanças no país trouxeram uma enorme turbulência no mercado de petróleo, fazendo com que o preço do produto chegasse às alturas.

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No Brasil, com sucesso veio o Plano Real. Na Argentina, veio o Plano Cavallo. “Esse plano dolarizou a economia argentina, pois estipulou a paridade de câmbio entre o peso e o dólar. Foi uma ideia para controlar a inflação. E durante toda a década de 90 deu certo”, explica Diniz. A partir desse plano foi elaborada a Lei da Conversibilidade, em que o governo se comprometia a trocar pesos por dólares. Até aí, tudo bem, mas esse plano tem um problema. Os dólares não são emitidos na Argentina, e sim nos EUA. Dessa forma, para poder honrar o compromisso assumido o governo precisava garantir que haveria dólares nas reservas do país. E como atrair a moeda americana? De três maneiras: investimentos, exportações ou empréstimos. O economista Adalton Diniz explica que nesse período a missão de atrair dólares não foi impossível: “havia muita liquidez no mercado internacional e a situação financeira da Argentina estava estável”. Assim, o plano econômico do

ministro Domingos Cavallo ia se mantendo. Nesse período em que 1 peso valia 1 dólar, houve considerável desenvolvimento econômico, e é dessa época que o turismo argentino torna-se comum no Brasil, com muitos vizinhos vindo passar férias nas nossas belas praias do Sul. Outro detalhe importante é que na Argentina, diferente do Brasil quando houve a paridade do real com o dólar, as pessoas podiam comprar de tudo com a moeda americana (coisa que no Brasil nunca aconteceu), o que fez com que a economia se tornasse bastante dolarizada. Enquanto havia dólares nas reservas argentinas para se fazer a troca entre o dólar e o peso, todos estavam felizes. Mas os percalços não demoraram em começar a surgir. Problemas à vista

No fim da década de 90, a escassez de dólar começa. Com a balança comercial argentina se tornando deficitária e com investidores cada vez mais desconfiados, fica difícil para o governo argentino continuar


Charly Díaz Azcue / EFE

honrando o compromisso de trocar pesos por dólares. “Em certo ponto em 2001 isso se tornou insustentável. E esse é o segredo da crise”, explica Adalton Diniz. A política econômica desmorona. Tudo fica mais caro e várias empresas quebram - pois muitas delas tinham dívidas em dólar. Por exemplo: se a dívida que ela tinha era de 1 milhão de dólares (que antes era 1 milhão de pesos), passou a ser 3 milhões de pesos. Com as empresas quebradas, aumenta o desemprego. Alejandro Rebossio, correspondente na Argentina do jornal espanhol El País afirma que nesse período tudo aumentava, menos o salário. E isso fez com que muitos argentinos de classe média entrassem para a pobreza. “Muitos cidadãos não tinham dinheiro nem mesmo para comprar utensílios básicos de primeira necessidade”. Ele acredita que a crise traumatizou tanto os argentinos que hoje a maior preocupação não é mais com a inflação. “Hoje a maior preocupação é com o desemprego”. Uma característica da crise ar-

“Em certo ponto em 2001 isso se tornou insustentável. E esse é o segredo da crise” gentina é que ela não escolheu suas vítimas. Todos, simplesmente, TODOS foram atingidos por ela. Classe alta, média, baixa, profissionais liberais: não houve diferença. O governo argentino fez de tudo para tentar manter a política econômica em funcionamento e tentou segurar a paridade o quanto pôde. Uma tática utilizada foi o corralito – congelamento de depósitos bancários implantado em dezembro de 2001 pelo governo De la Rúa (no Brasil, parecido com o que foi feito por Collor em 1990) – mantendo assim o dinheiro das pessoas nos bancos. Os argentinos se revoltaram, e saí-

ram quebrando os bancos. Nesse momento, houve a queda do presidente De la Rúa. Isso fez com que as pessoas perdessem a confiança nos bancos. Rebossio explica que os argentinos fazem poucos depósitos. Eles preferem guardar seu dinheirinho em um lugar mais seguro: nos colchões. Mas não são só os colchões que servem de esconderijo não. Também são utilizadas caixas de segurança, latas de conservas, interior de livros, etc. Os que têm conta nos bancos fazem isso fora do país. “Muitos argentinos preferem ter conta no exterior, como no Uruguai. E os que têm mais dinheiro os colocam em paraísos fiscais”. Estimativas apontam que os cidadãos argentinos são os que possuem um dos índices mais baixos de contas bancárias no Ocidente. Os panelaços – barulhenta modalidade de protesto que consiste em bater de forma rítmica utensílios metálicos de cozinha, principalmente as panelas – tornam-se comuns. Assim, como os piquetes – bloqueio de avenidas, ruas e estradas por um grupo de pessoas. Os “piqueteiros”, como são chamados, queriam uma mudança que priorizasse as necessidades da população. Afinal, o nível econômico despenca, assim como a qualidade agosto de 2013 | enviado especial

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flickr/lucio marquez

O presidente Kirchner apostou na soja para acelerar a recuperação econômica do país

“A crise se resolve por si só. Quem paga o pato é quem está no poder” de vida. Com a falta de moeda em circulação, mais da metade das províncias começam a emitir seu próprio dinheiro. O país teve 14 moedas paralelas ou “pseudomoedas”. Adalton Diniz conta que em 2001 a crise chegou a um ponto tão grave, que houve um episódio trágico com o ministro Cavallo. “Ele foi para os EUA às escondidas pedir empréstimo para o FMI, pois as reservas argentinas estavam esgotadas. E a situação na Argentina era tão ruim, que ele nem sequer foi recebido. Ele foi escondido e disse que ia fazer um tratamento dentário. Foi um grande vexame”. O FMI avaliava que o modelo monetário da Argentina, naquele momento, era insustentável. 30

Enviado Especial | agosto de 2013

Como sair da crise?

Quando a gente chega lá embaixo, a situação não tem mais como piorar né? Então, o jeito era subir. “A crise se resolve por si só. Quem paga o pato é quem está no poder no momento”, diz Diniz. Com o peso desvalorizado as exportações são estimuladas, e com isso se resolveu o problema do déficit da balança comercial (afinal, os produtos argentinos ficaram mais baratos no exterior). No pior momento da crise, há a ascensão de alguns grupos políticos no país. Neste momento, o kirchnerismo entra em cena. Néstor Kirchner assumiu a presidência em 2003, e conseguiu assimilar demandas sociais em suas políticas de governo. O presidente aproveitou a conjun-

tura internacional de preços altos de commodities – como a soja – e acelerou a recuperação econômica do país. O capital estrangeiro interessou-se na compra das empresas argentinas (que estavam bem baratas). E sem o peso da dívida, o governo conseguiu recompor seu caixa. A dívida é outro capítulo dessa história. “Até hoje muitos credores estão processando o governo argentino”, aponta Diniz. Em maio de 2005, Kirchner abriu a reestruturação dos títulos da dívida que estavam em estado de calote desde 2001. Com isso, ela foi reestruturada e só terminará de ser paga em 2047. “A Argentina não consegue empréstimos do exterior nem nada do FMI até que sua situação com os credores seja normalizada. Além disso, ela ainda não é bem vista no mercado mundial”, afirma o economista. Logo depois da crise, a economia voltou a crescer. Nos primeiros oito anos do governo de Néstor e Cristina Kirchner, a média de crescimento anual era de 8%. “Mas para isso acontecer, a economia tinha encolhido quase 30%”, ressalta o professor de economia. Além disso, alguns problemas como a escalada inflacionária, a persistência da pobreza e dependência de subsídios estatais por parte de diversos setores ainda atrapalharam a retomada plena da economia. Apesar de tudo, a Argentina voltou a crescer nos últimos anos e os investimentos estrangeiros também voltaram. Alejandro Rebossio diz que de 2002 em diante o Brasil passou a ser o 2º país que mais investe na Argentina (perdendo apenas para os EUA). “Muitas pessoas não olham para o que passou, mas sim para as oportunidades que podem vir”, diz.


política > atualidade

a morte da viúva negra Por bárbara blum

ou de direita, desde que melhore a vida do povo, mesmo minimamente. Ele, para minha surpresa, lê mais de um jornal, além de se informar via internet, rádio e televisão, para formar sua própria opinião. Essa última parte me surpreendeu; é difícil encontrar quem leia tantos meios diferentes no Brasil,

mesmo entre as supostas camadas mais intelectualizadas. Ao falar com o jornalista e ex-correspondente em Buenos Aires Clóvis Rossi, descobri que o povo argentino é 100% alfabetizado há vários anos. “O nível educacional é tradicionalmente elevado”, diz Clóvis. “A massa crítica aqui é muito mais forte que no Brasil”.

Atualmente, o governo de Cristina Kirchner tem dividido a opinião dos argentinos

flickr/ansesgob

A

ndando pelas ruas de Buenos Aires é impossível ignorar os cartazes de partidos, os “panfleteiros” entregando folhetos políticos, as manifestações com as reivindicações mais diversas ou os grafites altamente politizados. Nas grades que cercam a Casa Rosada, sede do governo, pode-se ler todo tipo de insulto à presidenta Cristina Kirchner, mas também todo tipo de elogio. Na Avenida San Juan, no bairro de San Telmo, as palavras “Cristina = Gestapo” decoram um muro. Porém,“Gestapo” foi riscado e substituído por “2015”. Parece que em La Reina del Platatudo tem um toque de política; até os taxistas, em sua maioria simpáticos e falantes, estendem-se ao dar opiniões. É o caso de Roberto Emilio Reyna, 65, com quem conversei por quase uma hora sobre a inflação, o governo Kirchner e as semelhanças (e diferenças) entre a Argentina e o Brasil. Primeiramente, ele afirmou que gostava do governo de Cristina, pois ajuda os pobres. “Os industriais que tem a possibilidade de ajudar não o fazem, por isso há muita inflação”, comentou, “Atualmente, tudo está centrado no dinheiro.” Para Roberto, um governo pode ser bom sendo de esquerda

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A IMPRENSA ARGENTINA

flickr/FAVARO JR.

Mas não é só por serem mais críticos que os argentinos se informam em mais de um meio: a imprensa argentina, assim como o povo, está polarizada em um maniqueísmo quase cômico. Jornais como Clarín posicionam-se radicalmente contra – quando visitei a redação, um dos editores chegou a chamar Cristina de fascista – enquanto os aliados, como Página

12 e La Nación, exaltam cada ação da viúva de Néstor Kirchner. De acordo com o jornalista argentino Alejandro Rebossio, assim como os jornais que apoiam o governo não publicam os “erros” de Cristina, o Clarín não noticia os “acertos”. A rixa da viúva negra com o grupo Clarín se dá desde 2009, quando a Lei da Mídia foi promulgada. Essa lei visa, entre outras coisas, à redu-

ção dos oligopólios sobre os meios de comunicação, ameaçando diretamente a hegemonia do holding multimídia, cuja extensão vai desde o jornal até canais de TV. A lei limitaria a quantidade de canais de televisão que um único grupo pode ter, além de impedir que tenha canais em televisão aberta e privada simultaneamente, prejudicando novamente o Clarín.

“Assim como os jornais que apoiam o governo não publicam os erros, o Clarín não noticia os acertos” PRETO OU BRANCO

Exposição Clarín em frente à Casa Rosada: uma associação complicada 32

Enviado Especial | agostO de 2013

Assim, era de se esperar que fizessem oposição ferrenha à Cristina, configurando um maniqueísmo dentro e fora da imprensa. De acordo com o editor de economia da revista “Noticias de la Semana”, José Antonio Díaz, esse antagonismo fomenta o governo Kirchner, bastante embasado em teorias populistas. O casal K se disse peronista durante toda a carreira política—o que, de acordo com Díaz, é quase obrigatório para garantir uma eleição na Argentina— mas se divide entre atitudes protecionistas e neoliberais, “Se um dia lhe convém


flickr/blog do planalto

Relação Argentina-Brasil: apesar de integrarem o Mercosul, Kirchner (à direita) criou travas burocráticas para produtos brasileiros ser capitalista, ela compra o discurso capitalista”, comenta Díaz. Foi o que aconteceu com a estatização da empresa petrolífera YPF. Privatizada no governo Menem (1989-1999), de orientação neoliberal, foi comprada pela espanhola Repsol ainda na década de 90 e reestatizada em 2012, pela atual presidenta. Entretanto, em oposição à estatização, a YPF fez há poucas semanas uma parceria com a americana Chevron, grande símbolo capitalista e responsável por diversos danos ambientais em países como Equador e Angola.

ECONOMIA

Essa situação é bastante representativa da política de Cristina Kirchner: anunciar nacionalismo, mas agir de forma totalmente contrária. Isso ocorre, embora com os valores invertidos, no âmbito internacional: apesar de ser integrante do Mercosul, a presidenta criou travas burocráticas e legais para produtos brasileiros. “Não deveria, pois é um acordo de livre comércio”, explica Clóvis Rossi. Para completar o confuso cenário econômico, há a questão dos dólares. Como Alejandro Rebossio explica em seu livro “Estoy verde:

dólar. Una pásion argentina”, os argentinos não confiam na moeda nacional, o peso, dada a instabilidade econômica que os assombra desde a crise de pelo menos meio século, desde a derrubada do Perón, nos anos 50. Por causa disso, é o país com mais dólares per capita além dos Estados Unidos. Na tentativa de ajudar a moeda nacional, Cristina Kirchner estabeleceu um limite de dólares que poderiam ser trocados mensalmente, dificultando a vida de muitos argentinos e dos imigrantes que enviavam dinheiro a suas famílias. agosto de 2013 | enviado especial

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Devido a esse limite, o mercado negro de dólares, conhecido como el blue. Os pesos são trocados nas cuevas, locais de venda ilegal dólares, e os dólares, escondidos no colchão. Contudo, quando foi descoberto que o casal K também tinha seu próprio pé-de-meia com a moeda americana o escândalo foi grande. Ela, que deveria defender a moeda nacional, teve de responder por isso convertendo sua poupança para pesos e pregando a desdolarização da economia. “Na Argentina nunca houve um governo tão duas caras”, diz José Antonio Diaz, “Há uma operação de marketing permanente”. PRODUÇÃO REAL

Essa operação de marketing se estende, principalmente, para a figura de Cristina Kirchner. A presidenta, como a maioria das argentinas, é vaidosa: usa bastante maquiagem, frequenta a academia e

escolhe suas roupas com cuidado. Desde a morte de seu marido e antecessor, Néstor Kirchner, em 2010, Cristina se veste inteiramente de preto, como demonstração de luto. “É uso político”, diz Clóvis Rossi. “Todo mundo que morre vira santo, principalmente na América Latina e ela aproveita a imagem de viúva”. José Antonio Díaz é ainda mais crítico: “É muito teatral [o luto]”. Cristina enfrenta dificuldade de ser afirmar como mulher numa sociedade machista, sendo sempre vista como “a esposa”. “Ela sempre aparentou estar a sombra do marido, mas sempre teve uma carreira nacional mais relevante”, comenta Clóvis Rossi. Antes da presidência, foi senadora e deputada federal, enquanto Néstor foi governador da província de Santa Cruz. “Com a morte [de Néstor] passou a ser autossuficiente”, explica José Antonio Díaz. Contudo, as tentativas de autoa-

firmação da presidenta têm se mostrado bastante peculiares:a utilização do Twitter como plataforma para comentar polêmicas políticas (como o recente “sequestro” de Evo Morales), a criação de uma boneca de pano de si mesma (à venda no Museo del Bicentenário, na Casa Rosada), o uso do rádio e da televisão para dar broncas em seus ministros e o projeto de um terceiro mandato. “Um ato que parece uma loucura total, ela faz muito racionalmente”, comenta José Antonio sobre tais ações da presidenta. A chamada re-reeleição, entretanto, foi confirmada como apenas um sonho dos kirchneristas: nas eleições primárias de agosto, o partido de Cristina, Frente para la Victoria, obteve apenas 29% dos votos. Essas eleições eram importantes para sondar a possibilidade de tentar a “rere”, como os argentinos apelidaram a re-reeleição. ASCENÇÃO E QUEDA DO 3º MANDATO

flickr/ansesgob

Brigas com a imprensa argentina, medidas econômicas divergentes e denúncias de corrupção: tudo indica que Cristina pode dar adeus ao terceiro mandato

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Enviado Especial | agostO de 2013

“É sempre um fator que devasta a popularidade de um presidente”, diz Clóvis sobre a inflação. Os altos índices são maquiados pelo governo por meio de intervenções no INDEC (o IBGE argentino), mas os ajustes salariais não condizem com os números oficiais. Além disso, a revista The Economist anunciou que não publicaria os índices que o governo argentino fornecia, pois não acreditavam que fossem verdadeiros. Há, ainda, as denúncias de corrupção feitas por Jorge Lanata em seu programa “Periodismo para todos”, exibido pelo Canal El Trece do grupo Clarín, parecem ter fortalecido a oposição. Sergio Massa, representante desta, obteve 35% dos votos nas eleições primárias, enterrando o sonho do terceiro mandato de Cristina Kirchner.


política > história

thaís helena reis

hasta nunca

mais! Há mais de 37 anos atrás, a Argentina viveu um dos períodos mais marcantes e obscuros de sua história. Aos poucos a sociedade se vê expondo fraturas do passado, cicatrizando e debatendo assuntos que jamais deveriam ser esquecidos. Não foi a primeira intervenção militar no país, mas esperamos que tenha sido a última Por isabela yu

agosto de 2013 | enviado especial

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sxc.hu/rodrigovco

A Plaza Del Mayo é considerado um lugar representativo e democrático e foi palco de todo tipo de protesto durante a Ditadura

N

a última década em Buenos Aires descobriu-se o que se espera ser o último centro de detenção clandestino, resquício do regime militar vivido no país durante sete anos. De 24 de março de 1976 a 10 de dezembro de 1983, a Argentina viveu a ditadura militar mais recente e mais impactante entre os regimes autoritários da América Latina. A elite responsabilizava a então presidenta Isabelita Perón pelo caos e a crise econômica. Os militares a retiraram do poder, que exercia o cargo dentro da constituição e instituiram uma junta militar constituída pelos comandantes das três Forcas Armadas: Jorge Rafael Videla (Exército), Emilio Massera (Marinha) e Orlando Agosti (Forca Aérea). O “Clube Atlético”, localizado debaixo de um viaduto no bairro San Telmo, região sul da cidade recebeu esse nome por estar situado perto do Clube Atlético Boca Juniors. No lugar existia um edifício público que foi demolido para construir a autoestrada 15 de Mayo.

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Enviado Especial | agostO de 2013

Posteriormente o governo ao se deparar com as ruínas começou o processo de escavações e depois como um monumento histórico da cidade. O asfalto é coberto de desenhos representativos dos desaparecidos e dos familiares. Se tornou um lugar de respeito à memória dos torturados e assassinados pelo regime. E há uma escultura monumental, colocada em homenagem aos desaparecidos. Na cidade de Buenos Aires foram descobertos 45 centros de detenção e no país inteiro são contabilizados 500 centros clandestinos. O Processo de Reorganização Nacional como a ditadura autodenominou, tinha dois objetivos claros: extirpar o peronismo do país e eliminar qualquer tipo de subversão. Estima-se que cerca de 30 mil vidas foram tiradas, com a chamada “guerra suja”. Menos controlada, os desaparecimentos, sequestros de crianças e todas as técnicas de tortura eram cometidas. As mães e avós da Plaza Del Mayo desde a década de 1970 até cerca de três

anos atrás peregrinavam a praça religiosamente todas as quintas feiras. A Plaza foi escolhida por ser um lugar representativo e democrático, há e haviam naquela época pessoas a favor e contra o regime que iam protestar no lugar. Na frente existe a Casa Rosada, sede do governo, o edifício do parlamento, o banco nacional e uma Igreja. Característica principal dessas mulheres é o lenço branco em suas cabeças, e estima-se que 95 crianças foram localizadas pelo apelo do movimento. Fracasso econômico, político e social

Além da excessiva violência, o regime pode ser caracterizado pelas diversas medidas contraditórias que pioraram a qualidade de vida da população. A dívida externa subiu de U$ 8 bilhões para U$45 bilhões de dólares. O governo contraiu empréstimos externos para dinamizar a economia, em contrapartida as medidas de Perón contra o capital estrangeiro. Na tentativa de conter a inflação que antes do golpe era


natalia rossi

natalia rossi

Apesar de a Guerra das Malvinas ter ocorrido há 33 anos, os argentinos ainda clamam pela recuperação das Ilhas Malvinas (ou Ilhas Faukland), que até hoje pertencem à Inglaterra

alta, de 182% ao ano, a ditadura terminou com um valor impressionante de 343%. E também os índices de pobreza dispararam de 5% para 28%, os “culpados” do caos do país eram os trabalhadores. Então os militares proíbem greves, manifestações e a perseguição constante dos sindicatos e associações. A Doutrina de Segurança Nacional existia para combater os subversivos que propunham mudanças voltadas a população. A lógica da Guerra Fria era de eliminar a oposição a qualquer custo, logo os centros de detenção eram geridos por suboficiais, diferentemente no Brasil em que os centros eram órgãos oficiais. Durante o regime, dois momentos distintos marcaram culturalmente o povo argentino: A Copa em 1976 e a Guerra das Malvinas em 1981. Em 2013 se um turista passar na frente da Casa Rosada verá pessoas ocupando o local a favor da retomada da invasão as Ilhas Faukland, que pertencem ao domí-

nio britânico. Há diferentes teses sobre as razões dos militares em decidir retomar o território no Oceano Pacífico, com o regime desgastado acreditavam ser a melhor maneira de restaurar a moral e a forca do exército. Nada une mais uma nação do que um inimigo em comum para todos torcerem contra e esquecerem as atrocidades que aconteciam no país. A Primeira Ministra da Inglaterra, Margaret Tatcher mobiliza o exército inglês e o exército argentino humilhado. Ao término da guerra, os militares acabaram desmoralizados e a estrutura em frangalhos, somado as mobilizações populares e a pressão externa culminaram na abertura do regime. Grande traço cultural, o futebol é a uma das maiores paixões argentinas, depois de política, o esporte é o segundo assunto mais comentado entre a população. Dizem as más línguas que a Copa de 76 foi comprada e um grande trunfo político, que garantiu extrema popularidade a Ditadura. A política pública de memória

sobre o período da Ditadura retoma o assunto constantemente seja na mídia ou em debates de ONGs e organismos de defesa dos Direitos Humanos. Ironicamente os militares afirmam que assassinaram cerca de 8 mil civis, o Estado com a abertura política, recebeu 10 mil pedidos de indenizações vindo dos parentes. Em certo ponto existiu o caso de policiais que acabavam encarcerados e devido brigas internas os próprios militares matavam uns aos outros. No dia 17 de maio de 2013, um grande capítulo da história do país se encerrou com a morte do comandante Jorge Rafael Videla. Aos 87 anos de idade, o idealizador de um dos regimes autoritários de maior violência na América Latina, gerou comoção mundial em todos os veículos de comunicação. Durante as décadas seguintes ao fim da Ditadura, sofreu represálias e foi julgado como culpado das mortes dos civis. Um período marcante e triste da história da Argentina, vai se recuperando aos poucos na novas gerações. agosto de 2013 | enviado especial

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política > memória

morto peronomucho Por teresa espallargas

B

rasileiros ou não, os muitos olhos que encaravam Lorenzo puderam perceber a emoção de um autêntico peronista ao tratar sobre o tema. O simpático senhor de 83 anos é guia do museu Evita na Central Geral do Trabalho argentina, sede dos “compañeros” e “compañeras”. Em sua apresentação, Lorenzo comenta um pouco sobre a famosa Evita e seu marido Perón, desde os detalhes do primeiro encontro do casal até as minúcias do monumental velório da primeira dama, iniciado naquele mesmo escritório em que ele conta tantas histórias. Também no referido prédio, alguns andares abaixo, se encontra o auditório da CGT, onde discursaram Eva e Perón, entre outros líderes trabalhistas, como o ex-presidente brasileiro Luís Inácio Lula da Silva. Ali percebe-se que, apesar de passados mais de 60 anos dos tempos áureos do peronismo, as figuras do general e de sua esposa continuam “olhando” pelos trabalhadores,

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visto os imensos painéis com seus retratos presentes no local, em uso até hoje. Eles são prova da crença nestas grandes figuras centrais da história argentina, assim também é Lorenzo quando diz que “antes de Perón, os trabalhadores eram como escravos”. Na memória do guia, a vida laboral se tornou mais justa somente após a ascensão do peronismo, por isso o culto dos líderes sindicais e pobres, principalmente, ao presidente e sua política. A despeito de ser visto como representante dos descamisados (trabalhadores e pobres), Perón era um

líder que agradava aos mais diversos setores da população, mesmo durante o período no qual foi subsecretário de Guerra e chefe do Departamento Nacional do Trabalho. Sua popularidade cresceu de fato quando o general foi eleito presidente em 1946, colocando em prática o chamado Movimento Nacional Justicialista, famoso Peronismo. Este regime previa o desenvolvimento e a industrialização do país, atrelados ao controle das greves e sindicatos. Para o sucesso de sua política populista, Juan Domingo Perón contou com a ajuda de sua mulher, a queri-

“Antes de Perón, os trabalhadores eram como escravos”


natalia rossi

Lorenzo, guia do museu Evita, é um autêntico peronista

dinha de Lorenzo e outros tantos. Com Evita ao seu lado, o presidente aproximou-se de seu povo. Através da fundação que levava o nome de Eva Perón e também da criação de programas sociais, a primeira dama pretendia garantir a segurança social dos argentinos, reforçando a ideia de que era o regime do marido que auxiliava a população, fazendo com que o apoiassem cada vez mais. Apesar de toda popularidade, o governo que combinava elementos de traço paternalista e nacionalista a mecanismos de centralização de poder, chegou ao fim com um golpe militar em 1955. Perón não conseguiu resistir à dívida pública e ao processo inflacionário resultantes da intervenção do Estado na economia, nem ao seu rompimento com a Igreja ou a morte de sua esposa em 1952, sendo mandado para o exílio logo após ser destituído do poder. Porém, o afastamento de Perón

não determinou o fim de sua política. Enquanto estava na Espanha, surgiram diversos movimentos peronistas, tanto de direita como de esquerda, que, querendo ou não, se assemelhavam ao peronismo original. A Argentina viveu, então, um período de forte instabilidade política, obrigando os militares a convocar eleições em 1970. O nome do novo presidente era Hector Campora, um peronista que renunciou no terceiro ano de seu mandato para que novas eleições trouxessem Perón devolta ao poder. Sem a mesma eloquência de seus governos anteriores, e mais, sem Evita ao seu lado, o militar e estadista argentino veio a falecer no ano seguinte à sua reeleição. Deixou em seu lugar sua terceira mulher e vice-presidente Isabelita, que, sem o carisma e a força de sua antecessora, não foi capaz de conter a crise no país, sendo deposta

Museu Evita Endereço Lafinur 2988 | (C1425FAB) Buenos Aires, Argentina Contato Tel./Fax. +54 11 4807-0306 info@museoevita.org Horários do Museu De terça a domingo Das 11h às 19h

por um outro golpe militar. Todos esses governos militares que vigoraram nos anos de exílio de Perón e após sua morte, além de conter as crises, tinham como fundamental meta apagar a imagem e os ideais do peronismo. Quanto à instabilidade, sabemos, pela história, que continua até hoje, porém quanto a política criada por Perón, o que restou é o kirchnerismo de Nestor e Cristina. Ainda em caso de dúvida, vá até Lorenzo. Com toda certeza ele saberá a resposta. agosto de 2013 | enviado especial

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meio ambiente

os caminhos

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do riachuelo Quem observa um dos principais rios argentinos, o Riachuelo, do ponto turístico da Vuelta de Rocha, tem a impressão que suas águas são límpidas e tranquilas. Mas só parece... Algumas medidas para tentar diminuir a sujeira do rio mais poluído da Argentina já estão sendo tomadas Por deborah rezaghi

deborah rezaghi agosto de 2013 | enviado especial

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deborah rezaghi

O Rio Matanza-Riachuelo é um curso d’água que marca o limite sul da capital argentina, e depois, com o nome de Matanza, atravessa 14 munícipios da Província de Buenos Aires. A bacia tem 64 km de extensão e inclui 232 riachos.

U

m dos cartões postais de Buenos Aires, Argentina, e parada obrigatória de turistas que vem conhecer a cidade é o Caminito, no bairro da Boca. O local fica a apenas 15 minutos do centro, e tem grande valor histórico. Mas bem no começo do Caminito, é possível observar a Vuelta de Rocha, ponto histórico do bairro, onde começou a cidade de Buenos Aires. É neste local que o rio Riachuelo faz uma curva antes de desembocar em forma de estuário no Rio da Prata.

As aparências enganam...

Há muita sujeira embaixo do rio. É o que garante Alfredo Alberti, presidente da Associação de Moradores de La Boca: “Praticamente todos os dias é feita uma limpeza para retirar o grosso da sujeira flutuante. No entanto, há muito lixo por bai42

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xo”. Ele diz que como se trata de um ponto turístico, nesse local há o cuidado de se tentar passar uma imagem de rio limpo, pois as fotos que rodaram o mundo mostrando toda a sujeira do Riachuelo causaram um impacto negativo. Mesmo assim, se um turista passar por ali com mais calma e observar o rio por alguns instantes, conseguirá notar alguns sacos de lixo e outras garrafas pets que teimam em ficar boiando à vista dos transeuntes e esquecem de se esconder abaixo das águas turvas... Obviamente, a sujeira vista no Riachuelo é diferente da que fica à vista dos paulistanos que observam o Rio Tietê, onde a quantidade de sujeira que boia é maior que a do Rio argentino. Mas os rios de Buenos Aires e São Paulo tem muito mais coisas em comum do que se pode imaginar...

Situação atual

Um dos problemas que cerca a bacia do Riachuelo é a sua grande dimensão, o que faz com que seja difícil que políticas públicas eficientes sejam aplicadas. “É um curso d’água que está em uma zona muito ampla, que atravessa 64 km. Há poluições diferentes em cada região”, explica Dolores María Duverges, diretora da área de política ambiental da Fundação Ambiente e Recursos Naturais (FARN) da Argentina. Os 64 km de distância equivale ao trajeto da capital para a cidade de Itatiba, no interior paulista. O grande problema na elaboração das soluções para o Riachuelo está no fato de haver três jurisdições envolvidas: o governo federal, o governo da Província de Buenos Aires e o da capital Argentina. No Brasil, o caso do Tietê é parecido, e sua ex-


tensão também se torna um problema. O rio possui 1.010 quilômetros de extensão, corta o estado de São Paulo de leste a oeste, estando presente, principalmente, na paisagem urbana da capital. O rio deságua no lago da barragem Jupiá, no rio Paraná, na região dos municípios de Itapura, estado de São Paulo; e Três Lagoas, estado de Mato Grosso do Sul. Todos os dias misturam-se ao rio 800 toneladas de esgoto doméstico, 300 toneladas de esgotos de origem industrial e mais 3 toneladas de material inorgânico. Quase a metade do líquido que corre nesse leito é sujeira pura. prós e contras

Andrés Nápoles, diretor executivo da FARN (Fundação Ambiente e Recursos Naturais) da Argentina, afirma que se pode considerar que houve avanços nos últimos tempos na questão da poluição do Riachuelo. Como exemplo, ele cita o fato de hoje se saber que há em toda a bacia Matanza-Riachuelo 12 mil indústrias, algo que antes não se tinha

O Plano Objetivo: melhorar a qualidade de água da Bacia em 15 ou 20 anos Custo total: US$ 1,484 bilhões Financiamento: Us$ 644 milhões desembolsados pelo governo argentino Empréstimo: US$ 844 milhões do Banco Mundial (devolução em 30 anos) ilustraçãO E INFOGRáfico: rafaela malvezi

2200 km 5 milhões 2

é a superfície do rio

55%

dos habitantes não possui rede de esgoto

de habitantes ao longo do rio

45%

dos habitantes está abaixo da linha da pobreza

35%

dos habitantes não tem água potável

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deborah rezaghi

Alfredo Alberti, da Associação de Moradores de La Boca

“Os políticos dizem que vão defender a saúde das pessoas, mas continuam a defender o interesse das indústrias” 44

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ideia. Mas para ele, ainda há questões mais profundas que precisam ser abordadas. “O tema não abarca somente a questão da água, mas também de todas as pessoas que necessitam de ajuda social. Assim, é preciso integrar o ambiental com o social para resolver os problemas” explica. “As pessoas fazem um poço, e tiram água de lá, que parece que está limpa. Mas na verdade está contaminada. Assim, elas se contaminam pelo que respiram e bebem”, explica Alberti, da Associação de Moradores de La Boca. Ele ainda completa: “Não se encontra população mais velha nessa região. Além do que, o Estado é muito ausente.” Depois que foi implementado um sistema de fiscalização das indústrias, começou a haver certo

controle da contaminação que elas despejavam no rio. “As empresas continuam contaminando, mesmo com a fiscalização da ACUMAR”, aponta Alfredo Alberti. “Os valores que são deixados para que as empresas possam jogar resíduos são muito permissivos, pois o Riachuelo tem pouca profundidade – e nele não há peixes e não há vida.” Por ser um rio de planície, as águas do Riachuelo não podem receber o mesmo volume de fluidos tóxicos que um rio com maior volume da água. E o ideal seria que se chegasse a “zero lançamento” de toxinas. No meio de tantos números que apontam um caminho ruim que está seguindo o curso do Riachuelo, algumas notícias boas podem ser encontradas no meio das águas turvas. Uma delas é que o “camino de sirga” - que estabelece que devem ser liberadas e limpas as margens do rio em até 35 metros de distância em cada lado - deu resultado. Antes a área era ocupada por indús-


De longe o rio parece limpo, mas ao observá-lo mais de perto é possível ver alguns resquícios de sujeira

trias, casas precárias e barracas de feira. Hoje, a situação é diferente e as margens estão efetivamente sem sujeira – plantou-se árvores e foram erradicados 30 lixões. E agora, o que fazer?

Algumas ações estão sendo realizadas para melhorar a situação de toda a bacia. A FARN (Fundação Ambiente e Recursos Naturais), por exemplo, coordena um projeto com

1992

Mais de cem chefes de Estado se reunem no RJ buscando meios de conciliar o desenvolvimento socioeconômico com a conservação e proteção dos ecossistemas da Terra. Começa a preocupação com a poluição do Riachuelo

1994

Nova Constituição Argentina estabelece, pela primeira vez na história, Leis Ambientais

a União Europeia chamado Monitoramento Social da Bacia MatanzaRiachuelo. “Queremos promover a participação social na preservação do rio. Assim, a idéia é que os vizinhos nos alertem o que está acontecendo e nos enviem a situação e nos dizem o que está passando” diz Dolores. A partir das informações obtidas, as autoridades públicas são avisadas da situação. “É um controle eficiente, pois estimula a cidadania.”

2002

Guerra das Papeleras: Argentina entra com uma ação contra o Uruguai no Tribunal Internacional de Haia para barrar a construção de duas fábricas às margens do rio Uruguai, na fronteira dos dois países

2004

Moradores afetados pela contaminação do rio entram com processo e ordenam que o Estado apresente um plano de recuperação do rio Riachuelo

O Plano Integral de Saneamento Ambiental, da ACUMAR, tem objetivos a curto, médio e longo prazo, e aborda os mais variados problemas existentes na Bacia. Alguns projetos já estão sendo executados, como o da limpeza das margens, que conta com mais de duas mil cooperativas, ligadas ao Ministério do Desenvolvimento Social da Argentina, e que visa o reflorestamento das áreas devastadas. Outro projeto visa a recu-

2006

Nasce a Autoridade da Bacia Matanza-Riachuelo (ACUMAR, na sigla em espanhol), que é integrada por representantes das diferentes jurisdições envolvidas, pela Defensoria do Povo e por organizações não-governamentais

2008

Decisão histórica: o Supremo Tribunal de Justiça ordenou ao Estado e às empresas o saneamento definitivo da bacia

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divulgação/printerslounge.com

Guerra das Papeleiras Nesse conflito, ocorrido em 2006, a Argentina entrou com uma ação contra o Uruguai no Tribunal Internacional de Haia contra a construção de duas fábricas de celulose às margens do rio Uruguai, na fronteira dos dois países. Em 1975 foi assinado entre os dois vizinhos o Estatuto do rio Uruguai, que diz que se um dos países vai realizar obras às margens do rio, o outro deve ser notificado e tem o direito de se opor se sentir que a obra pode afetar seus interesses. Para os argentinos, o acordo havia sido violado. As principais preocupações argentinas eram em relação à ameaça ao meio ambiente que as fábricas representariam. Em julho de 2010, a presidente Cristina Kirchner e o uruguaio José Mujica assinaram um acordo que inclui a criação de um comitê científico encarregado de controlar a qualidade das águas do Rio Uruguai. O comitê, integrado por dois cientistas argentinos e dois uruguaios, irá monitorar o rio e todos os estabelecimentos industriais, agrícolas e centros urbanos. Na foto acima, a empresa UPM às margens do rio em território uruguaio.

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peração das águas do rio, eliminando a sujeira como as embarcações afundadas, artefatos navais e outro objetos, que quando retirados da água são doados a hospitais de fundações que se utilizam do dinheiro da venda da sucata para melhorar suas instalações. As ações que são feitas não visam apenas melhorar a qualidade da água, mas também a qualidade de vida das pessoas. Por isso está sendo desenvolvido um plano de urbanização de vilas, que constrói casas e realoca as famílias que vivem em regiões de alto risco sanitário e sem condições básicas de sobrevivência. E por aqui, o que tem sido feito para limpar o Tietê? Com 1,2 milhão de adesões a um abaixo-assinado - a


divulgação

maior mobilização por uma causa ambiental na América Latina até hoje -, a campanha de despoluição do Rio Tietê liderada pela então Rádio Nova Eldorado AM sensibilizou o governo estadual a dar início ao projeto de limpar o curso d’água, no ano de 1992. De lá para cá várias ações surtiram efeito, como o aumento da coleta e tratamento de esgoto, reduzindo a mancha de poluição numa extensão de 160 quilômetros. Os moradores da Região Metropolitana, porém, ainda não conseguem visualizar avanços na despoluição do rio - sua cor continua negra, a água não se movimenta e o cheiro ainda incomoda. Segundo a Sabesp, a melhora na qualidade da água ficará perceptível até 2015. Em janeiro de 2013, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) havia liberado empréstimo para a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) para a terceira etapa de investimentos do Programa de Despoluição do Rio Tietê.

ACUMAR: Autoridade da Bacia Matanza-Riachuelo, responsável por coordenar e implementar um programa de saneamento que visa melhorar a qualidade de vida dos habitantes da bacia, recompor o ambiente na bacia em todos os seus componentes (água, ar e solo), e prevenir danos futuros.

As pessoas e o rio

“Hoje nenhum portenho tem um rio que pode desfrutar”, desabafa o presidente da Associação de Moradores de La Boca Todos estão contaminados. Os números alarmantes das pessoas que vivem em torno da Bacia já são suficientes para mostrar como se dá a relação entre pessoas e o rio. Mas e aquelas que não vivem necessariamente às suas margens, mas que convivem constantemente com ele à sua vista? É o caso dos moradores do bairro da Boca. Qual será a relação deles com o rio? Há preocupação ambiental? Alberti, com um semblante preocupado, conta que a Zona Sul, onde

o bairro está localizado, é uma das zonas mais pobres da cidade. E que a maior preocupação dos moradores da região é cuidar do próprio trabalho para ter como sobreviver, e com isso não sobra muito tempo para pensar no Riachuelo. “Os adultos estão trabalhando e preocupados em colocar comida na mesa. Assim, ocupar-se de meio ambiente é um luxo”. Para tentar mudar a relação com rio desde criança, na escola as crianças têm aula de educação ambiental. No local onde fica a Associação de Moradores pode-se observar alguns desenhos feitos pelas crianças de como será o rio que elas querem.

Além disso, muitos estão desacreditados na política e nos políticos, pois já foram feitas inúmeras promessas para limpar o Riachuelo e nenhuma delas foi colocada em prática. “Alguns me dizem: me preocupo que iluminem minha rua, nem mesmo isso os políticos fazem... e você quer que limpem o Riachuelo?” comenta Alberti. Ele afirma que muito pouco ainda foi feito pelo rio, apesar de já se ver alguns avanços. Apesar de tudo, ele segue sendo uma pessoa otimista. “Eu não vou poder ver o Riachuelo limpo. Mas espero que você possa”, brinca. agosto de 2013 | enviado especial

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lazer

(não tão)

um dia na natureza selvagem Por mariana stocco

“D

eus criou o gato para que a humanidade tenha o prazer de acariciar um tigre”. A frase, do francês Fernand Mery, explica bem o medo e fascínio que os grandes felinos exercem sobre as pessoas. O que antes parecia impossível e/ou perigoso, agora é fácil, simples e seguro. A 70 quilômetros de Buenos Aires, no Zoológico de Luján, é possível entrar em jaulas, acariciar, dar leite e tirar fotos com leões, tigres de bengala e tigres brancos, como se nada mais fossem que grandes gatos domésticos. Além dos felinos, pode-se interagir com ursos e elefantes. Com um conceito inovador, o zoológico é um sucesso. A oportunidade de estar perto de animais selvagens e ter a oportunidade de interagir com eles, é encantadora. Na jaula do leão, ao estar tirando foto de uma amiga, senti algo se esfregando nas minhas costas. Ao olhar pra baixo me deparo com Kel, o leão de 7 anos cheirando minha

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jaqueta de couro e me olhando com seus olhos verdes-claro. O adestrador logo chegou, afastou o leão e apontou para a minha jaqueta: “O cheiro do couro o atraiu”. Kel, super tranquilo, voltou a andar por sua jaula e depois, enquanto eu tirava foto com seu pai, Alan, de 15 anos, resolveu juntar-se a nós. A grande quantidade de pessoas é um fator que contribui para as grandes e demoradas filas para as principais atrações. Não é difícil ficar mais de uma hora esperando para entrar na jaula do leão ou dos tigres brancos, já que não tem tempo máximo para as pessoas ficarem dentro das jaulas. Nas filas é comum ouvir as pessoas falando que deveria ser estipulado um tempo para cada pessoa dentro da jaula. Mas todos, ao entrarem na jaula, querem ficar junto com os bichos e tirar fotos de todas maneiras possíveis. E, possivelmente, também reclamariam se fossem tirados de lá. No decorrer do período de duas

semanas de férias dos argentinos, que coincidem com as férias brasileiras, passam cerca de 3 mil pessoas diariamente pelo zoológico. Esse número aumenta nos domingos, podendo chegar até 10 mil ingressantes. Segundo a guia do parque, Clara Benitez, 99% dos turistas são brasileiros. Fora da época de férias, cerca de 400 brasileiros visitam o zoológico diariamente. Durantes as esperas tudo vira motivo para as reclamações dos visitantes. É comum ouvir queixas sobre as filas, sobre o preço da comida e o escasso tempo que têm para ficar no zoológico. A maioria das críticas podem ser relevadas, já que é de praxe algumas pessoas reclamarem constantemente de tudo. Mas, apesar das filas, nada se compara à sensação de segurar um filhotinho de tigre nos braços e senti-lo aninhar-se no seu colo, ou brincar com um leoãozinho como se fosse um gato de estimação. Porém, o tempo no zoológico é


gabriela rodriguez

No Zoológico de Luján é possível entrar nas jaulas, ficar perto de animais selvagens e interagir com eles

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A história Jorge Semino, dono e diretor da Instituição e Zoológico de Luján, sempre gostou de ter em sua casa tigres e leões. Contudo, impedido pela Constituição argentina que proíbe a posse de animais silvestres em domicilio, se viu obrigado a pensar em uma solução sobre o destino dos animais. Semino comprou uma propriedade próxima de sua casa e, acostumado com domesticar os grandes felinos, resolveu investir em um lugar onde as pessoas poderia conviver abertamente com os bichos. O Zoo Lujan abriu as suas portas em 24 de novembro de 1994. O início não foi nada fácil, num primeiro momento a coleção inicial de espécimes de animais selvagens e domésticos consistiu em um macaco, dois burros, dois pôneis, algumas lhamas e veados, um casal de leões e alguns pavões. Com o passar do tempo foram adicionados novos espécimes, muitos foram obtidos de doações ou resgatados de circos e zoológicos em decadência, e alguns foram comprados por Semino. O imóvel, localizado na cidade que lhe dá o nome, ocupa uma área de 15 hectares formando uma grande área natural com uma natureza particular, determinado por áreas bem arborizadas. Até o final de 2012 era comum encontrar Semino nas jaulas, ajudando na coordenação do zoo. Contudo, após o falecimento de Nicolas, seu tigre de 19 anos, ele não visita mais o zoo com tanta frequência.

realmente apertado e corrido. Todas as vans que pegam os turistas, independentemente se a reserva foi feita diretamente no zoológico ou atrás de uma agencia, chegam nos hotéis entre as 9h e as 9h45. A chegada em Luján, se ninguém atrasar, acontece por volta das 10h40. Durante a viagem são dadas diversas instruções aos visitantes e também é anotado quem quer ir à basílica e quem quer permanecer no zoológico. Quem resolver ir até a cidade conhecer a basílica, sairá do zoológico às 14h20 e voltará para buscar aqueles que permaneceram no zoológico, às 15h20. Nessas aproximadas quatro horas, o turista terá que percorrer todas as jaulas, conhecer os ursos, os elefantes e andar de dromedário, além de comer. Se o visitante for por conta pró-

pria, poderá estacionar sem custo adicional, chegar a hora que quiser e sair até as 17h, hora que fecha o zoo. Alguns taxistas fazem essa viagem até o zoo e vão guardando lugar na fila, enquanto os turistas ficam em outra. Porém, o preço é salgado. Para o taxista buscar no hotel as 8h30 e trazer de volta as 15h é preciso desembolsar, em média, R$300. Porque a grande maioria é brasileira, tanto o zoo como os taxistas, recebem em real. A grande questão que circula por todos os visitantes é se os animais estão dopados ou não. É comum encontrar os animais, principalmente os felinos, dormindo. Enquanto as pessoas estão nas jaulas, os treinadores dão aos animais leite, o que aumenta as suspeitas que eles são dopados. “Se os ani-

foto: reprodução

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mais fossem dopados eles seriam magros e poderiam se tornar agressivos”, defende Clara. O próprio fundador do zoo, Jorge Semino, publicou uma carta dizendo que o zoológico esta aberto para que as instituições protetoras dos animais façam testes para tentar comprovar o uso de tóxicos. Durante o passeio, é possível ver que os animais acordam e interagem um com os outros. Principalmente os filhotes, que são muito ativos e brincam o tempo todo entre eles mesmo, com

gabriela rodriguez

“Em 19 anos não registramos nenhum acidente”

Atualmente o zoológico conta com 450 animais, entre eles 80 leões africanos

os cachorros e com garrafas e sacos plásticos. Contudo, por serem animais de hábitos noturnos, é comum que passem o período da tarde descansando. 100% seguro?

A segurança é outro fator importante. Em nenhum momento é possível se sentir ameaçado no zoológico, tanto dentro quanto fora das jaulas. Os felinos são acostumados desde filhotes a conviverem com pessoas e com seus treinadores, tanto que comem da mãos deles. Se algum dos animais fica mais agitado, as visitas a essa jaula são suspensas até que o animal se acalme. “Em Entre bichos e carros 19 anos não registramos Além dos animais, uma outra paixão nenhum acidente”, diz de Jorge são carros antigos. Dentro dos 15 Semino. “E se alguma hectares da fazenda, é possível encontrar coisa acontecer, a resmais de 150 tipos de carros diferentes. Desde ponsabilidade é nossa, carros de guerra até furgões dos anos 40, a como qualquer outro idéia de Semino é de criar um museu de estabelecimento comercarros antigos. Atualmente, Semino cial”, conclui. Durante a possiu a maior coleção de Jipes visita foi possível observar da América Latina. os cuidadores comerem sanduiches de carne dentro da jau-

la e os tigres nem se incomodarem com o cheiro. Em um vídeo institucional, é possível assistir Semino explicar todo o processo de amansamento dos animais. Diz que os felinos do zoológico são todos nascidos em cativeiro e criados, desde pequenos, de forma a perder seu instinto predador e de competitividade. “Cuidamos deles desde o dia em que nascem, fazemos seus partos e somos parte de sua família desde que são bebês”, explica. Os felinos são criados junto com cães e aprendem a ser dóceis como eles. Os filhotes até os 9 meses mamam em suas mães, em cadelas ou em mamadeiras. Após isso passam a ser alimentados com carne, diretamente da mão do criador. Ainda no vídeo é possível ver os filhotes sendo apresentados a brinquedos barulhentos e que se movem, para que se acostumem com o barulho e agitação do zoo. Segundo Clara, os cachorros são essenciais para o treinamento dos felinos e dos ursos. Os filhotes ficam com os cachorros na jaula e

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gabriela rodriguez

Apesar da ideia inovadora de estabelecer contato entre animais selvagens e seres humanos, há quem questione o serviço oferecido

Brecha na lei Para os ambientalistas argentinos, o zoo de Luján estaria fechado se não fossem por razões comerciais e políticas. Seria realmente difícil que um zoológico pequeno e afastado conseguisse competir com os maiores da região, como o Zoológico de Buenos Aires e o de Temaiken, a não ser pelo fato de deixar tocar nos bichos. Eles acusam o zoo de não cumprir a lei estadual 2308 de 2001, do estado de Buenos Aires, que proíbe o contato de seres humanos com animais selvagens ou perigosos, responsabilizando os estabelecimentos pela segurança dos animais, do público e de seus funcionários. Em outro artigo, o decreto diz que em cada jaula deve haver placas informativas sobre os animais e que os zoológicos devem complementar a atividade educativa. Mas o Zoo Lujan alega que os seus animais são nascidos em cativeiro, domesticados e mansos, e por isso não podem ser considerados selvagens ou perigosos.

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“Não somos um zoológico ilegal. O governo faz inspeções regularmente, temos que entregar balanços a cada quatro meses, os controles são bem estritos. Estamos totalmente em acordo com o Ministério do Meio Ambiente. O zoológico está aberto desde 1994 e nunca foi fechado. Seria impossível ser diferente”, explicou Santiago Semino a entrevista ao iG.


quando começam a brigar entre si, os cachorros mordem as patas e a cara dos filhotes. Tanto que essas duas partes (patas e cara) não podem ser acariciadas pelos visitantes. Dentro da jaula é possível encontrar cachorros que convivem naturalmente com os bichanos. Algumas jaulas não podem ser ingressadas por crianças menores de 16 anos, por questão de segurança já que o comportamento da criança pode ser inesperado dentro da jaula. Há alguns anos, uma das jaulas possuía uma grande árvore que impossibilitou a construção de um telhado. Uma manhã, a jaula que possuía oito tigres estava somente com sete. Após uma breve procura, um instrutor resolveu olhar pra cima e achou o tigre de 200 kg empoleirado em um galho observando atentamente um pavão que descansava em outro galho. A partir daí todas as jaulas, que tenham árvores ou não, possuem grade e telhados. Enquanto isso, no lugar dos ursos, só é possível alimentá-los com pequenos pedaços (porção paga pelo visitante) de batata doce. Por estarem em época de hibernação, os ursos não ficam o tempo todo perto dos visitantes, ao contrário do que acontece no verão, quando ficam parados do lado da cerca com a boca aberta à espera de comida. Os ursos, Florencia e Leonel, chegaram ao zoo em 2009 e completam em julho 4 anos de vida. Quando chegaram ao zoo, foram carinhosamente adotados por uma das netas do dono, que além de alimentá-los, dormiam embaixo de sua cama. Quando os ursos pardos eram pequenos, era possível interagir com eles, sentando em um bloco de feno

e deixando que o urso chegasse perto, passasse por cima e até abraçasse o visitante. Atualmente, os ursos têm quase dois metros de altura e pesam 400 kg. Atualmente o zoológico conta com 450 animais, entre estes: 80 leões africanos (maioria nascido no local), 40 tigres de sabre, quatro ursos, doze pumas, duas elefantes, lhamas, dromedários, iguanas, araras, veados, macacos e outros animais menores. A grande novidade do zoológico são os dois tigres brancos de 10 e 14 meses. Com exceção dos animais de grande porte, o restante fica solto pelo zoológico. Então, é comum ser abordado por lhamas curiosas que enfiam a cabeça entre as pessoas ou gansos atrás de comida, enquanto espera entrar nas jaulas dos grandes felinos. Jaulas que são proporcionais ao tamanho dos animais que elas abrigam, dando espaço para que os animais, filhotes ou não, brinquem e se movimentem. O que comem?

“Os animais estão bem alimentados, não tem porque serem violentos”, esclarece Clara. De fatos, os animais são muito bem alimentados no zoológico. Os felinos adultos comem cerca de 12 kg a 15 kg de carne, tanto de vaca como de frango e cavalo, por dia e os filhotes de 7 kg a 9 kg. Já os elefantes, Sharima e Arly, que chegaram a Luján em 1999, comprados de criadores da Sumatra, comem cerca de 120 kg de vegetais e legumes diariamente. Por ser uma instituição privada, todo o dinheiro da entrada é destino à compra de carne e à manutenção das jaulas.

A cidade A cidade de Luján é mais conhecida como a capital da fé argentina. Com uma grande basílica para Virgem de Luján, padroeira dos argentinos, uruguaios e paraguaios, a cidade atrai milhares de peregrinos por ano. Em maio de 1630, a imagem da Virgem de Luján vinha a Argentina a partir de Salvador, Bahia, onde eram feitas as melhores imagens de santos. Um fazendeiro português criado em Santiago del Estero, Antonio Farias Saa, queria construir em sua fazenda uma capela para a Virgem, então trazia do Brasil duas imagens que representavam Nossa Senhora. Segundo a lenda, a caravana se deteve ao longo do rio Luján para descansar, retomando a caminhada no dia seguinte. Porém, a carroça que transportava a imagem não se movia. Tentaram de todas as maneiras possíveis fazer com que a carroça se move-se, tiraram mercadoria, colocaram mais bois, mas foi inútil. Os carroceiros retiraram uma das imagens, e nada aconteceu, retiraram a outra imagem, e a carroça andou normalmente. Nesse instante os homens perceberam que algo de milagroso estava acontecendo. Vendo que a Virgem não queria deixar o local foram para a casa mais próxima. A família emocionouse ao ver a imagem e colocaram-na em sua casa, a notícia correu toda a região, e até chegou em Buenos Aires. Dom Rosendo construiu uma pequena capela, entre as gramíneas dos pampas, neste local a virgem permaneceu intacta de 1630 a 1674.

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cidade

diário porteño Um passeio por Buenos Aires que resgata momentos de sua história Por fernanda matricardi

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o cruzar o Atlântico pela primeira vez, em 1536, os espanhóis encontraram a estátua de uma virgem, Santa Maria do Bom Ar, que iria proteger os navegantes durante a viagem, daí se origina o nome Buenos Aires. A capital do tango, também famosa por seus alfajores, pelo vinho, pelo frio e pelo turismo de consumo, guarda, ainda, marcas de sua história, que permitem um turismo histórico, muitas vezes esquecido. Entre seus prédios de estilo neoclássico, caminhando pela cidade é possível ver edifícios importantes de

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várias épocas, estátuas de figuras notáveis, museus, ruínas e marcas de bombardeio. Assim, passando pela época colonial até momentos importantes da história contemporânea, como peronismo, ditadura e a crise de 2001, a cidade pode ser lida como um diário.

barcou no rio Riachuelo em 1580, após fracassar a busca pela prata na Argentina, e instalou um pequeno assentamento no porto onde se estabeleceu, originando a cidade de Buenos Aires. A estátua, um pouco escondida pela grandiosidade urbana ao redor, é obra do escultor alemão Gustav Heinrich Eberlein.

Morre a prata, nasce Buenos Aires

Ao lado de uma árvore, na pequena Plazoleta 11 de Junio de 1580, está a estátua de Juan de Garay, explorador das regiões do Rio Paraná. O espanhol, na segunda tentativa de originar um povoado, desem-

As luzes se apagaram

Quem vê a fachada discreta e com partes danificadas não imagina a importância que guarda o edifício. A aproximadamente 300 metros de onde estava o rio na época colonial


flickr / dandeluca

natália rossi

A mansão das luzes se tornou um dos principais museus históricos da cidade

flickr / .mahadeva

se encontra a Mansão das Luzes. Basta entrar, sentir o cheiro marcante do incenso e olhar o formato de suas paredes com tijolos à mostra, para perceber a atmosfera histórica. Foi nessa casa silenciosa que os jesuítas estabeleceram-se em 1661 e deram início a várias construções ao redor, formando o “Quarteirão das Luzes”. Eles foram expulsos por Carlos III, rei da Espanha, em 1767, mas, mesmo depois da expulsão, as construções continuaram e, ao final, o complexo contava com a Igreja de São Ignácio, o Colégio São Ignácio e quatro salas subterrâneas, onde funcionaram o Arquivo Geral do Tribunal de Contas, a Biblioteca Pública, a Administração, o Banco da Província, o diário La Prensa, Academia Nacional de História e as Faculdades de Ciências Exatas e de Arquitetura da Universidade de Buenos Aires. Além das salas, podem ser visitados também os grandes túneis no subsolo, idealizados

pelo jesuítas e motivados por várias razões, entre elas unir as igrejas, os edifícios públicos e o forte. Assim, a quantidade de intelectuais que circulavam por esse local gerava um ar de concepção de ideias, caracterizando seu nome. Infelizmente, uma parte da história se perdeu quando a maioria dessas construções foi demolida no século XX, como o prédio do colégio, para dar lugar a edifícios de estilo neoclássico, e a faculdade de arquitetura mudou para outro local. Com isso, as autoridades decidiram deixar apenas o que é original da época dos jesuítas e derrubaram todo o restante. Apesar de aparentemente abandonado, hoje, com apoio da Actividad Cultural de la Manzana de las Luces o local se tornou um dos principais museus históricos da cidade e o único que guarda uma parte tão antiga de Buenos Aires, incluindo os túneis e uma região de chão original. AGOSTo de 2013 | enviado especial

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Na região central da cidade, a grande maioria dos pedestres passa apressada e ignora que, sentado em seu trono de forma imponente, com o capacete de luta e suas armas, está a estátua de Júlio Argentino Roca. O general, entre 1878 e 1885, lançou a campanha militar “Conquista del Desierto” com o objetivo de dominar os territórios da região do Pampa e da Patagônia. Para tanto, foram convocadas incursões militares a fim de acabar com os ataques indígenas aos povoados durante a campanha. O resultado foi um genocídio. Como forma de legalizar a conquista e justificar as atrocidades, foi criada uma lei em 1878 que afirmava que a fronteira até os rios Negro, Neuquén e Agrio deveria ser controlada diretamente pelo Estado Argentino. Atualmente, além do

wikipedia/user barcex

Destruir para dominar

Estátua do general Júlio Argentino Roca em meio à imensidão urbana monumento, o general se encontra nas notas de cem pesos, mas, pela representação negativa que carrega, existe um plano de mudar para a figura da Evita Perón.

natália rossi

A Casa Rosada exibe cor e características arquitetônicas marcantes 56

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A cor do poder

Sangue de vaca com cal para proteger da umidade conferia a cor rosada que deu nome à casa. A princípio, foi construída como um forte e passou por reformas ao longo dos anos até atingir a estrutura atual, em 1898 durante o governo do general Julio A. Roca. Nela, trabalharam os governantes desde a época colonial até os dias atuais. A Casa Rosada é ponto turístico marcante de Buenos Aires e, por curiosidade, é possível saber se o governante está no local quando uma pequena bandeira da Argentina está abaixo da grande bandeira permanente. A imponente casa abriga, ainda, o Museu da Casa do Governo, que pode ser visitado gratuitamente aos domingos. Além de sua já sabida importância política, também atraiu alguns fãs, pois, pelo seu famoso balcão, desfilaram grandes nomes, como Perón, Evita, o Papa e até Maradona. Foi dali também que fugiu de helicóptero o ex-presidente Fernando de La Rúa durante a crise de 2001.


natália rossi

A voz da praça

Sob o sol, com chuva, frio ou vento, não há quem não visite. A Praça de Maio é o coração da cidade. Seu nome tem origem na Revolução de Maio de 1810, que iniciou o processo de independência da colônia, conquistada em 1816 - quando os habitantes decidiram não mais obedecer ao governo espanhol, que estava dominado por Napoleão. No centro, está seu modesto obelisco, ou Pirâmide de Maio, construído em 1811, na Praça Vitória, em comemoração à data da Revolução e movido para a posição atual em 1912. A grande praça com seus jardins e muitas pombas, além da presença

dos turistas e dos passantes, é um local de expressão popular constante, por estar rodeada de poderes, como o Banco da Nação, a Catedral Metropolitana de Buenos Aires, o Governo da Cidade, o Parlamento, o Ministério da Economia, os Militares e o Gabinete Presidencial se torna palco de manifestações. No chão rosado, ao redor da pirâmide, por exemplo, está a marca das fraldas usadas pelas Mães da Praça de Maio durante seus protesto e que, ainda hoje, caminham ali todas as quintas-feiras desde 1977 para manter vivo na memória dos argentinos o desaparecimento de seus filhos durante a ditadura militar.

natália rossi

O obelisco, ou pirâmide de maio, construído em 1811 em comemoração à data da revolução que iniciou o processo de independência

Data da revolução marcada em monumento AGOSTo de 2013 | enviado especial

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Debaixo deste movimentado viaduto, que ainda não existia na época da ditadura, os militares prendiam, matavem e torturavam Cravado na memória

wikipedia/user roblespepe

Escuela de Mecanica de la Armada, a ESMA, um dos centros de tortura da ditadura 58

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Pinturas de corpos, fotos de desaparecidos e mensagens entre as ruínas. Essa atmosfera pesada, triste e revoltante pode ser sentida nos escombros do que restou de centro clandestino Club Atlético. Debaixo do movimentado viaduto que hoje ali existe, durante a mais violenta Ditadura Militar da América Latina, com o objetivo de restaurar a ordem social, os militares prendiam, matavam e torturavam os subversivos. Esse tipo de repressão funcionou não apenas nos centros oficiais, mas também em centros clandestinos, por isso, a violência foi extrema. Os centros funcionavam em todo o país e dois deles podem ser visitados em Buenos Aires, ESMA, o mais conhecido, e


flickr / veritatem clésio oliveira

O museu de Evita relembra uma das figuras mais importantes para os argentinos Club Atlético, próximo ao bairro La Boca, que ajudam a manter viva a memória dos desaparecidos. Marcas de um golpe

Andar no centro também provoca a angustiante sensação de guerra. Sabe-se que o governo de Juan Domingo Perón passou por turbulências, entre elas o atrito com os militares, conforme aumentava seu apoio popular, e com os católicos, ao convocar uma constituinte para separar a Igreja do Estado. Com isso, na segunda tentativa de golpe, em 1955, a Aviação Naval bombardeou Buenos Aires e deixou 364 mortos, além de combater por terra e por mar. É possível ver os grandes furos no prédio do Departamento Central de Polícia, marcas deixadas pelo bombardeio.

Outros pontos bombardeados foram a Casa de Governo, o Ministério da Guerra e a região da residência presidencial. Perón refugiou-se no prédio à frente, nos subsolos da sede do Exército, deixando a situação nas mãos do Ministro de Guerra. A companheira ainda está viva

Um velho trabalhador da época peronista é uma história viva no atual museu de Evita Perón na Confederação Geral do Trabalho, CGT. O edifício inaugurado em 1950 foi a oficina da mulher mais lembrada da Argentina. O carinho dos trabalhadores pela companheira e sua reciprocidade pode ser percebido pelo zelo com o local, pelas esculturas e fotos da Evita na parede. Foi ali que seu corpo doente

pelo câncer permaneceu por três anos e também onde ocorreu seu velório de 14 dias, repleto de flores nas janelas e na rua, enviadas por embaixadas estrangeiras e pelos próprios trabalhadores, como conta o idoso carismático. A história do Peronismo pode ser revivida com o relato do apaixonado e, por vezes, emocionado do ancião. Passando por uma escada, surgem duas imagens grandes de Perón e Evita, onde as 164 cadeiras ocupadas pelos representantes sindicais dá lugar à sala de discurso, que conserva ainda a pintura original. Ali, o Presidente e sua esposa negociavam com os sindicatos e recebiam pessoas de fora, como Luis Inácio Lula da Silva, na época secretário geral dos metalúrgicos. AGOSTo de 2013 | enviado especial

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comportamento > gente

argentina: entre desgostar e não conseguir abandonar Dos 15 aos 23 anos a paulista, e fundadora do blog “Buenos Aires para Chicas”, apaixonou-se pela cidade, deixando para trás as dificuldades de uma adolescente que não queria se mudar para outro país, para não mais se ver capaz de ir embora Por gabriela rodriguez

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á oito anos Amanda Mormito trocava o samba pelo tango. A paulista estava em um aniversário de uma amiga quando seu pai lhe contou que havia sido transferido para Buenos Aires, e em pouco tempo deixariam o Brasil. Como se não bastasse a agitação dos hormônios na fase da adolescência, Amanda teve sua vida transformada bruscamente aos 15 anos de idade. Sem saber falar o idioma, a brasileira, além de lidar com todo o sofrimento e tristeza de deixar a vida paulista para trás, não teve tempo para estudar o idioma e o aprendeu sozinha “na raça”. O que Amanda não poderia imaginar é que a angústia da mudança de país seria convertida em paixão pela cidade de Buenos Aires. Aos 22 anos, a

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paulista deu a luz ao blog “Buenos Aires para Chicas”. A página, criada em março de 2012, concentra informações de gastronomia, turismo e compras, bem como é um espaço para Amanda dividir suas experiências pessoais e relações desastrosas. Amanda diz que “o blog não é restrito ao conteúdo de viagem: É quase como uma página de lifestyle.” Amanda diz que os primeiros textos do blog foram escritos em uma linguagem mais formal, mais “certinha”, pois não tinha muita experiência, bem como era insegura e temia a opinião de suas leitoras. Com o passar do tempo, e com o amadurecimento de seu estilo, a blogger passou a escrever de modo mais leve e informal, quase como se estivesse conversando com uma amiga.

“É muito legal ter o blog como um portfólio também. Ao ler as primeiras postagens e as atuais,posso ver minha evolução.”, completa. O primeiro contato da jovem com o mundo jornalístico foi um blog feito por ela e seu ex-namorado. O site abordava bares em geral, tal como seus principais drinks e bebidas alcoólicas. “Era muito contraditório pra mim escrever sobre os bares quando eu nem bebia. Acabei desistindo do blog e do namorado (risos)”, comenta. Após concluir o 1º grau, Amanda pensava no Jornalismo como profissão. No entanto, preferiu cursar Relações Internacionais, uma vez que seu pai, formado em Matemática, não a incentivava a seguir na área de Comunicação Social. “Eu era muito carente da apro-


gabriela rodriguez

“O blog é muito eu, e é conhecido pelo seu conteúdo, o que é muito difícil atualmente”

Amanda iniciou o blog em 2012 e desde então não parou de fazer postagens

vação do meu pai, acabei seguindo outra carreira por isso.”, diz a blogger, que atualmente trabalha na IBM, mencionando seus planos de ainda formar-se jornalista. Diferentemente de seu pai, a mãe de Amanda, vibrou quando soube que sua filha criaria um espaço na internet com dicas de Buenos Aires. Por ser conhecido pelo conteúdo, como a criadora mesmo diz, mais “mulherzinha”, sua mãe se empolgara para compartilhar o blog com as amigas. Com aproximadamente 25 mil visualizações únicas por mês, o Buenos Aires para Chicas é mantido por Amanda Mormito sem a ajuda de colaboradores. Os únicos investimentos financeiros feitos pela blogger foram com vídeos e diagrama-

ção do site. “O blog é muito eu, e é conhecido pelo seu conteúdo, o que é muito difícil atualmente.”, diz ao mencionar a futura necessidade de alguém para ajuda-la a manter a página. Toda a publicidade presente no blog foi um espaço oferecido para amigos de empresas relacionadas ao tema do blog. Ainda que o projeto despretensioso, com 1 ano e meio de vida, tenha se tornado um trabalho pela responsabilidade social que apresenta, a jovem não tem nenhum grande patrocínio que a permitiria ter estabilidade financeira. Uma das principais fontes de renda do blog está na venda de guias de viagem online. Em parceria com uma amiga brasileira, Amanda vende guias personalizados, dos quais os preços variam de 10 a 12 reais. Já

um dos fatores mais relevantes para o crescimento do “Buenos Aires para Chicas” está associado à proximidade que a blogger tem de suas leitoras. “É muito difícil você ver algum comentário sem resposta no site. Enquanto eu puder, vou continuar fazendo isso.”, comenta Amanda, que acha que dar um feedback a suas seguidoras é algo de extrema importância, e que se for necessário, contrataria uma pessoa apenas para ajuda-la a responder os comentários que recebe na página. Além de estar sempre em contato com suas leitoras, Amanda diz que as redes sociais tiveram uma enorme responsabilidade para o sucesso de seu projeto. A difusão do projeto por meio de compartilhamentos e likes deu visibilidade para que mais AGOSTo de 2013 | enviado especial

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pessoas tivessem acesso ao blog. Atualmente, o Buenos Aires para Chicas é lido por mulheres, em sua maioria de 25 a 31 anos, das quais 70% são brasileiras, 20% argentinas e o restante de países europeus e latino-americanos. Com mais de 20% de leitoras hispanas, Amanda criou outra página escrita em castelhano para melhor atende-las. Contudo, essa página está onhold, uma vez

que ainda não encontrou ninguém para ajuda-la a subir as matérias. Ainda que a maior parte de quem leia o blog seja do sexo feminino, Amanda esclarece em sua página que os Chicos também são bienvenidos a lê-la. Além de seu trabalho, no setor de recursos humanos, na IBM, e de sua responsabilidade com o Buenos Aires para Chicas, Amanda é cola-

Público fiel

Amanda conta que a maior de seu público é sim brasileiro. No entanto, as argentinas e até mesmo outras leitoras da europa e de países latino-americanos leem suas postagens. O sucesso é tão grande que Amanda até criou outra página em castelhano para melhor atendê-las

70% são brasileiras

20% são argentinas

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são de países europeus e latino-americanos

boradora de mais três projetos de Comunicação Social. Dentre eles está o site brasileiro “Destemperados”, no qual a paulista escreve duas matérias por mês sobre diferentes restaurantes portenhos.A blogger também colabora para a revista online Jenjibre, que é projeto de duas Argentinas. A revista tem somente quatro edições por ano, sendo uma em cada estação. Além disso, Amanda também é a correspondente de Buenos Aires para o site “Bar Chick”. A página com dicas de bares foi criada em Londres e é feita, necessariamente, por mulheres – Chick em inglês têm o significado de “menina” – das principais capitais do mundo. Com uma porção de Jobs, a brasileira diz que o blog é o que lhe consome mais tempo, tendo em vista que este apresenta uma postagem por dia. Em abril de 2013, Amanda participou do programa “O mundo segundo os brasileiros”, televisionado pela Rede Bandeirantes. O tema do episódio era a vida de brasileiros que moravam em Buenos Aires. Ainda que não tenha apresentado ao programa seu blog, sua parição na televisão lhe possibilitou ter maior visibilidade, isto é, na edição mencionaram abaixo de seu nome seu cargo de “blogger”. “Eu vejo que as pessoas buscam: ‘Amanda o mundo segundo os brasileiros blog’, no google, o que acaba levando todo mundo para o endereço do meu blog”, relata. Quem pensa que a vida de blogger e participante de programa de TV é receber somente elogios engana-se. Amanda diz que é alvo de críticas, e certa vez, ao citar “as 5 coisas das quais não se acostumaria na Argentina” em seu blog, foi


sxc.hu/zizzy0104

“Buenos Aires me dá o que escrever todos os dias” julgada pelas leitoras de Buenos Aires: “Escreveram que eu tinha que voltar para o Brasil e que eu não merecia morar na Argentina.” A brasileira disse que no começo, por ingenuidade, pensava em desistir do blog, mas com o tempo passou a dar menos relevância a esses tipos de críticas não construtivas. Depois de oito anos em Buenos Aires, a paulista já é quase uma Argentina e só pensa em voltar a morar no Brasil por conta de seus pais,

que há um ano e meio deixaram a cidade portenha. Contudo, o retorno da blogger implicaria no fim de sua colaboração na página Buenos Aires Para Chicas. “O blog me dá uma alegria diária muito gostosa, e eu sei que se eu voltar pra São Paulo, isso tudo vai acabar”, desabafa. Ainda que, por hora, a jovem queira dar continuidade ao site, ela diz saber que este não é infinito. Amanda já tem em mente outros projetos, e diz que é possível que o blog sobre-

viva nas mãos de outra pessoa futuramente. “Eu não sei o que pode acontecer.”, comenta. Amanda que acreditava, equivocadamente, no dia em que suas matérias e dicas se esgotariam, diz que a todo tempo é surpreendida com bares, lojas, restaurantes, experiências pessoais e tudo aquilo que vivencia em sua rotina portenha. Sem saber o que esperar, a blogger sempre leva sua câmera fotográfica aos novos lugares que vai, de modo que se estes se encaixarem ao perfil do site, ela já está preparada para criar uma nova matéria. A aspirante à jornalista afirma que se depender da cidade, o blog não terá um fim: “Buenos Aires me dá o que escrever todos os dias.” Após quase uma década, Amanda diz não mais se imaginar vivendo em outro lugar. AGOSTo de 2013 | enviado especial

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comportamento > fé

Os sinos dobram por todos O catolicismo ficou em evidência na cidade de Buenos Aires com a ascensão de um Papa argentino. Também sob influência dessa escolha, outras religiões mostram que a mudança não afetou apenas uma parcela de fieis: ninguém é uma ilha

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primeira vista Buenos Aires não parece uma cidade crédula. De um urbanismo invejável para as outras metrópoles da América Latina, a cidade se move com a sobriedade de seus habitantes encasacados pelo frio. Os cartazes de vidência, muito comuns em muros e postes de São Paulo, prometem trazer o amor de volta em vinte e quatro horas, (com a palavra “infalível” sempre em negrito). Aqui, eles dão lugar às placas e cartazes com motivos políticos. Basicamente, enquanto aqueles prometem milagres amorosos, esses prometem milagres econômicos ou expõe miríades de causas políticas.Apesar disso, essa visão se

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complementa ao andar pela cidade e conversar com seus habitantes: o catolicismo, religião majoritária do país, é muito presente em suas vidas, assim como a política. Na estação de metrô Pueyrredon, um pequeno altar com flores foi feito para homenagear a Santa Lujan, onde muitos passantes interrompem seus caminhos para beijar ou tocar a padroeira dos argentinos. São 250 igrejas e paróquias na cidade, entre elas a Catedral Metropolitana da Praça de Maio, próxima à Casa Rosada, símbolo político e turístico da cidade. Ao lado da Catedral encontra-se o mausoléu do General San Martín, construído porque o general, que

Julia mello

Por julia mello


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flickr/chilangoco

como a Igreja Católica atua. Mesmo se você for ateu ou agnóstico, a mudança lhe afetará”, diz o rabino Abraham Skorka, melhor amigo de Francisco, comquem escreveu “Sobre o Céu e a Terra”, livro de reflexões sobre temas religiosos. Fora dos muros

Papa Francisco conta com gigante apoio popular, principalmente entre argentinos apoiou e delineou a independência da Argentina, era maçom, e não poderia ser enterrado dentro da igreja: um exemplo da força do catolicismo que, apesar de não ter o mesmo brilhantismo de épocas anteriores, ainda perdura. O papa é pop

O novo papa, de nacionalidade argentina, veio para reafirmar a supremacia dessa crença na cidade: ele é assunto de jornais, revistas, publicações especializadas em religião, conversas de bar e até souvenires e pequenas lembranças. Em evento sobre o documentário “El Papa del fin del mundo”, do canal HistoryChannel, Ariel Palácios, jornalista do Estado de S.Paulo, elabo66

Enviado Especial | agosto de 2013

rou uma questão que ainda paira no ar: o “Cardeal Bergolio” não tinha muito apoio popular até virar “Papa Francisco”. O que ocorreu para que a opinião pública mudasse? As outras crenças também sofrerão mudanças em suas dinâmicas com a cidade por causa dessa nova força. Já obrigadas a crescer paralelamente ao catolicismo, o islamismo, a umbanda, o budismo e o esoterismo tendem a perder o espaço que conquistaram com dificuldade. Por outro lado, com uma nova forma de conduzir a religião, pode ocorrer uma abertura e intensificação do diálogo entre as religiões. “O homem é um ser que precisa viver de forma digna. As ações e mensagens de Francisco mudarão a forma

Secularmente, as religiões não católicas precisam se adaptar para poder sobreviver. Em um canto quase escondido de uma das principais avenidas da Recoleta, a Santa Fe, está a galeria Patio del Liceo. Com grafites nas paredes e um design europeu antigo, ela reúne ateliês de arte, livrarias e lojas de discos. “A galeria foi uma escola só para mulheres, até se tornar um shopping, que faliu. O espaço ficou abandonado por um tempo, como um galpão vazio, até que revitalizaram o lugar e transformaram no que é hoje”, diz Luciana Massarino, dona da galeria de arte 488. Subindo as escadas de mármore velho, vemos uma loja com cortinas roxas de veludo e luz amarelada. “Aqui estão nossas bruxas boas”, completa Luciana. Livros de misticismo, incensos e uma mesa central convivem harmoniosamente no local apertado. Com um terceiro olho e um cabelo loiro reluzente, Dalia Walker me recebeu antes de dar uma aula de leitura de registros akashikos, uma “orientação a partir da leitura de arquivos da alma que vem do passado, do presente e do futuro”. Dalia, produtora de TV e Cinema, pratica a leitura de Tarô desde que era adolescente. Junto com Isabel, amiga de longa data que possuía o mesmo gosto pela vidência e espiritualidade, idealizou a FE, um espaço com objetivo muito além do


Julia mello

A produtora de TV e cinema Dalia em seu ambiente de trabalho: a FE é uma realização pessoal que vender produtos místicos e serviços: criar um ambiente de diálogo com espírito jovem para reunir praticantes e estudiosos do esoterismo, que não fosse escondido do mundo exterior, como a maioria. “Fui a um lugar que vendia coisas relacionadas a esoterismo, e perguntei para a dona da loja para que servia um certo tipo de Tarô, diferente do que eu praticava. Ela respondeu que não sabia para o que servia a tiragem de cartas em geral. Fiquei muito chocada, como poderia existir um lugar assim?” disse ela, com “I shotthesheriff” de Bob Marley tocando no fundo. Com a necessidade de vencer o preconceito e frustradas por terem sido expulsas de um bar onde fa-

ziam as leituras, criaram um espaço próprio, que hoje reúne jovens e adultos “comprometidos com a transformação e evolução pessoal de todos os que precisam de assistência. As pessoas aqui buscam guias espirituais, conselhos, proteção, informação.” Sobre o Papa Francisco, ela disse que mais do que fazer a religião católica crescer, crê que ele nos fará ver o catolicismo de outra forma. “É um papa que é diferente, mais aberto ao diálogo.” Com religiões que vieram recentemente de outros países, como a umbanda e o candomblé, a adaptação à realidade religiosa foi ainda maior: em 2011, a Federação Metropolitana de Religião Africana e Ameríndia da República Argentina

sofreu uma represália dos moradores do bairro Flores, onde está localizada, por realizar rituais com sacrifício animal. “Tivemos os muros de nossa federação pichados com escritos como “Nazis assassinos” e “Deus é amor”, e quebraram nossos vidros com pedras. Os sacrifícios são feitos com bodes e cabras, tenho proteção da lei por liberdade religiosa, mas isso não é o suficiente na Argentina” diz o Babá Alfredo H. Echegaray, por telefone, responsável pela federação. Mesmo a umbanda sendo a religião que mais cresce no país, hoje em dia seus praticantes consomem os animais como oferenda para os Orixás, para evitar problemas. Além disso, as oferendas têm que agosto de 2013 | enviado especial

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ser depositadas em um local deserto, porque a prefeitura não autoriza que sejam deixadas em via pública. Quanto mais se distancia do catolicismo, maiores são as barreiras: “a umbanda mescla santos católicos com Orixás, já o candomblé, que cultua apenas figuras africanas, sofre mais preconceito.” So-

bre o que os argentinos vão buscar na religião, ele é claro: “a maioria quer saber sobre seu futuro nos jogos de búzios e tem desconfiança da religião em seu total, mas acabam voltando por se interessar por nossa visão e cultura.” Não é por acaso que os argentinos se referem a essas casas como templos.

“A marioria tem desconfiança da religião (africana) em seu total, mas acabam voltando por se interessar por nossa visão e cultura”

flickr/marcelpaulo

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Enviado Especial | agosto de 2013

Política das estrelas

“No começo, a astrologia não tinha reconhecimento oficial. Hoje em dia o governo já nos vê como instituição.” Jerónimo Bringnone, presidente da Fundação Centro Astrológico de Buenos Aires (CABA), é claro ao explicar as diferenças entre o que pensam sobre astrologia nas ruas e o que é ensinado em sua fundação. “Se entram aqui imaginando que astrologia é apenas adivinhação ou charlatanismo, essa visão não dura um minuto e meio. A astrologia tem uma parte técnica, exata, e outra de interpretação humanística. Temos bases sólidas, nada de ocultismos.” Com reconhecimento mundial, foi a primeira instituição de ensino de astrologia em Buenos Aires. A realidade do lugar é distante do imaginário popular: ao chegar no edifício da rua Juan Domingo Perón, às 19h, a porta estava aberta e segui por dois andares um argentino com um longo casaco preto por escadarias que saíram dos livros de Borges. Ao entrar na escola, porém, percebi que ela tinha um ar sóbrio e impessoal, como qualquer outra instituição de ensino. Na porta da biblioteca, um aviso: “para cada dia de atraso será cobrado 0,20 pesos por livro”, junto com propagandas de congressos, cursos, e livros, como o cartaz púrpura que anunciava o lançamento de “A influência da astrologia no pensamento de C.G. Jung”, por Alberto B.Chislovski. É o reencantamento do que não é encantável. A maioria das pessoas chega sabendo o que quer aprender entre os diversos ramos do assunto, com destaque para a astrologia históri-


Julia mello

Cartazes de atividades e livros relacionados à astrologia: a diversidade de conhecimentos é celebrada na Fundação CABA co-social, política e mundana. “Todas essas, juntas, são capazes de ajudar líderes políticos a tomarem as melhores decisões, mas acredito que, pelas suas más ações, Cristina Kirchner não consulta astrólogos”, diz Jerónimo. Antes de ter a força que tem hoje, a astrologia passou por momentos ruins na política e na opinião popular. “O peronismo sempre teve uma atração muito positiva com a astrologia, ao ponto de que um astrólogo, peronista, foi dono do país durante dois anos e matou milhares de pessoas”, fala Bringnone sobre José López Rega ou “El Brujo”, como era chamado

por seu envolvimento com a ciência interpretativa dos astros. “Pela imagem tão negativa que a astrologia adquiriu nessa época, o peronismo de esquerda, os outros partidos de esquerda e o radicalismo social democrata, todos queriam parecer afastados da astrologia, para que o povo não associasse sua imagem com misticismos ou peronismo de direita”, completa Jerónimo. “O Papa gosta de ler Dostoievski”

“De certa forma, as religiões se adaptam às necessidades culturais. No México, por exemplo, o culto à Santa Morte se expandiu por causa da pre-

sença do narcotráfico”, diz o padre mexicano José de Jesus na coletiva de imprensa do documentário “El Papa del fin del mundo”. Existindo indubitavelmente uma comoção argentina e latino-americana sobre a maneira como Bergoglio conduz o Vaticano e a religião católica, o esperado é que, ao passar esses primeiros momentos, abra-se um diálogo sobre a maneira que definimos e entendemos as religiões e a fé – e até mesmo o distanciamento delas. “O Papa gosta de ler Dostoievski. Ele é considerado por muitos o escritor que mais decifrou a alma humana”, diz Ariel Palácios. Enfim, estamos orando. agosto de 2013 | enviado especial

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comportamento > expressão

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Enviado Especial | agosto de 2013

gabriela rodriguez

Fernando Rios Kissner (foto)leovu o Acción Poética para a América do Sul e deu continuidade ao projeto criado pelo artista Alanís Pulido


Um abraço com palavras Dentre as mazelas enfrentadas pela população, vítima de um sistema pautado na corrida pelo dinheiro, o individualismo prevalece soberano. Fernando Rios, difusor do projeto Acción Poética, busca por meio da poesia e pintura valorizar iniciativas coletivas, a fim de aproximar pessoas Por gabriela rodriguez

C

om pincel, tinta e crença de que uma cidade não pode ser separada da poesia, Armando Alanís Pulido, 44, saiu às ruas há 16 anospara reivindicar a ausência poética no mundo contemporâneo. Afetada negativamente pelas grandes cadeias econômicas, a poesia começou a reaparecer, desta vez nas paredes da cidade de Monterrey, México. O artista começou escrevendo nos muros da cidade textos grandes, de sua própria autoria, os quais tinham intuito de provocar impacto sobre as pessoas que os liam. No entanto, a vida acelerada, característica da atualidade, não permitia que as pessoas pudessem parar para ler o conteúdo poético pintado nas paredes. Armando, depois de notar que seu trabalho não estava tendo êxito, passou a dar forma a seu texto, isto é, come-

çou a utilizar poucas palavras para expressar o que queria dizer. Com menos letras, a poesia finalmente teve seu espaço na correria vivida pelos mexicanos de Monterrey. De textos compridos a pequenas frases, nascia o movimento Acción Poética. Durante 15 anos, o movimento literário, que não utiliza papel para exibir sua poesia, ficou restrito à cidade de Monterrey. O que ninguém esperava era que um morador de Tucumán, província localizada no noroeste da Argentina, fosse capaz de mudar a história do movimento e difundi-lo para todo o mundo. Ator e apaixonado por teatro, pela cultura e pela palavra, Fernando Rios Kissner, 49, através de um amigo em comum ao do criador, conheceu o Acción Poética. De cara, o tucumano teve enorme admiração pelo trabalho iniciado por Arman-

do. Sentindo necessidade de apresentar a iniciativa para as pessoas de sua cidade, Fernando pediu para que o mexicano lhe permitisse levar o Acción Poética para a América do Sul. Em março de 2012, o movimento iniciado no México deu a luz a Acción Poética Tucumán. Respeitando o limite de no máximo oito palavras em cor preta e fundo branco, a cidade argentina teve suas primeiras pinceladas poéticas. Ter a permissão do dono da parede para escrever - última e principal regra do Acción Poética não foi um problema em Tucumán. Fernando diz que os tucumanos são receptivos a esse tipo de movimento, possibilitando que o projeto se propagasse rapidamente. “A verdade é que esta ação é muito aceita e querida no meu estado. Eu sempre estou atenta para ver se encontro agosto de 2013 | enviado especial

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Acción Poética tucumán

“Ler os muros de Acción Poética te faz ‘viajar’, pensar e refletir. Espero que tudo isso continue e os muros pintados sejam mais vistos nas ruas” 72

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um novo muro pintado com poesia. Ler os muros de Acción Poética te faz ‘viajar’, pensar e refletir. Faz-te se sentir bem. Espero que tudo isso continue e os muros pintados sejam mais vistos nas ruas.”, relata a tucumana Huerto Bianchi. Fernando diz que a autorização de um vizinho para que sua parede seja pintada pelo grupo, é o que os permite pintar de dia. Assim, o movimento ganha sentido e elimina a ideia de uma arte, ou expressão social, que necessite a escuridão noturna para ser realizada, como é o caso das pichações, por exemplo. O fato de ser uma província menor, tam-


bém contribuiu para que o movimento sucedesse em Tucumán, uma vez que municípios maiores são muito restritivos, e a preservação da estética da cidade se sobrepõe à vontade do dono de pintar, com frases, sua própria parede. Tendo como maior objetivo a valorização da palavra, isto é, do efeito que esta tem sobre o outro quando lê uma poesia, o movimento Acción Poética não é contestador. Desta forma, para evitar o oportunismo de partidos políticos ou grupos religiosos, não é permitido que os muros sejam pintados com conteúdos deste gênero, tampouco com frases que sejam

discriminativas ou preconceituosas. O Acción Poética é um projeto quepreza pelo ato coletivo e pode fazer parte de qualquer cidade, uma vez que os interessados se comprometam a cumprir as regras básicas. Difusor do movimento, Fernando ressalta que este não pode ser utilizado como ferramenta para arrecadar dinheiro, assim, o único incentivo que podem recebersão insumos. Além disso, é permitido que os grupos que instaurarem o projeto em suas respectivas cidades vendam produtos personalizados, com a condição de que a renda seja revertida em subsídios como tinta, pincéis

e rolos para pintar. “Às vezes fazemos empanadas para vender na rua, outras vezes promovemos rodas de poesia, onde no final passamos a cartola para pegar algum trocado. Tudo para que as pinturas sejam realizadas.”, comenta Fernando. Parede e palavra: matrimônio criativo

As frases poéticas propagadas nas paredes vão de sugestões de crianças a autores de renome. Um ponto chave é que não seja revelado o inventor de um texto, tendo em vista que a palavra vale mais do que quem a escreveu. Um objetivo do movimento é a dessacralização da poesia e a agosto de 2013 | enviado especial

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Acción Poética Ayacucho

abertura para que mais pessoas conheçam e produzam textos. A eleição de uma determinada frase para um determinado muro deve acontecer por parte de quem o cede. O proprietário pode sugerir uma frase, tal quanto o grupo. O Acción Poética Tucumán (APT), assim como outros grupos, é responsável por organizar oficinas em escolas, hospitais, centros divinos, dentre outros locais de uma determinada comunidade. Nestes eventos, além da apresentação do movimento, o que ocorre é um exercício prático por meio dos locais, sejam eles crianças, jovens, adultos ou idosos, no qual as pessoas escrevem suas próprias frases, livre e criativamente. Devido à rotina turbulenta, o movimento criou o Acción Poética em casa e na escola, uma vez que muitas pessoas gostariam de participar do projeto, mas não têm disponibilidade. Deste modo, os que querem compartilhar suas frases podem tirar uma foto de seus cartazes, ou da lousa, e enviar para a página do grupo no Facebook. Assim que um vizinho cede 74

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Qual é a sua tribo? Além de promover tal interatividade entre as pessoas e estimular a leitura e produção de poesia, o Acción Poética preza pela preservação da cultura das cidades e dos países onde o grupo está instalado. Um exemplo de tal preocupação pode ser visto no Peru, no Chile e no Paraguai, onde além de serem escritas em espanhol, as frases também apresentam versões em Quechua, Mapuche e Guarani, respectivamente. “Nós fazemos isso, pois achamos que é esse o lugar onde a cultura local deve estar. Preservar a cultura é extremamente importante.”, diz Fernando que acredita em uma América Latina prejudicada culturalmente por seus colonizadores.

sua parede para o grupo, inicia-se o processo de escolha para a frase poética mais adequada ao local em que a parede se encontra. Em relação ao conteúdo, são prioridade asfrases que toquem a emoção e o sentimento de quem a lê, em geral? coisas bonitas. “Quando vamos a uma região pobre, não queremos falar sobre a pobreza, sobre a qual as pessoas a vivem e sabem como é ruim. Queremos frases bonitas, que façam com que, ao lê-las, as pessoas possam sorrir.”, relata o coordenador do Acción Poética Tucumán. Ainda que o grupo seja administrado por oito pessoas, nunca foi possível reunir todos os oito em uma ação, devido à rotina de trabalho e família de cada um. No entanto, o tucumano diz que a atividade, além de um vício, torna-se um ato público. Quando vai pintar alguma parede, pessoas que por ali passam juntam-se ao grupo para pintar. “O mais incrível é ver avós com seus netos, pais com seus filhos, que ao passar e ver o grupo pintando, automaticamente chegam mais perto para nos

ajudar”, relata. Fernando diz que o movimento só é possível, e só toma sentido com o olhar das pessoas sobre ele. “As frases só causam efeito com o olhar de quem passa e lê.”, comenta, afirmando que é impossível sentir-se indiferente ao ler uma frase pintada pelo grupo. “Pode ser bom, pode ser ruim, mas sempre se sente algo ao ler uma poesia.” Muito além da tela do computador

A paixão do tucumano pelo projeto, junto com sua vontade de revalorização da poesia, foi uma das principais razões da expansão do movimento. Atualmente, o Acción está presente em toda a América Latina, na Angola, na Espanha e nos Estados Unidos. Contudo, para Fernando, a difusão do movimento só foi possível devido à ascensão das redes sociais. “Começaram a tirar fotos das paredes de Tucumán, e depois as postavam no Facebook, o que nos deu maior visibilidade.”, diz. Para o coordenador do grupo, a importância do movimento é muito maior do que alguém que vê uma


acción poética tucumán gabriela rodriguez

foto de uma parede pintada por eles e se comove. “A questão é o que acontece por meio disso tudo.”, relata ao mencionar os benefícios que o Acción Poética teve sobre determinados lugares e situações. Um de seus grandes impactos se viu em uma ONG espanhola, cujo objetivo é a prevenção da AIDS. A organização pediu permissão ao grupo para usar fotos e frases pintadas por eles nos muros, e utilizá-las como embalagem de preservativos a serem distribuídos gratuitamente. Segundo entrevistada dada por Fernando ao site El Esquiú, o tucumano se surpreende também com os jovens que começaram a pedir para que suas professoras o contatassem para realizar oficinas em suas escolas. O incentivo à poesia, proposto pelo Acción Poética, também esteve presente em uma instituição de ensino para cegos, onde o grupo, em conjunto com os alunos portadores da deficiência, produziram frases em macro braile, para que pudessem ser lidas não mais com o polegar, mas com a mão dessas pessoas. “O movimento vai muito mais além das fotos postadas no Facebook”, insiste Fernando, criador da página do APT, que conta com mais de 188 mil seguidores.

acción poética tucumán

Estado poético

Em novembro do ano passado, estimava-se quecerca de 150 muros da província de Tucumán já teriam sido pintados pelo Acción Poética. A poesia impressa nas paredes despertou não só um estado argentino, como a alma de seus moradores. Os proprietários das paredes são livres para apagar as frases escritas nelas quando quiser, e se estiverem cansados da mesma poesia em sua agosto de 2013 | enviado especial

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Ação Poética da Tríplice Fronteira

Brasil em poesia As poesias começaram a surgir nas paredes brasileiras em fevereiro de 2013. Maria Jose, 23, estudante tucumanade Sociologia e Ciências Políticas da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, conheceu por meio de uma amiga de sua cidade natal o movimento Acción Poética. Maria, com a ajuda de brasileiros, paraguaios e argentinos estudantes da UNILA, fundou o Ação Poética da Tríplice Fronteira (AP3F). A primeira parede foi pintada no bairro de Cidade Nova, em Foz do Iguaçu, com os seguintes dizeres: “Sem poesia não há cidade”, mensagem que todos os grupos do Acción Poética devem escrever em seus respectivos países, por ser como a filosofia do projeto. O grupo AP3Fbusca escrever frases nos idiomas português, espanhol e guarani, e propõe uma integração entre as nações da região por meio da poesia. Maria ressalta que “o objetivo é o de inclusão, respeitando todas as formas de cultura e expressões artísticas.”. O movimento ainda não recebeu muita participação dos moradores de Foz do Iguaçu, Ciudad Del Este e Puerto Iguaçu. Além disso, alguns políticos da região já apagaram parte de algumas frases pintadas pelo grupo, provando que a censura continua presente nos dias de hoje. A estudante tucumana diz ainda que “a ideia é fazer da poesia parte da paisagem urbana, colocando mensagens de conteúdo cultural à frente dos outdoors carregados com mensagens publicitárias de incentivo ao consumo”.

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casa, podem pedir para que o grupo volte para pintar novos versos. A quantidade de vizinhos que oferecem suas paredes para que o grupo as transforme em arte escrita nem sempre foi grande. O coordenador do APT, diz que o “Romantismo nos dias de hoje gera suspeita”, e que o Acción Poética é como uma pessoa que vem para abraçar as outras, sem ao menos conhecê -las. “Muita gente no começo suspeitava: Por que me abraça? O que ganha fazendo isso?”, relembra Fernando ao dizer que o grupo é justamente o ato de fazer algo para o outro sem esperar nada em troca. Com o reconhecimento do grupo, e com a percepção de que seus objetivos são genuínos, os vizinhos acabaram interagindo com os membros do Acción Poética, tal como compartilhando suas histórias de vida. De parede em parede, o vazio das cidades cinza logo é preenchido com frases acolhedoras. Fernando Rios não se cansa de dizer que a palavra tem uma magia e é “uma experiência para ser compartilhada”. O que o difusor do movimento quer dizer, é que o grupo abraça as pessoas com as palavras, de modo que há uma integração entre quem faz e pinta a frase, com aquele que a observa. O Argentino que propagou o movimento pelo mundo, abraçou as pessoas com sua inciativa, assim como fez pessoas abraçarem sua causa. Quem conhece o Acción Poética, ou lê um de seus muros, não tem como seguir indiferente. Os corações que pulsam todos os dias, sobretudo na América Latina, jamais foram tão tocados – e abraçados – com apenas um olhar sobre as paredes. É poesia em ação.


cultura > literatura

O mundo colorido da imaginação O mundo encantador da feira das crianças pode estar chegando ao fim, mas as portas da imaginação foram abertas para todas aquelas que se deixaram levar pelas histórias dos livros Por mariana stocco

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á imaginou encontrar em um evento público uma cama onde uma criança possa deitar e ouvir seu pai contar histórias? Essa é a 23a edição da Feira do livro infantil ou infanto-juvenil em Buenos Aires. Logo na entrada, à esquerda, encontram-se seis pequenas camas, ambientadas com móveis, roupas de dormir penduradas em cabideiros e luzes mais baixas. As crianças deitam e podem aproveitar o momento de conforto para ouvir os pais contando ou lendo histórias. Ouvir e ler histórias é algo incentivado desde a primeira infância. As crianças são alfabetizadas mais cedo, desenvolvem e cultivam o hábito de ler. E não apenas na cama. Os argentinos possuem o costume de sentar em cafés, comerem ou tomarem algo, na companhia de um livro ou um jornal.

Há uma frase famosa que diz que em cada esquina de Buenos Aires existe uma casa de tango. Contudo, essa afirmação também vale para os cafés. Os argentinos leem muito mais que os brasileiros. Isso pode ser notado pela quantidade de livrarias e cafés que se encontram espalhados pela cidade. Enquanto o Brasil inteiro tem um pouco menos de 2,8 mil estabelecimentos, Buenos Aires, 56 vezes menor em números populacionais, possui entre 550 a 600 livrarias, segundo dados da Associação Nacional de Livrarias. Já a pesquisa da NOP World Reports Worldwide, feita em 2005 em 30 países, colocou o Brasil no 27º lugar entre os que mais leem no mundo, com média de 5,2 horas de leitura por semana. A Argentina ficou nove posições à frente, em 18º lugar. Ou-

tra pesquisa, realizada em 2000 pela Associação Internacional de Leitura Conselho Brasil Sul, revela que o brasileiro lê em média um livro por ano. Os argentinos, quatro. Incentivando a leitura com diversão

Dividida em três ambientes, a feira tem atividades constantes em todos os lugares. Teatro, contadores de história, recitais e oficinas acontecem de hora em hora, além da rádio. “A feira está crescendo a cada ano por ser uma atração cultural disponível nas férias de inverno”, conta Rodrigo Garcia, assessor de imprensa da feira. Garcia complementa que o interesse das crianças por livros não diminuiu e que acha que os livros são muito igualitários porque independem de origem e classe social. “A feira está mais bem organizada do que as anteriores. Antes as crianAGOSTO de 2013 | enviado especial

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ças preferiam outras atividades, hoje estão mais inseridas no mundo da leitura”, diz a visitante Helena. Dentro da feira há um espaço voltado exclusivamente para a tecnologia. Com tvs interativas, as crianças respondem enquetes sobre o meio ambiente, escrevem em lousas digitais e fazem poemas. Quando questionado sobre a excessiva quantidade de tecnologia em uma feira de livros, Garcia diz que a tecnologia ajuda as crianças a terem contato com os livros. Já Cecília, que já visitou a feira com seus filhos e agora leva sua neta, diz que “antes havia mais espetáculos, mas me pareceu bárbaro ver o espaço com computadores”. Para Helena, a tecnologia não pode ser ignorada porque faz parte do dia-a-dia das crianças. A rádio da feira realiza entrevista tanto com autores e palestrantes como com as próprias crianças. Com estúdios de vidro e bem equipada, a rádio chama a atenção pela quantidade de música voltada ao publico jovem, em detrimento das músicas para o publico infantil. Segundo Leonardo, técnico da rádio, eles tocam o que ligam para pedir ou pedem na janela da rádio. “As crianças estão entretidas com as atividades, acabam nem prestando atenção na música. Os jovens vem aqui pedir as musicas que querem ouvir enquanto percorrem a feira”, conclui. No mesmo espaço da rádio há uma exposição com livros latinoamericanos que marcaram a história da literatura para crianças. Lá é possível encontrar autores como os argentinos María Elena Walsh e Horacio Quiroga, o brasileiro Monteiro Lobarto e a uruguaia Juana Ibarbourou. Ainda há uma biblioteca onde as crianças podem sentar, pegar livros nas estantes e ler o que quiserem, en78

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Acima: pais e filhos transitam entre as bancadas e prateleiras da feira e exploram a variedade de títulos disponíveis. Abaixo: meninas sendo entrevistadas na rádio da feira. Ao lado: menino mexendo em televisão interativa no espaço exclusivo voltado para a tecnologia. O governo argentino incentiva muitos programas para crianças, inclusive os que promovem o hábito da leitura, como essa feira de livros


fotos: Mariana stocco

quanto esperam alguma outra atividade ou enquanto os pais passeiam. Em um ambiente alegre, multicolorido, descontraído e barulhento, a feira acontece durante três semanas, sendo que duas pegam a época de férias escolares. Na primeira semana de julho, a feira é tomada por escolas que levam seus alunos em excursão para conhecer os 230 stands e participar das atividades. Durante esse período são esperadas cerca de 300 mil pessoas, entre crianças, jovens e adultos. Mas, por que uma feira de livros exclusiva para crianças?

Se há mais leitores, é de esperar que haja mais livros publicados. Em 2006, foram 85 milhões de exemplares publicados e 18 mil novos títulos, segundo dados da Secretaria de Comunicação da Presidência da Argentina. No Brasil, foram 320 milhões de

exemplares e 46 mil títulos (dados da Câmara Brasileira do Livro em 2006). Uma outra feira também para adultos

A feira nacional de livros acontece em março, atraí cerca de 3 milhões de pessoas e também tem área destinada às crianças. Mas, na feira das crianças não é possível encontrar livros voltados à adultos. Segundo Janaína Figueiredo, correspondente do O Globo, o governo incentiva muito programas culturais voltados para crianças, principalmente nas semanas de férias. Essa feira em particular teve muito mais divulgação dos que as anteriores, testemunha Helena Garcia, que leva suas filhas pela primeira vez à feira, mas que já foi a edições anteriores. Para ela, a importância da feira se dá pela possibilidade de tirar as crianças da frente da TV e incorporá-las ao mundo colorido dos livros. AGOSTO de 2013 | enviado especial

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cultura > arte urbana

el arte

callejera Andar por Buenos Aires é deparar-se com inúmeros desenhos nas paredes. De variados tamanhos, cores, texturas e estilos, eles pintam a trajetória da arte urbana na capital Por fernanda matricardi

U

m pequeno bar-galeria, no charmoso bairro de Palermo, esconde um mundo de pinturas dos artistas de rua que ali se reúnem para conversar. Basta entrar para perceber que não é um lugar comum, todas as paredes são massivamente pintadas, até os banheiros. As gravuras foram feitas pelos próprios artistas e o local ainda conta com uma sala que já recebeu mais de 60 exposições de pessoas ativas nas ruas, incluindo alguns brasileiros. A partir desse pequeno espaço, ao conversar com algumas figuras do meio, as portas da galeria se abrem para o grafite de toda a cidade. Para que se abram completamente, é preciso antes conhecer algumas definições e entender esse universo artístico. O termo “grafite” caracteriza todo tipo de inscrição feita em

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paredes. Algumas técnicas utilizadas incluem o stencil, impressão de imagens em uma superfície através de uma moldura, a pichação, que contém frases ou palavras, a arte hip hop, associada a nomes ornamentados, e desenhos que mesclam pincel e spray de diversas formas. Pode ser através de desenhos, arte hiphop, stencil ou pichação, a arte urbana de Buenos Aires não possui uma conotação tão negativa como em outras cidades, explica Malatesta, um dos artistas de rua responsáveis pela galeria. A origem dessa percepção positiva está em sua história. Uma pincelada histórica

Foram os mexicanos que, por volta de 1930, chegaram à cidade e começaram usar stencil nos muros. Porém, a arte ainda permaneceu

tímida durante anos, até que, na década de 50, durante o governo de Perón, voltou como forma de manifestação escrita, pichação, sobre política (principalmente com nome do presidente), futebol e ideias. Após o golpe militar, a repressão e o isolamento do resto do mundo desestimulou o desenvolvimento da street art e não houve pinturas, e, se houve, foram pouquíssimas. A volta da democracia, no entanto, deu um impulso inicial para que os artistas urbanos voltassem às ruas, resultando na explosão dessa arte na década de 90. Nesse período, o peso equivalente ao dólar permitiu que as pessoas viajassem pelo mundo, principalmente Europa e Estados Unidos, e trouxessem com elas o que viam pelas paredes das grandes cidades. Os artistas possu-


divulgação graffiti mundo

Georgina Ciotti, artista de rua, pintando uma de suas obras. O grafite é bem visto pela maioria dos habitantes de Buenos Aires íam a inspiração, faltava o material e a coragem, pois tinham medo de serem presos. Não conheciam as regras que os outros artistas tinham na Europa, como a necessidade de usar spray, tampouco possuíam esse tipo de material, mas aprenderam com os brasileiros a usar também o pincel e a improvisar. Já a coragem foi se desenvolvendo, primeiro, pintavam à noite, até que os desenhos ficaram muito grandes e complexos e, então, começaram a pintar durante o dia. Atualmente, a maioria das pinturas é feita sob a luz do sol. “Que se vão todos, que ninguém fique” é uma famosa frase pichada durante a crise de 2001. Durante esse período, com a difícil vida que levavam os argentinos, um grupo de universitários resolveu pintar os muros com cores, desenhos e algu-

mas mensagens para alegrar a vida das pessoas que por ali passassem. Isso produziu uma memória positiva e, desde então, elas permitem que os artistas pintem seus muros e, por isso, o grafite é bem visto pela maioria dos habitantes. Buenos Aires, uma exposição aberta

A arte está presente nos muros de todos os bairros, mas é em La Boca e Barracas, que ela se concentra, e lá que Malatesta afirma ser seu lugar preferido para pintar. Andar por esses bairros é um pouco perigoso, mas vale a pena para quem gosta de consumir street art, pela quantidade, qualidade e grandiosidade. A cada esquina dobrada, surge um mural. Na região do famoso El Caminito, existe uma obra gigantesca de fundo azul, que retrata a revolta das mães

pelos desaparecidos da Ditadura Militar, os detalhes e a proporção encantam. Dalí, ao adentrar o bairro, pode-se encontrar outras grandes obras de artistas isolados e de alguns que fizeram parcerias. As pinturas em grupo, tanto de parcerias quanto localizadas lado a lado, ocorre, na maioria das vezes, por causa de eventos organizados pelos próprios artistas. São ruas inteiras de muros pintados, como uma exposição de quadros a céu aberto. Os temas são variados, de ilustrações, passando por hiphop à mensagem política. Outros bairros também expõem suas obras. Alguns artistas pintam ao redor da região em que moram, como Ice, que deixou sua marca por todo Caballito. Na região central, por sua vez, os motivos são principalmente políticos, pichações AGOSTO de 2013 | enviado especial

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Acima na sequência: obras dos artistas Pum Pum, La Wife e Georgina Ciotti. Abaixo: obras do artisita Malatesta com acusação, mensagens e desejos são marcantes, já que concentra os edifícios sede dos grandes poderes. Mas há também os desenhos, como o do artista italiano Blu, que retrata os argentinos com os olhos vendados por uma faixa de cores da bandeira da Argentina. O bairro dos restaurantes, discotecas, bosques e do zoológico, Palermo, abriga também várias obras. Porém ali, por ser uma região nobre, os artistas pintam para se promover, afirma Ice. Retrato dos callejeros

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fotos: divulgação graffiti mundo

Cada artista possui sua maneira característica de pintar. Não só pela técnica, mas também pelo estilo e os motivos escolhidos. Ice é artista de rua há 17 anos e diz “Digamos que tenho uma estética bastante infantil, coisas que não são agressivas, não tenho nada ligado a partidos, então é raro a pessoa que não gosta”. Ele conta que já pintou no Chile, no Brasil e no Uruguai e suas temáticas preferidas são chimpanzés e fungos. Já Malatesta, prefere não classificar sua arte.

Conhecendo melhor o cenário do grafite em Buenos Aires, é possível perceber que não engloba apenas homens, apesar de serem a maioria. Pum Pum, Georgina Ciotti e La Wife representam muito bem o time de artistas femininas, elas imprimem uma típica riqueza de detalhes e traços delicados em suas obras. É interessante saber, ainda, que alguns desses artistas pintam apenas nas horas livres, pois trabalham como arquitetos, designers ou estilistas. Em geral, como a grande maioria dos outros artistas ao redor do mundo, também revelam que a inspiração chega na hora, sem pensar antes no que irão desenhar. E jogam com tamanhos, texturas e cores. Assim, por ser fruto de um sentimento, preferem que a obra seja interpretada por cada pessoa a seu modo, sem perguntas sobre o seu significado. Ademais, a escolha do muro possui alguns critérios, o principal é sua aparência. Um lugar muito velho, destruído, abandonado ou cheio de pichações são os preferidos para pintar, assim, segundo eles, re-


Cada artista tem seu estilo e técnica para pintar, o que proporciona diferentes tamanhos, texturas, cores e temas em cada obra novam e alegram aquele ambiente. Já para mensagens políticas, os lugares escolhidos geralmente ficam próximos aos prédios que concentram algum tipo de poder. Os artistas também pintam por encomenda, nesse caso não escolhem o local, mas escolhem o preço, quanto maior a liberdade para criar, mais barato cobram. Um aspecto relevante é que, infelizmente, essas pinturas não duram por tanto tempo. São apagadas pelos proprietários ou estragadas por outros artistas desrespeitosos, principalmente os iniciantes. Um ponto polêmico é o comum desgosto pelos pichadores, pois “mancham a sua imagem”, apesar

de revelarem que já picharam antes. E Malatesta se diferencia “Não estou colocando meu nome gigante em frente à sua casa, eu procuro uma parede destruída e faço, na minha opinião, uma peça de arte. Eu ponho meu coração, meu material, meu conhecimento em uma parede”. É interessante, ainda, que alguns artistas de rua não se consideram vândalos, mesmo sendo ilegal o grafite na Argentina. Justificam que geralmente pedem autorização para pintar os muros, até mostram suas ideias ao proprietário, e este, quase sempre, autoriza. O desenho é feito sem permissão apenas em construções abandonadas. Mas

admitem não agradar a todos “Eu posso fazer com minha melhor intenção e, para uma pessoa, pode ser uma obra de arte incrível, para outra, pode ser um horror.”, reconhece Malatesta. Legal é perceber que a modernidade também chegou à arte. Ice, por exemplo, pretende usar o moderno código QR em suas obras, para o interessado ter mais informações sobre como foi pintada. Assim, com essa riqueza de tamanho, formas, cores, motivos, técnicas e estilos é a arte callejera que esses artistas fizeram e fazem acompanhando o momento histórico do país e imprimindo vida na cidade.

“Nós, como guitarra, bateria e baixo, pintamos juntos e fazemos música” - Malatesta, artista de rua AGOSTO de 2013 | enviado especial

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cultura > teatro

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principal > segmento

buenos aires

em cena Apesar das dificuldades para encontrar salas e da falta de apoio financeiro, o teatro alternativo da capital argentina vive um período de efervescência criativa

Por mariana marinho

foto: mariana marinho

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ra por volta das nove e meia da manhã quando um simpático senhor abria as portas de seu kiosco, na altura do número 300 da rua Ayacucho. Um grupo de policias terminava de tomar um cortado - como os portenhos chamam a pequena dose de café com leite - quando os atores começaram a chegar. Os transeuntes não imaginavam, mas naquele endereço, atrás de todos os alfajores, guloseimas e bugigangas, havia uma sala de ensaio. Pequena e cercada por espelhos, ela era, naquela manhã e em outras tantas, palco para a preparação de “Las Demás”, peça dirigida pelo jovem dramaturgo Fabio Golpe (foto). Golpe trazia os longos cabelos lisos presos num coque. Ele, ansioso e enérgico, acompanhava o ensaio sentado numa cadeira com o texto na mão, se levantando apenas para fazer pequenas correções

na interpretação dos atores. Utilizando-se do humor e da ironia, “Las Demás”, que estreia em setembro no Teatro Tadrón, propõe um mergulho no drama amoroso das personagens, que parecem ter saído de um filme de Almodóvar. Com o desenrolar do ensaio, mal se sentia o cheiro do pó impregnado nas cortinas roxas que cobriam a grande janela. Mal se ouvia o barulho da rua. Tudo o que se sentia era a sintonia de corpos que, mesmo com todas as dificuldades características da cena independente teatral, como a falta de infraestrutura, carregavam pela sala a paixão pelo teatro. A capital do teatro

Buenos Aires está repleta de teatros. Alguns se exibem imponentes pelas ruas, como o Teatro Cólon, outros são mais discretos, como o Timbre 4, localizado em Boedo.

Algumas salas se escondem sob as muitas propagandas das peças, outras se escondem atrás de kioscos ou de sua própria pequenez. Aos finais de semana, os teatros da capital argentina chegam a exibir mais de 300 espetáculos e as salas comerciais recebem cerca de 70 mil pessoas. “A cena teatral em Buenos Aires está muito viva. Isso se deve a algumas razões, mas o principal fator é a importância da tradição teatral da cidade. Temos o circuito estatal, comercial e alternativo. Apenas o estatal vive certa crise. O circuito comercial apresenta uma abundância de teatro de texto e o circuito alternativo goza da proliferação de autores nacionais”, explica o dramaturgo e roteirista Javier Daulte. Um dos grandes nomes do teatro argentino, Daulte transita entre os três circuitos. Em sua charmosa casa, o diretor, que de 2006 a 2009 foi o diretor AGOSTO de 2013 | enviado especial

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artístico do teatro La Villarroel, em Barcelona, trabalha no texto de “Personitas”, sua próxima montagem para a cena independente. “Devemos apenas tomar cuidado para não produzir no circuito comercial um espetáculo que seria mais adequado à cena independente e vice-versa. Comigo aconteceu duas vezes: ¿Estás ahí? deveria ter sido apresentada em teatro comercial e Caperucita no teatro alternativo”, diz. Daulte explica que o teatro independente em Buenos Aires não funciona como uma antessala para o teatro comercial. “Ambos os circuitos têm o seu público e o seu espaço, porém, eles estão conectados de alguma forma. É essa conexão que me permite transitar entre os dois. Há um público exclusivo do teatro comercial, outro exclusivo do teatro alternativo e um terceiro público que circula entre os dois. É fundamental que os artistas, o público e a imprensa circulem dessa forma, pois, se isso não acontece, a vivacidade do panorama teatral da cidade pode ser prejudicada”. Apesar da cena alternativa viver um momento de plena atividade criativa, os dramaturgos e atores travam uma batalha diária para tentar driblar a falta de recursos, os baixos salários e as dificuldades de encontrar salas disponíveis. “Quase não há apoio estatal ou privado. O teatro alternativo é sustentado pelo público que assiste ao espetáculo e paga o ingresso. O interessante seria conseguir mais apoio, até mesmo do Mercosul, expandir o teatro argentino para além das fronteiras”, afirma a bailarina Inés Armas. Ao lado do marido, o diretor 86

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brasileiro Fagner Pagan, Armas coordena a Cia. Móvil, que desde 2006 elabora projetos que envolvem teatro e dança. Em “Cuerpo Extranjero”, seu mais recente trabalho - que chega em setembro a Sorocaba -, a Cia se propõe a investigar as relações do homem com as coisas materiais. Em cena, uma bailarina, um boneco de trapo e sua manipuladora travam relações de poder entre si. Fábio Golpe também considera

Há cinco anos, o festival é uma oportunidade de diretores teatrais com menos de trinta anos mostrarem seu trabalho. Serão doze peças apresentadas ao longo do mês. “La Guarra Enloquecida”, a quinta peça da carreia de Golpe, conta a história de Carla, uma estudante de teatro que depois de vários testes é selecionada para protagonizar o filme “La guarra enloquecida”. Porém, a jovem não sabe que se trata de uma

“Há pequenas novas salas destinadas à apresentação de montagens independentes. [Mas] conseguir que uma sala aceite a sua produção pode ser uma tarefa complicada” a falta de apoio um dificultador, assim como a dinâmica para conseguir uma sala. “Há pequenas novas salas destinadas à apresentação de montagens independentes, o que é interessante, já que conseguir que uma sala aceite a sua produção pode ser uma tarefa complicada. Para isso, é necessário ter amigos e contatos. Algumas salas só aceitam determinado tipo de espetáculo”, conta Golpe, que, além do trabalho com a peça “Las Demás”, se prepara para participar, em agosto, do festival “El porvenir”, com a peça “La Guarra Enloquecida”.

produção pornô. “As mulheres sempre são os temas das minhas histórias. Elas têm uma loucura que me fascina. É algo que não encontramos nos homens”, comenta o diretor. Palcos paulistas e argentinos

Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde é necessário pagar o aluguel das salas, na capital argentina, 70% do lucro da bilheteria do espetáculo é destinado ao diretor da peça. O restante fica com dono do espaço. “Esse sistema permite que uma montagem fique mais tempo em cartaz”, opina Inês Armos.


mariana marinho

O dramaturgo Fabio Golpe considera a falta de apoio um impasse para o teatro independente

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mariana marinho

“Eu não me considero um dramaturgo argentino. Nelson Rodrigues é um dramaturgo brasileiro, mas sua obra é universal. O teatro deve ser assim: um espaço onde todos têm a mesma nacionalidade”

Ensaio de cena da peça “Las Demás”, de Fabio Golpe

O dramaturgo Santiago Serrano tem uma relação intensa com o Brasil. Ele diz que há diferenças sim entre a cena teatral portenha e a cena teatral paulista, mas defende que o teatro deve ser um espaço onde todos são iguais e onde não haja distinções como nacionalidade divulgação

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Para o dramaturgo Santiago Serrano, a principal diferença entre a cena teatral portenha e a cena teatral paulista é que em São Paulo predomina o teatro de grupo, enquanto em Buenos Aires os atores e diretores circulam de forma mais independente. “Na Argentina, praticamente não existe o trabalho de grupo, que eu, particularmente, gosto muito. Ele permite que você aprimore o seu trabalho e o trabalho do ator, criando uma estética e uma unidade”, conta Serrano que, além de dramaturgo, é também psicólogo. “São poucos os que conseguem sobreviver apenas com o que ganham com o teatro. É um dinheiro muito incerto”. Durante dez anos Serrano trabalhou com o grupo “Encuentros”, com o qual desenvolveu peças que tinham a questão do encontro como tema principal. “Podem ser encontros bons ou ruins. O teatro, em si, é o encontro de um grupo de atores


com o público que o assiste. Depois desse encontro, quando a peça termina, muda uma pequena coisa dentro de quem estava no palco e de quem estava na plateia”, explica. Santiago Serrano tem uma intensa relação com o Brasil. “Me considero um brasileiro infiltrado na Argentina”, confessa. Tudo começou em 2005, quando o diretor brasiliense Guilherme Reis descobriu seu texto “Dinossauros” na internet e pediu permissão para montá-lo. “Eu e Guilherme conversamos bastante sobre o texto. Gostei muitíssimo da adaptação feita por ele”, conta. Em 2007, a companhia Kaus, sob a direção de Reginaldo Nascimento, encenou a peça Revolta. O dramaturgo escreveu, ainda, a quatro mãos com o ator Eduardo Okamoto, o monólogo Eldorado. “Eu não me considero um dramaturgo argentino. Nelson Rodrigues é um dramaturgo brasileiro, mas sua obra é universal. O teatro deve

ser assim: um espaço onde todos têm a mesma nacionalidade”, diz. Mudança silenciosa

“Quando alguma obra minha está em cartaz no circuito alternativo eu olho para o público e sinto que todos eles poderiam ser meus amigos: se vestem como eu, comem nos mesmos lugares que eu. No circuito comercial, o público é uma incógnita”, comenta Daulte. O dramaturgo entende que o teatro alternativo tende a ser mais erudito e hermético o que restringe, de certa forma, o público que frequenta o circuito. Golpe concorda com Daulte. “Não sei se todos gostam do teatro independente. Às vezes, sinto que fazemos produções para nós mesmos, que frequentamos o universo teatral. Não acho que a cena independente deva ser muito intelectual. Não digo para colocarmos coisas banais, mas deve ser algo que as pessoas entendam”, acrescenta.

Inês Armas acredita que é importante encontrar um equilíbrio. “Não devemos subestimar o público. Você tem que dar a mão para que ele entre. Se for algo muito hermético, fica mais difícil dele entrar. Por isso devemos nos perguntar como fazer para chegar até o outro. Você nunca sabe”, afirma. Por mais que não aja uma fórmula mágica para chegar até o outro, tampouco uma fórmula rumo ao sucesso, é justamente o fato de tantas vozes continuarem em cena, mesmo com todos os desafios, que faz com que os palcos de Buenos Aires digam algo diferente para cada um. “Ir ao teatro é uma experiência muito subjetiva. Um acontecimento teatral não tem a ver com o que a imprensa diz sobre ele. Tem a ver com ser algo privado e subjetivo para um espectador em particular. As mudanças que o teatro pode produzir não são espetaculares. Elas são silenciosas”, diz Javier Daulte. AGOSTO de 2013 | enviado especial

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cultura > mĂşsica isabela yu

Na galeria El Patio Del Liceo, ainda hĂĄ lojas destinadas aos discos de artistas independentes

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Quem, então,

agora

?

eu seria

A frase retirada da música “O velho e o Moco”, da banda brasileira Los Hermanos, ironicamente reflete o momento em que nossos vizinhos argentinos vivem atualmente no cenário musical. A “música argentina”, que engloba todos os gêneros nacionais, diferentemente da música popular brasileira, dá seus primeiros passos lentamente nas últimas décadas para construir público e consagrar-se soberana no país Por isabela yu

N

o silencioso bairro de Saveedra no final da cidade de Buenos Aires, muitos quilômetros longe dos bairros centrais como Palermo e Recoleta, uma pequena casa faz muito barulho nas noites de segunda feira. As luzes são escuras e as paredes repletas de pôsteres de músicos conhecidos, como Peter Gabriel e Mick Jagger. A aura da pequena salinha abarrotada de equipamentos musicais transparece o que acontece ali. Enquanto duas pessoas observam, outras qua-

tro ensaiam canções com a cara da cena indie argentina. A banda em questão se chama Rabiosa, não como a música da cantora colombiana Shakira. Segundo os próprios rapazes, eles possuíam o nome antes. Os jovens músicos gravaram independentemente seu primeiro disco no final de 2012. Manto de Color reúne oito faixas de rock pop de qualidade. O conhecido rock nacional, que se tornou notório a partir da década de 1960-1970, fornece grandes mú-

sicos, como o controverso cantor Charly García, o melhor guitarrista da América Latina segundo a Revista Rolling Stone, Pappo’s Blues, o também aclamado Miguel Abuelo e Luis Alberto Spinetto. O som das bandas novas ainda possui elementos do passado incorporados aos sintetizadores usados no presente. É como se os solos de guitarra de García tivessem encontrado as batidas da bateria da banda nova iorquina, The Strokes, que é também muito popular enAGOSTO de 2013 | enviado especial

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tre o público jovem. Essas lendas influenciaram também o que músicos fazem hoje em dia no blues, no metal, heavy metal e o mais puro rock’n’roll. Para o jornalista e estudante Catriel Remedi, a mudança do rock nacional começou na década de 1980 e se estende até hoje. “Há um encontro da escola velha e a nova, essa que tende ao rock eletrônica, ao uso de samplers nas

composições. E as máquinas modernas de gravação e a tecnologia influenciam na sonoridade atual”. Da nostalgia à modernidade

Os quatro jovens músicos são formados pela EMBA (Escuela de Música de Buenos Aires). “O embasamento teórico e a disponibilidade de diversos instrumentos com certeza contribuiu na maneira de produzir

o som próprio do grupo”, sublinha o baixista colombiano Jorge Pinilla. A facilidade de gravar músicas em casa ou em pequenos estúdios significa gastar pouco e misturar diferentes estilos para criar algo único. Como o caso das bandas argentinas Poseidotica e Dancing Mood, sendo a primeira uma mistura de rock progressivo e instrumental e a segunda mescla reggae e ska.

“Estamos vivendo um processo em que é necessário repensar a maneira como os jovens consomem música”

isabela yu

O som de bandas novas possuem uma mistura de elementos musicais novos e velhos 92

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As grandes gravadoras apoiam apenas artistas que possuem o tipo de música comercial, então músicos considerados como under recorrem à internet como meio de tornar seu trabalho conhecido. A harmonista Sandra Vasquez, teve seu álbum inteiramente financiado por doações de fãs. Para Catriel, “acredito que estamos vivendo um processo, em que é necessário repensar a maneira como os jovens consomem música, eu incluso nisso”. As informações sobre novidades musicais “pairam no ar”, como coloca o jornalista. E a cena independente está se profissionalizando, a informação colocada na internet é ainda “desorganizada”, mas frisa a importância dos canais de difusão: as redes sociais.


isabela yu

Os integrantes da banda Rabiosa exibem seu disco, Manto de Color, gravado independentemente em 2012 Nossos vizinhos possuem poucos portais influentes de música independente no país, como rock. com.ar e eiacople.com. Possuem a teoria de que a música que chega para eles e dita atual, já passou faz tempo nos hemisfério norte, consideram-se um povo nostálgico musicalmente. Em paralelo ao que acontece no Brasil, que possui numerosos portais nacionais destinados às novidades musicais, os argentinos não parecem ter essa urgência e ansiedade em estarem atualizados e conectados ao resto do mundo o tempo inteiro. O jornalista do site rock.com.ar e da revista eletrônica Dale!, Fabrizio Pedrotti, acredita que as mídias sociais, como twitter e facebook estão

“matando”as revistas e websites. No país, além da revista Rolling Stone, nacionais há apenas as revistas Jedbangers especializada em heavy metal, a Roots destinada ao público que gosta de reggae e a Mavirock de rock em geral. Como no caso do próprio Fabrizio, que está no último ano da faculdade de jornalismo, a melhor maneira de suceder é “manter-se independente”. Já entrevistou nomes consagrados do rock como Jethro Tull, The Cult e Deep Purple quando em turnê no país. Declara que “música não deveria ser influenciada pelos interesses de grandes gravadoras, precisa ser honesta e continuar se renovando para ser relevante nos próximos anos. Há a teoria de que as pessoas

tendem a acreditar que bandas do passado são de melhor qualidade do que as de hoje em dia. Mas no futuro lembraremos do som feito atualmente como um espelho das necessidades de nossa sociedade”. A cultura que nasce nas ruas

Muito popular entre os jovens, o gênero musical cumbia, mistura um tipo de tecnobrega com ritmo eletrônico e viu seu som sair da periferia e alcançar um enorme público na capital. Suas letras falam de violência, drogas e sexo, retrato do cenário do lugar onde surgiu. Hoje em dia a falta de casas de show para bandas pequenas e médias tocarem, diz-se que o rock nacional vê sua decadência. O crescimento de AGOSTO de 2013 | enviado especial

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gêneros musicais como a própria cumbia, reggae e música eletrônica também dificulta o surgimento de uma liderança na música independente. As letras ditas callejeras, ganham espaço com as camadas mais pobres por sua proximidade com a realidade em que vivem. A cena underground das bandas de rock mudou bastante depois de 30 de dezembro de 2004. O incêndio na casa noturna República Cromñón, que durante o show da banda Callajeros, causou severas mudanças culturais e políticas na cidade. A tragédia provocou a morte de 194 pes-

soas e cerca de 1400 feridos. O chefe do governo Aníbal Ibarra acabou sendo destituído do cargo e culpado como responsável político pelo massacre por não cumprir seus deveres de funcionário público. A assistência prestada às vítimas e seus familiares também se mostraram insuficientes, tendo o ex-governador declarado que “Eu cuido da minha parte na tragédia, mas por que eu tenho que cuidar de tudo? Sou responsável apenas nos termos de responsabilidade política”. A tragédia marcou a cena cultural, pois se criou uma grande consci-

ência na população sobre segurança em lugares destinados a espetáculos, restringindo o número de casas de show. O jornalista de espetáculos do jornal La Nación, Gabriel Plaza, acredita que “antes mesmo do incêndio, a cena do rock já havia se transfigurado com a crise de 2001, que no âmbito social, político e econômico fez os argentinos se questionarem sobre sua própria identidade nacional”. A crise do rock mainstream, coloca o foco na variedade da cena independente, aonde coisas mais interessantes surgem com os mashups - misturas de estilos e gêneros. isabela yu

É da cena independente de onde coisas mais interessantes surgem, como os mashups, ou seja, misturas de estilos e gêneros 94

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Culturalmente, os argentinos, em geral, estão sempre de prontidão para discutir assuntos relacionados à política e ao governo. E na música não poderia ser diferente. O clima do país é de protestos contra o governo Kirchner, mas a cena underground portenha canta por “love songs”, como o vocalista Facundo Parla comenta em tom de ironia. Recentemente, o vice presidente Amado Boudou se apresentou com sua banda de rock favorita La Mancha de Rolando em um evento financiado pela Secretaria Nacional de Cultura nas Ilhas Malvinas. Muitos artistas conhecidos que antes não se posicionavam, decidem declarar seu apoio ou repúdio à cena política. Quando o prefeito conservador Mauricio Macri obteve a reeleição, o músico Fito Paez em artigo publicado no jornal “Página 12”, ferozmente atacou a população. ”Gente com ideias para poucos, egoísta. Isso é o que a metade da cidade autônoma de Buenos Aires quer para si mesma”. E que sente “nojo”, subentende-se seu apoio à oposição Daniel Filmus, que por sua vez é contra a presidenta Cristina Kirchner. Um povo “fatalista” como retoma Plaza, as letras e melodias do rock são destinadas ao dia a dia, em contrapartida com o retrato denso cotidiano e social presente no tango. Outro ritmo tradicional argentino, o tango vê-se transformando nas últimas décadas com as misturas de tango e música eletrônica, ou tango e ritmos folclóricos. Além do rock nacional se renovando, para o jornalista, em alguns anos existirá apenas a “Música Argentina”, que é a mestiçagem de ritmos, como nos-

isabela yu

Identidade própria

As letras e melodias do rock nacional argentino são destinadas a temas do dia a dia sa MPB. Em que todos os gêneros da música local atravessarão seus próprios limites e assim fundirem-se em um grande ritmo que englobará o rock, ritmos folclóricos, tango, cumbia e música eletrônica. Agora está havendo uma integração e identidade nacional que está se reinventando. Festivais de música independente que mesclam os ritmos estão se tornando comum para o público no país. Densidade sonora

No campo das artes, seja no teatro ou cinema, qualquer tipo de forma de expressão representa o momento em que a sociedade aonde foi criada vive. Como no subte de Buenos Aires, os ladrilhos nas paredes datam da época em que foi criado. Em contrapartida, os vagões dos carros são todos grafitados em cores gritantes e letras enormes. A diferen-

ça do que era considerado arte em 1913, ano em que foi inaugurado e o que é arte agora. Na música não deixa de ser diferente. A Renovação dos sons é gradual e com o tempo vai se modificando. O passado do rock nacional não existe para ser esquecido, mas para ser absorvido e transformado em algo novo e único. Com a cena underground crescendo, em comparação ao declínio das grandes gravadoras, que precisam disputar público com a internet entre outros fatores. Canções destinadas à massa sempre existiram e todos os dias novas bandas surgem na luta para serem notadas pelo público. Ao se escutar a pluralidade de sons transmitidos pela cidade, a música tipicamente argentina tem um viés característico e pelas previsões continuará se expandindo e consolidando cada vez mais. AGOSTO de 2013 | enviado especial

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cultura > música

NO RITMO

TANGUEIRO 1 PARA FRENTE, 2 PARA TRÁS

Argentina, país conhecido mundialmente por seus esportistas e pelo delicioso doce de leite, vê surgir na capital portenha e cidades europeias um novo cenário musical baseado no tango, mais uma de suas antigas tradições Por teresa espallargas

G

alpón de tango, tragos y amigos” é o que anuncia um dos mais de vinte quadros pendurados na parede daquele peculiar e portenho galpão na Rua Sarmiento 4006. À primeira vista um edifício abandonado, mas basta passar os escritos “Tango Folklore” e subir as escadas de madeira para mudar esta impressão. Entre fotos de Che e Carlos Gardel, violões quebrados e até uma tampa de um caixão; idosos, jovens e crianças ocupam a área central do local com o tango, tradicional no país desde as duas últimas décadas do século XIX. Atravessando de um lado ao outro o estabelecimento que leva o nome de La Catedral, tem-se um alto palco, seguido da pista de dança e logo dos mais diferentes tipos e formatos de mesa e cadeiras. Ao

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fundo está o bar, onde simpáticos atendentes servem vinho e comida de ótima qualidade por um bom preço. Nos intervalos das chamadas “classes de tango” o DJ projeta na parede oposta do balcão um videoclipe da banda inglesa Queen, demonstrado, por mais um detalhe, que ali há de tudo. Sugestão do crítico musical e DJ, Gabriel Plaza, o ambiente que recebe casais, amigos e famílias, é mais um dos tantos lugares em Buenos Aires nos quais é possível entrar em contato com a nova cena do tango argentino. A última década

Após a inovação tanguera proposta por Astor Piazzolla na segunda metade do século XX, a Argentina, principalmente Buenos Aires, foi

palco de um novo movimento de modernização do tango. Nos princípios dos anos 90, era ainda muito escasso, com uma pequena quantidade de grupos e uma mínima renovação de músicos, dos quais a maioria, cinquentões. Porém, com o passar do tempo, o novo cenário foi ganhando atenção de uma considerável parcela de portenhos e ainda mais dos europeus, que acompanharam o surgimento de jovens grupos também em seu continente. Seguindo a mesma tendência do tango quando este surgiu, o novo gênero musical nasceu de uma grande mistura de culturas. Muitas vezes inspirados por músicos e compositores como Piazzolla e Osvaldo Pugliese ou em ritmos como o rock obscuro dos anos 80, os novos DJs, produtores e bandas respeitam


flickr/prayitnophotography

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teresa espallargas

O La Catedral é um dos tantos lugares em Buenos Aires em que se pode entrar em contato com a nova cena do tango argentino

a necessidade de sua geração de falar de seu tempo. Os projetos não pretendem ser apenas covers de versões anteriores, mas sim ter suas próprias criações,mesclando o tango tradicional com batidas eletrônicas e outros ritmos, fazendo com que as pessoas se vejam refletidas em suas propostas. Juntamente com os novos grupos como Otros Aires, Gotan Project e Tanghetto, criados no final do século XX e início do XXI, surge também um novo público, que, identificando-se com uma diferente sonoridade, linguagem e atitude, se aproximou de uma das principais heranças culturais da Argentina, 98

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até então em crise. De acordo com Gabriel Plaza, presenciamos uma nova era de ouro do tango, na qual há muitos músicos, principalmente sub-20 e sub-30, que tem seus projetos vinculados a um estilo mais contemporâneo, tanto no sentido da composição quanto no da poética. Para ele, é possível perceber desde um código mais cultural até um cenário mais urbano para o tango, um que não seja tão formal quanto e que retome o vínculo social do gênero, esquecido em certo tempo. Primeiramente apresentado nos intervalos das milongas, espécie de canção e baile comum na bacia rioplatense, a fim de “abrir os ouvi-

dos” dos milongueros tradicionais; o neotango ou tango eletrônico já é encontrado em diferentes regiões. Além da La Catedral, temos os bares Sanata, La Biruta e El Faro, sem contar os diversos boliches, as baladas dos portenhos. Para Gabriel, o jovem estilo que busca tratar sobre a identidade dos argentinos e dos clichês do tango, é independente, underground, assim que se encontram, desconsiderando os oficiais, sete festivais em diferentes lugares e épocas do ano. Ele, que viajou por cidades como Roma, Paris e Hong Kong, sob o nome de DJ Inca, também comenta que há uma relevante diferença do novo tango em seu país e no exterior.


Em relação ao comportamento dos estrangeiros frente ao electrotango e as demais variações, Miguel Di Genova, fundador da banda Otros Aires, e Plaza estão de acordo. Segundo eles, nos outros países não há tanto preconceito. Para os europeus pouco importa se aquilo que ouvem é tango ou não, primordial é desfrutar da música. Já sobre os argentinos, Miguel comenta que, em grande parte, são conservadores, além de nostálgicos, e não aceitam qualquer tipo de modernização no tango, seja eletrônica ou de qualquer outro gênero. Para Gabriel, pelo fato dos locais terem muito mais informações que os europeus a respeito da história deste estilo musical, não estão tão dispostos a ouvir diferentes tipos de tango, como fazem os companheiros do velho continente. Na opinião do crítico musical, parte disso também ocorre em consequência dos músicos e bandas que estão trabalhando lá fora, não concluírem primeiramente seu trabalho na Argentina e região. Como DJ, ele afirma que pretende se desenvolver mais em seu país, propondo novas sonoridades, que possam ser dançadas em lugares populares, “em casas de tango onde há gente tanguera e também nos quais não há, provando essa nova maneira de musicalizar”. Percebe-se, portanto, que se trata de um gênero musical mais consolidado internacionalmente, principalmente pela presença de bandas com grandes trajetórias como é o caso do Narcotango e Gotan Project. Todavia, é algo recente que faz parte de uma nova identidade do tango, a qual atende a necessidade

teresa espallargas

“Um som global com identidade local”

Novos grupos musicais inovam e misturam o tango com outros elementos musicais de demonstrar tanto para os idosos quanto para os jovens que este estilo não é algo que ficou no passado. Na mídia

Como jornalista de um importante diário nacional, Gabriel comenta que desde que começou a escrever sobre música em 1996, pretendia acompanhar o novo cenário que ia surgindo, dando também uma maior notoriedade para sua outra profissão. Ele também confirma que “depois de Cromañon, que foi um acidente muito grave e que matou muitos jovens, fecharam-se muitos lugares, gerando uma crise no circuito independente. Por conta das regulamentações, existem lugares que atuam na semiclandestinidade, trabalhando e se promovendo através das redes sociais, que hoje têm um papel importante. Muitas das bandas não podem divulgar seus

lugares de ação em outros meios por não serem habilitados, mas podem sim divulgar nas redes sociais. Assim, seus seguidores somados aos seguidores de outras bandas permitem que as pessoas se inteirem de onde estão tocando”. Para Miguel, que viveu muitos anos fora da capital argentina, e até para os jovens garotos da banda de rock Rabiosa, é essencial que a publicidade seja feita pela internet, principalmente nas redes sociais. Reconhecem que hoje, o alcance de seu trabalho se dá de uma maneira diferente de antigamente, tendo em vista que por Facebook, MySpace ou Twitter pessoas de qualquer parte do mundo podem conhecê-los. No passado, as divulgações dos shows e apresentações muitas vezes aconteciam nas ruas e revistas musicais, atingindo uma quantidade de pessoas muito menor. AGOSTO de 2013 | enviado especial

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Com a mesma intenção de divulgação das redes sociais, encontramos no país outros meios de difusão, como o programa de rádio Fractura Expuesta e o Zizek, um coletivo de artistas independente criado na capital portenha. Também é fácil o acesso a novos grupos pelo projeto Recalculando, criado pelo Estado, para colaborar com desenvolvimento e profissionalização dos grupos de música emergentes.

da música eletrônica. Assim como Otros Aires e Sambô, encontramos aristas que compõem a nova cena musical tanguera, como DamiánBoggio, famoso Tango DJ e o próprio jornalista Gabriel, que tem no DJ Inca seu alter ego. Também aproximando o rock de um ritmo nacional, como fez o grupo brasileiro com o samba, temos as novas expressões do tango da banda 34 Puñaladas, do Altertango e também

ferentes formas de dança-lo. Porém, basicamente a estrutura é a mesma, pois o tango é o mesmo. Não é que muda ou a dança é outra. É a mesma dança só que se incorporam movimentos de outras danças.Tem gente que agrega coisas de dança contemporânea, ou também movimentos que são um pouco mais rítmicos, depende da música. Mas basicamente o tango é o mesmo”. As chamadas tendas, tradicio-

Na capital Buenos Aires é possível encontrar mixagens do tango com a cumbia, o jazz, e o hip hop, dependendo da banda ou produtor que se escuta Hermanos não, parentes sim

Ainda para muitos, eletrônica e tango são como rock e samba, gêneros musicais completamente incompatíveis e opostos, segundo suas tradições. Porém, não é o que acredita a banda brasileira Sambô ou a argentina Otros Aires, ambas representantes da nova tendência de mescla de gêneros musicais. Em uma roda de amigos, todos músicos profissionais, surgiu a ideia de fazer o que eles chamam de “rock – samba”: músicas de cantores como Janis Joplin acompanhadas do famoso ritmo brasileiro. Não com seus companheiros, tampouco em seu país, Miguel Di Genova, assim como quinteto, resolveu inovar a milenar tradição do tango argentino, misturando-o com as batidas 100

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do quarteto Almagro de Alfredo Tape Rubín, alémdo som da Orquestra Típica Fernandez Fierro. No país, sobretudo na capital Buenos Aires, a parte das misturas com a música eletrônica e o rock, é possível encontrar mixagens do tango com a cumbia, o jazz, e o hip hop, dependendo da banda ou produtor que se escuta. Próximos passos

Além de adicionar guitarras, baterias, batidas eletrônicas e outros instrumentos aos tradicionais sons produzidos pelo bandoneón e pelo violino, o novo tango também acrescenta diferentes elementos à dança sensual que acompanha o antigo gênero musical. Di Genova afirma que “na realidade, o tango novo agrega mais coisas, mais passos, ou seja, di-

nal sequência de quatro ou cinco músicas que se dançam nas milongas,quase sempre foram acompanhadas pelo mesmo padrão “dois pra lá, dois pra cá” tanguero. Porém, atualmente, percebe-se não só a presença de novos passos ou instrumentos, mas a também o nascimento de um movimento cultural heterogêneo. Para o futuro, não é possível afirmar que o novo tango continuará voltando ao passado para se inspirar, ou se ele se distanciará de sua essência. Por ser uma criação demasiado atual e recente, resta-nos apreciar o novo gênero, acompanhado de um bom vinho, afinal, no quesito novidade, a Argentina anda pecando pelo excesso mais que pela falta, Messi que o diga.


s rei na ele sh haí o: T açã str ilu

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