2001: Uma odisseia argentina

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economia

2001:

uma odisseia

Panelaço, piquete, desemprego, déficit público, “corralito”, entre outras, foram palavras que fizeram parte do vocabulário argentino durante a crise. E elas não estão só no dicionário, mas também na memória dos nossos vizinhos... Por deborah rezaghi

O

dia 11 de setembro de 2001 está na memória de muita gente. As pessoas tentam se lembrar o que faziam no exato momento em que dois aviões atingiam as torres gêmeas do World Trade Center. O noticiário foi tomado pelo incidente. O mundo virou seus olhos para Nova York. Todos queriam entender o que estava acontecendo. Por qual motivo aquelas duas torres estavam ruindo? Enquanto muitos olhavam incrédulos para o hemisfério norte, no hemisfério sul também algo ruía. Só que não eram duas torres, e sim, uma economia. Na Argentina, no ano de 2001 também aconteceu

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Enviado Especial | FEVEREIRO de 2014

um abalo. O PIB despencou 11%, a inflação chegou a 41% e o desempregou bateu na casa dos 25%. É obvio que na mídia, entre uma economia que desmorona e duas torres em igual situação, a segunda chama mais atenção. Apesar de muitos se lembrarem de 2001 por ser o ano em que houve o ataque às torres, os argentinos tem uma lembrança amarga desse período por outro motivo. Para eles, esse também é um ano para ser esquecido. Um pouquinho de história

Para entender os motivos que levaram o país à bancarrota em 2001, é bom voltarmos um pouco no tempo.

Gonzalo Martínez / Prensa Intervención Urbana / ARGRA

argentina

A Argentina alcançou a independência em 1816. O fazendeiro e militar Juan Manuel de Rosas foi proclamado governador e capitãogeral da província de Buenos Aires em 1829. Ok, não precisamos voltar tanto no tempo assim apara entender uma crise que aconteceu no século XXI. Mas alguns pontos da história econômica argentina são importantes de se ressaltar. Desde cedo, o país pôde de beneficiar das suas condições naturais. Vastas áreas de solo fértil, clima temperado, fácil acesso ao mar. Com tudo isso a seu favor, a Argentina tornou-se um dos maiores ex-

portadores de carne, trigo, milho e linhaça. E foi uma das nações mais ricas do planeta. Com um dos portos mais movimentados do mundo, o país se posicionou em oitavo lugar entre as nações, em valor das exportações, e nono em comércio total. Pausa nos números para a curiosidade: os argentinos nesse período eram tão ricos que os franceses, para falar de alguém com dinheiro demais, se utilizavam da expressão “rico como um argentino”. Em 1907 foi descoberto petróleo na Patagônia e o primeiro metrô da América Latina começou a funcionar no país em 1913 (50 anos antes do metrô de São Paulo).

De volta para o futuro

Depois de uma breve passadinha pela história do país, vamos ao que interessa: o que levou a Argentina à crise de 2001? Para entender isso, vamos voltar no tempo, mas não há séculos atrás, apenas alguns anos. A Argentina, assim como muitos outros países, entre eles o Brasil, enfrentou o problema da dívida externa na década de 80. Como a década anterior, a de 70, havia sido de muita abundância de capitais, os países se sentiram atraídos a tomar empréstimos, afinal as taxas eram baixas e os créditos abundantes. “Os bancos estavam com muito capital, e podia se dizer que eles até ‘forçavam a

barra’ para que os países pegassem dinheiro emprestado”, explica o economista Adalton Diniz, professor da Faculdade de Economia da PUC e da Cásper Líbero. Mas tudo que é bom dura pouco. E esse clima de abundância econômica foi abalado no final da década de 70 com a segunda crise do Petróleo. Nesse momento, o FED (Banco Central Americano) elevou as taxas de juro, o que tornou a dívida dos países impagáveis. Veio a década de 80, e com ela a crise, falta de recursos, inflação... enfim, a “década perdida”. O que fazer para resolver esse problema? Os países começaram a planejar alguns planos econômicos. fevereiro de 2014 | enviado especial

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Domingos Cavallo

2ª Crise do Petróleo

Flickr/hilmir arnarson

Ficou conhecida pelo corte na venda e distribuição deste item por parte do segundo maior produtor mundial, o Irã, em meio à Revolução Fundamentalista de 1979. As mudanças no país trouxeram uma enorme turbulência no mercado de petróleo, fazendo com que o preço do produto chegasse às alturas.

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No Brasil, com sucesso veio o Plano Real. Na Argentina, veio o Plano Cavallo. “Esse plano dolarizou a economia argentina, pois estipulou a paridade de câmbio entre o peso e o dólar. Foi uma ideia para controlar a inflação. E durante toda a década de 90 deu certo”, explica Diniz. A partir desse plano foi elaborada a Lei da Conversibilidade, em que o governo se comprometia a trocar pesos por dólares. Até aí, tudo bem, mas esse plano tem um problema. Os dólares não são emitidos na Argentina, e sim nos EUA. Dessa forma, para poder honrar o compromisso assumido o governo precisava garantir que haveria dólares nas reservas do país. E como atrair a moeda americana? De três maneiras: investimentos, exportações ou empréstimos. O economista Adalton Diniz explica que nesse período a missão de atrair dólares não foi impossível: “havia muita liquidez no mercado internacional e a situação financeira da Argentina estava estável”. Assim, o plano econômico do

ministro Domingos Cavallo ia se mantendo. Nesse período em que 1 peso valia 1 dólar, houve considerável desenvolvimento econômico, e é dessa época que o turismo argentino torna-se comum no Brasil, com muitos vizinhos vindo passar férias nas nossas belas praias do Sul. Outro detalhe importante é que na Argentina, diferente do Brasil quando houve a paridade do real com o dólar, as pessoas podiam comprar de tudo com a moeda americana (coisa que no Brasil nunca aconteceu), o que fez com que a economia se tornasse bastante dolarizada. Enquanto havia dólares nas reservas argentinas para se fazer a troca entre o dólar e o peso, todos estavam felizes. Mas os percalços não demoraram em começar a surgir. Problemas à vista

No fim da década de 90, a escassez de dólar começa. Com a balança comercial argentina se tornando deficitária e com investidores cada vez mais desconfiados, fica difícil para o governo argentino continuar

Charly Díaz Azcue / EFE

arquivo lanacion.com/hernán zenteno

Economista e político, foi importante personagem da crise de 2001. Foi o responsável pela Lei da Conversibilidade, implantada durante o governo de Carlos Menem, do qual era ministro. Foi nomeado novamente ministro em 2001 pelo presidente Fernando de la Rúa e suas medidas para tentar sanar a crise não foram muito populares, como é o caso do “corralito”.

honrando o compromisso de trocar pesos por dólares. “Em certo ponto em 2001 isso se tornou insustentável. E esse é o segredo da crise”, explica Adalton Diniz. A política econômica desmorona. Tudo fica mais caro e várias empresas quebram - pois muitas delas tinham dívidas em dólar. Por exemplo: se a dívida que ela tinha era de 1 milhão de dólares (que antes era 1 milhão de pesos), passou a ser 3 milhões de pesos. Com as empresas quebradas, aumenta o desemprego. Alejandro Rebossio, correspondente na Argentina do jornal espanhol El País afirma que nesse período tudo aumentava, menos o salário. E isso fez com que muitos argentinos de classe média entrassem para a pobreza. “Muitos cidadãos não tinham dinheiro nem mesmo para comprar utensílios básicos de primeira necessidade”. Ele acredita que a crise traumatizou tanto os argentinos que hoje a maior preocupação não é mais com a inflação. “Hoje a maior preocupação é com o desemprego”. Uma característica da crise ar-

“Em certo ponto em 2001 isso se tornou insustentável. E esse é o segredo da crise” gentina é que ela não escolheu suas vítimas. Todos, simplesmente, TODOS foram atingidos por ela. Classe alta, média, baixa, profissionais liberais: não houve diferença. O governo Argentino fez de tudo para tentar manter a política econômica em funcionamento e tentou segurar a paridade o quanto pôde. Uma tática utilizada foi o corralito – congelamento de depósitos bancários implantado em dezembro de 2001 pelo governo De la Rúa (no Brasil, parecido com o que foi feito por Collor em 1990) – mantendo assim o dinheiro das pessoas nos bancos. Os argentinos se revoltaram, e saí-

ram quebrando os bancos. Nesse momento, houve a queda do presidente De la Rúa. Isso fez com que as pessoas perdessem a confiança nos bancos. Rebossio explica que os argentinos fazem poucos depósitos. Eles preferem guardar seu dinheirinho em um lugar mais seguro: nos colchões. Mas não são só os colchões que servem de esconderijo não. Também são utilizadas caixas de segurança, latas de conservas, interior de livros, etc. Os que têm conta nos bancos fazem isso fora do país. “Muitos argentinos preferem ter conta no exterior, como no Uruguai. E os que têm mais dinheiro os colocam em paraísos fiscais”. Estimativas apontam que os cidadãos argentinos são os que possuem um dos índices mais baixos de contas bancárias no Ocidente. Os panelaços – barulhenta modalidade de protesto que consiste em bater de forma rítmica utensílios metálicos de cozinha, principalmente as panelas – tornam-se comuns. Assim, como os piquetes – bloqueio de avenidas, ruas e estradas por um grupo de pessoas. Os “piqueteiros”, como são chamados, queriam uma mudança que priorizasse as necessidades da população. Afinal, o nível econômico despenca, assim como a qualidade fevereiro de 2014 | enviado especial

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flickr/lucio marquez

O presidente Kirchner apostou na soja para acelerar a recuperação econômica do país

“A crise se resolve por si só. Quem paga o pato é quem está no poder” de vida. Com a falta de moeda em circulação, mais da metade das províncias começam a emitir seu próprio dinheiro. O país teve 14 moedas paralelas ou “pseudomoedas”. Adalton Diniz conta que em 2001 a crise chegou a um ponto tão grave, que houve um episódio trágico com o ministro Cavallo. “Ele foi para os EUA às escondidas pedir empréstimo para o FMI, pois as reservas argentinas estavam esgotadas. E a situação na Argentina era tão ruim, que ele nem sequer foi recebido. Ele foi escondido e disse que ia fazer um tratamento dentário. Foi um grande vexame”. O FMI avaliava que o modelo monetário da Argentina, naquele momento, era insustentável. 6

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Como sair da crise?

Quando a gente chega lá embaixo, a situação não tem mais como piorar né? Então, o jeito era subir. “A crise se resolve por si só. Quem paga o pato é quem está no poder no momento”, diz Diniz. Com o peso desvalorizado as exportações são estimuladas, e com isso se resolveu o problema do déficit da balança comercial (afinal, os produtos argentinos ficaram mais baratos no exterior). No pior momento da crise, há a ascensão de alguns grupos políticos no país. Neste momento, o kirchnerismo entra em cena. Néstor Kirchner assumiu a presidência em 2003, e conseguiu assimilar demandas sociais em suas políticas de governo. O presidente aproveitou a conjun-

tura internacional de preços altos de commodities – como a soja – e acelerou a recuperação econômica do país. O capital estrangeiro interessou-se na compra das empresas argentinas (que estavam bem baratas). E sem o peso da dívida, o governo conseguiu recompor seu caixa. A dívida é outro capítulo dessa história. “Até hoje muitos credores estão processando o governo argentino”, aponta Diniz. Em maio de 2005, Kirchner abriu a reestruturação dos títulos da dívida que estavam em estado de calote desde 2001. Com isso, ela foi reestruturada e só terminará de ser paga em 2047. “A Argentina não consegue empréstimos do exterior nem nada do FMI até que sua situação com os credores seja normalizada. Além disso, ela ainda não é bem vista no mercado mundial”, afirma o economista. Logo depois da crise, a economia voltou a crescer. Nos primeiros oito anos do governo de Néstor e Cristina Kirchner, a média de crescimento anual era de 8%. “Mas para isso acontecer, a economia tinha encolhido quase 30%”, ressalta o professor de economia. Além disso, alguns problemas como a escalada inflacionária, a persistência da pobreza e dependência de subsídios estatais por parte de diversos setores ainda atrapalharam a retomada plena da economia. Apesar de tudo, a Argentina voltou a crescer nos últimos anos e os investimentos estrangeiros também voltaram. Alejandro Rebossio diz que de 2002 em diante o Brasil passou a ser o 2º país que mais investe na Argentina (perdendo apenas para os EUA). “Muitas pessoas não olham para o que passou, mas sim para as oportunidades que podem vir”, diz.


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