Coleção Estudos Isabel Lousada Vania Pinheiro Chaves (Organização)
Isabel Lousada Vania Pinheiro Chaves (organização)
As Mulheres e a Imprensa Periódica vol. 2
CLEPUL Lisboa 2014
F ICHA T ÉCNICA Título: As Mulheres e a Imprensa Periódica, vol. 2 Organização: Isabel Lousada e Vania Pinheiro Chaves Capa, Composição & Paginação: Helena Carvalho e Luís da Cunha Pinheiro Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Lisboa, novembro de 2014 ISBN – 978-989-8577-21-4 Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto Estratégico “PEst-OE/ELT/UI0077/2014”
Índice Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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I
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Conferências de Abertura
Vozes de mulheres para além do Atlântico: a presença feminina no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, Constância Lima Duarte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Acerca dos homens: discursos femininos na imprensa periódica feminina portuguesa de Oitocentos, Ana Maria Costa Lopes . . .
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II
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Senhoras do Almanaque (BR)
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Anna Ribeiro de Goes Bittencourt: uma estrategista do mercado editorial, Maria Inês de Moraes Marreco . . . . . . . . . . . . . Maria Amália Vaz de Carvalho e a poesia decadentista-simbolista, Alvaro Santos Simões Junior . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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III
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Senhoras do Almanaque (PT)
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Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932), Carla Francisco e Isabel Lousada . . . . . . . . . . . . . 79 Uma voz precursora do feminismo na imprensa: Alice Moderno, Adriana Mello Guimarães . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105 Guiomar Torrezão e o Almanach de lembranças luso-brazileiro: a presença de uma voz insubmissa, Bernardette Capelo-Pereira . 117 3
A voz de Amélia Janny no Almanaque de lembranças, Maria José Meira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
IV
A presença feminina na imprensa brasileira
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Luciana de Abreu e a luta pelos direitos da mulher, Beatriz Weigert . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 Eglê Malheiros e a revista SUL: poesia e prosa de uma mulher de vanguarda, Maristela da Rosa e Norberto Dallabrida . . . . . 165
V A presença feminina na imprensa dos países lusófonos 187 “Suaves modestos sons” – mulher e poesia na imprensa madeirense da segunda metade do séc. XIX, Luísa Marinho Antunes . 189 Lília da Fonseca: a mulher e a época, Ana Paula Bernardo . . . 209 A presença da Humilde Camponeza nos Almanach de lembranças luso-brasileiro e Almanach luso-africano, Maria Teresa Sousa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
VI
A presença feminina na imprensa portuguesa 249
Semear para colher: a contribuição de Ana de Castro Osório em A semeadora (1915-1918), Célia Carmen Cordeiro . . . . . . . Páginas para artistas: modos de permanecer na imprensa periódica portuguesa no início do século XX, Sandra Leandro . . . . Representações das mulheres na imprensa local – O ilhavense na década de 1950, Sara Vidal Maia, Maria Manuel Baptista e Moisés de Lemos Martins . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Crónica feminina (1752-1904), Ernesto Rodrigues . . . . . . . .
VII
Imprensa e literatura. Produção feminina bra-
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291 315
sileira
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A atuação de Cecília Meireles na imprensa brasileira, Ana Maria Domingues de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 331 Mais uma otimista quanto ao futuro do pessimismo: esperança e desespero nas crónicas de Hilda Hilst, Alva Martínez Teixeiro . 347 Entre a imprensa periódica e o texto literário: desafios da escritora contemporânea, Iara Barroca . . . . . . . . . . . . . . . . 363
VIII Imprensa e literatura. Produção feminina portuguesa 375 Imagens da nação. Diários de Emília Bravo, de Maria Judite de Carvalho, Filipa Barata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Considerações sobre literatura e sobre o feminino nas Páginas soltas da Seara nova de Irene Lisboa, Rui Sousa . . . . . . . . . O incoercível arcano matricista: a independência feminina pela pena de Natália Correia, Sofia Santos . . . . . . . . . . . . . . . A voz da cronista Inês Pedrosa: desafios e compromissos, Angela M. R. Laguardia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O folhetim na era digital: A mulher que venceu Don Juan, Teresa Martins Marques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
377 387 399 415 425
In memoriam Filipa Barata (1981-2014)
O Tempo
Veloz, O tempo tece o linho Para o último lenço. Breve seja Também O último adeus.
(Manuel Barata)
INTRODUÇÃO É preciso que as mulheres criem e preservem um estatuto intelectual. Além de um património, de uma autoria e de uma autoridade, também um estatuto intelectual. São reivindicações feministas que não caducaram nem caducam com os anos. Ler é preciso. Maria Antónia Fiadeiro, Mulheres Século XX, 2001, p. 23 O sucesso faz-se nos jornais, mas a glória faz-se no silêncio. António Patrício apud Juvenilia: versos inéditos de Florbela Espanca, 1946, p. [5]
Pela segunda vez no nosso país, o CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias), através do Grupo de Investigação 6 – dedicado muito em particular ao estreitamento de relações Brasil-Portugal e à Cultura, Literatura e Memória dos dois países – promoveu um colóquio subordinado ao tema: “As mulheres e a imprensa periódica” (II Encontro Luso-Afro-Brasileiro), que teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), durante o mês de Julho de 2013.
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Isabel Lousada e Vania Pinheiro Chaves
Continuando o trabalho fundador empreendido no ano 2011 e cujos resultados se traduziram na edição do volume I de As Mulheres e a imprensa periódica1 , fez-se ação a proposta, para manter com caráter sistemático um ciclo dedicado à apresentação, debate e publicação de trabalhos resultantes de pesquisas em torno dos tópicos inerentes ao periodismo no feminino, sob escrutínio de uma tríplice e ampla leitura geográfica, compreendendo os países que a expressão Luso-Afro-Brasileiro engloba. Reuniram-se, em Lisboa, cerca de dois quartéis de especialistas na temática cuja participação se abriu aos mais diversos títulos, comunicando, moderando, assistindo e debatendo. Cumpriu-se, assim, uma vez mais, o propósito inicial para que se fomentasse a partilha de ideias e se gizassem novos planos alicerçados na construção de um caminho percorrido em conjunto, o que sempre assegura perenidade aos laços encetados prenunciando esperança no devir. Foi manifesta a premência para agendar desta feita em 2014, o III Encontro Luso-Afro-Brasileiro, a ter lugar em Porto Alegre, no Brasil. Ficou, por esta forma, assegurada a oportunidade sentida como desejável para explorar novos percursos e/ou consolidar estudos já iniciados, visando trazer luz sobre a matéria em epígrafe. Paulatinamente vão sendo desenhadas trajetórias de interdisciplinaridade, bem como a criação de novas parcerias. A aliança estabelecida entre o CLEPUL e o GP Letras de Minas prova a sua vitalidade. No final do Encontro as/os participantes viram concretizado o objetivo enunciado na chamada para trabalhos, tendo sido partícipes de um conjunto de reflexões somente possíveis numa atmosfera de sã convivialidade e partilha genuína de saberes. Resulta, pois, claro ter sido atingido o objetivo previsto, não só por exceder o somatório das parcelas de conhecimento produzido (também expresso pelo número das comunicações apresentadas), num sentido gradual e crescente, mas também por um manifesto enriquecimento sentido pela(o)s suas/seus participantes. É de realçar o significativo número de interessada(o)s que se 1
Cf. http://pt.calameo.com/read/0018279771ef116cc9683.
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Introdução
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nos juntaram para acompanhar os trabalhos durante dois dias, apesar de não apresentarem comunicações (quiçá transgredindo um alinhamento mais canónico do formato de congresso propriamente dito e apontando para novas possibilidades de intervenção, desta feita de caráter mais espontâneo). Desse mesmo facto demos conta, afirmando a alegria por parte da Comissão Organizadora, na sessão de encerramento realizada como então notámos, com “casa cheia”. Na mesa assinalando o fecho do Encontro foi marcante o desiderato em integrar gerações e linhas de investigação diferenciadas, pelo diálogo proporcionado, como expressam as intervenções dos jovens investigadores, membros do CLEPUL, ombreando com autores consagrados, entre os quais, Teresa Martins Marques, membro da direcção da Associação Portuguesa de Escritores e Ernesto Rodrigues, este último celebrando, em 2014, o quadragésimo aniversário de vida literária.
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Isabel Lousada e Vania Pinheiro Chaves
Foi muito gratificante contar com um elevado número de intervenções cobrindo um leque variado de temas entrecruzando saberes e abordagens. Das estratégias do mercado editorial, passando pela escrita de autoria feminina, diários, contos, crónicas, biografias, correspondência, foram alguns dos enunciados preenchendo uma grelha programática que não esqueceu os discursos masculinos numa óptica comparativa. Autoras portuguesas como Maria Amália Vaz de Carvalho, Guiomar Torresão, Amélia Janny ou Inês Pedrosa, não foram esquecidas. Assim como as autoras brasileiras Eglê Malheiros, Palmyra Wanderley, Hilda Hilst, Cecília Meireles ou Nélida Pinón, foram lembradas2 . Não só os géneros, as filiações, as épocas, espelharam a riqueza e a diversidade pela pluralidade de intervenções havidas, mas também as abordagens com diferente recorte, conferiram singularidade ao II Encontro. Assegurados os diálogos atlânticos permitidos pela interlocução com pares provenientes de instituições brasileiras, saudamos muito em especial Álvaro Santos Simões Júnior, Ana Maria Domingues, Ana Maria Lisboa de Mello e Constância Lima Duarte, passando doravante a conceder-lhes perenidade pela letra de imprensa. A preparação deste volume deve muito a dois investigadores do CLEPUL – Helena Carvalho e Luís Pinheiro – alfa e ómega do caminho que o tornou possível. Por último, ao dedicarmos à Filipa o volume agora organizado, esboçamos um gesto cujo simbolismo pretendemos luminoso, como também o foi poder tê-la tido, então, entre nós; a ela, que se vem agora mantendo com uma outra presença, indelével, inscrita nos horizontes da memória, realmente presente, até hoje, até sempre. Lisboa, 11 de outubro de 2014
Isabel Lousada Vania Chaves 2
Programa acessível em: http://pt.calameo.com/read/0018279777c80719a2f13.
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Parte I CONFERÊNCIAS DE ABERTURA
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Vozes de mulheres para além do Atlântico: a presença feminina no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro Constância Lima Duarte1 Foi por essa ocasião que lhe acudiu a ideia do almanaque. Não se usavam almanaques. Vivia-se sem eles; negociava-se, adoecia-se, morria-se, sem se consultar tais livros. Conhecia-se a marcha do sol e da lua; contavam-se os meses e os anos; era, ao cabo, a mesma coisa; mas não ficava escrito, não se numeravam anos e semanas, não se nomeavam dias nem meses, nada; tudo ia correndo, como passarada que não deixa vestígios no ar. Machado de Assis, “Como se inventaram os almanaques”, 1890.
Dentre as centenas de crônicas que Machado de Assis publicou ao longo de sua vida, uma, datada de 1890, trata do surgimento dos almanaques, que eram muitos naquela época e usufruíam de enorme prestígio entre os leitores. Para tanto, ele cria uma historieta de amor, em 1
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Constância Lima Duarte
tom ora jocoso ora lírico, entre o Tempo, um velho que já nasce barbado, e a Esperança, uma linda jovem que resiste durante anos a seu assédio. Para conquistá-la, o velho decide inventar o almanaque, que passa a distribuir fartamente durante o mês de dezembro com o registro das principais efemérides e informações sobre a agricultura, fases da lua, as marés, entre outras. Ao final, após muitos almanaques, ela se encanta com o gênero e cede aos apelos do velho apaixonado, passando a fazer com ele os libretos que a conquistaram. E é ela que vai introduzir as páginas de literatura e anedotas para desanuviar os dias. . . Machado de Assis, brincando com as chuvas de dezembro e a enxurrada de almanaques que se despejavam sobre as pessoas, conclui sua crônica/conto com as seguintes palavras: Assim as semanas, assim os meses, assim os anos. E choviam almanaques, muitos deles entremeados e adornados de figuras, de versos, de contos, de anedotas, de mil coisas recreativas. E choviam. E chovem. E hão de chover almanaques. O Tempo os imprime, Esperança os brocha; é toda a oficina da vida2 .
Com a conhecida competência, o escritor elabora um conceito para o gênero, que ao mesmo tempo informa e entretém. Como instrumento de divulgação de conhecimentos, atende às necessidades utilitárias do cotidiano, enquanto alimenta o espírito e o ócio através da poesia, charadas e anedotas. Se, no momento em que circula, o almanaque tem a História inserida em suas páginas, ao se tornar passado se converte ele mesmo em documento da história. E como tal, deve ser tratado. Essa introdução é para falar do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, que hoje folheamos com renovado interesse, e constatamos ser testemunho de um tempo já passado nas páginas esmaecidas. Por isso a surpresa ao depararmos com um número tão substancioso 2 Crônica “Como se inventaram os almanaques”’, de 1890 (versão eletrónica consultada a 28 de maio de 2014 em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/Detalhe ObraForm.do?select\_action=\&co\_obra=17380).
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Vozes de mulheres para além do Atlântico: a presença feminina no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro
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de brasileiras que aí publicaram textos, algumas, escritoras já conceituadas entre nós, outras, ilustres desconhecidas com pouquíssima chance de serem recuperadas, até porque assinaram seus trabalhos com pseudônimos, abreviaturas, ou simplesmente os deixaram anônimos3 . A pesquisa está só começando, é verdade. E já foram relacionados quase 700 nomes de brasileiras das diferentes regiões do país presentes no Almanaque. Muitas colaboraram enviando poemas e textos em prosa; mas a enorme maioria – mais de quatrocentas – limitou-se a enviar charadas e outras modalidades de entretenimento. Aos poucos nos adentramos nesse mundo novo e tentamos desvendar seus mistérios. Antes de iniciar a pesquisa ignorávamos quase tudo, inclusive o importante papel desempenhado pelo Almanaque ao permitir e incentivar a participação feminina em suas páginas. E isso é fato, pois, desde que surgiu, em meados do século XIX, praticamente em todos os seus números encontram-se produções assinadas por brasileiras. E a surpresa se justifica quando lembramos as rígidas restrições que nossas mulheres enfrentavam nessa época, inclusive de frequentarem escolas e, mais ainda, de dar publicidade às suas ideias. O Almanaque nos revela, portanto, que, apesar da condição subalterna em que viviam, do enorme preconceito que as oprimiam, mulheres de diferentes pontos do território nacional ousaram – repito: apesar de tudo e todos – escrever e lançar suas produções para além do Atlântico! Aliás, não custa lembrar que, bem antes dos livros, foram os periódicos os primeiros e principais veículos da produção letrada feminina. Desde que surgiram, tanto aqui em Portugal, como lá, no Brasil, eles se tornaram importantes elementos de aglutinação ao permitir que as mulheres tornassem públicas suas produções intelectuais, e expressassem as nascentes vocações literárias. Foram, inclusive, testemunhas da
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Impossível não lembrar a conclusão de Virginia Woolf, em Um teto todo seu, ao se deparar com tantas obras anônimas na literatura inglesa. Para ela, a grande maioria dessas obras só podia ser de mulheres, pois somente elas tinham reais motivos para não assinarem seus trabalhos, naqueles tempos.
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Constância Lima Duarte
resistência feminina às tentativas de apagamento e discriminação, ao divulgar as vozes que rompiam a inércia dominante. São muitos os dados interessantes que temos observado na presente pesquisa: por exemplo, que a participação das brasileiras no Almanaque foi aumentando gradativamente a cada nova década, até alcançar o ápice, em 1900, com o expressivo número de 150 colaboradoras. Mas, curiosamente, a partir daí ocorre uma inversão, e já na década seguinte, de 1910, o número cai para 104; em 1920, foram 60 nomes, até chegar a apenas 17 nos dois últimos anos de publicação do Almanaque, isto é, de 1930 a 1932. Talvez uma explicação para isso seja o fato de terem surgido muitos jornais e revistas no Brasil, nas primeiras décadas do século XX, o que teria, por si, mobilizado as brasileiras a publicarem no próprio país. Mas não é suficiente, pois com certeza devia dar muito status a divulgação de trabalhos em um livro de além-mar. . . E há certos casos que nos deixam intrigadas. Por que algumas autoras e jornalistas já com carreira estabelecida no periodismo e livros individuais publicados se limitaram a participar do Almanaque enviando apenas charadas? Trago aqui um nome para exemplificar: Josephina Álvares de Azevedo, a editora do jornal A família, que circulou de 1888 a 1898, em São Paulo e Rio de Janeiro, que polemizou com jornalistas e políticos contemporâneos devido à ênfase com que denunciava as condições subalternas de vida das mulheres, e pleiteava o direito feminino ao ensino superior, ao trabalho remunerado e ao voto. Ela chegou a viajar por diversos Estados brasileiros fazendo conferências inflamadas para a divulgação do sufrágio feminino, ainda na década de 1870, vejam só. E só se encontram no Almanaque algumas charadas e cartas enigmáticas assinadas por ela. . . Mas muitas colaboraram também com textos literários. Só do Rio de Janeiro, 120 mulheres enviaram trabalhos para o Almanaque. E lembro, entre elas, as irmãs Adelina Lopes Vieira (1850-?) e Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), ambas conceituadas escritoras, poetas e cronistas, cujos trabalhos atravessaram o oceano inúmeras vezes para serem divulgados nas páginas do Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro
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Vozes de mulheres para além do Atlântico: a presença feminina no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro
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e do Almanaque das Senhoras. Também Adélia Fonseca (1827-1920), colaboradora assídua do Almanaque e de jornais do Rio de Janeiro, da Bahia e do Espírito Santo, entre muitas outras. Outro motivo de surpresa é a presença significativa de nomes femininos das regiões Norte e Nordeste nas páginas do Almanaque. No século XIX, é sabido, essas regiões desempenharam importante papel na economia e no intercâmbio cultural com a Europa, por sua localização geográfica e a presença de muitos viajantes estrangeiros. Vejam os números: no universo de quase 700 nomes, 327 eram de nordestinas. Só da Bahia foram quase 150 autoras, entre elas, Ana Ribeiro de Góes Bittencourt (1843-1930), romancista, contista, cronista e figura notória no meio social e cultural baiano, por sua participação ativa em torneios literários. No Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro ela colaborou com textos em prosa, poemas, charadas e logogrifos, entre os anos de 1880 e 1887. Também Inês Sabino, autora de diversos romances e importantes ensaios sobre a mulher brasileira, teve significativa participação no Almanaque, publicando textos no largo período de 1892 a 1911. E ainda Amélia Rodrigues (1861-1926), educadora, poeta, romancista, teatróloga, mas principalmente jornalista, responsável pela criação da revista A paladina, que circulou em Salvador de 1910 a 1917, com enorme sucesso entre as leitoras. De Pernambuco cerca de 90 mulheres enviaram colaborações para o Almanaque, como Maria Emygdia e Ana Alexandrina Cavalcanti d’Albuquerque, autoras de poemas e charadas. Do Ceará, Ana Nogueira Baptista (1870-1967), de importante família abolicionista, poeta, educadora e jornalista, e fundadora da revista O lyrio, de 1903, que divulgava a produção feminina e defendia a educação das mulheres. No Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro ela publicou diversos poemas na década de 1890. Alba Valdez (1874-1962) foi outra jornalista e poeta que deixou seu nome registrado no Almanaque, entre outros periódicos. Do Maranhão encontramos o nome de Maria Firmina dos Reis (1825-1917), autora de um dos primeiros romances escritos no Brasil por uma mulher, cujo título é Úrsula, de 1859, também conside-
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Constância Lima Duarte
rado o primeiro romance abolicionista surgido no país. E outras, muitas outras de todas as regiões do país, estão presentes no Almanaque de Lembranças. Enfim, não é o caso aqui de enumerar todas as brasileiras cujos nomes se encontram nesse periódico, pois são muitas e merecedores de aí estar. Mas se aponto alguns nomes é para justificar ainda mais a importância do resgate que o projeto “As Senhoras do Almanaque” se propõe realizar. Após identificar as mulheres – portuguesas, brasileiras e as nascidas em África – que publicaram no periódico de 1850 a 1932, pretende-se estabelecer um índice o mais completo possível de seus nomes, a partir da elaboração de uma ficha bibliográfica com local de nascimento, formação e produção literária, entre outros dados, visando sua posterior divulgação on line, juntamente com seus escritos. Também faz parte da proposta a organização de antologias das escritoras mais importantes cujos textos, em prosa ou verso, ainda se encontram dispersos na publicação, ou em outros periódicos e obras de difícil acesso. E ainda incentivar a participação de pós-graduandos e docentes interessados no estudo da produção literária feminina, em particular no das mulheres que colaboraram no Almanaque de Lembranças. Também a realização periódica de eventos, como esse II Encontro, “As Mulheres e a Imprensa Periódica”, que permita a divulgação dos resultados mesmo preliminares da investigação, e o debate sobre a produção das mulheres na imprensa luso-brasileira, da segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX. A parceria entre a universidade portuguesa e a brasileira é tão importante quanto necessária para que possamos dar conta do amplo campo de investigação e análise, que implica a recolha de documentos que não se encontram em apenas um dos países. Os produtos da pesquisa – quero crer – permitirão o mapeamento dessa importante documentação, assim como a organização de obras de referência, e a divulgação de artigos e ensaios articulando literatura, cultura e vida social das mulheres brasileiras e portuguesas. Um material assim constituído de fontes primárias raras, ou de difícil acesso,
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deverá ser bem acolhido nos meios universitários de ambos os países, em particular entre os estudiosos das ciências humanas, por preencher lacunas importantes no que diz respeito ao estudo e ao conhecimento do percurso da mulher na busca de seus direitos, na construção de uma identidade e no encontro de uma dicção literária própria.
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Referências bibliográficas
Cadernos AEL: Literatura e imprensa no século XIX, vol. 9, n.o 16/17, Campinas, UNICAMP, AEL, IFCH, 2002. BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti, Mulheres de ontem? Rio de Janeiro, século XIX, São Paulo, T. A. Queiroz, 1988. BUITONI, Dulcília S., Imprensa feminina, São Paulo, Ática, 1986. DUARTE, Constância Lima, “Literatura, imprensa e emancipação da mulher”, in Petar Petrov et alii (ed.), Avanços em literatura e cultura brasileiras – séculos XV a XIX, Santiago de Compostela, Faro, Associação Internacional de Lusitanistas, Através Editora, 2012, pp. 223-231. HAHNER, June E., A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937, São Paulo, Brasiliense, 1981.
Acerca dos homens: discursos femininos na imprensa periódica feminina portuguesa de Oitocentos Ana Maria Costa Lopes1 Discursos femininos acerca dos homens sempre existiram: nas conversas de comadres, nas narrativas tradicionais, nas críticas dos salões. . . Mas, durante muitos séculos da nossa história literária, poucos passaram a letra redonda; e só em Oitocentos, é que o pensamento feminino assumiu alguma visibilidade e importância públicas. Várias são as circunstâncias que propiciaram esta eclosão. A que mais nos interessa neste lugar é o início e a expansão da imprensa periódica feminina, a qual vai constituir o nosso objeto de reflexão. Para melhor entendermos o quadro genérico em que a emergência da expressão do pensamento feminino na nossa sociedade se verificou, seja-nos permitido tecer algumas breves considerações sobre a condição social e intelectual das mulheres durante os séculos precedentes. Durante eles, os homens tiveram o monopólio quase absoluto da palavra, da ação e do poder; poder este que se tinha instalado “naturalmente” nas instituições públicas e mesmo na vida privada. Daí as condenações e os obstáculos múltiplos feitos a todas as tentativas 1
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Ana Maria Costa Lopes
de “emancipação feminina” como diriam as intelectuais oitocentistas, num rasgo de clarividência sobre os seus direitos. Mas esta consciencialização só se verificou quando ocorreram algumas mudanças significativas nos papéis sociais das mulheres, designadamente no que se refere às tarefas de ensino, e às lentas transformações da mentalidade e da cultura dominantes, para as quais, aliás, muito essas intelectuais contribuíram com os seus escritos. O que parece ter sido essencial foi o acesso, embora tímido, no início, das mulheres à instrução, ao trabalho profissional e à consequente independência económica. Tais foram as condições necessárias para que pudessem começar a reivindicar direitos que, infelizmente, só nos finais do século transato foram aceites, e mesmo então não integralmente implementados. De facto, na época de Oitocentos, as mulheres raramente podiam afirmar todas as suas capacidades e potencialidades. O que nos vai ocupar neste breve trabalho são os posicionamentos femininos sobre as questões referentes à sua assunção do processo de reivindicação identitária, social e cultural, face ao mundo masculino. E tentaremos mostrar a determinação, o empenho e a coragem de algumas intelectuais deste período em contrariar as forças de bloqueio que o sistema impunha. Mas é a aceitação social da escrita e do pensamento femininos e a sua divulgação na imprensa periódica desse tempo que constitui o móbil de tudo. Por isso poremos em evidência o esforço que algumas intelectuais dessa época, para nós já muito remota mas seminal, puseram na desmontagem, contradição e transgressão da ordem vigente. Os textos a que nos reportaremos foram escritos por mulheres da classe média ou alta e pertencem a uma vasta, variada e muito rica colecção que, no essencial, contrariam as imagens mais comuns acerca do sexo feminino que, a nível oral ou escrito, dominavam a intelectualidade da época. Desses múltiplos textos selecionámos alguns dos que mais discordavam da justificação que era dada para a desigualdade existente, principalmente a nível intelectual, chamando a atenção para que algumas das argumentações e temáticas desenvolvidas pode-
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Acerca dos homens: discursos femininos na imprensa periódica feminina portuguesa de Oitocentos
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rão parecer-nos hoje banais e sem interesse. Não podemos, no entanto, esquecer que tais posicionamentos públicos são fruto de grande arrojo, por contrariarem a mentalidade dominante de então, determinada pelos interesses masculinos. Falar de igualdade era estranho ou mesmo anormal. De facto a caminhada para a igualdade, então encetada, foi feita sob a bandeira da transgressão. Em 1822, no início da imprensa periódica feminina, temos uma colaboração anónima, como era habitual então, na Gazeta das damas2 . A autora toma posições que contrariam a moral, a mentalidade, a cultura e a sociedade da época, pronunciando-se contra os preconceitos que impediam as mulheres de pensar e de se dirigir ao outro sexo em questões de natureza intelectual ou política. Trata, pois, de matérias proibidas e incita as suas contemporâneas a ações opostas às dos conservadores ou moralistas, como lhes chama. Dirigindo-se-lhes explicitamente, condena as suas atitudes, designadamente a sua “extravagância ou misantropia” quando sustentam “ser a ignorância conforme a lei da natureza – ser uma virtude e perfeição”3 . E contraria, ao longo do seu texto, lógica e racionalmente, os argumentos apresentados por estes moralistas contra a necessidade de igual acesso ao conhecimento por parte das mulheres, o que, segundo ela, nem é consistente nem válido. E se para eles este conhecimento igualitário resultaria em abusos e desvarios por parte delas, ela põe seriamente em dúvida o saber desses intelectuais que não olhavam para as desigualdades existentes. Não deixa, por outro lado, de desmistificar e criticar os chamados perigos da instrução, contrapondo-lhes os benefícios de uma racionalidade consciente e generalizada, ao mesmo tempo que aconselha as mulheres a contrariarem tais posições estudando e pensando por si próprias. Apresentando-se como detentora do saber, analisa a realidade da sociedade do seu tempo, e não se coíbe de retirar daí conclusões para as relações de género. De transgressão em transgressão ataca preconceitos, desigualdades. Este confronto e esta luta com o sexo masculino 2 3
Cf. s.a., “s.t.”, Gazeta das damas, n.o 1, novembro de 1822, s.p. Ibidem.
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com vista à igualdade nos seus mais diversos aspetos institui uma sólida contestação dos pressupostos teóricos e das normas vigentes. Por isso pode-se dizer que o seu texto é inovador. Passados alguns anos, em 1836, Catarina de Andrada, colaboradora e redatora da Abeille desde o seu início, e diretora do mesmo periódico em 1842, é um bom exemplo dos equívocos que poderiam surgir no complexo relacionamento público entre homens e mulheres. Ao inesperado encómio masculino ao jornal e ao seu trabalho por parte de um intelectual, ela responde nestes termos: Acabo de ver, no seu estimável jornal de hoje, um artigo que diz respeito ao jornal francês “A Abelha” muito lisonjeiro, por certo; mas a menção que aí faz três vezes do meu nome penaliza-me infinito; porque não pode agradar a uma senhora ver a público ocupar-se dela, e menos na ausência do marido.4
A advertência por si feita é uma clara indicação de como as relações entre os sexos eram delicadas. Mas a sua tomada de posição, fora da cobertura do anonimato, denota igualmente um progresso relativamente à escritora anterior, na assunção do papel de interventora no debate intelectual do seu tempo. Tal intervenção é, porém, feita com grande prudência e infindas cautelas. Defendendo publicamente o seu bom nome, face a discursos lisonjeiros, garante a força do seu empreendimento e a bondade das suas posições. Está assim livre para poder criticar, em diversos artigos da revista que dirige, os conceitos e posições masculinas sobre uma grande variedade de aspetos. Assim, em “De la condition sociale des femmes aux dixneuvième siècle”, delonga-se este artigo sobre o modo como os escritores tratam do tema da condição das mulheres. E afirma que eles o não podem fazer por desconhecerem a sua “verdadeira natureza e das modificações que ela [a mulher] sofre pela dupla influência dos costumes e da educação”. E 4 Catarina de Andrada, “Correspondência extraída de O correo de Lisboa”, O correio das damas, n.o 4, 1841, p. 175.
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continua: “Ousamos dizer que os homens não conhecem nada as mulheres; julgam-nas com estreiteza e do ponto de vista das suas próprias paixões e nunca com verdadeira imparcialidade”5 . E não deixa de escalpelizar as condições de dominação masculina e da sujeição a que as mulheres têm sido sujeitas ao longo dos tempos, exprimindo a necessidade de se fazer uma história diferente das mulheres, em que a objetividade e o conhecimento liderem o discurso. Algum tempo mais tarde, em 1853, e nos anos seguintes, Antónia Pusich, a primeira jornalista feminina portuguesa, assume nas revistas as funções de diretora e colaboradora, sendo delas também proprietária. As suas posições são sempre contestatárias e muitas vezes provocatórias, sobretudo quando trata de questões que habitualmente eram consideradas como fazendo parte do território intelectual e social masculino. De facto, ela reivindica para as mulheres a liderança no debate sobre a condição feminina e sobre a sua vida profissional bem como sobre a instrução, temática cada vez mais recorrente no debate de então e que ela reivindica como devendo ser património de todos, homens e mulheres. E estende a sua reflexão a questões como o ensino e seus métodos, ao analfabetismo, à vida e carreira profissional dos docentes, ao tipo de escolas. Todos estes temas, e muitos outros, são por ela abundantemente tratados. Na verdade, não existem fronteiras para o seu empenhamento e interesses. Exemplo disso é a análise comparativa que faz do nosso ensino com o de outras nações e o que denuncia na gestão de uma instituição de ensino. Partindo da ideia de que, em Portugal, “o progresso da ilustração se move apenas com passos infantis, quando as outras Nações da Europa caminham com passos de gigante”6 , não se inibe de chamar “a atenção do governo, em favor da instrução pública, único meio de civilizar os povos”7 . Por outro lado particulariza uma situação de deso5
S.a., “De la condition sociale des femmes aux dix-neuvième siècle”, L’abeille, n. 11, fevereiro de 1841, pp. 500-501. 6 Antónia Gertrudes Pusich, “Método português, Castilho”, A beneficencia, n.o 24, outubro de 1853, p. 1. 7 Idem, “Instrucção pública”, A beneficencia, n.o 23, outubro de 1853, p. 1. o
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nestidade no Conservatório, denunciando várias irregularidades que se verificavam na sua gestão, afirmando que a sua Direção “tem tornado o Estabelecimento um ónus ao Tesouro [e] inútil à sociedade”, pois “há seis anos [. . . ] se acha descaminhada, e continuaria a sê-lo, se não preveníssemos as autoridades”8 . E refere os responsáveis pela corrupção9 , invectivando-os: Que nos importam as guardas que chamardes, como já fizestes, para vos segurarem as portas? Que nos importam vossas intrigas se temos a força da razão e a precisa coragem para desmascarar todo aquele que se disfarçar para nos ofender [. . . ] Sede mais prudentes, deixai-nos em paz servindo a Deus e à pátria com os nossos escritos morais [. . . ] e não nos provoqueis, nem desperteis uma questão que vos desonrou e desonrará eternamente; e se a nossa prudência vos parece indolência, ou medo, enganai-vos [. . . ]: o medo não o conhecemos em nós, só sim nos néscios, nos traidores e nas crianças.10
Em vários outros textos, dirigidos ao Governo, explicita as suas incapacidades, ineficiência e irresolução face aos problemas existentes; e exige que assumam as suas responsabilidades: Se o Parlamento, se o Governo trabalham pelo bem deste país, eis a ocasião de o mostrar; de nos convencer! [. . . ] Cuidem da instrução pública [. . . ] – empreguem todos os seus esforços; destinem os meios – firmem as Escolas convidem a coadjuva-los todos aqueles que estiverem competentemente habilitados a ensinar o povo.11
8 9 10
Idem, “Conservatório”, A assembléa litteraria, n.o 34, junho de 1850, p. 18. Ibidem. Idem, “O conservatório de Lisboa”, A beneficencia, n.o 8, fevereiro de 1853, p.
3. 11
Idem, “Instrucção pública”, A beneficencia, 2.a série, n.o 15, julho de 1854, p.
1.
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E noutro passo acrescenta: olhai que um governo ilustrado não pode ser apreciado por uma nação inculta; olhai que às Ciências deve preceder a instrução primária; [. . . ] atendei a que temos muitos sábios e poucas escolas; animai os professores, persuadi e ordenai ao povo que frequente as escolas; estabelecei um método único e proveitoso que nos livre da confusão e apatia.12
Queixa-se Pusich igualmente da má política educativa que deixa muitos sem instrução, principalmente porque são deixadas desprotegidas muitas crianças e jovens que pululam na capital. Considera ela que o nosso país é deficiente de políticas de ensino, já que “os que mandam não têm curado da instrução do povo tanto quanto devem, e podem”13 . Por isso aponta a falta de escolas por todo o país, a ignorância do meio rural que anseia por ter um professor. Em favor dos habitantes de Vendas Novas, por exemplo, diz erguer a sua “débil voz, implorando à Autoridade competente conceda um Mestre Régio àquele povo”14 . O seu apelo tem aliás uma solução: caso não haja uma nomeação estatal, o seu filho ocuparia esse lugar. Podemos pois dizer que os muitos textos desta autora mostram um país atrasado, dependente da iniciativa individual ou coletiva para a resolução de tantos problemas que competiriam ao governo. Numa palavra, Pusich diagnostica, analisa, critica e aconselha, dando pistas para corrigir desequilíbrios da má política conduzida por homens nem sempre interessados em solucionar as questões que fariam aumentar o nível de instrução do país. Pusich interessa-se igualmente pelas posições de um dos maiores vultos do século XIX, Castilho, sobre a educação. De facto, as atividades e a obra deste escritor nesta área ocupam muitas páginas das suas 12
Ibidem. Idem, “A Portugal”, A cruzada, n.o 1, novembro de 1858, p. 1. 14 Idem, “Falta de instrução em Portugal”, A assembléa litteraria, n.o 26, fevereiro de 1850, pp. 201-202. 13
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revistas, onde elogia os aspetos positivos, ao mesmo tempo que critica outros, de maneira não cega, derrotista e subjetiva, mas construtiva e lúcida. Diz ela: Quanto ao método [. . . ] só acrescentaremos que, para ser perfeito deve ser modificado em alguns pontos, como já tivemos a franqueza de dizer publicamente ao Sr. Castilho [. . . ] O método é bom; os resultados são excelentes; mas precisa ser corrigido por seu autor; fazê-lo menos poético – mais português.15
A respeito deste posicionamento só poderei dizer que a sua clarividência e coragem são notáveis, pois se tratava de discordar de um dos mais importantes intelectuais daquele século. E não é menos audaz quando se dirige aos intelectuais que criticam Castilho, que, como se sabe, eram muitos: Quiséramos ver uma crítica ao método repentino, porque as boas obras estão sujeitas à crítica; mas o dizer-se mal sem dizer de quê, e porquê, não é razão, é absurdo, e em vez de fazer bem, faz mal a qualquer obra, sendo certo que ninguém pode ser juiz em causa de que não tem conhecimento.16
Num processo de reivindicação contra os poderosos, poderia ainda acrescentar algumas considerações sobre uma outra obra de Pusich: a Galeria das senhoras na Câmara dos Senhores Deputados ou as minhas observações17 onde tenta repor direitos e reivindica a igualdade de género. É, porém, uma outra história, aqui não considerada, por provir de uma fonte diferente da imprensa periódica. 15
Idem, “Curso normal de leitura repentina”, A beneficencia, n.o 4, janeiro 1854,
p. 4. 16
Ibidem. Idem, Galeria das senhoras na Câmara dos Senhores Deputados ou as minhas observações, Lisboa, Tip. de Borges, 1848, editado na íntegra por Ana Maria Costa Lopes, “Intervenção de uma prestigiada oitocentista na Câmara dos Deputados”, Povos e culturas, n.o 8, CEPCEP, 2003, pp. 207-228, e cf. idem, Imagens da mulher na imprensa periódica de Oitocentos, Lisboa, Quimera, 2005, pp. 260-268. 17
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Na continuação da intervenção social e política de Antónia Pusich, temos a da mestra régia e literata Maria José Canuto, muito encomiada no seu tempo por escritores de ambos os sexos, a qual sempre teve atitudes de grande ousadia perante o poder. Numa delas, por exemplo, confronta o Conselho Superior de Instrução Pública ao optar por ensinar os seus alunos pelo método de Castilho sem que aquele se tenha pronunciado sobre o assunto, e pondo, assim, em causa o seu emprego. E em muitas outras ocasiões contesta os poderes públicos tanto no que se refere à sua área profissional como na defesa dos mais desfavorecidos, por muito bem conhecer o meio da escola pública em que se movia. Numa invectiva contra o governo, reclama das deficientes condições de trabalho dos professores, dos míseros salários, da sua falta de preparação. Argumentando que é função do governo “criar escolas normais” e “dar excelentes mestres e mestras aos filhos do povo”18 , diz que tanto ela como outras professoras gostariam de ver cumpridas essas funções. Revela-se por outro lado, muito consciente da situação social e política do seu tempo com base em estudos feitos sobre a paupérrima população das escolas públicas. E afirma o direito à instrução dos jovens desvalidos de ambos os sexos e de suas mães, na maioria, analfabetas. Queixa-se ainda, entre muitas outras coisas, da falta de consistência dos programas e da criação de novas disciplinas sem condições de implementação, resultantes da incompetência dos responsáveis por estas áreas, ao mesmo tempo que critica mudanças inúteis porque não sustentáveis. E pergunta: Que importa que o governo de Vossa Majestade tenha ramificado o ensino primário, criando novas cadeiras? Enquanto essa criação assentar sobre as bases fracas e viciosas que existem
18
Maria José Canuto, Terceira conferência no Liceu Nacional, Lisboa, s.n., 1869,
p. 3.
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Ana Maria Costa Lopes nada mais se haverá feito que ramificar os ergástulos para mestres e discípulos!19
Ao analisar a situação, chega a ser acintosa e irreverente: Os altos poderes do Estado, diz ela, têm dormido o sono da inércia sobre os verdadeiros interesses da instrucção primária! Que Vossa Majestade, pelo conselho superior de instrucção pública, se digne desterrar para longe de nós esse sono terrível, que inutiliza a dedicação dos professores, e a inteligência dos pobres.20
Maria José Canuto segue pois na fileira de todas aquelas que enfrentam ousadamente os poderes estabelecidos, não só a nível particular, mas também público, intervindo cívica e politicamente, reclamando a igualdade de direitos e, ultrapassando a sua estrita atividade profissional, combatendo a improficuidade e a incapacidade dos responsáveis pelas decisões políticas. Valorizando-se a si própria, ajuda a construir imagens novas e válidas sobre as mulheres de Oitocentos, imagens que na altura eram consideradas varonis. De tanto trabalharem a área da instrução, ao longo deste século, as mulheres deixaram de a considerar proibida. Francisca Wood, Mariana de Andrada, entre outras, retomaram brilhantemente estas questões, mais tarde, lutando sempre contra o conservadorismo masculino em A voz feminina de 1868 e O progresso de 1869, acrescentando outras facetas como a da ilustração com objetivos profissionais e contrapondo-se às vozes masculinas discordantes. Mariana de Andrade incita as portuguesas a seguir o curso de medicina e cirurgia de forma a tornarem-se independentes economicamente.
19
Idem, “Ofícios dirigidos sua majestade fidelíssima pelo Conselho Superior de Instrucção Pública”, A cruzada, n.o 3, dezembro de 1858, p. 18. 20 Ibidem.
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E não deixa de pensar nas reações habituais de alguns dos seus contemporâneos: Parece-me ver, diz ela, um sorriso zombeteiro nos lábios de todos os senhores facultativos que, por acaso, se dignarem ler estas linhas. Bem sabemos nós porque é; mas sosseguem, a ideia não será adoptada, infelizmente o conselho não terá seguidoras. Isto não passa de lembrança feminina!. . .
E conclui: “A mulher no século XIX pode, deve e há-de triunfar da luta e erguer-se altiva e gloriosa, rindo-se dos antagonistas que lhe fizerem guerra e dos zoilos que tentaram mordê-la”21 . Uma outra precursora da emancipação das mulheres, Maria de Mendonça, colaboradora de A illustração feminina, em 1888, segue-lhe as pisadas, apoiando-se nos filósofos gregos, e defende também a prática das profissões acima referidas, acrescentando-lhes outras como as ligadas à “farmácia, jurisprudência [. . . ], etc. [e, para nosso espanto, pelo arrojo e antecipação de, pelo menos, um século] o comando dos exércitos”, ao mesmo tempo que afirma a ideia de que a educação das mulheres “seja igual à dos homens”22 . Mais consistente, Guiomar Torrezão vê igualmente na instrução um meio de as mulheres desempenharem posteriormente cargos públicos masculinos. Rejeitando as ideias feitas, conservadoras, que remetiam as mulheres para a assunção exclusiva dos papéis femininos tradicionais e refutando os que as defendiam, diz: “Já se vê, os que no século XIX afagam estas ideias fósseis, são aqueles a quem a natureza tão pouco favoreceu com faculdades discriminativas, sentimentos elevados que votam pela nulidade ou pela atrofia moral e política de metade da raça humana”. E anuncia ainda: “Hão-de ter que resignar-se”23 . Em Mariana A. de Andrade, “Portuguesas distintas”, A voz feminina, n.o 29, julho de 1868, p. 3. 22 Maria de Mendonça, “Da educação, II”, A illustração feminina, n.o 2, agosto de 1868, p. 1. 23 Guiomar Torrezão, “Uma senhora portuguesa médico”, O progresso, n.o 82, agosto de 1869, p. 134. 21
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seu entender, uma vez atingidos esses direitos, seriam eliminadas as diferenças de género, que o sistema tinha consagrado, proibindo às mulheres o exercício de determinadas profissões. Mas isso não será dado de mão beijada. Como diz: temos de provar “pela nossa conduta que Deus não nos plantou na terra para sermos os cãezinhos fraldiqueiros dos homens, os seus joguetes e as suas escravas, como muitos meus senhores ainda pensam”24 . Alguns anos mais tarde, entre 1880 e 1890, época de grande retrocesso para as teses progressistas, Guiomar Torrezão sintoniza-se com a mentalidade do início do século e reflete sobre os comportamentos ou atitudes conservadoras dominantes. Rebate-os dizendo no Mundo elegante de 1887: “A instrução, afirmam eles, não pode aumentar o número das suas virtudes, mercê das quais [a mulher] é amada e venerada”25 . Para a mentalidade do seu tempo, a mulher ignorante “é sempre boa; a mulher savante [. . . ] raras vezes deixa de ser má”26 . Tais posicionamentos estão em certa medida em desacordo com os de algumas intelectuais do fim do século. De facto, não há ao longo do século XIX uma clara linha ascendente na defesa dos direitos das mulheres. Antes pelo contrário. Tanto no seu início como nos seus finais aparecem algumas vozes menos reivindicativas, ou mesmo negativas. Nos meados do século, os intelectuais estariam mais recetivos à mudança. Muito haveria a acrescentar a esta tão importante temática que o liberalismo adotou como bandeira e sobre a qual muitas escritoras se debruçaram e que se não limitaram às aqui mencionadas. Não deixaremos, no entanto, de referir uma das preocupações que também percorreu todo o século: a necessidade de provar que as mulheres eram tão inteligentes como os homens e que tal demonstração os não diminuiria. Francisca Wood trata explicitamente da questão ao dizer que “Os homens não gostam de excessiva inteligência na mulher; mas sim de uma inteligência simpatética que os siga, sem jamais lhes passar adi24 25 26
Ibidem. Idem, “Crónica”, O mundo elegante, n.o 32, agosto de 1887, p. 3. Ibidem.
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ante”27 . E refere-se, em outros textos, à querela relativa às Savantes, mulheres que foram denegridas por muitos, entre eles, Molière; e explicita os motivos pelos quais elas não puderam desenvolver-se e mostrar capacidades que são inerentes a ambos os sexos ou que são específicas das mulheres. Mariana de Andrade, por seu lado, desenvolve o discurso da sua amiga escalpelizando velhas atitudes que inviabilizavam a manifestação de todas as potencialidades femininas e afastavam as mulheres de áreas científicas ou mesmo artísticas, para não falar das mais comuns, como as literárias. Os homens, com honrosas e raríssimas excepções, costumam chamar preciosas ridículas às mulheres que se afastam um pouco do vulgar. Não, minhas senhoras, os de juízo, os verdadeiramente ilustrados, não podem censurar o que eles mesmo praticam. Quem fica pois? Maus e néscios. Aqueles só merecem um sorriso de desprezo; estes. . . perdoe-se-lhes, porque não sabem o que dizem!. . . 28
A estratégia seguida pelas nossas intelectuais de Oitocentos na reivindicação do papel das mulheres na sociedade passava igualmente por dar a conhecer a obra de escritoras portuguesas ou estrangeiras ou com outras atividades ou profissões, pretendendo assim calar as vozes mais negativas dos zoilos de pacotilha, que consideravam o ato de criar e escrever uma prerrogativa masculina. Algumas interrogavam-se, por outro lado, sobre a limitação que tal direito impunha e contradiziam ousadamente tais preconceitos, culpabilizando quem os tinha pela condição de inferioridade em que as mulheres viviam. Maria Adelaide Prata, por exemplo, diz: “O parnaso é pouco para os nossos poetas, as musas são-lhes todas precisas, não nos cedem a nós, nem sequer a mais debilitada [. . . ] Que sejam mais indulgentes 27
Francisca Wood, “Escrito dedicado ao Ilmo. Sr. J. T. Cardona, distinto folhetinista da «Gazeta da Beira»”, A voz feminina, n.o 43, novembro de 1868, p. 1. 28 Mariana A. de Andrade, “s.t.”, A voz feminina, n.o 16, maio de 1868, p. 1.
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connosco que nos deixem ler e escrever que nos sobra ainda tempo para fiar”29 . Velhas reivindicações e denúncias, velhos posicionamentos que se prendem com atitudes monopolistas subjacentes à mentalidade da época, alicerçada na ideologia que perpetuava a divisão tradicional de tarefas e respetivos papéis sociais e a necessidade de subalternizar as mulheres na sociedade. Reivindicações a que responderam alguns escritores, poucos, na verdade. Continuando a mesma linha de pensamento Mariana de Andrade, pede aos intelectuais do tempo: “Não olhem a escritora como se fosse um fenómeno espantoso, só porque teve a audácia de pensar e transmitir ao papel os seus pensamentos e seja-lhe tão vulgar escrever como lhe é tocar piano”30 . Enfatizando a importância das mulheres célebres, como uma espécie de certificado de garantia daquilo que defendia, luta pelos direitos das suas contemporâneas: Acabem de vez com esses preconceitos tolos que tolhem à mulher a liberdade de expor as suas ideias; que lhe impõem silêncio pelo simples facto de ter nascido mulher; que a fazem curvar com uma obediência estúpida e ridícula ante o poder supremo do homem; do homem, a quem deu a vida, a quem ensinou a articular as primeiras palavras, a quem guiou nos primeiros e incertos passos que deu na terra, para se tornar depois seu senhor e tirano.31
Em síntese, diria terem sido muitas as mulheres que no século XIX lutaram pela igualdade e pela promoção femininas. Foram muitas as que se rebelaram contra os preconceitos e discriminação masculinos existentes, erguendo a sua voz contra a injustiça que a discriminação de género impunha e que podemos resumir nas palavras de Francisca Wood, ao falar de “reivindicação dos direitos justos e inauferíveis do 29
Maria Adelaide Fernandes Prata, “Ressentimento, à minha amiga a Exma. Sra. D. Maria Peregrina de Sousa”, A esperança, n.o 1, 1865, p. 96. 30 Mariana A. de Andrade, “s.t.”, A voz feminina, n.o 30, agosto de 1868, p. 1. 31 Mariana A. de Andrade, “Portuguesas distintas”, A voz feminina, n.o 29, julho de 1868, p. 3.
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[seu] sexo; obnóxia a homens”, de forma a “provar logicamente a non-superioridade dessa metade do género humano que tão constante, tão assídua, e digamos, tão vilmente nos tem menoscabado, nos seus escritos e nas suas acções!”32 . Muitas dessas vozes foram por nós aqui, em grande parte, omitidas. As que restaram são, porventura, as mais paradigmáticas de um vastíssimo conjunto de pensadoras que muito contribuíram para que as posições das mulheres viessem a ser reconhecidas como necessárias ao equilíbrio e progresso social e cultural. Equilíbrio e progresso que só o século XX consagrou entre nós a nível legal e que ainda não estão completamente implementados, económica, social, e mesmo culturalmente, pelo menos em alguns estratos populacionais.
32
Francisca Wood, “s.t.”, O progresso, n.o 93, outubro de 1869, p. 175.
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Referências bibliográficas
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Parte II SENHORAS DO ALMANAQUE (BR)
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Anna Ribeiro de Goes Bittencourt: uma estrategista do mercado editorial Maria Inês de Moraes Marreco mimarreco@yahoo.com.br
Desde Christine de Pisan (entre os séculos XIV e XV, na França), que procurou adequar sua vocação aos interesses da sociedade da Corte, o sucesso da mulher escritora dependia da seleção dos temas sobre os quais escreveria. E assim foi no Brasil. À brasileira que sentia o pendor para as letras e que não queria ser considerada “anormal”, cabia a estratégia de controlar-se e comportar-se dentro das regras do jogo. Daí, muitas vezes, ser impelida para a poesia. Para Anna Ribeiro de Goes Bittencourt não foi diferente. As barreiras também se insurgiram. Entretanto, a escritora, sem dar muita importância aos modismos, seguiu sua intuição, suas crenças e o desejo de ser útil à família e à sociedade – nunca deixou de se atualizar e soube imprimir suas convicções e maneira de pensar sobre a educação e a literatura oitocentista. Em seus romances tratou de problemas cruciais da realidade política e social de seu mundo, como o da decadência da economia do Recôncavo Baiano, fato que afetou profundamente as relações entre famílias e sociedade, além do destino dos escravos depois da Abolição.
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Maria Inês de Moraes Marreco
Anna Ribeiro de Goes Bittencourt, reconhecida na Bahia, como a primeira ficcionista e a primeira romancista num período em que o cânone literário baiano e brasileiro era dominado por homens, nasceu em Vila de Itapicurú, em 31 de janeiro de 1843, mas foi criada na Fazenda Mocambo, em Catú, cidadezinha do Recôncavo Baiano. Faleceu no dia 21 de dezembro de 1930. Filha única de Ana Maria da Anunciação Ribeiro e de Matias de Araújo Goes, pertencia a uma das famílias mais tradicionais da província considerada pela própria Anna como: “uma espécie de aristocracia formada pela classe muito considerada dos senhores de engenho, que era a segunda nobreza do país, como era na França a magistratura”1 . A escritora era sobrinha e prima dos mais abastados e poderosos da região e vista como típica representante da elite feminina do Recôncavo Baiano no século XIX. Anna teve infância marcada por uma conjuntivite mal curada, segundo diagnósticos da época, só debelada quando ela já tinha vinte anos de idade, o que a impediu de ter acesso à educação mais aprimorada como recebiam as outras filhas das abastadas famílias rurais da Bahia oitocentista. Em virtude disso foi alfabetizada por sua mãe, mulher instruída e profundamente religiosa. Obrigada pela visão precária a permanecer na escuridão, a menina recitava poemas memorizados através do relato oral e conversava sozinha, formando assim sua personalidade de mulher solitária e avessa ao mundo social. Daí o despertar do prazer pela literatura e o encantamento pelas palavras, como mais tarde afirmaria em seu livro de memórias. O aprendizado da escrita chegou à Anna através de duas amigas da família, que viveram longo tempo na fazenda. Uma delas, Emília, que permaneceu em sua casa até contrair matrimônio, emprestava-lhe seus
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Anna Ribeiro de Góes Bittencourt, Longos serões do campo. O Major Pedro Ribeiro, org. e notas de Maria Clara Mariani Bittencourt, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, p. 1.
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livros, o que permitiu suas primeiras inserções ao mundo das literaturas francesa e portuguesa. Segundo sua neta Anna Mariani: Minha avó aproveitou, extraordinariamente, com a estada de Emília em sua casa. Aprendeu com ela português e francês, leu os clássicos franceses e portugueses que faziam parte da bagagem de Emília, e como tinha excelente memória, sabia de cor páginas inteiras de Fenelon, Herculano e outros clássicos portugueses. Lembro-me dela recitar páginas de Telemaque e Eurico, o presbítero, para nossa admiração.2
Porém, a deficiência visual a impedia de ter boa caligrafia, atormentando-a, já que esse era um requisito da educação esmerada das moças de sua posição social. Talvez tenha sido esse o motivo que a levou a se dedicar mais à leitura do que à escrita – vista como uma catarse, reflexo da educação marcada pela imposição de regras e costumes. Em consequência disso, Anna só permitiu que sua criação literária viesse à tona após a morte do pai e de receber o apoio do marido, dos amigos e parentes, tanto que não se conhece nenhuma produção literária sua nesta fase. Assim, com educação tipicamente burguesa – leitura, estudo de piano, desenho, canto e francês – a tendência para escritora se manifestou na pequena Anna, que, apesar de não ter concluído seus estudos na capital, acumulou impressões que seriam usadas em seus escritos posteriores. Ser escritora era sua vocação. O sonho de ir para Salvador só se realizou por ocasião de seu casamento com Sócrates de Araújo Bittencourt, estudante de Medicina, em 1865, quando então Anna começou a tomar conhecimento do mundo intelectual baiano, num momento de grande agitação cultural. Momento de decadência da industrialização na Bahia, entre o final do século XIX e o fim da República Velha. Decadência essa agravada pela abolição da escravatura. 2
Anna Mariani Bittencourt de Cabral, in D. Anna Ribeiro Góes Bittencourt, Contos, Bahia, s.n., s.d., p. 22 (cópia datilografada do Arquivo Privado da Fundação Clemente Mariani).
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Em 1886 nasceu o primeiro filho de Anna, Pedro Ribeiro de Araújo Bittencourt, que aos doze anos de idade foi viver com a avó materna em Recife, para concluir seus estudos. Essa separação serviu como fonte inspiradora de um poema, fato comum entre as mulheres das famílias ricas da época, cuidadosas com a crítica masculina ou com o medo do “preconceito”. Já nesta época ela escrevia para o âmbito familiar. A mulher que escrevesse para ganhar dinheiro com a sua produção era vista com reserva na Bahia e muitas não ousavam enfrentar a sociedade. Segundo Nancy Rita Vieira Fontes, somente em 1875 Anna Ribeiro decidiu iniciar sua carreira, escrevendo versos parnasianos condizentes com o modelo literário. Em 1880, aos 37 anos de idade, publicou nos periódicos: Gazeta de notícias da Bahia, jornal diário de Salvador, A verdade, que circulava em Alagoinhas (Bahia) e no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, de Lisboa. A preocupação de Bittencourt, entretanto, era com a leitura de romances e a preservação da moral católica das jovens. Em artigo dirigido às senhoras portuguesas e brasileiras, alertou-as para o perigo destas leituras de “conteúdo duvidoso”, reconhecendo que muitas mulheres escreviam romances bastante aplaudidos, mas pontuando que elas não tinham em mira instruir nem moralizar, e sim granjear um nome na literatura. Cabia às damas selecionar bem suas leituras, pois a elas era dada a responsabilidade de educar os filhos. Anna, talvez se referindo ao seu romance A dama das camélias, condenava Alexandre Dumas, que, ao apresentar as grandes damas da antiga corte de França, de costumes livres, dava aos seus atos escandalosos coloridos de nobreza; Eugéne Sue, que inculcava ideias perniciosas contra a religião e a ordem social; Ponson de Terrail, que romanticamente ataviava tipos que não serviam de modelo à jovem que se pretendia fazer “virtuosa mãe de família”. Em contrapartida enaltecia Alexandre Herculano, como possuidor de rica linguagem, ideias sãs e moral religiosa respeitada; Júlio Verne, que nada ofendia a moral e o romancista espanhol Enrique Perez Escrich, que podia ser lido sem perigo, cujas obras podiam servir de passatempo moral e proveitoso. Embora visse qualidades nos
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livros de José de Alencar, aludia que as personagens de Diva (1864), Senhora (1875) e Lucíola (1862) não eram exemplos para serem seguidos pelas jovens oitocentistas. Mas embora desaconselhasse às moças a leitura de tais romances, não deixava de lê-los. Transitava pelas literaturas brasileira, portuguesa e francesa com propriedade, sugerindo ser o romance veículo de conhecimentos e orientações de vida, além de instrumento de lazer. Sobre tais reflexões Gilberto Freire, em Sobrados e mucambos se pronunciou: Bem dizia em 1885 Da. Anna Ribeiro de Goes Bittencourt, ilustre colaboradora baiana do Almanaque de lembranças luso-brasileiro, alarmada com as tendências românticas das novas gerações – principalmente com as meninas fugindo de casa com os namorados – que convinha aos pais evitar as más influências junto às pobres mocinhas. O mau teatro. Os maus romances. As más literaturas. Os romances de José de Alencar, por exemplo, com “certas cenas um pouco desnudas” e certos “perfis de mulheres altivas e caprichosas (. . . ) que podem seduzir a uma jovem inexperiente, levando-a a querer imitar esses tipos inconvenientes na vida real.3
Já nesta época Anna Ribeiro demonstrou sua estratégia para ser aceita pela sociedade vigente. Preocupou-se em preservar os valores que pareciam estar se perdendo e que deveriam ser conservados pelas mães de família, conquistando um público de leitoras tais que viabilizou sua efetiva participação nos jornais da Capital. Registrou, em artigos publicados no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro, advertências contra “certas cenas um pouco desnudadas” ou contra “perfis de mulheres altivas e caprichosas” dos romances românticos do momento. A leitura permitida às moças de “boa família” era rigorosamente selecionada: as que tinham função propedêutica, como as da Condessa 3
Gilberto Freire, Sobrado e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbanismo, 15.a ed., São Paulo, Global, 2004, p. 249.
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de Ségur, textos bíblicos ou romances formadores da personalidade de jovens casadoiras, próprias para uma pretendente a mãe de família, tornando-as “boas” candidatas a serem aspiradas pelas tradicionais famílias baianas para seus filhos. Porém, consciente de que precisava mudar seu discurso, retirando dele as marcas do discurso de sua mãe, uma religiosa convicta, e transformando-o numa linguagem coloquial, num estilo claro, mais isento das vozes moralistas, Anna Ribeiro vai prendendo seu leitor, apresentando um discurso mais comum, embora não sem culpa, pelo fato de estar assumindo um outro lugar. Vale ressaltar que, a essa época, “boa imprensa” era a religiosa, a que controlava a leitura das mulheres católicas, proibindo-lhes a leitura de romances que incendiavam a imaginação e aconselhando leituras de histórias religiosas. Em A paladina afirma: Dizem os apologistas do feminismo exagerado que a mulher deve ter, na sociedade, posição semelhante à do homem e gozar de todas as regalias que este egoisticamente criou somente para si; que ela deve instruir-se de modo a exercer todos os cargos, ter o direito de votar, etc; que o homem atualmente, corrompido no exercício do seu longo domínio é incapaz de promover a reforma de que a sociedade tem urgentíssima necessidade; que a mulher, conservada ilesa e pura, talvez em virtude de sua abstenção, é, indubitavelmente, destinada a regenerar a sociedade, o que só pode fazer imiscuindo-se em todos os negócios públicos, até agora reservados ao homem.4
A articulista, apesar de defender certo essencialismo na divisão entre os sexos, valorizando o lugar da mulher na família, admite o “egoísmo dos homens” e permite a inferência de que acredita nas mudanças do comportamento feminino que estariam por vir. Em todos os romances que publicou, Anna Ribeiro de Goes Bittencourt fez apologia da necessidade da mulher se instruir além das prendas domésticas. Anna Ribeiro de Goes Bittencourt, “O feminismo”, A paladina, n.o 7, Salvador, Tipografia Beneditina, 1911, p. 3. 4
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Segundo Zahidé Muzart em seus estudos dos prefácios, notas introdutórias, dedicatórias e preâmbulos das obras escritas por mulheres no século XIX, o “medo de ser repudiada” pela crítica fez a mulher se valer de um “estranho jogo” no qual, de um lado, revelava certa subserviência e modéstia, atitudes usuais da mulher oitocentista, do outro, uma artimanha, ou, por que não acrescentar, uma estratégia para ingressar no mundo literário. Desta forma, aparentando modéstia e submissão, as mulheres vão encontrando seu espaço na vida literária da época. Se esse era o discurso esperado pela tradição masculina, por que não valer-se dele, desafiando o cânone com texto rico em detalhes? Nas palavras de Lilian de Lacerda, ao se referir a Longos serões do campo: Os originais de Anna, guardados e cuidadosamente co-editados pelos familiares, são ricos, ainda, nos traços da tradição oral, social e cultural brasileira quando revivem as primeiras festas da Independência comemorada na rua, as moléstias que afetaram sensivelmente a população como a cholera-morbus, a topografia da província baiana e a arquitetura das igrejas e dos conventos, as indumentárias feminina e masculina e seus significados socioculturais, e o alto valor da palavra oral na herança cultural brasileira, nas práticas sociais e comemorativas e na movimentação de muitos negócios comerciais.5
Instaura-se aqui o interesse pelo ficcional, já que esse livro foi escrito na velhice da autora, fazendo com que a memória ocupasse os espaços vazios causados pelo esquecimento, recriando o conteúdo ouvido e transformando-o numa narrativa rica em detalhes de uma época. Riqueza de detalhes essa que torna mais instigante o estudo das memórias escritas pelas mulheres. Anna consegue situar seu leitor na cotidianidade das mulheres no mundo das costuras, das rendas e bordados, das intrigas amorosas, das reuniões familiares, das descrições das vestimentas e do comportamento dos habitantes da zona rural em oposição à 5
Lilian de Lacerda, Álbum de leitura: memórias de vida, histórias de leitoras, São Paulo, UNESP, 2003, p. 94.
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vida urbana na Bahia do final do século XIX. Para além disso, compõe um mosaico da situação sócio-política-cultural da Bahia oitocentista, articulando, assim, o familiar, o cotidiano e o prosaico e apresentando uma nova categoria do fazer literário. Neste cenário, vozes como as de Anna Ribeiro Goes Bittencourt, Amélia Rodrigues, Maria Luiza de Souza Alves, dentre outras, debateram em artigos, romances e poemas a necessidade da mulher se instruir além das famosas prendas do lar como suas mães e avós: Anna Ribeiro percebe também que a instrução é uma necessidade para as mulheres, buscando-a de várias maneiras, seja através da leitura de romances, do estudo da Geografia, do Desenho, da Música, de Línguas. Para ela, era através do conhecimento que as mulheres se distinguiam umas das outras, chegando mesmo a criticar aquelas que, ao se casarem, viviam apenas para o lar, esquecendo-se de ler e de manter-se instruída.6
Suas protagonistas se valem dos seus ensinamentos quando os recursos familiares diminuem. No caso de Letícia, são os conhecimentos adquiridos na juventude aliados à força de vontade que salvarão os bens da personagem-título. No caso deste livro, Almanachio Diniz, um dos maiores escritores da Bahia no século XIX, fala do tema em questão: Na Bahia, nesta terra estagnada e moritusa, ainda há quem cultive a literatura sem escândalos, modestamente, mas com superioridade de vistas. Está neste caso D. Anna Ribeiro de Goes Bittencourt, autora de várias novelas publicadas em folhetins de jornais e do bem mencionado romance “Letícia” com que abro essa série de ponderações críticas. [. . . ] E a crítica por mais vigorosa que entenda de certo, aponta defeitos em um livro que não tem similar para termo de comparação. Qual o romance de 6
Nancy Rita Vieira Fontes, “Uma narrativa testemunhal: as memórias de Anna Ribeiro”, Cadernos Pagú, n.o 11, 1998, p. 402.
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escritora baiana pra entrar em comparação com “Letícia”? Louvado seja, portanto, quem trabalha em tempos como estes os meus aplausos a desinteressada constância nas letras. . . 7
Outro fato relevante na escrita de Anna Ribeiro é que algumas de suas personagens são dedicadas ao ensino como precetoras, seja de moças ricas, em Suzana ou Helena, ou de órfãos em O anjo do perdão. Sua obra é diversificada, permitindo sua produção literária ser classificada em: romances sagrados – A filha de Jephté (1882) e Abigail (1921) – e romances profanos – O anjo do perdão (1885), Helena (1901), Lúcia (1903), Letícia (1908) e Suzana (inédito). A filha de Jephté foi baseado numa personagem do Antigo Testamento, que ofereceu sua filha em holocausto. Segundo Nelly Novaes Coelho: Este romance foi inspirado numa tragédia de Racine, que por sua vez se inspirou no episódio bíblico em que Jephté (juiz de Israel e vencedor dos amonitas) para cumprir uma promessa feita ao povo de Gallad, é obrigado a oferecer a própria filha em sacrifício a Deus8
Este livro foi a primeira produção literária de Anna, impressa na Tipografia, à Rua da Alfândega, n.o 31. Além dele, somente Letícia (1908) foi impresso na Litografia, Tipografia e Encadernações Reis & C, os outros romances e contos foram publicados nos rodapés dos jornais, recortados e colados, posteriormente em livros de folhas brancas, como afirma sua neta Anna Mariani Bittencourt Cabral. O anjo do perdão foi publicado em capítulos diários na Gazeta de notícias da Bahia, ambientado no Recôncavo Baiano e descreve costumes e relações sociais da época. Em Helena a escritora valeu-se da Campanha da Independência de 1822-1823 como mote da trama de 7
Almanachio Diniz, Comentários sobre o romance Letícia, material manuscrito. Nelly Novaes Coelho, Dicionário crítico de escritoras brasileiras (1711-2001), São Paulo, Escrituras Editora, 2002, p. 61. 8
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intrigas. Abigail foi baseado na Sagrada Escritura e publicado em capítulos no Diário da Bahia. Em Suzana, escrito com quase oitenta anos de idade, a autora registra a queda da economia rural dos engenhos devido à morte dos escravos e a dificuldade em gerir os negócios com a ausência de mão-de-obra, resultando no declínio econômico de muitas famílias, como a da personagem central da trama: a moça que vem para a capital e cujo pai se torna funcionário público, à mercê dos partidos políticos da época. Bittencourt descreve minuciosamente lugares, costumes e festejos típicos de Salvador, dentre os quais, o do Dois de Julho, data da Independência da Bahia, que servem de pano de fundo para a ingênua história de amor e os excessivos ensinamentos morais. Entre alguns títulos de contos que contemplam a produção da escritora baiana, os nomes femininos são eleitos como parte do enredo e, por que não dizer, como estratégia de destinação a determinado público-leitor ou de um gênero, um estilo ou uma escrita. Assim ela elegeu os seguintes nomes: “Os sonhos de Josefina”, “Angélica”, “Maria”, “Marieta”, “Violeta”, “Dulce” e “Alina”. Incentivada pela neta Anna Mariani, Anna Ribeiro se dedicou à elaboração de seu livro de memórias Longos serões do campo, relatando fatos históricos de relevância para a Bahia e considerando a literatura como importante veículo de transmissão dos conhecimentos de uma geração. Entretanto, para ela o interesse memorialístico era tarefa realizada com grande angústia, pois achava que já estava vivendo mais do que os do seu tempo, embora considerasse importante que seus descendentes tomassem conhecimento do passado vivido pela família. Inclusive, ressalta no prólogo: Resta-me ainda fazer notar a omissão frequente de nomes e datas neste meu trabalho. A minha memória, que não me era tão ingrata na mocidade, foi sempre rebelde quando se tratava de tais coisas e, em geral, de tudo que dizia respeito a números. Creio, porém, que esta falta prejudicará pouco uma narração somente
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destinada à minha família, não tendo, portanto, de afrontar a crítica9
Este livro, entretanto, só foi datilografado após a morte da autora e foi guardado por seu neto Clemente Mariani, que, cioso da produção intelectual da avó, se encarregou de fazer correções no texto para evitar desentendimentos familiares e ser publicado nos anos 70. Na verdade, Clemente, advogado e político em ascensão no estado da Bahia, tentava evitar temas ou nomes que pudessem comprometer as alianças sociais e políticas de seu interesse. Felizmente, o projeto não se realizou e o manuscrito, graças à sensibilidade e cuidados históricos da bisneta, Maria Clara Mariani Bittencourt, foi publicado na íntegra, em 1992, por ocasião do cinquentenário da morte de Anna. Longos serões do campo se divide em dois volumes: o primeiro com o subtítulo “O major Pedro Ribeiro”, marcando a vida do avô paterno; o segundo trata do relato de D. Ana Maria, mãe de Anna Ribeiro a ela própria. Foi baseado nos seus conhecidos cadernos de anotações. Entre 1910 e 1917, a escritora colaborou com a revista católica A paladina do lar, primeira revista católica feminina da Bahia; com O mensageiro da fé e com A voz, órgão da Liga Católica das Senhoras Brasileiras. Tal colaboração pode ser vista como outra estratégia de Bittencourt. Para ser inserida no mundo literário a escritora decidiu divulgar seu trabalho através dos folhetins publicados nos rodapés dos vários jornais da capital e do interior da Bahia. Conhecedora do restrito mercado voltado para as mulheres, Anna Ribeiro não exitou em optar pelas publicações folhetinescas. Ela intuiu ser este o caminho ideal para divulgar e ampliar o campo de conhecimento da sua obra. Sabia que este tipo de publicação era a tática dos editores para aumentar as vendas, tratava-se de articulação mercadológica voltada para o incentivo do consumo, segundo os moldes das tendências do mercado editorial francês, com aceitação plena no mercado brasileiro e baiano. 9
Anna Ribeiro de Goes Bittencourt, Longos serões do campo, vol. 1, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, p. 10.
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O ardil de valer-se dos meios de comunicação especializados e voltados para o público feminino deu certo. Augusto Blake, ao comentar sobre o ingresso de Anna no mercado literário, aludiu: [Anna Ribeiro] Deu-se desde jovem à literatura, não só de seu país como a francesa, cultiva a poesia, e achando um certo encanto na decifração de charadas e logogrifos, tem composto um grande número deles, e publicado alguns no Almanaque luso-brasileiro de 1880 a 1882, no Almanaque da Gazeta de Notícias da Bahia de 1883 (. . . ). O anjo do perdão: escreveu a pedido de Antonio Lopes Cardoso e acaba de ser-lhe entregue para ser publicado na Gazeta de Notícias da Bahia, em folhetins, e depois talvez seja impresso em volume10
Anna Ribeiro produziu ainda vários contos, dezessete poemas, três hinos religiosos, quatro ensaios, etc. Quanto aos seus poemas, sabe-se que “Amor materno” foi divulgado em 1910 pela revista A paladina. Os demais: “A caridade”, “Que doce e calma alegria”, “Doze anos coletas, meu filho” e “Que se proclame a glória do guerreiro” foram divulgados postumamente pela Revista da Academia de Letras da Bahia, apenas em 1952. Porém, ela soube articular seu projeto literário de acordo com as regras editoriais vigentes na Bahia, acompanhando as tendências do seu tempo. Seu primeiro romance, O anjo do perdão, foi prefaciado pelo Visconde de Taunay, a pedido do barão Inocêncio Araújo Góes, incentivador e primo da escritora. O estratagema de tomar como padrinho figura tão relevante evidencia a necessidade de valoração, ainda mais para uma mulher daquele tempo. É curioso observar que Taunay, em nota ao amigo declarou: “Fiz o que você me pediu, o elogio do livro, entretanto, a autora denota grandes qualidades, deve procurar assuntos 10
Augusto Victorino Alves Sacramento Blake, Dicionário bibliographico brazileiro, vol. 1, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1883, p. 94.
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mais simples e que falem à sensibilidade do nosso povo”11 e ainda “ser o primeiro romance de Anna Ribeiro muito complexo para o seu público alvo”, isto é, as mulheres. E sugere que “ela escreva sobre temas mais fáceis que fale ao coração do povo”. Um conselho ou uma constatação do preconceito? Será que o autor de Inocência ao sugerir “temas mais fáceis” estaria insinuando que se Anna enveredasse pelos caminhos da literatura estaria denegrindo seu status de mulher da elite? Que escrevesse de maneira mais simples, “mais apropriada” para “seu público alvo”, sugestionando que as mulheres não teriam capacidade para entender textos tão elaborados? Ou, ainda, que falasse de assuntos que tocasse a “sensibilidade do nosso povo”, tentando direcionar a escrita feminina para os moldes da masculina, essa sim, na época, a mais adequada? Mas a escritora sabia ser flexível e, quando lançou O anjo do perdão, enfocou o regionalismo, aceitando as recomendações de Taunay e do representante do jornal, Sr. António Lopes Cardoso, impostas pelo mercado. Se esse era o caminho a trilhar para chegar às suas leitoras sem comprometer a essência de suas mensagens, por que não dobrar-se a tais exigências? Anna Ribeiro não se intimidou e utilizou o subterfúgio da aceitação para executar seu projeto. A “escritora das sinhazinhas”, também engenhosamente, não definia seu “estilo literário”, fugindo, dessa forma, das críticas e adotando aspetos das correntes românticas e realistas, de acordo com seus objetivos: aconselhar suas leitoras para a preservação da “moral” e dos “bons costumes”. No prólogo de Letícia a escritora registra: Não me dirijo aos homens repletos de conhecimentos científicos e literários. Sei que estes não dignar-se-ão folhear um livro de tão obscura autora. Falo a vós, minhas patrícias, que dotadas de inteligência e gosto, não vos contentais com fúteis passatempos, e procurais na leitura amena uma agradável diversão ao espírito, 11
Anna Mariani Bittencourt de Cabral, in D. Anna Ribeiro Góes Bittencourt, Contos, Bahia, s.n., s.d., p. 32 (cópia datilografada do Arquivo Privado da Fundação Clemente Mariani).
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Maria Inês de Moraes Marreco colhendo ao mesmo tempo lições e preceitos que irão vigorar os princípios morais que já possuis, dados por uma boa e sólida educação doméstica. [. . . ] Não tenho pretensões a criar uma escola, o que seria uma incrível ousadia em vista da posição que ocupo no mundo das letras. Também, intencionalmente, jamais me filiei à escola alguma, porque isso é contrário a minha índole e gosto12
Mesmo tendo como público alvo as mulheres, a autora não se descuidava de preservar a posição do homem, evitando que sua escrita fosse vista como pretensiosa e colocando-se em posição inferior para não ferir a vaidade dos donos do poder. Ao se dirigir às mulheres, entretanto, salientava-lhes a inteligência e o bom gosto antes de, através de sua ficção, sugerir-lhes que se portassem dentro das exigências históricas, não se deixassem levar pelos modismos europeus e não se esquecessem de que a elas cabia educar os filhos pelos valores morais e religiosos que começavam a ser questionados. Desta maneira, transmitia-lhes seus conselhos e garantia uma posição sólida no espaço literário do momento. O fato de não se dirigir aos homens diretamente, como se os colocasse muito além de sua capacidade, não deixava de ser outra perspicaz estratégia. Em primeiro lugar, mostrando que não tinha pretensões de pertencer a uma escola literária, em segundo, que não desejava invadir um espaço já definido, ocupado pelos “grandes escritores” aqueles que dominavam o cenário. Com argúcia e inteligência atingia as suas patrícias, respaldada pela autorização masculina. Como definiu Marcelo Souza Oliveira: Anna Ribeiro conhecia bem o mundo paternalista e patriarcal em que vivia, e por vezes, tracejava dentro do mesmo para conseguir seus intentos, sem que para isso fosse ao encontro da ideologia dominante. No caso das mulheres da elite, é válido lembrar que elas não eram tão submissas quanto se pensava e que as mesmas sabiam como conseguir seus objetivos utilizando para isso 12
Anna Ribeiro de Góes Bittencourt, Letícia, Salvador, Litografia, Tipografia e Encadernação Reis & C., 1908, p. 5.
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o próprio discurso dominador. A estratégia “humilde” de Anna Ribeiro para consolidar-se no cenário literário baiano é uma evidência disso13
Outra estratégia da escritora baiana, que vale a pena ser lembrada, foi a do entrelaçamento do realismo das tramas dos seus romances, influência das leituras dos romances europeus do século XVIII, com a identificação da leitura com a leitora, o que funcionava como testemunho histórico. Como exemplo do entrecruzamento de história com memórias, isto é, sujeito-histórico e personagem, evidencia-se o caso de seu pai – Mathias de Araújo Goes – com o personagem Travassos, pai da protagonista de Letícia. Assim, a autora, através do tom realista, oportunamente transmitia às suas leitoras as representações da elite do final dos oitocentos. Segundo ela: “O romance não é mais uma fantasia de imaginação para o divertimento das damas, porém sim uma obra séria, cujos detalhes são documentados e na qual os investigadores do século próximo vão encontrar escrita, dia a dia a história do nosso século”14 . Conclui-se que a atuação de Anna Ribeiro de Goes Bittencourt não foi passiva, ela transitou dentro dos limites impostos pela sociedade vigente, aproveitando sua posição social para construir sua trajetória literária. Juntou-se a outras mulheres de sua época, dentre elas Amélia Rodrigues, e formaram uma “rede de solidariedades femininas” que, segundo Márcia Barreiros, ajudou a compor uma “frente de batalha” contra “as inovações vindas de fora” e a “depravação moral das sociedades.” Em 1910 esse grupo publicou nas revistas A voz e A paladina do lar. Mesmo quando vivia no campo, mantinha-se atualizada. Recebia catálogos das livrarias e assinaturas da revista Dois mundos e do Almanaque de lembranças luso-brasileiro, cujo consumo no Brasil ex13
Marcelo Souza Oliveira, “História, literatura e mercado literário na Bahia oitocentista: o projeto de Anna Ribeiro Góes Bittencourt”, Cadernos de História, vol. IV, n.o 2, ano 2, pp. 41-51, p. 46. 14 Anna Ribeiro de Goes Bittencourt, “O feminismo”, A paladina, n.o 7, Salvador, Tipografia Beneditina, 1911, p. 3.
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cedia a expectativa. Por exemplo, em 1872, no meado de setembro teve sua edição esgotada e em 11 de outubro, também em Portugal não havia um só exemplar à venda, obrigando a editora a aumentar a tiragem no ano seguinte. Um olhar atento sobre a trajetória desta escritora mostra que ela esteve no cenário literário e histórico por várias décadas e valeu-se da imprensa e das editoras do Rio de Janeiro e de Lisboa, com espaço no Novo almanaque de lembranças luso-brasileiro, nos jornais Gazeta de notícias da Bahia e Diário da Bahia e nas revistas A paladina do lar, A voz e O mensageiro da fé. Ainda hoje, encontram-se pesquisadores interessados nos estudos de sua biografia, memória, literatura e história. Anna Ribeiro de Goes Bittencourt difundiu sua maneira de pensar, escrevendo livros que se contrapuseram à ideia de que a mulher brasileira do século XIX e início do XX vivia alheia à política do país. Ela fez sua história, publicou seus textos caracterizando o momento histórico da educação e da literatura do Brasil, empenhou-se em apresentar modelos, engendrou concepções, pontos de vista próprios do espaço social, enquanto testemunha e participante ativa na construção da sociedade letrada brasileira, criou vidas e eternizou-se por meio de vozes longínquas evocadas. Em A paladina do lar, desenvolveu com coerência um programa de resistência ao avanço das ideias feministas que agitavam o mundo e incentivou a permanência da mulher no âmbito doméstico, sob a égide de não “tomar o cetro da mão do homem”. Era uma espécie de autorização, pretexto para a mulher aparecer sem parecer exibicionismo, apenas com a ambição de homenagear alguém que fosse merecedor, evidenciando os nobres sentimentos, sem almejar a condição de literata, o que seria reprovado pela classe masculina e inadequado para uma mulher de “bons princípios” religiosos e morais, que deveria ser sempre admirada, não pela ilustração, mas pela modéstia. Finalmente cabem aqui as perguntas: Não terá sido o traço de religiosidade e moralidade uma porta de entrada para muitas escritoras dos oitocentos, estrategicamente adotada para suas ingressões no mundo li-
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terário de sua época? E, se foi, não terá sido válida, já que as disputas e as relações de força e poder eram tão desiguais? Não merecem espaços iguais homens e mulheres no campo das letras? Cabe a nós, pesquisadores e estudiosos de hoje e de amanhã encontrarmos as respostas. Afinal, tanto as críticas como os comentários dos principais autores baianos da época sobre as autoras dão a impressão de que as mulheres que se inseriram no mundo das letras e que foram coerentes com o mercado literário foram bem sucedidas e não “silenciadas” pelo cânone dominante, preconceituoso e machista. Permanece, pois, a lição de que é através da história de vida das mulheres que pertenceram a outras épocas que se apreende melhor a configuração da nossa própria história. Essas mulheres que traçaram seus próprios caminhos, caracterizando tais vieses em seus textos, que foram, sem dúvida, atrizes nos palcos em que puderam atuar, empenhando-se em apresentar modelos nos quais as jovens pudessem se espelhar, desvelando suas personalidades de observadoras da vida real e do mundo ficcional. Foi por intermédio delas que concepções se engendraram, que pontos de vista próprios se incorporaram, que leituras se mostraram diferentes e que se tornou possível uma nova visão de um “outro” que se constituía.
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Referências bibliográficas BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Góes, Letícia, Salvador, Litografia, Tipografia e Encadernação Reis & C., 1908. _______, “O feminismo”, A paladina, n.o 7, Salvador, Tipografia Beneditina, 1911. CABRAL, Anna Mariani Bittencourt de, “s.t.”, in D. Anna Ribeiro Góes Bittencourt, Contos, Bahia, s.n. (cópia datilografada do Arquivo Privado da Fundação Clemente Mariani). _______, “s.t”, in D. Anna Ribeiro Góes Bittencourt, Contos, Bahia, s.n., s.d. (cópia datilografada do Arquivo Privado da Fundação Clemente Mariani). _______, Longos serões do campo, org. e notas de Maria Clara Mariani Bittencourt, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992. COELHO, Nelly Novaes, Dicionário crítico de escritoras brasileiras (1711-2001), São Paulo, Escrituras Editora, 2002. DINIZ, lmanachio, Comentários sobre o romance Letícia, material manuscrito. FONTES, Nancy Rita Vieira, “Uma narrativa testemunhal: as memórias de Anna Ribeiro”, Cadernos Pagú, n.o 11, 1998. FREIRE, Gilberto, Sobrado e mucambos: decadência do patriarcado e desenvolvimento do urbanismo, 15.a ed., São Paulo, Global, 2004.
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LACERDA, Lilian de, Álbum de leitura: memórias de vida, histórias de leitoras, São Paulo, UNESP, 2003. OLIVEIRA, Marcelo Souza, “História, literatura e mercado literário na Bahia oitocentista: o projeto de Anna Ribeiro Góes Bittencourt”, Cadernos de História, vol. IV, n.o 2, ano 2, pp. 41-51.
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Maria Amália Vaz de Carvalho e a poesia decadentista-simbolista Alvaro Santos Simões Junior1 simoes@femanet.com.br
Em 1890, quando Eugénio de Castro publicou Oaristos e deu assim início ao movimento decadentista-simbolista em Portugal, Maria Amália Vaz de Carvalho contava quarenta e três anos, estava casada com o poeta luso-brasileiro Gonçalves Crespo, parnasiano, havia publicado obras poéticas, narrativas, paradidáticas e jornalísticas, desfrutava da amizade de figuras de projeção na sociedade portuguesa como Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, entre outras, e colaborava assiduamente com crônicas, resenhas e artigos em periódicos de relevo2 como, por exemplo, os jornais do Rio de Janeiro e de Lisboa que adotavam o título comum de Jornal do Comércio. Foi, portanto, solidamente posicionada no campo literário que ela acompanhou o desenvolvimento de um novo movimento estético em Portugal, o qual teve repercussões intensas na imprensa periódica e, de modo geral, dividiu os intelectuais em adeptos ou partidários entusiasmados e adversários irredutíveis. Nos citados jornais, a escritora teve oportunidade de pronunciar-se sobre os poetas novos de então. 1
UNESP, CNPq. AAVV, Biblos: enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa, vol. 1, Lisboa, Verbo, 1995, p. 1019. 2
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Em 29 de abril de 1890, sob o abrigo do pseudônimo Valentina de Lucena, Maria Amália Vaz de Carvalho apreciou o Oaristos, de Eugénio de Castro, no rodapé do Jornal do Comércio, de Lisboa. Logo de início, declarou sua ignorância a respeito do significado do título do livro e sua intenção de continuar a ignorá-lo o resto de sua vida. Para a cronista, o jovem poeta embarcara no “expresso da originalidade”, mencionado no prefácio de sua obra, para sair da penumbra e atrair sobre si a atenção da imprensa, estratégia que fora coroada de sucesso: Eu que detesto, muito mais que a banalidade, a falsa originalidade; muito mais que a perfeita insignificância, a pose pretensiosa; muito mais que a expressão vulgar de sentimentos médios, a extravagância voulue, o propósito, um poucochinho eivado de improbidade literária, de atrair as vistas do público, não pela conscienciosa aplicação artística, mas pela disparatada e absurda fantasia; – eu mesma aqui venho falar do poeta, dando-lhe deste modo mais uma prova, humilde e desvaliosa muito embora, de que o seu livro atraiu a atenção e pode ser registado como um acontecimento3
Valentina de Lucena esclareceu de imediato não pensar que Castro fosse apenas um poeta extravagante, pois nesse caso continuaria a passar “despercebido”. Não lhe reconhecia, porém, originalidade, até mesmo por julgá-la inatingível: “Não há meio de ser hoje original depois de cem séculos de civilização descoberta. Tem-se dito tudo, tem-se pensado tudo!”. O poeta não seria original nem mesmo com as aliterações do poema iniciado pelo verso “Na messe que enloirece estremece a quermesse” (n. XIII) ou ao comparar sua amada com um moringue (n. II). Possuíam, no entanto, os Oaristos “versos cheios de beleza”, como dos do poema “Ave Maria” (n. VI), que teriam atraído para o livro “a atenção até dos seus censores” e eram “poesia de gente em toda a parte”. Para Valentina de Lucena, a “outra” poesia, de “rimas raras e rutilantes”, jamais daria “ao nome do Sr. Eugénio de Castro 3
Valentina de Lucena, “Crônica”, Jornal do Comércio, 29 de abril de 1890, p. 1
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Maria Amália Vaz de Carvalho e a poesia decadentista-simbolista 67 direito de entrada no limitado círculo dos verdadeiros e sinceros poetas”4 . Em 15 de abril de 1891, Maria Amália Vaz de Carvalho iniciou no Jornal do Comércio, de Lisboa, a publicação de um longo artigo sobre as Horas5 . Agradecendo a Eugénio de Castro a remessa de seu livro, assim como a Oliveira Soares, que lhe enviara o seu Exame de consciência, a cronista do Jornal do Comércio justificou o atraso de sua apreciação crítica pelo fato de ter-se tornado, nos jornais, “uma scie bastante secante a palavra nefelibata e a maneira um pouco extravagante dos dois poetas”6 . Cabe lembrar que, para gáudio da imprensa, Eugénio de Castro atribuiu a si mesmo no preâmbulo das Horas a qualidade de nefelibata, ou seja, de alguém que paira nas nuvens, acima das misérias cotidianas. Desde então, todos os poetas novos passaram a ser chamados de nefelibatas e batizou-se seu movimento de nefelibatismo. Traçando um panorama pessimista da sociedade portuguesa daquele tempo, quis Maria Amália Vaz de Carvalho isentar os jovens poetas de responsabilidade pelo caos que grassava em todos os setores, inclusive na literatura: Mas não podem nem o Sr. Eugénio de Castro nem tampouco o Sr. Oliveira Soares ser acusados de concorrer para a desordem presente pelas suas obras, acerca das quais se tem expandido a troça indígena – visto que neles espontâneo e individual, só há o talento, que é muito. A maneira, a escola, o vocabulário, o processo e a estética destes dois poetas padecerão de tudo, menos de originalidade.7
4
Ibidem. Idem, “Revista literária. Poetas novos”, Jornal do Comércio, 15 de abril de 1891, p. 1, cols. 2-3. 6 Ibidem. 7 Ibidem. 5
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Se havia caos na literatura, os responsáveis poderiam ser encontrados entre os modelos ou mestres dos jovens portugueses. A cronista teceria a sua crítica em torno, justamente, da ideia da falta de originalidade, da imitação servil que acaba por sufocar o talento “espontâneo” e “individual”. Segundo sua concepção, “em literatura quem diz escola diz artifício, diz insinceridade, diz duração efêmera e valor contestável”8 . Suas considerações privilegiariam a obra de Eugénio de Castro, deixando em segundo plano Oliveira Soares. Para Maria Amália Vaz de Carvalho, Verlaine, mestre dos poetas novos portugueses, deveria ser considerado como “um sincero” em sua poesia porque era um “doente cerebral”. Do poeta francês, a cronista transcreveu o obscuro ou hermético soneto iniciado pelo verso “L’espoir luit comme un brin de paille dans l’étable”, que somente pôde compreender e plenamente apreciar graças a comentários de Jules Lemaitre. Mas o hermetismo desses versos era aceitável porque resultava de um “espírito enfermo”. Outro seria o caso se o poeta da Sagesse (a cuja terceira parte pertence o soneto citado) fosse “normal”: Ora quanto não seria ridículo, artificial, antipático até, se Verlaine, sadio, bem comportado, ocupando na sociedade um lugar definido e certo – médico ou diplomata, agente de câmbio ou advogado, burocrata ou professor de Liceu – se sentasse todas as noites na banca, finda a sua lucrativa e útil tarefa quotidiana, a incitar com meticuloso esmero de iluminador gótico, ou de copista bisantino, estes estados de visão mórbida, aprendidos a outro poeta, estes acessos de agonia cerebral, a que corresponde a sua dolorosa poesia!9
Produzira, assim, Maria Amália Vaz de Carvalho fundamentação para a crítica que faria ao poeta das Horas logo na abertura da segunda
8 9
Ibidem. Ibidem.
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Maria Amália Vaz de Carvalho e a poesia decadentista-simbolista 69 parte do artigo, publicada em 18 de abril de 1891: Mas que desculpa tem o Sr. Eugénio de Castro, cuja vida, felizmente para S. Exa ., tem sido a de todo o moço honesto, inteligente e bem educado; cujos dias têm corrido sob o olhar familiar de todos nós, que tão intimamente nos conhecemos uns aos outros, livres de acidentes lamentáveis e grotescos da vida de Verlaine, quando, de ânimo frio, muito sério, muito bem composto na sua casaca irrepreensível de jovem adido de legação. . . portuguesa, nos escreve coisas como, por exemplo, esta: A minha mocidade tem cabelos brancos; Sou o menino que uma noite os saltimbancos Roubaram; sou o lis à janela d’um palácio em fogo E a Noiva lilial d’uma casa de jogo10
Fez ainda Maria Amália Vaz de Carvalho outras citações do poema “A epifania dos Licornes” para afinal perguntar: “o que quer tudo isto dizer?”. A despeito de toda delicadeza e elegância iniciais, a cronista do Jornal do Comércio acabou por reeditar, atribuindo sentido literal aos versos das Horas, o tratamento irônico que a imprensa portuguesa vinha dando à poesia decadentista-simbolista. Quanto ao liturgicismo de Castro, foi implacável: “Que catolicismo de encomenda é este em que não vibra nem de leve a alma sincera e penitente d’um ingênuo cristão, d’um católico praticante ajoelhado ao pé do altar?”11 . Maria Amália Vaz de Carvalho não tinha dúvidas de que, mais uma vez, a fonte era Verlaine, cujo catolicismo seria “perfeitamente ingênuo”: “As expansões candidamente fervorosas deste visionário produziram todo o catolicismo falso dos modernos imitadores simbolistas”12 . Como prova de asserção tão categórica, avançada após longas citações de Verlaine, transcreveu versos do poema “Longe dos bárbaros”, de Eugénio de Castro. 10
Idem, “Revista literária. Poetas novos” , Jornal do Comércio, 18 de abril de 1891, p. 1, col. 3-5. 11 Ibidem. 12 Ibidem.
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Desenvolvendo ainda um pouco mais a crítica à falta de originalidade do autor de Horas e dos outros poetas novos, a cronista do Jornal do Comércio concluiu a segunda parte do seu artigo afirmando que a “confusão propositadamente feita entre a linguagem dos amores e a da devoção”, a “extravagante liberdade dos ritmos”, as assonâncias e a heterometria já tinham sido praticadas em França “pelos poetas do decadismo e do simbolismo”13 . Na terceira e última parte do seu artigo, publicada em 24 de abril de 1891, Maria Amália Vaz de Carvalho abordou o simbolismo de uma perspetiva ampla, como “forma do espírito” e “tentativa da alma humana para se relacionar com o infinito” e, no século XIX, como “reação contra o naturalismo na literatura e contra o positivismo na filosofia”14 . Desse ângulo, os “verdadeiros simbolistas” seriam, em sua opinião, os pré-rafaelitas e Dante Gabriel Rossetti na pintura, Thomas Carlyle, Cino da Pistoia e o Dante da Vita nuova na literatura e, na música, Richard Wagner. Os “modernos poetas franceses” estariam muito distantes desse paradigma, pois, sendo “filhos degenerados de Baudelaire”, somente se preocupavam “com a forma estranha, com a cinzeladura exótica, com a variedade de estilo de seus versos”. Para condenar os decadentes franceses, a cronista amparou-se em L’art au point de vue sociologique, de Guyau, de quem citou as seguintes palavras: “É precisamente para nos iludirem acerca da esterilidade do fundo, que os decadentes levam a um extremo grau o trabalho da forma. Julgam eles poder substituir o gênio criador pelo talento que lhe imita os processos”15 . Como penhor de sua sinceridade e honestidade intelectual, Maria Amália Vaz de Carvalho assegurou que, havia “dois ou três dias”, vinha folheando “todas as obras dos tais pseudo-simbolistas” e a messe tinha sido desprezível: “Nem uma ideia, nem um pensamento novo, mas 13
Ibidem. Idem, “Revista literária. Poetas novos”, Jornal do Comércio, 24 de abril de 1891, p. 1, cols. 3-5. 15 Ibidem. 14
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Maria Amália Vaz de Carvalho e a poesia decadentista-simbolista 71 inteligível, ainda nos feriu!”. Dessa forma, avultava o equívoco dos poetas novos de Portugal: Podiam ter ido beber nas fontes genuínas, nas fontes sagradas do simbolismo, do verdadeiro, do sincero, porque traduz uma aspiração nobre do nosso espírito, para depois, assimilada a sua essência, transformá-lo segundo a lógica dos seus respectivos temperamentos. Não quiseram. Preferiram a este trabalho de elaboração mental e artística, sempre difícil, porque é necessário que cada um de nós lhe dê muito da sua inteligência e do seu coração, e aceitaram o comer já cozinhado, para empregar a forma menos nebulosa que neste momento me acode.16
Após sugerir que a primeira estrofe do poema “A epifania dos licornes”, de Eugénio de Castro, se inspirara em versos de Jean Moréas e após criticar a linguagem simbolista, Maria Amália Vaz de Carvalho apresentou finalmente a conclusão que desde o início se anunciava: “não há a mínima originalidade nos versos que tanto barulho aí levantaram no jornalismo português”. A Eugénio de Castro e Oliveira Soares acusou de terem concebido “a ideia de mistificar o público de Lisboa aparecendo-lhes [sic] como inovadores, e inventores de uma nova forma de arte”17 . Em 24 de julho de 1892, Maria Amália Vaz de Carvalho escreveu para o Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, uma apreciação de Os simples, de Guerra Junqueiro. O artigo iniciou-se por um preâmbulo sobre a poesia decadentista-simbolista em Portugal e na França. Nele atribuía-se aos jovens poetas como Eugénio de Castro, António Nobre, Alberto de Oliveira e Oliveira Soares, entre outros “moços namorados pela novidade e pela extravagância das últimas escolas francesas”, a pretensão de renovar formalmente a poesia portuguesa e de substituir a “expressão direta dos parnasianos” pela “sugestiva expressão 16 17
Ibidem. Ibidem.
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simbólica”18 . Entre os franceses, destacar-se-ia Verlaine, que seria um “sincero” e um “desequilibrado”, que, por isso, produzira “versos incoerentes”. A portugueses e franceses, a cronista fez a mesma crítica: “O que eu censuro nas modernas escolas é antes de tudo o serem escolas, depois é o terem sacrificado inteiramente a ideia à forma, o sentimento ao processo, a verdade à novidade”. Segundo Maria Amália Vaz de Carvalho, os “artifícios literários” de origem decadentista-simbolista de Guerra Junqueiro não os devia aos nefelibatas portugueses, ao contrário do que estes proclamavam publicamente, mas, por “fraqueza”, à “escola artificial” de Verlaine e outros franceses, o que, entretanto, não punha em risco a sua individualidade artística19 . Com essas palavras provavelmente referia-se à tentativa, perpetrada por Alberto de Oliveira, de anexação de Junqueiro ao grupo neogarrettiano. Tal propósito podia ser constatado na resenha de O livro de Aglaïs, de Júlio Brandão, publicada nas Novidades em 28 de abril de 189220 . Considerando Os simples um “poema das almas humildes, rudimentais, que vivem em contato direto com a natureza”, a cronista passou a exaltar as qualidades e a lamentar os defeitos dos principais textos reunidos no volume. Quanto às deficiências, observou que o ritmo empregado uniformemente “sem variedade acaba[va] finalmente por ser monótono e às vezes impróprio para a poesia” e que a filosofia do poeta era constituída por “fragmentos desconexos” de matriz naturalista e panteísta. Ocasionais “declarações jacobinas” e “ceticismos voltairianos” permitiram à cronista ressaltar a contraditória presença, no espírito do poeta, de um “misticismo ingênito que [. . . ] o inspira[va] quase sempre”, por “atavismo religioso”, a “ironia adquirida” e a “dúvida mordaz que esteriliza[va] tanta vez a sua sensibilidade”21 . 18
Maria Amália Vaz de Carvalho, “Os simples. A poesia contemporânea – Guerra Junqueiro”, Jornal do Comércio, 24 de julho de 1892, p. 2, cols. 3-6. 19 Ibidem. 20 Alberto de Oliveira, “O livro de Aglaïs por Júlio Brandão”, Novidades, 28 de abril de 1892, p. 3, col. 4. 21 Maria Amália Vaz de Carvalho, “Os simples. A poesia contemporânea – Guerra Junqueiro”, p. 2, cols. 3-6.
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Maria Amália Vaz de Carvalho e a poesia decadentista-simbolista 73 A cronista colocou também em dúvida a verossimilhança ou coerência interna das personagens rústicas criadas por Junqueiro. Segundo ela, Junqueiro não teria encontrado “nas províncias portuguesas” o amor que o montanhês de “In pulvis”, segunda parte do poema intitulado “Cadáver”, demonstrava pelo castanheiro, evocando, diante da lareira onde ardia lenha fornecida pela árvore morta, “todas as cenas do passado” em que ela tomara parte. Em “O cavador”, julgou que a revolta e a tristeza manifestadas pelo trabalhador pertenciam muito mais ao poeta do que à sua personagem: “Deu [Junqueiro] a sua consciência, a sua revolta, o seu sentimento das desigualdades sociais a rude filho da terra . . . ”22 . A propósito das queixas melancólicas do poema “Regresso ao lar”, Maria Amália Vaz de Carvalho concedeu, acacianamente, que “a vida é triste”, mas exortou o poeta a não “maldizê-la” porque era, com seu talento, “um dos seus raros eleitos”. A partir daí, sucederam-se em cascata generosos conselhos a Guerra Junqueiro, que devia desvencilhar-se da “ironia esterilizante”, identificar-se com a “Natureza”, tornar-se como ela “multiforme” e “multicor” e limitar-se ao “mistério das cousas, insondável e sagrado”, abdicando de procurar conhecer “o princípio e o fim dos fenômenos” à sua volta, com o que iria fatalmente conquistar “aquela suprema tranquilidade, aquela serena paz quase divina que caraterizam os poetas genuínos”. Além disso, devia o poeta evitar as “declarações jacobinas contra o Catolicismo”, as “notas em prosa” acrescentadas aos versos e outras humilhantes “transigências” e “doutrinas” consideradas pela cronista “mesquinhas, limitadas e convencionais”. Maria Vaz de Carvalho encerrou o seu longo artigo conclamando Guerra Junqueiro a deixar “grasnar [. . . ] a vaidade das rãs” e “uivar a inveja das hienas”, pois havia escrito “um belo e grande livro”. Apesar da relativa boa recepção por parte da imprensa, Os simples receberam críticas, algumas das quais contundentes. É, no entanto, razoável supor que podem ter sido motivadas por ressentimentos pessoais e/ou antagonismos políticos, haja vista a atuação política do autor. 22
Ibidem.
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Conclui-se, da breve análise dessas intervenções jornalísticas de Maria Amália Vaz de Carvalho, que essa cronista, muito prestigiada dos dois lados do Atlântico, esposava ideias conservadoras no âmbito da literatura, mantendo-se aferrada a um paradigma parnasiano e combatendo as iniciativas de jovens poetas que procuravam renovar a expressão poética portuguesa mediante a assimilação de novidades parisienses. Em suas restrições a Guerra Junqueiro, manifestou-se novamente seu repúdio ao decadentismo-simbolismo, mas se acrescentaram críticas à nova orientação político-social do poeta de A morte de Dom João (1874), que então se alinhava com o republicanismo. O conservadorismo político da escritora fazia pendant ao seu conservadorismo estético.
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Referências bibliográficas
AAVV, BIBLOS: enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa, vol. 5, Lisboa, Verbo, 1995. CARVALHO, Maria Amália Vaz de, “Revista literária. Poetas novos”, Jornal do Comércio, 15 de abril de 1891, p. 1, cols. 2-3. _______, “Revista literária. Poetas novos”, Jornal do Comércio, 18 de abril de 1891, p. 1, cols. 3-5. _______, “Revista literária. Poetas novos”, Jornal do Comércio, 24 de abril de 1891, p. 1, cols. 3-5. _______, “Os simples. A poesia contemporânea – Guerra Junqueiro”, Jornal do Comércio, 24 de julho de 1892, p. 2, cols. 3-6. LUCENA, Valentina de [pseudônimo de Maria Amália Vaz de Carvalho], “Crônica”, Jornal do Comércio, 29 de abril de 1890, p. 1. OLIVEIRA, Alberto de, “O livro de Aglaïs por Júlio Brandão”, Novidades, 28 de abril de 1892, p. 3, col. 4.
Parte III SENHORAS DO ALMANAQUE (PT)
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Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932)1 A–I Carla Francisco2 Isabel Lousada3 O Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932) é apresentado como complemento à comunicação que fazemos ao II Encontro Luso-Afro-Brasileiro: as mulheres e a imprensa periódica. Cumpre pois, e desde logo, anunciar tratar-se de um esboço de uma versão mais completa que pretendemos dar ao prelo oportunamente. Ainda assim considerámos relevante compilar os dados que ora oferecemos de modo a materializar, o mais documentadamente possível, aquela que apelidámos de “aproximação” ao conjunto da colaboração feminina compreendida no Almanaque e da qual daremos conta. 1
Publicamos desta feita o texto que foi distribuído, em formato brochura, às/aos participantes no II Encontro Luso-Afro-Brasileiro, por altura da comunicação apresentada por Isabel Lousada e Carla Francisco, no dia 17 de Julho de 2013. 2 CLEPUL 6. 3 UNL – FCSH – CESNova / CLEPUL 6.
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Carla Francisco e Isabel Lousada
De alguns anos a esta parte, o Grupo de Investigação 6 do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL) tem agregado inúmeros investigadores que, de diferentes proveniências, com objectivos diferenciados, e com disponibilidades e permanência igualmente variadas, procuraram dar corpo a um projecto embrião, centrado no Almanaque de Lembranças, que foi sendo desenhado pela sua coordenadora, Professora Doutora Vânia Chaves. Naturalmente que, até pela sua irregularidade no tocante às variadíssimas participações conseguidas ao longo do tempo e das tarefas entretanto identificadas, não seria viável distinguir [pari passu] a contribuição dada por cada colaborador(a)/investigador(a). Porém, uma menção especial merecem Claúdia Gomes Pereira, Evelin Guedes, Filipa Barata, Laura Areias, Maria José Madruga, Maria Manuel Rodrigues, Nathália Macedo e Solange Cardoso. Em cada uma destas investigadoras residiu a esperança de, a seu tempo, ver nascer o fruto de uma sementeira da qual foram semeadoras, cuidando de prover o seu harmonioso crescimento; “Os trabalhadores são poucos e a seara é muita”, sabemos, mas, paulatinamente, se somada à generosidade, a força do conjunto supera a incapacidade de um/a só. Assim despontam as primeiras letras deste elenco, permitindo identificar uma parcela de um vasto universo relacionado à autoria feminina em Portugal e no Brasil, mas também a outros países e continentes na senda de um conhecimento mais profundo, conhecendo o modo como se comunicam e se relacionam. Trabalhar em grupo, visando retirar da penumbra autoras que ficaram no esquecimento, quer no campo literário quer no campo social, sobretudo face a um cânone hoje em dia questionável, revela-se, em nosso entender, tarefa cientificamente justificada, pois importa acima de tudo renovar a investigação em áreas sistematicamente preteridas; regra geral por serem morosas e pouco reconhecidas. No respeitante à recolha sistemática e organização das figuras femininas podemos apurar um conjunto de nomes significativo, razão pela qual somente disponibilizamos parcialmente o elenco em epígrafe, ou seja, os nomes
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Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932)
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compreendidos entre as letras A e I, a fim de primar pelo rigor, conscientes, contudo, de que ainda nos resta muito trabalho de revisão como será ilustrado pela nossa apresentação. A autoria feminina foi negligenciada durante séculos e casos de sucesso são considerados episódicos. Na verdade, não estamos certas de que assim tenha sido, como parecem fazer crer as antologias, os dicionários e outras obras de carácter enciclopédico, organizados sobretudo focando épocas recuadas. Aspectos complexos e muitas vezes inter-relacionados serão o mote para trabalhos de pesquisa, naturalmente sugestionados pela interpelação passível de ser efectuada, partindo da aproximação ao elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças, agora tomado como corpus. Estudos de natureza bibliográfica revelam a montante um elevadíssimo número de textos que permanecem debaixo do signo do anonimato. A pergunta que importa fazer com alguma premência para nós, hoje, é também a de saber se anónimo é sinónimo de feminino, senão sempre, pelo menos amiúde. Assim, vemos legitimada a procura de destrinça de autoras dessa mancha “crítica” em que a censura e outras razões de ordem cultural aprisionou gente de bem a quem a única falta foi, quiçá, a de transgredir pelo punho, na escrita.
Carla Francisco Isabel Lousada
Lisboa, 6 de Julho de 2013
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Elenco das “Senhoras” A-I
Almanaque de Lembranças Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro (1851-1932)
SENHORAS DO ALMANAQUE
*** (Brasil) ** (Luanda) ** (Lisboa) ** (Beira)
A A. (B: Recife) A. A. A. (B: Océo-Bahia) A. A. C. A. (s/local) Abelina/Avelina Paulistana (B: São Paulo) Abigail (P: Resende) A Caçadora Pernambucana (B: Igarassu-Pernambuco) Acácia de Macedo (B: Curitiba-Paraná) A. Cândida (P: Viana do Castelo; s/l) Acolid Zedlab (B: Pará; São Luís-Maranhão) A Condessa Ironia (s/local) Ada Silveira Martins (B: São Paulo) Adalgisa (B: Santana do Livramento-RS) Adalgisa Castelo Branco (Lisbonense) (B: Bahia) Adalgisa Duque Estrada (B: Flamengo-Rio de Janeiro) Adela Nobre Martins (Cabo Verde: Ilha de Santiago) Adelaide Arnaud (B: Fortaleza) Adelaide (da) C./Costa (B: Bahia; Madre de Deus) Adelaide de Freitas (B: Rio Grande do Sul) Adelaide Furtado (B: Feitosa-Recife)
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Carla Francisco e Isabel Lousada
Adelaide e Helena do Nascimento (B: Joazeiro-Bahia) Adelaide Júlia/J. de Bettencourt e Freitas (P: Lisboa) Adelaide M. Folard (B: Rio Vermelho; Salvador-Bahia) Adelaide Maduro (B: Santos; São Paulo) Adelaide Margarida da Silva (B: Taperoá-Bahia) Adelaide Maria das Neves (Cabo Verde: Cidade da Praia) Adelaide Merine (B: São Paulo) Adelaide Moreira (s/local) Adelaide Pereira Rios (Espanha: Maiorca) Adelaide Prego Roby (Moçambique) Adelaide Sampaio (B: Bahia) Adelaide Sarmento (s/local) Adélia F. M. L. Dória (B: Salvador-Bahia) Adélia da Fonseca (s/local) Adélia Josefina/J. (de) Castro/C. Rabelo (B: Bahia; s/local) Adélia Josefina de Castro/C. Fonseca4 (B: Bahia) Adélia Nobre Martins (Cabo Verde: Ilha de Santiago) Adélia do Prado (B: Bahia) Adelina/Adélia5 [Amélia/A.] Lopes Vieira6 (B: Rio de Janeiro) Adelina Castro (B: Sergipe) Adelina Jordão (Cabo Verde: Cidade da Praia) Adelina de Menezes Ribeiro (B: Laranjeiras-Sergipe) Adelina Nobre Martins (Cabo Verde: Ilha de Santiago) Adelina Paulistana (B: São Paulo) Adelina da Piedade Lopes (s/local) Adelina de S. B. (B: Rio de Janeiro) Adozina Morais Soares (Transmontana) [P] A. E. (P: Beira Baixa) A. E. (de) Almeida (e) Brito (P: Fornos do Dão; Lajeosa) 4
Esta senhora apresenta o mesmo nome e localidade de outra escritora, com exceção do último apelido (Rabelo): será a mesma? 5 No Almanaque para 1877, esta senhora é designada no índice como Adelina Lopes Vieira, mas no seu texto mesmo assina: Adélia. 6 Irmã de Júlia Lopes de Almeida.
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Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932) A. E. Conceição M. (P: Madeira) A. E. das Neves/N. Carneiro/C. Sanches Rolão (Preto) (P: Castelo Branco-Quinta da Serra) Aedé (P: Lisboa) Afonsina C. de Azevedo (B: Sabará-Minas) Africana (Cabo Verde: Ilha Brava; s/local) Agar (B: Itaparica-Bahia) Agagra Sias (B: Lisboa) Águeda Pacheco (P: Lisboa) A. H. (?: Beira) Aime Elle (B: Sítio-Minas) Airga O’ Tnegras (Moçambique: Tete) Alba Calderon (s/local) Alba Célia (B: Rio de Janeiro) Alba Valdez (B: Ceará) Albertina da França Ribeiro (Brasil) Albertina de Carvalho (P: Évora) Albertina de Lucena (P: Lisboa; Salvaterra de Magos; Torres Vedras; Praia da Nazaré) Albertina de Melo (B: Olinda) Albertina dos Prazeres Mendes Ribeiro (P: Bodiosa-Viseu) Albertina Emília dos Santos (B: Encruzilhada-Pernambuco) Albertina Gonçalves Crespo (Brasil) Albertina Paraíso (P: São Martinho do Porto; Évora; Lisboa; s/local) Alcina Amélia de Freitas Costa de Araújo (P: Santo Tirso) Alcina Cordeiro Meira (B: Condeúba-Bahia) Alda (da firma Lara & Alda) (B: Mogi Mirim-SP) Alda (la dernière) (s/local) Alda Barata Ribeiro (B: Laranjeiras-Rio de Janeiro) Alda G. de Carvalho (B: Minas) Alda Rego (Moçambique: Mossuril-África Ocidental) Alda Sales (Cabo Verde: Ilha do Fogo) Alda Silva (P: Lisboa; s/local) Alda Sousa (Moçambique: Lourenço Marques)
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Carla Francisco e Isabel Lousada
Alexandrina Porto (B: Bahia) Alfacinha Desconhecida (P: Tavira) Algarvia [P] Alice (s/local) – pseudónimo de Filomena Serpa Alice (Augusta Maulaz) Moderno (P: Açores; Ponta Delgada; Alice Áurea Samico Saldanha (B: Recife) São Miguel; s/local) Alice das Dores Nunes (P: Lisboa) Alice e Almerida M. (B: Rio Vermelho-Bahia) Alice F. (B: Rio de Janeiro) Alice Lamonnier (Brasil) Alice Lima (Rainha das Flores) (s/local) Alice Moreira (B: Recife) Alice Pestana (Caiel) (s/local) Alice Pires (P: Lisboa) Alice Rebordão (Brasil) Alice Rosa Penalva (B: Bonfim da Feira-Bahia) Aliena Dinha (B: Acaraú-Ceará) Aline/Alina Judite Americana (B: À beira mar; Rio de Janeiro) Almerinda Ribeiro (B: Estância-Sergipe) Alfa e Antonieta (B: Rio Grande do Sul) Alzira (Amélia) Belchior (B: Pelotas) Alzira C. Ramos (B: Porto Alegre) Alzira Galvão (B: Recife) Alzira Gomes de Castro (B: Barra do Piraí) A. Maria Fernandes (P: Lisboa) Amália A. da Silva (B: Sapé de Ubá-Minas) Amália de Almeida (s/local) Amanda Vidigal/V. Batista/B. Guimarães/G. (B: Campos; São João da Barra; P. do Rio de Janeiro) Amaralina Álvares (B: Bahia) Amélia Adelaide M. B. (P: Lisboa; s/local) Amélia Augusta Quintino Furtado (P: Faro; Lisboa) Amélia Augusta Roiz (Brasil) Amélia Bacini (B: Pará)
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Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932) Amélia Braga (B: Niterói; s/local) Amélia Branca do Carmo (B: Praia do Roussel-Rio de Janeiro) Amélia C. S. e Silva Ramos (P: São Julião da Barra) Amélia Constatina Raposo (P: Açores: São Miguel) Amélia Coralina de Oliveira (s/local) Amélia de Vasconcellos (P: Faro) Amélia do Ó da Costa Ramos (P: Alcobaça; Lisboa) Amélia do Prado Pinto (B: Cidade do Bonfim-Bahia) Amélia Ernestina de Avelar (P: Açores: Ilha do Pico) Amélia F. (P: Algarve) Amélia Garcia, brasileira (B: Campos-P. do RJ.) Amélia Janny (P: Coimbra; B: Rio de Janeiro; s/local) Amélia Leiria (B: Bahia) Amélia Pinto Madeira (B: Recife) Amélia Rebelo (s/local) Amélia Rebocho (Freire) de Andrade/A. (e) Albuquerque (P: Aveiro) Amélia Rodrigues (B: Bahia) Amélia Werneck (B: Valença) Amiga do Progresso (B: Setúbal) Ana Albacora (P: Vale de Nenhures; s/local) Ana Albertina Ribeiro de Carvalho (P: Évora) Ana Alexandrina/A. Cavalcanti de Albuquerque (B: Pernambuco) Ana Almerinda Dantas (B: Mato Grosso; Rio de Contas-Bahia) Ana Amália de Sá (e Melo) (P: Vizela) Ana/A. Amélia/A. Benny (B: Pelotas) Ana Andorinha de Melo Gusmão (P: Vale da Coelha) Ana Angelina (P: São Cristovão de Nogueira) Ana Bernardina (P: Leomil) Ana Cândida (P: Carreço) Ana Carriça de Sousa Loureiro (P: Valongo) Ana Cascais (B: Porto Alegre) Ana Contente (B: Pará) Ana de Castro Osório (P: Setúbal; s/local)
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Ana do Patrocínio Ramos (P: Guarda) Ana Filomena de Araújo Lima (P: Riba d’Âncora) Ana H. C. de Assis (B: Iguatu) Ana Isabel Leite de Noronha e Campos (Goa: Nova Goa) Ana J. Teixeira (B: Salvador-Bahia) Anália A. da Silva (Fernandes) (B: Serena; Sapé de Ubá; Estação da Gloria-Minas) Anália Vieira/V. do Nascimento (B: Porto Alegre; Rio Grande do Sul) Ana Neta (B: Barra de S. João) Ana Nogueira Batista (B: Ceará) Ana R. de Carvalho (P: Évora) Ana Ribeiro (de Góis) de Bittencourt (B: Santana do Catu, Bahia) Ana Rosa Guimarães (B: Rio de Janeiro) Ana Sabina de Menezes (B: Laranjeiras-Sergipe) Ana Sousa Gentil de Carvalho (P: Miranda do Douro; Bragança; Lisboa) Ana Teófila Filgueiras Autrau (B: Bahia) Ana Ursulina de Andrade (B: Jacarepaguá) Andradina de Oliveira (Brasil) Andreza Lopes Dias Pinto (B: Cachoeira-Bahia) Angela Ant. de Sousa (B: Canavieiras-Bahia) Angélica Jatobá (B: Ilha do Medo-Bahia) Angélica Safo (B: Província de São Paulo) Angelina Vidal (P: Lisboa) Angelita/Angelina Furtado (B: Feitosa-Recife) Angerona (B: Bahia) Anica França (B: Uberaba) Anileda-Virgo-Conchas (B: São Paulo) Anise (Angola: Bié) Anita Neto (B: Porto Alegre) Anízia (Augusta/A.) (do) Amaral (Guimarães) (B: Recife-PE) Anita Neto (B: Porto Alegre) Ann Moore (s/local) – pseudónimo de Ana Castro Osório
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Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932) Anónima (B: Lençóis-Bahia) Anónima Alentejana (s/local) [P] Anónima Famalicense (E. M.) (s/local) [P] Anónima Setubalense (s/local) [P] Anosina C. Oto (B: Bahia) Antélia Pina (B: Carrapato-Bahia) Antónia Angelina de Figueiredo (B: Seriry-Sergipe) Antónia de Figueiredo (B: Aracaju) Antónia de Jesus e Silva (P: Vermoil) Antónia Fernandes de Melo (B: Aracaju) Antónia Ferreira de Lima (P: Madorninha-Senhora da Hora) Antónia Gertrudes/G. Pusich [P] Antónia Pereira Marinho (B: Canavieiras-Bahia) Antonieta de Campos (B: Porto Seguro-Bahia) Antonieta Fernandes (s/local) A. O. (Brasil) A. Palha (B: Timbaúba-PE) Apolónia (Souto) Vilar (B: Bonito-Pernambuco; Campina Grande-Paraíba) A. P. R. (P: Guarda) Arabela Martins de Campos (B: Tabocas-Ilhéus-Bahia) Ararigboia (B: São Vicente-Santos) Argimira/Argemira Mossart (B: Província de São Paulo) Argina & Marcia (B: Recife) Ariam (s/local) Aristotelina Serra (B: Belém-Pará) Arlinda A. de Moraes (B: Plataforma-Bahia) Armanda V. B. Guimarães (B: Campos-Rio de Janeiro) Armida/Arminda do Nascimento (P: Arraiolos; Viana do Alentejo) Armida F. Sousa/C. F. Sousa (P: Madeira: Câmara de Lobos) Arminda (s/local) Arminda (B: Itaqui-Rio Grande do Sul) Arminda Lopes Vieira (B: Pernambuco) Arnoldina (B: Belém-Pará)
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A. Rodrigues (P: Vila Real-Torgueda) A. Rosinda de S. (P: Porto) Atabalipa della Cerda (B: Curral do Bois-Bahia) Audaz Alagoana (B: Maceió) Augusta (P: Setúbal) Augusta da Cunha (P: Lisboa; s/local) Augusta Dias da Silva (P: Lisboa; s/local) Augusta Gabriela (P: Santa Combadão) Augusta Lima Fonseca (B: Recife) Augusta Pedrosa (P: Olival; s/local) Augusta V. B. (B: Busca Vida-Bahia) Áurea Pires (B: Minas) Aurélia Teles (Cabo Verde: Ilha de Santiago) Aurora (s/local) Aurora Campos Sales (B: Rio de Janeiro) Aurora da Rosa Campos (B: Rio de Janeiro) Aurora Soares (P: Lisboa) Avelina Paulistana (B: São Paulo) Aventurina (do Club Diamantino) (B: Santo Inácio-Bahia) Aziyadé (s/local) B Beata do Recife (B: Derby-PE) Beatriz Amélia (B: Pará) Beatriz Berta Pessoa (B: Recife-PE) Beatriz Cândida de Azevedo (B: Belém-Pará) Belarmina Pimentel (B: Pilar-Alagoas) Belmira de Andrade (P: Açores: São Jorge) Belmira Vilarim (B: Recife) Bernardette (B: Canavieiras-Bahia) Bernardina Neves (Angola: Luanda) Bernardina Oliveira e Silva (B: Rio de Janeiro) Bernardina R. A. da Silva (B: Parál) Berta Adelaide Bahia Barata (P: Porto) www.clepul.eu
Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932) Berta Isménia de Freitas (B: Piauí) Berta Salgado (P: Lisboa) Bianor Fernandes C. de Oliveira (B: Martins-Rio Grande do Norte) Bona Cheirona (P: Porto) Bonina (B: Recife) Branca de Gonta Colaço (P: Lisboa) Branca de Jesus (B: Jaguariaíva-Paraná) Branca de Nancy (B: Ceará) Branca e Virgínia (Portugal) Branca Maria Bettencourt e Silva (B: Pelotas) Brasília Rosa Pitanga (B: Rio Vermelho-Bahia) Brasilina Adelaide Guedes (B: Rio de Janeiro) Butterfly (P: Lisboa) C C. A. (B: Pernambuco) Cabralina Augusta de Menezes (B: Pelotas) Caçadora Baiana (B: Bahia; s/local) Caçadora Brasileira (B: Rio de Janeiro; s/local) Caçadora Cearense (B: Fortaleza) Caçadora das Caçadoras (B: Rio de Janeiro) Caçadora Fluminense (B: Corte [Rio de Janeiro]) Caçadora Jaguaribana (B: Jaguaribe Mirim-Ceará) Caçadora Lusitana (Brasil) Caçadora Paraense (B: Belém-Pará) Caçadora Paraibana (B: Porto Alegre) Caetana A. (P: Faro) Caetana Luísa Correia de Sá (s/local) Caiel (s/local) – pseudónimo de Alice Pestana Caloira Aracajuana (B: Sergipe) Caloura (B: Recife) Camila Leão (P: Porto) Cândida Aires de Magalhães (s/local) www.lusosofia.net
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Cândida de Menezes Ribeiro (B: Laranjeiras-Sergipe) Cândida Fortes (B: Porto Alegre; Cachoeira) Cândida Maria (s/local) Cândida Maria de Oliveira (P: Cucujães-Oliveira de Azeméis) Cândida Pinto (B: Caxambu) Capeta (Brasil) Caprichosa (P: Algarve) Carlinda Pinheiro (B: Ceará) Carlota (P: Vila Nova de Gaia) Carlota Lopes (Cabo Verde: Praia) Carmelitana de Arantes (B: Passos-MG; Mococa-São Paulo) Carmen Silva (B: Ventura; Morro do Chapéu-Bahia; Olivença – Ilhéus-Bahia) Carmen Sylva (Rainha da Roménia) (s/local) Carmen Toboso (B: Uruguaiana-RS) Carmina F. Nobre Pereira (P: Coruche) Carmosina Machado (B: Belém-Pará) Carolina A. de A. F. B. B (??: F. S.-Beira) Carolina Amélia de Freitas e Sá (P: Coimbra) Carolina Bremontier (B: Morro do Chapéu-Bahia) Carolina Coronado (s/local) Carolina de Almeida (B: Rio de Janeiro; Pilares) Carolina G. de Almeida (B: Pilares-Rio de Janeiro) Carolina Monteiro (B: Queluz-MG) Carolina Ramos (B: Canavieiras) Caroline de Burreau (s/local) Cassiopeia (B: Ouro Preto) Casta Susana (B: Bom Conselho; Rio de Janeiro) Catarina/C. Máxima/M. (de) Figueiredo/F. (Feio/F.) (Abreu/A. Castelo/C. Branco/B.) (P: Guiães; Vila Real; s/local) C. C. (B: Jaguar-Nambi-Ceará) C. D. (P: Açores: Terceira) Cecília de Almeida (P: Lisboa) Cecília Maria C. de A. O. (B: Bahia) Celcedina de A. G. (Brasil)
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Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932) Celeste Aida (B: Recife) Celeste Salgado (P: Lisboa) Celicina Cândida/M. de Matos (B: Ba -Plataforma7 ) Celina Brasil (B: Paus de Ferro-Rio Grande do Norte) C. F. (P: Vila Real) C. H. (P: Taboaço) Chica Saloia (T.E.) (P: Mafra) Chiquinha Lima (B: Fazenda de São José) Chiquita Merino (B: Paranaguá-Paraná) Cinha Rabelo (B: Santarém-Pará) Clara Fontes de Melo (B: Amargosa) Cláudia de Campos (P: Lisboa) Clementina da Silva Torres (s/local) Clizoé Lima (s/local) Clorinda de Macedo (P: Porto) Clotilde A. de Araújo (B: Desterro-Santa Catarina) Clotilde Dias Carreira (Angola: Benguela; Chindumbo) Clotilde Maria Chaves Belém (B: Macaé) Clotilde Rodrigues (P: Coimbra) Clube Feminino (B: Rio de Janeiro) C. M. (s/local)8 C. Máxima (P: Porto)9 Colline (s/local) Concepción Gimeno de Flaquer (Espanha: Barcelona) Condessa de Blessington (s/local) Condessa de Resende (s/local) Condessa Diana (s/local) Constança da S. Craveiro Ribeiro (P: Tomar) Cora Lina (B: Rio de Janeiro) Cora Pires Claro Ferreira (P: Lisboa) Cordélia Silva (B: s/local/Recife/Garanhuns-PE) Corília Odoveri (P: Lisboa) 7 8 9
Provavelmente Bairro de Salvador (Bahia). Talvez se trate de Catarina Máxima de Figueiredo. Talvez se trate de Catarina Máxima de Figueiredo.
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Cotinha Novais (B: Belém-PA) Couchette (B: São Sepé-RS) Cremilde da Cunha (s/local) Crisálida (P: Porto) Crisântemo (P: Açores: Angra do Heroísmo) Cristina da Suécia (s/local) Cristina dos Anjos (P: Lisboa) Cristina M. de Assunção/A. Brenne Adrião (P: Queluz; s/local) Cristina Rocha (P: Setúbal) C. R. Vidal (Brasil) D Dália Branca (B: Timbó-Bahia) Dalila (B: Rio de Janeiro) Dalila de Oliveira (B: Bahia) D. C. (B: Dr. Astolfo) D. C. (P: Açores: Terceira) Dea Flora de Lima (B: Bahia) Dedamia Levitan (B: Margens do Xingu-Pará) Delminda Silveira de Sousa (B: Desterro, Santa Catarina) Delmira R. dos Vales (B: Cameta-Pará) Deodata Fernandes (s/local) D. E. O. de Castro (B: Minas Gerais) Deolinda Aurora Celeste (B: Maceió) Deolinda Cardoso (B: Dr. Astolfo) Deolinda Correia de Castro (B: Santos) Deolinda Simões (B: Vila da Amargosa) Desconhecida (B: Rio [de Janeiro]) Diamantina da Silva (B: Rio Grande do Sul) Diana (B: Pelotas) Diana (B: Sergipe) Diana (P: Évora) Dília (P: Margens do Vouga) Dinas Neiva (B: Regeneração-Piauí) www.clepul.eu
Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932) Dinora & Mauritz (P: Évora) Dinorá/Dinnah Farias Lourenço (B: Santana do Acaraú) Dionísia (das Flores) Morais (B: Pará-Cametá) Divonne et Edith (P: Évora) D. M. J. C. F. (Alentejana Portalegrense) [P] Dolores Casmotte (B: Rio de Janeiro) Dolores Lima (Bellatriz) (B: Minas) Dolores Poggio, Atriz (B: Barra Mansa-Rio de Janeiro; MogiGuaçu-São Paulo) Domitila de Carvalho (P: São Pedro de Muel; Coimbra) Dona *** (Cabo Verde: São Vicente) Donatila Meira Mosinho (s/local) Dora B. Bandeira (B: Jaguarão) Dora Lina (B: Acaraú-Ceará) Duas Amigas (B: Taperoá) Duas Irmãs (B: Rio de Janeiro) Duas Primas (B: Recife) Duda Moleque (B: Recife) Dueña (s/local) Dulce de Miranda Cordilha (s/local) Dulce Peixoto de Albuquerque (B: Santa Teresa-Rio de Janeiro) Duquesa Stewart (s/local) Durvalina Isaura Monteiro (B: Nazaré-Pará) E E. A. (s/local) Earne, a Provinciana (B: Sergipe) E. B. (África) E. C. (??: Beira) Edardna e Somar (P: Açores: Angra do Heroísmo) Edialêda de Avlis (B: Bahia) Edilha Tude Mancenos (B: Bahia) Edite (B: Aracati-Ceará) www.lusosofia.net
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Edite Fluminense (B: Fortaleza) Edite P. M. Cardoso (Moçambique: Lourenço Marques) Edul de Andrade (B: Bicas-Minas) Edwiges R. de Sá Pereira (B: Barreiros; Taquaretinga; Caruaru-PE) E. Júlia de Gusmão (s/local) Eliora di Corovi (P: Lisboa) Elisa Albertina da Conceição Cordeiro (P: Tábua) Elisa Alberto (Brasil) Elisa Anália (B: Estância-Sergipe) Elisa Augusta P. Curado (P: Leiria) Elisa Basto (P: Lisboa; s/local) Elisa Caodur (P: Leiria; s/local) Elisa C. B. da Costa (B: Catu-Bahia) Elisa D. (B: Minas) Elisa da Conceição F. Silva (P: Setúbal; s/local) Elisa Digum (B: Bahia) Elisa F. Matos Grintenn (B: Aracaju-Sergipe) Elisa L. (P: Porto) Elisa M. Matos (B: Traipu-Alagoas) Elisa Morin (s/local) Elisa Radouc (s/local) Elisa Rosa Monteiro Gomes (B: Belém-Pará) Ela (B: Cametá-Pará) Elva Serrão (P: Arraiolos; Figueira da Foz) Elvira Augusta Bentes (P: Benavente) Elvira Barroso (P: Benavente) Elvira Borges (B: Periperi-Bahia) Elvira C. da Silva (B: Rio de Janeiro) Elvira de Cimas Rosa (B: Rio Grande do Sul) Elvira O. (P: Porto) Elvira Sofia de Matos (s/local) Emafidelis Alcanforado (B: Bahia) Emanuela (s/local) Emerenciana de Melo (B: Jacobina-Bahia) Emília Adelaide da Rocha (B: Ouro Preto)
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Emília Adelaide Pereira Reis/Rodrigues (Espanha: Maiorca)10 Emília Adozinda Morão (P: Figueira de Castelo Rodrigo) Emília A. F. Nabuco (Brasil) Emília A. M. Stolzemback (B: Olinda-PE) Emília Augusta de Castilho [P] Emília B. de Miranda (B: [Rio de Janeiro]) Emília Borges de Miranda (B: Rio de Janeiro) Emília C.C.B. (B: Rio de Janeiro) Emilia da Conceição/C. Vieira/V. Soares (P: Constância) Emília da Natividade Ferreira (P: Viseu-Fragosela) Emília de Abreu Navarro (B: Bagé-RS) Emília do Bonfim (P: Porto) Emília dos Mártires Aguiar (Cabo Verde: Ilha do Maio) Emília e Eulalia (B: Santana de Sapucaí) Emília Ernestina de Avelar (P: Madeira) Emília Golzio de Lima (B: Feitosa-Recife) Emília Julia de Sousa Cabral (P: Coimbra) Emília M. de Arantes (B: São Paulo) Emília M. Negrão (B: Taperoá-Bahia) Emiliana R. de Figueiredo Moraes (B: Itajubá – MG) Emília Serra (P: Açores: Ponta Delgada) Emy Cora (B: Alagoinhas-Bahia) Enedina de Paiva Leitão (B: Itacaranha-Bahia) E. O. (de) Castro (Do Bloco dos Geralistas) (B: Minas) Ersília Darynoff (B: Bahia) Ersília Dougnofi (B: Minas do Rio de Contas) Ermelinda (B: Morrinhos) Ermelinda Batista de Silva (B: Rio de Janeiro) Ermelinda Cruz (P: Ílhavo) Ermelinda Prata (P: Ílhavo) Ermelinda Santos (P: Lisboa) 10 No Almanaque de 1877, esta senhora é designada no índice como Emília Adelaide Pereira Reis, porém no interior do mesmo assina como Emília Adelaide Pereira Rodrigues. Esta variação não acontece na edição seguinte, o apelido “Reis” é mantido tanto no índice como no interior do almanaque.
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Ernestina de Freitas Amaral (B: São João do Príncipe-Rio de Janeiro) Ernestina (de Oliveira) Corte Real (África do Sul: Cidade do Cabo; s/local) Ernestina Ribeiro de Carvalho (B: Caravelas-Bahia) E. Saint Brisson (Brasil) Esmeralda (s/local) Esmeralda Maria Carteada (B: São Paulo) Esmeraldina Correia Dutra (B: Campinas) Esperança (s/local) Ester de Faria (B: Minas) Ester de Lacerda e Freire (B: Palmares-PE) Ester Eufrásia de Assis (B: Catende-PE) Ester Veloso de Castro (B: Bahia) Estrela Azancoth (B: Pará) Estrela do Mar (s/local) Etelvina Almeida (B: Rio de Janeiro) Etelvina C. Correia (Brasil) Etelvina de Araújo Borges (B: Estância) Etelvina de Assunção Cordeiro Abranches (P: Estremoz) Etelvina Ferreira (B: Bahia) Eu. . . (P: Açores: Riba de Âncora) Eudóxia Amanda Maciel (B: Valença) Eufémia Rosa Martins (s/local) Eufrásia de Almeida Rijo (P: Évora; s/local) Eufrásia R. da Cunha (B: Corte [Rio de Janeiro]) Eufrosina M. de Matos (B: Plataforma-Bahia) Eufrosina Mendes Martins (B: Recife) Eulália Águeda Nunes (P: Madeira: São João Funchal) Eulália de Menezes Castro (Brasil) Eulália de Moniz Castro (Brasil) Eulália Duarte (B: Goianinha-Rio Grande do Norte) Eulália Martins (B: Pelotas) Eulina Grada (B: Recife) Euríbia Palmira de Melo (B: Rio de Janeiro)
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Eutália Freire (B: Bahia) Eva de Oliveira Paiva (B: Ceará) F Fausta Irene Lopes de Paula (P: Faro) F. B. A. (B: Sul) F. B. C. (B: Rio de Janeiro) F. Clotilde (s/local) F. Correntina (B: Ouro Preto-Minas Gerais) Febrónia Neves (Angola: Luanda) Felícia (P: Algarve) Felicidade Mascarenhas (P: Lisboa) Felismina M. Negrão (B: Taperoá-Bahia) Fernanda de Castro (s/local) Fernandina Drummond (B: Itabira-MG) Filenila Junqueira (B: Fortaleza-Ceará) Flor da Murta (P: Lisboa) Flor de Lis (B: Rio de Janeiro) Flor de Ouro (B: Bahia) Flor Silvestre (P: Torres Vedras) Flora Barreiros (P: Lisboa) Flora Castelo Branco (P: São Miguel de Seide) Flora de Almeida (B: Itapagipe-Bahia; São Salvador) Florência de Morais (Índia: Goa) Florentina Águeda de Jesus (B: Gravatá-Bahia) Florimena Montenegro (B: Igarassu-Pernambuco) Florinda M. das Neves (B: Rio Grande do Sul) F. Melo (B: Maruim-Sergipe) Francisca A. C. de Matos (P: Ílhavo) Francisca Carolina/C. Garcia Redondo – Brasileira [B] Francisca da Cunha Pereira Pegas (B: Santa Catarina) Francisca de Carvalho (s/local) Francisca de Paula Possolo da Costa (s/local) Francisca de Sousa (B: Rio de Janeiro) www.lusosofia.net
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Francisca Dias de Bem (B: Porto Alegre) Francisca dos Anjos (B: Paraíba) Francisca Isidora (B: Vitória-Recife) Francisca J. de Brito Inglês (B: Manaus-Amazonas) Francisca M. de Sousa (P: Ílhavo) Fraya (s/local) F. S. (s/local) G Gabalda (B: Manaus) Gaud (Africana) (P: Lisboa) G. C. (P: Lisboa) G. C. F. N. (P: Faro) G. C. Leite (s/local) Genisse (B: Amazonas-Rio Tarauacá; Santa Catarina; RussasCeará) Genoveva Emília/E. (da) Conceição/C. Cunhal (P: Seia) Georges Sand (s/local) Georgina (de) Carvalho (P: s/local; Lisboa) Georgina C. de Almeida (B: Rio de Janeiro) Geornina de Azevedo Monteiro (B: São Luís do Maranhão) Georgina de Maupin, brasileira (B: Bahia) Gerassina Cordeiro Meira (B: Condeúba-Bahia) Géssia Vaz de Barros (B: Jaú-São Paulo) Gina de Ouvinho (P: Briteiros) Graziela (B: Olinda) Guilhermina Augusta (P: Casal das Fragas de São Simão) Guilhermina Batista (B: Campinas) Guilhermina da Costa/de Castro e Silva (P: Foz do Dão, Coimbra) Guilhermina (de J.) Maria/M. da Costa e Silva (P: Foz Dão) Guilhermina J. M. Costa e Silva Pinto (P: Figueira da Foz)11 11
Guilhermina (de J. M.) da Costa e Silva e Guilhermina J. M. Costa e Silva Pinto serão a mesma pessoa.
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Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932) Guiomar Augusta da Silva (B: Sapé-Minas Gerais) Guiomar/G. Delfina/D. (de) Noronha/N. Torresão/T. (P: Lisboa; Setúbal; Cascais, Paris, s/local) H H. (P: Lisboa; s/local) H. A. da C. (B: Minas) Helena G. L. Furtado (B: Alcobaça) Helena Luísa da Fonseca (B: Santos) Helena S. Lima (B: Belém-Pará) Heloísa (B: Goiás) Henriqueta (s/local) Henriqueta/H., Condessa/C. de Oyenhausen/O. e Almeida/A. (Dama da Cruz Estrelada) [P] Henriqueta Amália de Castro (s/local) Henriqueta de Castro Mendes (B: Recife) Henriqueta da Cunha Galvão (B: Porto Alegre) Henriqueta Elisa (P: Lodeiro; s/local) Henriqueta Ferreira (s/local) Henriqueta Freire (B: Água Preta-PE; Urucará-Amazonas) Henriqueta Júlia (s/local) Henriqueta Martins (B: Itajaí-Santa Catarina) Henriqueta Pinto (B: Rio de Janeiro) Henriqueta Queiroz (B: Umbuzeiro-Paraíba) Hermenegilda de Lacerda (P: Açores: Ilha do Faial) Hermengarda (B: R. C. Bahia) Hermetolina Vaz Verde (P: Celas-Coimbra) Hermínia Aurora Coelho (B: Paranaguá) Hermínia Esmeraldina Goularte (B: Cantagalo) Hermínia Sá Paul (P: Azeitão) Hernina Neves (B: Rio de Janeiro) Hero (s/local) Heron Silpes (B: Paraíba do Norte) Herondina da Silva Pessoa (B: Paraíba do Norte) www.lusosofia.net
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Herundina Celeste (Moçambique: Lourenço Marques) Hersia Junior (B: Jundiaí) Hibérnia (P: Guimarães) Hilda (P: Lisboa; s/local) Hilda Gottschalck (s/local) H. L. Cardoso (Guiné Portuguesa: Geba) Honorina C. Galvão Rocha (B: Conceição do Almeida – Bahia) Hortência de Oliveira (B: São Paulo) Hortência/H. Paulina de Lima Barbosa (P: Ponte da Barca) H. Pinto (B: Bahia) Humilde Camponesa (Cabo Verde; P: Lisboa) I Ibrantina Cardona (B: Campinas – São Paulo; P: Lisboa) Ida Loff da Fonseca (Cabo Verde: Ilha de São Tiago – Tarrafal) Idalina Monteiro, a Portuguesa (B: Itabuna-BA) Inácia Filipa Martins Ramalho (P: Reguengos – Monte do Paço) Inácia de Melo (P: Minho) Inês Sabina Pinho Maia (B: Rio de Janeiro) Inês Sabino (B: Rio de Janeiro; s/local) Ilda (Moçambique: Lourenço Marques) Ilda da Silveira (P: Lisboa) Ilma Rio (B: Fortaleza-Ceará) Iracema e Pantilla (B: Porto Madeira-PE) Irene C. Vieira (s/local) Irene Lopes Calapez (s/local) Irene (Mimoso Nunes) de Sousa (Moçambique: Lourenço Marques) Iria Bandeira (P: Figueira da Foz) Iria Laura A. L. Serpa (P: Lisboa/sem local) Irmã Julieta (B: Rio de Janeiro) Isabel a Serrana (P: Serra da Estrela) Isabel de Almeida (P: Lisboa) Isabel de Castro e Andrade (s/local) www.clepul.eu
Elenco das “Senhoras” do Almanaque de Lembranças (1851-1932) Isabel dos Anjos (Teles) Grilo (Angola: Humpata; P: Lisboa) Isabel G. Mousinho de Albuquerque Isabel M. Medeiros (B: Bahia) Isabel Ratinho (P: Reguengos) Isabel Trindade (B: Barra-Bahia) Isabel Vieira de Serpa (B: São Paulo) Isabela Aura de Albuquerque (B: Livramento-Piauí) Isabelinha (B: Dois Córregos-São Paulo; Barra-Bahia) Isaltina Cruz (B: Bahia) Isaura Sesimbra (B: Niterói) Isaura M. Nunes da Silva (Moçambique: Lourenço Marques) Isaura Sousa (P: Figueira da Foz; Moçambique: Lourenço Marques) Isménia Fonseca (P: Porto)
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Uma voz precursora do feminismo na imprensa: Alice Moderno Adriana Mello Guimarães1 adrimellog@gmail.com
Introdução A uniformização do território português não exclui as profundas assimetrias entre as regiões que integram a nação. Durante muito tempo as ilhas (Açores e Madeira) permaneceram isoladas, quase esquecidas. No caso dos Açores, no século XIX, esse sentimento de solidão insular era a nota dominante, sendo a ruralidade uma das características mais marcantes no arquipélago. A tal ponto que Antero de Quental, em 1891, em carta dirigida a Gustavo Barbosa, afirmava: “Parece-me que 1
Doutoranda em Literatura na Universidade de Évora. Assistente Convidada da Escola Superior de Educação de Portalegre. Licenciada em Comunicação Social pela Universidade Nova de Lisboa e Mestre em Estudos Lusófonos pela Universidade de Évora; participante do grupo Filosofia Brasileira e Portuguesa junto ao Centro de Filosofia Brasileira do Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL).
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Adriana Mello Guimarães
estou fora de Portugal, tão pouco se fala dos negócios do reino que lá tanto preocupam. Aqui fala-se em laranja, ananases, batata-doce”2 . No entanto, apesar desse interiorismo, desse sentimento de solidão atlântica, o espírito de mudança também estava presente nos Açores oitocentista e nada ilustra melhor a moderna mentalidade que se impunha do que as revistas e jornais que circulavam pela sociedade e que a caracterizavam como um resultado da ação humana mais transparente e mais consciente de si. Algumas revistas incentivavam os seus leitores a refletir sobre o mundo circundante. Mas, nesse contexto oitocentista, marcado pela exigência de uma consciência social, cabe a interrogação: qual o papel da mulher no jornalismo? Muitas já publicavam. Mas, não eram poucas as mulheres que optavam pela invisibilidade e lançavam mão de pseudónimos. Outras eram obrigadas a fazer uso de valores masculinos para ampliar seu campo de ação, o que se configura como uma “violência suave, insensível, invisível às próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento”3 . É justamente neste cenário que encontramos um espírito independente e pioneiro: Alice Moderno, que nasceu a 11 de agosto de 1867. Os seus pais, Celina Pereira de Mello Maulaz e João Rodrigues Moderno, eram filhos de imigrantes no Brasil (interior do Rio de Janeiro), onde nasceram e se casaram. A ascendência paterna localiza-se na ilha da Madeira, e o avô materno, Auguste François Joseph Maulaz, era de origem francesa. Nascida em Paris, ainda criança acompanhou a sua família na mudança para os Açores, onde sempre viveu até que faleceu em 20 de fevereiro de 1946, em Ponta Delgada.
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Antero de Quental, Cartas II 1881-1891, org. Ana Maria Almeida Martins, Lisboa, Editorial Comunicação, 1989, p. 1055. 3 Pierre Bourdieu, A dominação masculina, Rio de Janeiro, Editora Bertrand, 2002, p. 6.
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Uma voz pública no meio do Atlântico Considerando-se o papel da mulher no século XIX, circunscrita ao espaço familiar, Alice ultrapassou todos esses limites, sempre com a mesma finalidade: mudar o conceito do feminino tanto do ponto de vista mental quanto emocional. A sua vida nos dá conta de alguns aspetos curiosos: excêntrica, assumiu-se, como uma mulher independente, desafiando os rígidos costumes da época e matriculou-se no Liceu de Ponta Delgada, sendo a primeira mulher a frequentar aquele estabelecimento de ensino. Em 1887, com apenas vinte anos, fica sozinha em São Miguel (a família muda-se para o interior da ilha) e começa a sustentar-se a si mesma. Logo a seguir, em novembro de 1888, funda e dirige o jornal O recreio das salas, que tem como ambição instruir, moralizar e recrear a sociedade açoriana. Passado alguns anos, em 1893, a sua família direta parte para Nova Iorque e Alice continua a viver em Ponta Delgada, como diretora do Diário de anúncios. Com uma personalidade forte, sempre ligada às letras, Alice Moderno vivenciou um momento histórico agitado (com a passagem da monarquia para a república, em 1910), e atuou como jornalista na altura em que o jornalismo português se estruturou enquanto profissão. De facto, segundo José Tengarrinha, “só entre 1865 e 1885 é que se estabeleceram em Portugal as condições propícias à transformação industrial da imprensa”4 , o que deu ênfase à informação como preocupação e objetivo. Ou seja, Alice acompanhou o abandono da escrita literária para dar lugar à escrita noticiosa dos acontecimentos da vida quotidiana. Cabe, então, a questão: existia alguma singularidade no jornalismo açoriano oitocentista? Na opinião de Vamberto Freitas, hoje em dia o José Tengarrinha, A história da imprensa periódica portuguesa, 2.a ed., Lisboa, Caminho, 1989, p. 127. 4
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jornalismo que se pratica no arquipélago está limitado por um cerco físico: “tudo toma uma forma concreta e intensamente vivida. O elogio ou a ofensa nunca são meramente intelectuais, são sempre intensamente pessoais e interiorizados”5 . Ora, num meio adverso como este, a voz pública de Alice, nas suas várias publicações, deveria desafiar toda a tradição intelectual da sua altura. Além de jornalista, Alice Moderno foi poeta, professora, comerciante, agente de seguros e mulher de negócios. Avançou como ativista, nos Açores, na organização de mulheres da 1.a República, participou na Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, na Associação de Propaganda Feminista e na Associação Feminina de Propaganda Democrática, sendo de assinalar que, em 1913, a Liga Republicana das Mulheres organizou uma festa em honra de Alice Moderno. Ou seja, foi uma precursora do feminismo e, enquanto escritora, as suas melhores publicações estão no jornalismo que praticou. Além de colaborar com a imprensa local açoriana (como com o Diário dos Açores e a Revista pedagógica), foi a primeira mulher a dirigir um jornal: o Diário de anúncios (1892-1893) e foi diretora e fundadora de dois importantes jornais açorianos: O recreio das salas (publicação mensal, noticiosa, científica, histórica, literária, biográfica, bibliográfica e recreativa) e A folha (jornal literário, noticioso e comercial). Ou seja, Alice atuou de forma determinante nos chamados jornais locais, cuja razão de ser é informar os leitores do que se passa à sua volta: “dar conta das alegrias e tristezas de cada família, das mortes, dos nascimentos e casamentos. Fornecer um meio de expressão, não só às personalidades políticas, [. . . ] mas também à infinidade de organismos que tecem a trama da vida”6 . Alice Moderno também publicou na imprensa nacional: foi uma das poucas mulheres que conseguiu escrever para a Revista de Portugal 5
Vamberto Freitas, Jornalismo e cidadania: dos Açores à Califórnia, Lisboa, Edições Salamandra, 2001, p. 70. 6 Adriano Duarte Rodrigues, Eduarda Dionísio e Helena Neves, Os media escritos, Lisboa, A Regra do Jogo Edições, 1983, p. 43.
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(1889 a 1892), fundada e dirigida por Eça de Queirós, onde publicou na rubrica “Cancioneiro da Revista” uma poesia intitulada “Relíquia”, que fala sobre o valor de um ramo de flores. Nesse poema, o sentimento e as sensações merecem destaque e afastam a autora da razão e da racionalidade. Miranda de Andrade7 , ao analisar a Revista de Portugal, chama a atenção para a contribuição pouco valiosa de Alice Moderno. Ora, a questão que se põe é: qual seria o interesse da Revista de Portugal em difundir este género de poesia? Julgamos que poderia ser uma aposta do diretor, Eça de Queirós, talvez preocupado em dar voz e a incentivar mulheres instruídas a colaborarem com a revista. Afinal, na altura da publicação da Revista de Portugal, a própria vida da autora já merecia destaque pela sua participação na imprensa e como diretora de um jornal. A autora colaborou também com a imprensa internacional, nomeadamente em alguns Almanaques, sendo de destacar o Almanaque de lembranças luso-brasileiro (1851-1932), que funcionou como um importante espaço de diálogo entre portugueses e brasileiros. A participação de Alice Moderno no Almanaque de lembranças luso-brasileiro tem início em 1885 (com a publicação do poema “A ti!”) e mantém-se até 1908, consistindo sempre na publicação de poesias. Verifica-se que o elemento comum a estes poemas é o de serem marcados pela sensibilidade, as questões sociais e políticas não tiveram grande expressão. Apesar de ser republicana, nesse Almanaque, em 1886, Alice dedica um poema ao Imperador do Brasil enaltecendo não a monarquia, mas a libertação dos escravos. No periódico semanal que era proprietária, A folha (1902-1917), de Ponta Delgada, Alice atua como gerente, redatora e diretora. Os seus escritos n’A folha refletem o movimento de ampliação dos direitos civis e políticos da mulher na sociedade moderna. A partir das leituras do periódico (que sobrevive durante 15 anos) é possível perceber que 7
Miranda Andrade, “Eça de Queirós e a Revista de Portugal”, in separata de Ocidente, vol. LXIV, Lisboa, Edição de Álvaro Pinto, 1953, p. 60.
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a proposta de Alice Moderno esteve para além do direcionamento exclusivo para as mulheres da época. A jornalista, através das páginas de seu jornal, procurava sempre mencionar uma sugestão de mudança de costumes, de pensamento e de atitudes para a sociedade e tentava contribuir para a valorização da instrução. Entre os vários exemplos encontrados, destacamos um pequeno texto que está presente na edição de 8 de dezembro de 1907, na página 2: “o feminismo que apela para as qualidades de iniciativa e de dedicação das mulheres, [. . . ] que enriquece o seu coração e o seu espírito, que aumenta nelas o sentimento dos seus deveres, dos seus direitos, não é só as mulheres que aproveitam, mas a nação inteira”. Ou seja, é de assinalar um percurso que procura a modernidade, a mudança de costumes, através da imprensa. Além disso, podemos, sem dúvida, incluir Alice Moderno no grupo de mulheres oitocentistas que fazem das letras um meio para garantir a sua subsistência e não uma mera ocupação. A este propósito é de assinalar o artigo assinado por Maria Etelvina de Sousa publicado no jornal A folha, de 1 de abril de 1917, intitulado “Industrias emininas”, onde figura um mapa com o nome de todas as mulheres que trabalham em Ponta Delgada. Etelvina chega à conclusão que há poucas mulheres a laborar no comércio e que a maior parte são viúvas, sendo Alice Moderno a única exceção pois dirige um escritório e além disso é representante de uma importante firma comercial americana, sendo a maior importadora de artefactos americanos de todo o arquipélago açoriano e uma das maiores exportadoras de produtos locais para a América do Norte. A sua obra literária abrange vários géneros – poesias, crónicas, contos, romance, ensaios, textos teatrais e traduções. Em sua longa carreira de profissional das letras, Alice Moderno usou pseudónimos e criptónimos: Encília, Gyp, Da Janela do Levante e Dominó Preto. Alguns dos seus versos foram traduzidos em alemão, francês, inglês, italiano e sueco. Considerada por Sampaio Bruno como “escritora de mérito”8 , 8
Sampaio Bruno, Portuenses ilustres, t. I, Livraria Magalhães e Moniz, 1907, p.
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as suas poesias se encontram principalmente em antologias como Poetisas portuguesas, de Nuno Catarino Cardoso (org.), e As melhores páginas da literatura feminina: poesia, de Albino Forjaz de Sampaio (org.). Independentemente da qualidade da sua obra literária, o que devemos apreciar é a autora e as suas reações e atitudes revolucionárias mantidas apesar de todas as circunstâncias desfavoráveis. No entanto, cabe assinalar, que ao longo da sua vida Alice Moderno ganhou vários prémios. Em 1907 recebeu, num concurso da revista Alma feminina, um tinteiro de cristal e prata; num certame organizado pelo Jornal da mulher, em 1916, obteve o primeiro prémio. Em 1924, nos Jogos Florais de Angra de Heroísmo também lhe foi atribuído um prémio; assim como em 1924, na Figueira da Foz. Personalidade múltipla, a sua ousadia marcou também a sua vida amorosa. De facto, um século depois de sua publicação na Revista de Portugal, Alice Moderno voltou a despertar interesse. Como resultado, Maria da Conceição Vilhena biografou por duas vezes a jornalista9 . Todavia, mesmo considerando no decurso desse período a enorme ampliação do espaço social e político da mulher, verificamos nesse interesse uma disputa pela imagem daquela que hoje se transformou num verdadeiro ícone do feminismo em Portugal. Anna Klobucka10 e São José Almeida11 , por exemplo, não só contestam o compromisso com a verdade na versão de Vilhena sobre a vida da açoriana, como destacam o escandaloso apagamento da vida de Alice com Etelvina Sousa, pois, 9
Maria da Conceição Vilhena, Alice Moderno: a mulher e a obra, Angra do Heroísmo, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 1987 e Idem, Uma mulher pioneira. Ideias, intervenção e acção de Alice Moderno, Lisboa, Edições Salamandra, 2001. 10 Anna Klobucka, “Summoning Portugal’s apparitional lesbians: a to-do memo”, Association of British and Irish Lusitanists, National University of Ireland at Maynooth, 11-12 sep. 2009 (texto eletrónico consultado a 15 de maio de 2014 em fhttp://www.academia.edu/190256/_Summoning_Portugals_Apparitional_Lesbians_ A_To-Do_Memo_). 11 São José Almeida, Homossexuais no Estado Novo, Porto, Sextante Editora, 2010.
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segundo Anna Klobucka, elas de fato viveram juntas durante 40 anos e morreram com a diferença de apenas oito dias. Por outro lado, Maria da Conceição Vilhena destacou o envolvimento amoroso entre Alice Moderno e Joaquim de Araújo (1858-1917), e publicou um conjunto de 171 cartas de namoro12 . De assinalar ainda que Alice fundou em 1911 a Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, a primeira associação dedicada ao bem-estar animal nos Açores. Foi também fundadora do Sindicato Agrícola Micaelense. Pertenceu também a diversas agremiações científicas e literárias, entre as quais a Società Luigi Camoens (Itália), a Sociedade Literária Almeida Garrett, a Sociedade de Geografia de Lisboa, o Grémio Literário Funchalense e o Instituto de Coimbra. O espólio literário, constituído por uma centena de cartas, foi doado ao Dr. Ruy Galvão de Carvalho que por sua vez doou à Universidade dos Açores. Mas, todo o acervo foi consumido num incêndio a 12 de Junho de 1987. Atualmente, o nome da escritora é topónimo de uma rua na freguesia de São Pedro, em Ponta Delgada.
Conclusão Neste trabalho, entendemos o jornalismo praticado por Alice Moderno como um meio de infundir no senso comum o moderno espírito crítico, quer pelo sentido da análise quer pela refinada seleção de temas que a autora realizava tendo em vista a publicação dos seus periódicos. No início do século XX, Alice deu corpo à ideia de jornalismo como um modo específico de estar no mundo, com uma aguçada sensibilidade literária. Nos Açores, onde viveu toda a sua vida, Alice Moderno rompeu com os limites do espaço privado: publicou e dirigiu jornais e revistas, 12
Maria da Conceição Vilhena, Joaquim de Araújo diálogo epistolar com Alice Moderno: da literatura ao amor frustrado, Penafiel, Edições Cão Menor, 2008.
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sempre com um objetivo: mudar as mentalidades e contribuir para a valorização da instrução. Apesar do meio adverso e da condição da mulher portuguesa no início do século XX, época em que os papéis sociais masculinos e femininos ainda estavam fundados em fronteiras que demarcavam a esfera pública da esfera privada, Alice Moderno (mesmo estando entregue a si mesma, pois os seus pais emigraram para os Estados Unidos) soube dar voz aos seus referenciais e valores através do jornalismo. No entanto, convém esclarecer que ser mulher nessa altura já não significa apenas viver num período de absoluta submissão. Afinal, esse século assinala também o nascimento do feminismo.
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Referências bibliográficas
ALMEIDA, São José, Homossexuais no Estado Novo, Porto, Sextante Editora, 2010. ANDRADE, Miranda, “Eça de Queirós e a Revista de Portugal”, in separata de Ocidente, vol. LXIV, Lisboa, Edição de Álvaro Pinto, 1953. BOURDIEU, Pierre, A dominação masculina, Rio de Janeiro, Editora Bertrand, 2002. BRUNO, Sampaio, Portuenses ilustres, t. I, Livraria Magalhães e Moniz, 1907. FREITAS, Vamberto, Jornalismo e cidadania: dos Açores à Califórnia, Lisboa, Edições Salamandra, 2001. KLOBUCKA, Anna, “Summoning Portugal’s Apparitional Lesbians: a To-Do Memo”, Association of British and Irish Lusitanists, National University of Ireland at Maynooth, 11-12 September, 2009 (texto eletrónico consultado a 15 de maio de 2014 em http://www.academia.e du/190256/_Summoning_Portugal_s_Apparitional_Lesbians_A_To-D o_Memo_). QUENTAL, Antero de, Cartas II 1881-1891, org. Ana Maria Almeida Martins, Lisboa, Editorial Comunicação, 1989. RODRIGUES, Adriano Duarte, DIONÍSIO, Eduarda e NEVES, Helena, Os media escritos, Lisboa, A Regra do Jogo Edições, 1983.
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TENGARRINHA, José, A história da imprensa periódica portuguesa, 2.a ed., Lisboa, Caminho, 1989. VILHENA, Maria da Conceição, Uma mulher pioneira. Ideias, intervenção e acção de Alice Moderno, Lisboa, Edições Salamandra, 2001. _______, Joaquim de Araújo diálogo epistolar com Alice Moderno: da literatura ao amor frustrado, Penafiel, Edições Cão Menor, 2008.
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Guiomar Torrezão e o Almanach de lembranças luso-brazileiro: a presença de uma voz insubmissa Bernardette Capelo-Pereira bernardettecapelo@gmail.com
Guiomar Torrezão no contexto literário da sua época Fialho de Almeida, num texto incluído no volume póstumo Figuras de destaque1 , obra onde se reúnem dezassete textos de elogio postmortem, que contemplam, entre outros nomes, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Carlos Malheiro Dias, Eça de Queirós, Hintze Ribeiro, João de Deus, ou Venceslau de Morais, dedica um deles, de várias páginas, a Guiomar Torrezão, a única mulher nesse conjunto. Dela diz: 1
Fialho de Almeida, Figuras de destaque, 2.a ed. revista, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1969, pp. 187-195.
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Bernardette Capelo-Pereira Grandemente talhada, forte, e dum carácter autónomo donde saem as iniciativas fecundas que individualizam na vida as naturezas de comando, esta mulher só teve, para ser verdadeiramente alguém, um obstáculo – o meio onde apareceu e se fez gente. Em Londres ou em Paris, teria sido ilustre; em Lisboa quase que a quiseram tornar cómica.2
Parece-me perfeitamente justo o destaque subscrito por Fialho de Almeida – independentemente da qualidade literária da obra da escritora, que não conhece ainda estudos que permitam aferi-la3 – pela intensidade da sua existência para a escrita, numa época que relegava a mulher para as tarefas domésticas, no estrito quadro de um espaço privado. A intensidade dessa existência é tanto mais notável quanto era grande, como faz notar ainda Fialho de Almeida, a dimensão da sua desprotecção: não tinha fortuna pessoal, não tinha berço de ouro ou aristocracia, não tinha família que a protegesse. Guiomar Torrezão foi, de facto, uma “forçada das letras”, em sentido talvez mais real e dramático do que Camilo Castelo Branco. Por ser mulher e às mulheres ser negada, nessa segunda metade do século XIX, a ocupação do espaço público, pelas condições materiais do seu trabalho, que, apesar da sua manifesta vocação para as letras, deveria garantir-lhe a sua subsistência, num meio que lhe foi, frequentemente, hostil. Diz Fialho: Não sendo rica, nem tendo podido nunca amparar-se ao auxílio dos poderosos, que cá na terra fazem tudo, viveu sempre num meio modesto de gente que pouco mais dela poderia fazer do que um objeto de má língua. As labutas do artigo dia a dia, tão dispersivas e duma tão desmazeladora higiene para o cérebro, tiveram-na amarrada à carteira os melhores anos da existência, sem lhe deixarem tempo a leituras profundas e a contemplações demoradas; [. . . ]. Guiomar Torresão ficou sempre na dependência das leituras da véspera, 2
Ibidem, p. 188. Monica Rector fez uma edição crítica da peça de teatro O fraco da Baronesa, com um breve estudo introdutório – Porto, Ed. Universidade Fernando Pessoa, 2005. 3
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na contingência das modas, isto é, subalternizada às flutuações de gosto da gente grosseira, principal clientela dos jornalinhos, dos almanaques e pequenos livros de narrativa e impressão, que ela, para viver, incessantemente produzia.4
Apesar disso, apesar das reservas colocadas pelo autor de Os gatos, em função dos condicionamentos de cultura e de gosto, que afectariam a escritora ao intervir na imprensa para grande público, ele acaba por concluir o seu texto com o seguinte reconhecimento: Ainda assim, dos vários livros, artigos e dispersos que constituem a obra de Guiomar Torresão, se pouco ou nada se pode dizer de envergadura resistente, contudo, no inventário da actual geração não poderá deixar de ser mencionado o seu nome como o duma das mais laboriosas cultoras da prosa ligeira, e das mais bem dotadas organizações literárias do País. O estilo é fácil, sonoro, de instrumentação nem sempre castiça, mas procurando impressionar pela extravagância ou intensividade da pintura; uma ou outra vez, a ironia traz um cunho de maldade borboleteadora, ou arrancos de cólera viril onde se sente um pulso musculoso, combatividades de panfletária, e uma audácia capaz de batalhar.5
As reservas colocadas por Fialho e o desenho talvez excessivo do que seria o quadro de rejeição da escritora, referem-se, sobretudo, às reacções de alguns elementos da Geração de 70, nomeadamente Oliveira Martins e Ramalho Ortigão, o que, a meu ver, não pode senão constituir uma fonte de interrogação e um desafio à análise literária da sua obra. Oliveira Martins responde ao convite da escritora para participar no Almanach das senhoras, em 1884, expressando a sua opinião sobre o mundo feminino em geral, dizendo: “o seu destino comum – salvo as excepções privilegiadas, como V. Ex.a – é cozinharem bem a panela a seus maridos, saberem lavar os filhos e remendar-lhes os 4 5
Fialho de Almeida, Figuras de destaque, op. cit., p. 193. Ibidem, p. 194.
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calções”6 . Ou a posição de Ramalho Ortigão, em As farpas7 , também relativamente ao Almanach das senhoras, que diz representar a “educação literária desalienada da educação doméstica”, ao que Guiomar Torrezão responde, num texto acutilante, incluído no volume No theatro e na sala (1881), denunciando a crueldade do seu olhar demolidor e a estreiteza da sua visão masculina, altamente conservadora e discriminatória, usando as mesmas armas da irrisão, do paradoxo e do humor: Com o seu largo riso rabelaisiano, com as suas gavetinhas de estudo atacadas de Proudhon, como a velha arca de um casal minhoto ajoujada com a riqueza do bragal, com o seu talento complexo, sustentado de Taine, Pascal, Guizot, Cousin, Renan, Quinet, Strauss e Hegel; com o seu desdém altivo, erguido de pé no pedestal das suas pequenas brochuras, vibrando na sinistra um feixe de raios e na dextra uma lanceta, o autor das Farpas impôs a si mesmo a tarefa laboriosa de endireitar o mundo e castigar com as ventosas da ironia, as peripécias cómico burlescas da nossa farsa política, os ‘tiques’ sentimentais do nosso drama psicológico, a elaboração difícil e a produção copiosa das nossas artes e letras!. . .
Neste louvável intuito civilizador, dardejando chamas como um astro, cultivando a carnificina como um médico, o sr. Ramalho Ortigão retalha, corta, espreme, fulmina e queima!8 . Referindo os almanaques, a emancipação e a educação feminina como objecto da sua virulência, G. Torrezão contra-argumenta, utilizando processos idênticos aos do “mestre”, desconstruindo o seu discurso, expondo-o ao ridículo, concluindo: 6
Apud Ana Maria Costa Lopes, Imagens da mulher na imprensa feminina de oitocentos: percursos de modernidade, Lisboa, Quimera, 2005, p. 514. 7 Ramalho Ortigão, As Farpas, Lisboa, Clássica Editora, 1992, vol. VIII, pp. 130-134. 8 “As farpas e o Almanach das senhoras”, in No theatro e na sala, Lisboa, David Corazzi – Editor, 1881, pp. 241-242. Todas as citações de textos do século XIX são atualizadas na sua ortografia, de modo a facilitar a leitura. Para os nomes próprios e os títulos mantém-se a ortografia oitocentista.
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Percebemos unicamente que o sr. Ramalho Ortigão, usando da prerrogativa de crítico absoluto, e considerando o liceu um ultraje para a mulher inteligente, a sala um objeto de luxo para a mulher elegante, convida a inteligente, a espirituosa e a ignorante a recolher à cozinha, e promete fornecer-lhes um curso completo de química culinária.9
Ana Maria Costa Lopes, que no seu estudo Imagens da mulher na imprensa feminina de Oitocentos10 dedicou largas páginas à presença de Guiomar Torrezão, designa este confronto entre a Autora e Ramalho com o subtítulo certeiro “As farpas de Guiomar ou o manifesto da igualdade intelectual”, analisando a sua mordacidade e o lúcido manejo de argumentos, numa clara afirmação da emancipação intelectual e moral por que ela tanto pugnava. Mas Guiomar Torrezão teve também os seus defensores e admiradores. Vários outros escritores, de mérito reconhecido no seu tempo, escreveram favoravelmente sobre a sua obra e foram denunciando essa atitude depreciativa. Júlio César Machado escreve uma introdução ao primeiro romance da Autora, Uma alma de mulher (1869), e comenta-o em folhetim de A revolução de Setembro11 . Nessa introdução ao romance, saúda a ousadia da jovem Guiomar no quadro sociocultural que a rodeava: O que me impressiona e me comove, o que é digno de se ver e de se louvar, é que no nosso tempo, no nosso país, no meio de Lisboa, onde as senhoras ainda que superiormente dotadas pela natureza, estão condenadas a uma educação acanhada, a uma higiene moral deplorável, e à preocupação constante de minúcias que lhes atrofiam a inteligência ao ponto de verem na moda e no traje as condições absolutas da felicidade: num país onde em todas as reuniões os homens e as senhoras estão divididos em 9
Ibidem, p. 248. Ana Maria Costa Lopes, Imagens da mulher na imprensa oitocentista, op. cit., pp. 526-529. 11 A revolução de Setembro, 21 de Dezembro de 1869. 10
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Bernardette Capelo-Pereira grupos distintos que não se entendem senão quando a paixão, o interesse, ou a vaidade os aproxima: numa terra que estabelece no seio da mesma mãe pátria duas nações de seres diferentes que não têm as mesmas crenças religiosas, nem o mesmo nível de cultura intelectual, nem o mesmo código moral; o que verdadeira e realmente me surpreende e me maravilha é que uma menina, aos vinte anos, forte pela esperança, audaz pelo talento, tente isolada fazer a sua sorte, o seu nome, a sua posição, o seu futuro, com o atirar aos ventos da publicidade as suas ideias, as suas fantasias, os seus sonhos, a sua imaginação e a sua alma! O romance que se vai ler, não é o trabalho paciente de um engenho que venceu dificuldades à força de aplicação; é a produção espontânea e singela de um talento cheio de naturalidade e de viveza, fantasia ardente e juvenil, vocação imperiosa que o estudo há-de aperfeiçoar mais tarde. É tudo a desafectada vivacidade dos diálogos, a singeleza graciosa das descrições, e sobretudo o adivinhar do estilo, o não sei quê de instintivo na elegância da forma que não dá o tempo, a experiência, nem o saber literário, que é condão de certos talentos, e porventura o segredo dos mais citados na arte de escrever12 .
A edição de Rosas pallidas, colectânea de narrativas breves, em 1873, é precedida de uma carta de Thomaz Ribeiro, e a sua reedição, em 1877, é objecto de destaque por Christovam de Sá (pseudónimo de António Cunha de Belém) em A revolução de Setembro13 . Após considerações sobre o seu conceito de crítica literária e a sua perspectiva sobre a que se pratica em Portugal, Thomaz Ribeiro refere-se nessa carta, escrita dois anos antes da publicação do volume, ao curto romance que abre a colectânea, “Celeste”, que a Autora lhe enviara para Goa. Considerando a juventude da escritora (tinha Guiomar 27 anos), considera: 12
Introdução a: Guiomar Torrezão, Uma alma de mulher, Lisboa, Tipografia de J.G. de Sousa Neves, 1869, pp. 9-10. 13 A revolução de Setembro, 5 de Agosto de 1877.
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O seu romance é sobretudo um livro de mocidade, um reflexo da sua fantasia esplêndida e do seu amantíssimo coração. Há nele os indecisos cambiantes do crepúsculo matutino, como há também as suas aragens tépidas, os seus aromas fugitivos, e as suas melodias singelíssimas! São para mais tarde os estudos sociais, e o que neles seria defeito constitui o encanto destes devaneios em que os talentos singulares como o de V. Ex.a , derramam toda a exuberância da sua seiva, toda a graciosa inexperiência da sua juventude, todas as opulências da sua ridente primavera14 .
Mas, apesar de se tratar de obra de juventude, Thomaz Ribeiro sublinha a qualidade do seu estilo: “Há no seu livro grandes belezas de estilo que eu admiro, mas que me não surpreendem. A primeira produção de V. Ex.a , com ser apenas a alvorada do seu formosíssimo talento, já prometia tudo que a «Celeste» hoje realiza”. A edição de No theatro e na sala, em 1881, compilação de textos publicados na imprensa, é precedida de uma carta-prefácio de Camilo Castelo Branco, a quem, segundo Alexandre Cabral, a Autora “trata sempre por Mestre”, falando também da correspondência entre ambos, “Em que sobressai a insistência, por vezes implorativa, da protecção do mestre [. . . ] nas mais diversas situações”15 . Numa espécie de contraFarpas, Camilo contrapõe a igualdade de ambos os sexos e enaltece a obra de Guiomar: Quantos escritores de primeira ordem escrevem em Portugal como v. ex.a ? Quem lhe pode dar exemplos de elegância de estilo, de profundeza e variedade de ideias indicativas de leitura vasta e metódica? Cada novo livro de v. ex.a é um aperfeiçoamento que vai justificando os vaticínios dos que leram as suas estreias balbuciantes. Há poucos dias, li a segunda edição das ‘Rosas pallidas’. É um 14
Carta publicada em: Guiomar Torrezão, Rosas pallidas, Lisboa, Editores Rolland & Semiond, 1873. 15 Dicionário de Camilo Castelo Branco, Lisboa, Caminho, 1989, p. 633.
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Bernardette Capelo-Pereira livro significativo do rápido progresso de uma formosa fantasia que adquiriu as tristes intuições da vida real, e os sérios conhecimentos da literatura que serve a enfeitar as melancolias dos quadros íntimos. Neste outro livro, ao qual v. ex.a me quer dar a honra de associar um nome que representa um dos seus mais sinceros admiradores, revela a poderosa inteligência de v. ex.a a faculdade crítica, embelecida com todos os donaires e energias de linguagem, que, a não ser extreme portuguesa, seria ainda gentilíssima. Tenho reparado com admiração na singular felicidade com que v. ex.a enquadra nas formas pouco dóceis e amaneiradas da nossa prosódia as frases flexuosas e ondulantes da língua francesa. Raros talentos varonis conseguiram modernizar tão graciosamente sem desprimor dos foros da sintaxe venerada por Castilhos e Garretts16 .
Todos estes escritores acentuam a ousadia de Guiomar Torrezão perante um contexto altamente adverso a qualquer desafio de uma voz feminina. A escritora teve, de facto, o grande mérito de dividir opiniões e posições entre os grandes escritores-homens da sua época e de inscrever, nessa brecha, uma espécie de consciência do feminino. Não é pouco!
A insubmissão de uma voz Apesar das referidas condições da sua produção escrita, eu diria que a voz de Guiomar Torrezão é uma voz feminina insubmissa que, na segunda metade do século XIX, deixou uma marca indelével e deu uma forte contribuição para a afirmação de uma independência intelectual e, assim, uma alteração do estatuto da mulher na escrita e na sociedade portuguesa de oitocentos. 16
“Carta-Prefácio”, in Guiomar Torrezão, No theatro e na sala, op. cit., p. 7.
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O primeiro modo, e o mais ponderoso, dessa insubmissão reside no próprio facto do exercício da sua escrita, quantiosa, diversificada, persistente, no quadro mental e social da sua época, contra todas as vozes que procuraram apagá-la ou apoucá-la. Nesse sentido, a sua voz é performativa: falar, escrever, é fazer. Ao assumir e persistir na sua escrita, Guiomar Torrezão afirmou, conquistou, para a voz feminina, um espaço público que lhe era negado. Ou seja, Guiomar participa, intensamente, nessa revolução que é a passagem da mulher-objeto à mulher-sujeito. Em estilo que lhe é muito peculiar, Camilo Castelo Branco, em 1881, na já citada carta-prefácio a No theatro e na sala, equaciona este autêntico “atentado” às mentalidades literárias da época: Aqui, neste país – como v. ex.a decerto não crê – há tanto lirismo e tamanha necessidade de o exuberar em caçoulas de perfumarias, que os líricos, se uma senhora se faz, em vez de ídolo, sacerdotisa – em vez de poetizada, poeta – logo se consternam, cuidando que se lhes apaga uma estrela no seu olimpo, e que, daqui a pouco apenas lhes será permitido fazer sonetos às senhoras que tiverem ‘accessit’ no acto de matemática. [. . . ]. Publica-se tanta parvoiçada do meu sexo licenciada e gabada pela crítica! [. . . ]. E ninguém lhes desluz a fama nem lhes deita ventosas nas congestões do orgulho!17
O segundo modo dessa insubmissão é a consciência e auto-consciência da sua escrita, do seu contexto e da sua natureza. Guiomar Torrezão, ao longo de toda a sua obra, verbaliza, por um lado, a rejeição de que é objecto, combate-a e polemiza, e, por outro, afirma e explicita as suas concepções e revela perfeita consciência do sentido da sua intervenção num meio de “cultura de massas”, como era a imprensa oitocentista, que poderemos considerar a grande revolução democrática no século XIX. Aliás, o almanaque não pode ser associado, exclusivamente, a um universo feminino, como pode parecer a partir de certas afirmações 17
Ibidem, pp. 5-6 (sublinhado meu).
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masculinas que o ridicularizam. Nele colaboravam maioritariamente homens, como é natural na época, muitos deles nomes importantes das letras portuguesas. Para se ter uma ideia, é bom observar que no Almanach de lembranças luso-brazileiro a colaboração feminina significava aproximadamente um décimo. Sobre a feição do folhetim e a sua versatilidade, fala a Autora de “verdadeiro Protheu”18 e diz, a propósito, no texto “No presbyterio e no templo”: Se eu pudesse definir em breves traços as sãs doutrinas, compendiar os preceitos que formula, sintetizar as máximas que desenvolve, fá-lo-ia gostosa, porque obteria assim a convicção de que, pelo menos a maioria, não deixaria de apreciá-lo. Porque o folhetim, ligeiro, superficial, ‘bon enfant’, o folhetim que é como o espelho reflector das tendências da época, lê-se mais facilmente do que o livro19 .
Sobre a efemeridade da sua escrita jornalística, e com alguma mágoa pelo estado da crítica em Portugal, revela Guiomar Torrezão uma nostálgica consciência, ao reunir alguns dos seus textos no volume Meteoros, em 1875 (aos 31 anos), justificando o título escolhido, em dedicatória a Maria Benedicta de Freitas Mello: A este livro, onde a luz tão depressa brilha como se esconde, onde o riso atravessa, não raro, pelo meio das lágrimas, onde tudo é rápido, breve, transitório; perfis que se não concluem, estudos que mal se esboçam, voos que como os das borboletas não sobem acima das rosas, nuvens que passam abaixo das estrelas, e se desfazem em fumo, relâmpagos sem tempestade, vozes sem eco; a este livro, efémero e fugitivo como uma página que é da minha mocidade, creio que não posso dar outro título senão o de METEOROS. O meteoro irrompe, brilha, deslumbra, atravessa o céu e expira sem deixar um rasto!20 18 19 20
Meteoros, Lisboa, Typ. de Christovão A. Rodrigues, 1875, p. 131. “No presbyterio e no templo”, in No theatro e na sala, op. cit., pp. 183-184. Meteoros, op. cit., pp. 6-7.
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Eu direi que Guiomar Torrezão, no brilho e no recorte melancólico das suas metáforas auto-reflexivas, deixou um rasto, que importará observar. O terceiro modo de insubmissão é a atenção dada à escrita de mulheres, nacionais ou estrangeiras, e também o destaque que lhes dá em dedicatórias dos seus textos ou livros, mas também a frontalidade, e abrangência, com que se dirige a e convoca o mundo masculino21 . Sem complexos, dirige-se a homens notáveis no mundo das letras, pedindo-lhes colaboração para os órgãos de imprensa que dirigia, assim pretendendo prestigiá-los, publicitando mesmo as suas cartas, procurando obter, no espaço público, uma legitimação22 ; ou incentivando escritores-homens que chegavam ao mundo das letras, como Gonçalves 21
Sobre Guiomar Torrezão foi publicado, por ocasião do centenário da sua morte, um texto de Fátima Outeirinho “Guiomar Torresão ou memória de uma mulher de letras oitocentista” (Intercâmbio, Revista de Estudos Franceses – Revue d’Études Françaises – French Studies Journal, n.o 9, Porto, 1998, pp. 163-176), privilegiando, segundo diz, dois volumes de recolha de textos da imprensa periódica, Meteoros e No theatro e na sala, que, porém, não analisa. Trata-se, sem dúvida, de uma contribuição a ter em conta para o conhecimento da Autora, mas assume, quanto a mim, uma avaliação que releva de um feminismo algo abstracto que utiliza argumentos muito discutíveis. Por exemplo, veicula uma certa condenação porque a Autora “procura ou deixa-se apresentar por mão masculina a exercer um magistério de influência através da instância paratextual”; ou pelo facto de ter utilizado pseudónimos masculinos, o que constituiria uma escrita “sob o signo do masculino”, como se tal facto não tivesse acontecido no século XX (basta lembrar Irene Lisboa) e até hoje. Guiomar Torrezão busca uma legitimação junto dos que, na época, eram nomes relevantes das letras, e de outro modo não poderia ser, nem vejo como isso reduziria a insubmissão da sua voz. Ninguém escapa ao tempo e ao espaço em que vive, ninguém escreve fora do seu contexto histórico. Aliás, a historicidade foi há muito reposta nos estudos literários, depois de ter sido banida pelo estruturalismo. Como disse Roland Barthes, e cito de memória, “só podemos escrever o que o nosso tempo permite”. 22 De destacar a publicação, por exemplo, de “Cartas póstumas” no semanário O mundo elegante, que dirigiu entre 1 de Janeiro e 25 de Dezembro de 1887, que inclui nomes como Alexandre Herculano, Júlio Dinis, Castilho, Mendes Leal. V. Mauro Nicola Póvoas, Louise Farias da Silveira. “Guiomar Torresão e as «Cartas Póstumas» do periódico feminino O mundo elegante (1887)”, Navegações, vol. 5, n.o 1, 2012, pp. 101-105.
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Crespo, que saúda por ocasião do aparecimento do seu primeiro livro de poesia Miniaturas (1871)23 . Em Paris (impressões de viagens)24 – um livro que, como declara em texto introdutório “Antes de chegar”, não pretende falar de um Paris pitoresco, geográfico e histórico, mas sim conduzir às salas de “um Paris mundano” dos salões, do “Paris literário, onde, à parte raras excepções dos grandes e dos gloriosos, se alastram pelos «fauteuils» os literatos ociosos que querem subir e a legião das «bas bleu» que não fizeram senão descer; e aos «ateliers» de Paris que trabalha e à banca da escrita do Paris que pensa”25 – Guiomar Torrezão, diferentemente do que acontece noutros textos, convoca “o leitor” (não “a leitora”, como acontecia noutros textos, e era habitual em vários escritores do seu tempo, por exemplo Camilo Castelo Branco, pois se tratava de um novo público a conquistar) para, em vários capítulos, desenhar a vida contemporânea da mítica Paris. Nesse conjunto, é destacado o papel das mulheres na vida social e cultural, dedica um capítulo a nove “Escritoras parisienses”, e nele integra também três textos dedicados a dois grandes homens da literatura francesa que a receberam – Alexandre Dumas Filho e Victor Hugo. A descrição do modo como foi recebida por esses dois nomes gloriosos das letras francesas – dedicando dois textos a V. Hugo, “Victor Hugo vivo” e “Victor Hugo morto” (tendo a morte deste ocorrido durante a sua permanência de dois meses em Paris, em 22 de Maio de 1885), deste modo realçando o valor da entrevista que o grande autor de Notre-Dame de Paris lhe concedera, “uma das últimas que lhe era permitido conceder antes de descansar para a eternidade no plácido sono da morte.”26 – pretende, claramente, contrapor essa recepção ao ostracismo de que era objeto por parte de alguns grandes nomes da literatura portuguesa, assim pugnando pela sua imagem e legitimação. 23 24 25 26
Ibidem, p. 104. Porto, Livraria Civilização, 1888. Ibidem, p. 13. Ibidem, p. 121.
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Notável é também a defesa que assume do grande mestre Alexandre Herculano, após a sua morte, aquando da “ideia patriótica de [lhe] levantar um monumento”, perante o desacordo manifestado por Ramalho Ortigão, em “um folhetim publicado na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro e transcrito no n.o 4 de Ribaltas e Gambiarras”27 . Num texto, quanto a mim, de mais forte argumentação e de maior frontalidade, mesmo do que a resposta às Farpas, Guiomar Torrezão eleva a sua ironia e acutilância, numa crítica lapidar, que, do meu ponto de vista, constitui o ponto mais alto de afirmação do poder da sua voz e da sua independência intelectual e moral. Invocando, justamente, o direito à liberdade de expressão que a Carta lhe concede: Todavia, a liberdade de dizer cada um o que pensa e sente, a doce liberdade cheia de garantias que floresce exuberantemente à sombra da Carta, permitindo e até certo ponto impondo o exercício do raciocínio independente, inimigo do dogma autoritário, a necessidade de discutir que caracteriza a nossa época, explicam e por ventura absolvem o meu arrojado cometimento.28
Guiomar Torrezão critica a posição de Ramalho Ortigão, tirando do pedestal a sua voz: O protesto do sr. Ramalho Ortigão, que por meio da sua autoridade de crítico, da sua poderosa influência de escritor e dos prestígios inerentes ao grau de corifeu de uma legiãozinha que vive de imitar as audácias, verdadeiramente revolucionários, da sua ‘toilette’ e da sua literatura, orienta mentalmente a décima parte, pelo menos, da população portuguesa.29
E continua: “É particularmente contra a opinião unânime do país que estabeleceu um paralelo entre Catão e Herculano, porque não hou27
Guiomar Torrezão, “Alexandre Herculano”, in No theatro e na sala, op. cit., p.
256. 28 29
Ibidem. Ibidem, p. 257.
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vesse outro homem em Portugal a quem esse paralelo pudesse ser aplicado, que o sr. Ramalho Ortigão vibra a sua áspera ironia mordente e cáustica”30 . Com denodo, a escritora afirma a sua posição: “Eu noto, pelo contrário, no confronto desses dois grandes homens colocados a tantos séculos de distância um do outro, a maior e a mais indiscutível de todas as superioridades para Herculano”31 . O quarto modo de insubmissão da sua voz é a presença da transversalidade de culturas, de línguas, de linguagens, de géneros, na sua escrita, sendo certo que a transversalidade abre lugar à problemática das diferenças, dos diálogos e das minorias, isto é, à igualdade das diferenças. Guiomar Torrezão abre o seu discurso a expressões de outras línguas (francesismos, anglicismos e, mesmo, germanismos), a referências, citações e figuras de outros meios culturais e artísticos (contemporâneos ou clássicos), numa abrangente intertextualidade explícita, diria mesmo, intencionalmente explícita, para mostrar o seu conhecimento e uma vasta cultura, sendo frequente a formulação de equivalência e/ou relação de diversas expressões civilizacionais e artísticas, do que daremos um exemplo através de uma colaboração em Almanach das lembranças.
30 31
Ibidem, p. 258. Ibidem, p. 262.
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Guiomar Torrezão em Almanach de lembranças luso-brazileiro A participação de Guiomar Torrezão no Almanach de lembranças luso-brazileiro não é muito significativa, tendo em conta a sua intensa actividade jornalística e a diversidade dos seus registos de escrita. Entre 1864 e 1896, trinta e dois anos, a Autora teve 19 colaborações, sendo 4 delas “charadas”, 8 poemas e 7 textos em prosa. Isto é, os breves textos da Autora no Almanach32 não são representativos da diversidade temática e de géneros do seu discurso jornalístico e muito menos do conjunto da sua obra, que engloba também romances, contos, peças de teatro, impressões de viagem, crónicas, traduções. Vejamos, então, de modo mais aproximado, em que consiste esta colaboração. As charadas, versificadas, em número de quatro, aparecem nos 4 primeiros anos em que colaborou, isto é, nos seus primeiros anos de actividade de escrita (entre os 20 e os 24 anos). As charadas, cuja origem e presença na literatura ocidental é muito antiga, sob a forma de enigmas ou adivinhas, são uma forma de solicitar a inteligência de um público, o que no caso destas quatro charadas de Guiomar Torrezão não era facilitista. Como diz Alain Montandon acerca dos jogos de espírito como formas breves: o enigma, sentença misteriosa, é [. . . ] a descrição circunlocutória de uma coisa, de uma pessoa ou dum acto cujas propriedades são dadas de maneira alusiva, solicitando a inteligência e o espírito do auditor e cuja solução é tornada difícil por armadilhas. 32
Almanach de lembranças luso-brazileiro, Lisboa, Typ. da Sociedade Typographica Franco-Portugueza. Guiomar Torrezão colaborou, anualmente, entre 1864 e 1880, com duas contribuições em 1866, tendo, depois dessa data, participado apenas na edição de 1896.
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E, mais adiante, continua: “Esta proposição que é para adivinhar é expressa sob termos e ideias «equívocas» para excitar o espírito a descobri-la”, produzindo, naturalmente, o prazer do jogo, da surpresa e da descoberta33 . Esta formulação serve para caracterizar a relação autor-leitor, mas do ponto de vista do autor significa o exercício de uma espécie de cifra, feita de metáforas, que desafia um prazer intelectual e uma capacidade criadora. Aristóteles, na Retórica, diz que se podem retirar “boas metáforas dos enigmas, porque as metáforas implicam enigmas”34 . Quanto aos oito poemas, escritos entre 1868 e 1877, sendo que os seis primeiros apareceram em anos seguidos, eles relevam de vários géneros, formas e origens: dois poemas, “Pérola d’alma” (1868) e “Hontem, hoje e amanhã” (1873), aparecem em relação com a literatura espanhola, um como “imitação do espanhol” e outro como “Do espanhol”, não sabendo eu, ainda, se, no caso deste segundo, se trata de uma tradução. É possível, pois sabemos como as referências de autoria não constituíam especial preocupação na época, e Guiomar Torrezão traduziu muito. Um outro poema, “Epitaphio” (1870), com o sub-título “Imitação de Victor Hugo”, incide sobre o tema da morte de uma criança. O tema do fatal amor suplicante comparece no poema “Beatriz” (1874), confessadamente inspirado em Dante, poema já anteriormente publicado35 . Duas outras poesias são dedicadas, uma a Jesuina Alves (1872), “A Jesuina Alves (No dia dos seus annos)” – a quem também dedica o seu pequeno romance Celeste36 –, e outra a Maria Amália Vaz de Carvalho (1869), “Depois da Leitura de «Uma Primavera de Mulher»”, por ocasião da publicação do seu primeiro livro de poemas, em 1867, aos 20 anos37 . São duas poesias endereçadas, a primeira de lou33
Alain Montandon, Les formes brèves, Paris, Hachette, 1992, p. 113. Ibidem, p. 114. 35 O poema insere-se na novela “A dama das violetas” publicada em Rosas pállidas (1873), sendo a sua autoria atribuída à personagem Leopoldo, tendo uma importante função diegética. 36 Também inserido em Rosas pállidas (1873). 37 O livro surge como sugestão de leitura da protagonista Beatriz a Leopoldo, no 34
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vor e dedicação, a segunda de louvor e estímulo, sem lhes faltar algum fôlego poético de construção e de linguagem. Dois outros poemas incidem, em graus diferentes de explicitação, sobre problemas sociais, “Caridade – Improviso” (1871) e “Flor do Asfalto” (1877), o primeiro mais abstracto, o segundo mais realista e mais conseguido. Os textos em prosa, em número de sete, também apresentam a mesma natureza proteica. Encontramos dois textos de louvor a virtudes: “Verdadeira realeza” (1866), dedicado a Maria Thereza, imperatriz da Áustria, relevando a sua magnanimidade perante os pobres, e “D. Pedro IV” (1880), um elogio que conta um episódio revelador “da grandeza insinuante e simples do porte severo e guerreiro, sem deixar de ser afectuoso, do imperador”. Dois outros textos apresentam um registo que se poderá considerar de prosa poética, embora de natureza bem diversa. O primeiro, “O mar” (1875), engenhoso na sua construção, começa por uma aproximação mitológica da imagem do mar, invocando a sua inconstância e as suas várias personificações míticas. Mar pagão. . . Num segundo excerto, evoca uma tempestade e o seu final de salvação. Cristão, o mar. . . No outro texto, “A Formosura” (1878), mais abstracto, invoca, não uma realidade mas uma qualidade – a formosura, usando uma sucessão de metáforas. No final, entre parêntesis, aparece o nome de Gautier. Tratar-se-á de tradução? De adaptação? Não tive a oportunidade de o verificar. Os outros três textos em prosa têm uma incidência artística: o primeiro, “Corot e o seu cachimbo” (1876), escrito após a morte do pintor, constitui quanto a mim uma inteligente, e engenhosa, evocação da pintura do artista. Articulando vida e obra, e olhando esta última através de uma espécie de filtro que a nimba, metaforizando um olhar artístico, Guiomar Torrezão escreve: “tudo isso, que o namorava e fazia as delícias e as cruezas da sua existência, via-o ele através da ondulante e azulada nuvem de fumo do seu dilecto e inseparável cachimbo!”. quadro de uma intensa rede intertextual, na novela “A dama das violetas”.
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O segundo, “A religião da hospitalidade” (1879), invoca o Oriente e todo o fascínio exercido sobre viajantes e poetas, para o colocar na origem de “uma lenda sérvia, que passando por sucessivas modificações, apareceu nas fábulas de La Fontaine e depois no libreto da partitura «La Colombe», de Gounod”, lenda essa que narra. De notar a transversalidade cultural e artística que este texto evidencia, assim como a diversidade de referências artísticas que Guiomar não deixa de ostentar. O terceiro texto, último da sua colaboração dois anos antes da sua morte, “Uma visita a Victor Hugo” (1896), é um excerto, com muito ligeiras adaptações, de um texto publicado na obra Paris (impressões de viagem) (1888), atrás referido. Por que razão Guiomar Torrezão reedita este excerto de um texto publicado oito anos antes? Por uma razão, julgo, que atravessou todo o seu turbulento percurso: afirmar, através de um grande nome das letras internacionais, a sua legitimidade; contrapor à atitude de muitos notáveis das letras portuguesas que a não reconheciam, a atitude de acolhimento do grande patriarca das letras francesas. Desse encontro diz: Victor Hugo aproximou a cadeira, pegou-me na mão, beijou-a, e com uma singeleza encantadora, com uma bondade insinuante [. . . ] ensinou-me a conversar com ele, fazendo-me perguntas, testemunhando benevolamente a simpatia que lhe inspirávamos, deixando-me crer que o sensibilizava a religiosa admiração tributada ao seu génio colossal por este povo, grande na história, pequeno no mapa geográfico38 .
Disse que a colaboração de G. Torrezão no Almanach de lembranças luso-brazileiro não é significativa, do ponto de vista dos géneros, do tom e das temáticas da sua obra, de que nesta publicação só encontramos indícios. E, contudo, em verdade, é significativa pela presença em si, pois a escritora, apesar de, ao longo destes anos, ter criado e dirigido o Almanach das senhoras (desde 1871 até ao final da sua vida, 38
Op. cit., p. 124.
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em 1898), e ter colaborado em vários outros órgãos da imprensa (Diário illustrado, Ribaltas e gambiarras, O mundo elegante, A chronica: publicação illustrada, entre outros), em alguns dos quais tinha particulares responsabilidades de direcção literária ou de redacção, parece não ter querido ficar arredada de uma publicação que circulava em todo o universo lusófono e tinha, em 1864, uma tiragem de 16.000 exemplares39 , tendo acontecido que várias peças teatrais de Guiomar foram representadas no Brasil. O certo é que esta presença me levou a pesquisar o conjunto da sua obra e me revelou uma voz insubmissa que carece de uma atenção demorada.
Nota: Por vontade do autora, o artigo mantém a ortografia anterior ao novo A.O.
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“A tiragem deste livrinho nunca é inferior a 16:000 exemplares, que são distribuídos pelo Brasil, pelas nossas possessões d’além-mar, ilhas, e todas as terras de alguma importância do país”, Almanach de lembranças luso-brazileiro para o anno de 1864, Lisboa, Typ. da Sociedade Typographica Franco-Portuguesa, 1863, p. 6.
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Referências bibliográficas
Almanach de lembranças luso-brazileiro para o anno de 1864, Lisboa, Typ. da Sociedade Typographica Franco-Portuguesa, 1863. ALMEIDA Fialho de, Figuras de destaque, 2.a ed. revista, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1969. BRANCO, Camilo Castelo, “Carta-Prefácio”, in TORREZÃO, Guiomar, No theatro e na sala, Lisboa, David Corazzi – Editor, 1881. CABRAL, Alexandre, Dicionário de Camilo Castelo Branco, Lisboa, Caminho, 1989. LOPES, Ana Maria Costa, Imagens da mulher na imprensa feminina de oitocentos: percursos de modernidade, Lisboa, Quimera, 2005. MACHADO, Júlio César, introdução a: TORREZÃO, Guiomar, Uma alma de mulher, Lisboa, Tipografia de J. G. de Sousa Neves, 1869. MONTANDON, Alain, Les formes brèves, Paris, Hachette, 1992. ORTIGÃO, Ramalho, As farpas, vol. VIII, Lisboa, Clássica Editora, 1992. RIBEIRO, Thomaz, Carta publicada em: TORREZÃO, Guiomar, Rosas pallidas, Lisboa, Editores Rolland & Semiond, 1873. TORREZÃO, Guiomar, Meteoros, Lisboa, Typ. de Christovão A. Rodrigues, 1875.
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_______, No theatro e na sala, Lisboa, David Corazzi – Editor, 1881. _______, Paris (impressões de viagens), Porto, Livraria Civilização, 1888.
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A voz de Amélia Janny no Almanaque de lembranças Maria José Meira1 mmeira@campus.ul.pt
A vida vale pouco – tudo mente; É breve a infância e curta a mocidade; Gasta-se o tempo em busca da verdade, Que tanto esmaga e dilacera a gente! Amélia Janny
A poucos meses de se completar o centenário da morte de Amélia Janny (março de 2014) é objetivo desta breve comunicação dar a conhecer e recompor um pouco da sua trajetória poética, em tributo merecido a esta figura do passado, quase ignorada nos nossos dias, “Nova Safo”, como lhe chamou Camilo Castelo Branco, subtraindo-a da relativa penumbra a que tem sido votada. A nossa reflexão centrar-se-á, num primeiro momento, em torno de uma aproximação ao seu itinerário humano e poético, enfatizando 1
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – CLEPUL.
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sobretudo a colaboração que manteve no Almanaque de lembranças luso-brasileiro para ponderar resumidamente, num segundo momento, sobre a fortuna crítica da sua poesia.
Itinerário humano e poético Esboço biográfico Amélia Janny nasce em Coimbra em 1841 e vem a falecer na mesma cidade em março de 1914. Da sua biografia2 pode depreender-se que a vocação e talento para a poesia terão despertado nela bastante cedo, por volta dos 14 anos, quando publica no jornal O Liz, de Leiria, versos inspirados na morte de uma amiga, embora ainda antes, a partir dos 7, essa tendência tivesse, desde logo, começado a manifestar-se. Tal predisposição para as letras terá sido herdada da família paterna, em particular, de um tio, o poeta Luís Correia Caldeira colaborador do grupo O trovador e porventura, uma das suas referências mais ativas. Ao homenageá-la publicamente em maio de 1862, num Sarau do Teatro Académico, António Feliciano de Castilho tê-la-á consagrado literariamente, retirando-a do anonimato cultural, quando a apresenta a Teófilo Braga, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoais e Antero de Quental. Solidamente instruída e educada é sobretudo como declamadora, em saraus que organiza e em que participa ativamente, que trava conhecimento com outros vultos notáveis da cultura do seu tempo e de que se destacam: Camilo Castelo Branco, João de Deus, Eugénio de Castro, Gonçalves Crespo, Trindade Coelho. Foi membro do Instituto de Coimbra, do Grémio Literário, sócia honorária da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas de Coimbra e da Sociedade Filantrópica Académica, entre outras agremiações 2
Ver Zília Osório de Castro e João Esteves (dir.), Dicionário no feminino (séculos XIX-XX), Lisboa, Horizonte, 2005, pp. 81-83.
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A voz de Amélia Janny no Almanaque de lembranças
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culturais. O seu nome figura na toponímia de Coimbra, numa rua do Bairro da Cumeada, entre a Rua Luís de Camões e a Teixeira de Pascoais. Da produção poética, publicada3 de forma dispersa pela imprensa periódica da época, em almanaques, jornais e revistas literárias como por exemplo, n’A folha, A estreia literária, A mulher, Portugal pitoresco, O contemporâneo, Ave azul, Álbum literário, interessa-nos mapear a presença do trabalho da autora, incluído no Almanaque de lembranças luso-brasileiro onde, exceção feita aos Almanaques de 1867, 1869 e 1870, manteve uma participação muito significativa, assídua e constante em todos eles, abrangendo uma composição póstuma inserida no Almanaque de 1926, com o título: “Três cantos”.
Itinerário poético. Colaboração de Amélia Janny no Almanaque de lembranças luso-brasileiro Tomando como objeto de análise a colaboração da autora no Almanaque de lembranças, procuraremos, de seguida, considerar algumas das manifestações poéticas aí compreendidas que dão a ler os seus interesses e gosto pela poesia, pela cultura e por alguns dos seus ilustres representantes: Camões, Victor Hugo, Lamartine. 3
Ainda que o Almanaque de lembranças para 1871 tenha anunciado estar no prelo um volume da autoria da poetisa intitulado Violetas, tal projeto não terá chegado a publicar-se. Sabe-se ainda que, por solicitação da poetisa Maria Manuela de Brito e Castro Figueiredo, Marquesa de Pomares, em 1914, Amélia Janny estava a reunir a sua produção literária com vista à publicação, mas foi também um trabalho inacabado. A Câmara Municipal de Coimbra editou recentemente a obra da autora. É o que refere, em entrevista, António Manuel Couto Viana (versão eletrónica consultada a 15 de maio de 2014 em http://conversamuitaconversa.blogspot.pt/2010/06/antoniomanuel-couto-viana-1923-2010.html.
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Uma leitura de títulos, feita ao acaso, será suficiente para indiciar as temáticas mais recorrentes: “Adeus”, “Um sonho”, “A borboleta”, “Saudade”, “Versos escritos n’uma carteira”, “Junto d’um berço”, “Saudação”, “O ermo”, “Mudança”, “No álbum d’um artista”, “Camara ardente”, “Estâncias”, “Contracto”, “Tão cedo”, “Três cantos”. Lugares estratégicos, essas instâncias titulares criam condições de legibilidade e dão a ler o processo genético dos textos, na grande maioria, associado a circunstâncias biográficas. Em muitas dessas mensagens ante liminares de acompanhamento são inclusivamente apontados os seus destinatários privilegiados: “A Elisa Volpini”, “O seu dia de anos, à minha querida amiga D. Emília Sophia”, “À insigne pianista Rita de Vasconcellos Abreu”, “A Celestina de Paladini”, “a Júlia Ribeiro”, assumindo, dessa forma, uma função de dedicatória pública reveladora da paisagem de afetos da autora, da sua rede de relações e cumplicidades eletivas. Os dedicatários perduram, eternizam-se, enquanto os textos durarem, numa poesia intimista cuja matéria-prima recorrente são hinos à amizade a pretexto de celebração de aniversários, felicitações, incitamento à produção poética, gratidão reconhecida por provas de carinho idênticas, a que Janny corresponde também em verso: “Bem-vindos versos – bem-vinda a afeição que m’os envia, / que à minha tristeza ainda / traz um raio d’ alegria”4 . Vejamos, em síntese, alguns modos como a voz poética organiza o discurso, nas cerca de três dezenas de composições contidas no Almanaque, de acordo com as principais temáticas abordadas, agregados, grosso modo, em três vertentes básicas: – Poesia celebrativa e de circunstância; – Poesia reflexiva e confessional; – Poesia de exaltação e de pendor laudatório.
4
“A propósito d’uns anos”, Almanaque de lembranças luso-brasileiro para 1884, p. 292.
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Poesia celebrativa e de circunstância “N’um dia d’annos”, “Junto d’um berço”, “A propósito d’uns anos”, “A minha jovem prima D. Palmira Caldeira Galvão”, entre muitos outros, são títulos de poesias oferecidas como presentes a familiares e amigas, testemunhos da rede de afetos da autora que dão a ler a motivação próxima para a escrita, o seu ponto de partida: provas de carinho e reconhecimento por aqueles a quem são endereçadas. Revitalizando temas já vastamente tratados, o “eu lírico” anota, recompõe, exprime o que vê, ama e sente. Do ponto de vista linguístico formal encena-se a oralidade (tenha-se em conta o facto de grande parte destes textos se destinarem a ser publicamente declamados). No eixo comunicativo de base, a voz poética elege um destinatário intratextual, a quem se dirige, em discurso direto, manifestando a ternura grata que lhe desperta. Em quase todos os poemas se verifica o elogio, a exaltação panegírica, quando louva os méritos de uma insígne pianista cuja melodia consegue, “sobre o teclado do piano”, elevar a alma aos “gozos do céu”. À prima Palmira aconselha, em tom desiderativo, por ocasião da sua primeira comunhão que busque conforto na espiritualidade, conservando os arminhos da santa inocência, de modo a guardar intacto, “o casto aroma”, das suas virtudes morais. “Em um berço” lança-se um olhar enternecido à paz e harmonia da infância, não amedrontada ainda por um porvir, que, contrastado com essa época de inocência, em nada será propício a preservar a mesma serenidade prezada e querida. Também nos “Versos escritos sobre uma carteira” se relembra uma existência já alumiada pelo sol da juventude, que foi, afinal, bastante fugaz e passageira. Nos “Versos escritos a Júlia Ribeiro” reconhecendo que o tempo, “muda de cores os sonhos do passado”, procura-se conforto moral, na inestimável dedicação e benquerença dos amigos: “Se é perdida a mocidade, / Há outra viçosa e linda. / A afeição não tem idade”5 . 5
“Versos a Júlia Ribeiro”, Almanaque de lembranças luso-brasileiro para 1887,
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A par destes eixos temáticos, merecem igualmente tratamento poético assuntos de pendor elegíaco, sentidas homenagens, requiens devidos à perda ou ao vazio afetivo deixado pela ausência de ente-queridos desaparecidos: à querida amiga Emília Sophia presta a autora sentida homenagem enviando-lhe uma lágrima pesarosa pela dor que a subjuga e magnetiza motivada pela perda da mãe, numa saudade sem esperança que aumenta ainda mais no dia do aniversário6 .
Poesia confessional /reflexiva Contudo, se a grande maioria das composições agora convocadas ocorrem conexionadas com comemorações de datas festivas, ou homenagens a familiares e amigos, em muitas delas, não deixa de estar igualmente presente uma feição mais emotiva, de espontaneidade emocional que procura a libertação interior de um “eu”, através do sonho, ou devaneio, em demanda de evasão e fuga a uma existência banal e entediante, cuja efemeridade é dolorosamente sentida. Em consequência, a poesia de Janny pode, nessa conformidade, manifestar-se também como espelho de alma, através de temáticas particularmente gratas a uma sensibilidade romântica de que não está ausente o prazer melancólico por cenários de ruína, ou paisagens outoniças, configurados em composições como: “À sua amiga Júlia Ribeiro. Com uma memória intertextual de Lamartine, citado em epígrafe: «le deuil de la nature convient à la douleur et plait à mes regards», o poema alude à natureza assimilada ao estado de alma da poetisa, em que os gemidos de outono se casam aos meus / no dia em que, extintos, secarem meus prantos, dizendo-lhe meu último adeus”7 . p. 460. 6 “O seu dia de anos”, Almanaque de lembranças luso-brasileiro para 1873, p. 339. 7 “Outono”, Almanach das senhoras de 1871 para 1872, p. 37.
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“Adeus”, “Saudação”, “Saudade”, são outras produções que analogamente sintetizam o desejo de estar num espaço e tempo outros, dado o sofrimento, ou vazio afetivo de um presente ocasionado por ausências e, em especial, pela passagem do tempo. Contrasta-se um passado de ventura, em vão procurada, com um presente vago e triste motivado pela saudade e impossibilidade de recuperar o tempo perdido. A prevalência incontestável de temáticas articuladas com sentimentos de saudade, insistentemente reiteradas, podem reenviar para características manifestas da alma, da personalidade cultural portuguesa relevando de uma ambiguidade fundadora, misto de dor e comprazimento simultâneos: dor motivada por uma ausência e comprazimento pela recuperação pela memória dessa ausência. Com efeito, noutro tipo de poesia mais acentuadamente digressiva e descritiva patenteada em composições como “Um sonho”, “O ermo”, “Estâncias” insinua-se uma vertente predominantemente romântica com temáticas relacionadas com estados de alma de um sujeito, votado ao malogro e à desdita em introspeção que acumula, na escrita, ansiedades, angústias, inquietações e anseios: “Mente mil vezes a esperança quando promete ventura. Na vida tudo aparência /tudo falso como o Oceano, / Naufraga a nossa existência / nos sorvedouros do engano”8 .
Poesia de exaltação patriótica ou de pendor laudatório A par dessa escrita de circunstância e de uma outra de cariz mais reflexivo e confessional, a que aludimos, Amélia Janny não deixa, todavia, de cultivar também poesia de dimensão social e de exaltação patriótica, ainda que em menor número, condensada em títulos como “A Pátria” e “A Camões”, poemas declamados no teatro académico de 8
“Estancias”, Almanaque de lembranças luso-brasileiro para 1889, p. 477.
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Coimbra, o primeiro distribuído impresso aos espectadores e o segundo declamado por ocasião do sarau comemorativo do terceiro centenário da morte do épico português, em que, após o encómio feito ao autor dos “assombrosos versos” da epopeia, o toma como modelo a seguir pelos mais jovens no amor ao estudo, à pátria e à liberdade, tentando resgatá-lo do pouco apreço da crítica. E o pendor laudatório recai também sobre o talento e a arte, encarados com motivações de ordem subjetiva, provindos de uma inspiração, sempre perseguida, a que se alia o estudo firme e persistente com vista a um consequente reconhecimento e justa celebridade e reputação. E, nessa conformidade, a reflexão metapoética “No álbum d’um artista”, concebe que: O artista não tem pátria É seu destino correr atraz d’um vulto fantástico que lhe sorriu ao nascer. Estudando em toda a parte, Firme, alegre, a sua história, Tendo um só afecto: – a arte – Um sonho apenas: – a glória! –9
O sonho do artista será, por conseguinte, deixar à posteridade um legado, ou património, que permita a sua continuidade, isto é, perpetuar-se para além da morte: “le dur désir de durer” de que falava Paul Éluard. Numa poesia consubstanciada em repositórios, ou recoleção de afetos, Amélia Janny expõe, expondo-se, deixando no seu percurso traços do que é necessariamente fugidio e precário. Ao recuperar pessoas, imagens, lugares de um tempo perdido, essa poesia pode adquirir uma funcionalidade próxima das cartas, ou fotografias guardadas por devoção, com valor afetivo, mitigando, desse modo, efeitos causados pela 9
“No álbum d’um artista”, Almanaque de lembranças luso-brasileiro para 1883, p. 283.
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passagem do tempo, numa escrita, apaziguadora de estados de ansiedade e angústia que pode alcançar uma eficácia terapêutica. Nela confluem sinceridade e sensibilidade, atributos máximos de todo o artista.
Fortuna crítica da obra Nesta breve exposição foi nosso propósito realçar apenas algumas das linhas de força fundamentais da colaboração de Amélia Janny, embora coincidamos com os que consideram que a melhor maneira de falar de poesia seja dizê-la (lê-la) ou deixar que ela se diga, como era, de resto, prática da autora quando declamava ou recitava os seus versos. Apesar de desiguais, as suas propostas estéticas não deixaram de se revelar, desde sempre, bastante interessantes, tendo tido na época uma receção muito favorável, com vozes compreensivas e entusiásticas, reveladoras de boa aceitação e merecido acolhimento. Efetivamente, não será inexato afirmar que a intensa atividade literária da autora, marcada por uma poesia subjetiva, individual, inspirada nas grandes matérias da vida: alegria/dor, amizade/amor, saudade/esperança, foi acolhida com afável elogio e admiração pelos seus coetâneos testemunhados em textos publicados no próprio Almanach das senhoras, como foi, entre outros, o caso de Guiomar Torrezão10 . Referindo-se identicamente aos resultados estéticos da produção de Janny, Pedro Eurico comenta em Figuras do passado: Era interessantíssimo o seu dizer, cheio de observação e de espírito. E nunca faltava assunto! Mulher inteligentíssima, dotada 10
Guiomar Torrezão, “Amélia Janny”, Almanach das senhoras para 1874, 1873, pp. 1-7. Virgínia Faria de Gersão considera que: “Amélia Janny sabia escolher os temas que dominam as multidões, e, a alma bem portuguesa, numa época em que a Literatura pedia tudo ao sentimento, aliando a facilidade de escrever ao seu estro romântico”.
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Maria José Meira de rara memória, durante meio século, esteve, naquela casinha de formosa encosta a ver e registar todos os acontecimentos, conhecendo, mais ou menos, todos os homens distintos das diversas gerações académicas, que, nesse largo período, passaram por Coimbra!11
Convém notar que para a sua consagração e sólida reputação no quadro da Cultura da época concorreram também as letras compostas para fados que Janny, para além de redigir, executava ao piano em variados saraus, tendo sido intensamente aplaudida, através de laudatórias e encomiásticas apreciações críticas. Parece pertinente salientar ainda que o seu contributo para as Letras e Cultura Portuguesa em diferentes formas de intervenção pública valeram-lhe inclusivamente vários prémios e condecorações, entre eles, o colar do Instituto de Coimbra e o prémio do concurso da Academia de Monte Real, atribuído à poesia: “Victor Hugo”. Grandes poetas daquela época, entre os quais António Feliciano de Castilho e João de Deus, impulsionados pelos singelos versos de Janny, louvaram o seu estilo e inspiração. O segundo dedica-lhe inclusivamente um poema, com o seu onomástico no título: A A. Janny e de onde podem destacar-se os seguintes versos: Oh Janny, teus ais me exaltam; Partem d’alma e n’alma ecoam; Filhos de alma à alma voam, Sim, Janny! E se as lágrimas te esmaltam, 11
Pedro Eurico (pseudónimo de Augusto Carlos Pinto Osório), Figuras do passado, Lisboa, José Bastos, 1915, p. 221. E muitos outros corroboram também os méritos da talentosa escritora. Para Mendes dos Remédios (História da literatura portuguesa): “A sua musa é tranquila, doce e perfumada, como o foi todo o seu viver, consagrado ao amor de Coimbra, à amizade do pequeno grupo de admiradores que com ela conviviam, ao círculo de grandes e fecundos ideais que lhe povoavam o coração – a amizade entre os indivíduos, a paz entre os cidadãos, o progresso e a liberdade”.
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Te aljofaram, te matizam, Pelas faces me deslizam o a ti. Mas tu, flor! brotaste agora: Quando o sol mal te inda aponta, Porque choras como à conta Do porvir? Se ela a flor sorri à aurora, Tua irmã na primavera [. . . ] Tu Janny, nas asas tuas Do teu génio, tens anelos, Que pediam sonhos belos E d’amor Sonhas inda; lá flutua Já nas águas do diluvio Viva imagem, sopro, eflúvio Do Senhor!12 [. . . ]
Numa espécie de intercomunicação literária, ou carta em verso, Amélia Janny é enaltecida por João de Deus, em sentida homenagem pela sua sensibilidade e dotes artísticos, reconhecendo-a pelas temáticas abordadas como sua irmã, em poesia. Conquanto, recentemente, António Manuel Couto Viana se tenha esforçado também por reabilitar a memória da “poetisa do Mondego”, num estudo a ela consagrado, no seu último livro de ensaios, escrito pouco tempo antes da sua morte em junho de 2010, numa coletânea crítica sobre escritores e literatura, considerando-a “formalmente perfeita”13 , Janny permanece ainda injusta e imerecidamente na penumbra. 12
Versos inicialmente publicados no Almanaque de Ponte de Lima e mais tarde incluídos na coletânea Campo de flores. 13 Não conseguimos apurar se esse estudo terá já sido publicado ou não (ver http:/ /conversamuitaconversa.blogspot.pt/2010/06/antonio-manuel-couto-viana-1923-201 0.html, consultado a 10 de junho de 2013).
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Do vasto conjunto de escritos com que colaborou no Almanaque, rastreámos apenas alguns sulcos de manifestações estéticas de uma autora que merece uma reflexão mais atenta e sistemática mas que não caberia no âmbito desta curta apresentação.
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Referências bibliográficas
CASTRO, Zília Osório de, e ESTEVES, João (dir.), Dicionário no feminino (séculos XIX-XX), Lisboa, Horizonte, 2005. JANNY, Amélia, “A propósito d’uns anos”, Almanaque de lembranças luso-brasileiro para 1884. _______, “Versos a Júlia Ribeiro”, Almanaque de lembranças lusobrasileiro para 1887. _______, “O seu dia de anos”, Almanaque de lembranças luso-brasileiro para 1873. _______, “Estancias”, Almanaque de lembranças luso-brasileiro para 1889. _______, “Outono”, Almanach das senhoras de 1871 para 1872. _______, “No álbum d’um artista”, Almanaque de lembranças luso-brasileiro para 1883. TORREZÃO, Guiomar, “Amélia Janny”, Almanach das senhoras para 1874. EURICO, Pedro (pseudónimo de Augusto Carlos Pinto Osório), Figuras do passado, Lisboa, José Bastos, 1915.
Parte IV A PRESENÇA FEMININA NA IMPRENSA BRASILEIRA
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Luciana de Abreu e a luta pelos direitos da mulher Beatriz Weigert1 beatriz.weigert@gmail.com
O que convém pedir é, de parceria com a educação, a instrução superior comum a ambos os sexos; é a liberdade de esclarecer-nos, de exercer as profissões a que as nossas aptidões nos levarem. Luciana de Abreu2
Luciana de Abreu, professora de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, obtém, em vida, homenagens pela sua atuação como educadora. Hoje sua memória perpetua-se como denominação de rua e de Escola 1 Universidade de Évora e Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL). 2 Apud Benedito Saldanha, Luciana de Abreu, Porto Alegre, Edições Museu Júlio de Castilhos, 2012, p. 72.
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de Porto Alegre. É a Escola Luciana de Abreu do bairro Santana, e é a rua Luciana de Abreu do bairro Moinhos de Vento3 . Esta Professora desde muito cedo destaca-se em reuniões e saraus familiares, tanto pela declamação de poesia, como pela exortação aos direitos da mulher. De oradora infantil transforma-se em conferencista eloquente. Luciana de Abreu tem como data de nascimento o dia 11 de julho de 1847 e de falecimento o dia 13 de junho de 1880. Vida breve e fecunda, tal a pujança de seu trabalho e a intensidade de sua influência. Nascida de pais desconhecidos, porque abandonada na Roda dos Enjeitados da Casa de Misericórdia4 , é adotada por Gaspar Pereira Viana e sua esposa que lhe proporcionam educação esmerada, rodeada de livros e estímulos. Ao instalar-se a Escola Normal de Porto Alegre em maio de 1870, Luciana é das primeiras a matricular-se, diplomando-se em 1872, e logo candidatando-se à Cadeira Pública5 , tendo sido nomeada professora provincial em 1873. O trabalho que cumpre na comunidade, granjeia-lhe tal prestígio que aos 27 anos já é reconhecida como professora talentosa e dedicada6 . Além da lecionação no ensino público, mantém escola particular, ministrando cursos informais de educação às mães de família7 . Torna-se conhecida, obtendo reputação de grande educadora na capital. Por esse motivo, a Sociedade Partenon Literário (1868-18868 ) – agremiação que reúne intelectuais insignes –, ao pretender convidar uma representante do sexo feminino para orar em um de seus saraus, busca Luciana de Abreu, e não só para aquele 3
Anotações feitas a partir de Benedito Saldanha, Luciana de Abreu, op. cit., p.
88. 4
O nome vem escrito, junto à recém-nascida, em um bilhete que diz: “Minha comadre, quero que a minha afilhada chame-se Luciana Maria da Silva” (ibidem, p. 18). O sobrenome Abreu deve-se ao casamento, em 1867, com João José Gomes de Abreu (ibidem, p. 32). 5 Cf. ibidem, p. 35. 6 Cf. ibidem. 7 Cf. ibidem, p. 36. 8 Cf. ibidem, p. 59: “Depois de janeiro de 1886, pouco se sabe sobre o Partenon Literário, o que nos leva a crer na sua dissolução”.
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ato específico, mas promovendo sua inscrição como sócia efetiva deste centro cultural. Importante referir que a agremiação, além da publicação de obras de seus sócios e a difusão da cultura, através da Revista Mensal da Sociedade Partenon Literário (1869-1879) inclui, nos seus objetivos, a luta pela libertação dos escravos, pela implantação da república e pela valorização da mulher na sociedade. De modo que a conferência de Luciana de Abreu, “Educação das mães de família”, proferida no dia 20 de dezembro de 1873, no âmbito do sexto sarau da agremiação, marca a atuação da Professora como “a primeira mulher, no país, a falar em público sobre a emancipação feminina”9 . A repercussão é de tal grau que a Sociedade agradece à Educadora com uma homenagem, que lhe presta, no dia 31 de janeiro de 1874. Nesta ocasião, há discursos10 , e oferecimento de prendas de valor, como a chamada “cruz de ouro do Partenon”. Na Sociedade Partenon Literário, além da preleção às mães de família, Luciana profere, por ocasião das sessões comemorativas do sétimo e do undécimo aniversário do Centro, dois discursos, “Emancipação da mulher” e “Partenon Literário”. São essas três comunicações que se editam na Revista da agremiação11 . A maioria de suas intervenções é feita de improviso e, de suas muitas conferências, ficam apenas registros em pequenos resumos12 . Sabe-se13 , no entanto, que Luciana reunia, com dedicação e esmero, textos que havia pronunciado no Partenon e em outros locais. Esses trabalhos constituiriam seu primeiro 9
Ibidem, p. 43. Cf. ibidem, p. 44: “Uma comissão de senhoras oferece um tinteiro de prata, uma caneta de ouro e um álbum. Em nome do Partenon, Apeles Porto Alegre faz o elogio da homenageada e José Bernardino dos Santos oferece-lhe a medalha de ouro chamada «cruz de ouro do Partenon». Em nome da Sociedade Ensaios Literários saúdam-na Damasceno Vieira e Alves Torres”. 11 Respetivamente nos números de dezembro de 1873; de junho de 1875 e de junho de 1879. 12 Cf. Benedito Saldanha, Luciana de Abreu, op. cit. , p. 44. 13 Cf. ibidem, p. 55. 10
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livro, levando o título de Preleções. A doença, porém, lhe sobreveio e o volume em preparação, após a morte da Professora, perdeu-se14 . As conferências classificam-se no gênero demonstrativo, estruturando-se de acordo com a organização retórica, em exórdio, proposição, conclusão. Na entrada, vem a captação da benevolência do ouvinte, com a oradora a apresentar-se com modéstia, carente de predicados. Mas também pode fazer rememoração histórica. Na segunda fase, a proposição divide-se conforme os pormenores a serem arrolados. Na conclusão, há a revisão dos itens desenvolvidos, encerrando com louvores e apelos. No discurso “Partenon Literário”, Luciana de Abreu inicia sua oração colocando-se como a viúva do Evangelho, parca de recursos e plena de boa-vontade. Saúda o Partenon pelo seu undécimo aniversário para, a seguir, fazer o inventário do estágio cultural em que Porto Alegre se encontra ao surgimento da Sociedade. Significa o avanço que o grupo do Partenon imprime, de tal modo que, distanciando-se da tribuna político-partidária, inaugura a tribuna literária, de onde se ressaltam valores do saber. Luciana elogia o grupo, ao referir ser “a literatura o mais imperecível monumento que se pode levantar a um povo, a um século, a um herói”15 . Os exemplos fluem no entusiasmo que se completa no chamamento à “mocidade rio-grandense”, para acolher-se “à sombra do Partenon” e cultivar o que o grupo propõe. Da convocação aos jovens, volta-se para as mulheres – “E vós, senhoras brasileiras” – a lembrar que “ontem” estavam “proscritas da ciência e consideradas apenas meros ornatos dos salões” e que hoje o Partenon lhes dá um lugar de honra no “banquete do progresso”. Concitando-as a estrearem no Partenon o uso dos seus direitos, pergunta: “Não ouvis que ele vos chama?” Fala às mulheres aconselhando-as a aproximarem-se da instrução e da produção16 . Para concluir, reitera o valor da Sociedade 14
Cf. ibidem, p. 56: “serviram para alimentar o fogão à lenha, onde a segunda esposa de João José preparava as refeições”. 15 Ibidem, p. 80. 16 Ibidem, p. 81.
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Partenon Literário, que, na História do Rio Grande do Sul, dará a página “mais rica de amor e patriotismo, de esforços e dedicação às letras nacionais”17 . Em “Emancipação da mulher”, Luciana abre seu discurso, recordando, na História, as épocas que deram impulso às letras, artes, ciências e filosofia, para introduzir o elogio à Sociedade Partenon Literário. Mostra o progresso que esse centro cultural traz às comunidades, pela ação educativa em muitas áreas do conhecimento. E é por esse caminho que a oradora chega ao tema escolhido, quando diz que “a mais possante ideia que o Partenon tem abraçado” é a “da Instrução, dos direitos, da emancipação da mulher”18 . Compreende o Partenon que, sem a realização dessa ideia, todas as outras serão ocas de significado, e que só “a mulher culta e moral” saberá “resolver com vantagem os difíceis problemas da instrução universal”. Acrescenta ainda que “só ela”, a mulher, poderá “plantar no coração da mocidade os sãos princípios da ordem na liberdade”19 . Para terminar, a Professora posiciona-se como fraca e sem brilho, mas que obtém a acolhida da Sociedade que lhe confia a sua tribuna. Identifica-se como filha do Partenon, acalentando o desejo de ver a “mulher na altura sublime a que a destinou a Providência”, louvando o Partenon como o “denodado campeão, nesta santa cruzada do futuro”. Saúda o grupo pelas lides do passado, pelas glórias do presente e pelas esperanças do futuro20 . Em “Educação das mães de família”, tem-se o modelo do discurso argumentativo. O que pretende é obter a persuasão do ouvinte. O título indica o destinatário. Para educar as mães de família é preciso conscientizá-las de seu valor, e de seus direitos, contrapondo teses e lugares comuns. O que se lê é a explanação de comportamentos. De um lado a imputação de defeitos votados às mulheres, de outro lado o levantamento de atitudes dos homens no tratamento ao sexo feminino. 17 18 19 20
Ibidem, p. 82. Ibidem, p. 77. Ibidem, p. 78. Ibidem.
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Na introdução, a oradora assume sua modéstia diante das “inteligências esclarecidas”. Faz alusão a Atenas, Sócrates, às filhas do Liceu e da Academia que ouvem o Mestre, para realçar “a palavra, essa poderosa arma da civilização” que “não deve ser escasseada, ainda pelos mais obscuros”21 . Por esse motivo, Luciana diz ousar ocupar a tribuna. E, então, pelo chamamento “Meus senhores”, entra na proposição do tema que é a preparação da mulher. Ao Partenon Literário, rende homenagem pelo seu empenho em dedicar-se à “grande obra do futuro na educação da mãe de família”. Mas é pelo vocativo “Minhas senhoras” que a Educadora dá voz à sequência do argumento, comprovação e refutação. Verdadeira esgrima retórica desencadeia-se na liça em que um só lutador vibra a arma do ataque e a da defesa. Luciana de Abreu enumera queixas da falta de reconhecimento do valor da mulher – “nós temos sido vítimas [. . . ] nós temos sido olhadas [. . . ] nós temos sido caluniadas” – e, ao mesmo golpe, exibe provas de refutação. Os exemplos ilustram posicionamentos, as interrogações retóricas sucedem-se em gradação, o vocativo, cúmplice às senhoras, cede lugar à indigitação “Vós”, ao adversário que persegue a vítima. O fecho, porém, apela às “senhoras”, na conclusão de que “nós aparentemente os vencidos, somos na realidade os vencedores”22 . As queixas a acusações refutam-se com o facto evidente. Afirmações denegridoras rebatem-se com a comprovação da vivência. Enquanto o lamento desdobra-se, completa-se a estrutura. Orações declarativas conduzem às orações temporais. Derrubam-se teses, mostra-se a realidade: Nós temos sido caluniadas, dizendo-se que somos incapazes dos grandes acontecimentos, que somos de inteligência fraca, de perspicácia mesquinha, e que não devemos passar de seres caseiros de meros instrumentos do prazer e das conveniências do homem, quando o nosso ensino tem preparado os mais perfeitos 21 22
Ibidem, p. 69. Ibidem, p. 73.
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heróis da humanidade; e quando à testa das nações, quer na cadeira, quer na oficina modesta do operário, temos dado exemplos de assombrar os povos e os séculos!23
A vida é a prova irrefutável. Considera-se a privação do saber e dos direitos, no compasso da condição de “escravas dos caprichos políticos de legisladores”, quando elas são as educadoras que preparam os filhos para a virtude24 . E vem à luz o procedimento dos homens que “pela mor parte inteligentes e instruídos” aproveitam-se da miserável educação que homens e mulheres recebem. O exemplo da serpente no paraíso serve para reforçar que hoje, para cada Eva seduzível há um mundo de serpentes. Contra essa multidão de reptis que se arrastam pelos pavimentos de mármore e pelas alcatifas de veludo, só há um recurso: a boa educação. A pobre criatura que apenas sabe vestir-se e adornar-se para agradar porque se não lhe ensinou mais, crê em qualquer farsante.25
A educação é insuficiente e não chega onde deve chegar, sendo as mulheres colocadas em patamares muito rebaixados. Impossível, então, querer-se sábias e instruídas, se não há recursos, e as mulheres são impedidas de frequentar as academias, “os pórticos dos templos da ciência”. E aqui dois pedidos inserem-se. O primeiro é a “instrução superior comum a ambos os sexos” e a promessa de que, em dando educação, as mulheres tomam posição legítima pelo trabalho. O segundo pedido é às senhoras, apelo que se constitui profissão de fé de cada uma compenetrar-se do “importante papel que lhe está confiado”, lembrando que se o homem é considerado o rei da criação, a mulher é a rainha26 . 23 24 25 26
Ibidem, p. 70. Ibidem. Ibidem, p. 71. Ibidem, p. 72.
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O repto vem na parte final, em que a declaração se completa pela interrogação retórica. A apóstrofe brada – “Vós que rebaixastes a dignidade da mulher! Eu vos chamo a juízo no tribunal de vossa própria razão.” – e segue mostrando que o ser “vilipendiado por vós” deu a vida a heróis e sábios, amamentou-os e guiou-lhes os primeiros passos. Pede que recordem sua própria vida, perguntando quem lhes ensinou a balbuciar as primeiras palavras, e a modular o instrumento “que hoje” voltam contra a mulher. Luciana de Abreu aponta a importância da presença feminina em variadas circunstâncias. Para finalizar acusa que os homens negaram às mulheres o direito de obter cargos e honras, contudo deixaram a elas o direito de distribuí-las. Fecharam as portas da ciência, mas não podem privá-las de avassalar os sábios e os heróis com os recursos do seu engenho. Levantados itens significativos para demonstrar os entraves que se colocam para o sexo feminino, na aquisição do conhecimento, a Educadora enfatiza a relevância do papel da mulher na sociedade, encerrando sua peroração a afirmar: “Senhoras, nós aparentemente os vencidos, somos na realidade os vencedores”27 .
27
Ibidem, p. 73.
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Referências bibliográficas
SALDANHA, Benedito, Luciana de Abreu, Porto Alegre, Edições Museu Júlio de Castilhos, 2012.
Eglê Malheiros e a revista SUL: poesia e prosa de uma mulher de vanguarda Maristela da Rosa1 ma.marirosa@gmail.com
Norberto Dallabrida2 norbertodallabrida@hotmail.com
Nascida no final da década de 1920, Eglê da Costa Ávila Malheiros viveu parte da infância e toda a adolescência no período histórico conhecido como Estado Novo (1937-1945), cuja ideologia traçava para a mulher brasileira um papel bastante específico, qual seja: o de “coadjuvante na cena histórica”. Nas primeiras décadas do século XX, mesmo com alguns pequenos avanços como o acesso muito restrito de mulheres ao ensino superior e a algumas profissões, o gênero feminino ainda deveria preservar atributos de pureza, doçura, moralidade cristã, 1
Mestra e doutoranda em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). 2 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
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maternidade, generosidade, espiritualidade e patriotismo, reforçando, assim, no campo feminino, o ideal da mulher do lar e esteio da família e da nação3 . Mulheres deveriam se voltar aos problemas domésticos, mantendo-se alienadas dos problemas na esfera pública, exercendo a função da mãe/esposa/educadora. Esse “projeto” de mulher foi ressignificado durante a ditadura estadonovista por uma intensa campanha do Ministério da Educação e Saúde – órgão para o qual a figura feminina representava um dos principais aliados no seu ideal de educação4 . Com o fim do regime autoritário chefiado por Getúlio Vargas, em 1945, o Brasil foi palco de um movimento social conhecido como “redemocratização”, marcado por grandes mudanças ocorridas nos campos político, econômico, social e cultural. Na área econômica, houve um grande desenvolvimento, alavancado por um intenso processo de urbanização e de industrialização. Na década de 1950, aumentou-se o poder de consumo das massas, a classe média ascendeu socialmente e estenderam-se as possibilidades educacionais e profissionais para homens e mulheres. Papéis e lugares sociais femininos se ampliaram, sobretudo pelo aumento dos níveis de escolarização da mulher e sua participação no mercado de trabalho. Houve mudanças nas representações culturais acerca da educação feminina e também do papel das mulheres na nova sociedade que se constituía no segundo pós-guerra. Outras formas de ser mulher emergiram, mas ainda vigoravam fortemente as formas tradicionais caracterizadas pela ocupação doméstica e pelo cuidado com a família, além dos “instintos femininos” como maternidade, pureza e resignação. Algumas mulheres permaneceram como “coadjuvantes”, outras, entretanto, abriram o caminho para o reconhecimento da sua autonomia como seres humanos, cujos “questionamentos e contestações colocaram em perigo as normas de comporta3
Jane Soares de Almeida, Mulher e educação: a paixão pelo possível, São Paulo, UNESP, 1998; Semiramis Nahes, Revista FON-FON: a imagem da mulher no Estado Novo (1937-1945), São Paulo, Arte & Ciência, 2007. 4 Simon Schwartzman, Helena Maria Bousquet Bomeny, Vanda Maria Ribeiro Costa, Tempos de Capanema, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000, p. 23.
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mento e contribuíram para a ampliação dos limites estabelecidos para o feminino”5 . Ao ajustar o foco sobre uma mulher em especial, é possível perceber que Eglê Malheiros trilhou uma trajetória social que a afastava do papel de coadjuvante. Mulher de vanguarda, ela foi “protagonista” de sua história e por vezes “atuou como personagem principal” nos campos em que marcou presença. Nascida numa família de origem social favorecida, ela teve acesso a instituições educativas de boa qualidade e acúmulo considerável de capital cultural. Foi militante comunista, atuando como membro do Partido Comunista Brasileiro e, no movimento modernista, ajudou a fundar e integrou o Círculo de Arte Moderna (CAM) – mais conhecido como Grupo SUL. No ano de 1947, era a única representante do gênero feminino da sua turma na Faculdade de Direito de Florianópolis (SC). Nesse mesmo ano, escolheu ser professora de História no sistema público de ensino. Na sala de aula, optou pelo aporte teórico-metodológico marxista na tentativa de conduzir os alunos a reflexões que extrapolassem o livro didático, definido por ela como uma lista descontextualizada de nomes e datas. Durante o período em que exercia a função de professora, Eglê Malheiros afirma ter sofrido alguns processos administrativos, e sua postura político-ideológica pode ser percebida, inclusive, pelo facto de ter sido uma das fundadoras do Grupo SUL. O Grupo SUL, que teve início em 1947, não restringia sua atuação à literatura, alcançava também as artes cênicas e plásticas e o cinema. Já no seu primeiro ano, representou peças de George Bernard Shaw, Luigi Pirandello e Jean-Paul Sartre. Essas encenações serviram também para financiar os primeiros números da revista que tornaria o Grupo conhecido no Brasil e no exterior: SUL – Revista do Círculo de Arte Moderna. Em oposição ao “ambiente cultural acomodado”, à cultura oficial e elitista, que primava pela perfeição formal e o purismo linguístico, os audaciosos jovens assumiram posturas francamente contes5
Carla Bassanezi, “Mulheres dos anos dourados”, in Mary Del Priore (org.), História das mulheres no Brasil, São Paulo, Contexto, 2004, pp. 608-609.
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tatórias, desafiando, inclusive, os tradicionais intelectuais acadêmicos, “as propostas modernistas do Grupo SUL vão sacudir este marasmo intelectual”6 . Durante a década de 1940, no Brasil, surgiram inúmeras revistas de cunho literário, no entanto, sem publicação regular. Estas publicações eram geograficamente distanciadas – Horizonte e Quixote (Rio Grande do Sul), Agora (Goiás), Novo mundo (Rio Grande do Norte), Letras da província (São Paulo), Juventude (Rio de Janeiro), entre outras – mas, unidas pelas mesmas propostas intelectuais que buscavam renovação cultural. Os jovens intelectuais envolvidos nas publicações recebiam as mesmas influências de Marx, Proust, Sartre, etc., por isso convergiam para o mesmo intuito de mudança. A maioria destas revistas teve curta duração, com exceção da revista SUL, que sobreviveu bravamente por dez anos7 . Os jovens do Grupo SUL aspiravam editar uma revista que fosse sua linha de frente na luta pela transformação da cultura em Santa Catarina. Esperava-se que a revista SUL fosse o meio de comunicação de maior alcance e que, através dela, fosse possível transmitir o ideário modernista. Então, entre os anos de 1948 e 1957, na cidade de Florianópolis, a revista SUL foi o veículo de disseminação das ideias dessa associação artístico-cultural. Assim, esse trabalho intenta apresentar as produções em poesia e prosa de Eglê Malheiros, a única mulher que integrava o Grupo SUL, que também era militante comunista e professora de História na rede pública de ensino. Para tanto, inicialmente coloca-se a lupa sobre a constituição e a inserção de Eglê Malheiros no Grupo SUL e, no segundo momento, apresenta-se análise de alguns dos textos escritos de autoria dessa escritora publicados na revista SUL.
6
Lina Leal Sabino, Grupo Sul: o modernismo em Santa Catarina, Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura, 1981, p. 128. 7 Ibidem, p. 24.
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O Grupo SUL e sua revista O Grupo SUL encontrava-se com frequência. Sem sede própria, as reuniões ocorriam em cafés e bares e o ponto de encontro mais tradicional passou a ser o antigo “Café Rio Branco”, situado à Rua Felipe Schmidt no centro de Florianópolis – a capital catarinense. Desses encontros, Eglê Malheiros não participava, pois, não seria um “local adequado a uma moça”. Foi assim que a chácara do seu avô se transformou em ponto de reunião dos jovens modernistas. Ao cair da tarde, encontravam-se para discutir ideias e ouvir músicas. Começaram discutindo literatura, teatro e cinema e, logo, sentiram a necessidade de escrever e publicar. O Grupo SUL dedicou-se a múltiplas atividades culturais, como, por exemplo, o teatro. Liderados nesse setor por Ody Fraga e Silva, em 1947, fundam o Teatro de Câmara do CAM, constituído pelos mesmos integrantes do Grupo SUL. Com o “teatro moderno” encenaram peças de Jean Paul Sartre e Bernard Shaw, entre outros, e também algumas de sua própria autoria, escandalizando o público florianopolitano, que era acostumado a assistir representações de comédias e de dramas. Eglê Malheiros fazia parte do elenco. “A terceira peça do [primeiro] espetáculo era de autoria do próprio Ody Fraga e Silva: Um homem sem paisagem, e foi representada por Wânio J. Mattos e Eglê Malheiros”8 . O Grupo SUL envolveu-se também em cinema, mantendo intercâmbio com cineclubes de outros Estados e constituiu uma companhia cinematográfica – Clube de Cinema do Círculo de Arte Moderna – para fazer o seu próprio filme sob o título O preço da ilusão, cuja fita sofreu falhas técnicas em sua montagem e não pôde ser exibida na rede comercial de cinemas. O roteiro do filme – escrito pelo casal Salim e Eglê – envolve duas histórias que se entrelaçam: as aventuras e desventuras de Maria da Graça, uma jovem candidata a um concurso de 8
Lauro Junkes, Aníbal Nunes Pires e o Grupo Sul, Florianópolis, Ed. UFSC/Ed. Lunardelli, 1982, p. 31.
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beleza, e a trajetória de um menino, Maninho da Silva, engraxate que sonhava em ter um boi de mamão. Para Junkes9 , o filme “pretendia ser a crônica de uma cidade, no caso Florianópolis, sua imponente ponte, praias, ruas, jardins e recantos pitorescos”, aproveitando, dessa forma, o cenário exterior natural. O filme representou o desejo do Grupo SUL de contribuir para a realização de espetáculos voltados à realidade brasileira, dentro da linha de crítica social do chamado “cinema novo”10 . As artes plásticas também contaram com a presença do Grupo de jovens modernistas. Por meio da revista SUL, divulgou-se artistas como Pablo Picasso. A atuação do Círculo de Arte Moderna muito contribuiu para que a sociedade florianopolitana modificasse seu conceito de arte. Em 1948, a cidade recebe, pela primeira vez, uma exposição de pintura contemporânea. Em consequência dessa nova “consciência artística”, criou-se o Museu de Arte Moderna, que, em 1967, passa a ser denominado Museu de Arte de Santa Catarina. No entanto, a principal preocupação do Grupo SUL concentrava-se na literatura. Insatisfeitos em publicar apenas jornais, os jovens modernistas almejavam mais e enfrentaram o desafio de transformar os seus ideais em livros. Concebem, assim, os Cadernos SUL, coleção em que publicam sete volumes e as Edições SUL com oito volumes. O conteúdo das coleções é basicamente composto pelas poesias, contos, romances, ensaios e peças teatrais escritas pelos integrantes do Grupo SUL. O estilo literário proposto viria a ferir os padrões estético-literários da pequena e acanhada cidade de Florianópolis. Os escritos foram o estopim para um acirrado confronto entre “tradição e vanguarda”. Conforme Sabino11 “duas gerações digladiaram-se acirradamente pela imprensa local. A Geração Modernista entrincheirada
9
Ibidem, p. 36. Lina Leal Sabino, “O Grupo Sul na literatura catarinense”, Travessia, n.o 10, 1985, p. 21. 11 Lina Leal Sabino, Grupo Sul: o modernismo em Santa Catarina, Florianópolis, Fundação Catarinense de Cultura, 1981, p. 116. 10
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nas fileiras do Grupo SUL e a Geração da Academia [Catarinense de Letras], defendida por um de seus imortais: Altino Flores”12 . Esse acirrado debate, que teve como veículo público a imprensa local, ficou conhecido como a polêmica entre os Novos (Grupo SUL) e os Velhos (Geração da Academia Catarinense de Letras) e persistiu de julho de 1949 a maio de 1950. O jornal O Estado publicava as manifestações de ambos os lados. Tudo começou quando o Grupo SUL organizou um Suplemento Literário para o jornal em homenagem ao bicentenário de Goethe. Entre os artigos, incluiu-se o de Élio Ballstaedt intitulado “Goethe e a geração dos novos” no qual o autor pretendia estabelecer pontos de convergência entre a juventude alemã e a brasileira dos anos de 1940. Para o autor, os “gênios” da juventude de ambas as nacionalidades reagiram contra o convencionalismo da época, facto suficiente para que Altino Flores fizesse a réplica, em uma série de artigos intitulados “Goethe, os «novos» e os «velhos»”, publicados pelo mesmo jornal. Altino Flores criticava o método e o conteúdo do artigo de Ballstaedt, afirmando que não era coerente comparar duas nacionalidades distantes e que seria leviandade crítica considerar tais “gênios” como criaturas fenomenais. Enfim, a polêmica desdobrou-se, quando, em 23 de outubro de 1949, Élio Ballstaedt publica a tréplica “Novamente os «novos» e os «velhos»”. Pelo período de dez meses “o público acompanha a troca de opiniões, de argumentos [. . . ] e de bofetões literários. A irreverência do Grupo SUL enfrenta a ironia e os sofismas de Altino Flores”13 . A Geração da Academia Catarinense de Letras negava a validade do modernismo. Em uma dessas publicações, Altino Flores criticou os “Novos”, afirmando não compreenderem a “verdadeira” arte, chamando as produções modernistas de “barbaridade”. Os “Novos” replicaram as12 O debate dura dez meses e, portanto, muito se tem a contar sobre ele. No entanto, neste texto, apresenta-se apenas uma prévia. Para saber mais, ver: Sabino (1981) e Junkes (1982) ambos referenciados de forma completa em notas anteriores, além das edições do jornal O Estado no período de julho de 1949 a maio de 1950. 13 Lina Leal Sabino, Grupo Sul: o modernismo em Santa Catarina, op. cit., p. 117.
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segurando que o professor Flores “vive em 1900” e que por isso não valeria a pena discutir com ele as correntes literárias posteriores a esse período. Para Eglê Malheiros14 , por dez anos, o Grupo SUL agitou um ambiente cultural acomodado e altamente provinciano, praticando a defesa de um modernismo moderado e tolerante ainda que ativíssimo e democrático. A radicalidade era restrita ao compromisso com a cultura e com a região. O empreendimento deixou marcas através dos posicionamentos teóricos que o nortearam e o aproximaram do Movimento Modernista de 1922: liberdade individual de criação, o respeito ao passado (a nomes como Cruz e Sousa, por exemplo) atrelado à necessidade de viver o presente, o combate ao academicismo (o de ontem e o de hoje) e a defesa da criatividade artística. Sobre os objetivos de um punhado de jovens ao se juntar e se posicionar, Eglê Malheiros recorda: Na época, Florianópolis, parece que tinha parado no tempo. O autor mais moderno e mais avançado que se discutia era o Eça de Queiroz. Inclusive, era considerado escandaloso. A Semana de Arte Moderna já tinha ocorrido em [1922] e estava sendo questionada e não se lia esses autores, os pintores modernos eram tidos como uns borra-botas, então, contra isso é que gente se levantou. Publicamos vários números da Revista [SUL]. Alguns com coisas boas outros mais fracos, mas o que possibilitou que se alterasse esse panorama15 .
Parte do Grupo SUL dedicava-se ao jornalzinho (datilografado) de nome Cicuta, definido por Junkes16 como um “boletim de tonalidade agudamente satírica, feito por jovens irreverentes que nele inseriam a crítica mais mordaz, com forte tendência social e anticlerical”. De 14
Eglê Malheiros, “As propostas do «Grupo Sul»” – entrevista concedida a Lina Leal Sabino (versão eletrónica consultada a 3 de maio de 2013 em http://www.periodi cos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/18173/17060). 15 Idem, Entrevista concedida a Maristela da Rosa, Florianópolis, 21 de novembro de 2011 [material não editado]. 16 Lauro Junkes, Aníbal Nunes Pires e o Grupo Sul, op. cit., p. 22.
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acordo com Salim Miguel17 , marido de Eglê, o jornal Cicuta tinha quatro páginas escritas por quatro rapazes. Segundo Zimmermann18 , a revista SUL nasceu de uma página publicada nos dois últimos números do jornal Folha da juventude, dirigido por Aníbal Nunes Pires. Esse jornal era um órgão da “Associação da Juventude Catarinense” e nele o Grupo SUL dispunha de um espaço para publicação. Entretanto, com o seu fim, era preciso buscar um novo veículo para publicar as ideias modernistas do Grupo SUL19 . Com a sua projeção no ambiente cultural e o crescente número de adesões, os jornais já não eram suficientes para contentar seus idealizadores, que decidem criar uma revista, cujo custo foi possível através dos lucros recebidos com as peças teatrais. Expoente máximo do movimento modernista em Santa Catarina, a revista SUL, criada em 1948, tinha como princípios norteadores revelar os novos valores, acompanhar o movimento contemporâneo dentro dos campos da filosofia, da ciência, da cultura e das letras e artes, contudo, sem prender-se às questões político-partidárias e religiosas20 . Para Salim Miguel, a revista procurava “se infiltrar, debater temas de interesse cultural, chamar a atenção para um sem número de problemas, sacudir o marasmo geral”21 . Em entrevista a Bruchard22 , Miguel, que foi um dos editores dessa revista cultural durante dez anos, afirma: Foram uns dois, três meses, até nos decidirmos pelo título: SUL 17
Dorothée Bruchard (org.), Memória de editor com Salim Miguel & Eglê Malheiros, Florianópolis, Imprensa Oficial do Estado de Santa Catarina, 2002, p. 19. 18 Joseane Zimmermann, Ao sul dos desejos: a cidade transfigurada na poesia de Eglê Malheiros, Dissertação de Mestrado em História do Curso de Pós-Graduação em História, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 1996, 133 f. 19 Lina Leal Sabino, Grupo Sul: o modernismo em Santa Catarina, op. cit., 1981. 20 Aníbal Nunes Pires, Editorial da Revista SUL, n.o 1, 1948. 21 Salim Miguel, “O movimento da Revista SUL e a literatura catarinense”, Travessia – Revista de Literatura Brasileira, vol. 3, n.o 5, p. 91, 1982 (versão eletrónica consultada a 19 de junho de 2013 em http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/travess ia/issue/view/1592>). 22 Dorothée Bruchard (org.), Memória de editor com Salim Miguel & Eglê Malheiros, op. cit., p. 26.
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Maristela da Rosa e Norberto Dallabrida – Revista do Círculo de Arte Moderna, como consta nos trinta números da Revista, embora uns três, quatro anos depois ninguém mais falasse em Círculo de Arte Moderna – era Grupo SUL, que é como ficou conhecido (grifo do autor).
De acordo com Miguel, a revista SUL era “um órgão onde se congregaram elementos das mais variadas tendências e correntes filosóficas, políticas, religiosas”23 . Era considerada a linha de frente do Círculo de Arte Moderna na luta pela renovação cultural em Santa Catarina. Por meio dela os jovens modernistas transmitiam seus ideais, inclusive por meio dos textos de Eglê Malheiros: Em 1957, no editorial da edição de número 29 da SUL – Revista do Círculo de Arte Moderna, Eglê Malheiros anuncia o seu fim. [. . . ] SUL nasceu sob o signo da pesquisa, fruto do choque de jovens com a pasmaceira provinciana. Todos nos atacavam, criminosos que éramos do crime de lesa-conformismo. E acicatados pela reação procuramos, produzimos e construímos. E, principalmente, discutimos e debatemos, varremos teias de aranha. [. . . ] Há um mofo acadêmico se infiltrando em nossas páginas. Porque já não nos atacam – salvo os que o fazem por despeito, razões pessoais que não podemos levar em conta – nós também nos acomodamos, não discutimos, nem criticamos. [. . . ]. Se não mudarmos passaremos a função decorativa e teremos que reconhecer tristemente que “SUL” morreu24 .
A revista SUL “morreu” em sua trigésima edição datada de dezembro de 1957 e publicada apenas em 1958. O editorial do último número anuncia o seu fim: “Extingue-se, assim, como vivera, em meio à incompreensão e atribulações, a revista SUL, que por dez anos veiculara 23
Salim Miguel, “O movimento da Revista SUL e a literatura catarinense”, art. já cit., p. 90. 24 Eglê Malheiros, “Sul”, Revista SUL, n.o 29, 1957, p. 1.
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o ideário modernista catarinense”25 . As razões de seu desaparecimento devem-se a dificuldades de ordem financeira e à incompreensão por parte dos setores conservadores do campo cultural, bem como resultado da autocrítica de parte dos membros do Grupo SUL.
Eglê Malheiros na revista SUL Eglê Malheiros participava da seleção do material a ser publicado na revista SUL, bem como na sua revisão tipográfica e na articulação de intercâmbio com escritores do Brasil e de outros países. Durante seu percurso escolar, ela escreveu textos que abordavam temas como democracia, sendo que alguns deles foram publicados anos depois na revista SUL. Em 1948, na primeira edição da revista, foi publicado o poema “Nove badaladas repletas de luar [. . . ]”. Para Sabino este “longo poema de setenta versos em uma única estrofe [é seu] «manifesto» pessoal de adesão ao Grupo”26 . Diz o fragmento do poema: [. . . ] Eu ainda estava desnuda De todo sonho e desejo Quando o relógio bateu Fazendo-me despertar Foram nove batidas Que vieram cheias de lua Bailar sorriso e beleza Ao som daquela sonata Que tem um nome viver Eu tive então consciência Da minha mocidade [. . . ]27 25
Lina Leal Sabino, Grupo Sul: o modernismo em Santa Catarina, op. cit., pp. 34-35. 26 Ibidem, p. 84. 27 Eglê Malheiros, “Nove badaladas repletas de luar”, Revista SUL, n.o 1, 1948, p. 3.
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Única mulher que integrava a revista SUL, suas poesias e prosas abordavam a igualdade e a justiça social, expressando sua ideologia marxista a respeito da arte, política, vida e valores. Junkes afirma que grande parte da poesia dessa autora caracterizava-se pelo “lirismo social”, solidarizando-se “com o homem tragado pela cidade, pela civilização capitalista. Contendo um sufocado grito de revolta, de vingança, denúncia à infância desfeita e a juventude envelhecida por desilusão”28 . Na segunda edição da revista, de 1948, foi publicada “Dei um sôco na janela da imaginação. . . ” [sic], cujo excerto diz: [. . . ] a paisagem estreita da autocontemplação Veio lentamente Através dos vidros A imagem doutras terras, o som doutro cantar O suor, o sangue, o sonho doutra gente A angústia de querer Um frêmito de vida [. . . ]29
Na quarta edição da revista, ainda em 1948, publica-se “Balada da solidão”. [. . . ] Fugir Para me encontrar nos outros Ignorar O desfile incessante Em fileira de um Da humanidade Esquecer Meus recalques Acabar, diluir Meu egoísmo E a densa ritmada Da angústia de sofrimento e realizações [. . . ]30 28
Lauro Junkes, Aníbal Nunes Pires e o Grupo Sul, op. cit., p. 85. Eglê Malheiros, “Dei um sôco na janela da imaginação. . . ”, Revista SUL, n.o 2, 1948, contracapa. 30 Idem, “Balada da Solidão”, Revista SUL, n.o 4, 1948, p. 12. 29
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Na quinta edição, de 1948, desse importante meio de comunicação ela publica duas crônicas escritas na época do ginásio, intituladas “Doris em duas cambiantes (trechos de um romance que não será escrito)”. Na primeira delas, é possível perceber sua reflexão sobre a religião, sua saudade de um tempo em que teve fé, em que “andava à procura de alguma coisa em que acreditar, a que se entregar plenamente”. Na segunda crônica, Malheiros lembra os tempos de sala de aula quando, em silêncio, abstraía e se imaginava em outros lugares. Na aula de música, por exemplo, ao som do violino, seu pensamento viajava, tinha “vontade de gritar [. . . ], de correr por uma campina sem horizontes, pulando, olhando tudo como para comer com os olhos e depois. . . depois parar quietinha deixando que tudo penetrasse”31 . Na vigésima sétima edição da revista SUL, publicada no ano de 1956, foi publicada a poesia “Há uma voz que clama na noite” na qual Malheiros fala de luta e de renovação: [. . . ] De noite sem lua, sem estrelas, Sem namorados a passear, Vem uma voz que pode ser a minha Mas que é a de todos nós, Começa num gemido Termina num clamor, É a voz de gerações passadas, De todos que esperam E tentaram realizar, É a amargura De toda a mocidade Que quer viver, sentir, amar. [. . . ]32
A décima terceira edição (1951) traz “Revolução”. Para Sabino, neste poema Malheiros “eleva seu grito de revolta contra as desgraças 31
Idem, “Dóris em duas cambiantes (trechos de um romance que não será escrito)”, Revista SUL, n.o 5, 1948, p. 5. 32 Idem, “Há uma voz que clama na noite”, Revista SUL, n.o 27, 1956, p. 51.
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humanas que abatem os mais fracos. Crê, contudo, na possibilidade de haver um dia um mundo melhor”33 : Todos os homens Os pela dor deformados Os pela fome quase vencidos As mulheres portadoras de mundos Cujos filhos nascem mortos As crianças Ainda sobram sorrisos Submersos em tanto pranto Juventude em mundo velho Morrendo por novo mundo Que outros irão viver Da noite brotam conversas De alvorecer luminoso Que importa a luta de agora Se de sol é o amanhã Surgem heróis das campinas Das fábricas e dos roçados Morrem homens vinte vezes Mas não morre a liberdade O povo ama seus mortos Não olvida os matadores Juventude em mundo velho Limpará o mundo novo Que outros irão viver34
Os textos em prosa escritos por Malheiros e publicados na revista SUL trazem, em sua maioria, críticas literárias sobre livros escritos por mulheres, crônicas e artigos. Na décima edição, datada de 1949, publica-se um de seus artigos intitulado “Paschoal Carlos Magno e os novos de Santa Catarina”, ao qual dedicam-se duas páginas. 33 34
Lina Leal Sabino, Grupo Sul: o modernismo em Santa Catarina, op. cit., p. 92. Eglê Malheiros, “Revolução”, Revista SUL, n.o 13, 1951, p. 33.
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A décima segunda edição, de 1950, contém uma crítica assinada por Malheiros sob o título “«Mensagem» de Beatriz Bandeira”. Nesse texto ela menciona os “homens de letras” que se dizem “politicamente puros e intocados” e, defendendo a ideia de que “todo artista é humano, sensível, compreensivo e, portanto, não pode ser ausente”, analisa o livro “Mensagem”, escrito por sua amiga Beatriz Bandeira: Sincera e apaixonada, meiga e impulsiva. Os poemas brotam de um jacto, meio selvagens, e depois ela não tem calma de os burilar e podar (. . . ). Poemas vindos de uma pessoa consciente, de uma lutadora que conhece de perto as lutas do povo (. . . ). Ao fim da leitura, com seus poemas bons e seus poemas mais fracos, sobra-nos uma forte sensação de humanidade, compreensão e amor. E ficamos sabendo que Beatriz Bandeira é, antes de mais nada, uma mulher que ama e sofre neste mundo conturbado e dirige sua Mensagem não “aos de alma sêca e coração de areia”, mas “aos que sabem esperar e sabem crer”35
Para Zimmermann36 , Malheiros “fugia ao modelo de literatura feminina vigente à época em Florianópolis”, pois sua arte era um instrumento para expressar valores considerados, por ela, fundamentais para a sociedade: “igualdade social, a justiça, a fraternidade, entre outros”. Em suas críticas literárias, preocupava-se em valorizar as mulheres que considerava boas escritoras. Sempre se referia a estas mulheres como “artistas, cuja sensibilidade em tratar temas cotidianos deixava claro seu envolvimento com seu tempo e com o lugar a partir do qual falava”. Na décima quarta edição (1951) em “Três romances e sua autora”, Malheiros realiza uma crítica literária, citando escritoras como Rachel
35
Idem, “«Mensagem» de Beatriz Bandeira”, Revista SUL, n.o 12, outubro de 1950, p. 20. 36 Joseane Zimmermann, Ao sul dos desejos: a cidade transfigurada na poesia de Eglê Malheiros, op. cit., p. 64.
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de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Carolina Nabuco, Lúcia Miguel Pereira, Clarice Lispector e Alina Paim. Ela inicia sua crítica assim: Há alguns anos atrás, no Brasil, contavam-se as escritoras pelos dedos. Depois, mais ou menos de uns dez anos para cá, começaram a aparecer livros escritos por mulheres. Mas, infelizmente, a qualidade não acompanha a quantidade. Na sua maioria são folhetins metidos a coisa séria ou então a vida de gente simples contada por granfinas enfaradas. Busca-se neles a afirmação da mulher, a certeza de que o Brasil também possui escritoras, e nada. O número vem se mantendo reduzido e de exceções. Escritoras?37
Malheiros concentra sua crítica nos escritos “Estrada da Liberdade”, “À sombra do Patriarca” e “Simão Dias” de Alina Paim, uma escritora baiana que, para a crítica, estava entre as mulheres que, através da literatura, tentam desconstruir os “mal entendidos” que se escrevem a respeito das mulheres. Para Malheiros, Alina Paim é uma “mulher jovem e corajosa, consciente da responsabilidade do intelectual nos dias de hoje, um talento de romancista que nunca se afastou do solo em que crescem os artistas: o povo”38 . As suas personagens são sempre mulheres: jovens ou velhas, revoltadas ou conformistas, bondosas ou amarguradas, restos humanos ou radiosas promessas, mas sempre e antes de tudo, mulheres. Não são bonequinhas ou generalizações estereotipadas de mães, avós ou esposas modelos39 .
A SUL fez intercâmbio com Portugal, facto que, para Malheiros, foi uma das maiores “vantagens culturais” dessa revista. Ela afirma: Foi-nos revelada uma geração de coragem e valor, por meio da ficção principalmente, todos os graves problemas dos homens 37
Eglê Malheiros, “Três romances e sua autora”, Revista SUL, n.o 14, 1951, p. 19. Ibidem, p. 22. 39 Ibidem, p. 21. 38
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e do mundo, com uma sinceridade que provoca a admiração de quem quer que saiba, por ouvir dizer ou pela própria experiência, o que é um governo como o de Salazar. E para mim, a melhor surpresa foi o travar conhecimento com as escritoras de Portugal. Seus livros afastam para bem longe os tolos preconceitos existentes no Brasil e, pelo que sei, em Portugal também de que mulher só pra “escrivinhadeira” e nunca para escritora40 .
Após esta introdução, Malheiros analisa as obras “Um filho a mais”, de Manuela Pôrto, e “Esta é a Minha História”, de Judith Navarro. Sobre a primeira escritora, ela afirma: Os contos de Manuela Pôrto têm tanto desencanto e amargura que a gente sente vontade de dar a ela a esperança que nos resta. E são feitos por uma artista que consegue o máximo de emoção com o máximo de sobriedade. [. . . ] Apresentam uma visão feminina através de uma sensibilidade profundamente feminina41 .
Sobre a segunda autora, Malheiros diz: “Em Judith Navarro também a vida aparece em toda a sua crueza, mas está sempre presente a solidariedade humana e uma certeza de que nem sempre a vida será assim”42 . E conclui a crítica: Duas escritoras de Portugal cujos livros chegam a nos dar a sensação física de dor quando os lemos. Escritoras que descrevem uma sociedade tão semelhante a do Brasil. Escritoras que nos fazem pensar que realmente só quando o homem se libertar da exploração do homem, só quando nossos países evoluírem se libertando das correntes que os prendem ao atraso, só então se sentirá inteiramente dignidade de ser mulher43 . 40 41 42 43
Eglê Malheiros, “Escritoras de Portugal”, Revista SUL, n.o 13, 1951, p. 38. Ibidem. Ibidem. Ibidem, p. 39.
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Maristela da Rosa e Norberto Dallabrida
Vários outros textos escritos por Malheiros foram publicados nos dez anos de vida da revista SUL, entre eles: “Tiraram uma jovem do mar”, “Quase um sonho numa tarde de verão”, “Poema”, “Noturno dentro de mim mesma”, “Um nome tão simples”, “Fim”, “História”, “A rosa da calçada” e “Primaveril”.
Considerações finais Herdeira de uma família privilegiada, Eglê Malheiros viveu, desde a mais tenra infância, cercada de livros e reflexões políticas e teve percurso escolar das instituições educativas de mais prestígio da época. Desta forma, o hábito da leitura combinado com reflexões sobre os textos constituiu-se uma prática comum em casa e foi reforçada pelos ricos universos escolares. A sua adolescência foi marcada pela militância pelo Partido Comunista Brasileiro e pela sua inserção no Círculo de Arte Moderna, que lhe conferiram um lugar de opositora nos campos político e literário. Apesar de ingressar no Curso de Direito, tornou-se professora de História do sistema público de ensino, diferenciando-se pela sua leitura marxista da História e da Literatura. De outra parte, além de ter desenvolvido uma carreira marcada pela militância política e a vontade de transformar o mundo, ela constituiu família, casou-se, teve filhos e netos, exerceu os papéis de dona-de-casa, esposa, mãe e avó. Na sua época, portanto, ela não aceitou o papel de coadjuvante. Como mulher moderna e de vanguarda, Malheiros expressou por meio de suas poesias sentimentos de esperança, renovação, liberdade, mas também de solidão. Através delas e também dos seus textos em prosa, em especial, as críticas literárias, ela contribuiu para a constituição do campo literário feminino em Santa Catarina. A sua participação no movimento modernista, seus textos no campo literário, o facto de ter sido presa, sua opção pelo magistério e a herança política, todos esses fatores a tornam uma mulher de vanguarda. www.clepul.eu
Eglê Malheiros e a revista SUL: poesia e prosa de uma mulher de vanguarda
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A revista SUL foi, em suas mãos, um instrumento de militância política, de luta pela renovação, por uma nova ordem, no sentido de que como um meio de comunicação, propagava os ideais modernistas. Coerente com a sua ideologia marxista, vinculada estreitamente ao seu pertencimento e à sua militância ao Partido Comunista Brasileiro, focalizou, sobretudo nas suas poesias, a exploração capitalista e semeou a esperança num mundo marcado pela solidariedade e igualdade. Ademais, as suas produções textuais, particularmente as suas críticas literárias, valorizam mulheres escritoras consideradas por ela como artistas.
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Maristela da Rosa e Norberto Dallabrida
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Parte V A PRESENÇA FEMININA NA IMPRENSA DOS PAÍSES LUSÓFONOS
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“Suaves modestos sons” – mulher e poesia na imprensa madeirense da segunda metade do século XIX Luísa Marinho Antunes marinho@uma.pt
Em 1871, no periódico A onda – jornal de instrução e recreio, publicado no Funchal e dirigido pelo escritor, poeta e dramaturgo João de Nóbrega Soares (1831-1890), autor, entre outras obras, de Viagem ao Rabaçal, inspirada em Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, o leitor podia encontrar, no artigo intitulado “Influência da mulher”1 , não assinado (o que pode significar que é da pena do próprio diretor), a identificação, feita com autoridade e tom peremptório, das competências e funções femininas: “A vida doméstica é a esphera da mulher; e é lá que ela é útil e mais apropriadamente empregada”. Corretora do que é mau, força moderadora do que é desagradável, restrição do indecoroso, estimada na sua pureza e cortesia, elegante nas maneiras e no espírito, a mulher, explica o autor, é “toda proporção e tintas, para 1
“Influência da mulher”, in J. Nóbrega Soares (dir.), A onda – jornal de instrução e recreio, Funchal, 9 de dezembro de 1871, pp. 91-92.
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que ela não saia da sua esfera em qualquer condição em que se ache, e produza os resultados que na sua influência é lícito esperar”. A conversação, por exemplo, é uma das grandes fontes da influência feminina, e inclui-se na sua esfera de ação, e nos seus talentos especiais, o dar-lhe graça. Deve ser ela, através do encanto da conversa, a animar a sociedade, com sentimento, com empatia pelos outros, sem, no entanto, ocorrer à mulher desejar pelo uso da palavra ter brilho, mas tão só criar a “agradibilidade”. Isto porque, segundo o autor do artigo, o critério da graça deve ser sempre tido em conta, sob pena de a mulher ser considerada muito bonita, muito agradável, mas a precisar de “assentamento”. Pode-se deduzir que as senhoras deveriam primar pela sua inteligência, mas de forma moderada, ter conhecimentos para divertir e manter uma conversa, mas limitar-se a uma posição de mediadora entre os presentes. As mesmas qualidades deveriam ser as apreciadas na escrita de autoria feminina pelo articulista: moderação e mediação, numa esfera de escrita mais consignada à esfera tida como doméstica e feminina, agradável e graciosa. Considerar a participação feminina na imprensa madeirense no século XIX torna-se pertinente não só pela questão da identificação das autoras que escreviam para os periódicos e quais os géneros por estas privilegiados, mas também pelo papel que assumiam e que se esperava que tivessem no interior das publicações destinadas a um público letrado, relativamente vasto na cidade do Funchal, constituído neste século maioritariamente por homens. A circulação de várias publicações, como o Diário de notícias, o Diário da Madeira, o Eco do Funchal, A lucta: órgão do Partido Republicano da Madeira, O liberal, a Revista esperança, o Jornal archivo litterario, O recreio, Periodico litterario, a Estrella literaria, o Semanário do recreio academico, estes três últimos da responsabilidade do órgão dos alunos do Liceu Jaime Moniz, e a Correio semanal, publicada em Demerara por madeirenses e, na generalidade, dedicada aos assuntos da ilha da Madeira, entre outras publicações de caráter mais político, corporativo ou informativo, demonstra a vitalidade da
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imprensa no arquipélago ou a ele destinada. Só nas duas últimas décadas do século XIX estavam em circulação na Madeira, além dos já referidos, Diário do commercio, A Madeira, Diário popular, Diário da manhã, Diário da tarde, Diário do Funchal, Direito, O districto, O imparcial, Jornal da manhã, Jornal de notícias, Jornal do povo, A lei, A ordem, O povo, O reclame, A verdade, Voz do povo e os periódicos de duração mais curta O académico, Aurora literária, O combate, Echo academico, Echo de Santa Cruz, Espora, O estudante, a Luz, O recreio, Religião e progresso e Voz pública. Na maior parte dos periódicos referidos se verifica a colaboração feminina. A pergunta é que tipo de colaboração poderia a mulher ter tendo em conta a opinião e posição reveladas na Onda pelo diretor Nóbrega Soares ou, senão por ele, com a sua aceitação e beneplácito. É, de facto, interessante considerar os textos de autoria feminina numa perspetiva que tenha em conta o ponto de vista e ideias expressas pelos autores que escreviam sobre as mulheres nos mesmos periódicos. Este olhar cruzado poderá iluminar a própria produção feminina, condicionada não só pela estética artístico-literária da época, mas também pelo tempo, pelos costumes e pelos valores vigentes na sociedade de então. Encontra-se na participação feminina alguns textos de opinião, versando na sua maioria temas religiosos e de educação cristã, caso de Ana Augusta de Freitas Branco (1868-1934), que, com o pseudónimo XYZ, escrevia para a imprensa católica, ou de Matilde Isabel de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt (1805-1888), conhecida por Viscondessa das Nogueiras, ou, de forma menos frequente, sobre a condição feminina, como nos textos de Júlia Esmeraldo para o jornal Archivo litterario, em 1863, ou de Joana Castelo Branco (1856-1920), que escreve sobre “A instrução da mulher”. A maior presença feminina encontra-se no género lírico, com publicação de poesias devedoras, na generalidade, ao sentimentalismo romântico ao gosto da época. Um sentimentalismo romântico todo feminino a fazer jus à ideia do que na Onda se destinava e era apanágio da mulher – toda proporção e tintas. É, aliás, interessante verificar o artigo que se segue a “Influência
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da Mulher” e que se intitula “Poesia”, em que se define a arte poética como se definira antes a mulher: proporcional no uso das tintas. A poesia é música da linguagem a exprimir a música do entendimento, “sendo o coração todo amor, ou sentimento de admiração [. . . ] movimento de imaginação ou de paixão, pelo qual ele procura prolongar e repetir a commoção, a fim de trazer todos os outros objectos a commum acordo, e dar o mero movimento de harmonia, pausada e continua, ao som que exprime – eis a poesia”. A mulher era a pintura harmoniosa e a poesia a música, movimento de harmonia. Ou, como escrevia D. Maria José da Costa Pereira, em “A um Poeta”: Que é dos sons maviosos que outr’ora Me afagavam, suaves o ouvido? Que foi feito d’essa harpa sublime, Que inspirava meu canto gemido?! [. . . ] Canta, ó vate; desperta! os teus cantos Chovem bens, chovem flores viçosas; Infeitiçam mil seios, e fazem Reviver tuas c’roas formosas.
Ou, ainda, como na composição de Dona Matilde de Sant’Ana e de Vasconcelos (1805-1888), Viscondessa das Nogueiras, intitulada “Saudação”, dedicada à amiga poetisa Júlia de França Netto: Salve a cantora gentil, Que à pátria dar lustre vem, Salve a modesta donzela Que o coração nobre tem. [. . . ] E com seus doces gorjeios E divina melodia, Enleando nossas almas, Dá aos pobres alegria. www.clepul.eu
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Podem servir de exemplo as vinte e quatro poesias que Joana Castelo Branco escreveu para o Diário de notícias entre 1876 e 1877 como exemplo da maior parte das produções poéticas das senhoras da altura, com temáticas românticas que vão da saudade à expressão do sentimento de solidão, à condição da alma poética desconsolada perante a frieza e incompreensão do mundo ou ao isolamento das almas apaixonadas. Juntam-se-lhes a alegria do viver campestre e a admiração pelas manifestações da natureza, com as quais o sujeito poético se identifica, e as temáticas religiosas. As autoras contribuem para os periódicos também com poemas dedicados às amigas e à família. Maria José da Costa Pereira, no Recreio, periodico litterario e no Archivo litterario, dedica poesias ao irmão, o poeta Luís da Costa Pereira, e à irmã, à memória da mãe, à memória do tio e “à minha prezada irmã, pela morte de sua querida filha”. Talvez por isso, Alfredo de Freitas Branco, Visconde de Porto da Cruz, nas suas Notas e Comentários para a História Literária da Madeira, a tenha tido em pouca conta como poetisa, considerando as suas composições banalmente sentimentais, descrevendo-as como sendo de “um banalismo atroz e sem o menor interesse literário. Nas suas composições, como a dedicada ao irmão, fica patente a sua ideia como lira mágica que alimenta a fé, o amor e a esperança, que o “néctar celeste / Em torrentes de amor faz chover; / Tua lyra que as máguas mais fundas / Pode em grata esp’rança converter”2 . As poesias escolhidas para publicação nos periódicos apresentam títulos que expressam justamente a opção privilegiada por temáticas de cariz sentimental, do campo semântico do amor, da fatalidade, do devaneio poético e da saudade. Joana Castelo Branco, por exemplo, intitula as suas contribuições líricas “Enlevo e fatalidade”, “Devaneios”, “Longe”, “A esposa do náufrago”, “Brilhos ideais”, “O poeta e a virgem”, “Impressão de um sonho”, “Ecos de solidão”, que se coadunam com a definição que faz de si como poetisa: “Eu sou como uma ave que vagueia. . . ”. Também a Viscondessa das Nogueiras oferece aos leito2
“A meu irmão Luiz da Costa Pereira”, Archivo litterario, Funchal, agosto de 1863, p. 122.
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res “A vigília do Senhor”, Arsénia de Bettencourt Miranda (?-1880) publica “Anhelos!” e Emília Acciaioli Rego opta por chamar “Meditação”3 a uma das suas poesias, títulos representativos do tom lírico e religioso que as caracteriza. Arsénia de Bettencourt Miranda condensa em “Anhelos!”4 a identificação do sujeito poético com a harmonia da natureza, numa pintura de tons aproximados ao neoclássico na aurea mediocritas que é criada pela paisagem suave e pelos seus elementos em equilíbrio, pelo privilegiar dos elementos mitológicos e pelo rigor com que se contém a possibilidade do extravasar do coração ou do delírio sentimental. E a deusa de pallido brilho Beija a flor, que se curva e desmaia; Geme a onda, rolando na praia. Mil segredos d’ignota harmonia. . . E a aragem, que tépida passa, Vem de leve com as folhas brincar. . . Ha silencio e perfumes no ar, Ha na terra suave magia!. . .
Esta harmonia feminina corresponde ao que Júlia Esmeraldo (D. Júlia Henriqueta de Freitas Esmeraldo, da Ponta Delgada, casada em 1838 com o morgado Francisco António de Bettencourt A. de C. Esmeraldo, e mãe do futuro presidente da Câmara do Funchal, João Bettencourt Araújo Carvalhal Esmeraldo), que também se assinava “E.”, em “A Mulher”5 , em 1863, descreve, como função maior da mulher, o de ser “um ponto luminoso que alivia o coração humano”, “derramando benefícios”, sendo mãe carinhosa, esposa que sorri, mulher piedosa, companheira do homem, suavizando a sua vida com amor. Sem os louros da fama, sem dirigir nações, é a mulher que sustenta o cetro da devoção e do amor que domina o universo, daí dependerem dela a felicidade dos povos e o progresso das nações. Mãe sábia e desvelada, 3
“Meditação”, O recreio – periodico litterario, Funchal, 1 de maio de 1863, p. 5. “Anhelos”, Estrella litteraria – semanario do recreio academico, I Anno, n.o 4, 22 de abril de 1874, pp. 2-3. 5 “A Mulher”, Archivo litterario, t. I, 17 de junho de 1863, pp. 73-74. 4
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esposa fiel e filha obediente e caridosa é a responsável pelo equilíbrio familiar e nacional, já que bom será o pai, bom o esposo, bom o filho, feliz a família e gloriosa a nação se a mulher não for escrava das paixões do homem e usar a sua final inteligência como mecanismo social. Apesar de não ter os louros da guerra ou dirigir nações, a mulher sustenta a partir da família a estrutura familiar e nacional, é a “mola principal de todo o mecanismo social”, por isso, é necessário que aceda a uma boa educação que a habilite a poder dirigir, por sua vez, a educação dos filhos. À autora certamente agradaria a poesia de D. *** dedicada no Arquivo litterario ao “esposo querido”: Sua chama de amor tão ardente Neste dia feliz, me abalou; Aureo dia! em que a luz do sol viu O esposo que o ceu me outorgou. Que delicias chover não quizera, Em teu seio virtuoso, meu bem, Tua esposa te ama deveras, Que em ti sente o amor que te tem!. . . [. . . ] Sua fronte, de meigos aromas Vamos, filhos, contentes ornar; Doces trovas de amor inocente, Vamos todos alegres cantar.
Acrescenta Júlia Esmeraldo que, frágil, a mulher não encontra fora da religião a consolação, porque a filosofia, de insuportável aridez, só serve o orgulho e a vaidade masculina. Assim, uma das tarefas femininas seria o de manter viva no seio da família e da pátria a devoção. Os temas religiosos ocupam, justamente, grande parte da contribuição das senhoras que escrevem para os periódicos madeirenses, como Emília
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lia Acciaoly Rego, cujas datas de nascimento e morte se desconhecem, autora de “Meditação”: Esta riqueza dos campos, O lindo azul destes céus, O canto alegre das aves, Me dizem cousas de Deus. Um particular estudo De quanto natura tem Não só me deleita a alma Mas a enobrece também. Ou nas obras mais sublimes, Ou nas de menos valor, Ha razão para louvarmos O divino Creador.
A ordem, a crença, o amor e a união são os princípios regeneradores da mulher, segundo Júlia Esmeraldo, ideias que são espelhadas e divulgadas nos poemas publicados, estando as senhoras letradas conscientes do seu papel na sociedade, projetando na poesia a imagem conservadora que os textos de opinião construíam. Abre-se, todavia, em alguns artigos, o caminho para a questionação do papel mais ativo da mulher fora da esfera doméstica. Se em “A educação da mulher”6 , em O recreio, em 1863, de M. Figueira, o autor questiona a educação dada à mulher contemporânea, baseada na vaidade, no orgulho, no adornar-se, no luxo, na moleza e na ociosidade que só as ensina a ser sedutoras e enganadoras, levando-as a ver no matrimónio apenas a possibilidade de viver luxuosamente, a brilhar nos bailes, sem a religião e o ouro da família e da virtude, cerca de uma década depois, em 1875, no periódico A aurora liberal, a visão sobre a educação feminina é diferente. No texto, não assinado, “Duas palavras a respeito da liberdade da mulher”7 , afirma-se que é necessá6
“A educação da mulher”, O recreio, Funchal, 1863, pp. 27-28. “Duas palavras a respeito da liberdade da mulher”, A aurora liberal – semanario litterario, 21 de dezembro de 1875, pp. 1-2. 7
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rio dar educação à mulher igual à do homem, dar-lhe a possibilidade de estudar para que possa demonstrar o seu valor. De facto, se não há mulher poeta a par de Camões é porque a esta nunca lhe foi dada a instrução para, assim, poder cultivar as artes. Aos que defendem que para escrever poemas só é necessário a desgraça e não a educação, o autor ou autora do artigo responde que sendo desta forma todas as mulheres seriam poetas, já que sempre a mulher arrastou “a noite da escravidão no seio da orfandade moral”. Em A lucta, no qual Joana Castelo Branco colabora, o autor que se assina Bemvindo, em 1888, escreve em “A Mulher” que o papel desta está hoje ainda muito atrasado em Portugal, dado que em alguns países a legislação permite no meio social o lugar que de direito e justiça lhe compete. Se no nosso país é raríssima a senhora que trata de questões sociais, nos países avançados, afirma o articulista, como os E.U.A., a Dinamarca, a França e a Alemanha, são elegíveis em questões escolares, possuem direito de voto, cursam universidades e são ativas na vida política. Dar direitos à mulher é um ato de justiça para uma civilização democrática, já que é um membro que tem inteligência e capacidade de trabalho. Não deixa, todavia, de acrescentar que é pela instrução, estudo da ciência, da poesia, da pintura e música que a mulher se deve educar e ser “companheira do homem”, “educada e inteligente” mãe que purificará a vida sagrada do lar doméstico. A mulher continua, assim, a ser perspetivada a partir do seu lugar da família, como esposa e como mãe, já que ainda que se considere que tem o direito de cultivar a inteligência e dar provas das suas capacidades, estas devem servir para a família e, em última instância, e não a menos importante, para a pátria. Talvez por esta abertura em relação a uma maior participação feminina na vida social ativa, Joana Castelo Branco se dedique neste periódico a questões como o povo e a república, temáticas em que já anteriormente se tinha envolvido. Um dos seus poemas para O liberal, de 1875, intitulado “Deus, pátria e liberdade”8 , demonstra o seu empenho 8
“Deus, pátria e liberdade”, O liberal, Funchal, n.o 22, 15 de dezembro de 1875,
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social e político, ainda que optando por um sujeito poético masculino: Eu vi-te, ó pátria, abatida ao jugo do despotismo resvalando num abysmo d’uma infernal opressão mas nunca deixei curvada a fronte no vil marasmo a aurora da redempção. [. . . ] Viver votado ao desprezo depois de bravas campanhas, eis a paga das façanhas do soldado português [. . . ] Será meu voto constante pela Sancta Liberdade dizendo à posteridade além da pátria só Deus!
Esta preocupação com temas pátrios – como o não reconhecimento da memória histórica, a liberdade da pátria, etc. – são sintomas de um novo caminho que as contribuições de escritoras do continente, como Maria Amália Vaz de Carvalho, no Diário de notícias do Funchal, na última década do século XIX, Ana de Castro Osório e Caiel (Alice Moderno) para o Correio semanal, de Demerara, ajudam a abrir. As composições femininas nos periódicos têm também uma componente lúdica e de demonstração de erudição. Violeta de Parma, pseudónimo de autora desconhecida, por exemplo, escreve para o Correio semanal poemas em português e francês, plenos de simbologia floral e de tom despreocupado, com temáticas relativas à infância pura e à inocência e virgindade da mulher. Como as outras poetisas, dedica poesias às amigas, revelando temas e técnica simples de cariz lúdico, ao p. 3.
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gosto da época, como em “O que eu amo!”9 , que dedica à amiga D. Guilhermina Fernandes, revelando de forma lírica o que se esperava do seu papel de mulher – o amor à família e a Deus: Amo a lua em seu crescente, Amo a estrella a brilhar, Amo a árvore florescente, Tambem amo a serra, o mar. [. . . ] Amo a luz, a flor amada, Minha mãe, o mundo e Deus; Tambem amo a branca fada, Sobretudo os olhos teus.
No entanto, quando um poeta desconhecido, que se denomina Coup de Sifflet, enceta um diálogo com ela através do jornal pedindo-lhe para conhecer o nome que se esconde atrás de Violeta, responde com humor, em “Reponse a Monsieur le «Coup de Sifflet»”10 : Et qui êtes vous ‘Coup de Sifflet’ Qui voulez savoir qui je suis! Je suis. . . oh! Non C’est assez Led ire à personne ne le puis!
Quando um “Camarão” se permite ridicularizar os dois poetas, responde em forma satírica, revelando-se ora frágil violeta ora sarcástica colega de profissão, humilhando o autor “Camarão”. O jornal torna-se palco de uma conversa em diálogo ora com Coup de Sifflet, ora com Camarão, respondendo no mesmo número aos dois, demonstrando fineza de espírito e aceitando o desafio dos dois desconhecidos. Mas o que é isto agora, Que a aparecer vem! 9
“O que eu amo!”, Chronica semanal, Demerara, 4 de dezembro de 1897, p. 3. “Reponse a Monsieur le ’Coup de Sifflet”’, Chronica semanal, Demerara, 25 de dezembro de 1897, p. 3. 10
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Luísa Marinho Antunes Outro pássaro de fora, Que Demerara tem! E porque razão hade ser, Com Violeta a embirração! Do ‘Sifflet’ me ia esconder, Quando apponta um Camarão! [. . . ] Se na língua de Camões, Eu me atrevo muito a entrar, Quantos milhares de camarões, Com erros irão encontrar. [. . . ] Não achas cobarde Camarão, Na desigualdade da lucta! Tu, um gigante, um figurão, Talvez um potente recruta! Em querer com a maior arrogância, Derrotar a mais humilde das flores; Não tens pena! Não basta a fragrância Da violeta e suas lindas cores! Camarão tem juízo. Procura Um como o tal ‘Coup de Sifflet’; Que em sabedoria esteja à altura De receber ataques e algum pontapé11
Quando, no entanto, as composições de “Camarão” se tornam menos adequadas a uma senhora, com pudor termina a sua contribuição para o jornal, dizendo “Adieu” por não poder tratar com cavalheiros. No fundo, devia temer ser considerada como a mulher descrita na Onda, sem assentamento, preferindo a sua condição de respeitabilidade ao estatuto de poetisa, entendido como complementar às funções de filha, esposa e mãe, porque, como escrevia a Viscondessa das Nogueiras
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“Folhetim”, Chronica semanal, 29 de janeiro de 1898, p. 3.
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num dos seus poemas, significativamente intitulado “A Mulher Poeta”, ser mulher é missão mais alta do que a de ser poeta: E sê mulher, Mil vezes mil, Antes de seres Musa gentil. Não abandones, Oh! nunca, não, Util trabalho De tua mão Imita assim O passarinho Que gorgeando Prepara o ninho.12
Ser poeta é uma atividade complementar às funções mais importantes ligadas ao papel no interior da estrutura da família, por isso, se o sujeito poético acredita que o dom da poesia vem de Deus e não deve ser contrariado (“Ah deixa-o scintillar; ah! não o extingas”), também avisa as leitoras do perigo de se deixar envolver de forma demasiado inebriadora na arte, esquecendo a sua condição: Se porém de mais se accende Devasta, póde queimar. Não esqueças sobre tudo Respirar sempre em teu canto Suaves modestos sons Da mulher maior encanto.
Conclui, assim, que a poesia não deve desvirtuar o estatuto de donzela, esposa ou mãe, correspondendo-lhe, revelando no conteúdo e estilo o que a mulher representa na sociedade, o bálsamo da suavidade, o garante da paz e do amor: “Se és esposa, se és donzella, / Manda 12
“A mulher poeta”, in Francisco Vieira (dir.), Album madeirense: poesias de diversos auctores madeirenses, Funchal, M. J. Teixeira Jardim, 1884, pp. 45-47.
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aos ceos doce canção, / Terna e amante canta alegre, / Alegrando a habitação”. A poetisa dirige as suas composições preferencialmente às outras mulheres, advertindo as que querem, como ela, seguir o impulso lírico de que a poesia não pode pôr em causa a ordem social estabelecida. Esta perspetiva, e também esta ligação estreita entre as autoras e o seu público-alvo, constituído por mulheres, caracteriza as contribuições das poetisas madeirenses para a imprensa periódica da segunda metade do século XIX. *** Em jeito de conclusão, as mulheres são sujeito e destinatário de várias contribuições para um número significativo de publicações periódicas madeirenses, com formas e conteúdos diversificados, ainda que sejam mais significativos os textos líricos, os relativos à educação e ao papel da mulher, de filão moral-patriótico, e, também, os que se interessam pela moda feminina e pelas normas do chamado “bom tom”. A mulher madeirense, à medida que se aproxima do século XX, vai tendo maior participação na imprensa, no entanto, limita-se ao que o estatuto de senhora respeitável, boa portuguesa e mãe de família lhe permite, veiculando modelos burgueses de comportamento. Além de alguns textos de teor mais interventivo, como os ligados à fação liberal, de Joana Castelo Branco, ou a pugnar por uma maior atenção à educação feminina, não se encontram textos marcados por um forte cariz de reivindicação e emancipação da mulher, isto é, mais desafiadores dos papéis e do sistema de estruturação da sociedade da época. Além disso, as contribuições das senhoras são na maioria publicadas em publicações literárias, algumas pertencentes aos grémios estudantis, ou ligadas ao movimento católico, âmbitos em que a mulher se encontrava mais à vontade, já que se ligavam à educação e à religião, áreas mais tradicionalmente ligadas ao feminino. A participação na imprensa feminina das senhoras madeirenses só se efetivará, salvo raras exceções, no século XX, com autoras como Maria Eugénia Rego www.clepul.eu
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Pereira e Isaura Passos Jardim a escrever para as revistas madeirenses e continentais, como Portugal feminino e Eva, no primeiro caso, e Modas e bordados, no segundo. A lista que se pode fazer de algumas das contribuições femininas, principalmente no âmbito da poesia, de que se dá um breve quadro em baixo, apenas exemplificativo e sem ter pretensões de abranger a totalidade das participações e das escritoras e poetas, conta e sugere muitas histórias, sendo até mais significativa pelo que não contém. Se se verifica um número já bastante alargado de mulheres madeirenses a escrever para os jornais e revistas, também se constata que não existe ainda uma participação sistemática, encontrando-se apenas uma produção esparsa e dispersa e que as temáticas versadas são as da esfera pública tradicional da mulher. É uma produção, todavia, que demonstra que o processo de formação da mulher e da sua participação estava a desenvolver-se e que esta tinha consciência de que a imprensa podia ser, além de uma forma de divulgação das suas composições poéticas e artísticas, um meio eficaz de comunicação de ideias. De facto, estamos num momento de fronteira, em que a mulher ganha gradualmente consciência do seu papel e, igualmente, do seu poder, num espaço de fronteira, no qual homens e mulheres podem movimentar-se cada vez mais, a par de mérito, para trocar opiniões e discutir posições, do qual ambos estão apostados em tirar proveito. A imprensa proporciona, assim, um espaço aberto e democrático, no qual as composições poéticas masculinas e femininas podem viver a par, ainda que, como se verifica pela leitura das poesias de autoria das senhoras, estas nunca se libertem da condição de mulher para serem apenas poetas/criadoras, confundindo a condição com o papel que lhes foi socialmente atribuído. A poesia não é, neste ponto de vista, uma verdadeira voz, mas apenas eco, indo ao encontro do final do poema “A Mulher Poeta” da Viscondessa das Nogueiras: Poeta, mulher, com fé, com esp’rança, Seja a tua vida um echo d’amor! www.lusosofia.net
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Poeta, mas em suaves, modestos tons.
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Referências bibliográficas
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PEREIRA, Maria José da Costa, “A meu irmão Luiz da Costa Pereira”, Archivo litterario, Funchal, agosto de 1863. REGO, Emília Acciaioli, “Meditação”, O recreio – periodico litterario, Funchal, 1 de maio de 1863, p. 5. VISCONDESSA DAS NOGUEIRAS, “A mulher poeta”, in Francisco Vieira (dir.), Album madeirense: poesias de diversos auctores madeirenses, Funchal, M. J. Teixeira Jardim, 1884, pp. 45-47.
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Lília da Fonseca: a mulher e a época1 Ana Paula Bernardo paulabernardo09@gmail.com
O que é da historia pertence à historia; escreve-se e reserva-se, para passar à posteridade como deposito das acções dos homens e mostrar aos vindouros a verdade dos factos [. . . ] por isso se diz que a historia é o testemunho do passado, exemplo e aviso no presente, advertencia no futuro, a testemunha do tempo, luz e mãe da verdade, vida da memoria, escola da vida, mensageira da antiguidade, emula do tempo, deposito e codigo das acções dos homens. António José Valente2
1
O texto está escrito ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico. No entanto, nas citações, mantemos a grafia dos originais. 2 António José Valente, Angola e Congo, quatrocentos annos depois, historia antiga e moderna, Lisboa, Typographia, Rua da Atalaia, 40-52, 1887, p. 31.
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Introdução Este trabalho propõe-se referenciar, de forma documentada, a presença de Lília da Fonseca na imprensa periódica em Portugal e Angola, procurando traçar o seu perfil de mulher de um determinado tempo, através de múltiplos registos da sua intervenção cultural, social, cívica e política. Atendendo à diversidade e extensão da sua colaboração na imprensa, centrar-nos-emos, neste ensaio, no período espácio-temporal decorrente entre as décadas de 1930-1960. No entanto, este enquadramento não se cingirá a este período, mas será alargado, por breves notas, ao restante tempo da sua produção jornalístico-literária. Tal notação seguirá uma orientação sequentemente cronológica. A qualidade literária e o acervo da sua obra multifacetada reparte-se por poemas, contos, romances, textos de teatro e literatura infantil, num total de 41 títulos publicados, acrescidos de um conjunto de mais 23 obras que a sua morte não permitiu que chegasse a ser editado. Os seus textos de ficção estão dispersos por várias antologias. A juntar a tudo isto, a sua colaboração em vários periódicos, em alguns de forma assídua (durante anos ou mesmo décadas), e noutros com participação avulsa justifica, em nosso entender, a sua presença neste Encontro. Jornalista, poeta, dramaturga, contista, pedagoga, encenadora, publicista, Lília da Fonseca teve colaboração disseminada por diversas publicações como, em Angola, a província de Angola, ABC, Jornal de Angola ou Jornal de Benguela, e em Portugal Jornal-magazine da mulher, Primeiro de janeiro, Diário de Lisboa, O século ilustrado, Acção, Seara nova, Mensagem, Modas & bordados, Nossos filhos ou A esfera. Mulher entre dois mundos, mulher do mundo com o olhar atento, Lília da Fonseca legou-nos inspiradas crónicas do quotidiano sobre tudo quanto à sua volta se movia e com ela mexia. Por isso, lê-la através da imprensa diária ou outra, com diversa periodicidade e diferentes preocupações editoriais, é acompanhá-la no que foi a vivência de uma www.clepul.eu
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determinada época. Um tempo de vida em que entregou a sua energia e mérito literário a uma grande variedade de interesses e atividades. Entre as causas que recorrentemente motivaram o labor da sua pena destacamos o empenho para que a escrita fosse uma janela para o mundo, através de histórias de gente comum ou de poemas, contos ou textos dramáticos reveladores das angústias, anseios, solidões e distâncias com que homens e mulheres, intemporalmente, se defrontam. Com particular cuidado e intenção buscou dar espaço aos interesses da mulher e da criança. O esporádico enaltecimento de heróis do passado é traço denotador de uma marca do tempo, que não deixaremos de assinalar. Atendendo à abrangência da sua colaboração em títulos de imprensa e à delimitação espácio-temporal que baliza este estudo, daremos particular realce, nesta comunicação, ao seu trabalho desenvolvido em dois deles, um diário, em Angola, a província de Angola, e outro mensal, em Portugal, o Jornal-magazine da mulher. Destes periódicos, de diferentes tendências e interesses editoriais, apresentaremos textos de genologias diversas, do registo epistolar ao autobiográfico, do ficcional (narrativo, poético ou dramático) a outros, como a crónica, o artigo de opinião, a notícia ou a entrevista.
Itinerâncias de percurso Lília da Fonseca, aliás, Maria Lígia Valente da Fonseca Severino, nasceu a 21 de maio de 1906, em Benguela. Apesar de várias fontes indicarem como sua data de nascimento o ano de 19163 , veio ao mundo dez anos antes (como consta da sua certidão de nascimento), isto é, ainda 3
Várias publicações, erradamente, atribuem a Lília da Fonseca esta data de nascimento. Citamos, a título de exemplo, a entrada assinada por Maria da Natividade Pires, “Maria Lígia Valente da Fonseca Severino”, in Biblos, enciclopédia Verbo das literaturas de língua portuguesa, vol. II, Lisboa/S. Paulo, Verbo, 1997, pp. 651-652.
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no tempo da Monarquia. O seu verdadeiro nome é Lígia e não Lília. A sua identificação com uso de pseudónimo é outro facto que despertará a curiosidade de quem nisto quiser ver traços peculiares de personalidade, apesar de a própria ter justificado tal adoção com a teoria da estratégia de defesa de principiante na escolha “de um pseudónimo que [inicialmente] julgava sem futuro”4 . Filha de “uma angolana natural de Luanda e de um conimbricense (republicano e maçon)”5 , a sua ligação a Angola aponta para raízes mais profundas. Lígia era neta de um velho colono, A. J. Valente, que se terá instalado naquela colónia portuguesa, no final do século XIX. Este foi escrivão das Alfândegas de Mossâmedes e sócio da Sociedade de Geografia de Loanda. Escreveu Angola e Congo, quatrocentos annos depois, historia antiga e moderna. Uma referência a este autor e à sua obra encontramo-la num artigo de Lília da Fonseca, em 1940, intitulado “A ocupação e o censo”6 . Lili, como era conhecida, passou a infância em Benguela, mas cedo veio para Portugal. Estudou no liceu Infanta D. Maria em Coimbra e na Escola Carolina Michaëlis, no Porto. A morte do pai terá contribuído para a alteração dos seus planos de vida e sido um impedimento para a concretização do desejo de seguir o curso de letras. Entrou na vida ativa com apenas quinze anos, trabalhando como administrativa durante vários anos7 . Os atos da sua vida criativa não se dissociarão do lugar onde nasceu, mas repartir-se-ão, durante décadas, pelo eixo geográfico que se estende de África à Europa. Menina de Benguela, criada em Coimbra e no Porto, terá vivenciado, desde cedo, a experiência de um ser repartido por vários lugares. 4
Lília da Fonseca, “Artes e Letras”, a província de Angola, 23 de janeiro de 1974, p. 18. 5 Hortense de Almeida, “Pioneiras: Lília da Fonseca”, Faces de Eva: estudos sobre a mulher, n.o 9, 2003, pp. 167-168. 6 Cf. Lília da Fonseca, a província de angola, 1 de junho de 1940, p. 1. 7 Hortense de Almeida, op. cit., pp. 167-168
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Quando concluiu a sua formação liceal, Lília interessou-se pelo jornalismo. A oportunidade de exercer esta atividade foi-lhe dada pelo jornal a província de Angola, onde colaborou ativamente com as suas crónicas do quotidiano, com a sua escrita informativa, com os seus textos poéticos de assinalável qualidade lírica e com os seus contos perpassados ou não por aspetos da sua vivência nos trópicos. Nessa altura se começou igualmente a revelar o seu interesse pelo texto dramático e pela literatura infantil. A sua colaboração neste jornal angolano prolongar-se-á por quatro décadas, o posterior tempo de vida deste diário, extinto em finais de 1975 na sequência do processo de descolonização, tendo então dado lugar a nova publicação, O jornal de Angola. Na passagem da década de 1920 para 1930 e, de forma mais intensa, a partir de 1930, após a promulgação e entrada em vigor do Ato Colonial, Portugal começa a afirmar-se como potência colonial, “fenómeno que ganha expressão através do Alto-Comissariado de Norton de Matos e ganha desde logo forma escrita com o jornalista Adolfo Pina”8 . Na pena de A. Pina encontramos adesão às ideias defendidas por aquele militar, no que toca à estratégia de implementação do sistema colonial em Angola. Com a criação do jornal a província de Angola, fundado em 1923, fixa-se, na perspetiva do historiador Júlio de Castro Lopo, o terceiro período do jornalismo em Angola, o do jornalismo industrial, a que se associa o nome do seu fundador, A. Pina, considerado por alguns “o maior jornalista de Angola entre os seus conterrâneos”9 atendendo ao seu profissionalismo e afabilidade de caráter. Castro Lopo exalta ainda o espírito empreendedor de Adolfo Pina pela “criação de empresas nas cidades de Nova Lisboa e Lobito, a fim de se ali fundarem, respectiva-
8
Mário António F. Oliveira, A formação da literatura angolana, col. Escritores dos Países de Língua Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1997, p. 185. 9 Júlio de Castro Lopo, Jornalismo de Angola, Luanda, Centro de Informação e Turismo de Angola, 1964, pp. 99-101.
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mente, o semanário O Planalto, em 17 de Maio de 1930, e também o semanário O Lobito, em 2 de Agosto do mesmo ano”10 . Em 1932, Lília regressa a Angola, para continuar a trabalhar como administrativa, agora em a província de Angola. Havia pouco tempo que a velha Loanda tinha passado a designar-se Luanda e a nova ortografia vinha acompanhada de graduais alterações não só na cartografia, mas também na sociedade, “a cidade mulata estava atingindo o seu fim pela modernização e consequente demolição das casas que os africanos detinham em bairros ainda dentro do perímetro citadino”11 . A situação cultural, social e política do meio envolvente fá-la sentir-se atraída pelo jornalismo e, mantendo ainda as suas funções administrativas, começa a redigir artigos assinados com o pseudónimo Lília da Fonseca. Um tempo de escrita que se reporta à década de 1930, numa África envolvida em quezílias internas, distante do bulício do Chiado, um mundo sem confinamentos que ela se propunha ajudar a descobrir. Lília não tinha formação específica como jornalista, aliás ninguém tinha, o curso era feito na tarimba do dia a dia (aprendendo com os mestres, os mais antigos no ofício) por aqueles que, de alguma forma, tinham oportunidade de mostrar as suas qualidades de escrita. E, neste caso, o jornal estava bem servido, a começar pelo seu diretor, Adolfo Pina, cuja proeminência na sociedade luandense o tinha levado a que fosse à data de 1932 o elogiado presidente da Associação Comercial e Industrial de Luanda e, nessa qualidade, pessoa de proximidade com os governantes da terra e do “império”. Este excurso ajuda-nos a entender como Lília da Fonseca começou a aventura da escrita. O primeiro artigo que publica em a província de Angola, expressamente assinado com o pseudónimo escolhido, surge na rubrica “Fim de Semana”, com o título “Prosa Amena”12 . Aqui o leitor vê-se confrontado com um sujeito da enunciação que, à “entoação cantada de uma voz” e à visão de uma rapariga trajada à moda da Metrópole, com 10 11 12
Ibidem. Mário António F. Oliveira, op. cit., p. 197. Lília da Fonseca, a província de Angola, 28 de outubro de. 1933, p. 1.
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a qual se cruza na Rua Salvador Correia, em Luanda, se transporta no imediato, em tom saudoso, para as “margens do Mondego” sendo apenas despertado pelo pregão da quitandeira “Lalanja, Lalanja, Lalanja, dó-ó-ó-ce!” que o traz, de novo, num regresso forçado, à “terra onde floresce o embomdeiro!”. Ainda em 1933, assinalamos no Número Especial de Natal “A Sala Oriental”13 , texto dramático com o subtítulo “Episódio em um ato, irrepresentável”. Apesar de o espaço cénico se situar em Lisboa, entre os adereços não faltam as azagaias penduradas na parede. Outros textos deste género literário surgirão, em anos seguintes, nas páginas deste jornal, sob a forma de pequenos sketches. Destacamos, a título de exemplo, “Tragicomédia ao telefone”14 , “Uma cena do terceiro acto da comédia O Solar da Maia”15 ou “O Pretendente”16 que permitem observar, desde cedo, o interesse da escritora por esta forma de expressão artística. Em outubro de 1935, nasce a primeira rubrica regular da autoria da agora designada D. Lília da Fonseca, “O canto da mulher”. Com o título “Agremiações femininas”17 o texto inicia de forma emblemática, “Portugal é um dos países onde o problema do feminismo segue ainda na rectaguarda. Mercê de que convencionalismos e falsas atitudes não sabemos explicar”. Aqui, por norma, os artigos prender-se-ão com questões ligadas ao universo feminino, como as tendências da moda ou a culinária, a costura e as preocupações com a beleza e as toilettes, mas também com a instrução, com a educação e com a prática do desporto. Estas ou outras preocupações com a vida das mulheres apa13
Idem, a província de Angola, número especial de Natal, 23 de dezembro de 1933, [p. 16]. 14 Idem, a província de Angola, suplemento de domingo, 10 de maio de 1936, [p. 5]. 15 Idem, a província de Angola, número especial de Natal, 20 de junho de 1937, p. 5. 16 Idem, a província de Angola, suplemento de domingo, 17 de outubro de 1938, p. 5. 17 Idem, a província de Angola, 5.a feira, 10 de outubro de 1935, p. 3.
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recerão, nesta fase, em vários artigos para além dos apresentados na coluna em questão. Em 1937, num outro artigo intitulado “Côrtes de amor”18 , suscitado pela leitura de um texto de Júlio Dantas, Lília toma posição relativamente à importância da for mação escolar no papel a desempenhar pela mulher na sociedade e na cultura, “a Eva culta de hoje, que vem a certames literários e a ’Côrtes de Amor’, que investiga e estuda só pode honrar com a sua intelectualidade superior o período histórico que atravessamos”. A par com a sua colaboração jornalística, Lília desenvolve trabalho na área da poesia, do teatro e da ficção narrativa. Ainda em 1937, nos Jogos Florais promovidos pela então Emissora Nacional, recebe uma menção honrosa pelos seus versos e pelo conto “O velho colono”19 , escrito no âmbito de um concurso de contos de Natal. Em junho desse mesmo ano, em o “Conto da semana” encontramos “Milagres da T.S.F.”20 , um relato sobre o drama de mãe e filho separados pela distância entre Portugal e Angola, onde África aparece como lugar de desterro onde se cumpria pena por algum crime cometido, visão partilhada por outros produtores de discurso na época em questão. No ano seguinte recebe, novamente, uma menção honrosa, no mesmo evento, desta vez com o conto “As três décadas”21 . Aqui o olhar sobre África de novo retrata uma terra inóspita e um local de degredo, de privações e padecimentos. No entanto, paradoxalmente, apesar das agruras e de um repúdio inicial, por artes de Kazumbi, o amor por aquele chão intensifica-se, tornando-se inexplicável. Datam também deste período alguns textos de literatura infantil, de que escolhemos um conto para crianças escrito em verso “Os pardais da 18
Idem, a província de Angola, suplemento de domingo, 11 de julho de 1937, p. 4. Idem, a província de Angola, edição especial alusiva ao Dia da Restauração, 15 de agosto de 1937, s.p. 20 Idem, a província de Angola, 6 de junho de 1937, p. 5. 21 Idem, a província de Angola, suplemento de domingo, 24 de abril de 1938, p. 5. 19
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eira”22 , e “As senhoras comadrinhas”23 , este último com a designação de “poesia infantil”. A este foi também atribuída uma menção honrosa, nos Jogos Florais da Emissora Nacional, em 1939. Ainda em 1938, o Dr. Cruz Malpique24 , que foi professor e reitor do Liceu Salvador Correia, em Luanda, publica uma crítica onde, em breve resenha, faz referência às qualidades de Lília da Fonseca como comediógrafa e contista, e elogia os seus atributos como poeta lírica, a propósito “da leitura dos Poemas de Graça e de Ilusão ainda inéditos na sua maior parte [. . . ]”25 . Cruz Malpique define-a como “uma alma contemplativa [na medida em que] o contemplativo interioriza a natureza, humanizando-a nas cambiantes do seu estado de alma, dentro da conhecida verdade de que a paisagem é um estado interior”26 . Da sua poesia, produzida na década de 1930, selecionamos apenas alguns excertos de poemas, entre muitos publicados neste órgão da imprensa angolana da época. Esta pequena seleção permite assinalar o lirismo da sua poesia, visível na musicalidade dos seus versos e na expressão de estados de alma de um sujeito dividido entre dois mundos. Nesse sentido, em “Aos heróis da Restauração”27 , “Terra de fogo e luz, terra de sonho, / Minha alma é flébil, minha lira é triste, / Mas êstes versos para ti componho, / Que a ti ninguém, ó terra, te resiste!”; em “Trovas”28 , “Quem nunca partiu não sabe / O valor dessa desdita / E toda a vida que cabe / No lenço que a mão agita”; em “Transfiguração”29 , “E tudo muda: e eu já não sei quem sou; // Pertenço à tela que 22
Idem, a província de Angola, 25 de dezembro de 1938, p. 5. Idem, a província de Angola, 30 de abril de 1939, p. 17. 24 Cruz Malpique foi, posteriormente, presidente da Sociedade Cultural de Angola, fundada em 1942, organismo a que se associa o periódico Cultura, nas páginas do qual desfilaram muitos intelectuais angolanos. 25 Cruz Malpique, “Lília da Fonseca – autora dos «Poemas de Graça e da Ilusão»”, a província de Angola, suplemento de domingo, 28 de agosto de 1938, p. 5. 26 Ibidem. 27 Lília da Fonseca, a província de Angola, número especial de Natal, 15 de agosto de 1935, s.p. 28 Idem, a província de Angola, 24 de maio de 1936, p. 5. 29 Idem, a província de Angola, 28 de junho de 1936, [p. 5]. 23
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o olhar abrange / E sou a flor a desfolhar-se ao longe, / Ou grito de ave que no ar passou. . . ”; ou em “Elegia”30 , “Praia de luz morena/ Dum recorte sensual, / Eu vou soprar minha avena / de inspiração tropical // [. . . ] E a minha mágoa, esta pena/ Que chora / Tornou-se em mim mais / morena / Que outrora! //”. Em 1939, a pena de Lília da Fonseca dá título a uma outra rubrica “Ambiente”, num texto que abre com um elogio a Maria Amália Vaz de Carvalho. A propósito das “raparigas de hoje” sublinha a necessidade de peso e medida na abordagem de determinadas questões: o progresso da mulher não é soma de ciência adquirida. Mulheres sábias e literatas houve em todos os tempos, senão com a abundância de hoje, pelo menos com aquela capacidade intelectual que fazia relegar para segundo plano o comum dos homens seus contemporâneos [mas adiante, no mesmo artigo, acrescenta] que de exageros e mulheres valentes, capazes de uma bravata, Deus nos livre delas! Deixa de ser ridículo para ser triste. Que eu ainda estou, nisto de feminismo e de tudo quanto à sua volta gira [. . . ] “nem muito nem pouco, só o preciso”31 .
Ainda nesse mesmo ano, no artigo “Pontos de Vista”32 , a propósito da realização do Primeiro Congresso da Imprensa Latina, Lília da Fonseca faz alusão à importância do intercâmbio Luso-Ango-Brasileiro33 para a união de seres com afinidades de vária ordem, numa “ânsia espiritual de intelectos irmanados pela mesma origem”34 . Nesse texto, Lília evoca a relação Angola-Brasil e sublinha a importância dos seguidores de Catulo Cearense como Cecília Meireles, Joel da Silveira, Bilac, Afrânio Peixoto, Joracy Camargo, entre outros, apelidados de representantes de um “Brasil novo”. Segundo ela, com a sua escrita, em língua portuguesa, estas eloquentes vozes da cultura 30 31 32 33 34
Idem, a província de Angola, 24 de abril de 1938, p. 5. Idem, a província de Angola, 23 de julho de 1939, p. 4. Idem, a província de Angola, 4 de junho de 1939, p. 4. Ibidem. Ibidem.
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brasileira dão a conhecer um povo e uma natureza que causou espanto e admiração desde os tempos da chegada dos primeiros portugueses a terras de Vera Cruz, e que estão na origem de relatos como os que encontramos, por exemplo, na Carta de Pêro Vaz de Caminha. pela voz dos seus poetas, pela pêna dos seus contistas, romancistas e dramaturgos, começa a revelar-se-nos com o mesmo viço de seiva e estruturas desconhecidas, que já fizeram chamejar de assombro, ante o espectáculo de uma natureza nova, esses lusos remotos que pela primeira vez aportaram a terras de Vera Cruz35 .
Notícia de um naufrágio Em 1940, Lília da Fonseca regressa a Lisboa para um curto período de férias, como habitualmente acontecia. Tinha, nessa altura, como objetivo, procurar um editor para um livro de novelas que pretendia publicar. Contudo, no regresso a África, em 1941, um acontecimento trágico muda-lhe o rumo à vida. O Ganda, vapor em que viajava, é torpedeado por um submarino alemão, um dia depois de ter levantado âncora. Esta foi uma ocorrência inesperada, na medida em que nada faria supor que (apesar dos furores da 2.a Guerra Mundial também terem tido eco nos mares) um navio de carga mista (bens de consumo e passageiros) de um país que tinha defendido uma posição de neutralidade na guerra viesse a ser atacado36 . O Ganda rumava a Luanda e a vários portos de Moçambique. Transportava várias toneladas de carga, 50 tripulantes e 22 passageiros e era comandado por Manuel da Silva Paião. Após o cruzamento do Estreito de Gibraltar e já ao largo da Costa de Marrocos, o submarino alemão U-123 avistou um navio isolado que, erradamente, identificou 35 36
Ibidem. Hortense de Almeida, op. cit., p. 169.
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como sendo um alvo britânico. Foram lançados três torpedos, seguidos de um tiro de canhão e mais de meia centena de granadas. Só na aproximação às baleeiras, o comandante do submarino terá dado conta do erro cometido. Curiosamente, o Ganda tinha sido fabricado em estaleiros alemães, em 1907, vendido aos ingleses no final da 1.a Guerra Mundial e, posteriormente, adquirido pelos portugueses37 . Neste desastre, cinco pessoas perderam a vida. Os restantes passageiros e tripulação foram resgatados, ao fim de alguns dias no mar, pelo barco português de pesca de arrasto Fafe, que salvou vinte e seis pessoas, e pelo espanhol Ventura Gonzalez, que resgatou quarenta e uma, conduzindo-as a Huelva. Lília da Fonseca fez parte deste último grupo. Segundo a sua irmã, Hortense de Almeida, “uma odisseia vivida entre mar e céu que se irá prolongar por três infindáveis dias e três infindáveis noites38 . Essa experiência traumática é-nos também narrada na primeira pessoa. O “Suplemento de domingo”, d’a província de Angola dá destaque de primeira página a um texto intitulado “. . . Dia 22”, apresentando a transcrição de um excerto do diário de Lília da Fonseca. Este relato emotivo dos momentos de desespero e angústia vividos pela própria dá-nos o ensejo para, através dele, sublinharmos a sensibilidade da autora e a qualidade estética do seu discurso: A solidão das noites no mar alto, num barco prestes a afundar-se em meio da treva mais absoluta! Nem sequer há luar! O mar invisível à nossa volta, brame furiosamente. O frio fustiga com mais impiedade os marinheiros sempre encharcados pela água que entra. A única lanterna que existe, alumia o motor que requer desvelos maternais. Se é nele que depositamos a nossa derradeira esperança! [. . . ] O leme e o seu homem parecem 37
Vários jornais da época dão destaque ao acontecimento. Referimos, como exemplo, O correio da manhã, de 24 de junho de 1941, p. 3; O comércio do Porto, nas edições dos dias 23, 24, 26 e 27 de junho de 1941; a província de Angola, 21 de junho de 1941, p. 1, bem como nos dias 23, 25 e 28 de junho do mesmo ano. 38 Ibidem.
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uma só peça. [. . . ] O motor, o coração do pequeno mundo no limiar da morte, continua a trepidar. Os nossos olhos furam o horizonte. Nem o mais leve sinal de embarcação. Nem vela, nem fumo. [. . . ] Esvoaça perto de nós uma gaivota. Que alegria ilimitada [. . . ] a terra deve estar próxima [. . . ] Como eu agora vejo a vida diferente. Como tudo é mesquinho e transitório [. . . ] o sol desce, o nosso desânimo é negrume. [. . . ] Nada, absolutamente nada! A solidão é completa. E, macabramente, como presentimento próximo do fim, a terceira noite começa. . . 39
Chegada a Lisboa, cerca de uma semana depois da partida, lacerada pelo acontecido, recusa-se a enfrentar, novamente, o mar revolto para atravessar o Atlântico. Opta por ficar na capital portuguesa onde, com assentimento e compreensão da direção do jornal, passa a colaborar na secção feminina d’a província de Angola. O livro que ainda em 1941 publica Uma mulher que amou uma sombra encerra com a novela Fomos torpedeados que inclui relatos desse naufrágio.
Espaços e discursos Nos anos quarenta, Lília da Fonseca entra assim num novo ciclo de vida, num espaço bem diferente do pacato meio angolano, “talhado a rigor pelos moldes do velho sistema colonial”40 . Os primeiros anos neste retângulo virado para o mar, estimulados por uma atmosfera política com contexto específico, desencadeiam novas posturas. A esperança dos aliados na derrota da Alemanha de Hitler e, em Itália, no fim da era Mussolini têm repercussões no aumento da resistência política ao regime de Salazar. Estas ideias e anseios vão chegando a Portugal mesmo que timidamente. Assim, ainda que sob a opressão, registam-se 39 40
Lília da Fonseca, a província de Angola, 3 de agosto de 1941, p. 1. Hortense de Almeida, op. cit., p. 168.
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laivos de alguma agitação libertária. Aumenta a tomada de consciência política. Nesse tempo, Lília da Fonseca assina a rubrica “Página para Senhoras – Carta do Chiado”, que manterá durante décadas. Uma página feminina onde se fala das tendências da moda da época, mas simultaneamente se analisam factos, se equacionam ideias, se tecem apreciações críticas sobre África, Portugal e o Mundo. Agora em Lisboa, Lília retrata uma outra realidade, um lugar onde bebe chá e se ouve Schubert, mas onde também se recebem notícias, via rádio, dos horrores da guerra, das bombas, das cidades arrasadas, dos seus efeitos nos seres humanos e em toda a espécie de património desse “monstro voraz que traga vidas, assola a fazenda e derrue impérios”41 . Nos invernos frios, cinzentos e húmidos em que as incertezas não são só as anunciadas pela meteorologia, mas se pautam pela falta de calor no coração dos homens, a sensibilidade de Lília anseia pelo “sol dos trópicos quem mo dera agora!”42 . A vivência da guerra suscita outras abordagens. O artigo “13 maneiras de. . . usar o mesmo vestido – ou de como a guerra vai ensinando regras de economia” sublinha um aspeto a que conferimos atualidade. Atendendo ao contexto de crise, em busca de uma aparente normalidade, a tendência da moda nas revistas francesas aposta na reciclagem e na reutilização criativa de vestuário. Em 1943, no “Número Comemorativo da Restauração de Angola”, o jornal dá destaque ao romance Panguila, então no prelo, no artigo intitulado “O nascer da aviação em Angola nas páginas do Panguila, romance de Lília da Fonseca”43 . Aqui são apresentados excertos da obra, com referências à participação do jornal em prol do desenvolvimento da aviação civil na colónia, o que também se conseguia com a 41 Lília da Fonseca, “Cartas do Chiado”, a província de Angola, suplemento de domingo, 9 de feveiro de 1941, p. 2. 42 Idem, a província de Angola, 16 de março de 1941, p. 2. 43 Artigo publicado em a província de angola, 15 de agosto de 1943, p. 33. A capa deste número é ilustrada por Neves e Sousa e apresenta uma legenda alusiva ao desembarque de Salvador Correia em Luanda.
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divulgação das festas que decorriam, animadas, no Aéro Clube de Angola, no final da década de 1930. O romance seria publicado em 1944. Ainda em 1944, o artigo “A Mulher na próxima Conferência de Paz”44 evidencia uma maior partilha das mulheres nas grandes decisões (os homens haviam feito a guerra, agora era tempo de as mulheres darem o seu contributo na conquista da paz). Nesse contexto, o papel das mulheres nas mudanças em curso assume afirmação gradualmente crescente. O número avultado de homens mortos vai permitindo marcar, de forma cada vez mais intensa, a intervenção social do elemento feminino. Além disso, aumenta o número de estudantes universitárias e a sua atuação assume notoriedade crescente. Em 1945, reorganiza-se o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, que Lília integra. Não conseguindo ficar indiferente, assume posições políticas de oposição às ideias de Salazar. Alarga, simultaneamente, o seu campo profissional. A par dos textos que continua a escrever para os jornais em Angola, colabora, em Lisboa, no Modas & bordados e Nossos filhos, revistas dirigidas, na época, por Maria Lamas e Maria Lúcia Namorado. Em 1950, funda e dirige o Jornal-magazine da mulher dando corpo ao projeto de criar um periódico mensal dedicado aos problemas e ao desenvolvimento dos interesses das mulheres. O editorial do primeiro número apresenta uma proposta de intenções com objetivos claramente definidos. Logo nas considerações iniciais, defende-se que esta não pretende ser apenas uma revista de modas ou gastronomia, questões da beleza, processos de tirar nódoas ou arrumar a casa45 . Na perspetiva da redação editorial, “relegar o poder de compreensão e interesse da mulher apenas para aqueles assuntos específicos, é desprestigiá-la na sua qualidade de ser pensante e, o que ainda é mais, estabelecer uma teoria desarticulada da realidade que vivemos”46 . Esta revista, publicada até 1956, num total de 52 números, refletirá sobre a vida da mulher em vários domínios, sublinhando a sua evolução 44 45 46
Idem, a província de Angola, 24 de setembro de 1944, pp. 1-4. “Editorial”, Jornal-magazine da mulher, n.o 1, 1950, p. 3. Ibidem.
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ao longo dos tempos, o seu papel no mundo do trabalho, na cooperação e manutenção do lar e como trave mestra da família, na sua luta pela vida, na educação dos filhos ou na expressão de anseios e ideais. Neste sentido, assinalamos títulos reveladores de alguns dos seus propósitos e preocupações, como “Haverá uma literatura para senhoras?”47 , ou uma série de artigos intitulada “A mulher e o trabalho”48 , que estará na base de um artigo mais curto com o mesmo título e sobre a mesma temática no Jornal de Benguela49 . No âmbito desta problemática surge ainda um outro artigo cujo título, bombástico, “A maior tarefa deste meio século”50 procura dar maior divulgação à disposição legal, acabada de sair, sobre o trabalho noturno das mulheres e menores em Portugal. Além disso, a publicação do Decreto-Lei 39.606, introduziu, em 1954, alterações à regulamentação da prostituição feminina em todo o território do então designado Ultramar. Na sequência da promulgação desse diploma, Lília da Fonseca assina um artigo de opinião intitulado “Um dos problemas sociais da mulher”. Um outro, versando o mesmo assunto, surge também nas páginas do Jornal de Benguela com o título “Para uma vida mais sã”. Outros artigos como “As enfermeiras dos hospitais civis não podem casar”, ou “Impõe-se a revogação da lei que proíbe o casamento às enfermeiras dos hospitais civis”, no Jornal de Benguela51 , são apenas alguns exemplos que conduzem a uma aferição das tomadas de posição de Lília da Fonseca, denotadoras da sua intervenção cultural, social, cívica e até política. Ressaltamos, ainda, as suas constantes inquietações para com as vivências humanas, não só em Portugal e na Europa, como nas latitudes africanas, por exemplo, no destaque dado em números especiais inteira47
Lília da Fonseca, Jornal-magazine da mulher, n.o 13, 1951, p. 3. Idem, “A mulher e o trabalho I, II, III e IV”, op. cit., n.o 33/34, 1953, p. 11; n.o 35, 1954, p. 10; n.o 36, 1954, pp. 21-22; n.o 38/39, 1954, p. 4. 49 Idem, Jornal de Benguela, 12 de julho de 1954, pp. 6-8. 50 Idem, Jornal de Benguela, 5 de setembro de 1955, pp. 1-4. 51 Idem, Jornal de Benguela, 18 de abril de 1955, pp. 1-2. 48
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mente dedicados à figura feminina na Guiné52 . Nos vários artigos que compõem estes números, sublinha-se o lugar de relevo das mulheres Manjaca, Mandinga e Felupe realçando-se o seu papel, determinante nas tomadas de decisão e na gestão da vida dessas comunidades, bem como a sua tenacidade. Este dossiê contou com a presença de vários colaboradores. O Jornal-magazine da mulher deu também um contributo significativo na divulgação do trabalho de muitos autores africanos, entre os quais citamos a publicação da entrevista de Mário Pinto de Andrade a Castro Soromenho53 , o excerto de uma palestra sobre a Literatura Negro-Africana 54 ou “Exotismo e folclore”55 . Outros artigos como o de Raúl Simões “A propósito do primeiro caderno de poesia negra de expressão portuguesa”56 , ou um outro sobre a atribuição dos prémios literários ao melhor contista e melhor poeta de Angola no biénio 195152, no concurso literário organizado pela Associação dos Naturais de Angola57 , são mostra da ação desta tribuna de opinião não acomodada e até destemida. Com efeito, este periódico ousou dar voz a jovens intelectuais africanos, designadamente com a publicação de poemas de Agostinho Neto, Alda do Espírito Santo, Aguinaldo Fonseca, António Nunes ou Jorge Barbosa, entre outros. A revista patrocinava ainda eventos de índole cultural como um em que João Vilaret recitou poetas de Angola e Moçambique58 . Ao longo da sua existência, as páginas desta revista acolheram igualmente a colaboração de inúmeros intelectuais ligados à oposição a Salazar. Além disso, nos primeiros números, surgem referências a no52
Jornal-magazine da mulher, n.o 17 e 18, 1952. Mário Pinto de Andrade, Jornal-magazine da mulher, n.o 38-39, 1954, p. 18. 54 Idem, “Arte, poesia e ideias”, Jornal-magazine da mulher, n.o 12, 1951, p. 21. 55 Idem, Jornal-magazine da mulher, número especial de fim de ano, n.o 33-34, 1953, pp. 38-39. 56 Raúl Simões, Jornal-magazine da mulher, n.o 20, 1953, p. 6. 57 Jornal-magazine da Mulher, n.o 15, 1951, p. 14. 58 Jornal-magazine da mulher, n.o 13, 1951, p. 21. 53
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mes de destaque da cultura portuguesa como Guerra Junqueiro59 , Alves Redol60 , Fernando Namora61 ou Miguel Torga62 . . . De igual modo, as crónicas e entrevistas de Júlio Pomar63 , os contos de Manuel da Fonseca64 , de José Saramago65 , um artigo sobre José Cardoso Pires66 , ou ainda a entrevista a Gilberto Freire67 (a propósito do lugar ocupado pela mulher na sociedade brasileira), o destaque dado ao primeiro aniversário da morte de Graciliano Ramos68 , ou a reflexão sobre o ato de escrita da autoria de Raquel de Queirós69 são outros elementos ilustrativos de atenta intervenção cívica e reveladores do apurado sentido estético e visão estratégica da equipa de coordenação editorial do referido periódico. Além de diretora, redatora e colaboradora, na qualidade de poeta e contista, Lília da Fonseca era uma das proprietárias do Jornal-magazine da mulher. Grande parte do trabalho era feito em sua casa 59
A propósito do centenário do nascimento do escritor, este artigo conta com depoimentos de Alexandre Cabral, Dr. José Marinho, Dr. Lopes de Oliveira, George Le Gentil, Jornal-magazine. . . , n.o 4, 1950, pp. 16-17. 60 Atribuição do prémio Ricardo Malheiros 1949, Jornal-magazine. . . ,n.o 5, 1950, p. 23. 61 “Notas de Leitura”, a propósito da edição de autor de Retalhos da vida de um médico, Jornal-magazine. . . , n.o 5, 1950, p. 23. À obra do escritor, a revista dedicará outros artigos noutros números. 62 Miguel Torga, “Destinos”, Jornal-magazine. . . , n.o 51, 1955, p. 12. 63 Júlio Pomar, “A exposição de arte sacra missionária”, Jornal-magazine. . . , n.o 15, 1951, pp. 16-17. Pomar assinará vários artigos neste periódico. 64 Manuel da Fonseca, “A testemunha”, Jornal-magazine, n.o 28, 1953, pp. 15-23. 65 José Saramago “A Lezíria”, Jornal-magazine. . . , n.o 7, 1951, pp. 22-29. 66 A propósito do lançamento do segundo livro do autor, na rubrica “Arte, poesia e letras”, Jornal-magazine. . . , n.o 27, 1953, pp. 8-11. 67 Entrevista a Gilberto Freire, Jornal-magazine. . . , n.o 15, 1951, p. 7. 68 Com o título “Antologia” se faz referência ao primeiro aniversário da morte de Graciliano Ramos, com apresentação de um texto publicado na revista Temerário, Rio de Janeiro, 1952, p. 10, e se incluem vários depoimentos sobre a sua influência em escritores portugueses: ibidem, n.o 37, março de 1954, pp. 8-9. 69 Com o título “A fama e a realidade” se dá destaque a este texto de Raquel de Queirós, anteriormente publicado no periódico O cruzeiro: jornal-magazine. . . , n.o 30, 1953, p. 5.
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“posto que os meios financeiros para o empreendimento eram muito escassos e não consentiam despesas com instalações próprias”70 . A revista tinha uma edição mensal e a sua tábua de matérias incluía rubricas tão diversas como A mulher através dos tempos, Entrevistas, Reportagem, Biografias, Página de África, Educação, Literatura, Cinema, Figurinos, Beleza e Penteados, Assuntos práticos e do lar que, no essencial, se foram mantendo durante os seis anos da sua publicação com algumas oscilações. Envolvida politicamente, em 1958 apoia a candidatura do artista plástico e jornalista Arlindo Vicente (com participação em publicações como o Diário de Lisboa, República, Ler, Presença ou Vértice, entre outras) à Presidência da República, pela Frente Democrática Nacional e candidata-se a deputada. Ligada a núcleos de mulheres com posições oposicionistas, Lília continua a sua carreira no jornalismo e na literatura.
Faces e máscaras Em 1962, Lília cria o Teatro Branca-Flor e torna-se uma figura incontornável do Teatro de Marionetas. A Companhia, criada em plena época do Estado Novo, apesar de todas as adversidades, resistiu ao tempo e deu um contributo significativo para a educação pela arte e para o desenvolvimento cultural do público mais jovem, na promoção do gosto pela poesia e do amor pelos fantoches71 . Também este não foi um caminho de acomodação, na medida em que representou a opção por uma arte teatral tantas vezes relegada para um plano de menor destaque, “mas cujo enorme poder de renovação permite, desde as suas 70
Gastão de Vasconcelos, “Lília da Fonseca”, in Dicionário no feminino: sécs. XIX-XX, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, p. 719. 71 Cf. Maria José Machado Santos (coord.), Branca Flor, o teatro de Lília da Fonseca 1962-1982, Lisboa, EGEAC/Museu da Marioneta, 2007, p. 71.
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origens na arte popular, o seu desenvolvimento em várias vertentes artísticas, abrindo novos caminhos na sua forma mais contemporânea e experimental”72 . Atenta à singularidade desta forma de expressão artística, Lília explorou a sua aplicação pedagógica colocando, deste modo, esta manifestação da arte ao serviço dos mais novos73 . Paralelamente, continuou a colaborar na imprensa periódica em Portugal e Angola, com energia testemunhada por incessante produção. Já em 1974, numa entrevista a propósito do trigésimo aniversário do lançamento de Panguila, à pergunta de um jornalista sobre a presença da temática angolana na sua obra, a autora realça o valor africano da transmissão da sabedoria dos mais velhos por via da oralidade e a relevância da narrativa breve na passagem de testemunho intergeracional de cultura: Tenho uma mão de histórias passadas em África para contar. Foram-me narradas por uma pessoa de idade, de Benguela, que aí conheceu outras também de idade que foram contemporâneas ou quase das personagens que povoam esses contos [. . . ] histórias que passaram de boca em boca até à pena do escritor, que ergue então essas vidas situadas a um século de distância umas, a caminharem para esse século outras74
Notas finais Pelo que aqui fica dito do muito que fica por dizer, Lília da Fonseca pode ser encarada como um nome feminino não negligenciável da 72
Ibidem. Ibidem. 74 Lília da Fonseca, “Artes e letras”, a província de Angola, 23 de janeiro de 1974, pp. 17-18. 73
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escrita jornalística em Angola e Portugal, num determinado período, e uma voz original da literatura lusófona, com produção iniciada em Angola, na década de 1930. Considerada por alguns precursora da moderna poesia angolana transformar-se-á, mais tarde, numa figura de destaque do teatro e da literatura para crianças produzidos em Portugal. Lilía da Fonseca criou uma obra literária de contornos poliédricos, a par de uma extensa colaboração em jornais e revistas, durante cerca de cinquenta anos. As centenas de textos publicados na imprensa periódica ao longo desse período de tempo ajudam a construir o retrato e a estatura desta mulher, através do olhar crítico que não conteve sobre as iniquidades da história social, cultural, política de Portugal, de Angola e do Mundo no seu tempo. As notas aqui coligidas perfilam-se como testemunhos para a compreensão da relação dos homens com os contextos epocais aqui referenciados. Morreu em 1991, com 85 anos, em Alverca do Ribatejo. Vários títulos de imprensa assinalaram a data da sua partida. O Diário de notícias, por exemplo, laborando em habitual erro quanto à data de nascimento, intitulou “Perda para o livro infantil, Lília da Fonseca morre aos 75 anos”75 e traçou-lhe um breve retrato biobliográfico. O JL, no artigo “Lília da Fonseca: a morte da escritora”76 evocou a mulher e a obra sublinhando, particularmente, o seu trabalho no âmbito da literatura para crianças e as suas funções como ex-presidente do Centro de Estudos da Literatura Infantil e como Presidente da Secção Portuguesa da Internacional Board for Young People (IBBY). Também José Eduardo Agualusa, baralhando uma vez mais a cronologia biográfica, noticiou, no jornal Público77 , a sua morte. Designou-a como escritora angolana, destacou a sua participação em publicações de Angola como os Cadernos Imbondeiro e Makua, no Lubango (ex-Sá da Bandeira), o conjunto da sua poesia representada nas Antologia dos novos poetas angolanos e Reino de Caliban II, posteriormente 75 76 77
Diário de notícias, 14 de agosto de 1991, p. 25. Jornal de letras, artes e ideias, 20 de agosto de 1991, p. 3. José Eduardo Agualusa, Público, 14 de agosto de 1991, p. 23.
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publicada com o título Poemas da hora presente. Evidenciou o seu labor à frente dos destinos do Jornal-magazine da mulher, revista colocada à disposição de vários intelectuais angolanos que aí publicaram os seus primeiros trabalhos. Concluímos este périplo a parte do espólio de Lília da Fonseca na imprensa com palavras da própria escritora e jornalista, num artigo da rubrica “Ambiente”, de 1942, no jornal a província de Angola, “individualmente a alma humana é insondável, e cada ser só por si renova diariamente o enigma milenário da vida; cada ser só por si é um ponto de partida, de onde divergem mil estradas, mil interrogações, das quais, quasi sempre, se não obtém resposta”78 . Lília da Fonseca desmultiplicou-se em espaços de intervenção, foi emissora de profusas apreciações, de regulares comentários e continuadas representações, fautora de um novelo extenso de realizações, cujo desfiar, o espaço aqui ensaiado apenas permite aflorar.
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Lília da Fonseca, a província de Angola, suplemento de domingo, 23 de agosto de 1942, p. 5.
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A presença da Humilde Camponeza nos Almanach de lembranças luso-brasileiro e Almanach luso-africano Maria Teresa Sousa mtjcps@yahoo.com.br
Cada livro, cada volume que vês tem alma. A alma de quem escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele
Carlos Ruiz Zafón, in A sombra do vento
A multiplicidade de assuntos abordados no ALLB1 é uma fonte inesgotável de temas de trabalho, quer do ponto de vista literário, quer 1
A sigla ALLB é a representação do título Almanach de lembranças luso-brasileiro.
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social ou histórico. Muitos estudiosos se têm debruçado sobre os conteúdos inscritos naqueles livrinhos de fácil manuseamento e que juntam, no mesmo volume, impressões tão diferentes como: relatos de um passeio romântico, elogio de figuras públicas, poesia de autores consagrados, textos de desabafo das pequenas e grandes desilusões que a vida traz, anedotas, charadas, ou as datas das Festas Móveis do ano respeitante ao Almanach. Podemos, assim, considerar que o ALLB consegue o seu objetivo: ser um veículo de uma literatura, diríamos coloquial, em que o erudito e o lúdico se misturam de uma forma “amena”, tal como o seu Diretor, Alexandre Magno de Castilho, propõe no prólogo do primeiro volume, a páginas 17: “O que só pretendemos foi publicar um livrinho ameno, próprio para todos os paladares, e de inegável utilidade, mesmo para todas as classes”. O primeiro volume do ALLB sai à estampa em 1851, sendo seu responsável Alexandre Magno de Castilho que, no Almanach para o ano de 1856, fez questão de frisar essa prerrogativa: “Os artigos não assignados são de minha composição e por sua doutrina me responsabiliso”. O nome de batismo Almanach de lembranças figura na sua primeira infância passando, ao quinto ano de publicação, a acrescentar um sobrenome: Luso-Brasileiro, que manterá até ao “30o Anno de Collecção”, correspondente ao ano de 1880, ano em que assumirá uma nova identidade: Novo almanach de lembranças luso-brasileiro. Com uma longevidade admirável, o ALLB terminará em 1932. Se, como referimos, Alexandre Magno de Castilho apresenta em 1851 as suas razões para o empreendimento editorial do “livrinho ameno”, no Almanach de 1852 agradece a “boa recepção do volume de 1851” e diz: [. . . ] continuo pois no meu propósito, que é: estimular com a leitura a curiosidade; caminho agradável que, não menos que o interesse, vai sempre dar às fontes do saber; dar, numa palavra, ás classes, profissões, e idades pouco instruídas, e que nada
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A presença da Humilde Camponeza nos Almanach de lembranças luso-brasileiro e Almanach luso-africano 235 lêem, e que pouco sabem, algumas noções geraes do mundo que lhes conviria saber [. . . ].
Uma ideia recorrente que retoma, com maior ênfase, no primeiro Almanach de lembranças luso-brasileiro, para o ano de 1855, em que escreve no prólogo: Escrevemos châmente, porque escrevemos para as turbas; com brevidade e parcimónia, porque nem o espaço dá para mais, nem a mais avança o estomago dos leitores do nosso tempo, débil para obras massiças, e affeito á tremoçaria dos artigos de jornaes que entretêem mais do que sustentão.
Verificamos que o “livrinho”, com um número variável de páginas, entre 352 do primeiro volume, referente ao ano de 1851, até às 479 de 1885, a que acresce um suplemento, nos anos de 1886 a 1890, vai ser um sucesso de vendas. Com uma circulação, predominantemente, em Portugal e no Brasil ele viaja, igualmente, para as então colónias portuguesas em África. Contemporâneo do ALLB, mas com uma reduzida existência, surge o ALA2 comumente conhecido pelo “Almanach do Cónego Teixeira”. O primeiro volume obtém carta de alforria em 1885 e a justificação para tal empreendimento conhecemo-la através das palavras do seu Diretor, o referido cónego que, no “Cartão de apresentação”, resume assim o seu objetivo: “Almanach Luso-Africano cujo programma é: – Instruir, educar e recrear”, numa distribuição espacial predominantemente no arquipélago de Cabo Verde. Com 252 páginas, segue o padrão editorial apontado por David Pinto Correia: “Podemos considerar o almanaque como uma publicação de periodicidade (quase sempre) anual com variável número de páginas – que pode ir desde as dezasseis, habituais nos folhetos de cordel, até mesmo abranger algumas centenas [. . . ]”3 . 2
A sigla ALA é a representação do título Almanach luso-africano. João David Pinto Correia e Manuel Viegas Guerreiro, “Almanaques ou a sabedoria e as tarefas do tempo”, Revista ICALP, vol. 6, agosto/dezembro de 1986, pp. 43-52. 3
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As dificuldades e, até, pressões no sentido de impedir a regular publicação do ALA, não são suficientes para fazer desistir o determinado Diretor: MORREU O LUSO-AFRICANO! Era o que de mim dizião todos, mas não morri, não! Facto é que me quiseram enganar, mas eu não cahi na tolice de me deixar matar. Ahi vou, de novo, por esse mar em fóra! Morrer!?. . . Eu?!. . . 4
que, após um longo interregno de quatro anos promove, em 1899, a publicação do segundo e último volume do Almanach luso-africano, com 574 páginas. Não nos alongaremos nas informações prévias sobre estas duas publicações, o que nos levaria a uma extensa prosa inicial e nos afastaria do objetivo deste ensaio. Para a participação no II Encontro Luso-Afro-Brasileiro “As mulheres e a imprensa periódica”, fixámos a nossa escolha na última década do século XIX e na única autora que publica, em simultâneo, nos dois Almanaques: A humilde camponeza, D. Gertrudes Ferreira Lima, de Cabo Verde. Sobre a vida de D. Gertrudes Ferreira Lima, “[. . . ] primorosa poetisa e exímia professora [. . . ]”5 gostaríamos de saber um pouco mais. Porém, não podemos deixar de referir o importante contributo que nos foi prestado por Manuel Ferreira Lima, seu sobrinho-neto, a quem agradecemos, penhoradamente, as informações disponibilizadas. Natural da ilha de Santo Antão, freguesia de Santo António das Pombas, concelho do Paul, no arquipélago de Cabo Verde, não temos a data exata do seu nascimento que pensamos ter sido próximo do final da primeira metade do século XIX. Faleceu naquele território, em agosto de 1915, na vila da Ribeira Grande, freguesia de Nossa Senhora do Rosário, concelho da Ribeira Grande. 4 5
ALA, 1899, p. 9. ALA, 1895, p. 216.
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A presença da Humilde Camponeza nos Almanach de lembranças luso-brasileiro e Almanach luso-africano 237 Filha de Luís Pedro Lima e de Carolina Ferreira Lima cresceu numa importante família cabo-verdiana, que partilhou com quatro irmãs e três irmãos. A sua formação pedagógica fez-se na Metrópole, tendo estudado em Coimbra, no Real Collegio das Ursulinas das Chagas onde, também, estiveram os seus três irmãos. Regressou a Cabo Verde e dedicou toda a vida ao ensino, ali introduzindo o método do pedagogo João de Deus de quem era admiradora. Esta admiração e respeito é bem patente no relato que faz, a páginas 341 e 342, do ALLB de 18986 , da visita ao poeta João de Deus. Nomeada professora substituta da Escola Régia da Vila da Ribeira Grande em 1891, viu a sua efetivação confirmada em 1893. Um casamento tardio, já perto dos 60 anos, com Manuel Jansénio Tolentino, natural da Ribeira Grande, não lhe permitiu descendência. A ausência da maternidade foi preenchida com os sobrinhos, nomeados na dedicatória do poema “Prece”, publicado no ALLB, de 1893, a páginas 461, que a par da difícil tarefa do ensino, complementa com uma regular atividade literária. “Humilde Camponeza”, o pseudónimo que escolheu para a publicação dos seus escritos, parece-nos conter como que o resumo que fazia da sua própria pessoa: Humilde, como podemos observar ao colocar-se ao nível de “um preto, Silva Brazileiro, [. . . ]”, personagem da narrativa que vê publicada no ALA de 1895, a páginas 118, 119 e 120, com o título “Um grande heroe cabo-verdeano”. Gertrudes Ferreira Lima presta uma sentida homenagem, pela coragem e abnegação demonstrada por Silva Brazileiro, ao tentar salvar alguns marinheiros, do barco Ribeira Grande, apanhados pela tempestade que se abateu sobre a Ribeira do Paul, a 6 de outubro de 1893. Escreveu: “[. . . ], e bastantemente orgulhosa por ser patricia de um tão grande heroe”. 6
ALLB, 1898, p. 341: “[. . . ], em quanto eu e minhas amigas admirávamos a esthetica grandiosa e significativa das offertas no dia triumphal e memoravel do Evangelisador das creancinhas, aparece-nos elle adoravelmente simples e meigo, como sempre o havia conhecido, envolvendo-me na serenidade acariciadora do seu olhar luminoso. . . ”.
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E porquê Camponeza? Talvez porque não se sinta uma mulher cosmopolita, o que seria fácil de interiorizar num quadro de uma burguesia letrada e viajada. Os seus poemas são simples, sem um vocabulário rebuscado, sem alarde de sapiência ou demonstração de pertença a uma elite. Vejamos, por exemplo, o poema “Esperança”, publicado na página 219 do ALA de 1895. Na primeira quadra diz: A chorar entrei no mundo A chorar eu sempre estou Como a ave do deserto Que tão pobre e só ficou.
e na sexta, em que reforça a ideia de viver mais algum tempo, escreve singelas palavras: Vem segredar-me baixinho Fallar-me d’um ceo d’anil Das fontes e das florinhas Qu’inda verei vezes mil.
A relevância pessoal, na sociedade mais participativa culturalmente no arquipélago, é provada pela inserção do seu nome como correspondente, em Santo Antão, do “Expediente” do ALA de 1895. A estima e respeito dos seus pares, podemos aduzir a partir do “Anagramma”, elaborado por Silva Araújo, com os nomes dos professores da ilha de Santo Antão. João Batista Silva Araújo, na dedicatória, escreve: “Offerecido como preito de homenagem à Ex.a Sr.a D. Gertrudes Ferreira Lima, primorosa poetisa e eximia professora n’esta ilha, é composto dos nomes dos professores da ilha”, que se encontra na página 216 do ALA, de 1895. A primeira publicação encontramo-la no ALLB de 1892, página 482, o soneto “Bem haja” que dedica “Ao meu digno presbytero Antonio Manuel da Costa Teixeira”, que será o futuro diretor do ALA. No volume do ALLB de 1893, página 214, sai à estampa o poema ”Saudação”. Ali perpassa a saudade que tem dos seus entes queridos www.clepul.eu
A presença da Humilde Camponeza nos Almanach de lembranças luso-brasileiro e Almanach luso-africano 239 e dos lugares onde passou “[. . . ] a minha dôce infância, [. . . ]” e o enorme desejo de voltar “[. . . ] áquelle Portugal bondoso [. . . ]” porque, apesar de tudo de belo que a rodeia, se sente prisioneira naquele espaço. No mesmo volume, a páginas 461, temos um poema datado, 25 de fevereiro de 1891, que dedica aos sobrinhos. Poema que é uma oração dirigida a Jesus e à Virgem Santa, rogando-lhes pela saúde de uma Tia, a Sr.a D. Francisca E. Pereira de Mello. Convoca as crianças para que, com ela, implorem pelas melhoras da velha senhora por quem nutrem um carinho profundo e que tanta companhia lhes faz, contando-lhes histórias, conforme podemos ler na penúltima quadra do poema: Quem jamais historias lindas De mouros, fadas e reis Nos contara com meiguice? Ai! Quem será, não direis!?
Os seus pedidos não foram ouvidos, as dolorosas palavras que profere, nas primeiras estrofes da terceira quadra: “Não nos roubeis a mãesinha”, bem como na da quarta: “Não roubeis que é cedo ainda” e sexta quadras: “Oh! não roubeis a mãesinha” e a Morte arrebatou a senhora por quem imploravam a intervenção divina. D. Gertrudes Ferreira Lima procura acarinhar e consolar a pequena Romaninha de Mello, a quem a ausência da tia-avó tão profundamente magoara e dedica-lhe um poema, sem nome, com a data de 15 de setembro de 1892, que será publicado na página 330 do ALLB de 1894. Ali, lhe explica a alegria e o prazer que a sua presença transmitia à idosa senhora, que partira há cinco meses: Da sua alma entristecida eras a luz sorridente, canto celeste, harmonioso que embala o pobre soffrente
Há um interregno, de quatro anos, em que o seu nome não consta da lista das “Senhoras” daquela publicação. Ali voltará, no volume www.lusosofia.net
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publicado no ano de 1898, com um texto com o título “A minha ultima visita a J. de Deus”7 e que dedica “Ao distinctissimo medico e exímio poeta dr. Alves Crespo”. É uma declaração de respeito, reconhecimento e reverência perante a figura do “Evangelizador das criancinhas”8 , uma homenagem sentida ao professor que a tinha recebido, em 1888, para lhe ensinar um novo método pedagógico. Agora, ali estava ela a reforçar o seu agradecimento e a mostrar-lhe que tinha valido a pena: “eis-me professora, e ainda admirada de o ser!”9 . O poema “A pedido de Julio Dumont – Eximio poeta Satyrico”, encerra a sua colaboração no ALLB. Publicado a páginas 387 do ALLB de 1899, a autora indica Lisboa como o lugar de onde escreve. Uma romântica a quem a tristeza, o pranto e a dor semeiam os tristes dias, assim temos, na primeira quadra: Na minha lyra doente Há muito fel, muito pranto; Não m’obrigues a cantar Que faz tristeza o meu canto
ou na quinta: É que eu nasci prá chorar E, se as vezes canto e rio, Forcejo o pranto reter A cair prestes em fio
Porém, sonha com a possibilidade de uma alteração naquele quadro, o que lhe traria a alegria, no regresso à terra natal, que identifica
7
A autora refere o dia da visita, 5 de junho de 1896, ao mesmo tempo que anuncia a sua partida para Cabo Verde, no dia seguinte, isto é, 6 de junho de 1896. 8 ALLB, 1898, p. 341. 9 Ibidem, pp. 341-342.
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A presença da Humilde Camponeza nos Almanach de lembranças luso-brasileiro e Almanach luso-africano 241 com o lexema “palmares” em contraponto com “pomares”, numa alusão a Lisboa. Finaliza o seu poema com essa desejada esperança: Oh, então, caro poeta, Bem longe dos teus pomares Cantarei co’as avezinhas Á sombra dos meus palmares!
No entretanto, vamos encontrar o seu contributo nas “Collaboradoras”10 do ALA, publicado em 1895, sob a direção do cónego Antonio Manuel da Costa Teixeira. D. Gertrudes Ferreira Lima11 participa com quatro textos no ALA de 1895. O primeiro, registado na página 103, corresponde ao poema “Confissão”, datado de fevereiro de 1892 e com a indicação de ter sido escrito em “Sant’Antão”. Porém, ali recorda um elemento natural, bem conhecido em Portugal: o rio Tejo. Dedica-o: “Á minha querida e boa amiga Anna Alves Loreto”. Vai contar um segredo a uma amiga e fá-lo com palavras afetuosas, como na primeira quadra: Quero hoje ser indiscreta Um segredo revelar, Aqui baixinho entre nós Que ninguém venha escutar
ou na última: Nunca te vejo chorar, Minha donzela querida, Senão de goso puríssimo Doce flôr de minha vida 10
ALA, 1895, p. 71: “Indice das Illm.a s. e Exm.a s. COLLABORADORAS d’este Almanach”. 11 Gerald Moser e Manuel Ferreira, Bibliografia das literaturas africanas de expressão portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983, p. 147.
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A autora data e refere o lugar de escrita, Cabo Verde, porém, na segunda estrofe da terceira quadra, ela recorda Portugal Continental, ao dizer: “Olhavam pr’o manso Tejo”. Podemos pensar que verbaliza, no poema, a lembrança de outros tempos e lugares. A escrita da Humilde Camponeza valoriza a emoção, a saudade e o desapego das coisas materiais, em função de valores subjetivos. Estão, pois, ali refratadas as ideias centrais do Romantismo dos finais do século XIX. A segunda colaboração surge-nos nas páginas 118, 119 e 120, uma narrativa breve intitulada “Um grande heroe Cabo-verdeano”, em que descreve uma tempestade no Paul, ocorrida em 6 de outubro de 1893. Ali fica o testemunho da perceção da transitoriedade do homem perante a imensidade da Natureza, tão característico do ideal romântico: A chuva cae torrencialmente com medonho fragor pelo bramir do tufão que sacode violentamente as arvores, das quaes os ramos, com as telhas, arremessadas ao longe nos espaços turvos se cruzam em furiosos recontros. Ruge irado o mar levantando-se em tremendas capellas como que pedindo, no seu rouco bramido, tudo o que a terra contêm.
D. Gertrudes Ferreira Lima tece rasgados elogios a um jovem negro, de nome Silva Brazileiro que, arriscando a vida, procura resgatar os marinheiros que se encontram em grande dificuldade. Como é habitual, nesta autora, dedica o seu depoimento “A meus bons amigos Viriato A. Pereira de Mello e Roberto Duarte Silva”. O terceiro contributo, neste ALA de 1895, recupera, uma vez mais, a saudade, uma saudade a roçar o desespero com a morte de um grande amigo e ídolo, o poeta e médico Custódio José Duarte, ilustre caboverdiano que morreu em 1893, no Mindelo. Por vontade expressa, todos os seus manuscritos foram lançados ao mar. A dor que o tempo não atenua, apesar de um ano ter passado e que ela sabe que a acompanhará até ao fim dos seus dias. O título do seu poema é disso elucidativo: “’Perpetuas’ – Ao meu presadissimo sr. Antonio C. Monteiro Junior, em memoria do saudoso e distincto poeta Custodio José Duarte”. www.clepul.eu
A presença da Humilde Camponeza nos Almanach de lembranças luso-brasileiro e Almanach luso-africano 243 Escolhemos duas quadras deste poema que, na nossa opinião, demonstram o estado de alma em que se encontrava a Humilde Camponeza. Assim, referimos a segunda quadra: Ao vel-o tão outro e triste contemplei Aquelle formoso rosto e singular gigante De sciencia profunda que sempre adorei Como a pobre cega a luz deslumbrante.
e a última: E n’elle uma per’la christalina e pura Envia saudosa aquella que no seio Guardará seu nome com intima ternura Té baixar um dia á terra d’onde veio. . .
Um novo alento parece chegar à “primorosa poetisa” que, a páginas 219, vê publicado o seu poema “’Esperança’ (A Viriato Augusto de Mello e sua esposa D. Angelina de Mello)“. Após um desfiar da infelicidade que a acompanha desde o nascimento, que introduz na primeira quadra: A chorar entrei no mundo A chorar eu sempre estou Como a ave do deserto Que tão pobre e só ficou.
pede os bons ofícios, de quem o povo entende ser a última coisa a morrer: a Esperança. E implora, na quinta quadra: Não me negues, Esperança, O teu riso divinal, É como o doce carinho D’um coração maternal.
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Como referimos, oportunamente, a Humilde Camponeza tem o seu nome na lista das “ILLmas E EXmas COLLABORADORAS do ALMANACH LUSO-AFRICANO”, para o ano de 1899. Contribui com três poemas naquele que será o último volume do ALA. O primeiro poema é dado à estampa na página 76, datado de 24 de setembro de 1894 e com certidão de nascimento em Lisboa. Trata-se do poema “’A lyra doente’ (A Julio Dumont, exímio poeta satyrico) (A Pedido)”. Curioso é que este poema é o que foi publicado na página 387 do ALLB de 1899, intitulado “A pedido de Julio Dumont”, com ligeiras alterações. A primeira estrofe contém o título do poema agora inscrito: Na minha lyra doente Há muito fel, muito pranto; Não m’obrigues a cantar Sem perfumes nem encanto.
A segunda contribuição surge a páginas 164-165, escrito em “Lisboa, 14 d’Abril de 1895”: “’ADEUS’ (Ao meu distincto collega, João Baptista S. Araujo)”12 . Uma vez mais, D. Gertrudes Ferreira Lima lamenta-se da triste sina que a persegue. Não lhe é permitida uma vida feliz, nos lugares onde deseja permanecer e o destino parece ser implacável para esta senhora. Assim observamos na primeira estrofe da quadra inaugural: Adeus, adeus, Portugal! Vou partir já qu’o destino Sempre em cruel desatino Me condemna assim deixar-te!
12
João Baptista da Silva Araújo é o autor do Anagramma, com os nomes dos professores da ilha de Santo Antão, publicado na página 216 do ALA de 1895.
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A presença da Humilde Camponeza nos Almanach de lembranças luso-brasileiro e Almanach luso-africano 245 ou na terceira quadra, quando escreve: Ah! sulcar agora os mares, Deixar os lustres d’abril Deixar este céo d’anil. . . Que tristeza, que saudade!
Um lamento, não só sobre a sua vida mas, também, pelo fato de ter de abandonar Lisboa e partir para Cabo Verde e é disso que nos dá conta na sétima quadra do poema: Tu és, tu és, Portugal, A minha pátria também, E dos teus mares além Por ti sempre chorarei.
A terceira e última contribuição desta professora de Santo Antão, no ALA de 1899, encontramo-la na página 206, com o poema “’Threno’ (Á memoria da minha querida Inin)”. Chora a morte de uma jovem, que compara à cruel caçada de uma ave indefesa porém, esse funesto acontecimento, cuja memória a irá acompanhar para sempre, torna-se menos doloroso porque acredita que ela está a usufruir a presença do divino. Por outro lado a fé, em que se apoia, recordam-lhe as palavras de Jesus que prometem a redenção. Como exemplo do que temos vindo a analisar, propomos a leitura da primeira quadra: Como a alvéloa na revoada mansa O fero caçador no chão prostrou, Assim brincavas na luzida estança, Quando a mentida sort’ aniquilou!. . .
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da quarta: E, se hoje vejo teus irmãos trinantes, Quaes rouxinoes em bandos festivaes, Creio Antevrê-te nos céos deslumbrantes Cantando os hymnos belos, divinaes.
e da última: Ai vejo em tudo tua imagem q’rida!. . . Do Nazareno bem haja o sermão Que alenta a fé, a crença emurchecida, E nos manda esperar a redempção!. . .
Podemos considerar que ali repassa como que o resumo da sua existência, da sua posição na ética romântica oitocentista e no assumir de uma identidade definitiva: a cabo-verdianidade. Ao pseudónimo, com que assina os seus textos, Humilde Camponeza, acrescenta “caboverdiana”. A autora reforça, assim, a ligação à terra que a viu nascer e assume como que uma identidade específica, é “cabo-verdiana”. Porém, não esquece Portugal, e a ausência dos lugares lusos é-lhe particularmente penosa. Evoca-os em alguns dos seus poemas, como referimos anteriormente, onde a saudade é um permanente estado de alma.
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Referências bibliográficas
Novo almanach de lembranças luso-brazileiro para o anno de 1892, Antonio Xavier Rodrigues Cordeiro (dir.), Lisboa, Livraria Antonio Maria Pereira, 1891. Novo almanach de lembranças luso-brazileiro para o anno de 1893, António Xavier Rodrigues Cordeiro (dir.), Lisboa, Livraria António Maria Pereira, 1892. Novo almanach de lembranças luso-brazileiro para o anno de 1894, António Xavier Rodrigues Cordeiro (dir.), Lisboa, Livraria António Maria Pereira, 1893. Novo almanach de lembranças luso-brazileiro para o anno de 1898, António Xavier de Sousa Cordeiro (dir.), Lisboa, Livraria António Maria Pereira, 1896. Novo almanach de lembranças luso-brazileiro para o anno de 1898, António Xavier de Sousa Cordeiro (dir.), Lisboa, Livraria António Maria Pereira, 1897. Almanach luso-africano ilustrado para 1895, João Lopes-Filho e Alberto Carvalho (org.), Coimbra, Edições Almedina, 2011. Almanach luso-africano ilustrado para 1899, João Lopes-Filho e Alberto Carvalho (org.), Coimbra, Edições Almedina, 2011.
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CORREIA, João David Pinto e GUERREIRO, Manuel Viegas, “Almanaques ou a sabedoria e as tarefas do tempo”, Revista ICALP, vol. 6, agosto/dezembro de 1986. FOUCAULT, Michel, O que é um autor?, Lisboa, Vega, 1992. HAMILTON, Russel G., “Cabo Verde”, in Literatura africana, literatura necessária, Lisboa, Edições 70, 1983. MOSER, Gerald e FERREIRA, Manuel, Bibliografia das literaturas africanas de expressão portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983. ZAFON, Carlos Ruiz, A sombra do vento, Lisboa, Dom Quixote, 2004.
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Parte VI A PRESENÇA FEMININA NA IMPRENSA PORTUGUESA
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Semear para colher: a contribuição de Ana de Castro Osório em A semeadora (1915-1918) Célia Carmen Cordeiro1 cordeiro.carmen@gmail.com
Não há país que avance e progrida se a mulher for nele uma serva perante a lei, uma inferior pela falta de instrução, um valor nulo na sociedade e na família Ana de Castro Osório2
Ana de Castro Osório (1872-1935) foi uma escritora, pedagoga, publicista, republicana e feminista. Nasceu em Mangualde, em 18 de junho de 1872, e faleceu em Lisboa, a 23 de março de 1935. A sua obra é fruto de uma intensa atividade literária, cívica, política e feminista, testemunho da sua personalidade arrojada nas letras e ideias 1
Universidade do Texas, Austin. Ana de Castro Osório, “O valor social da mulher”, A mulher e a criança, n.o 11, 1910, p. 11. 2
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luso-brasileiras. Filha do juiz e bibliófilo João Baptista de Castro e de Mariana Osório de Castro Cabral, foi educada em casa, com acesso livre à vasta biblioteca do pai. Casou aos 23 anos com o poeta republicano Paulino de Oliveira. Teve dois filhos, João de Castro Osório de Oliveira e José Osório de Castro e Oliveira. Identificada como uma das fundadoras da literatura infantil em Portugal e como empresária, fundou a Casa Editora para as Crianças e as Edições Lusitânia. Diversos livros seus foram adotados como manuais escolares em Portugal e no Brasil, dos quais registo A minha pátria (1906), Lendo e aprendendo (1913) e Viagens aventurosas de Felício e Felizarda ao Brasil (1917). Empenhou-se na propaganda republicana e feminista em prol da emancipação social e económica das mulheres, publicando assiduamente em dezenas de periódicos nacionais e estrangeiros. Autora daquele que, segundo Maria Regina Tavares da Silva, é o primeiro manifesto feminista português, a coleção de ensaios Às mulheres portuguesas (1905)3 . Maçon desde 1907, integrando a Loja Humanidade do Grande Oriente Lusitano Unido e impulsionadora do associativismo feminista ao criar o Grupo de Estudos Feministas (1907), Ana de Castro Osório foi, ainda, dirigente da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (1908) e integrou a Associação de Propaganda Feminista (1911). Colaborou com Afonso Costa na redação da lei a favor do divórcio, promulgada a 3 de novembro de 1910. Compilou as suas reflexões sobre o divórcio em A mulher no casamento e no divórcio (1911). Em 1915, funda a loja maçónica feminina Carolina Ângelo, homenageando a amiga e primeira mulher a votar em Portugal. A Primeira Guerra Mundial serviu-lhe de palco para as seguintes obras de carácter pedagógico: De como Portugal foi chamado à guerra (1919) e Em tempo de guerra (1915). A partir dos anos 20, dedica-se exclusivamente à escrita literária, com a publicação de diversos romances, novelas e contos, que testemunham 3
Maria Regina Tavares da Silva, Análise social, vol. XIX (77-78-79), 1983, p.
890.
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Semear para colher: a contribuição de Ana de Castro Osório em A semeadora (1915-1918)
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o seu desejo de se tornar uma escritora reconhecida a nível nacional e internacional. Destes, destaco apenas O direito da mãe (1925), Mundo novo (1922) e A grande aliança (1924). Este último reúne uma série de conferências proferidas no Brasil em prol da aliança cultural entre os dois países. Tendo em conta o tema desta comunicação, procuro agora situar Ana de Castro Osório no contributo que deu ao periódico A semeadora (15 de julho de 1915 a 28 de abril de 1918). Após ter passado três anos a residir na cidade brasileira de São Paulo, entre 1911 e 1914, acompanhando o marido durante o período de representação enquanto cônsul português, regressa a Lisboa após a morte daquele, vítima de tuberculose. Fixa residência em Lisboa, no prédio onde vivia a família, na Rua do Arco do Limoeiro, que rapidamente se transformou na sede das atividades de propaganda feminista, assim como sede do periódico mencionado4 . Enquanto redatora do jornal A semeadora (1915-1918), órgão da Associação de Propaganda Feminista, vem juntar-se a Antónia Benício e Antónia Bermudez, administradora e editora do periódico, respectivamente5 . Neste ensaio, darei a conhecer alguns dos ideais que a jornalista feminista semeou e divulgou nas páginas d’ A semeadora, nomeadamente o direito das mulheres à educação e ao trabalho remunerado em igualdade com o salário dos homens no desempenho da mesma atividade. O patriotismo também é exposto nas páginas desse periódico através da conexão da autora com a Comissão Feminina Pela Pátria. Ideais propagados em prol de um feminismo humanista, aquele que, segundo Ana de Castro Osório, “unifica uma sociedade que se quer humana e não masculinista ou feminista; aquela em que ilustrada a mulher conquista um trabalho remunerado ao qual concorre leal e justamente em
4
“Ana de Castro Osório”, in Zília Osório de Castro (dir.), Dicionário no feminino (séculos XIX-XX), João Esteves, Lisboa, Livros Horizonte, 2005, pp. 91-94. 5 Ana de Castro Osório, A semeadora, 15 de julho de 1915, p. 1.
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pé de igualdade com o homem”, pois “Portugal não se poderia dar ao luxo de perder a capacidade de trabalho de metade da sua população”6 . Em 15 de julho de 1915, Ana de Castro Osório escreve n’A semeadora sobre a missão deste periódico: “semear ideias, espalhar conhecimentos, levantar questões e apresentar problemas, que a mulher portuguesa” seria “forçada a decifrar” e para os quais em Portugal “estava mal preparada”7 . Ora, essa má preparação feminina a que a publicista se refere consiste na elevada percentagem de analfabetismo feminino a nível nacional na época: 81,5%, segundo Rui Ramos, resultado evidente do não cumprimento da República relativamente à abertura da escola pública para todos e em todo o país8 . Um dos objectivos principais da Associação de Propaganda Feminista, responsável pelo jornal, consiste, no entanto, segundo Maria Regina Tavares da Silva, em “elevar a mulher pela educação e pela instrução”9 . Eis a razão porque em A semeadora, a propaganda pela educação tem um papel de destaque. Neste periódico almeja-se auscultar os anseios e reivindicações feministas de modo a colmatar o atraso da sociedade portuguesa relativamente à falta de direitos femininos e nesse sentido os artigos de Castro Osório publicados neste meio de comunicação têm um papel deveras impulsionador do progresso. Vejamos agora o logótipo do jornal – uma mulher caminhando de algemas quebradas nos pés. Este é o símbolo da força feminina que avança na luta pelos direitos da mulher. Daí que Ana de Castro Osório afirme no número de 15 de julho de 1915 que se no passado foi possível acorrentar os pés femininos, o mesmo não se passaria com a palavra no presente, pois para a publicista feminista, “a língua, quer dizer, a palavra de revolta e de justiça, em tempo algum conseguiram prendê-la, nem a Santa Inquisição pode fazer calar os que 6
Idem, A semeadora, 15 de janeiro de 1916, p. 1. Idem, A semeadora, 15 de julho de 1915, p. 2. 8 Rui Ramos, “A Segunda Fundação” (1890-1926), in José Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 269. 9 Maria Regina Tavares da Silva, Análise social, vol. XIX (77-78-79), 1983-3.o , o 4. , 5.o , p. 877. 7
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tinham a razão pelo seu lado”10 . São afirmações destas que evidenciam a consciência de Castro Osório sobre o poder da imprensa livre na educação da sociedade portuguesa. Para finalizar no logótipo deste periódico, timbraram-se as palavras Perseverança, Verdade e Justiça à volta do círculo que circunscreve a mulher que caminha livremente. Além dos símbolos presentes no logótipo d’A semeadora, há uma máxima que percorre os diversos números: “Ser feminista não é uma revolta; é uma dignificação. A Mulher só se pode libertar pelo trabalho. A questão feminista é fundamentalmente económica”11 . Por outras palavras, embora a mulher portuguesa tenha uma enorme capacidade de trabalho, só se libertaria através da educação. A publicista feminista acentua a importância que a educação tem no melhor desempenho do trabalho feminino. Atente-se que, segundo Fátima Sequeira Dias, durante a República Velha (1910-1917): escasseava o trabalho industrial, confinando-se o trabalho feminino ao artesanato e ao trabalho rural, como complemento ao trabalho masculino, numa situação de grande precariedade. Só as remessas dos emigrantes equilibravam a periclitante balança de pagamentos portuguesa, daí o incentivo à emigração: 63.000 em 1911; 95.000, em 1912; 83.000, em 1913. Apenas em Lisboa, base de apoio dos republicanos, a população vivia melhor sob a república do que sob a monarquia12 .
Eis algumas razões para que a educação se tenha assumido em Portugal como o pilar do ideário feminista português. Iletrada, a mulher portuguesa jamais reivindicaria os seus direitos e jamais contribuiria para um país que se desejava mais próspero. 10
Ana de Castro Osório, A semeadora, 15 de julho de 1915, p. 2. Ibidem, p. 1. Máxima que se inicia neste número do periódico e que acompanha os seguintes. 12 Fátima Sequeira Dias, Prefácio a Célia Carmen Cordeiro, Ana de Castro Osório e a mulher republicana portuguesa: veículo de regeneração da nação e de preservação da identidade nacional, Lisboa, Editora Fonte da Palavra, 2012, p. 13. 11
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Nos números de A semeadora de 15 de outubro, 15 de novembro e 15 de dezembro de 1915, há uma notícia permanente cujo ineditismo e desenvolvimento chamam a atenção dos leitores: Ana de Castro Osório apresenta a tese “A mulher na agricultura, nas indústrias regionais e a sua participação na administração municipal” em representação da Câmara Municipal de Cuba ao Congresso Municipalista do Alentejo, Évora, a 28, 29 e 30 de outubro13 . Nesta tese, a congressista expõe e reforça o propósito de enunciar “sobre o muito que há a fazer em Portugal para utilizar o trabalho feminino”14 . Numa altura em que abundam os congressos na sociedade portuguesa como meio privilegiado de discussão dos problemas do país e de denúncia das condições de vida de determinadas classes operárias, pela primeira vez uma mulher vem falar em representação de um município, daí as notas de congratulação recorrentes dirigidas a Ana de Castro Osório nos números mencionados do periódico. Recorde-se que em 15 de setembro do mesmo ano, A semeadora informava que no Congresso de Caixeiros na Figueira da Foz, de julho transacto, a tese sobre a Mulher do Comércio não suscitara discussão nos jornais pela ausência de senhoras presentes, tendo sido as conclusões objeto de reflexão masculina. Em contrapartida, no Congresso Algarvio, de âmbito regional, ordens da comissão científica reiteram: “Poderão as senhoras obter inscrição como congressistas, tendo todos os direitos dos demais, excepto o de participar nas discussões”15 . Face à ausência de mulheres nos congressos, por um lado, e face à proibição de se expressarem, por outro, Ana de Castro Osório assume-se uma voz em representação da Câmara Municipal de Cuba e reivindica um maior desenvolvimento da agricultura e da indústria regional com o apoio da mulher, assim como a sua presença na administração municipal, daí as palavras de orgu13 Ana de Castro Osório, A mulher na agricultura, nas indústrias regionaes e na administração municipal, tese apresentada ao Congresso Municipalista de Évora, realizado em 28, 29 e 30 de outubro de 1915, Lisboa, Casa Editora “Para as Crianças”, pp. 1-67. 14 Ibidem, p. 37. 15 Ana de Castro Osório, A semeadora, 15 de setembro de 1915, p. 2.
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lho da congressista: “Pela primeira vez num país latino, uma mulher representou uma câmara municipal, eis o triunfo da nossa causa”16 . Tendo em conta o “primitivismo vergonhoso” em que se encontram a agricultura e as indústrias portuguesas, Ana de Castro Osório invoca o apoio dos municípios para mudar o estado de coisas através da reivindicação da educação para a mulher de acordo com o trabalho que ela realizar. Mas agora pretende-se, segundo a jornalista, “dar a esse labor uma forma mais moderna, mais útil e mais prática,” ou seja, “pela associação, pela escola e pela compreensão da felicidade que advirá para a família portuguesa do seu trabalho cientificamente orientado”17 . Segundo a congressista, os municípios deverão investir na instrução agrícola feminina através da institucionalização de escolas agrícolas e domésticas, para que fosse possível oferecer no país o ensino da floricultura, da arboricultura e da horticultura tal como acontecia nos países civilizados: Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra e Bélgica. Além disso, sendo Portugal um país envolvido na Primeira Guerra Mundial e de tradição emigratória são muitos os braços masculinos que se têm perdido em detrimento da obrigação das armas e da busca de melhores condições de vida noutros países, assim que seja dada à mulher portuguesa a formação adequada para ela desempenhar melhor e com maior consciência da sua ação cívica as atividades agrícolas18 . O apoio municipal à instrução agrícola contribuiria ainda para tirar da ociosidade as mulheres da classe média porque elas poderiam ser “úteis na cultura científica” da horticultura, por exemplo. Poderiam seguir estudos superiores de agricultura cujo fim seria dar às burguesas uma instrução agrícola superior, com a qual ficariam habilitadas a tomar parte na gerência de propriedades ou de grandes explorações rurais e, ainda, para serem professoras de escolas domésticas agrícolas. A cri-
16
Idem, A semeadora, 15 de dezembro de 1915, p. 2. Idem, A semeadora, 15 de setembro de 1915, p. 4. 18 Idem, A mulher na agricultura, nas indústrias regionaes. . . , p. 21. 17
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ação de secções domésticas agrícolas seriam destinadas às raparigas do campo19 . Aliás, a horticultura constitui um ramo que oferece inúmeras saídas profissionais, através das quais Ana de Castro Osório apresenta o escalonamento da mulher consoante a sua classe social: vendedoras de flores, que necessitam da instrução para valorizar a mercadoria que vendem, as operárias, as proprietárias dos jardins, as industriais, as que dirigem quimicamente os alambiques de destilação, as que vigiam o acondicionamento das essências e as comerciantes. Como se verifica, mesmo dentro de profissões ligadas à agricultura, a publicista feminista associa a cultura científica e os estudos superiores de agricultura às mulheres de estatuto social mais elevado e a instrução geral agrícola às raparigas do campo. Apesar de apologista da educação para todas as mulheres, Ana de Castro Osório distingue os curricula de acordo com a classe social – exemplo dos constrangimentos que o ambiente histórico exerce sobre o pensamento progressista. Recordo que já no manifesto feminista Às mulheres portuguesas (1905), Ana de Castro Osório distingue educação de instrução. A primeira para a mulher burguesa, cujo currículo teria disciplinas de teor teórico e, a segunda, com disciplinas de teor prático, dirigida às operárias e camponesas20 . Além da floricultura, outras áreas agrícolas há a desenvolver nacionalmente, segundo a conferencista, e enunciadas em novembro de 1915, que são: a arboricultura e a lacticultura21 . Com a fundação de escolas de lacticínios femininas, exportar-se-iam produtos lácteos para países onde se encontravam grandes colónias de portugueses como os Estados Unidos e o Brasil e confirmar-se-ia, efetivamente, o contributo feminino para a economia nacional. Além disso, a tese enunciava igualmente a criação de aves, coelhos, porcos, sirgos, abelhas, como tarefas femininas a desenvolver nacionalmente pelas mulheres portuguesas22 . 19
Idem, A semeadora, 15 de outubro de 1915, p. 2. Idem, Às mulheres portuguesas, Lisboa, Livraria Editora Viúva Tavares Cardoso, 1905, pp. 59-60. 21 Idem, A semeadora, 15 de novembro de 1915, p. 3. 22 Idem, A mulher na agricultura, nas indústrias regionaes. . . , pp. 15, 21-23, 4320
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A ativista sugere, ainda, que as câmaras devam influir para que nas escolas agrícolas se estudem as indústrias que houver na respetiva região de modo a que as mulheres estejam a par da cultura regional. Assim, as mães de família incutiriam os valores das culturas locais nas novas gerações de republicanos. Além disso, formadas contribuiriam para o combate do flagelo que era a ausência da mão-de-obra masculina nas regiões do Minho, Algarve, Beiras e Trás-os-Montes, retiradas em função da emigração em massa para outros países23 . Atente-se no valor incontornável que Ana de Castro Osório atribui ao papel da mulher mãe na família em toda a sua obra, evidente também n’ A semeadora, persistindo no seu ideário feminista o modelo de família patriarcal, centrado agora na mulher mãe educada, companheira complemento do marido. Eis o modelo de mulher republicana cujo exemplo se deverá seguir. Em março de 1916, Ana de Castro Osório publica n’A semeadora que o Grémio Carolina Beatriz Ângelo vai circular a todas as associações femininas um pedido de cooperação moral para a representação que vai levar ao Ministro do Fomento, do Trabalho e da Instrução para a criação imediata das Escolas Agrícolas Femininas, que tem por fim desenvolver o ensino e a propaganda prática da agricultura científica e das suas indústrias correlativas em todo o continente, ilhas e colónias24 . No ponto final da tese apresentada, Castro Osório adverte para a pertinência da presença feminina na comparticipação administrativa, nas Juntas Paroquiais e nas Câmaras Municipais, como as instituições mais vocacionadas para o desempenho de funções, nomeadamente quando relacionadas com a assistência e a educação. Esta proposta caberia perfeitamente nas funções das burguesas, sendo esta a primeira fase da sua experiência político-administrativa. Segundo Castro Osório, ninguém melhor do que a mulher portuguesa com as suas qualidades e o seu papel de mãe de família, cuidadora e meticulosa na administração da sua casa, enraizada à terra, “que é o seu orgulho”, po48. 23 24
Ibidem, pp. 3-4. Idem, A semeadora, 15 de março de 1916, p. 2.
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deria cuidar com mais amor dos interesses dos municípios, “que são um alargamento, por assim dizer, da sua própria família”25 . Infelizmente, o voto feminino foi duas vezes negado pela República, impedindo a mulher portuguesa de seguir este caminho (1911 e 1913). Outra temática recorrente no periódico é a Primeira Guerra Mundial e a criação da Comissão Feminina Pela Pátria, destinada a trabalhar a favor dos soldados mobilizados e das suas famílias. Aglutinar a elite feminina nacional em torno desse desígnio patriótico é objectivo da ativista, convicta defensora da entrada de Portugal no conflito mundial. Recorde-se que Ana de Castro Osório recusou o convite da pedagoga Alice Pestana para fazer parte da Liga Portuguesa da Paz em 1899, o que, segundo o historiador João Esteves, revela já “o quão determinante era o seu nacionalismo”26 . E foi esse feminismo nacionalista que priorizou a defesa da intervenção de Portugal ao lado dos Aliados. Cerca de dois anos depois, Ana de Castro Osório integra a Cruzada das Mulheres Portuguesas, iniciativa impulsionada por Eliza Dantas Machado (esposa do Chefe de Estado, Bernardino Machado) e publicitada em A semeadora em 15 de maio de 1916: “uma associação de espontânea e patriótica mobilização das mulheres portuguesas perante o perigo que ameaça a pátria”27 . A Cruzada integra cinco comissárias: Ana Augusta de Castilho, Antónia Bermudez, Maria Benedita Mouzinho de Albuquerque Pinho, Ana de Castro Osório e Eliza Dantas Machado. Há diversas comissões: comissão para propaganda e organização do trabalho feminino, comissão de assistência às mulheres e mães dos mobilizados, comissão hospitalar, comissão de enfermagem e criação dos cursos de enfermeiras laicas profissionais, comissão de assistência aos militares mobilizados, comissão de assistência infantil e comissão angariadora de donativos. Criada no mesmo mês em que a Alemanha declara guerra a Portugal, a Cruzada das Mulheres Por25
Idem, A mulher na agricultura. . . , pp. 60-63. João Esteves, “Feminismo, feminismos e sufragismo na 1a República”, in Mulheres na I República, Lisboa, Edições Colibri, 2011, p. 20. 27 Ana de Castro Osório, A semeadora, 15 de maio de 1916, p. 3. 26
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tuguesas teve implantação nacional, angariou donativos, formou enfermeiras, ergueu instituições a fim de socorrer os soldados e famílias portuguesas vítimas do conflito. A 15 de junho de 1916 lê-se em A semeadora uma das reivindicações feitas ao governo republicano em nome da Cruzada das Mulheres Portuguesas: não aceder ao pedido dos funcionários públicos que durante a guerra se oferecem para trabalhar por dois, mas dê a oportunidade de as mulheres mostrarem, neste período transitório, a sua capacidade de trabalho28 . A Cruzada propõe que as esposas dos funcionários públicos mobilizados os substituam nas suas funções e que as senhoras habilitadas que não necessitem dos ordenados queiram cumprir o seu dever de cidadãs, substituindo os mobilizados, e dando às famílias necessitadas o que os maridos ganhavam e as esposas dos mobilizados auxiliassem material e moralmente o grande movimento nacional da “Cruzada das Mulheres Portuguesas” para que a assistência imediata, inteligente e patriótica fosse prestada às famílias dos mobilizados. A Cruzada das Mulheres Portuguesas lançou várias iniciativas e gizou outros diversos projetos. Actuou junto de Câmaras Municipais, do professorado primário feminino e das associações de mulheres. Recebeu o apoio da LRMP e da APF e funcionava na morada de Ana de Castro Osório, na Rua do Arco do Limoeiro. Atente-se no facto de a periodista e ativista portuguesa mais uma vez ter centralizado a sua ação no centro do lar, comprovando como uma mãe de família podia ter um papel cívico e político a partir de casa. A secção de Propaganda e Organização do Trabalho tinha como plano a criação de escolas profissionais e agrícolas, nomeadamente a criação de uma colónia agrícola feminina no posto de Alcobaça. A Cruzada realizou cursos de enfermeiras com a ideia de criar um corpo de Enfermagem de Guerra. No âmbito da defesa das Escolas Profissionais Femininas nos grandes centros urbanos criou a Escola Profissional n.o 1. A Comissão de Propaganda da Cruzada tomou o encargo de fazer a inscrição feminina das pessoas que desejassem trabalhar, tomando nota 28
Idem, A semeadora, 15 de junho de 1916, p. 2.
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das suas aptidões e habilitações, dirigindo-se depois a todos os ministérios e a todos os industriais e comerciantes, para que se estabeleça “com a máxima confiança” uma corrente de substituições pelo trabalho, profícuo ao país e da mais alta moralidade e justiça para a causa da mulher. Em contrapartida, verifica-se que o conservadorismo prevalecente na sociedade portuguesa faz-se presente através de reações pouco apologistas dessa dinâmica feminina. A 15 de julho de 1916, lê-se no periódico a sugestão do deputado republicano Moura Pinto para que houvesse uma “tutoria especial para a administração dos fundos da Cruzada porque as mulheres portuguesas não estavam ainda aptas a gerir importâncias tão avultadas de dinheiro”, fruto das doações recebidas29 . Apesar desses entraves que, ao que parece, não se materializaram, as mulheres provaram, efetivamente, a sua capacidade de mobilizar toda a população a favor da nação. Eis a razão por que, segundo João Esteves, as feministas portuguesas do tempo recusaram fazer representar-se no Congresso Internacional de Haia promovido, entre 28 de abril e 1 de maio de 1915, por militantes pacifistas. Neste momento, a “pátria” portuguesa se sobrepunha a todas as reivindicações feministas, logo houve um abrandamento da sua acção como grupo de pressão em prol dos direitos das mulheres30 . Digno de registo é o intercâmbio de ideias entre Ana de Castro Osório e o Brasil em A semeadora. A 15 de outubro de 1917, lê-se uma carta intitulada “A Confraternização Luso-Brasileira”, dirigida a ACO, assinada por Delfina Goulart de Lemos, dirigida a Ana de Castro Osório31 . Filha de açorianos, emigrada em São Paulo, a qual fundara uma subcomissão da Cruzada das Mulheres Portuguesas naquela cidade brasileira de apoio ao patriotismo feminista português. Recorde-se que o papel desenvolvido pela escritora durante o conflito mundial foi reconhecido após a sua morte pela Liga dos Combatentes da Grande 29 30 31
Idem, A semeadora, 15 de julho de 1916, p. 1. João Esteves, “Feminismo, feminismos e sufragismo na 1a República”, p. 24. Delfina Goulart de Lemos, A semeadora, 15 de outubro de 1917, p. 2.
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Guerra, com a inauguração na sede da Liga de um busto de Ana de Castro Osório. Em suma, Ana de Castro Osório é uma figura incontornável das letras luso-brasileiras cuja obra mereceria ser mais estudada e divulgada, tendo em conta o vasto espólio, ainda por explorar, existente na Biblioteca Nacional de Portugal, de correspondência epistolar trocada entre ela e as inúmeras figuras da intelectualidade luso-brasileira do seu tempo. Aqui apenas apresentei um breve registo sobre a mulher, a jornalista e a republicana feminista, designações que reunidas enformam a “intelectual”, segundo Zília Osório de Castro, ou seja, aquela que se apresentou sempre “convicta de que a política e a sociedade dependiam da cultura, isto é, de um modo de ser e de estar alicerçado em valores e princípios que informavam o pensamento e presidiam à acção”32 . Congratulemo-nos com a iniciativa recente da Câmara Municipal de Lisboa na abertura da Biblioteca Especializada Ana de Castro Osório, dependência da Biblioteca Municipal de Belém, através da qual espero, sinceramente, haja uma maior divulgação da obra de Ana de Castro Osório a nível nacional e internacional, como era seu desejo.
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Zília Osório de Castro, “As Intelectuais”, in Mulheres na I República, p. 79.
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Referências bibliográficas
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de Évora, realizado em 28, 29 e 30 de outubro de 1915, Lisboa, Casa Editora “Para as Crianças”. _______, A semeadora, 15 de novembro de 1915. _______, A semeadora, 15 de dezembro 1915. _______, A semeadora, 15 de janeiro de 1916. _______, A semeadora, 15 de março de 1916. _______, A semeadora, 15 de maio de 1916. _______, A semeadora, 15 de junho de 1916. _______, A semeadora, 15 de julho de 1916. RAMOS, Rui, “A Segunda Fundação” (1890-1926), in José Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Editorial Estampa, 1994. SILVA, Maria Regina Tavares da, Análise social, vol. XIX (77-7879), 1983.
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Páginas para artistas: modos de permanecer na imprensa periódica portuguesa no início do século XX Sandra Leandro1 sandraleandro7@gmail.com
1. Raquel Roque Gameiro: páginas permanentes Num momento de charneira em que se verificaram algumas mudanças no discurso crítico que geralmente situava as mulheres artistas no final dos artigos, para um outro lugar conquistado sobretudo através da afirmação profissional, algumas artistas portuguesas ajudaram a sair do “fim da linha”, também através da qualidade das imagens móveis que elaboraram para a imprensa. Raquel Roque Gameiro foi uma delas2 . Filha do conhecido aguarelista Alfredo Roque Gameiro e de Maria da Assunção de Carvalho 1
Universidade de Évora; Instituto de História de Arte da Universidade Nova de Lisboa; CLEPUL; CESNOVA – Faces de Eva. 2 Existem outras ilustradoras desta época como Estrela Faria, Maria Keil, Laura Costa e sem qualquer demérito para estas e tantas outras, são convictos os cinco casos que aqui apresento e cujas razões aponto em síntese. Raquel Roque Gameiro pela fecundidade e excecional desenho de carácter tradicional. Else Althausse por ser
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Forte, nasceu na capital em 15 de agosto de 1889 e viveu a sua infância na Amadora3 . A aprendizagem artística decorreu no movimentado atelier de seu pai e na sua esteira registou com especial interesse os costumes saloios dos arredores de Lisboa, contudo, cedo afirmou uma específica personalidade artística4 . A sua carreira já tinha arrancado quando casou, em 1911, com o 4o conde de Ottolini, Jorge Gomes Ottolini. Grande contadora de histórias através de imagens, tornou-se uma notável ilustradora de livros e também de periódicos. Muito influenciada pelo ilustrador inglês Arthur Rackam (1867-1939)5 , admirava igualmente o francês Edmond Dulac (1882-1953). Estreou-se num livro de Ana de Castro Osório, Contos tradicionais portugueses, coleção “Para as crianças” (A minha Pátria) em 1906, notando-se nas suas composições claras influências especialmente da ilustração inglesa, sendo muitas vezes conhecida como a Kate Greenaway (1846-1901) portuguesa. Por esse trabalho recebeu o prémio internacional do Petit journal illustré de la jéunesse e desde cedo foi-lhe reconhecida a arte de ilustrar para a infância: A interpretação pictural da infancia na ilustração de livros para creanças, a que desde cedo se dedicou o seu talento, e em que um exemplo de uma artista pouco conhecida que se instala no nosso país trazendo um ideário modernista. Sarah Affonso pela sua sensível e ímpar capacidade de síntese e sonho. Marímilia por ser um caso praticamente desconhecido. Ofélia Marques pela importância da ilustração no conjunto da sua obra. Maria Adelaide Lima Cruz uma artista que foi bem apreciada, mas cuja passagem do tempo fez descer sobre ela uma cortina de invisibilidade. 3 Exposição “A Escola da Venteira”, S.l., s.n., s.d., p. 4. Brochura. 4 António Dias de Deus, Os comics em Portugal: uma história da banda desenhada, Lisboa, Edições Cotovia, Bedeteca de Lisboa, 1997, pp. 127-128; Sandra Leandro, “Raquel Roque Gameiro Ottolini”, in Zília Osório de Castro e João Esteves (dir.), Dicionário no feminino (séculos XIX-XX), Lisboa, Livros Horizonte, 2005, pp. 826-827. 5 A tribo dos pincéis: 5 gerações Roque Gameiro – ramo Raquel, S.l., s.n., s.d, [p. 4]. Brochura.
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atingia rapidamente a maestria, ia firmar-lhe aos 17 anos a reputação e imprimir definitivamente á sua obra o caracter inconfundível que a destaca da dos restantes aguarelistas portuguezes6 .
Participou em diversos certames da Sociedade Nacional de Belas-Artes (S.N.B.A.) e foi membro efetivo desse grémio com o n.o 98. Além das muitas exposições da S.N.B.A. participou noutras mostras como em 1911 ao lado do pai, da irmã Helena e do irmão Manuel na exposição realizada no frequentado atelier da Rua D. Pedro V7 . Em 1923, esteve presente na exposição de aguarela portuguesa em Madrid. Artista muito premiada, refira-se apenas que em 1929 alcançou a 1a medalha na secção de aguarela da Sociedade Nacional de Belas-Artes e mais tarde a medalha de honra8 . Verdadeira mestre, desenvolveu uma significativa atividade pedagógica. Ilustrou manuais escolares e foi autora do conhecido “best-seller” A história do bebé, onde se podia registar os momentos mais significativos da vida da criança. Na imprensa desenhou ilustrações entre outros para o ABC-zinho, O comércio do Porto, Diário de notícias, Eva, Joaninha, Ilustração, Ilustração portuguesa, Jornal dos pequeninos, Lusitas, Mensário das Casas do Povo, Mickey, Modas e bordados, O mosquito, Portugal feminino, O século, Sphinx, Tic-tac. Traço elegante, firme, tantas vezes de impressionante espessura inalterável, desenho de uma clareza meridiana e equilíbrio de composição, são características que se podem encontrar habitualmente nos trabalhos que publicou nos periódicos e que fizeram admirar o seu nome no país e no estrangeiro e valorizar o trabalho das mulheres artistas. Estas características podem ser observadas na figura 1, a capa de colorido nítido e forte do n.o 1 da Joaninha, revista “Polícroma, bem impressa, ao preço de 1$50 [. . . ] dirigida pela escritora, jornalista e locutora 6
“As filhas de Gameiro”, Illustração portugueza, 27 de novembro de 1911, p.
691. 7 8
O jornal da mulher, 15 de novembro de 1911, p. 63. Exposição “A Escola da Venteira”, S.l., s.n., s.d., p. 4. Brochura.
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Etelvina Lopes de Almeida”9 tornando-se “a partir de 6 de Janeiro de 1937, [. . . ] suplemento do magazine Modas e Bordados, da empresa «O Século»”10 . Acresce neste caso a dimensão da cor, dos padrões e das texturas que desejou transmitir. Os desenhos apenas a linha muito abundantes e tão admirados, podem ser vistos na “Página Infantil” da Ilustração de 1926, ou na “Viagem a Liliput” (figura 2) e respetiva continuação “Viagem a Brobdingnag” publicadas no Mickey em 1936, viagem que, de resto, também seria publicada em livro.
Figura 1 – Raquel Roque Gameiro | Joaninha, 3 de fevereiro de 1936, capa.
Legando um volume de trabalho avassalador e uma obra quase sem sombras, Raquel faleceu, em Lisboa, no dia 3 de outubro de 1970. 9 10
António Dias de Deus, op. cit., p. 142. Ibidem.
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Figura 2 – Raquel Roque Gameiro | “Viagem a Liliput”, Mickey, 28 de maio de 1936, p. 3.
Escreva-se ainda que os Roque Gameiro formaram uma autêntica constelação entre filhos, netos, discípulos, etc. Refira-se em síntese dois casos. Uma das irmãs de Raquel, Mamia Roque Gameiro (1901-1996), pintora, ilustradora de livros e periódicos tão significativos quanto o jornal humorístico o Papagaio real, Diário de Lisboa e Menina e moça, apresentou-se ainda criança com uma “ilustração” desenhada aos 6 anos e impressa num periódico para o qual Raquel também desenhou o Jornal dos pequeninos, dirigido por Ana de Castro Osório e publicado em Setúbal em forma de brinde da sua coleção “Para as Crianças”. Uma das filhas de Raquel, Guida Roque Gameiro Ottolini (1915-1992), também se tornaria ilustradora publicando, por exemplo, Hiswww.lusosofia.net
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tórias aos Quadradinhos no Comércio infantil do Comércio do Porto11 . Na capa da Joaninha que aqui se apresenta note-se a sua filiação artística bem distinta do naturalismo narrativo e decorativo da mãe e a sua adesão aos pressupostos do modernismo que a Art Déco amalgamou com longa vigência gráfica como se verá, em seguida, de modo mais detalhado.
Figura 3 – Guida Ottolini | Joaninha, 17 de fevereiro de 1936, capa.
2. ABC’s os alfabetos de Else Althausse De origem alemã, Else Althausse nasceu em 1898 e agora um pouco mais se sabe sobre ela. Casou com Henrique Delgado Westenfeld e faleceu em 193612 . Viveu em Linda-a-Pastora desde 1924. Foi uma das 11
História da BD publicada em Portugal, Lisboa, Época d’Ouro, 1995, p. 7. Cf. texto consultado em 17 de junho de 2013 em http://estudoslusoalemaes.blog spot.pt/2012/07/else-althusse-linda-pastora-2.html. 12
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ilustradoras de um periódico de esmero gráfico dedicado às “crianças de todas as idades” o ABC-zinho, “com nome de batismo inventado por Stuart Carvalhais”13 . João Paulo Boléo e Carlos Pinheiro notaram-lhe “um estilo muito próprio, sinuoso e encantador, que recorda os trabalhos em silhueta, nomeadamente de Lotte Reininger”14 .
Figura 4 – Else Althausse | ABC-zinho, 22 de setembro de 1924, p. 5.
Não trabalhou apenas no Zinho, também desenhou capas para a revista mãe ABC que cobriu a totalidade da década de 2015 e foi um 13
António Dias de Deus, op. cit., p. 106. João Paulo Boléo, Carlos Pinheiro, Das conferências do Casino à filosofia de ponta, Lisboa, Bedeteca de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2000, p. 43. 15 Theresa Lobo, Ilustração em Portugal I: 1910 a 1940, Lisboa, IADE Edições, 2009, p. 23. 14
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dos bastiões do modernismo. Alcançou, certamente, justa reputação para conseguir estes trabalhos nos ABC’s periódico servido por alguns dos melhores artistas gráficos que Portugal jamais possuiu, como Jorge Barradas e Stuart Carvalhais. Na comunicação apresentaram-se três capas datadas de 1925. Duas delas apresentam senhoras de saias rodadas, em atitude coquette, damas antigas que se modernizam pelo traço simples e muito seu de espessuras por vezes variáveis, pelos padrões que usa, pela pouca representação dos volumes e fundos simples de cor e forma, pela capacidade de síntese, característica da linguagem plástica modernista.
Figura 5 – Else Althausse | ABC, 19 de fevereiro de 1925, capa
Outra capa apresenta, em traços sintéticos, uma cabeça de senhora airosa e elegante de olhos fechados, lenço breve ao pescoço, parecendo comprazer-se no movimento dos brincos. www.clepul.eu
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Organizou-se uma Exposição póstuma dos trabalhos de Else Althausse no Estúdio do Secretariado de Propaganda Nacional (S.P.N.) em dezembro de 1939, com cento e quatro trabalhos entre os quais ilustrações dos Contos de Grimm, Mil-e-uma-noites, entre muitas outras do seu vocabulário16 .
3. Sarah Affonso na imprensa: traço leve e peso emocional Sarah Affonso nasceu em Lisboa em 1899, filha de Francisco M. Affonso e de Alexandrina Gomes Affonso é, sem dúvida, um nome maior do segundo modernismo português. Frequentou a Escola de Belas-Artes de Lisboa onde foi a última e dileta discípula de Columbano Bordalo Pinheiro. Estudante em Paris na Académie de La Grande Chaumière nos anos de 1923 e 1924, ali voltaria anos mais tarde, 19281929 para regressar a Portugal cumprindo, outra vez, responsabilidades familiares17 . O Minho, onde passou parte significativa da infância, marcou-a para sempre, fornecendo-lhe uma iconografia rica que ela representaria de um modo singular. O frémito emocional de quem viu com o coração os costumes e tradições populares filtrados por um ingenuísmo culto, conferiram um carácter particular a grande parte da sua obra. Para além da pintura e do desenho, fez bordados, tapeçarias, figurinos, cenários, cerâmica, ilustração para periódicos, como A informação, Bem viver, Eva, Menina e moça, Presença, ilustração de livros como por exemplo A menina do mar de Sophia de Mello Breyner (que 16
Exposição póstuma dos trabalhos de Else Althausse no Estúdio do S.P.N., Lisboa, Editorial Império, 1939. 17 Maria Isabel Oliveira, Sarah Affonso: um universo singular no modernismo português [texto policopiado], Tese de Mestrado em Estudos sobre as Mulheres apresentada à Universidade Aberta, 2006, pp. 29-30.
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nunca foi editado), O tesouro da casa amarela de Fernanda de Castro, Bonecos de estampar de Teresa Leitão de Barros. Sarah Affonso expôs na S.N.B.A. em 1924, no Salão de Outono em janeiro de 1925 e no II Salão de Outono organizado pela revista Contemporânea em novembro de 1926. Em 1945 no IX Salão de Arte Moderna foi agraciada com o Prémio Amadeu de Sousa Cardoso. Consta que a primeira exposição individual decorreu entre 18 e 30 de janeiro de 1928 no Salão Bobone. No catálogo, foi António Ferro quem escreveu: Sarah Afonso, com as suas bonecas de tinta, com a aldeia em festa da sua palheta, com a varinha de condão do seu pincel, desembarca na pintura portuguesa, como uma boa fada, como uma doce Madrinha. . . A sua Arte – eu digo a sua arte como podia dizer o seu grande amor – é uma Árvore do Natal onde as meninas dos olhos vão buscar as suas prendas, os seus bonitos. Diante dos quadros de Sarah Afonso, que têm a vibração da manhã clara, da manhã azul, haverá quem murmure, na obsessão das restrições, numa sentença cómoda e desdenhosa: “Tudo isto é infantil”. Esta frase, pronunciada com a entoação de quem fulmina, de quem destrói, é um dos maiores elogios que se podem fazer a Sarah Afonso. A pintura portuguesa, na maioria dos casos, é uma pintura habilidosa, fotográfica, demasiado sábia. Nem frescura, nem espontaneidade, nem alegria. O artista pára diante da paisagem e grita-lhe: “Está quieta!”. Tira-lhe, em seguida, o retrato e vai-se embora, muito satisfeito. A paisagem, é claro, fica muito parecida. . . Mas falta-lhe falar. . . Há que reagir contra esta falsa pintura, que já não se usa em parte nenhuma do mundo, que se refugiou em Portugal como numa última trincheira. Guerra aos pintores de Instrução Primária! Guerra aos fotógrafos pedantes! Sarah Afonso enfileira, com brilho, com heroismo, na primeira linha de combate. As suas figuras e as suas paisagens infantilizadas, propositadamente infantilizadas pela fôrça da síntese, falam mais, cantam mais, do que as pinturas sérias e carrancudas, de alguns consagrados e de muitos aspirantes à consagração. Sarah Afonso não procura www.clepul.eu
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os assuntos. Os assuntos é que a procuram, é que a fazem parar, como uma creança pára, num jardim, diante duma flor vermelha: “Que linda rosa!”, “Que lindo barco!”, “Que linda cabeça!. . . ” E tudo sái brinquedo, tudo sái embonecado, tudo sái infantil, duma infantilidade expressiva e reveladora. . . É que os olhos de Sarah Afonso brincaram muito, antes do trabalho, com a rosa, com o barco vistoso, com o rosto do modêlo, fruta saudável. . . Sarah Afonso não se dirige, com o geito [sic] do assassino, para o cavalete, para a tela inocente e branca. Não mata a sua visão, carregando-a. Faz o contrário: desanuvia, esclarece, simplifica. Não envelhece as coisas e as figuras: remoça-as. A sua caixa de tintas é a fonte da Juventude. Sarah Afonso é um caso novo na pintura portuguesa. Quem não a olhar assim, quem a criticar com o regulamento – esquadro, compasso e lunetas – não a compreende, não a pode compreender18 .
Voltou a Paris onde conseguiu o feito de expor a magnífica pintura Meninas no tão disputado Salon d’Automne em 1928, quadro que pertence ao Museu do Chiado – MNAC. Casou em 1934 com o grande pintor José de Almada Negreiros19 . Galgue-se o tempo e veja-se a sorte que teve com a autoria e excecional qualidade dos textos introdutórios dos catálogos das suas exposições. A nona exposição da corajosa Galeria de Março foi sua e durou de 10 a 23 de janeiro de 1953. Escrevia-se: “Há dez anos que não apa-
18
“Sarah Affonso”, Lisboa, Salão Bobone, 1928, pp. 2-3. Idalina Conde, “Reencontro com Sarah Affonso”, in Raquel Henriques da Silva e Sandra Leandro (coord.), Mulheres pintoras em Portugal de Josefa d’Óbidos a Paula Rego, Lisboa, Esfera do Caos, 2013, pp. 129-161. 19
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rece obra sua em qualquer exposição”20 . Aqui fica um apontamento breve das belas palavras de José-Augusto França: Quem pinta crianças sempre as pinta do cimo dos anos que tem. Um abismo assim não há ternura nem pedagogia que o encha. [. . . ] Pura, a pintura de Sarah Affonso vê o mundo com a veracidade e a inteira necessidade da criança. As crianças são-lhe, não modelo mas reflexo. E, depois, vão andando, atentas ao sucesso dos mundos da sua própria imaginação. Assim crescem, ganham feições, outros olhos. Talvez que só uma mulher pudesse ver tal crescimento. Digo mulher e antes diria mãe, se a biografia aqui coubesse. E cabe21 .
Sarah expôs de 19 a 32 de maio de 1962 na Galeria Dominguez Alvarez: “Há 9 anos que não aparece obra sua em qualquer exposição”. . . Quem escreveu foi António Pedro: Rapariga do meu tempo, esta Sarah Affonso deixou nos quadros dela uma meninice que os anos não são capazes de enxovalhar, uma alegria dos olhos para ver azul e verde e cor-de-rosa que não precisou de ir aprender a Paris o modo de ser, original. [. . . ] O Almada, com quem namorou e casou e de quem teve filhos que já são gente, escreveu, entre outras coisas notáveis, um livro muito notável chamado “A invenção do dia claro”. Com a mesma lucidez, embora guiada por outros caminhos, a mulher dele andou, desde que foi capaz de enrolar sòzinha as tranças (usavam-se tranças nesse tempo e parece que era difícil enrolálas) a reinventar também a claridade do dia. Foi cada um por sua conta e, se as contas se somaram, não foi por conta das contas mas por conta de cada um. . . Lembram-se da cabeça de Mateo Hernandez feita em diorite? Era uma menina em que os olhos sorriam com a alegria de ver. O retrato estava parecido apesar da 20
Galeria de Março: exposição de pintura de Sarah Affonso, Lisboa, Galeria de Março, 1953, p. 4. 21 Ibidem, pp. 6-7.
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brutalidade da pedra. Pois os pincéis dos dedos foram pintando o que esses olhitos tinham visto na infância ou no sonho afeiçoado ao gosto de ser infantil. Foi esse gosto que, com o tempo, se foi tornando mais sábio, mais puro, como quem desembacia uns óculos para ver melhor. Os óculos. . . que a vista, desde a nascença, tinha ao imutável condão de saber olhar assim22 .
Figura 6 – Sarah Affonso | Civilização, n.o 1, julho de 1928, pp. 68-69.
E quem sabe olhar assim, faz ilustrações boas de observar com esse riscar sábio, ingénuo e lírico que foi o seu. Uma poética muito própria, com leveza de traço, traça na Civilização, A tristeza de Flor-de-Neve, O presente da fada Risoleta, presente em parceria com Marimília e no Portugal feminino, chinesas plantadas em campo de flores, com o seu tradicional e delicado recato que aparentemente não segue o voo das borboletas e outras e mais outras feminilidades. E tudo o que dela se vê nesses periódicos é desenho com profundidade emocional. 22
“Sarah Affonso”, Porto, Galeria Dominguez Alvarez, 1962, p. 2.
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Figura 7 – Sarah Affonso | Portugal feminino, março de 1930, p. 6.
4. Marimília: página a imprimir Encontrar Marimília, foi um dos desafios deste trabalho que agora desarranja a ordem cronológica, por exceção e parceria com Sarah Affonso. Tinha-se perdido o rasto, mas conseguiu-se apurar alguns dados. Marimília, Maria Emília Vassalo e Silva Ribeiro da Fonseca nasceu no mês de dezembro de 1911, em Luanda, no Hotel Salvador Correia (de Sá). Filha do Tenente de Cavalaria Teófilo José Pignolet Ribeiro da Fonseca e de Maria Vassalo e Silva, que se tornaria amplamente conhecida como Maria Lamas. Pequenina, viveu em Luanda até março de 1913, tendo por padrinho Óscar Monteiro Torres, grande amigo de seu pai. Voltou com a mãe para Torres Novas. Estudou em regime de internato no Instituto Luso-Belga, em Carnide, onde Maria Lamas passaria a dar aulas em 1924. Casou com Fernando Carlos Henriques
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Pereira Bastos. Faleceu em Lisboa em 1990.
Figura 8 – Marimília (desenho da esquerda) e Sarah Affonso (desenho da direita), Civilização, n.o 2, agosto de 1928, pp. 76-77.
Desenhou também para o Correio da manhã e para O gaiato, revista de banda desenhada, que durou nove números e foi dirigida por Alice Ogando que gaiatamente assinava Mary Love23 . Tal como Sarah Affonso e Ofélia Marques ilustrou a secção da revista intitulada “O reino dos miudos”. Esta desenhadora muito jovem, quando a encontrei nas páginas da Civilização, várias vezes desenhou a partir dos contos da mãe como se observa na figura 9, assinado de Rosa Silvestre. Criou diversas páginas de eficácia gráfica e decorativa, como se pode observar nas figuras. 23
História da BD publicada em Portugal, op. cit., p. 9.
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Figura 9 – Marimília | “D. Espertalhão e o saco de trigo” conto de Rosa Silvestre, Civilização, n.o 5, novembro de 1928, pp. 74-75.
5. Ofélia Marques: página de diário na imprensa periódica Ofélia Gonçalves Pereira da Cruz nasceu em 14 de novembro de 1902, em Lisboa. Terminou o Curso de Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa, sendo uma das primeiras mulheres a fazê-lo. Entretanto passou a dedicar-se à atividade artística. Para essa resolução muito terá contribuído o encontro com o pintor Bernardo Marques (1898-1962) com quem casaria e desde então passou a assinar os seus trabalhos com o nome que a tornaria conhecida: Ofélia Marques. Com ele viveu a partir de 1923 na Calçada dos Caetanos, no mesmo edifício onde moravam Fernanda de Castro e António Ferro, bem como José www.clepul.eu
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Gomes Ferreira e Ingrid Gomes Ferreira. Fernanda de Castro registou alguns apontamentos sobre Ofélia nas suas memórias: Ó Ofélia, porque se dispersa tanto, porque não pinta mais? [. . . ] – Deus me livre! Era só o que me faltava! Uma vez pintei um retrato da mulher do Olavo, caí na asneira de o mandar para uma exposição do SNI, e veja lá o que me aconteceu: deram-me logo o Prémio Souza-Cardoso e nunca mais me deixaram em paz! Encomendas, telefonemas, entrevistas, um horror! Deixem-me em paz, que é o que eu quero; quando pinto ou quando desenho é para mim, para me divertir, e não quando eles querem! Então a minha liberdade?24
Figura 10 – Ofélia Marques | Civilização, n.o 5, novembro de 1928, pp. 76-77.
Com o seu desenho construído tantas vezes a partir da cor e de um lirismo complexo, Ofélia trabalhou como ilustradora para diversas revistas e livros entre os quais para a primeira versão d’As aventuras 24
Fernanda de Castro, Ao fim da memória 1906-1939, Lisboa, Verbo, 1988, p. 58.
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de João Sem Medo de José Gomes Ferreira25 em 1925. Guardou humor, ternura e crítica ao representar, transformados em crianças, diversos amigos já adultos, alguns coincidindo com conhecidas figuras suas contemporâneas em divertidas ilustrações que pertencem ao Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi no II Salão de Outono, exposição modernista realizada em 1926 no Salão Bobone que se estreou26 . Também nesse ano publicou no ABC-zinho, Bandas Desenhadas em que o mundo infantil foi representado de forma carinhosa. Além deste periódico ilustrou também Atlântico, Casino, Civilização, Eva, Litoral, Panorama, Portugal Feminino, Revista de Portugal, Ver e crer27 .
Figura 11 – Ofélia Marques | Civilização, ilustração d’“A voz dos búzios”, n.o 6, dezembro de 1928, pp. 106-107. 25
Emília Ferreira, “Da deliciosa fragilidade feminina”, Margens e confluências, n. 11-12, 2006, p. 152. 26 Emília Ferreira, “Ofélia Marques: um percurso ímpar no modernismo português”, Faces de Eva, n.o 15, 2006, pp. 189-190. 27 Cf. texto eletrónico consultado a 27 de junho de 2013 em http://almanaquesilva. wordpress.com/category/ofelia-marques/. o
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Ofélia Marques acabaria por suprimir a sua vida, mas antes de o fazer escreveu algumas cartas. Transcrevo aqui, pela primeira vez, as suas últimas lágrimas, numa missiva lancinante que deixou a Bernardo Marques. Texto e tempestade, não o considero um tópico lateral. Permite entender diversos traços de personalidade da artista: Bernardo querido / a quem falo neste momento, / é ao Bernardo de outros tempos, o / meu companheiro, amigo cama-/rada, o Bernardo sensivel e / humano onde vinte e tantos / anos da minha vida se escoha/ram tão profunda e irremedi-/avelmente. / Para me desprender não hou-/ve força de desen-/cantamentos e / decepções. E foram tantas e / tão cruéis! / O esforço em que lutei fu-/riosamente para representar dian-/te dos outros e de mim mesma / uma renuncia que era a negação / do meu proprio ser, resultou / num pesadelo atroz de todos os / momentos, em suplicio feroz / e sem fim como as penas do / Inferno. / O que vês diante de ti não / é protesto, não é vingança, / não é cobardia nem bravura28 , / é um mero acto de caridade, / o unico direito que ninguem / me poderá arrebatar. / Meu Bernardo, esquece to-/das as palavras duras, justas / ou injustas que a amargura me ditou. Invoca a dedicação / a lealdade com que me abando-/nei por ti. / Pensa que a vida / p.a mim era o prolongamento / de um martirio, [riscado] de uma / condenação sem crime que / não beneficiou ninguem. / Medita com sinceridade e /admite que eu não mereço / o papel odioso que me impôs / o Destino com a minha falta / de qualidades e a minha inhabi-/lidade, de não ser já na tua vida mais do que / um escolho no caminho da / felicidade a que aspiras. / Procura ver neste desenlace / menos um sofrimento do que / uma libertação, um meio, / o único meio de ser generosa / para mim e para ti. / Compensa essa generosidade / com um pensamento de quan-/do em quando para aqueles / tempos em que Bernardo e / Ofelia era uma só pala-/vra, que traduzia um mun-/do de amizade, ternura e / compreensão. / E é quanto de ti / espero. Não é muito e é tudo / já para mim neste momento 28
bravade?.
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Sandra Leandro / que será o ultimo em que / eu quero viver vinte anos atrás / se a imaginação me não atrai-/çoar, beijando-te e apertando-te / contra o coração meu Bernardo / querido! / Ofelia29
6. Maria Adelaide Lima Cruz: tão cedo e já nos jornais Maria Adelaide Lima Cruz nasceu em 1908 e faleceu em 1985. Foi discípula de sua mãe a pintora e música Adelaide Lima Cruz e na sua casa reunia-se um salão literário e artístico propício ao eclodir de um possível talento30 . Tal como sua mãe foi discípula de Carlos Reis e além de pintora e ilustradora dedicou-se intensamente à cenografia e aos figurinos. Começou a expor muito nova, acompanhando sua mãe como em abril de 192031 quando expuseram em parceria no Salão Bobone. Maria Adelaide Lima Cruz surgia como uma menina pintora de 11 anos, “uma verdadeira revelação”, num certame considerado “curioso”. Se uma honrava o mestre, a outra honrava a mestra sua mãe: E se aquela tem a tela Metaes e Os primeiros cuidados que são cuidados e perfeitos trabalhos, esta tem no grupo Impressões e caricaturas flagrancias verdadeiramente notaveis. E até uma sua aguarela Canto de cosinha merece quase destaque, pois nenhum artista d’aquela idade poderia pensar em fazer melhor32 . 29
MC – MNAC. Espólio de Ofélia Marques. [Disponível no Arquivo do Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea, Portugal]. 30 Sandra Leandro, “Boa figura, má figura, sem figura: mulheres artistas no tempo da I República”, in Zília Osório de Castro, João Esteves e Natividade Monteiro (coord.), Mulheres na I República: percursos, conquistas e derrotas, Lisboa, Edições Colibri, 2011, p. 297. 31 A. H. de Oliveira Marques, Guia de História da 1a República Portuguesa, Lisboa, Estampa, 1981, p. 454. 32 “A exposição Lima Cruz e sua filha no Salão Bobone”, Ilustração portugueza, 12 de abril de 1920, p. 263.
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No magazine Civilização, em 1929, requisitava-se a sua colaboração e opinião sobre o momentoso tema: “O que pensam as mulheres portuguesas umas das outras. . . ”. . . Quem a interrogou foi nada mais nada menos que Rosa Silvestre, ou seja, Maria Lamas e a simpatia pela artista era evidente: Maria Adelaide de Lima Cruz, uma verdadeira artista, cujos vinte anos mal cumpridos são um encanto de frescura e simplicidade, realiza, como ninguém, esse milagre de espalhar à sua volta a alegria, a simpatia e a admiração. (. . . ) No entanto, quando lhe pedimos que nos diga o que pensa da Mulher Portuguesa, que nos conte as suas aspirações, limita-se a responder com adorável modestia, que se adivinha sincera: – Mas. . . eu não tenho opinião formada sôbre esse assunto tão complexo! Vivo para a minha arte! E abrangendo num gesto vago os numerosos quadros que embelezam as paredes do atelier, acrescenta: – Sabe? A minha única aspiração, o meu sonho é êste: trabalhar, trabalhar, trabalhar. Ao repetir a palavra que resume o anseio da sua alma previlegiada [sic] de Artista, brilham-lhe os olhos de entusiasmo, confiança no futuro e em si própria. Assim, a entrevista com Maria Adelaide de Lima Cruz ficará neste inquérito como um sorriso, como um raio de sol de primavera33 .
Durante várias Primaveras exibiu trabalhos nas exposições da S.N.B.A. e foi reconhecida com medalhas desse grémio, entre outras a Primeira Medalha de Desenho em 1944. Aproveitou a sua estada em Paris em 1934, continuando a embrenhar-se nas sobreviventes sendas modernistas. Ilustrou livros como Pimpinela, conto infantil em 3 actos e 12 quadros, da autoria de Pereira Coelho e Norberto Lopes34 .
33
Rosa Silvestre, “O que pensam as mulheres portuguesas umas das outras. . . ”, Civilização, n.o 8, 1929, p. 85. 34 Pereira Coelho e Norberto Lopes, Pimpinela, conto infantil em 3 actos e 12 quadros, Lisboa, Emprêsa Nacional de Publicidade, 1938.
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Na sua exposição no Estúdio do Secretariado Nacional da Informação em 1947, deixou algumas “Palavras” em forma de poesia: Desprezo os falsos amigos. / De joelhos olho para os bons e para os que sofrem. / Condescendo perante os inferiores. Ignoro os inimigos. / Assim cheguei a este porto da Vida, com a alma em sangue mas, tendo este halo / de espirito que faz do Artista apóstolo consciente. / Deponho nas mãos de Deus a minha Vida e a minha Arte35 .
Figura 12 – Maria Adelaide Lima Cruz | Civilização, n.o 10, abril de 1929, p. 53.
Muito ativa ao longo da sua vida, ilustrou diversos periódicos entre outros: Arte peninsular, Civilização, Domingo ilustrado, Illustração 35
XXXII Exposição Maria Adelaide Lima Cruz, Lisboa, Edições SNI, 1947.
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portugueza, Ilustração, Portugal feminino. Tal como na obra pictórica que conheço, possui trabalhos de qualidade radicalmente desigual. Atenta à articulação entre texto e imagem que idealmente se potencia, extremamente trabalhadora e apaixonada pela arte, muitas vezes transportou com inteireza nas suas ilustrações um tempo de contrastes que foi o seu. E fecha-se o texto com festa, com esta celebração de linhas dinâmicas da capa do Portugal feminino, em que um festim ainda à “Bristol Club” toma precedência.
Figura 13 – Maria Adelaide Lima Cruz | Portugal feminino, março de 1930, capa.
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Referências bibliográficas
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Sandra Leandro
OLIVEIRA, Maria Isabel, Sarah Affonso: um universo singular no modernismo português [texto policopiado], Tese de Mestrado em Estudos sobre as Mulheres apresentada à Universidade Aberta, 2006. PEDRO, António, “Sarah Affonso”, Porto, Galeria Dominguez Alvarez, 1962. Catálogo. SILVESTRE, Rosa, “O que pensam as mulheres portuguesas umas das outras. . . ”, Civilização, n.o 8, 1929. http://estudoslusoalemaes.blogspot.pt/2012/07/else-althusse-lindapastora-2 http://almanaquesilva.wordpress.com/category/ofelia-marques/
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Representações das mulheres na imprensa local – O ilhavense na década de 19501 Sara Vidal Maia2 saravmaia@ua.pt
Maria Manuel Baptista3 mbaptista@ua.pt
Moisés de Lemos Martins4 moiseslmartins@gmail.com 1
Este artigo é representativo de uma parte da investigação de doutoramento em Estudos Culturais que decorre sob a temática Representações sociais e dinâmicas de poder nas relações de género em Ílhavo, nas décadas de 1950 e 1960. 2 Doutoranda em Estudos Culturais, UA/UM; Mestre em Gestão e Planeamento em Turismo pela UA; Licenciada em História da Arte pela UC; Bolseira de doutoramento pela FCT, domínio das Ciências da Comunicação e Informação; Investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da UM. 3 Professora Auxiliar do Departamento de Línguas e Culturas da UA; Diretora do Programa Doutoral em Estudos Culturais, UA/UM; Doutora em Cultura pela UA; Mestre em Psicologia da Educação pela UC; Licenciada em Filosofia pela UP; Investigadora do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da UM. 4 Professor Catedrático da UM. Doutorado em Ciências Sociais, na especialidade de Sociologia, pela Universidade de Estrasburgo. Dirige o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da UM. Preside à Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação e à Confederação Ibero-americana das Associações Científicas e Académicas de Comunicação.
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Sara Vidal Maia, Maria Manuel Baptista e Moisés de Lemos Martins
Este artigo é resultado de uma peculiar discussão acerca dos micro níveis relacionais de poder e das representações identitárias que circulam nos discursos das mulheres que escrevem e publicam no jornal O Ilhavense, na particular década de 1950. A avaliação dos dados recolhidos, e a discussão sobre os perfis da mulher-autora, são realizados com o auxílio da técnica da análise de conteúdo. Num contexto em que as práticas sociais estão envolvidas em relações de poder e discursos que marcam a dualização da identidade de género, revela-se fundamental interpretar as dinâmicas presentes neste periódico, utilizando uma estratégia teórico-prática que prevê uma revisão bibliográfica, no âmbito dos Estudos Culturais, e uma aplicação prática a textos escritos que constituem uma espécie de sintomas da realidade social vivida por estas mulheres.
Estudos Culturais, discursos de poder e identidade de género Os Estudos Culturais surgiram nos meados do século XX, em Inglaterra e França, provocando uma imensa reviravolta na teoria cultural, graças ao trabalho de analistas como Raymond Williams, Richard Hoggart, Edward P. Thompson, Stuart Hall, Lévi-Strauss e Roland Barthes5 , e às contribuições de importantes pensadores sociais como Louis Althusser e Antonio Gramsci. Todos estes teóricos tiveram um forte impacto na vida académica e intelectual da época, pois introduziram um novo campo interdisciplinar de estudos organizados em torno 5
Maria Manuel Baptista, “O quê e o como da investigação em Estudos Culturais”, in Maria Manuel Baptista (ed.), Cultura: metodologias e investigação, col. Cultura Portuguesa – Declinações Latino-Americanas, n.o 3, Ver o Verso e CLC, 2009.
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Representações das mulheres na imprensa local – O ilhavense na década de 1950
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da cultura como conceito geral6 , com diretrizes teóricas que procuravam aproximar as ciências sociais e humanas, o que permitiu alinhavar as primeiras análises verdadeiramente culturais do mundo contemporâneo. Os Estudos Culturais sempre revelaram interesse em analisar todas as práticas culturais intrínsecas ao contexto social, apresentando-se como uma área marcadamente interdisciplinar. Inicialmente reconhecida pela análise da cultura popular e de massas, a teoria dos Estudos Culturais facilmente se expandiu a outras áreas de estudo como, por exemplo, as análises do discurso, do poder, da identidade, das representações sociais e da posição das minorias. Existe atualmente uma certa dificuldade em definir os Estudos Culturais, fruto da sua multidisciplinaridade e da possível exploração de infindáveis temáticas de estudo. Contudo, segundo Sardar e Van Loon7 , isto não significa que qualquer coisa possa ser Estudos Culturais, e que Estudos Culturais possam ser qualquer coisa. De acordo com estes autores existem, pelo menos, quatro aspetos distintivos dos Estudos Culturais: 1) mostrar as relações existentes entre as práticas culturais e o poder; 2) identificar e analisar as práticas culturais dentro dos contextos sociais e políticos, pois a cultura é sempre vista como objeto de estudo e contexto da ação e da crítica; 3) expor e reconciliar a divisão do conhecimento entre o Eu e o Outro; e 4) avaliar a moral social e apontar linhas de ação. Para os Estudos Culturais, a natureza destas práticas históricas, sociais, culturais e políticas dos sujeitos é definida pelas relações de poder, que são cada vez mais simbólicas e discursivas. Neste entendimento, o poder é um exercício ou mesmo a forma de atuar do ser humano, e não uma propriedade deste8 ; a principal função do poder não 6 Stuart Hall, “A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do nosso tempo”, in Kenneth Thompson (org.), Media and cultural regulation, London, Thousand Oaks, New Delhi, The Open University, SAGE Publications, 1997. 7 Ziauddin Sardar, Borin Van Loon, Introducing cultural studies, New York, Totem Books, 1998. 8 Michel Foucault, Microfísica do poder, org., introd. e revisão técnica de Roberto
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é castigar ou punir, mas ligar os indivíduos numa espiral que implica um contrapoder – “não há relações de poder sem resistência [e] é essa mesma resistência que ajuda a intensificar o jogo do poder”9 . O poder opera nas instituições, nas organizações e no Estado, mas também no quotidiano dos indivíduos, na sua realidade social10 . É neste tipo de relações que os Estudos Culturais possuem um interesse permanente, sobretudo na forma como o poder se infiltra e se posiciona, contaminando e delimitando as atividades dos indivíduos uns com os outros, e destes com o meio. Para Foucault11 a ideia do poder que vem “de cima para baixo” é substituída pela ideia de que os discursos estão envoltos em relações de poder, que o podem validar ou limitar, positiva ou negativamente. Assim, o poder deve ser entendido como um exercício que circula na sociedade e não como um fenómeno totalmente monopolizado por um centro. O poder intervém nos indivíduos e na sua vida quotidiana através de micro operações de poder ou micro níveis de relações de poder – dinâmicas relacionais que são estabelecidas pelos indivíduos e que se encontram ao nível da comunicação, da linguagem e dos discursos. Em suma, pode entender-se o poder como algo que opera através do discurso. Foucault12 trabalha o discurso como sistema de representação, indo ao encontro daquilo que fazem os Estudos Culturais. O filósofo preocupa-se com a produção de conhecimento e de sentido (e as suas práticas) dentro do discurso, pois embora existam coisas fora do discurso (existência real e material), nada faz sentido fora dele. Um pouco através Machado, São Paulo, Graal, 2010. 9 Morayma Hernández, “Poder e Discurso”, Mañongo, n.o 26, 2006, p. 216. 10 Michel Foucault, Estratégia, poder-saber, org. de Manoel Motta, 2.a ed., Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 2006. 11 Michel Foucault, Vigiar e punir: nascimento da prisão, 38.a ed., Petrópolis, Editora Vozes, 2010. 12 Michel Foucault, A ordem do discurso. Aula inaugural do Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970, col. Filosofia, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1997.
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deste caminho teórico segue o pensamento de Moisés Martins13 , que vê o discurso como ocorrência, significado e originalidade, pois o discurso é compreendido como acontecimento e interpretado como significação. A partir da segunda metade do século XX, os media têm sido considerados um lugar excecional de circulação de discursos de representação da sociedade, e têm-se mostrado importantes na construção identitária dos sujeitos e no estudo das relações de poder que circulam na sociedade. Atualmente, as questões de poder prendem-se simultaneamente com a identidade, sobretudo quando a identidade é vista como uma problemática que é criada, individual ou coletivamente, sob pressões discursivas sociais e mediáticas. De facto, os media são um espaço que reflete e cria as escolhas identitárias e que serve como ponto de referência dessas mesmas identidades, pois “mais do que um veículo de exposição de modos de vida, [os media] funcionam como um lugar decisivo no processo de construção de identidades”14 . Os meios de comunicação são uma forma de difundir representações da realidade, mas, acima de tudo, são uma forma de selecionar quais as representações dessa mesma realidade que podem ou devem ser disseminadas. Contudo, independentemente do poder ideológico de determinadas representações mediáticas, no final, é cada indivíduo que escolhe com que texto ou imagem se identifica (ou se quer identificar) e qual o perfil que pretende adquirir. No seguimento deste caminho teórico, David Gauntlett15 coloca uma questão fundamental: porquê explorar a relação entre media, identidade e género? Para o autor, os media e a comunicação são elementos centrais da vida moderna, enquanto o género (e a sexualidade) conti13
Moisés de Lemos Martins, A linguagem, a verdade e o poder. Ensaio de Semiótica Social, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 2002. 14 Rosa M. B. Fischer, “Media e produção do sujeito: o privado em praça pública”, in Tânia M. G. Fonseca e Deise Francisco (orgs.), Formas de ser e habitar a contemporaneidade, Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2000, p. 109. 15 David Gauntlett, Media, gender and identity: an introduction, New York, Routledge, 2002.
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nuam a ser fundamentais para a forma como pensamos uma identidade. Já para Ghilardi-Lucena16 , na atualidade, as representações de género nos media geram reflexões sobre a identidade do sujeito, transformando os meios de comunicação num lugar de implosão de identidade. Nos meios de comunicação é frequente a circulação de discursos que representam a dualidade da identidade de género e validam o domínio masculino sobre o feminino. Na opinião de Pierre Bourdieu17 , estes discursos têm fundamento histórico e, sobretudo, simbólico, pois a dominação masculina e a divisão de género assentam numa construção histórica baseada na sexualidade e numa construção social dos corpos que, validadas por mecanismos e instituições sociais (como a Escola, o Estado e a Igreja), contribuem para a eternização de simbologias seculares. Segundo esta visão, independentemente do sexo do indivíduo, qualquer elemento que seja apreendido está sujeito a “estruturas históricas de ordem masculina”18 incorporadas no inconsciente de perceção e de avaliação individual e social. Para Susan Basow19 , esta diferenciação de género é feita através de papéis comportamentais, ocupações, características físicas e traços de personalidade, o que conduz, muitas vezes, a estereótipos. No caso do género feminino, os media não refletem somente os valores e crenças sociais, mas contribuem para a construção da posição da mulher na sociedade, definindo e espelhando papéis sociais, e, acrescente-se, arquitetando diferentes perfis. Contudo, salienta-se que muitos dos textos e das imagens mediáticas são produzidos e distribuídos quase sempre num contexto de dominação masculina, tanto nos princípios de representação, como nas instituições, o que significa que as mulheres 16
Maria Inês Ghilardi-Lucena, “Representações de género social nos media”, Discursividade, Web Revista, CEPAD, n.o 6, julho de 2010 (texto consultado a 19 de junho de 2014 em http://www.discursividade.cepad.net.br/EDICOES/06/Arquivos/LU CENA.pdf). 17 Pierre Bourdieu, A dominação masculina, Oeiras, Celta Editora, 1999. 18 Ibidem, p. 5. 19 Susan Basow, Gender: stereotypes and roles, 3.a ed., California, Brooks/Cole Publishing Company, 1992.
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são apresentadas e definidas por aqueles a quem estão subordinadas20 . Contudo, isto não implica que se houvesse um maior número de mulheres a produzir conteúdos mediáticos isso imediatamente significaria o afastamento da masculinidade. Para que a mudança fosse efetiva, haveria necessidade de uma adaptação social que passaria não só pela produção de conteúdos mediáticos, mas também pelas audiências. Neste ponto, percebe-se que o discurso de género que circula nos meios de comunicação é representativo de uma determinada prática social e de um determinado contexto, pelo que, quando é analisado, deve ter em consideração: as representações e as recontextualizações dessa mesma prática social; e as (re)construções identitárias que estão associadas a aspetos individuais ou sociais da identidade, a papéis identitários e a determinados perfis (se se entender a identidade de género como uma performance e não como um atributo). Segundo Ceulemans e Fauconnier21 a dualização tradicional do conceito de género nos meios de comunicação pode ser analisada através de dois caminhos: a forma como os media projetam a imagem da mulher, e a participação efetiva da mulher na produção das mensagens que os media difundem. No caso específico desta investigação, segue-se a segunda via proposta, analisando-se o contributo dos textos escritos por mulheres no jornal O ilhavense, na década de 1950.
20
Silvana Mota-Ribeiro, Zara Pinto-Coelho, “Imagens de mulheres na imprensa portuguesa”, in Atas do IV Congresso da SOPCOM, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2005 (versão eletrónica consultada a 19 de junho de 2014 em http://hdl.handle.net/18 22/5308). 21 Mieke Ceulemans e Guido Fauconnier, Image, rôle et condition sociale de la femme dans les médias: recueil et analyse des documents de recherche, Paris, Office des Publications de l’Unesco, n.o 84, 1979 (texto eletrónico consultado a 19 de junho de 2014 em http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001343/134357fo.pdf).
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Metodologia Se olharmos para os Estudos Culturais como uma forma de intervir na realidade sem se desvincular da academia22 , percebemos como a relação entre a teoria e o estudo empírico se pode revelar fulcral nesta área de estudos. Esta é a forma de colocar em prática aquilo que Hartley23 considera ser o objetivo dos Estudos Culturais: “compreender como é que a cultura (a produção social do sentido e da consciência) devia ser especificada em si mesma e em relação à economia (produção) e à política (relações sociais)”. Foi com base neste pressuposto, que se optou, neste estudo, por analisar um estudo de caso à luz da teoria exposta24 . A seleção de um jornal de Ílhavo como objeto de estudo prende-se com o facto de este espaço possuir uma composição social peculiar, marcada pela discussão de género, que concede um papel fundamental à mulher no decurso da vida quotidiana, e por muitos considerado um papel dominante em vários aspetos da vida social25 . Esta situação é fruto de uma herança histórica, fortemente marcada pela ausência de grande parte da população masculina do concelho, que embarcava, por longos períodos de tempo, nas campanhas da pesca do bacalhau. Para analisar as representações de poder e a hipótese de existência de identidades fluídas nesta sociedade específica, escolheu-se o jornal O ilhavense, onde proliferam os discursos identitários, particularmente os escritos por mulheres. 22
Roberto Almanza-Hernández, “Stuart Hall y el descenso a lo “mundano”. Una forma de imaginar y practicar los estudios culturales”, Tabula rasa, Bogotá/Colombia, Universidad Colegio Mayor de Cundinamarca, (8), 2008. 23 John Hartley, Comunicação, Estudos Culturais e Media: conceitos-chave, [Coimbra], Quimera, 2004, p. 110. 24 Este artigo assenta numa fundamentação bibliográfica extensa e meticulosa, recolhida e analisada para alicerçar a dissertação de doutoramento em curso. 25 As circunstâncias socioeconómicas de Ílhavo vão, por consequência, conduzir a conjunturas extremas, atingindo as mulheres condições de extraordinário limite cultural.
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Apesar de o crescimento da atividade e da frota bacalhoeira serem constantes entre 1934 e meados da década de 1960, o auge da “Campanha do Bacalhau” dá-se por volta da década de 195026 , pelo que foi esta a década selecionada para executar o estudo. Assim, foram recolhidos todos os textos escritos por mulheres no jornal O ilhavense, em seis anos da década de 1950, e analisados segundo diversas categorias, entre as quais se selecionou para este estudo: “tipo de tema”, “tipo de texto”, “sentido do discurso”, “tipo de linguagem”, “hierarquia” e “mulher de Ílhavo”27 . Esta seleção realizou-se de acordo com critérios previamente estabelecidos, identificados através da revisão bibliográfica, e que respeitam as necessidades do estudo. Posteriormente, os textos assim organizados foram meticulosamente distribuídos em grelhas e analisados através da técnica da análise de conteúdo, construída com base nas abordagens de Guerra28 e Bardin29 .
Estudo de textos escritos por mulheres, n’O ilhavense, na década de 1950. Apresentação dos dados Para este estudo, foram analisados os números do jornal O ilhavense correspondentes à década de 1950, sem recurso a programas informáticos de análise de dados. Os números dos jornais foram selecionados alternadamente – 1950, 1951, 1954, 1955, 1958 e 1959 – de forma a 26
Álvaro Garrido, “O Estado Novo e a pesca do bacalhau: economia, política e ideologia”, in Álvaro Garrido (coord.), A pesca do bacalhau: história e memória, Lisboa, Editorial Notícias, 2001. 27 Note-se que as mulheres que escrevem neste jornal são, maioritariamente, mulheres de uma burguesia social. Contudo, a voz destas trespassa outras categorias sociais. 28 Isabel Guerra, Pesquisa qualitativa e análise de conteúdo. Sentidos e formas de uso, Cascais, Princípia Editora, 2010. 29 Laurence Bardin, Análise de conteúdo, Lisboa, Edições 70, 1991.
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garantirem a representatividade, a diversidade e a saturação da informação. Este levantamento reuniu e analisou todos os textos, num total de 10104 peças escritas. Para o presente estudo, selecionou-se apenas, do conjunto de peças recolhidas, aquelas que foram escritas por mulheres. O primeiro destaque é dado às ocorrências globais da década em estudo, visto que em 10104 peças que constituem o universo da investigação, apenas 182 foram escritas por mulheres, o que corresponde a 1,8% do total. Como se pode verificar no quadro 1, em todos os anos analisados, as percentagens de peças escritas por mulheres mantém-se abaixo dos 2,3%, o que revela uma presença reduzida da produção escrita feminina no jornal O ilhavense.
Quadro 1 – Peças escritas por mulheres na década de 1950
Numa fase posterior foi possível analisar as categorias identificadas como fundamentais para esta investigação. Assim, para cada peça escrita por uma mulher, em cada número de jornal (no universo dos seis anos estudados), foram levantados e analisados dados referentes a seis dimensões fundamentais desses textos: “tipo de tema”, “tipo de texto”, “sentido do discurso”, “tipo de linguagem”, “hierarquia” e “mulher de Ílhavo”. O “tipo de tema” refere-se, como o próprio nome indica, ao tema que envolve o texto em análise e que, por exemplo, pode ser “literatura”, “casamento/família”, “morte/luto”, “religião”, etc. Cada texto é também identificado segundo uma tipologia, pelo que podem tratar-se de “notas breves”, “poemas”, “entrevistas”, “agradecimentos”, “cartas”, entre outros. A análise previa também a identificação do “sentido do discurso” presente nos textos selecionados e que podia ser “crítico”, www.clepul.eu
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“laudatório”, “neutro” e “misto” (quando se tratasse de um texto representativo, simultaneamente, dos dois primeiros sentidos indicados). O “tipo de linguagem” é outra das dimensões a ser considerada, na medida em que a linguagem identificada nos textos pode ser “conotativa” ou “denotativa”. No caso da “hierarquia”, identifica-se a visibilidade, através da leitura dos textos, de qualquer tipo direto de hierarquia social (se há ou não uma clara estratificação de classe social nos textos) ou de género (se há ou não uma clara estratificação, tanto do género masculino como do feminino, nos textos). Finalmente, com a dimensão “mulher de Ílhavo”, procura-se questionar qual a origem das autoras dos textos. Em relação à categoria “tipo de tema” foram analisados cerca de vinte níveis diferentes nos quais os textos puderam ser alocados. No quadro 2 mantiveram-se apenas os níveis de maior ocorrência, inserindo-se e somando-se em “outros” todos os níveis com menos de seis ocorrências, tais como: “política/economia”, “tribunais/justiça”, “vida doméstica”, “vida marítima”, “beleza”, “saúde”, “infância”, etc. Como se pode observar ainda no quadro 2, os temas mais abordados pelas autoras das peças são a “literatura” e a “morte/luto”, com 78 (39% do total) e 38 (19% do total) ocorrências, respetivamente.
Quadro 2 – Ocorrências da categoria “tipo de tema” na década de 1950
Na análise da categoria “tipo de texto”, foram considerados cerca de onze níveis diferentes, dos quais se destacam os que possuem mais www.lusosofia.net
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de seis ocorrências e que se encontram presentes no quadro 3. No nível “outros” encontram-se as restantes subcategorias: “conto”, “reportagem”, “entrevista”, “notícia” e “anúncio”. Neste quadro 3 verifica-se que as mulheres escrevem sobretudo “notas breves” (46 ocorrências ou 25,3% do total), “poemas” (45 ocorrências ou 24,7% do total) e “agradecimentos” (39 ocorrências ou 21,4% do total).
Quadro 3 – Ocorrências da categoria “tipo de texto” na década de 1950
Já em relação ao “sentido do discurso”, a maioria das autoras das peças apresenta um discurso neutro (77 ocorrências ou 42,3% do total), tal como é apresentado no quadro 4.
Quadro 4 – Ocorrências da categoria “sentido do discurso” na década de 1950
No quadro 5 apresentam-se os dados referentes ao “tipo de linguagem”, que pode ser “conotativa” ou “denotativa”. Aqui, apesar de haver uma pequena diferença entre os dois tipos de linguagem, apura-se que www.clepul.eu
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é mais utilizada a linguagem conotativa (103 ocorrências ou 56,6% do total) pelas mulheres que escrevem neste jornal.
Quadro 5 – Ocorrências da categoria “tipo de linguagem” na década de 1950
No que diz respeito à identificação de hierarquias de género e/ou social, com os dados apresentados no quadro 6 verifica-se que, apesar da presença de alguma hierarquia de género masculino, na esmagadora maioria dos casos não é identificado qualquer tipo de hierarquia (89,6 % do total).
Quadro 6 – Ocorrências da categoria “hierarquia” na década de 1950
A última categoria de análise é a que pretende identificar a origem das autoras das peças. Como se pode ver no quadro 7, a maior parte das mulheres (47,3% do total) é ilhavense.
Quadro 7 – Ocorrências da categoria “mulher de Ílhavo” na década de 1950 www.lusosofia.net
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Análise dos dados As dimensões apresentadas nos quadros, e o conhecimento do objeto de estudo, permitem dar destaque a alguns dos dados que possibilitam uma análise mais aprofundada. Segundo o levantamento do tipo de tema, a “literatura” e a “morte/luto” são as áreas sobre as quais a maioria das mulheres se debruça e que merecem uma atenção detalhada em cada ano estudado. No ano de 1950, o tipo de tema que se destaca é a “literatura”, associada a dois tipos de texto: o “poema” e o “conto”. O sentido do discurso que envolve este tipo de tema é maioritariamente “laudatório”, enquanto o tipo de linguagem relevante é a “conotativa”. Neste tipo de tema não se deteta hierarquia de género ou social e destaca-se o facto de a maioria dos poemas e contos não ter sido escrito por mulheres de Ílhavo. Nos anos de 1951, 1954 e 1955, o tipo de tema que se destaca é também a “literatura”, associada ao “poema”. Em 1951, o sentido do discurso que envolve este tipo de tema é maioritariamente “neutro”; em 1954 é sobretudo “crítico”; e em 1955 não é relevante, pois alterna entre “laudatório”, “crítico” e “misto”. Para os anos referidos, a linguagem utilizada é principalmente a “conotativa”, não se deteta hierarquia de género ou social e destaca-se o facto de a maioria dos poemas não ter sido escrito por mulheres de Ílhavo. No ano de 1958, o tipo de tema que se destaca é ainda a “literatura”, associada ao “conto”. O sentido do discurso que envolve este tipo de tema é sobretudo “crítico”, enquanto a linguagem é particularmente “conotativa”. Neste tipo de tema, não se deteta hierarquia de género ou social e destaca-se o facto de não se identificar, na maioria dos contos, se as suas autores são ou não mulheres de Ílhavo. No último ano de análise – 1959 – o tipo de tema que se destaca é a “morte/luto”, associada a um tipo específico de texto: o “agradecimento”. O sentido do discurso que envolve este tipo de tema é maiwww.clepul.eu
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oritariamente “neutro”, a linguagem utilizada é “denotativa” e não se deteta hierarquia de género ou social. Aqui destaca-se o facto de a maioria dos agradecimentos lutuosos terem sido escritos por mulheres de Ílhavo.
Discussão dos dados A análise resultante da contabilização e do cruzamento das categorias, em conjunto com a revisão bibliográfica já efetuada, permite que sejam agora discutidos os dados. Numa primeira instância, o cruzamento das dimensões da década de 1950 permite perceber que quando o tema escrito pelas mulheres é a “literatura”, os tipos de texto utilizados, são, maioritariamente, o “poema” e o “conto”. Esta opção deixa subentender que as escritoras destas peças revelam um discurso fortemente imaginário, emocional e sem esforço, muito à maneira da literatura light30 . De facto, o espaço real, racional e político, de verdadeira intervenção social, ou até mesmo o espaço doméstico e familiar estão afastados da produção discursiva feminina, nestes jornais. Repare-se que as áreas de forte intervenção social como, por exemplo, “justiça/tribunais”, “estudos/educação” ou “trabalho/profissional”31 estão entre as menos referenciadas, mas também as áreas do mundo privado estão sub-representadas: num universo de 200 ocorrências, existem apenas 19 relativas ao “casamento/família” (ver quadro 2) e uma à “vida doméstica”32 . Ainda analisando o tema da “literatura”, percebe-se que o sentido do discurso transita entre o “laudatório”, o “crítico”, o “neutro” e até o 30
Maria da Graça Pereira, “Espelho meu, espelho meu: o reflexo social da literatura light”, in Victor Jorge (coord.), Cultura light, Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2006 (texto eletrónico consultado a 20 de junho de 2014 em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/7602.pdf). 31 Reunidas, entre outras, na categoria “outros”, no quadro 2. 32 Reunida, entre outras, na categoria “outros”, no quadro 2.
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“misto”, pelo que os distintos sentidos dos discursos das autoras revelam que a posição destas mulheres, face às representações do mundo, é diversa. O mesmo não se pode dizer em relação à linguagem utilizada, que, no caso da temática da literatura é “conotativa”. Neste ponto é fundamental perceber que, mais do que uma área de atuação ou de representação, que permite às autoras expressar a sua visão da realidade, a literatura é o único registo no qual as mulheres se sentem mais à-vontade. De facto, a literatura não é uma “coisa” feminina, visto que outros textos analisados nesta categoria estão repletos de autores masculinos, mas é através da literatura que o feminino se expressa. As autoras partilham um imaginário lírico, que lhes permite uma espécie de refúgio light para um mundo alternativo, onde escrevem maioritariamente sobre “coisa nenhuma”. Um dos dados interessantes que sobressai destes cruzamentos é o facto de não se detetar, quer nos “poemas” quer nos “contos”, qualquer tipo de hierarquia social ou de género. Efetivamente, estes são os dois tipos de texto que libertam a mulher de pressões sociais e de relações de poder dominantemente masculinas. Facto interessante é que estas mulheres não são maioritariamente de Ílhavo, mas encontram aqui um espaço para exporem a sua identidade imaginária e marcadamente emotiva. No que diz respeito ao tema da “morte/luto”, que vem sendo referido ao longo dos anos analisados, mas que ganha destaque no ano de 1959 (ver quadro 2), é particularmente interessante avaliar a ligação que existe com o tipo de texto a que está associado: o “agradecimento”. Trata-se aqui de entender que as mulheres são autoras de inúmeros agradecimentos lutuosos pela morte de familiares, fazendo mesmo questão de assinar muitos dos textos. Estas notas informativas lutuosas, escritas por mulheres, revelam que um lado prático, mas simultaneamente umbrático, não deixa de pairar sobre o seu imaginário de mães, esposas e filhas. A necessidade de cuidar da família, de informar os outros e de não deixar passar em vão um ato tão violento (e simultaneamente tão natural), dão um cará-
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ter “neutro” aos seus discursos e uma simplicidade “denotativa” à sua linguagem. Aqui também não há espaço para o “poder hierárquico” e, ao contrário do que vimos com o tema da “literatura”, a “morte/luto” é um tema trazido para o espaço mediático sobretudo por mulheres que são de Ílhavo. Efetivamente, Ílhavo é um espaço social onde os homens são vítimas do mar, por vezes demasiado cedo, pelo que as mulheres parecem especializar-se, por força das circunstâncias, em lidar com a morte e o luto, afastando-se da vertente lírica (como acontecia com a temática da “literatura”) e optando por uma via mais realista e prática. Esta visão tão pragmática da mulher de Ílhavo (e talvez de todas aquelas que vivem em comunidades piscatórias deste género) surge da necessidade de lidar tão abruptamente com duas condições tão extremas: a vida e a morte. As autoras destas notas lutuosas parecem demonstrar todas estas características, exaltando uma espécie de endurance identitária, muito sofrida por conta das circunstâncias, mas sobretudo muito naturalizada e pouco evasiva. Se a análise for estendida a todas a categorias é interessante observar como as “notas breves” (ver quadro 3) se revelam o “tipo de texto” mais frequente. Se a este fenómeno se juntar o facto de a maioria dos discursos ter um sentido “neutro”, compreende-se que as mulheres que escrevem neste jornal são pragmáticas. Todavia, numa análise mais fina verifica-se que há determinados tipos de texto que evocam determinados tipos de discurso. No geral, é importante ressaltar que os discursos destas mulheres, embora envoltos em relações de poder – que as afastam de matérias já referenciadas, como, por exemplo, as de funcionalidade sociopolítica –, estão aparentemente livres de relações tutelares e hierarquias (apesar de existir um número mínimo de ocorrências onde a tutela masculina se faz sentir, como se pode ver no quadro 6). Em suma, a análise efetuada permite perceber que o feminino se expressa através da literatura e do discurso sobre a morte e/ou o luto. Esta afirmação vai ao encontro de uma realidade, envolta em relações de po-
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der, que se fecha para as mulheres33 e abre portas para os homens, pois nos jornais analisados, os homens seguem vários caminhos, penetrando em variadas áreas socioculturais, através de distintos tipos de texto. Já as mulheres parecem caminhar num sentido limitado, demonstrando ter uma espécie de identidade monocromática. O homem tem, nestes jornais, várias possibilidades de atuação, e até vários papéis a adotar de acordo com as circunstâncias ou as temáticas que traz à discussão; já as vozes ou os perfis das mulheres são limitados. Esta é uma das formas de circulação do poder. De facto, apesar de não existirem hierarquias “visíveis” ou diretas nos discursos das mulheres, é possível entender os significados que estão por trás dos dados. Quando, num universo de 10104 textos, apenas 1,8% foram escritos por mulheres, e quando destes apenas algumas áreas lhes estão limitadas, emerge a ideia de que o mundo que representam possui dinâmicas generificadas, onde determinados temas estão simplesmente fora do alcance expositivo feminino. A afirmação anterior vai ao encontro das posições de Mota-Ribeiro e Pinto-Coelho34 e de Bourdieu35 que prevêem a limitação do género feminino em relação à dominação histórica e simbólica do género masculino. Contudo, tendo em conta a linha de pensamento teórico aqui seguida, não parece razoável afirmar que se houvesse, por exemplo, um maior número de mulheres a produzir conteúdos neste jornal, isso significaria a disseminação do género feminino em outros tipos de tema ou de texto e, paralelamente, em outros assuntos representativos da sociedade em questão. Neste estudo, a identidade da mulher-autora não revela um perfil esperado de mãe, esposa ou educadora, mas sim de “mulher-emotiva/imaginativa” – com espaço literário de implosão, onde transparecem emoções através de diversos sentidos discursivos – e de “mulher-prática”, 33
Simone Beauvoir, O segundo sexo 2: a experiência vivida, Lisboa, Bertrand Editora, 2008. 34 Silvana Mota-Ribeiro, Zara Pinto-Coelho, “Imagens de mulheres na imprensa portuguesa”, op. cit. (versão eletrónica). 35 Pierre Bourdieu, A dominação masculina, Oeiras, Celta Editora, 1999.
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que discursa acerca da morte com uma simplicidade natural e um caráter meramente informativo ou socialmente codificado. No entanto, todas elas participam, de uma certa forma, de um processo de “não-identificação”, pois não deixam uma marca pessoal identitária nos seus textos. Estas mulheres, que entendem que a vida quotidiana em geral (e as suas em particular) não tem interesse público, despersonalizam-se, criando um perfil social de “não-identificação”. Dentro desta dinâmica detetam-se três graus de “não-identificação”: “não-identidade”, “identificação por frequência” e “identificação mediada”. Os casos de “não-identidade” são relativos à maioria das autoras que se retiram da sua identidade escrevendo textos estereotipados ou socialmente codificados. Há contudo uma minoria (um ou dois casos) que abre espaço para uma assinatura, mas que estão ainda inseridas nos restantes dois graus de “não-identificação”. Nos textos analisados, foi encontrada, por exemplo, uma autora que deixou a sua marca na memória do leitor através do número de ocorrências e de uma certa fidelização estilística, vincando a sua identidade através de uma “identificação por frequência”. Há ainda o exemplo de uma outra mulher que evoluiu hierarquicamente no jornal, começando como simples poetisa e ascendendo a editora de página. Esta autora, que se escreve através dos discursos dos “outros”, possui o grau mínimo do discurso de identidade ao desenvolver uma “identificação mediada”. Neste estudo surge uma questão pertinente: entrará esta mulher emotiva e imaginativa, e também prática e racional, em contraste com um homem lógico, crítico e político? Para responder a esta questão, seria necessária uma análise meticulosa aos textos escritos por homens, algo que este estudo não abrange. Todavia, esta investigação deixa transparecer que, no que diz respeito à temática da morte e/ou luto, tanto homens como mulheres estão num nível de igualdade permitida pela codificação dos textos. Em relação à temática da literatura, a mulher é mais evasiva, enquanto o homem consegue ter um papel mais
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crítico, deixando transparecer, por exemplo, um carácter moralizador nos contos e uma maior profundidade poética nos poemas. Fundamental é perceber que, apesar desta dualidade da identidade de género, os discursos destas autoras representam diferentes consciências que lhes permitem atuar ou desempenhar as distintas performances identitárias apontadas.
Conclusões Com este estudo foi possível determinar quais as áreas tratadas pelas autoras do jornal O ilhavense, e de que forma esses discursos são uma representação das tipologias de identidade que estas mulheres revelam e que se encontram demasiado envolvidas em relações de poder de género. As autoras das peças textuais, que vêem na literatura o seu registo de eleição, apresentam um discurso fortemente imaginário e catártico, que se afasta de uma possibilidade de intervenção sociocultural. Em contraste com este registo, deteta-se um discurso mais realista e prático na forma de lidar com a morte e/ou o luto, que abandona o imaginário lírico que envolve a temática da literatura. Estas posições adotadas pelos discursos das autoras deixam transparecer três tipos de perfis identitários da mulher: “mulher-emotiva/imaginativa”, “mulher-prática”, e “não-identificação”. A preferência pela não-complexidade discursiva nos seus textos conduziu as mulheres em estudo por três caminhos de “não-identificação” identitária – “não-identidade”, “identificação por frequência” e “identificação mediada” – que se distinguem, no geral, pelas diferentes formas e capacidades de deixar uma marca identitária nos textos. De qualquer forma, esta “não-identificação”, presente na maioria das autoras, releva que as mulheres que escrevem n’O ilhavense encerram num grau mínimo do discurso de identidade. www.clepul.eu
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No que diz respeito à questão da dualização de género e às relações de poder, percebe-se que as possibilidades das mulheres se encontram limitadas, pois estas escrevem apenas sobre dois temas – “literatura” e “morte/luto” –, demonstrando uma espécie de identidade monocromática. As múltiplas possibilidades de atuação estão a cargo dos homens a quem é, naturalmente, permitida uma incursão por diversas temáticas socioculturais. Interessante é perceber que a divisão entre o masculino e o feminino não é visível quando o tema é a morte e/ou o luto, visto que ambos seguem uma formulação textual standard. Contudo, é a temática da literatura que facilita uma divisão entre a mulher sonhadora, evasiva e emotiva e o homem moralista, poético e crítico.
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Crónica feminina (1752-1904) Ernesto Rodrigues1 123.ernesto@gmail.com
Na pré-história da moderna crónica em Portugal, tal o à-vontade conversado dessa espécie jornalística, temos uma mulher reivindicativa. Está n’O anónimo2 , em inesperado quadro emancipatório. Indicarei algumas dessas tentativas autonómicas até 1904 e como os homens procuraram contê-las. Deste ponto de vista, calhava melhor “Crónica masculina”. Vai de cada um. Passeando por aldeias vizinhas do local onde recobra saúde, escreve o Setecentista: Entre as coisas que se oferecem à minha especulação, topei ontem uma sobre que me demorei mais do ordinário. Passando por uma rua mais principal do primeiro lugar a que cheguei, ouvi uma gritaria doméstica e, para observar o que seria aquela algazarra, fiz que tomava tabaco e que estava cansado, para disfarçar a curiosidade; e, com um afectado descuido, me sentei no degrau da porta, mas, com toda esta diligência, não pude perceber mais do que dizer um: “Já lhe disse que não queria que fosse a essa parte e, como o tenho assim dito, quero que assim seja. 1 2
FLUL/CLEPUL. N.o 9, 1752, pp. 65-72.
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Ernesto Rodrigues Bem sei que não há nada de mal, mas, haja ou não haja, basta para ser mau ateimar contra o que eu quero”. Outra dizia: “Diga o que quiser, porque hei-de ir e quero divertir-me, pois o meu génio é não estar em casa e sempre fiz o que queria. Agora não quero que você me prenda”. E assim foram continuando as razões de uma parte e da outra, mas a conclusão era: “quero” e “não quero”, até que, por último, o “não quero” dele cedeu ao último “quero” dela, de sorte que entendi levou a sua avante e ele não abriu mais a boca. Como ouvi tudo serenado, continuei o meu caminho e fui para a casa de um dos meus conhecidos que morava na mesma rua e contei-lhe o que tinha passado. Ouviu o tal a relação, desfechou com uma grande risada e disse: “Isto, amigo, já não causa admiração, porque é todos os dias e eu não vi mulher de condição mais ardente, nem mais voluntária, do que essa, assim como não tenho encontrado marido mais dócil nem mais prudente, demasiadamente, como é este homem, o qual entendo que, em morrendo, vai direito para o céu, porque já neste mundo tem tido o seu purgatório, e muito bom, pelo que tem sofrido àquela mulher, [. . . ]. E, assim, poucos dias se passam que não haja naquela casa um labirinto de dize-tu, direi-eu, e o pior é que tem uma osga torrada de uma criada, que tudo isto lhe aconselha e lhe facilita outras ideias tão boas como os seus narizes. Tem tomado tanto vigor o seu atrevimento que não tem dúvida a falar mais alto do que a ama e o bom do marido sofre mais este contrapeso, sem que a faça pôr em equilíbrio, aumentando-se-lhe a dose com um bom arrocho e depois fazer-lhe cheirar o meio da rua. Mas tudo sofre, por ser do agrado da mulher e ainda depois diz que é muito boa criada.
O cronista junta exemplos e faz-se doutrinário, qual novo Diogo de Paiva de Andrada ou D. Francisco Manuel de Melo em, respectivamente, Casamento perfeito (1630) e Carta de guia de casados (1651), quando, desde 1605, era já outro, bem moderno, o pensamento de Tomé Pinheiro da Veiga, na Fastigínia (1605): A mulher, na verdade, é uma carga muito pesada, que mais se www.clepul.eu
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deve desviar e fugir dela do que procurá-la com instâncias repetidas e diligências cuidadosas, [. . . ]. Além de que o homem que se casa, se é moço, perde a liberdade, e, se é velho, perde o juízo. Pois, se a mulher é mais bonita de aspecto que formosa de ânimo, é necessário ser o marido um Argos para a guardar; e nem ainda bastará ter cem olhos como Argos, se houver algum Mercúrio que faça correr muita prata e muito ouro, pelo que fica certamente perdendo a liberdade, por lhe ser preciso todo o tempo para empregar nesta vigilância. Se é feia como um demónio, converte a casa em inferno e muito pior se é rica e trouxe com ela bom dote, porque, então, além do mais, reina a soberba [. . . ]. Sócrates, aquele grande filósofo, pedindo-lhe um mancebo conselho, se devia ou não casar, lhe respondeu que a coisa mais agradável, mais honesta e mais justa que pode fazer um homem para satisfazer a Deus, à natureza e à pátria é casar com uma mulher da sua mesma qualidade. [. . . ]. Além disto, deve a mulher ser bem-nascida e que tenham sido bons os princípios da origem e da educação, porque certamente não pode ter boa lei quem não teve boa educação. [. . . ] E, por isso, deve a mulher ser mais virtuosa que bonita, porque a virtude é a que deve ser a formosura formal, e não material, de uma mulher. Pois esta não consiste na bem delineada simetria do rosto e na proporção correspondente do corpo, mas sim na bem temperada harmonia dos costumes e no bem temperado dos afectos. Não deve ser bacharela, com a discrição muito na superfície, mas sim sábia no fundo da sua consideração. [. . . ] E, finalmente, deve a mulher ser [. . . ] muito mais sóbria nos seus discursos que na sua mesa, cuidando muito em suavizar os ouvidos do marido, com o favo da prudência, e não maltratá-lo com o agudo ferrão da iracúndia, tomando o exemplo da rainha das abelhas, que, trabalhando como as outras o mel, não escandaliza.
Resquício discursivo dos séculos XVI e XVII, esta prosa espanta não só pela atitude descrita, mas pela notícia em si, quando a cláusula mais comum é a convencional “defensa das Mulheres, deste Sexo amavel, que a natureza dessinou para fazer a felicidade da Especie humana www.lusosofia.net
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[. . . ]”. “Sexo amável” é expressão delicodoce do Romantismo: surge logo a abrir na Bibliotheca universal extrahida de muitos jornaes, e das obras dos melhores escriptores antigos, e modernos (1803-1805), que se propõe “Historia universal das mulheres”, “por huma sociedade de Senhoras”. Enquanto essa história não forçosamente só de heroínas – mas não de criminosas – só hoje veio a lume, o século XIX reabilita o Luxo e celebra a Moda. Sob a égide destes, temos os extratextos d’O correio das modas (1807), primeira folha especialmente dedicada às mulheres, que, sem escamotear inconvenientes, mostra as vantagens do Luxo e da Moda para o progresso das artes e para a indústria. A pincelada de educação liberal ocorre n’O toucador (1822), onde “as senhoras mais cuidam de seus importantes negócios, onde mais se esmeram em seus cuidados”3 . Antes de as favorecer com espírito, Garrett sabe que elas querem ser vistas, e, assim, dá contiguamente os subtítulos “Últimas modas de Paris” e “Uso de Lisboa”: pelo desencontro entre moda e uso, belisca o atraso português. Em política e namoro, avisa contra “portuguesinhos austríaco-arrussados”; quanto à dança das finanças, exige “escrupulosa administração”. Liberdade e patriotismo norteiam o dizer de quem se concede escravo da feminil natureza, dita vária e inconstante. Há uma viragem no redactor da Gazeta das damas (1822): quer ser útil, não agradar ao Belo-Sexo. Defensor da Liberdade contra o Despotismo, dirige-se às “Esposas de Cidadãos Livres, e Mãis”, que convida para uma “liberal educação” como o que de melhor podem transmitir aos filhos, segundo o “mais importante dever: Criar Cidadãos Livres” (n.o 1). Neste espírito, Diálogo de duas velhas (1823) – dois velhos, decerto – interpela as mulheres sobre os valores do agónico absolutismo. Já o Periódico das damas (1823) altera o ponto de vista: o espaço para modas mal respira entre exemplos virtuosos e reflexões afins. Assim, o “governo doméstico” – ou formas de comportamento no namoro e no casamento – motiva cartas de mãe viscondessa a filha: “Procura compraser-lhe em tudo sendo condescendente, e nunca manifestes a tua 3
N.o 1, p. 4.
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incomodidade; deste modo grangearás seu amor, [. . . ]” (p. 26). Minimiza os ciúmes, antes que se firme “Trabalho sobre a igualdade dos sexos”, em treze parágrafos, com este final: Os deveres dos dous sexos [. . . ] são no seu genero os mesmos, por tanto o merecimento igual. As mulheres são tão capazes como os homens para tudo que huns, e outros se propõem: e huma mulher virtuosa, sabia, economica, prudente, que olha pelo seu credito, e respeito, que adoça os trabalhos do seu Amante, que lhe faz a sua existencia comoda, e feliz, que sabe instruir a sua familia na virtude, e Religião, capaz de amar, e defender o bem amado, huma mulher, em fim, que sabe desempenhar com fama, e gloria os seus deveres (sejão elles quaes forem) he o melhor thesouro, que se póde possuir sobre a terra. (pp. 231-232)
Ora, os novos tempos pedem outra curiosidade, como no subtítulo d’A guarda avançada dos domingos: “jornal de modas, theatros, assembleas, passeios, danças, muzica, poezia, e variedades dedicado ás mais bellas” (1835). A avaliar por folha quase homónima, A guarda avançada (1835), as jovens de boas famílias conquistaram autonomia: em quarta “carta frívola” à prima, Amália descreve a Lisboa feminina, que acorda às 4 horas da tarde, quando a aia vem lembrar serem horas de almoçar. Deitou-se às seis da matina, porque a moda da noite pediu quatro bailes e ainda perdeu dois. Com efeito, “nos bailes e theatros é aonde com mais facilidade se adquire um bom hymeneo, e tudo por meio dos bem acertados enfeites com que uma joven belleza faz reluzir seus attractivos naturaes”4 . Em crónica (já consciente da sua importância enquanto espécie jornalístico-literária, plenamente definida, na pena de um vulto maior) da Revista contemporânea de Portugal e Bra-
4
O correio das damas – jornal de litteratura e de modas, n.o 1, 7 de Janeiro de 1841, p. 1.
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sil (1859-1865)5 , “A sociedade e os bailes”, António Pedro Lopes de Mendonça reitera a importância destes: Se não tivessem inventado os bailes, os casamentos seriam menos frequentes. [. . . ] / Henrique IV, que era grande apaixonado do belo sexo, perguntando a Gabriela d’Estrées por onde se entrava para o seu quarto, teve por resposta – “pela porta da igreja”. Pois, na sociedade moderna, pode dizer-se que a entrada para o matrimónio é, muitas vezes, a porta de um salão aonde se dança. [. . . ] / Até à meia-noite, dança-se pouco e de má vontade; as senhoras examinam minuciosamente a toilette das suas rivais, para se espraiarem na crítica do dia seguinte, e o capitalista descalça a luva para mostrar os anéis que deslumbram pelo brilho dos diamantes e pedras preciosas. / Depois da meia-noite, o baile anima-se. Os noivos estabelecem-se num lugar reservado e conjugam o verbo amar em todos os modos e tempos. Os maridos começam a estar impacientes. Às duas horas, é a retirada das famílias, que receiam dores de enxaqueca por se deitarem tarde. [. . . ] E as mulheres casadas, cuja idade ainda não ultrapassou as terríveis fronteiras dos trinta anos? O maior número, diga-se em louvor do século, vão unicamente para se divertir. Uma minoria bem numerosa para coquetear, e atormentarem o próximo com longos comentários sobre metafísica de sentimento. [. . . ] Há um sem-número de senhoras que vão à sociedade, que reduzem toda a sua prosa a um tísico monossílabo, afinado em todos os tons: “Sim! Acha! É verdade! Foste!” Nunca despendem um período completo e resistem, com um certo talento, a toda a tentativa de comunicação parlamentar. – Minha senhora, serei indiscreto se perguntar a v. ex.a porque se tem conservado tão triste durante o baile? – Eu! – É o que leio na sua interessante fisionomia! – Acha? – Algum grave pensamento lhe preocupa o espírito! – Ora essa! – A tristeza nunca se apodera de nós sem graves motivos. – Eu sei! / Felizes os maridos que, tendo casado com criaturas que quase se aproximam, na inteligência, 5
N.o 7, Outubro de 1859, pp. 335-339.
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a uma couve-flor, alcançam a sublime prerrogativa de só serem correspondidos por mímica.
Para se chegar a esta afinal falsa regeneração social, houvera 25 anos (desde 1834) de doces derivas, em que as mulheres foram apresentadas como “Primor d’obra da mão do Omnipotente, [. . . ], mimo do ceo, postas no mundo para companhia e consolação do homem”6 . Atente-se na missão de consolar, que só poderia desaguar em conselhos do género: “Se casares, não tomes a mulher a olho, mas a peso”. Esta imagem de estabilidade, em desfavor das figurinhas borboleteantes, jogava com a rara mulher de juízo. Veja-se a tipologia d’O oculo – jornal litterario, crítico e de costumes7 : a mulher segue “forçosamente por um d’estes tres caminhos: o da circumspecção, o da paixão ou o da coquetterie”, desembocando em três classes de casadas: “a das mulheres de juizo, que é a mais rara; a das apaixonadas, que é a mais terrivel, e a das namoradeiras, que é a mais numerosa”. Dentro destas, casadas ou não, dividindo-se por amantes que as sustentavam, havia as lorettes, que J. M. Andrade Ferreira8 tipifica em aristocrática, romântica, actriz, excêntrica, filha de mármore [má, autómata], sentimental, fadista, alfamista. Entretanto, nas publicações que D. Antónia Gertrudes Pusich dirige, despreza-se o que era esperado: modas. N’A beneficencia – jornal dedicado à associação consoladora dos aflictos (1852-1855) – sobretudo, homens aflitos –, aumenta a colaboração feminina, e o registo crítico da leitura repentina de cartilhas diz bem do estado de literacia dessas virtuais destinatárias. Directora e cruzada digna eram saudadas no Apollo – semanario recreativo, critico e theatral9 : Pusich é uma senhora que arrostou com a prevenção que havia contra as do seu sexo, de não terem capacidade para poderem 6
O beija-flor, n.o 1, 15 de Agosto de 1838, p. 1. N.o 2, 4 de Junho de 1847, p. 7 8 O baile nacional e seus mysterios. Physiologia das lorettes de Lisboa e dos seus amantes, Lisboa, Typographia Universal, 1860?. 9 N.o 3, 17 de Janeiro de 1850, p. 19. 7
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Ernesto Rodrigues escrever, que foi descobrir tantos talentos feminís que existiam ignorados [. . . ]. E na verdade, é uma pena que a instrucção das senhoras se ache ainda bastante atrasada; custa tanto vêr uns olhos apaixonados, um coração que palpita de amor, uma bellesa enfim, não saber exprimir em bellas frases o que diz esse olhar, porque palpita esse coração; quasi sempre uma lingoagem inintelligivel vem esfriar todo o fogo ateado pela formosura que a ditou.
A presença crescente de nomes femininos inspira António Augusto Teixeira de Vasconcelos na Gazeta de Portugal, quando, a 16 de Dezembro de 1862, lança “Modas de Paris” e, a 5 de Junho de 1863, a “Carta acerca de modas”, assinando. . . D. Christina de Avellar Calheiros. A série será longa e o jogo aceite por quem de nada desconfia. A paródia recresce com o diálogo epistolar (“Minha querida Christina // Em todo o caso, acredita-me sempre, / Tua Amiga do coração / Margarida de Atayde”10 ) alimentado por esse nome-feitiço do Romantismo, Margarida, n’O monitor portuguez (1863-1864), em que se esconde Pinheiro Chagas. . . Em vez do nome, pode haver adaptação feminil de redactor masculino, como n’O jornal das damas – revista de litteratura e modas (1867-1879), com estampas e figuras coloridas. Aí, Barbosa Nogueira tem a tarefa de, com a Primavera, anunciar a transformação nas toilettes. Prolixo, trata de tudo – chapéus, vestidos, sombrinhas, brincos, broches. . . A ideia de que a “ilustração” das mulheres, para melhor as controlar, compete aos homens ainda corre n’A illustração feminina – semanario d’instrucção e recreio. Dedicado ao sexo feminino e redigido por varias senhoras e cavalheiros (1868). Note-se o peso destes, face a heróica Amélia Janny. Rompe, entretanto, A voz feminina – jornal semanal, scientifico, litterario e noticioso11 , sucessora d’A illustração feminina, afirmando-se, 10
21 de Setembro de 1863, p. 1. 1868-1869; a partir do n.o 77, 1 de Julho de 1869, passa a O progresso, até 26 de Dezembro de 1869. 11
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nos três primeiros números, “Exclusivamente Collaborado por Senhoras”. Cedo opta pela epígrafe “Dedicado Á Illustração das Senhoras”, que G. Crespo, Cândido de Figueiredo, E. Marecos e outros corroboram. Propriedade de Guilherme T. Wood, é sua mulher, D. Francisca Wood, redactora principal, a alma do projeto12 [. . . ] as portuguezas do seculo 19 devem aspirar não só á admiração de dotes externos, [. . . ] mas á apreciação moral, á estima, ao respeito que d’ella resultam. [. . . ] Os homens agora tratam-nos como se fossemos bonecas, e elles crianças. [. . . ] / Não queiramos ser por mais tempo, o que agora temos sido, – bonecas! Aos attractivos que a natureza nos deu, juntemos a preponderancia que dá o saber. Ás portuguezas não falta intelligencia, falta-lhes o amor do estudo serio, falta-lhes o habito da analyse philosophica, não só sobre assumptos abstractos, mas até sobre os phenomenos mais familiares que nos circundam.
Percebe-se um debate no ar. Por vezes, só conversa entre mulheres que se descobrem maioritárias. Elas variam os assuntos, ocupam as primeiras colunas e o folhetim, onde Guiomar Torrezão pontifica. No n.o 51, de 3 de Janeiro de 1869, após o subtítulo, inscreveu-se o programa: “Á Mulher Livre ao Lado do Homem Livre”. Quando fenece, esse sonho de papel traz, à esquerda, a inscrição “Que La Justice Soit Faite, Coûte Que Coûte”. No ano seguinte, 1870, Gustavo, do romance Eva, de Santos Nazaré, anatematiza a Mulher em geral, após ser joguete de uma casada adúltera, a primeira que, na nossa literatura, fuma, confunde amantes e se conduz como bem entende. Reitera o Maurício do folhetim Memórias de um doido, de Lopes de Mendonça, reflectindo, em 1849, sobre as mulheres em geral: “Se Deus lhes concedesse o poder de Nero, mais de uma vez iriam ver arder Roma, cantando sobre uma colina os seus fantásticos caprichos”13 . 12 13
A voz feminina, n.o 1, p. 1. Revista universal lisbonense, 2.a s., t. II, n.o 36, 13 de Junho de 1850, p. 438.
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“A Emancipação da Mulher” é título de inacessível jornal do Porto (1868) e de artigo de Júlio Rocha n’A aurora (11 de Setembro de 1879). Este sinaliza a diferença nos fins e a dissemelhança nos organismos masculino e feminino; mas, se a mulher possui talento e espírito, não é suficiente para atingir a profundidade de pensamento que só o homem alcança. Era uma concessão face a outros machos. Camilo versejou “A D. Eusébia da Assunção, alma de vaca”, contra certa “Natércia de chinelos” (“que mal te fiz, pulga d’alma, / Que mordes, sem compaixão?”); intitulou outro poema “As literatas”, com aviso aos pais; nas Memórias de Guilherme do Amaral (1863), um amigo conhece “todas as literatas do Porto, que surgiram, à laia de tortulhos, com as últimas e benéficas chuvas da civilização”14 . Em Primeiras prosas (1859-1867), Ramalho recusa a “mulher literata, porque tenho para mim que não presta para nada. A literatura inabilita a mulher, a que esgaravata a frase e manuseia a prosódia, na vida de família, é sobre inútil ridícula”. Quer que aprenda, saiba, leia, mas não as obras que “por aí lêem e que as deixam ler”15 . O século XIX encerra com Agostinho Fortes, reflectindo n’A pátria (8 de Fevereiro de 1900) sobre a “Educação da Mulher”, “um dos assumptos mais dignos da atenção de todos os que [. . . ] têm sido entre nós objecto do mais profundo desprezo”. Critica a ignorância da camponesa, o “espalhafatoso do vestido” citadino, as leituras deletérias. “Os nossos esforços não devem dirigir-se a masculinizar [. . . ] a mulher, como pretendem alguns inovadores propagandistas d’um falso movimento feminista. [. . . ] isso moralmente seria uma infâmia, e esteticamente um crime!”. Intervala programa: “O que devemos é desenvolver-lhe o sentimento, fazer d’ella a boa filha, a esposa casta e honesta, a mãe carinhosa e meiga, [. . . ]”16 . 14
7.a ed., Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1966, p. 44. Apud Ramalho Ortigão, Farpas escolhidas, ed. de Ernesto Rodrigues, Lisboa, Ulisseia, 1991, pp. 11-12. 16 Citado em Antologia do jornalismo português, t. I, 1900-1909, ed. de Frederico Cruz, Lisboa, 1964, pp. 19-21. 15
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Isso de masculinizar-se era discutido há meio século. Certo J. A. M. T. justifica a palma da misoginia com “Poesia. / Meditação. / Sobre as tendencias masculinas, e a pretenção de emancipar-se, que por esse mundo manifesta o bello sexo”. (A expressão “bello sexo” vi-a, pela primeira vez, no Diario critico sobre os erros dos falsos filosofos, n.o VIII, 1804) Trata-se de sextilhas contra a “masculinização” das mulheres: Mas hoje não: os seus fatos, No seu corpo contrafeitos, Vão-se ja masculinisando Como seus gestos e feitos. Das polkas fazem gibões, E achatão-se lacteos peitos17
Uma sextilha é contra George Sand, a pedir nota de rodapé: M.me Dudevent. Bem pode dizer-se que esta machôa prototypo pertence a um terceiro sexo. Detestada pelas senhoras, cujo sexo tanto arrenegou, que até tomou o nome masculino de George Sand; odeada dos homens, que ella ridiculisa e menoscaba em suas obras, tem ella abusado de seu extraordinario talento como escriptora, para com a peçonha de suas prestigiosas novellas envenenar a imaginação de suas incautas leitoras.
Mulher vestida de homem é um perigo público: uma fora capturada no Terreiro do Paço, segundo o Diário de notícias de 28 de Julho de 1868. Enfim, lembrados da deslinguada de 1752, vejamos “Porque teem as mulheres má-língua”, considerado o “lado antipathico do bello sexo”. Agostinho de Campos, putativo autor de artigo no Diário ilustrado (8 de Março de 1904), apoiou-se em investigadora americana para concluir: tudo se devia ao espartilho, esse “instrumento constrictor, ou de tortura, deformativo da raça e até do caracter”, além de “causa 17
O estudo [Funchal], n.o 21, 6 de Maio de 1852, p. 1. Salvo este, os títulos citados são de Lisboa.
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de degenerescência moral”. As mulheres passariam de um bem-estar e jovialidade, antes de espartilhadas, à rabugice. O cronista duvida da má-língua como “razão de ser” das mulheres, se também é “apanágio de muitos homens”, e raros usam espartilho. Seja como for, hoje, os apertos são outros. Mas, então – e, sobretudo, as republicanas –, soltavam-se cada vez mais. A escolarização crescente ou exemplos perigosos bebidos em leituras folhetinescas desespartilhavam a condição feminina. Fecho com Sócrates, que defendeu, sim, o casamento, por duas razões em que ficamos sempre a ganhar: “Casa-te: não tens a perder. Se fores feliz, óptimo. Caso contrário, tornas-te filósofo”.
Nota: Por vontade do autor, o artigo mantém a ortografia anterior ao novo A.O.
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Referências bibliográficas
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Ernesto Rodrigues
O correio das damas – jornal de litteratura e de modas, n.o 1, 7 de Janeiro de 1841. O correio das modas (1807). oculo, n.o 2, 4 de Junho de 1847. O toucador, n.o 1, 1822. Periódico das damas (1823). Revista contemporânea de Portugal e Brasil (1859-1865), n.o 7, Outubro de 1859.
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Parte VII IMPRENSA E LITERATURA. PRODUÇÃO FEMININA BRASILEIRA
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A atuação de Cecília Meireles na imprensa brasileira Ana Maria Domingues de Oliveira1 anamdo@gmail.com
Em seu Retrato natural, livro publicado em 1949, Cecília Meireles assim se expressa na última estrofe de um dos poemas iniciais da obra, intitulado “Apresentação”: “Aqui está minha herança – este mar solitário, / que de um lado era amor e, do outro, esquecimento”. Estes versos poderiam perfeitamente expressar a via de mão dupla em que transita a fortuna crítica da poetisa: de um lado amor e do outro esquecimento. Durante décadas, coletei tudo o que se publicou a respeito da vida e da obra de Cecília Meireles. O resultado de toda essa pesquisa foi publicado pela editora Humanitas, da Universidade de São Paulo, em 2001, no volume Estudo crítico da bibliografia sobre Cecília Meireles, de minha autoria. Desse conjunto da fortuna crítica ceciliana, é possível observar o uso constante de certos clichês redutores da obra da autora, utilizados em oposição ou em substituição a uma base teórica que pudesse fundamentar essas tentativas de categorização: poesia mais ibérica que 1
Departamento de Literatura – Unesp – Assis – Brasil.
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brasileira, tematização da solidão, da morte, do mar, da melancolia, entre outras generalidades. A sensação resultante de uma incursão a tais textos é a de se estar numa sala de espelhos, uma vez que cada estudo praticamente reproduz, em termos correlatos, uma visão estereotipada (e muitas vezes equivocada), sem que, no entanto, algum deles se detenha a examinar como certas afirmações podem ou não ser constatadas em seu objeto de estudo. Alguns desses julgamentos cristalizados sobre a poesia de Cecília Meireles acabam por reduzir sua poesia a um conjunto sem muitas possibilidades de nuances. Desse universo crítico, destaco quatro dos conceitos mais frequentes sobre a poesia de Cecília Meireles: poucas marcas de “brasilidade”, não adesão ao movimento modernista, caráter espiritualista e não engajado de sua obra e ausência de marcas do feminino. Na qualidade de leitora obsessiva da obra de Cecília, entretanto me pergunto até que ponto se pode afirmar que essas características são de fato inerentes aos seus textos? Ou, para dizer de forma diferente, até que ponto não seriam essas afirmações o produto de uma leitura de cartas marcadas, que buscaria, nos textos da poetisa, evidências que comprovassem uma hipótese, já de antemão carregada na algibeira, a propósito de supostas características de sua escrita? Em que medida os poemas de Cecília poderiam ser lidos por outras chaves? Essas são as questões que atualmente têm sido o centro das minhas reflexões sobre a obra de Cecília Meireles, sobretudo no que se refere à sua poesia. Nesta ocasião, porém, gostaria de retomar essas mesmas questões no âmbito das ainda pouco estudadas crônicas da escritora, face mais visível de sua atuação na imprensa brasileira. Cecília teve uma constante atuação como cronista nos jornais brasileiros, em paralelo à sua produção poética. Em uma de suas primeiras atuações nesse campo, publicou no periódico O jornal, nos anos 29 e 30, crônicas que viriam a ser reunidas no volume O episódio humano apenas em 2007.
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Mais tarde, já no início da década de 30, a escritora atuou no jornalismo carioca com crônicas sobre educação, alinhada com os pensadores que propunham uma renovação pedagógica no Brasil, que se consolidou no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em 1932. Cecília defendia os princípios renovadores desse grupo e combatia a política educacional do Estado Novo. A respeito dessa Cecília militante, vale sempre lembrar o estudo de Valéria Lamego, A farpa na lira, que analisou as crônicas sobre educação e a correspondência de Cecília com um dos chamados Pioneiros da Escola Nova, o professor Fernando Azevedo. Mais tarde, ao longo dos anos 40 e 50, Cecília dedicou-se às crônicas de viagem, entre outras de tema mais geral. Seus textos foram publicados em jornais cariocas, paulistas, mineiros, entre outros. Além disso, durante os anos de 1961 e 1963, produziu crônicas para serem lidas em programas radiofônicos. Estima-se que a escritora tenha produzido em torno de 2500 crônicas. O conjunto dessa produção aos poucos tem sido reunido em livros, desde 1964, quando foi publicado o volume Escolha o seu sonho, com uma coletânea de crônicas. Informa Darcy Damasceno: Da colaboração escrita para programas radiofônicos nas emissoras Rádio Ministério da Educação e Cultura e Rádio Roquette Pinto, nos primeiros anos de 60, se formou a bibliografia de Cecília como cronista: Quadrante (1962), Quadrante II (1963), Escolha o seu sonho (1964), Vozes da cidade (1965) e Inéditos (1968). Os três primeiros títulos saíram ainda em vida da autora e a ela se deve a seleção das peças que publicou; os dois últimos são obras factícias, em parte (Vozes da cidade, pelo que toca a Cecília) ou no todo (Inéditos, que, como os dois que o antecedem, inclui uma ou outra peça já publicada). O primeiro, o segundo e o quarto livros reúnem crônicas de diversos autores e reproduzem, na sua titulação, o nome dos programas radiofônicos em que se leram os respectivos textos. Só o título de Escolha o seu sonho foi dado pela autora.2 2
Darcy Damasceno (ed.), in Cecília Meireles, Ilusões do mundo, Rio de Janeiro,
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Depois disso, o próprio Darcy Damasceno deu continuidade à publicação das crônicas em volume, com Ilusões do mundo (1976) e O que se diz e o que se entende (1980). Muitos anos se passaram até que, no final dos anos 90, a Nova Fronteira deu início a mais um ciclo de publicação em livro das crônicas cecilianas, com um volume intitulado Crônicas em geral, de 1998, que trazia o auspicioso aviso de que se tratava do primeiro volume da publicação completa das obras em prosa da autora. Depois dele, vieram a público os três volumes das Crônicas de viagem e cinco das Crônicas de educação. O projeto de edição da prosa completa não foi adiante, não se sabe por que razões. Há, portanto, ainda muito material inédito em livro, esperando que algum dia, finalmente, o conjunto da obra em prosa de Cecília chegue às mãos de seus leitores. Enquanto isso, nas crônicas já publicadas em livro, é possível vislumbrar uma escritora com características bastante interessantes. Assim, como já disse anteriormente, proponho examinar algumas das questões citadas anteriormente, mas agora tendo como objeto não a poesia, mas as crônicas de Cecília. Começo por uma das questões mais recorrentes: a suposta pouca vinculação de Cecília ao Brasil e às questões sociais de seu tempo. Uma rápida consulta aos três volumes de suas Crônicas de educação mostra sua face engajada. A esse respeito, Valéria Lamego, que estudou o conjunto, afirma que Cecília, então, era a jornalista engajada que, entre 1930 e 1933, assinou sua página diária sobre educação – na qual chegou a acusar o então ministro de educação, Francisco Campos, de medalhão e o então presidente, Getúlio Vargas, de Sr. Ditador. Foram mais de mil artigos escritos num período turbulento da nossa história política: o início da década de 1930, quando Getúlio assumiu a liderança no país. Nesse período, Cecília lutava contra a inclusão do ensino religioso e defendia as liberdades, como por exemplo a criação de escolas mistas em que ambos os sexos pudessem dividir o Nova Aguilar, 1976, p. 10.
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mesmo espaço. É bom lembrar que isso ocorreu entre 1930 e 1933, quando a mulher sequer exercia o direito de voto, uma vez que as urnas passaram a contar com o voto feminino apenas em 1934.3
Ficam evidentes, nessas considerações de Valéria Lamego, os esforços de Cecília em prol da modernização da escola brasileira, mesmo na contramão do que propunha o ministro da educação e saúde de Getúlio Vargas, o advogado Francisco Campos e numa época em que a mulher brasileira ainda não tinha seu reconhecimento como cidadã, uma vez que não tinha ainda nem mesmo o direito ao voto. A militância na área da educação talvez seja a face mais evidente de Cecília como escritora engajada. Em outros campos, porém, a autora também demonstrou sua preocupação com o país onde nasceu e viveu. Basta um olhar para as suas Crônicas de viagem, por exemplo, para reencontrar uma Cecília que é profundamente vinculada ao Brasil e atenta às suas questões sociais mais prementes. Trata-se de uma viajante assídua, que desde os anos 30 percorreu vários lugares, no Brasil e fora dele. As crônicas vão aparecer de forma mais sistemática a partir das viagens que se iniciaram nos anos 40, após o segundo casamento de Cecília, com Heitor Grillo. Nesse período, a poetisa andou pelo Brasil e visitou muitos países. Nos anos anteriores, durante o período de viuvez, entre 1935 e 1940, a autora sobreviveu trabalhando em jornais e revistas. Isso talvez explique a regularidade com que escreveu crônicas nas viagens a partir de 1940: compromissos profissionais ampliaram e disciplinaram o hábito já existente de escrever durante a viagem. Entre as crônicas que relatam mais exatamente as impressões de viagem, seleciono aqui algumas que se referem a lugares brasileiros. Trata-se de um conjunto de aproximadamente duas dúzias de textos, que podem ser reunidos, grosso modo, em três grupos: o das crônicas 3
Valéria Lamego, “Cecília Meireles, 110 anos”, Revista Cult online, novembro de 2011 (consultada a 23 de junho de 2014 em http://revistacult.uol.com.br/home/201 1/11/cecilia-meireles-110-anos/).
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que relatam sua longa viagem de trem desde o Rio de Janeiro até Montevidéu e Buenos Aires, o das crônicas que se referem a Minas Gerais, com ênfase para as cidades históricas, e um grupo não propriamente de viagem, pois nele predominam as crônicas sobre a cidade natal da poetisa, ou seja, o Rio de Janeiro. No que se refere a este último conjunto, observa-se que o Rio de Janeiro é invariavelmente visto como uma cidade que perdeu os encantos que tinha enquanto cidade menor, guardada nas lembranças nostálgicas da escritora. Nestes textos, o Rio de Janeiro visto por Cecília é como uma sombra da cidade que ela ama. Entre estas crônicas, o “Lamento pela cidade perdida” é o texto mais típico: Minha querida cidade, que te aconteceu, que já não te reconheço? Procuro-te em todas as tuas extensões e não te encontro. Para ver-te, preciso alcançar os espelhos da memória. Da saudade. E então sinto que deixaste de ser, que estás perdida.4
A concepção de cidade que transparece nas crônicas deste grupo é dupla. No passado, temos a cidade pequena, da qual se tem nostalgia. No presente, temos a metrópole, que se rejeita. Na crônica “Esta triste cidade”, Cecília também estabelece essa dicotomia entre o Rio do passado e o Rio de seu presente: Tínhamos orgulho desta cidade: os mais antigos, os viajados afirmavam com sapiência não haver nada que se comparasse à Baía de Guanabara: nem Nápoles nem Alexandria. . . A curva d’água se arredondava com a nitidez de um espelho, com a tranquilidade de um céu.5
A esta imagem idílica, de cartão postal, composta toda com verbos no passado, segue-se o parágrafo seguinte, entre parênteses, com um 4
Cecília Meireles, Crônicas de viagem, vol. 2, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p. 5. 5 Ibidem, p. 1.
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quadro da cidade no presente: Então, cada um começou a empurrar as águas da enseada para longe, acabaram-se os estetas, vieram os técnicos, os práticos, e todos os dias – há quanto tempo? – nascem e morrem estranhas ruas, avenidas, transversais, pontes, passagens subterrâneas – que sabemos nós! – como se tudo fosse obra de criança em férias, nas areias de uma praia sem dono.6
Aqui, a imagem do Rio perpetuada na memória adquire, aos olhos da autora, uma condição idealizada, transforma-se em imagem da perfeição, concretizada através da harmonia entre natureza e civilização. Em situação oposta encontra-se a cidade real, cidade que aliena seus moradores (“que sabemos nós!”). Pode-se, portanto, concluir que as crônicas de Cecília Meireles que se referem ao Rio de Janeiro expõem a imagem de uma cidade ufanamente idealizada, cujo passado é glorioso, e que se contrapõe à cidade fragmentada, labiríntica que a poetisa vê no presente. A recusa das transformações advindas do progresso é a tônica da maioria dos textos. A cidade do passado é a representação de ideais de harmonia, de totalidade. A cidade do presente é, simbolicamente, vista como labirinto, como espaço fragmentado, espaço de conflito. Ainda se pode falar em Cecília como escritora pouco brasileira e pouco engajada, mesmo com essa visão tão colada à cidade e tão crítica em relação às transformações? No que concerne ao grupo das crônicas relativas a Minas Gerais, predominam os textos que falam sobre as cidades históricas, embora haja uma ou outra crônica sobre Belo Horizonte. As cidades históricas, mais uma vez, vão revelar uma Cecília que caminha pelo presente enxergando o passado. Na crônica “Por amor a Ouro Preto”, a escritora convoca a todos os seus leitores para a tarefa de preservar a cidade, de modo a garantir 6
Ibidem.
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o testemunho que a cidade presta de seu passado. O parágrafo final representa de modo exemplar essa posição: Nenhum de nós pode ficar tranqüilo diante dessa ameaça da sua destruição. Não se perderia apenas uma cidade: mas tudo isso que ela representa: sonho, poesia, tragédia, liberdade, sátira, beleza, fé. . . Quem pode perder tudo isso de repente sem ficar de coração partido?7
Observa-se aqui a clara preocupação de Cecília na preservação concreta da cidade, preservação esta que, indo além do palpável, garantirá também a permanência dos valores impalpáveis que “ela representa”. Apresenta-se aqui o princípio de transcendência que marca toda a obra de Cecília Meireles, não apenas no que se refere à prosa. Segundo esse princípio, todos os elementos do mundo empírico, referencial, consistem em representações de outras coisas menos palpáveis. A tarefa que compete a nós é considerar não o tangível, mas o incomensurável que se esconde sob a aparência concreta do que se fala. É importante notar, entretanto, que a etapa inicial desse processo de transcendência brota de uma observação crítica da realidade concreta e não de uma postura alienada em relação ao mundo em que vivemos. É, no entanto, na série de crônicas intituladas “Rumo: Sul”, constantes do volume 1 das Crônicas de viagem, que Cecília Meireles apresenta uma visão mais curiosa do país, apesar de a sua viagem percorrer apenas as regiões sudeste e sul. A viagem ocorre em junho de 1944. Cecília parte de carro, do Rio de Janeiro a São Paulo, onde toma o trem internacional na Estação Sorocabana, com destino a Montevidéu. De lá, irá de barco a Buenos Aires. As impressões do trecho brasileiro da viagem abrangem cidades como Bananal, São Paulo, Itararé, Marechal Mallet, Porto União, União da Vitória, Erechim, Passo Fundo e Santana do Livramento. É 7
Idem, Crônicas de viagem, vol. 3, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p. 289 (grifos meus).
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curioso observar como a visão de Cecília sobre as cidades vai avançando no sentido de enxergar a realidade brasileira de modo mais idealizado à medida que se distancia de Rio de Janeiro e São Paulo e se aproxima dos estados do sul. Observem-se, por exemplo, alguns trechos de tom levemente irritado que aparecem nas crônicas iniciais: Bananeiras, bananeiras virentes aparecendo e desaparecendo entre a terra vermelha e o céu azul. Mais bananeiras. Ainda mais. Sempre bananeiras. Que fazer com tantas bananas, meu Deus? O motorista tranquiliza-me: vamos chegar a Bananal. [. . . ] Mas o que nunca se esquece, desse lugar, são os feijões cozidos. Ficam no estômago oito horas absolutamente inatacáveis por oceanos de suco gástrico.8
O tom de crítica revela-se já desde a chegada, com um sujeito irritadiço, impaciente com a imensidão das bananeiras, expressa inclusive na reiteração exaustiva da palavra “bananeiras” ao longo das primeiras linhas. Basta o motorista esclarecer que se trata da chegada de Bananal para tudo voltar ao normal. Mais tarde, é a má digestão dos feijões que depõe contra a cidade. Enfim, tudo é motivo para o sujeito expor sua mordacidade, característica que a fortuna crítica ceciliana não costuma apontar em seus textos. Na crônica seguinte da série, a mal humorada cronista destila ironia na direção de seus companheiros de trem, que serão objeto de vários comentários contundentes, dos quais destaco o primeiro: E entram estas veneráveis matronas, que viajam com pérolas, e, quando se lhes pede o passaporte, dizem, com cara de papa antigo: “Nós somos descendentes de João Francisco das Botas Largas, um dos primeiros bandeirantes do Brasil. Nunca ouviu falar?” E foi para isso que os Botas Largas andaram varando o sertão, coitadinhos!9 8 9
Idem, Crônicas de viagem, vol. 1, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, p. 77. Ibidem, p. 82.
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Não é preciso muito esforço para observar aqui a voz ácida, crítica, que aponta a prepotência das mulheres de alta classe que se julgam acima das leis em razão dos feitos de seus ancestrais. Cecília, tão atual. . . O tom irritado prossegue, direcionado a todas as atitudes e comentários desses companheiros de viagem e a todos os elementos das paisagens vistas que escapem a uma visão idealizada daquilo que deveria ser o Brasil, na concepção da cronista. Observe-se, entretanto, como o tom mordaz e irônico transforma-se em puro lirismo idealizador, nas crônicas posteriores à chegada ao Paraná, como se finalmente tivesse encontrado o cenário que corresponderia à imagem desejada do Brasil: Amanhecemos no Paraná, sob um sol de suave glória. Taças de pinheiro oferecem altos vinhos azuis. Aparecem as primeiras e encantadoras casas de madeira. Um mundo de brinquedos brancos, vermelhos, verdes, dispostos na veludosa caixa matinal do terno campo. (. . . ) Todas as casas têm cortinas. Todas as crianças, agora, têm calcinhas de lã, casaquinhos azuis. . . E um leve sol dourado galopa com os cavalos soltos nesse tranquilo mundo vegetal.10
A visão desse cenário parece tornar mais complacente e lírico o sujeito das crônicas. A descrição é plena de adjetivos, todos de enaltecimento da paisagem: o sol é de “suave glória”, os pinheiros são taças que “oferecem altos vinhos azuis”, as casas de madeira são “encantadoras”. A dupla adjetivação em “veludosa caixa matinal” pode ser o atestado da condição de deslumbramento da cronista, que parece encarar a paisagem do campo paranaense como um paraíso a ser buscado por todas as outras regiões do Brasil. Agora, pouco importa que elementos da paisagem se repitam, pois são pinheiros, casas de madeira, tábuas secando ao sol: “É um mundo 10
Ibidem, p. 85.
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sem fim de pinheiros, de chalés de madeira com janelas graciosas, de crianças de melena cor de prata cintilando com pinceladas metálicas”11 . Embora seja “um mundo sem fim” de elementos repetidos, a cronista vê neles uma graça que as pobres bananeiras tropicais de Bananal estão longe de ter. Em lugar das bananeiras, pinheiros. Em lugar de barracos, casas de madeira que são vistas como “chalés”. Até as crianças que assistem à passagem do trem têm cabelos cor de prata. Há em tudo uma beleza singela que comove a cronista, como se aquela região fosse uma espécie de modelo a ser seguido pelas outras regiões do país. Há, sem dúvida, uma visão europeizante do Brasil, com chalés, pinheiros, crianças de cabelos claros, entre outros. A própria cronista parece se dar conta disso ao chegar à fronteira do Brasil com o Uruguai, em Santana do Livramento. Ali, o olhar europeu finalmente se explicita na voz da própria cronista: “Campos completamente cultivados, ondulando até o horizonte, em suaves planos de paisagem europeia”12 . Embora de uma perspectiva mais contemporânea se possam fazer críticas a essa visão tão eurocentrada de Cecília, sempre é possível enxergar ali uma vontade de que todos no Brasil pudessem chegar a um padrão de vida que ela considerava mais digno. Há um evidente empenho da cronista em favor de um país mais justo. No que se refere às questões ligadas ao feminino, há uma crônica de Cecília Meireles, intitulada “Toda a América unida para a vitória”13 , publicada inicialmente no jornal A manhã, em 24 de março de 1943, ainda durante a Segunda Guerra e que foi publicado em livro pela primeira vez no volume 1 das Crônicas de viagem. Nesse texto, Cecília relata ter recebido, através de Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, o Emblema da Vitória enviado dos Estados Unidos por Evangelina A. de Vaughan. A primeira, Ana Amélia, é poetisa brasileira, nascida no final do século XIX. Evangelina, segundo informa Cecília, “é uma senhora peruana, radicada em Nova 11 12 13
Ibidem. Ibidem, p. 89. Ibidem, pp. 35-38.
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York, antiga presidente da Unión de Mujeres Americanas, grande animadora do movimento feminino nos Estados Unidos”. O Emblema da Vitória seria um símbolo dos “anelos da mulher americana, defensora dos ideais democráticos” e teria sido enviado a Cecília em razão da amizade que a ligaria a Evangelina A. Vaughan. O restante da crônica discorre sobre a diferença entre as mulheres e os homens americanos. Dizia a autora: Multiplicam-se os aviões, submarinos, bombas, tanques de guerra e o número de mortos. Mas as mulheres americanas pensam na resistência, na defesa, na união de todas as mulheres de boa vontade – o que significa uma educação melhor da humanidade futura, uma outra compreensão das coisas, uma estrutura diferente do mundo. Sem dúvida os homens querem o mesmo: mas querem-no aos berros, berros de canhão, de altos explosivos, berros de desespero, de sofrimento, de maldição.14
Os papéis aqui estão bem delineados: enquanto as guerras são uma invenção masculina, cabe às mulheres lutar por um mundo melhor com as armas da educação, da boa vontade, da união. Está aqui, muito evidente, outra face da escritora militante, posicionando-se em favor da atuação das mulheres e contra as guerras. Cecília feminista e pacifista, ainda na década de 30? Parece que sim. E para que não se pense que a militância de Cecília residia apenas em seus primeiros escritos, vale a pena citar uma crônica já dos anos 60, intitulada “A gatinha branca”, que integrou o conjunto dos textos lidos nos programas de rádio mencionados anteriormente, e que foi recolhida por Darcy Damasceno no volume Ilusões do mundo, de 1976. A crônica possui um fio narrativo e se inicia com o final da história: uma gatinha branca morta, sendo contemplada por um grupo de meninos com remorso. Só depois de narrar essa cena é que a narrativa retoma os fatos que a antecederam: uma gatinha branca aparece numa 14
Ibidem, p. 38.
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rua de um bairro e é “adotada” pelas meninas da vizinhança. Os meninos a hostilizam e a ameaçam, enquanto as meninas tentam defendê-la das agressões deles: Mas, enquanto as meninas assim a acompanhavam, com olhares maternais, e procuravam todos os dias descobrir de onde vinha, a quem pertencia, e se teria filhotes (pois só pelos seus modos se via que era uma gatinha), os garotos dispunham-se para uma ação de guerra, aparelhando-se com pedras e estilingues para a destroçarem.15 Os papéis, aqui, como no trecho sobre a guerra da crônica anteriormente citada, são definidos: meninas se unem em favor da gatinha desgarrada e meninos procuram a guerra contra o animal que é visto como inimigo. E o inevitável acontece: “Como o crime aconteceu, as meninas não viram. Viram apenas a gatinha morta, com o focinho rebentado e manchas feias no alvo pelo, tão longo, tão sedoso, tão fofo.”16
As meninas, diante da morte da gatinha, brigam com os meninos. O remorso dos garotos, narrado no primeiro parágrafo da crônica, foi passageiro, apenas no momento imediatamente posterior à morte da gatinha. Nos dias seguintes, a postura dos garotos é assim descrita: “passavam ufanos, de cabeça levantada, numa demonstração de força bastante insolente, como se bradassem: «Somos homens! Fazemos o que queremos! Já sabemos até matar!» As meninas entendiam”17 . A crônica é contundente e parece reafirmar, num episódio menor, as diferentes posturas de homens e mulheres anunciadas na crônica dos anos 40. Nessa concepção, homens são seres bélicos, que na infância são cruéis com os animais (e se orgulham disso) e na idade adulta fazem as guerras. Mulheres são seres que se compadecem e defendem os mais fracos através de gestos de boa vontade. 15 16 17
Idem, Ilusões do mundo, p. 42. Ibidem, p. 42. Ibidem, pp. 42-43.
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Claro está que se trata de uma visão bastante binária, mas de qualquer forma atesta que Cecília Meireles revelava em seus textos na imprensa um comprometimento com as causas de seu tempo que a crítica insiste em negar. Caberia aos estudiosos da obra de Cecília trazer à tona, através de uma publicação abrangente e sistematizada de suas crônicas, essa escritora militante que tantos evitam ver em sua poesia e que parece tão evidente na prosa. Seria acaso no espelho dos jornais que se encontraria a face perdida de Cecília Meireles?
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Referências bibliográficas
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Mais uma otimista quanto ao futuro do pessimismo: esperança e desespero nas crónicas de Hilda Hilst Alva Martínez Teixeiro1 alvateixeiro@gmail.com
No contexto de um sentimento geral de perda e desorientação que aflige o homem comum neste novo início de século, ler as crónicas de uma autora como Hilda Hilst, na altura da sua escrita já sexagenária, é, no mínimo, uma experiência refrescante. Nas suas crónicas, publicadas entre 1992 e 1995 no “Caderno C” do Correio popular de Campinas estão presentes a crise do sujeito, da ideia de história, do valor de realidade ou, também, da utilidade da obra artística. Até aqui não há nada de novo. No entanto – e é isto que vai tornar a cronística hilstiana particularmente interessante e significativa –, estão presentes de um modo que alargou o horizonte da sua produção literária e também, até certo ponto, ampliou a paisagem da falta de significado e da noção do absurdo na escrita contemporânea. O elemento catalisador deste alargamento é a distorção grotesca de uma realidade, vista pela primeira vez na obra hilstiana desde a vida 1
Universidade de Lisboa.
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quotidiana, desde a morada humana e social da autora. Nesse sentido de deformação, como veremos, surgem em conexão indestrinçável o trágico, o ridículo e o circunstancial, pois de modo inaugural na sua escrita é desenvolvido um retrato da realidade mais imediata: a do Brasil. Esta amálgama manifesta-se, por um lado, através da ironia egocêntrica e agónica de Hilst a respeito da consideração social que recebia. Na crónica, a autora manifestou, mas também escarneceu, a sua opinão – repetida em diversas entrevistas e depoimentos – de ter sido sempre ignorada, comparando-se, por exemplo, com uma “tábua etrusca”2 . Trata-se de um gesto desrespeitador e que evidencia, de um primeiro modo, o questionamento do sentido trágico. A poeta boémia, lúcida e alucinada – figura genericamente celebrada noutras vertentes da sua escrita –, quando é obrigada a interpretar um papel dramático perante uma plateia impassível, acaba por troçar da sua própria tragédia com uma inusual clarividência que a aproxima da tentação do niilismo. Aliás, num género em que, como sabemos, “a imaginação se mescla sem qualquer vergonha ou precaução à experiência pessoal”3 , o cinismo egótico de Hilst oferece-nos um constante exercício de auto-análise em relação ao seu percurso literário, mas também em relação à sua posição autoral. Na crónica, como sabemos, é admitida uma vigorosa linha de conexão entre autor e narrativa que, no caso que nos ocupa, se materializa em alusões aos intuitos da criação e às funções sociais da literatura. Estas referências permitem perceber de maneira mais reta o entendimento da autora do mundo real, entendimento que ilumina a criação das entidades ficcionais e do mundo possível da sua textualidade literária. Por outro lado, essa aglomeração cronística de tragédia, contingência e farsa materializa-se no complexo problema de conciliar o grotesco entendido como literatura e o grotesco entendido como história. Esta vicissitude deriva do pano de fundo da crise política e social de que 2
Carlos Vogt, “[Sem título]”, Cadernos de literatura brasileira – Hilda Hilst, n.o 8, 1999, pp. 18-20. 3 José Castello, Inventário das sombras, Rio de Janeiro, Record, 1999, p. 60.
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Hilst se serviu como motor para construir a sua crónica. Neste sentido, Hilst foi consciente de cultivar um género cuja “perspectiva não é a dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão”4 . Assim, optou frequentemente por simplificar a sua escrita e amenizá-la, extraindo imagens impiedosamente cómicas, populares e atuais a partir do mesmo impulso distópico que originara o trágico retrato da humanidade oferecido noutros géneros. É, portanto, um discurso incisivo e provocador, um discurso social e moral sério, mas realizado de maneira paradoxal por via do humor, que, com esta forma de agressão camuflada, oferece um mais subjetivo e expressivo pensar e sentir sobre as coisas. A crença geradora desta focagem assenta na ideia de que, a partir do uso de estratégias irónicas e táticas humorísticas, pode ser edificada uma comunidade de leitores mais ampla. Quando a autora expressou sem mais, por exemplo, na sua ficção, a sua perceção de certos elementos e aspetos visados na crónica – como por exemplo, o despropósito e a amoralidade do mundo, a barbárie injustificada ou a consciência aguda do abandono e da solidão do homem –, através de uma proposta mais simbólica e universalizante, o estremecimento foi maior, mas a receção por parte do público brasileiro foi claramente minoritária. Por oposição, a crónica “com o seu tom menor de coisa familiar”5 permitiu que a sua intervenção cronística semanal assumisse uma relevância própria. A crónica funcionou como mediadora entre a autora paulista e o seu público potencial, que oscilava entre a aversão e a afinidade a respeito da escritora, como põe de manifesto no texto “Musa cavendishi” (15/02/93): “Há pouco tempo, esta modesta articulista estava a ponto de ser apedrejada como uma infeliz rameira lá da Galiléia. E não é que virei santa? Credo, Elias! Santo sofre”6 . 4
Antônio Candido, “À guisa de introdução. A vida ao rés-do-chão”, in AAVV, A crônica – o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil, Campinas, Editora da Unicamp, 1992, pp. 13-20. 5 Ibidem, p. 17. 6 Hilda Hilst, Cascos & carícias & outras crônicas (1992-1995), col. Obras reunidas de Hilda Hilst, 2.a ed., São Paulo, Editora Globo, 2007, p. 46.
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Percebemos aqui a ironia comprazida a respeito do negativo raio de abrangência da sua escrita cronística. E, igualmente, também percebemos como a cronista alcança esse estatuto de moralista cínica, na esteira dos grandes satiristas ocidentais, com uma sensação de cansaço absoluto que enfatiza através de uma discursividade perplexa. Num género que, enquanto poesia “explora a temática do «eu» ser o assunto e o narrador a um mesmo tempo, precisamente como todo ato poético”7 , a narradora filtra, como sabemos, os acontecimentos através do humor, mas de um humor que tem como motor a expressão de um radical sentimento de alteridade e de assombro: Os homens continuam aqueles, iguaizinhos de Neanderthal, estúpidos, boçalóides, absolutamente cruéis. E eu sou o quê, hein? Ah! Não! Não venham me dizer que eu faço parte da raça humana. . . no cu, gaivota, sou não, sou gente não, posso até ser uma excrescência, mas sou gente não, sou do Quinteto do Pégaso, sou de Sirius, sou de Andrômeda, mas Não Mesmo Daqui.8
No entanto, apesar da pose de individualista extremada, não podemos pensar que a perspicácia de Hilst se reduz ao talento de perceber os defeitos dos outros de que falava Stendhal. Como sabemos, toda revolta é impregnada de humanismo, e, portanto, a sensibilidade revoltada hilstiana não é, no fundo, individualista: é, paradoxalmente, afirmação da condição humana, mas de uma outra condição humana possível. E, por isso, como espírito esclarecido que quer pensar honestamente, praticou um outro exercício de identidade, procurando a sua comunidade natural, a dos maiores outsiders, os poetas, que para ela eram “Filhos da Quimera, da Ilusão. Não há nada mais exdrúxulo sobre a Terra do que o Poeta. Só o ornitorrinco”9 . 7
Massaud Moisés, A criação literária – prosa, 3.a ed., São Paulo, Cultrix, 1985, p. 251. 8 Hilda Hilst, op. cit., p. 123. 9 Ibidem, p. 165.
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Assim, partindo dos princípios de que “só a Poesia salva”10 e de que o poeta é um profeta11 , Hilst aproveitou o espaço disponível na sua crónica para dar voz a Drummond, Pessoa, Simone Weil ou Neruda e procurar iluminar os seus leitores e conduzi-los a uma improvável redenção. Uma salvação que passaria, na essência, por despertar os leitores para os diferentes sentidos da consciência absurda. Esta consciência consiste, em primeiro lugar, num conhecimento que oprime de todos os lados e que ensombrava irrestritamente os outros textos da autora, mas que aqui, por causa do “gênero menor” de tom “predominantemente impressionista”12 , é verbalizado com mais clareza, concretude e pragmatismo. Contra a abstração e a metafísica, contra a contemplação, Hilst consegue expor em termos mundanos a futilidade humana do processo vital. Um exemplo disto seria o tratamento da questão do sentido no texto “Cronista: filho de Cronos com Ishtar” em que não pode evitar um olhar para o existencialismo que se ajuste à sua “aligeirada” visão: tudo é transitório, a casa que cê pensa que é sua vai ser logo mais de alguém, tu é hóspede do tempo, negão, já pensou como vai ser o não-ser? Tá chateado por quê? Tu também vai envelhecer; ficar gling-glang e morrer. . . [. . . ] Até o Sartre, gente, inteligentíssimo, ficou na velhice se mijando nas calças e fazendo papelão. . . 13
Hilst pretende advertir a sociedade de consumidores e/ou operários de que falava Hannah Arendt em A condição humana do perigo fundamental de tal sociedade. Esta, “deslumbrada com a abundância da sua crescente fertilidade e presa ao suave funcionamento de um processo 10
Ibidem, p. 81. Ibidem, p. 95. 12 José Paulo Paes, Massaud Moisés, Pequeno dicionário da literatura brasileira, São Paulo, Cultrix, 1967, p. 82. 13 Hilda Hilst, op. cit., p. 117. 11
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interminável”, já não seria capaz de reconhecer a sua própria frivolidade, a frivolidade de uma vida que “não se realiza em coisa alguma que seja permanente [Adam Smith]”14 . E, portanto, para prevenir melhor essa sociedade cega, o absurdo não é objeto de reflexão profunda, não é essa intimidade opressora que descrevem os filósofos existencialistas. É assim que se percebe a referida mudança a respeito do universo tipicamente hilstiano: através da leitura dos textos não entramos no interior vazio de uma consciência, nem nos encontramos bruscamente mergulhados no interior de uma experiência da secura do mundo. No entanto, a consciência absurda é estimulada nestas crónicas por uma segunda atribulação que se entrecruza, frequentemente, com a lucidez do destino trágico do homem, da injustiça fundamental da morte. É o problema do mal, que daria mais uma razão para o divórcio entre o espírito que deseja e o mundo que dececiona. Estas duas disfunções humanas juntas conformam o marco da ironia que alicerça esta produção mais diretamente interventiva e mais próxima dos homens do que de uma humanidade abstrata. Assim, as crónicas participam de uma das caraterísticas fundamentais da literatura contemporânea: a obsessão pela autenticidade15 . Para a autora brasileira, esta preocupação seria um primeiro mecanismo para conversar com o homem social e não só relatar o homem genérico. Com este objetivo, procura desvendar os modos de conduta que encobrem a falsidade e desfazer a farsa social. Um dos procedimentos básicos consistirá em dirigir-se a leitores caricatos, como por exemplo, a dona de casa, tomada como paradigma da alienação da classe burguesa. As “madames”16 “pitanguisadas (palavra composta do dr. Pitangui e de guisado)”17 são um dos alvos preferidos do didatismo hilstiano. Num equilíbrio distorcido entre o docere e o delectare, que 14
Hannah Arendt, A condição humana, Lisboa, Relógio D’Água, 2001, p. 159. Andrés Amorós, Introducción a la novela contemporánea, 8.a ed., Madrid, Cátedra, 1985, p. 57. 16 Hilda Hilst, op. cit., p. 342. 17 Ibidem, p. 219. 15
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é segundo John Gledson “lugar-comum de quase toda escrita sobre a crónica”18 , recomenda-lhes, por exemplo, procurar um amante acéfalo, bossa-gorilão e explica, sublinhando, assim, a sua futilidade: “Já pensaram que tedioso uma fantasia sexual com o Oppenheimer ou o Albert, por exemplo?”19 . Ampliando o raio de ação para o âmbito nacional, outro alvo hilstiano nessa procura de autenticidade será “o repulsivo “homem político”20 , a “otoridade”21 . A reação cáustica contra os progressismos mais esperançosos da contemporaneidade, interpretados como inerciais doutrinas para o país, permitem à autora estabelecer a premissa basilar de que a sociedade brasileira é uma deformação grotesca dos princípios da civilização pós-moderna. Assistimos, portanto, ao retrato de uma classe dirigente composta por um clã de ufanos porta-vozes, já não do progressismo, mas da dissimulação, pois como indica a autora: “Tem sido mais fácil compreender Heidegger, Wittgenstein, sânscrito, copta, do que compreender explicações de ministros e quejandos”22 . As crónicas exploram realidades como a inflação, a dívida externa e outros problemas do governo do Presidente da República Fernando Collor de Mello ou do seu sucessor, o Presidente Itamar Franco, membros arquetípicos do que a autora denominara “pornocracia”23 na sua obra Contos d’escárnio / textos grotescos, editada pela primeira vez em 1990. A formulação hilstiana articula-se numa perceção do que o país é – irresponsavelmente capitalista, alienado e individualista – e de como o país está: “doente famélico sedento triste pobre inflacionado de18
John Gledson, “Apresentação”, in John Gledson (org.), Conversa de burros, banhos de mar e outras crónicas exemplares, Lisboa, Cotovia, 2006, pp. 1-38. 19 Hilda Hilst, op. cit., p. 23. 20 Ibidem, p. 167. 21 Ibidem, p. 279. 22 Ibidem, p. 75. 23 Hilda Hilst, Contos d’escárnio/textos grotescos, col. Obras reunidas de Hilda Hilst, São Paulo, Editora Globo, 2002, p. 41.
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mente”24 . Os dados e notícias são profundamente pré-apocalíticas25 , como indica a própria autora. Nas crónicas há deputados roubando bilhões, gente faminta, hospitais em agonia, quadrilhas matando crianças e meninas vendidas como prostitutas aos garimpeiros em Rondônia e no Acre. E quase todos os pormenores da confusão social e política são surpreendemente exatos, porque como assinalara John Gledson, ao analisar os textos machadianos, a crónica é “uma planta parasita”26 a respeito da circunstância jornalística. No entanto, não podemos esquecer que a sátira hilstiana pretende revelar que a alienação é a enfermidade que consome a todos. Por isso, a massa social, apesar de ser considerada frequentemente padecedora das manipulações das classes dirigentes, é retratada também como alienada e responsável. Na sua passividade, o povo é uma “massa grotesca”27 cujo “maior tesão”, apesar da situação nacional, “continua sendo a bunda e a bola”28 . Perante este panorama social calamitoso, Hilst frequentemente sente-se como mais uma confrade do escritor e filósofo francês Jean Rostand, otimista quanto ao futuro do pessimismo. A sua grande particularidade, porém, reside no facto de que diante de um universo provavelmente sem progresso, não cede à tentação da nostalgia. Nas crónicas não encontramos qualquer passado refigurado ou ficcionalização da História, e também não há uma visão melhor quando o olhar hilstiano paira sobre a humanidade, entendida num sentido atemporal e global. Segundo a autora lamentava num dos textos, “não dá mais nem pra escolher o bom selvagem”29 , pois se no Brasil a massa patética “esgoela” diante de cantores patetas de versos “songo-mongos” e silêncios que “só num Bergman seriam admissíveis”30 , o panorama da humanidade 24 25 26 27 28 29 30
Idem, Cascos e carícias. . . , p. 81. Ibidem, p. 243. John Gledson, op. cit., p. 16. Hilda Hilst, Cascos e carícias. . . , p. 111. Ibidem, p. 191. Ibidem, p. 111. Ibidem, pp. 110-111.
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não é muito melhor: “aí penso na Alemanha, um povo cultíssimo, e aconteceu e continua acontecendo toda aquela selvageria insana que é o nazismo. E aí penso na Inglaterra e vejo morte, violência e crueldade nos jogos de futebol exatamente como aqui”31 . Estas são amostras díspares de um mundo que não só traiu os ideais das Luzes, senão que maioritariamente nem sequer os tem conhecido ainda: é o mundo do “Homo maniacus”32 . O mundo de um ser, o homem, que, segundo uma cita de Koestler reproduzida por Hilst, é o único “a praticar a matança de seres de sua espécie, em escala individual e coletiva”33 , e que, mesmo assim, acrescentamos nós, paradoxalmente, como espécie, não consegue colocar-se à beira da extinção física total. Enfim, podemos afirmar, em consequência, que o grotesco surge como uma forma moral e satírica de explorar, avaliar e corrigir a realidade. Este princípio de primazia da exacerbação tragicómica, sublinhado ainda pela atitude perplexa da narradora, permite evidenciar as degradações, as máscaras e os desenganos, através dos dois princípios paradoxais a respeito da natureza humana assinalados por Dieter Meindl para o grotesco: uma primeira contradição lógica – os homens racionais são irracionais – que conduz ao ridículo – e uma segunda contradição ética – os homens são inumanos – que conduz ao fantasmal e ao horrível34 . Diante destas incongruências, as oposições bem e mal, amor e ódio ou guerra e paz ficam terrivelmente indiferentes, nivelando-se também a atitude da autora ante elas. A ambivalência dos fenómenos e dos valores faz com que a narradora se situe sarcasticamente próxima dos personagens romanescos que, durante o século XX, perdem o sentido da realidade. Com vontade de sublinhar a orientação satírica dos seus 31
Ibidem, p. 111. Ibidem, p. 30. 33 Ibidem, p. 34. 34 Dieter Meindl, American fiction and the metaphysics of the grotesque, Columbia, University of Missouri Press, 1996, p. 15. 32
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textos, finge o dilema, por exemplo, de muitas figuras de um dos melhores exemplos desta perda: O homem sem qualidades. No romance de Robert Musil, diferentes personagens, como Diotime, prima do protagonista, começam a duvidar da possibilidade de delimitar distinções e de se decidir por uma única ideia. E o mesmo parece acontecer com a narradora hilstiana, para quem, lembremos, a consciência absurda exerce uma exigência moral extenuadora. Uma tal convicção leva-a a tomar posições extremas e a fingir essa indistinção para que nenhum dos leitores desconsidere a mensagem profunda das crónicas. Neste sentido, perante esta conjuntura universal, são propostas três hipóteses divergentes. Em primeiro lugar, às vezes, o único sentido da vida parece ser o contra-senso prometeico da sobrevivência face ao impiedoso destino, que Hilst exprime através de diferentes propostas desvairadas. A disposição humorística destas crónicas está inspirada pelo cinismo praticado por Swift e outros moralistas, sendo o alicerce último deste retrato negativo o sentimento de revolta que o impulsa e não, como seria de esperar, o humor. A autora paulista parte da mistura do razoável, do parcialmente razoável e do demencial – recordemos, aliás, que na crónica “as idéias se encadeiam menos por nexos lógicos que imaginativos”35 para arquitetar crónicas norteadas pelo princípio de um despropósito desenvolvido com paradoxal lógica. Uma amostra destas dissertações absurdas seria a proposta de criar um Esquadrão Geriátrico de Extermínio, que atacasse os políticos com um estilete oculto nas bengalas das senhoras da terceira idade ou importar dejetos da Suíça, da Alemanha ou do Canadá, que “devem ser os mais ricos portadores em proteinas”, e servi-los com molho de alcaparras, pois “iam resultar num belo prato para o gáudio de nossos estômagos tristes pardos e mirrados”36 .
35 36
José Paulo Paes, Massaud Moisés, op. cit., p. 82. Hilda Hilst, Cascos e carícias. . . , p. 186.
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Em segundo lugar, e apesar de a lógica absurda mandar viver para afirmar que a vida é o grande contra-senso, a segunda contradição provoca a perda de vigor na cronista. O facto de, num mundo sem sentido, permanecer para a narradora a exigência humana de sentido e, aparentemente, nada poder ser feito para satisfazê-la, causa o desfalecimento. A narradora não consegue manter-se na revolta, que é substituída pela náusea ou o desejo de evasão. A náusea hilstiana é marcada, assim, pelos desdobramentos mais evidentes dessa ausência de significado: se de início a autora refere o gesto de ter comprado um penico como símbolo de repulsa perante a rapacidade dos banqueiros, depois a sua presença nas crónicas transcende o simbólico, ao tornar-se o seu uso imperativo e visceral diante da atrocidade mundana, como as “fotografias apavorantes de somalis exibindo contentíssimos nacos de carne de soldados da ONU que ali estavam para lhes matar a fome”37 . Por outra parte, a consciência a respeito desse horizonte ilógico pode inspirar ainda uma outra maneira radical de lidar com o monstruoso absurdo do mundo. Esta é materializada na desistência através da loucura – a narradora assegura numa das crónicas que “aos setenta e nove gostaria de loquear um pouco. É bom ser estranho e velho”38 –, da bebida – pois, segundo proclama noutro texto para morrer “esquecendo”, resolveu “beber além do que já bebo”39 – ou do suicídio. Uma tal possibilidade trágica enraiza definitivamente nos textos e no leitor o sentimento perturbador do desencontro literário com o mundo moderno. Esta estampa tanática torna-se leitmotiv, pois a “nove milímetros, de cabo de madrepérola e diamantes branquíssimos”40 da autora, é outro dos mais significativos símbolos das profundezas da sua tragicómica proposta cronística.
37 38 39 40
Ibidem, p. Ibidem, p. Ibidem, p. Ibidem, p.
122. 57. 87. 300.
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Além disso, é celebrada em diversas ocasiões a fatal lucidez de artistas suicidas como Van Gogh, Ana Cristina César, Virginia Woolf ou Maiakóvski. Na crónica que projeta a criação do Esquadrão Geriátrico de Extermínio, Hilst cita as palavras de Drummond, “os delicados preferem morrer”41 : estamos novamente ante o único exercício possível de procura de afinidade, da sua comunidade natural, os outsiders. Porém, desta vez, apesar de que a opção destes artistas seja cativante, a cronista percebe que ela pertence à linhagem dos sensíveis, mas não dos frágeis. Está ciente do rigor da morte, de facto, pergunta-se numa crónica: “Como a gente faz pra vida não doer tanto? Como a gente faz pra morrer no laguinho, bossa Ofélia, rodeada de flores, sem antes ser devorada pelas piranhas?”42 . Mas também sabe que há uma via mais árdua, aquela que lhe é destinada: a fidelidade do raciocínio à evidência que a despertou e que lhe exige a manutenção do absurdo. Assim, numa conclusão circular, o motor da crónica e da vontade autoral concentra-se, desde o início, naquilo que já foi indicado: o culto do nonsense para procurar despertar, para “devolver a alma ao homem”43 , sendo os penicos e pistolas, ao chocar o leitor, não mais do que mecanismos para realçar o caráter contraditório e problemático da existência e do ser humano. Hilst não pode fugir de sua condição de poeta, de heroína, mesmo que seja uma heroína absurda – por estar, muito provavelmente, condenada ao fracasso –, e também não pode evitar a realidade. O espelho da crónica revela-lhe a imagem da humanidade e, dentro desta, a sua própria, a imagem de um ser humano acorrentado a um destino: existir e coexistir. Esse inabalável convívio e a inexorável evidência da pertença provocam que a narradora tome da humanidade, num gesto desesperado e paradoxal, aquilo que mais a inspira como motor último e profundo das crónicas. Trata-se do melhor e mais puro invento do homem: a 41 42 43
Ibidem, 2007, p. 74. Ibidem, p. 104. Ibidem, p. 30.
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esperança. Nos textos que nos ocupam, a capacidade de o espírito, depois de ter enterrado tantos sistemas e religiões, continuar a reinventar a esperança, com o mesmo vigor incansável, permite-nos falar de advertência, mas não de condena. Há esperança na visão hilstiana que já não é a visão de Sartre de que o inferno são os outros, porque a autora está à procura do grotesco, não do trágico puro, preferindo pensar a humanidade através de um tom criticamente superior. Um tom que suaviza a visão do “inferno” sartriano com o olhar zombeteiro de Oscar Wilde. Para Hilst, como para o autor irlandês, o mundo pode ser um palco, mas o elenco é um horror. E por isso, por causa desta compreensão equilibrada pelo sarcasmo, a crónica hilstiana é a experiência refrescante de que falávamos no início: através do uso da caricatura distante, da extravagância do farsesco e de uma ambiguidade profunda, as crónicas não são nem muito bem-humoradas nem inexoravelmente fatalistas. Por fortuna para a nossa paz mental, na linha do equilíbrio agora referido, nesses domingos com uma certa sensação de fim, a autora gostava de reservar as últimas linhas de muitas das suas crónicas – como acontece na própria imprensa com as páginas de desportos ou cultura –, para “restabelecer” um certo sentido de normalidade para o mundo, sem esquecer o seu absurdo. Deste modo, despedia-se frequentemente com cumprimentos quotidianos, como os votos de “Bom domingo, fofos”44 , “Bom churrasquinho”45 ou “Boa missa”46 , mas sem esquecer súplicas como a que segue: “Por favor, leitor, repense seus hábitos, seus costumes. RECONSTRUA-SE”47 . Enfim, por tudo isto, felizmente, podemos concluir que a cronista Hilda Hilst foi pessimista pela razão mas otimista pela vontade, servindo-nos da máxima de Gramsci, porque, afinal, Hilst sabia que a sátira
44 45 46 47
Ibidem, p. Ibidem, p. Ibidem, p. Ibidem, p.
245. 188. 125. 183.
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é a literatura das sociedades moribundas, como certificara Balzac, mas, acrescentamos nós, ainda não mortas.
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Referências bibliográficas
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Entre a imprensa periódica e o texto literário: desafios da escritora contemporânea Iara Barroca iarabarroca@uol.com.br
[. . . ] o contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação com os outros tempos, de nele ler de modo inédito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de uma exigência à qual ele não pode responder. Giorgio Agamben1
Como o propósito desta comunicação é o de realçar aproximações entre os textos produzidos por mulheres na imprensa periódica e na literatura, coube-me trazer à luz para essas reflexões as palavras de Giorgio 1
Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo? E outros ensaios, p. 72.
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Agamben sobre o contemporâneo, uma vez que aqui essas aproximações serão feitas a partir da análise do percurso literário/jornalístico de duas grandes escritoras brasileiras: Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) no século XIX e Lya Luft (1938-) no século XX. Busca-se também, através dessa análise, conferir visibilidade à repercussão que essas autoras tiveram em suas respectivas épocas, especialmente por se terem decidido inserir no contexto político, social e cultural dos parâmetros de sua sociedade vigentes, através das diversas modalidades de textos em que apresentavam suas reflexões. Se o contemporâneo é aquele que está à altura de transformar o tempo e de colocá-lo em relação com outros tempos, fazendo-se ler, nele, de modo inédito, a história, como nos define Agamben, podemos dizer que Júlia Lopes de Almeida e Lya Luft são contemporâneas, especialmente por assumirem o efetivo papel do intelectual no contexto social. Na tentativa de clarear essas aproximações, consideremos, brevemente, alguns aspectos bio-historiográficos das duas autoras. Comecemos, pois, por Júlia Lopes de Almeida. Júlia Valentina da Silveira Lopes de Almeida nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1862, e lá faleceu em 30 de maio de 1934. Sua obra é bastante vasta, e abrange diversos gêneros literários, como o romance, o conto, a crônica, o ensaio, a poesia e o teatro, além de refletir as transformações históricas, econômicas e sociais ocorridas na sociedade brasileira, desde os últimos anos do Império à Proclamação da República, até a instauração do regime Vargas. É importante realçar que essas fases correspondem, respectivamente, às três épocas distintas na vida de Júlia Lopes, que compreendem sua infância no Rio de Janeiro e a adolescência em Campinas, a mudança para São Paulo, e os anos de amadurecimento como escritora e mulher, vividos no Rio de Janeiro e na Europa. De acordo com o estudo de Peggy Sharpe, o trabalho de Júlia Lopes de Almeida conseguiu ultrapassar as fronteiras nacionais, chegando a ser conhecido em países da América do Sul, como Argentina e Uru-
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guai, e na Europa, especialmente em Portugal e França. A relevância da obra de Júlia Lopes, dentre outros fatores, deve-se também por ela ter sido considerada a “primeira escritora do país”, nas palavras da literata portuguesa Guiomar Torresão, em artigo publicado na revista A mensageira, de 1899. Se considerarmos que naquele momento ainda eram raras as escritoras que se assumiam como tal, e que o máximo da expectativa da educação feminina era a de formar leitoras, o facto de ter sido reconhecida como importante escritora de seu país representou prestígio para Júlia Lopes, o que a tornou em uma figura pública, cuja pena era disputada pelos principais jornais do Rio de Janeiro. D. Júlia, como era carinhosamente chamada pela sociedade carioca da época, foi também considerada a “primeira dama” da belle époque brasileira, na expressão de Peggy Sharpe. Como outras de sua geração, Júlia soube responder criativamente à resistência que encontrava, por parte de alguns colegas, no exercício do jornalismo, escrevendo textos que privilegiavam assuntos voltados para o público feminino, mas que não deixavam de tratar, também, de temas polêmicos, como a abolição da escravatura, o acesso das mulheres à educação, e o exercício simultâneo dos papéis de escritora, intelectual, mãe e esposa. Júlia Lopes de Almeida se apossou do ideal da mulher inteligente e de sucesso do século XX: em 1922, participou da Comissão de Relações Internacionais e Paz do I Congresso Internacional Feminista promovida pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Em julho de 1931, quando essa mesma Federação promoveu o II Congresso Internacional Feminista, no Rio de Janeiro, e as mulheres se organizavam para obter o direito do voto, o discurso de abertura da solenidade coube a ela – a mulher de maior prestígio no meio cultural, em todo o país. O sucesso da obra de Júlia Lopes de Almeida teve o efeito de minimizar as tensões vivenciadas por ela, como mulher e como escritora, numa sociedade que ainda via com desconfiança a ousadia das que ultrapassavam os limites da esfera doméstica e privada. Para ela, “a educação adequada às mulheres estaria ligada ao bem estar social da
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família, e, por extensão, à bem sucedida consolidação dos ideais republicanos. A desarmonia do lar era vista como resultado das várias restrições impostas pela sociedade às mulheres que, por sua vez, eram expostas somente ao seu limitado mundo doméstico e barradas no mercado de trabalho. Por essa razão, Júlia acreditava que uma educação feminina adequada resultaria em lares harmoniosos e em práticas maternais mais saudáveis. Percebia, assim, que a emancipação da mulher fortaleceria não só a família, mas salvaguardaria as futuras leis do Código Civil. A obra de Júlia Lopes de Almeida foi, portanto, um marco na história da Literatura Brasileira de autoria feminina, uma vez que ousou transgredir e discutir as limitações dos marginalizados e suas representações no imaginário social da última metade do século XIX e início do século XX. A leitura das múltiplas vozes femininas de sua obra nos permite ter acesso a uma reflexão atenta sobre o papel da mulher enquanto sujeito de seu próprio percurso, e ao que tem sido historicamente denominado como o ’feminino’ (comentar a questão da inteligência de Júlia em investir seu discurso sobre a necessidade de valorização da mulher em função de dar aos filhos uma melhor educação). Já Lya Felt Luft, nascida em Santa Cruz do Sul, em 1938, vem se dedicando à carreira literária desde a década de 60, iniciada com a publicação de um livro crônicas e um de poesias, e concretizada com a publicação de seu primeiro romance, As parceiras, em 1980. E desde então, Lya segue traçando seus diversos percursos literários, divididos entre a escrita de romances, de contos, de crônicas, de poesias e de ensaios, e os trabalhos de tradução – a primeira atividade acadêmica desenvolvida por ela. Atualmente, é colunista da Revista Veja, na qual escreve, quinzenalmente, para a coluna Ponto de vista. Percebe-se, a partir dessas breves notas biográficas de ambas as autoras, diversas aproximações ‘intelectuais’ entre elas, nas quais nota-se, também, a vigente preocupação de descortinarem, em seus textos, a importância do papel da mulher para a consolidação de uma sociedade.
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Aproximam-se, também, os processos de inserção das duas autoras no universo das letras, quando, por exemplo, Júlia Lopes de Almeida publica, pela primeira vez, um artigo sobre Gemma Cuniberti – atriz italiana que fazia teatro infantil no Brasil – na Gazeta de Campinas, em 1880, e Lya Luft publica, 100 anos depois – em 1980 – seu primeiro romance, As parceiras: livro que marcou o início de sua carreira literária. Júlia e Lya, embora advindas de épocas/séculos diferentes, cultivam formações muito próximas. Um exemplo delas é o apoio que ambas as escritoras tiveram, por parte de seus pais, para iniciarem seus trabalhos a partir de publicações em meios impressos de grande circulação. Se considerarmos a forma como eram vistas as escritoras do século XIX, em que a imagem da mulher maternal e delicada era conservada sob as formulações feitas sobre a natureza feminina no século XVIII, e que por isso eram-lhe negadas “a autonomia, a subjetividade necessária à criação”2 , é interessante realçar a inserção de Júlia Lopes de Almeida na imprensa por incentivo do próprio pai – que ela temera que pudesse castigá-la pelo “grande crime” de escrever versos (expressão utilizada pela autora em entrevista concedida a João do Rio e publicada em O momento literário, p. 29). Lya Luft, embora viesse de uma educação tradicionalmente marcada pelos costumes alemães, em que às mulheres cabiam o aprendizado de tocar piano, de manter a organização do lar e de falar alguma língua, teve do pai todo apoio para investir em sua vocação de escritora, ou mesmo em uma carreira profissional, em que ela não estivesse fadada à instituição do casamento. Era na imensa biblioteca do pai, sob inúmeros livros de literatura, que ela, ainda pequena, se “escondia” da mãe, para que, em vez de aprender tarefas domésticas, pudesse dedicar seu tempo aos inúmeros títulos literários que compunham o escritório de seu pai. Assim como nos primeiros romances de Lya Luft, Júlia Lopes também descrevia em seus livros, de forma bastante crítica, a instrução que 2
Norma Telles, “Escritoras, escritas, escrituras”, in Maria Del Priore, Carla Bassanezi (orgs.), História das mulheres no Brasil, São Paulo, Contexto, 2000, p. 403.
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era promovida para as meninas, pois julgava essas instruções como medidas ineficazes na capacitação das mulheres, especialmente em executar suas funções educadoras, o que nos leva a concluir que não havia qualquer dissociação de atividades intelectuais femininas no âmbito familiar. Cito Júlia Lopes: Sem consultar vocações nem vontades, exige-se, em geral, que todas as moças toquem piano, cantem, saibam fazer sala e fallar francez (. . . ) Não nos passa pela idea que uma senhora se possa dedicar a um estudo serio e ponderoso, no doce recolhimento do seu gabinete, com o mero intuito de transmittir um dia aos filhos as suas observações e os seus trabalhos, dando-lhes uma educação despretenciosa e sólida.3
Nos primeiros romances de Lya Luft, essa realidade é também criticamente apontada, especialmente quando representada por personagens matriarcas, que sobrepunham a submissão aos costumes à mais simples aspiração a qualquer autonomia. Júlia Lopes muito colaborou para difundir as medidas educativas “ideais” dentro da família através de sua literatura, abordando essas questões em tom moderado, através de seu discurso inteligente, alegando, através dele, como a ampliação da educação e do letramento para as mulheres seriam importantes para o benefício da família. Vale ressaltar a preocupação da autora com a condição da mulher que nada soubesse fazer, uma vez que estava condicionada ao espaço do lar, custeado pelo marido. Para ela, a mulher deveria ser capaz de se sustentar e de levar o sustento de toda a família adiante, caso o marido lhe faltasse. E isso só seria possível mediante uma nova proposta de educação, ainda que propagada através de livros, cuja escrita era direcionada às mulheres. Como ela mesma diz, “há certos livros de educação e de higiene que acho indispensáveis numa biblioteca de senhoras. As mulheres salvarão pelo amor o que os homens estragam por desídia”4 . 3
Júlia Lopes de Almeida, 1926, p. 202. Idem, Livro das donas e donzelas (coletâneas de crônicas, com desenhos de Jeanne Mahieu), Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1906, p. 22. 4
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Vale considerar que Júlia Lopes de Almeida defendia profissões exercidas por mulheres não só para que as pudessem satisfazer um anseio pessoal por uma profissão, mas em casos de necessidade – até então não pensados ou desconsiderados pelo homem, em função mesmo de seu totalitarismo – como a perda do cônjuge. Essa preocupação financeira com a situação das mulheres pode ser percebida em vários de seus discursos, e, por conseqüência, a necessidade de visíveis mudanças em relação à atitude de educação das meninas, que deveriam, por isso, ser preparadas para as adversidades da vida. Para isso, a autora afirma: Convenci-me hoje de que todas as mulheres devem ter uma profissão. Conheço duas senhoras desgraçadas. Uma ficou orphan e outra viúva, e nenhuma está habilitada a bem ganhar a vida. Lembrei-lhes o commercio. Não sabem contabilidade. Lembrei-lhes a typographia, a telegraphia, a gravura, a pharmacia, mas de que expedientes se hão de valer para sustentar a família enquanto estudem? Este exemplo fez-me tremer. Se eu tiver filhas. . . por Deus! Que hei de prepará-las para poderem vencer estas dificuldades!5
O real risco iminente de famílias, especialmente as de classe mais abastadas, perderem seu “chefe”, sendo ele o pai ou o marido, tanto por motivo de morte como pela possibilidade de abandono, conferiu força ao discurso de defesa da profissionalização das mulheres para sua segurança financeira. Esses discursos eram também defendidos por feministas, mesmo antes da circulação do Livro das noivas e do Livro das donas e donzelas, como podemos ver em um jornal feminista, conhecido como O sexo feminino, de D. Francisca S. da Motta Diniz, que circulou no Rio de Janeiro em 1873: Em vez dos paes de família mandarem ensinar suas filhas a coser, engomar, lavar, cosinhar, varrer a casa etc., etc,. manda-lhes 5
Idem, 1926, p. 128.
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Iara Barroca ensinar a ler, escrever, contar, grammatica da língua nacional perfeitamente, e depois economia medicina domestica, a puericultura, a litteratura (ao menos a nacional e portugueza), a philosophia, a historia natural [. . . ] estas meninas assim educadas não dirão quando moças estas tristes palavras: Si meu pai, minha mãi, meu irmão, meu marido morrerem o que será de mim !!!6
Essa ampliação da educação para as mulheres, bem como a necessidade de profissionalização, é também temática recorrente em alguns romances de Lya Luft, especialmente nos publicados a partir de 1999 – fase em que a autora se dedica a escrever sobre uma inversão de papéis entre o homem e a mulher, isto é, sobre a posição que a mulher passa a ocupar na família e na sociedade. Nesta nova fase de escrita, adversa à escrita dos romances anteriores (em que a mulher se via submetida ao domínio dos anseios cultivados pela cultura do patriarcado), a mulher, ainda que enquanto personagem, assume “as rédeas” de sua vida, e aprende a dizer “sim” aos impulsos de sua própria subjetividade. E hoje, mais que nunca, essa posição da mulher enquanto “dona” de seu próprio destino, de seu próprio pensar e de seu próprio discurso, revela-se na escrita de Lya Luft, que, enquanto mulher (diga-se, a primeira delas), expõe seus questionamentos, ideais e opiniões em uma das maiores revistas de circulação nacional do país, em uma coluna intitulada Ponto de vista. Assim, os ideais de Júlia Lopes de Almeida, transcritos há mais de um século (ainda em 1906), parecem ganhar vida e expressividade nessas posições declaradamente “femininas”, uma vez que questões sobre educação, política e sociedade têm sido abordadas, também, a partir de um ponto de vista declaradamente “feminino”. O papel cultural de Júlia Lopes de Almeida ganha substancial atenção quando, já no século
6
Diniz apud June Hahner, A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937, São Paulo, Editora Brasiliense, 1981, p. 47.
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anterior, propõe uma reavaliação dos papéis desempenhados por mulheres. E diz: Apesar da antipatia do homem pela mulher intelectual, que ele agride e ridiculariza, a brasileira de hoje procura enriquecer a sua inteligência freqüentando cursos que lhe ilustrem o espírito e lhe proporcionem um escudo para a vida, tão sujeita a mutabilidades (. . . .) Se uma mulher brasileira, (se há excepções? há-as de certo!) cai de uma posição ornamental em outra humilde, é de rosto descoberto que dia procura trabalho então vai ser costureira, mestra, tipógrafa, telegrafista, aia, qualquer coisa, conforme a educação recebida, ou o ambiente em que vive. . . 7
Como se pode ver, o propósito de uma reeducação feminina, que tivesse como enfoque uma participação evolutiva da mulher (no sentido de esta suceder o homem em suas atribuições), estendeu-se para além da unicidade desse ideal. Nos dias de hoje, a mulher escritora ou intelectual desempenha diversos papéis sociais – papéis estes que hoje ganharam novos enfoques, novas ênfases, novas conclusões, que se concretizam nas vozes de muitas outras mulheres. Ao contexto de hoje, cabe-nos fazer justiça à luta de tantas mulheres que nos precederam nessa conquista por um reconhecimento social, e assim como nos diz Lya Luft, é preciso “questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. [. . . ] Suportar sem se submeter, aceitar sem humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade. [. . . ] Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para os enquadrar, seja lá no que for”8 . Se, como nos afirma Buarque de Holanda, na passagem do século XIX para o século XX (1994), a literatura de autoria feminina é marcada por um sentimento de alienação e solidão, em conseqüência de sua exclusão em relação ao projeto da construção de uma nacionalidade, a literatura do século XXI parece ter atribuído um novo sentido 7 8
Júlia Lopes de Almeida, Livro das donas e donzelas, op. cit., 1906, p. 9. Lya Luft, Pensar é transgredir, Rio de Janeiro, Record, 2004, p. 23
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ao caráter excludente e inoperante do silêncio e da solidão pungente de que se constituíam os discursos, especialmente aqueles em que se traduziam as mais distintas expectativas de mudança, em relação ao reconhecimento de um lugar para a mulher na sociedade. Como nos afirma Ruth Silviano Brandão, “. . . o silêncio e a solidão podem ser uma espécie de luxo ou privilégio nos dias ruidosos de hoje”9 . Ao silêncio encaminham-se as idéias, antes de se fazerem texto, antes de se fazerem voz, antes de refletirem o que se busca no espelho das inquietações. É preciso, pois, “pensar pela audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto”10 , seja em que contexto for.
9
Ruth Silviano Brandão, Mulher ao pé da letras: a personagem feminina na literatura, 2.a ed., Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006, p. 26. 10 Lya Luft, Pensar é transgredir, op. cit., p. 24.
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Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio, O que é o contemporâneo? E outros ensaios, tradução de Vinícius Nicastro Honesko, Chapecó, SC, Argos, 2009. ALMEIDA, Júlia Lopes de, “Entre amigas”, A mensageira, Vol. I, São Paulo, Imprensa oficial do Estado, Secretaria de Estado da Cultura, 1987. ___________, Livro das noivas (Coletânea de crônicas publicadas em jornais de Campinas, SP), Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1896. ___________, Livro das donas e donzelas (Coletâneas de crônicas, com desenhos de Jeanne Mahieu), Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1906. BRANDÃO, Ruth Silviano, Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura, 2.a ed., Belo Horizonte, Editora UFMG, 2006. HAHNER, June, A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937, São Paulo, Editora Brasiliense, 1981. LUFT, Lya, Pensar é transgredir, Rio de Janeiro, Record, 2004. ___________, Perdas e ganhos, Rio de Janeiro, Record, 2003. MUZART, Zahidé Lupinacci, Escritoras brasileiras do século XIX: antologia, Florianópolis, Editora Mulheres; Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. (Vol. II)
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TELLES, N., “Escritoras, escritas, escrituras”, in DEL PRIORE, M.; BASSANEZI, C. (Orgs.), História das mulheres no Brasil, São Paulo, Contexto, 2000.
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Parte VIII IMPRENSA E LITERATURA. PRODUÇÃO FEMININA PORTUGUESA
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Imagens da nação. Diários de Emília Bravo, de Maria Judite de Carvalho Filipa Barata1
A escolha do nome de Maria Judite de Carvalho, no âmbito de um colóquio sobre a escrita feminina na imprensa periódica luso-afro-brasileira, surge quase naturalmente uma vez que estamos perante uma das vozes literárias mais penetrantes e acutilantes da literatura portuguesa da segunda metade do século XX. Mais, a sua obra e, em especial, as crónicas, que durante anos publicou em vários jornais de Lisboa, antes e depois do 25 de Abril – embora a nós, em particular, nos interessem mais as crónicas que antecedem esse período –, afloram uma ideia de sociedade e também de feminino que a autora procura combater de forma direta umas vezes e outras de forma mais velada numa interessante tentativa de estimular as leitoras pela inteligência e não pela crítica simples e dura. Mas, por outro lado, impôs-se-nos, ainda, eleger uma voz singular, que colocasse a possibilidade de uma análise abrangente em termos culturais e, sobretudo, que nos permitisse refletir sobre essa identidade cultural e, em concreto, sobre a sua dimensão especular que inevitavelmente nos devolve – apesar de fragmentada – a imagem do que somos 1
CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
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e/ou quem fomos e para onde vamos e/ou fomos enquanto país. Daí também a escolha – não sem ironia – do termo nação, no título, que nos coloca perante um Portugal específico e preciso: o Portugal salazarista – último reduto da nossa imagem mítica, segundo Eduardo Lourenço, que vemos esboroar-se através da voz inquietante da cronista que foi Maria Judite de Carvalho. Diários de Emília Bravo trata-se de um conjunto de textos, publicados no Suplemento “Mulher” do Diário de Lisboa, entre 1971 e 1974, assinados com o pseudónimo Emília Bravo, composto essencialmente por crónicas que, aliás Maria Judite de Carvalho vinha publicando desde 1968, neste mesmo jornal, sob o título “Rectângulos da vida”. Ao lermos Diários de Emília Bravo – e pesem embora algumas das especificidades destes textos, nomeadamente no que toca à relação entre o diário e a crónica – bem como outras das crónicas reunidas em volume como O Homem no arame ou A janela fingida, torna-se clara a intenção de comunicar com o leitor e de o levar a refletir sobre a sociedade, como nota Ruth Navas. A intenção de comunicar com o público leitor, levando-o a analisar situações do quotidiano, que a autora recolhe e comenta, fazem, ainda segundo Ruth Navas, parte de uma nova concepção de jornalismo, que começa a emergir por volta dos anos 60 e que está ligada a um conjunto de acontecimentos mundiais que envolvem conflitos bélicos, como o da Guerra do Vietnam, o que muito contribuiu para a alteração do estatuto do jornalista que já não se vê apenas como um redator de notícias, mas antes como alguém que pode imiscuir-se na realidade e ter nela um papel actuante. Posto isto, e porque a maioria das crónicas de Maria Judite de Carvalho são escritas durante o período do Estado Novo, cremos poder observar aí alguns traços da idiossincrasia nacional, que, ao mesmo tempo, nos servem para perceber de que modo a imagem que advém dessas crónicas nos devolve um reflexo do que projetamos como sendo a representação de nós próprios enquanto coletivo. Por outro lado, nestas crónicas, há já indícios de um contexto sociopolítico que se vai
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Imagens da nação. Diários de Emília Bravo, de Maria Judite de Carvalho
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desmoronando, mas onde a liberdade de expressão não existe de facto, ficando patente o aspeto de denúncia de uma situação opressiva, em geral, e da mulher, em particular, por parte de uma voz autoral que não recusa assumir uma determinada postura ética. Assim, e porque, também através da literatura, tem sido possível, ao longo de vários séculos, construir uma imagem de Portugal e dos portugueses, quer em termos individuais, quer em termos colectivos, quer ainda em termos que podem envolver as duas vertentes, tomamos como ponto de partida “Psicanálise mítica do destino português”, de Eduardo Lourenço, um texto que, apesar da distância no tempo, continua, para nós, a ser um dos mais ilustrativos sobre esse desajustamento da imagem que, enquanto portugueses, fazemos de nós mesmos. Encontramos, portanto, nesse texto, como se sabe, uma extensa reflexão psicanalítica sobre uma certa incapacidade para percebermos, enquanto povo, qual o nosso destino, bem como o de traçarmos um perfil objetivo da nossa ação cultural, à qual se juntam as dimensões sociais e políticas, entre outras. Tal incapacidade levou (leva?) frequentemente, alguns de nós, a projetar uma imagem irreal enquanto país que, para o período temporal que nos interessa (século XX) é, porventura, herdeira do conceito de nação estabelecido pelo Estado Novo: Não vivíamos num país real, mas numa ‘Disneyland’ qualquer, sem escândalos, nem suicídios, nem verdadeiros problemas. O sistema chegou a uma tal perfeição na matéria que não parecia possível contrapor uma outra imagem de nós mesmos àquela que o regime tão impune mas tão habilmente propunha sem que essa imagem-outra (não apenas ideológica, mas cultural) aparecesse como uma sacrílega contestação da verdade portuguesa por ele restituída à sua essência e esplendor2 .
Ora é precisamente este conceito de nação que cremos ser posto em causa em Diários de Emília Bravo, numa tentativa de dar da realidade portuguesa essa “imagem-outra”, como refere Eduardo Lourenço, 2
Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1982, p. 31.
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e que também, segundo o mesmo autor, em texto distinto3 , revela, pela primeira vez na literatura portuguesa, não só em Maria Judite de Carvalho, mas também em autores como Agustina Bessa-Luís, Almeida Faria, ou até Ruben A. – só para citar alguns nomes de um panorama maior e diverso – a capacidade que certos autores tiveram de ajustar os seus textos ao tempo e ao que realmente se estava vivendo. Ao contrário do que acontecera anteriormente, nota Eduardo Lourenço, para alguns autores portugueses o afastamento em relação à Europa e ao mundo alterara-se bastante devido, por exemplo, dizemos nós, ao aparecimento da televisão que naturalmente encurtava a distância entre nós e os outros e que assim (não sem algum paradoxo) nos voltava mais para dentro de nós próprios enquanto identidade cultural a necessitar de reabilitação. Neste contexto, aqui abreviado por razões de espaço, são publicados os textos de Diários de Emília Bravo que, como tivemos ocasião de sublinhar, contêm, entre outros aspetos, o da denúncia de um tempo cultural e social opressivo e angustiante, onde a mulher tenta conquistar um lugar fora de casa no mundo do trabalho e na sociedade em geral, tendo que gerir duas vidas em simultâneo: a familiar e a profissional. Refiro-me aqui, em concreto, ao “Diário de uma dona de casa”, onde parece haver uma identificação entre a narradora e as donas de casa, mulheres como ela, que têm uma casa, que vai muito além do sentido literal, ganhando uma conotação íntima que, aliás, encontramos em outros textos de Maria Judite de Carvalho. É necessário entrar dentro de casa destas mulheres, que são como todas as outras, ajudando-as a sentirem-se banais, e levando-as a reconhecerem-se nos textos do jornal que lêem. Por outro lado, há, nestes textos, o uso de uma estratégia retórica que aposta na simplicidade da narrativa, cultivando formas breves, despidas de adjetivos, como nota Jacinto do Prado Coelho4 e outros, apontando para uma contenção que 3
Eduardo Lourenço, O canto do signo: existência e literatura, Lisboa, Editorial Presença, 1994. 4 Jacinto do Prado Coelho, Ao contrário de Penélope, Venda Nova, Bertrand Edi-
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faz da sua palavra uma palavra penetrante, entrando pelos interstícios de cada um dos seus leitores. Tomemos como exemplo do que acabamos de dizer o seguinte excerto: Comigo é diferente. Do que eu digo guardam segredo. Conhecem-me há muitos anos e . . . Ou: conhecem-me há pouco tempo mas. . . Hoje no cabeleireiro. A senhora B, ali presente, perguntou se a menina A tinha aparecido ultimamente. E travou-se uma conversa sobre a referida A, em que muitas e variadas coisas (que só à própria A deviam interessar) foram ditas e comentadas. Depois a senhora B saiu e elogiou-se a senhora B contando-se também coisas muito simpáticas, mas que não tinham nada que ser apregoadas porque se referiam à vida particular da B. culpa de quem? Da A e da B (entre muitas outras, clientes, claro) que tinham contado ali a sua vida. Porque, está-se mesmo a ver, pensavam: “Comigo é diferente. Conhecem-me há muitos anos e. . . ” Ou: “conhecem-me há pouco tempo mas. . . ”5
O cabeleireiro é o referente que serve de isco e cuja função é conduzir a leitora ao território da interioridade, fazendo-a reflectir, e, em simultâneo, colocando-a dentro de si própria num processo de auto-análise que, em alguns passos, parece ser também autobiográfico – como se pode ver no uso do pronome pessoal “comigo”. Ou seja, em última instância, quase poderíamos dizer que se trata de uma reflexão individual, mas conjunta, ao mesmo tempo, na medida em que a narradora se serve de uma estratégia retórica que lhe permite, através do seu ponto de vista, tornar-se cúmplice da leitora, fazendo-lhe companhia e mostrando-lhe que o que lhe acontece a ela também pode suceder a outras mulheres incluindo a narradora. Acrescente-se que é essa mesma estratégia retórica que encontramos frequentemente nas observações que a cronista faz sobre a moda tora, 1976, pp. 275-278. 5 Maria Judite de Carvalho, Diários de Emília Bravo, org. Ruth Navas, Lisboa, Editorial Caminho, 2002, pp. 45-46.
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e que retratam um feminino, na maioria das vezes, fútil, ausente da realidade e sem consciência do seu papel social: Não sou contra a moda, longe disso. Mas estou cheia de curiosidade. Quem é que entre nós vai usar, esta Primavera, os tais hot pants de que hoje se fala nos jornais? As rapariguinhas, claro. Mas as mulheres mais velhas ou, perdão, menos novas? Mas as senhoras eufemisticamente fortes e que gostam de seguir as leis dos grandes costureiros? Porque, segundo diz Ursula Andress, os hot pants faz que a mini-saia pareça um sobretudo.6
Ainda no que respeita ao tema da moda, tal como em outros, encontramos de novo uma espécie de intromissão (digamos assim) no quotidiano das figuras femininas, mas com uma pequena nuance que se pauta por um olhar desabrido que frequentemente pretende assestar no ponto que se critica de forma violenta mas, apesar de tudo, humana: Esta Primavera, vamos ver estranhas coisas no capítulo moda. Não falando dos já tão falados shorts, muitas outras novidades se anunciam. Na praia teremos xailes franjados a condizer com os fatos de banho, na cidade teremos aventais de organdi, de cabedal, de tafetá, de cetim, com folhos ou com plissados. Claro que isto dos aventais só é mesmo engraçado para quem não usa avental. E Mariella Righini escreve no Nouvel Observateur: “As verdadeiras escravas, as que arrastam as chinelas atrás de homens tirânicos, as que fornecem milhões de horas de trabalho invisível e gratuito à sombra de caçarolas, talvez não lhes apreciem o humor. Para elas um avental é um avental”7 .
A preocupação pela problemática feminina é, portanto, uma constante da obra juditiana não só nas crónicas, mas também nas novelas e nos contos. Note-se que muitas das suas personagens femininas são, por assim dizer, pessoas sem saída em face de uma realidade que as 6 7
Ibidem, p. 19. Ibidem, pp. 40-41.
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oprime; são seres aos bocados, ou bocados de seres dispersos que não conseguem ajustar-se à realidade comum da vida – como sugere José da Costa Esteves: Maria Judite de Carvalho expos dans ses contes, nouvelles et chroniques, des faits divers, des morceaux de vies, des vies faites de morceaux (. . . ). Des viés où tout échoue et où rien ne va: l’amour, les espoirs, les projets. Des vies qui se fracassent contre des murailles insurmontables, car chaque Homme ne vit que pour lui-même et par lui-même, dans ses grandeurs et ses misères, dans le cocon qui l’enveloppe depuis sa naissance jusqu’à sa mort. Les trajectoires sont toujours parallèles et les rencontres fugaces ne font que mettre en évidence le choc des solitudes, dans une agitation vaine où aucune pièce ne trouve sa place dans le puzzle complexe de la vie8 .
Todavia, não é só a solidão ou a tristeza femininas que impressionam a pena da cronista, mas também as vidas das mulheres para quem aparentemente tudo corre bem. São mulheres sem ocupação profissional, a quem nada falta, que vivem com os seus maridos nas suas casas, onde recebem os seus amigos, mas onde, no fim de contas, o ato de viver é de plástico, porque essa realidade familiar existe em função do homem. Veja-se, por isso, como, no excerto seguinte, a voz da cronista se avoluma para exprobar situações que mostra conhecer bem e que, uma vez mais, visam colocar a mulher perante si própria e perante as suas responsabilidades: A emancipação das mulheres não interessa a todas, é o interessa! Não interessa mesmo senão a um número bastante restrito. Eu, por exemplo, conheço uma mulher, inteligente, culta, evoluidíssima, dentro de todos os problemas passados, presentes e futuros, mas que nunca abriu a boca sobre tal assunto. Sente-se perfeitamente como está, com um marido que ganha muito 8
José Manuel da Costa Esteves, La littérature portugaise contemporaine: le plaisir du portage, Paris, L’Harmattan, 2008, p. 73.
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Filipa Barata bem, numa casa muitíssimo confortável onde recebe frequentemente os amigos, que são todos eles gente excelentemente instalada na vida. Ora como é que uma pessoa pode desalienar-se, emancipar-se, promover-se, sem trabalhar, vivendo à custa de outrem? É que isso de promoção, feminismo, etc., implica entre outras coisas ganhar não para os alfinetes (. . . ) mas para o pão-nosso-de-cada-dia da pessoa, do casal, da família, pão esse que cada vez está mais difícil de ganhar. Ora isto implica necessidade de pensar duas vezes antes de tomar uma atitude. Pois não é verdade?9
Por outro lado, também se torna notório nas crónicas de Maria Judite o interesse pelos pequenos nadas quotidianos, que contribuem para a edificação de uma imagem temporal e de sujeito que em muito nos fazem lembrar os textos de Irene Lisboa, nos quais encontra, aliás, Paula Morão semelhanças com os da autora de As palavras poupadas: “Como Irene Lisboa, Maria Judite de Carvalho é mestre na arte de tematizar e reificar o tempo, tornando material e concreto o que parece subjetivo ou o que, de tão evidente, passa despercebido e não ganha, em geral, a dignidade de ser objecto de narração [. . . ]”10 . Atentemos noutro excerto: Nós, portugueses, somos exagerados. Nunca tivemos misses e, pelos vistos, passávamos perfeitamente sem elas. Ou tivemos e deixámos de ter, o que é o mesmo. Enfim, não nos faziam falta. Mas eis que de repente, senhores. . . Fala-se ainda não há uma ano de Ana Maria Lucas. Uns meses, portanto. Mas tem-se falado tanto que nos parece que a conhecemos desde criança. Agora, chegado que está – quase – o fim do seu reinado, outra miss surgirá. E durante os doze meses que se seguirem. . . Somos, na verdade, de um exagero. . . 9 10
Maria Judite de Carvalho, op. cit., p. 119. Paula Morão, O secreto e o real, Lisboa, Campo da Comunicação, 2011, p. 449.
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Imagens da nação. Diários de Emília Bravo, de Maria Judite de Carvalho
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Mais uma vez, podemos observar o olhar da narradora acompanhando o nosso, chamando-nos para apreciar o quadro do real para, no último instante, ainda que continuando a fazer parte de uma espécie de conjunto de observadores (composto pela narradora e seus leitores), se afastar um pouco, reservando para si um espaço solitário pontuado por murmúrios, como têm notado alguns dos seus críticos mais relevantes. O murmúrio é pois solitário e o seu modo textual de eleição é, muitas vezes, o monólogo que frequentemente se adensa na escrita juditiana, marcada por um discurso que se situa fundamentalmente ao nível da enunciação como refere José Manuel da Costa Esteves. Debrucemo-nos sobre o último excerto: Trata-se que chega a casa, o pai do Luís, e a mulher mostra-lhe o aviso para pagar a contribuição e diz-lhe que não há dinheiro que mais chore. Trava-se então entre ambos, o pai e a mãe do Luís, o diálogo que se segue. Pergunta ele: – Quando saímos à noite, não gostas que as rua estejam bem claras? – Está visto que sim. – Logo, é preciso pagar a iluminação pública. E, há dias, não ficaste muito zangada porque ias torcendo um pé numa cova que havia na calçada? – Está visto que sim, mas. . . [. . . ] E continua por aqui fora, ele, o pai a explicar, ela, a mãe a dizer: “Está visto que sim”. No fim, a senhora, já elucidada, diz: – A questão é que esse dinheiro seja bem aplicado. – Está visto que sim –, disse o marido por sua vez. Uma certa sensatez, eis tudo o que é concedido à boa senhora. Mas quem sabe, quem explica, é só ele, o pai. O Luís vai aprendendo desde cedo que é assim. Em casa e também na escola. Ele e todos os Luíses da quarta classe.
Para além da denúncia do papel da mulher na sociedade, do pequeno facto do quotidiano ou das crónicas que se constroem a partir de assuntos do próprio jornal ou revistas (sobretudo estrangeiras), entre outros, que muito contribuem para a composição de uma paisagem www.lusosofia.net
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urbana e nacional marcada pelas vicissitudes do tempo e da História, como tentámos mostrar, gostaríamos apenas de acrescentar que tendo Maria Judite de Carvalho começado a publicar no final dos anos 50 e, por conseguinte, em paralelo com outros movimentos como, por exemplo, o do neo-realismo, não deixa de ser curioso que a forma que encontra de mostrar o real se faça nos termos de num compromisso ético e estético que, neste sentido, não serve apenas para denunciar mas, sobretudo, para conduzir à reflexão e interpretação de um perfil cultural que é o nosso, português, onde o traço intimista da autora ocupa um lugar central.
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Considerações sobre literatura e sobre o feminino nas Páginas soltas da Seara nova de Irene Lisboa Rui Sousa1 ruidnsousa@gmail.com
Irene Lisboa foi uma das mais notáveis escritoras do século XX português, tendo mantido uma singular e multifacetada atividade de escrita enquanto forma de interação com o mundo e, ao mesmo tempo, de constituição de um espaço íntimo muito próprio a partir do qual organizará as suas observações sobre os mais variados aspetos do quotidiano. Considerada muitas vezes uma escritora das pequenas coisas e uma das grandes tematizadoras das mais íntimas instâncias da consciência individual ensimesmada, Irene Lisboa destacou-se também por uma regular colaboração na imprensa periódica do seu tempo, recorrendo muitas vezes a pseudónimos como o conhecido João Falco com que assinou as suas primeiras obras, tendo publicado em revistas e jornais como Presença, O diabo, Sol nascente, Cadernos de poesia e, sobretudo, dada a quantidade e diversidade das colaborações, a Seara nova. 1
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Como observa Paula Morão, a receção crítica da autora foi normalmente bastante favorável, tendo a sua obra merecido atenção constante dos mais relevantes nomes do contexto literário da época, como Régio, Gaspar Simões, Casais Monteiro, José Gomes Ferreira, Jorge de Sena, entre outros2 , que salientaram a originalidade e o talento literário da autora. O que contudo contrasta com a pouca circulação das obras que publicou e com alguns comentários, que documenta em obras como Solidão, acerca da suposta incapacidade para escrever obras com outro fôlego, como se o estilo fragmentário de Irene fosse não uma opção estética e crítica que deu a conhecer várias vezes no cerne dos seus textos mas um indício de menoridade literária. Algo que exigiria da nossa parte uma referência mais alargada às especificidades do discurso da autora, muito marcado por um constante trabalho de escrita a partir da elaboração projetada de um sujeito com fortes ligações à existência empírica mas que se enraíza sobretudo num amplo domínio de processos literários de índole autobiográfica. Salientemos apenas, próximos da ensaísta que mais se tem dedicado ao estudo da obra de Irene, alguns aspetos importantes deste projeto literário que, quanto a nós, permanece como um dos mais instigantes marcos de uma certa busca moderna pelo questionamento das fronteiras dos géneros literários e pela contemplação minuciosa da identidade individual colocada em relação com os dinamismos do mundo exterior. Considera Paula Morão que marcam esta obra dois eixos fundamentais, em permanente cruzamento nos textos: um mundo, lugar de estância ou a percorrer, cidade ou campo, mas sempre habitado; e um “eu” vivendo e passando nesse mundo, parte dele mas fora dele pela aguda consciência que tem da cisão temporal entre o passado recordado (e, portanto, re-presentificado, mas em posição de falha), o presente (insuficiente e banal, ele consome-se e assim se volve passado) 2
Cf. Paula Morão, Irene Lisboa. Vida e escrita, Lisboa, Presença, 1989, pp. 39-42.
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e o futuro (antevisto sem saída, mera repetição do que já é ou do que foi)3 .
Esta vertente profundamente introspetiva e consciente dos domínios sombrios da existência, marcada pela incompletude, pela efemeridade e por uma permanente sensação de estranhamento e de encerramento do sujeito no seu posto de observação, está bem presente na sua natureza de “eu” centrípeto, “não no sentido de um qualquer egoísmo, mas porque observa os outros e as coisas para melhor conhecer o seu próprio íntimo”4 . Maria João Reynaud considera existir justamente um “dualismo pulsional do sujeito, configurado neste vaivém entre o centro e a periferia”5 , o que permite situá-lo como alguém que se assume enquanto centro de observação a partir do qual contempla o mundo e ao mesmo tempo tem bem presente a consciência, quer do caráter periférico associado a muitos dos assuntos que aborda, quer da relativa periferia para a qual a sua obra foi relegada tantas vezes pela originalidade e singularidade que lhe são próprias. Ainda recentemente, no número da revista Relâmpago dedicado à autora, Joana Matos Frias remete para essa circunstância, lendo as considerações de Irene a respeito da relação entre literatura e os supostos temas banais que optou por explorar6 como sinais de um repensar do contexto literário português seu contemporâneo, “em cujo campo parece ter tido sérias dificuldades em 3
Ibidem, p. 18. Ibidem, p. 19. 5 Maria João Reynaud, “Irene Lisboa: a fala irradiante”, in Sentido literal. Ensaios de literatura portuguesa, Porto, Campo das Letras, 2004, p. 234. 6 Terá sido também essa atenção aos pormenores considerados menos nobres e de certo modo mais repugnantes e abjetos do quotidiano a propiciar a inclusão surpreendente de Irene Lisboa entre os nomes que Mário Cesariny integrou em 1963 na antologia Surrealismo-Abjeccionismo, evidenciando que também por parte dos surrealistas existiu uma recepção favorável da autora, talvez também pela constante independência estética que marcou sempre o seu percurso num contexto tão saturado de imposições doutrinárias contra as quais também o Surrealismo se insurgiu no momento em que se deu a conhecer organizadamente em Portugal e ao longo de toda a sua evolução. 4
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inscrever-se. Enquanto escritora, sim, mas sobretudo enquanto mulher-escritora”7 . Este texto terá em conta esses dois vectores a nosso ver centrais na obra de Irene Lisboa, a reflexão muito própria e constante sobre a Literatura e o questionamento da identidade feminina e do lugar de menoridade que lhe era conferida na sociedade do seu tempo, analisando-os em alguns textos publicados nas páginas da Seara nova entre 1929 e 1955 e antologiados por Paula Morão em 19868 . Lembremos, a este respeito, que, quer a autora – por exemplo através dos títulos das suas obras, em casos como Um dia e outro dia. . . – Diário de uma mulher e Solidão – notas do punho de uma mulher –, quer os seus principais críticos fizeram questão de salientar o facto de se tratar de uma mulher a escrever numa época em que isso era pouco comum9 , sobretudo atendendo ao tipo de textos e de temáticas que marcam a sua obra e as suas reflexões. 7
Joana Matos Frias, “Irene Lisboa: memória do banal, tentação do aquém”, Relâmpago, n.o 31/32, outubro de 2012 – abril de 2013, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, p. 95. 8 Desde já indicamos que as citações que faremos de textos da autora remetem para a edição Folhas soltas da Seara Nova (1929-1955), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986. Assim, indicaremos as páginas respetivas entre parêntesis em cada situação. Parece-nos que a escolha desta antologia é, antes de mais, oportuna por melhor evidenciar, na conjugação de diferentes momentos e secções antologiados a partir das páginas do periódico, essa natureza de puzzle em construção, a partir da soma de fragmentos de diferentes naturezas que vão tratando diversamente os materiais observados com que Paula Morão caractetiza a produção peculiar da autora no texto introdutório desta antologia (pp. 14-17). 9 Veja-se, por exemplo, que José Régio, comentando em 1937 a publicação dos dois livros de poesia da autora, fazia questão de distingui-la no contexto de “toda a literatura feminina [. . . ] nossa contemporânea” (Páginas de doutrina e crítica da “Presença”, Porto, Brasília Editora, 1977, p. 213); que José Gomes Ferreira, quiçá o mais destacado apreciador da autora entre os seus contemporâneos, se lhe tenha referido como “A MAIOR ESCRITORA DE TODOS OS TEMPOS PORTUGUESES” (“Introdução”, in Poesia I. Obras completas de Irene Lisboa, vol. 1, Lisboa, Presença, 1991, p. 17); ou que Óscar Lopes a considerou “a melhor escritora portuguesa, até meados do decénio em que morreu” (“Irene Lisboa: uma lágrima engolida no «comum existir»”, in A busca de sentido, Lisboa, Caminho, 1994, p. 210).
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Em 1935, a autora referia-se à própria Seara nova para descrever a especificidade do seu discurso e a sua tentativa de questionar e dar a conhecer diferentes perspetivas sobre o mundo, sobretudo aquele em que mais se demorava o seu olhar atento e analítico: Nesta nobre revista do pensamento contemporâneo português enceto hoje uma série de pequenos artigos. Escrevendo-os, eu sei que não ofereço soluções, vagas ou certas, para os problemas do espírito. No entanto, apresento (fazendo previamente uma vénia d’excuses aos leitores cultos, que todos são, desta revista) uma galeria de pequenos quadros de certas das minhas preocupações espirituais, ordinárias. Têm pequena extensão? Muito provavelmente, mas não deixam de ser preocupações, e tentativas de as exteriorizar e, portanto, generalizar. (p. 107)
Assinale-se, nesta caracterização, a defesa de uma escrita conscientemente fragmentária que, confrontando-se ironicamente com um determinado gosto dominante típico dos “leitores cultos” aos quais se dirige, se destina a estabelecer a ponte entre o universo íntimo da autora – as “minhas preocupações espirituais, ordinárias”, só passíveis de transmitir de acordo com o registo adotado – e o impulso comunicativo de “as exteriorizar e, portanto, generalizar”. No mesmo ano, a autora evidenciaria mais amplamente a sua fábrica criativa, construída com base nessas “impressões de leituras, sobre que, frequentemente, me apetecia fazer considerações” (p. 117). Volta, contudo, a assinalar o processo pelo qual essas considerações serão sujeitas à opção estilística de fugir ao excesso de “extensão” e de “aprofundamento” dos assuntos, optando por concentrar tudo na “mais simples memória” (p. 117), ou seja, no trabalho individual de reconstituição subjetiva dos materiais recolhidos no contato com o mundo e com as palavras alheias. Está em causa, portanto, essa situação por via da qual “a técnica da «reportagem»", entendida como Paula Morão indica, como confronto entre "registo de factos"e "efabulação", constitui "narrativa assumida por um sujeito que afirma a parcelaridade do seu ponto de vista"10 . 10
Paula Morão, op. cit., p. 24.
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Irene Lisboa estava também muito consciente da complexidade do meio literário português e das dificuldades inerentes a todos aqueles que tinham de tentar definir-se dentro dele. E, do alto da sua tantas vezes destacada independência face a escolas, a tendências estéticas e a correntes de opinião demasiado marcadas e rígidas, observa, em 1939: Uma coisa, porém, deve tolher o escritor português. É o meio literário. O escritor não pode deixar de pensar no leitor. Não é exclusivamente para ele que escreve, talvez, mas ele existe. . . existe com qualquer configuração e influência, e de qualquer lado que seja, vara-o. Ora, leitor em Portugal, leitor atento, só o literato. E este, mais que nenhum, é exigente, cheio de pruridos, miúdo e parcial. É um leitor que ora intimida, ora aborrece o escritor. Que o aperta, que o vara. . . Deve ser a falta de leitores desinteressados um tolhimento do escritor português [. . . ]. O nosso meio literário funciona como uma chocadeira. É uma coisa muito pequena! Dentro dela todos se aconchegam, creio que com medo uns dos outros. Dizerem bem ou dizerem mal uns dos outros vale o mesmo; todos se têm sempre reciprocamente debaixo de olho. (p. 197)
Poucos terão encarado com tal sagacidade a pequenez e maledicência típicas do meio literário português, mesmo num tempo como o de Irene Lisboa, em que se destacaram vários críticos de grande mérito. Como a autora deixa perceber nestas observações, mais do que o diálogo com o leitor – que tem de existir sempre, mesmo quando propositadamente se escreve em sentido contrário ao das suas expectativas e conceções estéticas consideradas padrão –, é muitas vezes essa dinâmica de mútua observação opinativa que tolhe a liberdade artística. São várias as referências que faz, nos seus textos, a comentários quantas vezes desajustados a que a sua obra foi sendo sujeita, do mesmo modo que os testemunhos recolhidos no recente número da Relâmpago denunciam a consciência amargurada que tinha do descrédito e
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esquecimento a que era votada pelos seus pares11 . Esta extrema lucidez estendia-se, também, à defesa de uma determinada forma moderna de escrever em clara dissidência face a uma certa tradição e aos seus gostos estéticos. Em 1942, ano em que se iniciou a publicação das Obras completas de Fernando Pessoa, um dos autores mais considerados por Irene Lisboa, e que muitos apontam como crucial para a introdução do Surrealismo em Portugal por via da ação de António Pedro com a revista Variante e a novela Apenas uma narrativa, a autora de Solidão afirma, em perfeita sincronia com essas duas vias de abertura para uma renovação da literatura portuguesa: A literatura tende para um amolecimento de regras, para uma busca de novas formas de expressão e de exploração da realidade, que afinal excita os seus apreciadores. Este relaxe de regras ainda não interessa o vasto público, interessa mesmo uma sua minoria. O resto dele toma-o por incapacidade sintética ou de efabulação, e não lhe pega. . . (p. 346).
E, na mesma crónica, significativamente intitulada “Divagações sobre Literatura”, assume-se como representante das novas correntes de pesquisa sobre a natureza humana (e assinale-se a atenção que dá à ideia de novidade, um dos atributos dominantes do imaginário vanguardista que é, quanto a nós, o que mais transparece nas suas ideias) e, assim, de uma certa forma de teimosia que rompe com as fronteiras do que é validado e consumido pelo público em geral e com o romance enquanto género consagrado em especial: O que eu quero é ocupar-me da nova – suponhamos que nova forma de tratar literariamente os casos humanos, de contar a vida. Porque depois do romance alguma coisa ainda havia de 11
Leia-se a este respeito, por exemplo, no sempre atencioso e informado texto de Luís Amaro, a referência à sua reação ao inquérito publicado na Tetracórnio sobre os autores e livros mais relevantes da primeira metade de Oitocentos, em fevereiro de 1955 (Relâmpago, n.o 31-32, outubro de 2012 – abril de 2013, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, pp. 125-127).
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Rui Sousa vir! Que pode fazer o escritor fora do romance, querendo impressioar sem deformar? Não pode contar com o gosto público, que ainda não está afeito ao género, nem com a chamada publicidade, que é comercial. Pois que faz? Não conta com elas e teima. . . Sonha com o que há para além do feito e conhecido. Isto é, interessado por um modo de trabalho, experimenta-o. (pp. 351-352)
É o mesmo ímpeto original, ciente das circunstâncias com que lida e sobretudo sem quaisquer rodeios ou barreiras, que caracteriza as suas observações a respeito da condição feminina e do lugar que os homens atribuem à mulher na sociedade e, em particular, no meio literário. É extremamente interessante a busca de um discurso sobre as mulheres que fuja a qualquer tipo de estereótipos e, em função disso, que não abra espaço a qualquer tipo de marginalização gratuita. Em 1929 insurge-se contra um texto que procurava promover com fins educativos e formadores um imaginário de mulheres tidas por “senhoras, modernas, desenvoltas”, em claro contraste com o imaginário das donas de casa escravas do lar e educadoras das crianças, por se sentir “mistificada, mesmo à distância” (pp. 47-48). Do mesmo modo, em 1937, numa crónica intitulada “Jogo de disparates?”, produz um fascinante e surpreendente diálogo consigo mesma a respeito das diferentes tipologias de mulheres e das virtudes e defeitos que poderão caracterizá-las, não descurando portanto nenhuma das vias de um debate demasiado complexo para ser encarado com generalizações, mesmo que a definição do espaço a partir do qual comenta denuncie as suas inclinações: Se desaparecerem mulheres destas, a fina flor das sociedades, perde-se, de facto, uma real graça da terra. Outra a substituirá, pensa-se. Mas quem sabe? Oiço falar esta mulher. É inteligente. Tem uma gentil vontade de tudo entender, de tudo aceitar. Estabelece cortêsmente uma tácita posição de acordo connosco. Os seus gestos são sóbrios e amáveis. Mostra no entanto gostar de novidades, de movimento, de mudanças. Mas sempre o riso e a
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boa cortesia nas suas expressões. Aqui está uma dama, pensamos sem querer. Há-de encantar as suas visitas e fazer a felicidade do marido, que aliás ela sinceramente ama (. . . ). É verdade que à minha interlocutora falta uma vida mental superior. É a bem dizer ela própria que o dá a entender. Interessa-a a educação dos filhos, mas não entende da sua problemática. . . e de outras coisas tal qual. Mas o seu interesse ocasional, desportista, e apesar disso vivo, pelas coisas do espírito, a sua atitude de subordinação ao eventual conhecedor de assuntos, a graça das suas opiniões cautelosas, do seu bem ouvir, do seu sorrir, esta amabilidade que só realmente uma dada casta de mulheres é capaz de cultivar e manter, são valores intocáveis. . . é arte, afinal. (pp. 150-151)
A opinião de Irene Lisboa acerca da veracidade das considerações dos homens que parecem respeitar o espaço e a identidade femininas é também muito moderna, sobretudo atendendo à época em que publicou estes textos na imprensa. Em 1942, observa, com o seu desassombro característico: Quando os homens dizem (não o dizem mas escrevem-no, que é muito menos espontâneo e sincero) que respeitam a opinião das mulheres, mentem. Porque, se a respeitam, involuntariamente se lhe sobrepõem. Note-se que onde há homens as mulheres são muito pouco ouvidas. Eles é que estabelecem a opinião. Reparese na curiosidade com que os homens se ouvem uns aos outros! E mesmo lutando e opondo-se se fortalecem, reciprocamente. O interesse cortês, quando é cortês, que dispensam às mulheres parece debilitá-los. E se as ouvem nem as crêem! (p. 374)
Transportando a problemática da reflexão para o seu caso particular, a autora expressa por outra via as suas constantes observações a respeito da dificuldade de se integrar nos meios literários e intelectuais com que não consegue coadunar-se – “Por isso tem já havido quem se admire de eu falar tão pouco diante de gente cotada, de homens www.lusosofia.net
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que pensam. Como ter coragem de falar se eles é que sabem sempre tudo e açambarcam as categorias?” (p. 374). Acabará contudo por dar abertura à grandeza de carácter que lhe era tão habitual, evidente na isenção com que assume que “talvez [. . . ] a atitude superior não seja afinal um apanágio masculino” e que há mulheres que também “se sentem senhoras da opinião e acham o mundo alheio sempre reduzido e insignificante”, mesmo que em muito menor número por comparação com os homens (p. 375). Outros aspectos poderiam ser tidos em conta na análise das diversificadas considerações de Irene Lisboa a respeito da sua criação artística e da condição feminina que assume como mais um traço que contribui para o estranhamento de que foi alvo. Concluiremos com aquela que nos parece uma das mais eloquentes afirmações de oposição aos estereótipos e paradigmas estagnados com que se confrontou e que, numa atitude afim das assumidas pelas vias modernistas de que faz parte, nunca deixou de denunciar e de atacar com as suas vigorosas pedradas verbais. Trata-se de um texto de 1939, intitulado bem ao seu jeito “Ao acaso”, tendo como um dos temas apresentados “A mulher que escreve”, no qual conjuga a discussão sobre a criação literária e o imaginário paternalista e condescendente com que se teciam os falsos elogios das mulheres que se dedicavam à escrita: Todos acham que, sim senhor, uma mulher escrever é engraçado, é curioso, é mesmo admissível. Porque não hão-de elas escrever em vez de fazer crochet? Dê-se essa pequena liberdade à mulher, uma liberdade bonita e inocente! O escrever feminino é sempre tão ligeiro. . . Uma mulher pode bem escrever para se distrair. E até para provar que é inteligente! Há famílias que se honram com isso! Com os dotes chamados masculinos das mulheres [. . . ]. Mas. . . como a pena, a arte literária das mulheres, aos olhos de muitos homens, se confunde ainda com a do crochet, com os instrumentos de fazer passar o tempo, o que elas escrevem é sempre tacitamente irrespeitável. Frivolidades! Nunca coisas que detenham os espíritos sérios, e muito menos de propaganda, de expansão. www.clepul.eu
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Na gente bem intensionada continuará somente a persistir aquela bondosa pena de que certas mulheres não sejam homens! Porque aos homens é que é dado o pensamento e a acção. Às mulheres, a frivolidade. (pp. 208-209)
Que este texto sirva, antes de mais, para prestar a devida homenagem a esta extraordinária voz autoral, uma das mais lúcidas e refinadas do panorama literário português do século XX e uma das que, como facilmente se poderá depreender da leitura de crónicas como as que transcrevemos, melhor expuseram as contradições e bloqueios de que a cultura portuguesa ainda vai sofrendo, dignificando como poucas a identidade feminina em toda a sua inteireza.
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Referências bibliográficas
AMARO, Luís, “Um dia e outro dia. . . Lembranças avulsas de Irene Luísa Dacosta – Cartas a Irene Lisboa”, Relâmpago, n.o 31-32, outubro de 2012 – abril de 2013, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava, pp. 123-136. FERREIRA, José Gomes, “Introdução”, in Poesia I. Obras completas de Irene Lisboa, vol. 1, Lisboa, Presença, 1991. FRIAS, Joana Matos, “Irene Lisboa: memória do banal, tentação do aquém”, Relâmpago, n.o 31/32, outubro de 2012 – abril de 2013, Lisboa, Fundação Luís Miguel Nava. LISBOA, Irene, Folhas soltas da Seara nova (1929-1955), Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986. LOPES, Óscar, “Irene Lisboa: uma lágrima engolida no «comum existir»”, in A busca de sentido, Lisboa, Caminho, 1994. MORÃO, Paula, Irene Lisboa. Vida e escrita, Lisboa, Presença, 1989. RÉGIO, José, Páginas de doutrina e crítica da “Presença”, Porto, Brasília Editora, 1977. REYNAUD, Maria João, “Irene Lisboa: a fala irradiante”, in Sentido literal. Ensaios de literatura portuguesa, Porto, Campo das Letras, 2004.
O incoercível arcano matricista: a independência feminina pela pena de Natália Correia Sofia Santos1 oitofevereiro@gmail.com
Natália Correia exerceu sobre a literatura e cultura portuguesas e, especialmente, sobre as mulheres que se interessaram em alterar a sua imagem intelectual e social, uma mudança de consciências progressivamente acalentada pela poesia mas também pela lógica da justiça humana. Os estudos que, ao longo da sua carreira, foi realizando sobre a mulher enquanto ser biológica e sensitivamente excecional não pactuaram com as limitações gregárias de um feminismo linear e disjuntivo. Teria sido tentador iluminar o Portugal salazarento com um libelo revolucionário que reclamasse para as mulheres o que lhes havia sido negado ao longo de toda a sua história. Tê-la-á atraído também a possibilidade de elencar as qualidades intelectuais requeridas à mulher para sublimar os seus dotes venusianos, que, ao longo da história ocidental, lhe permitiram subjugar – como poderão testemunhar documentos literários e de cariz social – a fragilidade masculina, concluindo 1
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superficialmente que a superioridade das filhas de Eva havia sido recalcada por estratégia acomodatícia. Teria sido fácil seguir o caminho tomado por muitas feministas que, ainda assim, puderam, inscreverse nos anais da História com a certeza de que trabalharam para que direitos fundamentais e inalienáveis emergissem das suas vozes forçosamente dulcificadas, seja escrevendo num convento, num periódico, educando os seus filhos ou valorizando-se à margem de uma sociedade paternalista a partir de intervenções públicas que lhes eram permitidas. Qualquer destas esferas de de atuação partiam, contudo, de uma premissa em comum: diferenciar a mulher do homem e notabilizá-la no que respeita à sua proclamada superioridade biológica e sensitiva. Não interessava a Natália segregar dois seres, e as suas realidades correspondentes, que, no seu Romantismo eletivo, diga-se surrealista, foram criadas para nascer e perecer juntas. Para Natália, o homem e a mulher deveriam comungar as suas idiossincrasias intelectuais e antropológicas sem que concessões ou condescendências fossem feitas no que a cada um falta e que o outro complementa. Considerando a extensa colaboração periodística que Natália Correia desenvolveu ao longo da sua carreira, selecionámos um conjunto de crónicas que a autora publicou numa das secções do semanário Sol, entre 26 de julho e 8 de novembro de 1947, intitulada “Breve História da Mulher”, mais tarde reeditado sob a designação Breve História da Mulher e outros escritos, acrescentando textos publicados até ao 25 de abril de 1974. Do estudo que Natália desenvolveu acerca da imagem da mulher na sociedade ao longo dos séculos, emerge a evolução da consciência da própria autora relativamente à escolha dos focos problemáticos que analisa, bem como o maior ou menor distanciamento sobre os progressos e retrocessos de que foi alvo a importância ou igualdade da mulher dentro da esfera social. Esta evolução é já sintomática de uma eminente mudança sociopolítica no país. Embora nos concentremos, por comodidade de análise, no formato impresso do volume reeditado, há que relembrar a simbologia da escolha de Natália em publicar os seus pensamentos e estudos sobre esta temática em particular num meio
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como o da imprensa escrita, tendo em conta a significativa e paulatina abertura, ainda que circunscrita, à liberdade de expressão durante os tempos de Ditadura (até à sua definitiva debilitação) por meio de sensíveis processos estilísticos que camuflavam os traços mais pronunciados de determinadas teorias mas cuja força permanecia inalterada mediante a crítica cuidada da autora. Como afirma Maria Teresa Horta acerca deste conjunto de crónicas: “ao levantar a questão feminina nos termos em que o fizera, ela subvertera um dos mais intocáveis tabus do Estado Novo que, seguindo os princípios da Alemanha nazi, exigira a mulher na cozinha, na sala, e no quarto das crianças”2 . Deste conjunto de crónicas, fixámo-nos nas aproximações e distâncias que a autora manteve em relação ao feminismo enquanto "produto"cronologicamente demarcado bem como às suas consequências numa sociedade ainda cética no tocante ao papel da mulher enquanto dínamo intelectual e social. Ao feminismo a autora opôs o conceito de “matricismo”, uma consciência cultural profunda que elege as idiossincrasias físicas e intelectuais da mulher como férteis de vida. Notamos ainda que este é um termo linguisticamente flutuante em Natália Correia, assumindo, para além do conceito socializado e politizado de “matricismo” (o mais próximo de uma doutrina arquétipica libertária), uma noção ontológica substantiva, como na obra poética Mátria (1967), e uma entidade institucional, como sugere a expressão “matriarcado”, por complemento (e não oposição) ao “patriarcado”. Das sombras primevas em que Natália inicia o seu estudo, antes de Beauvoir ter mudado a história da cultura com Le deuxième sexe, vemos despontar os princípios fundamentais e inalienáveis do Matriarcado, arcano oracular de toda a criação terrestre e divina (porque a autora acreditava na génese celeste e sagrada do ser humano3 ), de que 2 Maria Teresa Horta, “Prefácio”, in Natália Correia, Breve História da Mulher e outros escritos, 2.a ed., ed. Zetho da Cunha Gonçalves, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2003, p. 14. 3 “Lembro-me de que os terrestres costumavam dizer que os homens não eram deuses, frase esta que se tornou uma espécie de lema moderador da arrogância dos investigadores, quando estes começaram a recear que a ciência fosse pura e simples-
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a mulher, ente mitificado e geratriz perpétua de toda a criação, era representante. Natália alimentou a sua propulsão revolucionária partindo desse conceito antropológico e acalentou um projeto cultural que permitisse à mulher reverter algumas das consequências desse imparável processo histórico, reeducar as mentalidades e reposicionar-se culturalmente. Em entrevista ao Expresso, a 8 de maio de 1982, a autora afirma: Não me interessa o feminismo como caricatura das qualidades femininas. (. . . ) Eu defendo um regime feminista de cultura. Há que criar zonas de desvirilização que implantem os valores femininos no sentido de fazer cair os padrões da cultura judaicocristã. Uma posição matrista em vez de feminista.
Embora Maria Teresa Horta considere Natália uma “feminista encoberta”, por com as feministas partilhar “princípios, ideias, urgências e lutas frontais”, o traço mais importante da atuação da autora centrarse-á, como referiu a escritora feminista, na refutação de “injustiças sexistas, descriminações, mordaças, passividades e obediências impostas desde o berço”4 , uma posição intelectualmente demarcante face ao excessivo poder do homem, mas um método de pensamento que Natália considerava necessário por haver ainda muito a ser reconhecido, destrinçado e trabalhado relativamente ao papel que as mulheres exerceram na sociedade. Numa crónica do Diário de notícias, de 11 de novembro de 1983, a autora reitera isso mesmo: Eu não sou feminista no sentido clássico de que a mulher é que vale e o homem não, nem pensar! Mas volto-lhe a falar da exaustão do poder. O homem meteu-se num labirinto. Nós descansamente a potencialização do caos. Pretendiam assim os homens esquivar-se ao terror que lhes infundia a sua intuição de serem deuses porque – sei-o hoje e por experiência própria – é nisso que reside a sua miséria e a sua impotência”. Natália Correia, “Barbo”, in Contos inéditos e crónicas de viagem, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2005, p. 63. 4 Maria Teresa Horta, “Prefácio”, op. cit., p. 15.
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mos muitos séculos. A mulher tem um viço, tem reservas em si, tem energias armazenadas que o homem foi perdendo.
Ao percorrer as várias etapas da história do Ocidente, Natália exige para consigo mesma uma consciente avaliação das condições de vida da mulher a par de uma escrita racional e lógica, dir-se-ia temperada pela vontade de abrir as mentes dos que sempre a impediram a ela, enquanto intelectual, de contribuir para a evolução social, concentrando essa tarefa num sentido de dever para com a mulher no que ela tem de matricial na expressão da liberdade e da poesia e não tanto numa catalisação ideológica e exclusivamente passional. Pensando, assim, numa reeducação das mentalidades femininas portuguesas, a autora percorreu, cronologicamente, os vários trajetos sociais e políticos em que a mulher se destacou pelo combate na defesa dos seus direitos, sem esquecer, no entanto, as consequentes prostrações e perversidades que, em meio de uma mudança que urgia desde de que a mulher tomou consciência do seu poder intelectual (a partir da Idade Média), a fizeram desviar-se de uma tomada de posição mais essencialista e intelectualmente pura. Começando com a noção que para a autora é essencial, o matricismo, na sua componente institucional, o matriarcado surgiu “Nas sombras da pré-história”5 e ancorou-se ao conceito gregário de família desenvolvido pela mulher-mãe que, por imposição biológica (não deixando de ser emocionalmente evolutiva), firmou um sentido tribal, ou se quisermos, comunitário, a partir de laços de legitimidade e pertença física encabeçados por um princípio da sucessão, conjugando a sua propulsão fundadora com o facto de “o homem primitivo, ainda parente próximo do pitecoide com caracteres físicos do macaco, desconhec[er] o ciúme, primeiro laço e limite da família”6 . Será interessante notar aqui a subtileza distintiva estabelecida por Natália entre o sentido agregador da mulher, a partir de um princípio biologicamente superior que ela abraçou enquanto verdade comunitária, inalienável mas geradora de 5
Título da crónica com que abriu a secção no jornal Sol e, também, na antologia. In Natália Correia, Breve História da Mulher e outros escritos, pp. 29-34. 6 Ibidem, p. 30.
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afeto, e o do homem, sobretudo possessivo, demarcando a sua atuação a partir de uma imposição afetivamente dominadora, de carácter receoso como é o do ciúme. Assim, para Natália, o “matriarcado não foi pois, como certas feministas proclamam, uma conquista da supremacia feminina, mas antes a necessidade de entroncar a família numa linha de legitimidade”7 . Porém, e ainda que pertencesse à mulher o direito de assegurar a governabilidade de uma tribo ou comunidade, a força dos laços biológicos matrimoniais e familiares que asseveram uma sucessão legítima não poderiam competir com o desígnio de comando masculino, detentor de uma responsabilidade político-social que jamais seria transmitida à mulher. Juntamente com o paulatino desenvolvimento dos poderes governativos e políticos, a “monogamia feminina, sociedade privada e escravatura são sinónimos que correspondem ao advento do patriarcado”8 . A mulher começou, assim, a perder a sua importância primeva e a sua capacidade de intervenção social dentro de uma comunidade com princípios políticos e administrativos já fortemente demarcados. Ao mesmo tempo que condições de imposição social e política começavam a alinhar-se a partir do domínio masculino, o patriarcado reforçar-se-á a partir do momento em que a mulher se tenta nivelar económica e socialmente com o homem, num inglório esforço de valorização pessoal que acabou coartado pela institucionalização e legalização de regras sociais e culturais que procuravam anular as ameaças à supremacia masculina. Natália resume incisivamente o crescimento interior subversivo perpetrado pela mulher a partir do momento em que a sua liberdade ativa e intelectual foi recalcada em favor de um patriarcado medroso e cioso das suas conquistas. A partir do momento em que a mulher se tornou propriedade privada do homem, Passou a operar-se nela, necessariamente, um longo processo de castração mental e um recalcamento de paixões que concentradas tomam por vezes aspectos alucinantes de perversidade. A superabundância de fantasia que lhe atribuem não é mais do que 7 8
Ibidem, p. 32. Ibidem, p. 33.
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o hábito silencioso de conversar com ela própria, de longas digestões mentais, sob o olhar vigilante do companheiro, que vinham emprestar à sua vida obscura asas leves, prestes a erguer um voo de liberdade. A dissimulação foi a armadura com que revestiu o peito frágil na luta desigual dos sexos. E até mesmo essa astúcia, que como um sentido oculto na mulher, não é ingénita, pois foi adquirida no treino antigo de espiar na sombra, fechada na concha do silêncio imposto, o gesto pronunciador duma nova ameaça. A insuficiência de que a acusam, o desequilíbrio e a perversidade que lhe atribuem e que tanto tem servido os desígnios dos que lhe limitam a acção, mergulham as raízes nesses tempos recuados, como um eco abafado de revolta pela mais injustificada das degradações9 .
Não será de todo estranho que ao longo da emergência das instituições religiosas a mulher, exaltada enquanto genetriz, considerada a sua única capacidade, limitada a um estereótipo sexual circunscrito, meramente representativo, começasse a ser interpretada, avaliada e considerada apenas consoante esse ideal sexual e os seus valores enquanto ser pensante e sexualmente libertário oprimidos e proscritos. Votada a uma representatividade exclusivamente sexual, e de acordo com os parâmetros definidos pela religião, qualquer manifestação exterior a essa sexualidade meramente procriadora (assexuada) era demonizada e anatematizada. Mas tanto impossível foi contrariar a natureza sexual da mulher, sua inteligência e sensibilidade quanto foi inevitável a estigmatização das suas capacidades como nefastas e exclusivamente voltadas para a corrupção e contaminação da pureza masculina, mais do que controladora, saneadora. Perversamente, a mulher começou a ser vista como ser dissimulado e impuro que exibia gratuitamente as suas qualidades sensuais e a sua sensibilidade, arma dissimuladora e astuta. Estas foram, de facto, características que as mulheres acabaram por abraçar enquanto possibilidades libertadoras e distintivas, como fizeram, na Grécia, as hetairas, seres intelectual e sexualmente excecionais 9
Ibidem, p. 34.
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que mereciam o respeito de todos os homens, inclusivamente políticos, mas que passaram a ser odiadas pelas mulheres que, honestamente, se circunscreviam aos grilhões impostos. Difícil será classificar uma hetaira, mulher que quebrava os laços do gineceu e se entregava a uma exploração libertária do seu corpo e mente, ao desvelo dos mistérios do conhecimento do corpo e do espírito. Natália nota a tremenda contradição perpetrada na sequência da criação desta nova classe de mulheres que acabou não por estender a sua influência e conhecimentos por toda a população feminina mas que se manteve reclusa numa torre elitista: Para ser hetaira, a mulher tinha de quebrar a sua reclusão doméstica e a intimidade das famílias ficava-lhe para sempre vedada. Só depois disso é que podia frequentar a Academia, o Liceu e as outras escolas onde se ensinavam as ciências. Estranha e melancólica ironia! Era preciso merecer o desprezo das mulheres honestas que se estiolavam entre as torres altas do gineceu, para gozar o privilégio de cultivar a inteligência e brilhar no Aerópago do Espírito10 .
No entanto, mais do que merecer o desprezo das mulheres-família, é importante salientar o aspeto de que a mulher libertária nem mesmo assumindo-se como ser completo consegue desvincular-se do homem pois para se distinguir teve de o fazer em contraponto ao símbolo por que é pautada a regra e não enquanto detentora de direitos específicos à sua condição. O Amor, qualidade maioritariamente identificada com a sensibilidade e qualidades sensuais femininas, serviu sempre como moeda de troca pelo respeito que lhe era legítimo por nascença. Passando pela evolução social e intelectual representada pela “hetaira” grega, e pela subversiva divinização que representou a mulher egípcia, reclusa de uma imaterialidade onírica e “joguete da alucinação animista dos que sobrepõem às solicitações, as incertas bem-aventuranças dum futuro celeste”11 , a mulher romana, por outro lado, repre10 11
Ibidem, pp. 45-46. Ibidem, p. 55.
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sentaria para Natália o zénite do progresso social e sexual, a mais respeitada de todas as mulheres pelo aspeto de lhe ser permitido participar da vida citadina, seja cultural, seja legal. Para Natália, a mulher romana conseguiu reunir num único conceito a cidadania pois, tal como o homem, era associada aos interesses, falhas e glória comuns, e representava ainda o poder ancestral que lhe havia sido confiado pela natureza, elevando o matriarcado a norma institucional através de um tribunal doméstico que, embora presidido pelo marido, zelava e defendia os interesses da mulher. O Amor e as suas características venusianas deixaram, por enquanto, de fazer parte da legitimação da mulher enquanto ser distintivamente válido, cuja sobriedade e nobreza espelham a grandeza do mais grandioso império do Mundo. Com a queda de Roma iniciou-se, também, a queda da imagem da mulher, agora ancorada aos ideais cristãos e a uma nova era espiritualizadora. A mulher regressou aos seus atributos inefáveis, eminentemente religiosos como nos haviam sugerido as matrizes ancestrais de uma religiosidade emergente. Afirma Natália que no cristianismo, a mulher foi “transplantada da rude paisagem da terra para o reino celeste, símbolo de todas as virtudes que a glória do céu reivindicara, brotou do coração empedernido do homem um poético sentimento de respeito que a coroou dum resplendente prestígio moral”, mas que, ao mesmo tempo, “passou então a ser execrada e exaltada”, “[e]xecrada no seu atributo carnal, como sendo um dos inimigos da alma – mundo, diabo e carne. Exaltada na sua substância anímica, que sendo fecundada pelo Espírito Santo dela fizera nascer o Verbo”12 . É desta excessiva dicotomização das qualidades representativas da mulher que surgirão os maiores equívocos na luta pelos seus direitos cívicos, políticos, sociais e intelectuais, tendo em conta que, ao longo da história, devido a uma forte repressão e vigilância social imposta, na sua maioria pelo homem, foi difícil para a mulher desvincular a reivindicação dos seus direitos da lógica de castas sexual. É neste ponto que, para Natália, se concentra a principal falácia do feminismo, particularmente o mais atuante, que acentuou os hia12
Ibidem, pp. 72-73.
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tos entre ideais revolucionários femininos e masculinos e fez esquecer que o problema social era apenas um, o do progresso e desenvolvimento humanos, que os verdadeiros revolucionários sabiam identificar na isenção dos seus valores e despersonalização dos seus dramas – o bem superior que representavam: Se, com razão, por vezes, a mulher acusa o homem de opor obstáculos à conquista das suas reivindicações deve, pelo contrário, reconhecer a nobre isenção dos verdadeiros revolucionários que na cúpula da efervescência das ideias, conceberam leis mais completas, feitas de seres humanos para seres humanos, e não de opressores para oprimidos13 .
Ainda que ao fim de séculos a estrutura social predominantemente regida pelo homem tenha sido quebrada (ou subvertida, ainda numa fase primária) graças ao estiolamento de determinados sistemas viciosos, até lá a mulher não conseguiu afastar-se de alguns dos privilégios que a irresponsabilidade da sua não-existência social lhe oferecia. Pois “[n]ão fora o cansaço que fatalmente deteriora o poder e é de admitir que a mulher continuasse a gozar o doce fruto de uma aparente submissão que a ilibava dos pesados encargos de decidir e tomar a iniciativa”14 . Tanto que ainda hoje se torna complicado destrinçar a qualidade subtil de uma reforma de valores justa, independentemente do sexo de quem a beneficia, da efervescência de um necessário abalo das consciências adormecidas sem que a emancipação da mulher passe por uma efetiva e transtemporal condescendência, como tem sido até agora tradição, sem a necessidade de um abalo excessivo e iconoclasta dos princípios por que se regeu a instituição masculina, que no desconcerto de algumas demonstrações, puseram também em causa os valores humanos. De facto, como esclarece lucidamente Natália, “não foram [as] manifestações esporádicas a grande alavanca da emancipação feminina, mas sim os filósofos revolucionários que postularam uma 13 14
Ibidem, p. 103. Ibidem, p. 133.
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radical revolução de valores, onde implicitamente cabia o problema político e jurídico da mulher”15 . Algumas das mais atribuladas manifestações e reivindicações femininas acabaram por, subversivamente, ser mal interpretadas devido à sua desorganização e efervescência, a uma cegueira, por vezes indomável, de ultrapassar etapas que, à luz dos Direitos Humanos, não deveriam nunca ter existido mas que necessitam agora ser metodicamente destrinçadas, combatidas e, acima de tudo, refutadas. Natália exemplifica com o caso das sufragistas inglesas a descredibilização a que a palavra “feminismo” foi votada: As sufragistas inglesas, assim chamadas por defenderem a reivindicação do sufrágio feminino, prestavam-se, por uma exacerbada exteriorização do seu idealismo, a críticas vizinhas do motejo. Acusavam-nas de ter introduzido o histerismo na política, de fúrias envenenadas por despeitos mesquinhos, de possessas entregues ao desenfreamento de paixões, recalcadas, até então, por falsos pudores. Aceitamos, parcialmente, a verdade desta aguarela pungente. Não nos repugna acreditar a natural indisciplina e perturbação da grande massa feminina, sem uniformidade de formação cultural para pesar na balança do raciocínio as directrizes revolucionárias do seu movimento. A selecção é sempre um fenómeno evolutivo que obedece ao esclarecimento de determinadas ideias. E aquelas que se haviam congregado pela acção irracional do “choque en retour”, trazendo para a arena política espectáculos lancinantes de dramas pessoais, sentiram-se unanimemente excluídas pelo curso natural dos acontecimentos dirigidos para um objectivo superior.16
O feminismo, um movimento que, nas suas raízes ideológicas, problematiza questões que tocam não só a mulher mas toda a humanidade – porque os direitos reivindicados, possuindo um beneficiário principal, se alargam a todos aqueles que, até agora, não puderam fazer parte de 15 16
Ibidem, p. 103. Ibidem p. 116.
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uma sociedade política, intelectual e económica livre, com iguais direitos para todos –, tem sido, até agora, desvirtuado nos elementos básicos mais reformativos e associado a uma atitude forçosamente divergente, arbitrariamente ideológica, como diz Natália, um “Abre-Sésamo” que “prometia o fácil acesso a uma finalidade imediata”17 , sem ainda conceber que “[o] carácter específico dos assuntos que directamente interessam à mulher deve-se a um vício inicial que, estruturando determinadas esferas da sociedade num clima económico independente, autonomiza a questão, como se o problema social não fosse só um”18 À parte todos os excessos que o feminismo procurou legitimar (e de que Valerie Solanas, como veremos, é um exemplo), o feminismo ainda hoje em dia agrega problemas que advieram de uma “insofrida ânsia de quebrar as algemas, desordenadamente associada à estultícia, à fundamental ignorância dos métodos eficazes para a realização de tal desiderato”, que levaram a mulher a agir desordenadamente quando, “[s]ubmetida a regras de vida quase conventuais, a perspectiva de exercer certas liberdades morbidamente incubadas na sua imaginação doentia, deslumbrava-a e entontecia-a, incensava-lhe o sonho, sem lhe mostrar o caminho recto das realidades a cumprir”19 . No entanto, este problema de mentalidades e de cultura passa, na opinião de Natália, por um problema bastante concreto, o económico. Acredita a autora que: Só tomando parte activa na vida económica do país é que a mulher pode com ciência pronunciar-se sobre os problemas constitucionais. Só no pleno uso da sua independência económica pode adquirir conhecimentos e cultura prática que a habilitem a intervir na orientação política e organização social. E só apenas nestas circunstâncias, redimida pela ética do trabalho, de vícios mentais derivados da ociosidade que lhe permite a sua dependência económica do homem, se lhe pode exigir uma moral mais perfeita, filiada na livre escolha do companheiro, sem estar co17 18 19
Ibidem, p. 117. Ibidem, p. 117. Ibidem, p. 120.
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acta por instantes necessidades materiais20 .
À parte as questões práticas, seriamente relativas a uma emancipação ideologicamente convicta, a par, infelizmente, de uma emancipação não tanto feminina mas femininilizada, afrodisíaca, em que o abraço envolvente de uma sexualidade reprimida tanto agrada aos homens como os assusta, vemos ainda hoje emergir, embora de forma mais discreta, um gesto de raiva calada que se manifesta dogmaticamente, como numa simples tomada de posição. Não terão sido alheios a esta herança, casos como o de Valerie Solanas, a criadora do Manifesto SCUM, que pretendia extirpar todos os homens da superfície terrestre, como a derradeira representação de um feminismo estulto e perverso. Natália considera que ao tentar matar Andy Warhol, motivada também por razões pessoais, reivindicando naquele ato o apoio da comunidade feminina, Solanas tentou eliminar “o objecto apaixonante da subjetividade feminina: o homem”21 , descredibilizando uma utopia que pretendia defender a total independência da mulher. Porém esse conceito de independência permanecia ainda ombreado com o medo da convivência e da diferença. A recusa de Natália em aceitar o Manifesto SCUM acentua a sua ideologia eminentemente voltada para o amor agápico, eletivo, ideal; uma realidade acima de qualquer tendência sectária, política ou sexual; amor exclusivamente centrado na união entre homens e mulheres mas que, do ponto de vista generativo, só poderá provir de um universo puramente matriarcal. Ao contrário do que afirma M. Teresa Horta, que deteta em Natália um desconforto no reconhecimento da possibilidade de Solanas ser mais parecida consigo do que poderia querer aceitar, tanto na personalidade como na força que emprega na defesa do estatuto das mulheres (uma mistura entre “admiração e repugnância”), fazendo desse reflexo emergir um medo das consequências de tais atos (“o caos, a marginalização, a loucura, a dissolução interior”22 ), Natália preocupava-se em dar voz e traços hu20 21 22
Ibidem, pp. 121-122. Ibidem, p. 160. Maria Teresa Horta, “Prefácio”, op. cit., pp. 15 e 16, respetivamente.
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manos ao amor e procurou institucionalizá-lo enquanto prática artística. É neste ponto que a corrente a que esteve ligada, o Surrealismo, surgiu enquanto materialização última da arte enquanto linguagem amorosa. Apesar de tudo, Natália vê no gesto de Solanas a concretização romântica de um ideal, dado que, para a poetisa, os românticos não distinguiam a ação da imaginação. Solanas foi uma romântica não pela ideologia equívoca que motivou o seu ato mas pelo princípio ativo que ele simbolizou, dando, sem saber, forma à sua cruzada, porque, no entender, de Natália, “a inteligência feminina recusa-se a atribuir às ideias uma vida independente da existência”23 . Esse “objectivo superior” que Natália mencionou24 não estaria, de certo, longe do seu ideal poético surrealista do amor eletivo, de conjugação do homem e da mulher como seres unidos num mesmo espaço partilhado, nas suas diferenças mas com a mesma importância: o matriarcado não como oposição mas como complemento do patriarcado, cujos laços de união, equilíbrio biológico e respeito só poderão ser legitimados e sacralizados através do amor: A união entre indivíduos de sexos diferentes é a forma mais respeitável das relações humanas. É um problema que pertence a cada indivíduo. Pode representar a sua felicidade ou o seu infortúnio. Chega a ser criminoso querer impor normas àquilo que faz parte do património interior do individuo25 .
Ainda que a sofisticação do pensamento de Natália lhe permita sacralizar as diferenças que os deuses femininos e masculinos delegaram à cultura ocidental, encerrando na poesia a possibilidade de união eletiva entre o homem e a mulher, a sua lógica analítica não lhe permite anular as diferenças que, ao longo dos séculos, têm funcionado em desfavor da mulher. E a maior diferença que Natália nos poderia ter legado encerrou-se no ato poético. Foi por isso que a dado momento terá confidenciado a Maria Teresa Horta: “Somos poetisas e não poetas. Teresa, 23 24 25
Ibidem, p. 157. Vd. citação correspondente à nota 527. Ibidem, p. 132.
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nunca se esqueça. Para fazermos boa poesia não necessitamos de tomar para nós o que é do masculino”26 .
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Maria Teresa Horta, “Prefácio”, op. cit., p. 18.
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Referências bibliográficas
CORREIA, Natália, Breve História da Mulher e outros escritos, 2. ed., pref. de Maria Teresa Horta, ed. Zetho da Cunha Gonçalves, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2003. a
CORREIA, Natália, “Barbo”, in Contos inéditos e crónicas de viagem, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 2005.
A voz da cronista Inês Pedrosa: desafios e compromissos Angela M. R. Laguardia1 angelamrl@gmail.com
Em recente artigo para o Jornal de Letras, Inês Pedrosa compele-nos a uma reflexão sobre o poder de mobilização da palavra escrita e do escritor interveniente na atualidade. Com o sugestivo título “Empenhamento cívico”, a cronista e romancista Inês Pedrosa, autora de vários romances e da coletânea de crónicas Crónica feminina (2005)2 , confirma, mais uma vez, a sua vocação para uma parceria cada vez mais próxima entre a literatura e o jornalismo. Do texto aludido, logo depreendemos o papel depurativo da escritora ou da cronista que, intermediária entre o mundo que a rodeia e o mundo subjetivo, imbui-se da palavra convictamente, para “dar voz aos milhões de abandonados por este suposto modelo de sociedade que nos querem impor como único viável: o modelo do salve-se quem puder” (JL, fevereiro de 2013)3 . Esta escolha, movida, segundo ela, em detrimento do “desespero que Portugal atravessa actualmente” e justificada 1
Doutoranda na UNL. Cf. Inês Pedrosa, Crónica feminina, 1.a ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005. 3 Inês Pedrosa, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 de fevereiro de 2013. 2
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pelos problemas do país e do mundo, incitou-a ao vigor do uso da escrita e da crença de que “a palavra tem o extraordinário poder de mudar as mentalidades, e não há mudança que não comece na cabeça”4 . O “lugar” de observadora é enunciado logo de início: “tudo o que acontece à minha volta me influencia – e com o caudal de informações que recebemos continuamente, o mundo tornou-se-nos, para melhor e para pior, um sítio íntimo”5 . Porém, esta perspetiva vai além do espaço, quando trazemos para nossa análise a questão da dimensão temporal, inferida através das suas palavras, caracterizando também o discurso cronístico. Carlos Reis, ao recordar esta propriedade da crónica, a sua dimensão temporal, considera-a fundamental, não tanto pela dinâmica interna do texto cronístico, que difere do movimento de desenvolvimento temporal que encontramos em um conto ou romance, mas, principalmente pela relação da crónica com o seu tempo, com o movimento da história ainda em decurso, às vezes até com as incidências, com as figuras, com os conflitos e com as motivações da pequena história, quase sempre esquecida pela historiografia como ciência e repositório da memória colectiva6 .
A sugestão destas “antenas” voltadas para os acontecimentos, nas palavras de Inês Pedrosa, tem o acréscimo volátil dos nossos tempos e a tarefa daquele(a) que testemunha, desta forma, é mais árdua enquanto comprometida. E, na circunstância deste texto, isto é apontado mais claramente, como uma assinatura do seu estilo, antes observado pelas crónicas da sua antologia Crónica feminina. Assim, cumpre-nos selecionar outros trechos significativos do texto, com o intuito de atualizar e confirmar o que anteriormente foi comentado em suas crónicas, mas antes faremos uma retrospetiva, através de algumas das crónicas de sua obra e do seu significativo prefácio. 4 5 6
Ibidem. Ibidem. Carlos Reis, Jornal de Letras, 12 a 15 de outubro de 2005, p. 18.
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A voz da cronista Inês Pedrosa: desafios e compromissos
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Crónica feminina (2005) reúne 110 crónicas, publicadas no semanário Expresso, que obedecem a uma cronologia que vai de janeiro de 2002 a dezembro de 2004. Com o título de “O que me importa”, no seu prefácio, ela apresenta-nos os temas que a inquietam: Temas como o aborto, a discriminação, os abusos sobre crianças, a violência sobre as mulheres, a educação e a justiça atravessam os meus dias com uma constância recorrente. Porquê? Porque me parecem ser estas as pedras de toque da política actual7 .
Ao exercício das crónicas ela credita o poder transformador da palavra, “a mobilização efectiva da palavra”. A experiência do espaço cronístico na defesa de Maria do Céu, a enfermeira-parteira, condenada a cumprir uma pena de oito anos e meio de prisão, e a liderança de um pedido de indulto, trouxe-lhe a experiência de que “a palavra partilhada e multiplicada em milhares de vozes teve a força de corrigir – ainda que tardiamente, após quatro anos de cativeiro efectivo, dois deles de prisão preventiva – uma situação de manifesta injustiça”8 . A seleção destas crónicas relacionadas na antologia, o chamado caso “da parteira da Maia”, é justificada por ela neste prefácio, por ter lhe dado “a medida da crónica como exercício de intervenção social, como forma de poder cívico”9 . Para a cronista, a relação com a palavra “poder” em Portugal não teria boa fama desde Salazar, induzindo a diabolização deste poder, a desistência interior e, consequentemente, a falta de movimentos cívicos e de voluntariado social. Foi, também, através deste exercício constante das crónicas, da “persistência” de cronista, aludida por Eduardo Prado Coelho e transcrita por ela, que foi alertada “de uma forma muito concreta para a arquitectura proliferante da informação e para o seu corpo mutante de coreografias do caos”10 . Porém, a perseverança da sua escrita deve-se, 7 8 9 10
Cf. Inês Pedrosa, Crónica feminina, op. cit., p. 14. Ibidem, p. 16. Ibidem. Ibidem, p. 17.
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sobretudo, à crença de que “o mundo pode melhorar à vista desarmada durante o breve espaço da minha vida”11 . Outros motivos fortaleceram esta vontade. Entre eles, conta-se a oportunidade de encontrar pessoas que ela considera como “mais uma luz” do seu mundo, como Domitília dos Santos ou o aprofundamento da relação com antigos amigos, que contribuíram com as suas opiniões, e até a presença dos inimigos “que se tornaram mais evidentes, o que, sem ironia, lhes agradeço; os inimigos são interlocutores fundamentais da nossa aprendizagem”12 . Além do leitor, que, com “fúria ou carinho”, manifesta sua opinião e é a razão da crónica. A capa de Crónica feminina enuncia, de antemão, o espaço de luta e reflexão da autora, uma luva de boxe rosa choque. Recorrendo novamente a Carlos Reis, que escreveu sobre suas crónicas, podemos lembrar que muitas delas representam “um vigoroso olhar feminino sobre a vida, os fenómenos sociais, os estereótipos que atravessam o nosso imaginário e as distorções «masculinas» que o dominam”13 . Este crítico sublinha ainda que esta compilação constitui-se em “uma séria reflexão acerca da crónica e da sua dupla lógica, ou seja, cultural e discursiva”14 . Passados treze anos da publicação da obra e retornando ao artigo que alavancou este texto, “ouvimos” a cronista afirmar: “Posso dizer que a falta do discurso e da prática política contemporânea em Portugal me impelem a escrever. A canalhice e a arrogância são musas tão boas como outras quaisquer – às vezes até melhores, porque nos forçam a reagir”15 . O tempo, ou o “imprevisível deus Chronos”, segundo Inês, parece mesmo desafiar sua discípula literária, ainda que ela afirme que tenta pensar livremente sobre os sinais de sua época: “o que muda, o que se 11 12 13 14 15
Ibidem, p. 14. Ibidem, p. 17. Jornal de Letras, 12 a 15 de outubro de 2005, p. 19. Ibidem. Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 de fevereiro de 2013.
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repete, o que resiste”16 . É oportuno lembrarmos aqui dois dos mandamentos da crónica, segundo João Pereira Coutinho, ao falar da arte de fazer crónica, no jornal Expresso: “a crónica pode partir da realidade mas, não raras vezes, a crónica cria a sua própria realidade; a crónica não vive da especialização; a crónica vive da diversidade”17 . Deste modo, ao longo da leitura dos textos de Crónica feminina, descobre-se que a matéria destes registos têm a amálgama de uma consciência que dialoga com o seu tempo, por não ter esquecido a lição de Pandora, confirmada no seu artigo “Empenhamento cívico”: Nunca me deixo contaminar pela desesperança, porque a História, desde a decantada Grécia Antiga, com o seu cortejo de escravos, é um relato de barbárie repetidamente salvo pela visão e pela capacidade de transcendência de um vasto grupo de seres humanos – artistas, cientistas, políticos, pensadores18 .
Foi com esta convicção que fez a escolha dos seus temas e nomeou as suas crónicas, das quais selecionamos algumas que podem ilustrar a sua indignação. Com o título de “A tradição da indignidade”, Inês denuncia a mutilação genital feminina no país, baseada no dossier de Sofia Branco, que havia entrevistado uma mulher que perdera duas filhas, uma excisadora e um membro da Associação dos Muçulmanos Naturais da Guiné, que não considerava isto crime, porque era próprio da sua tradição. Ela condena a ação praticada sob a capa de “uma outra cultura”, chamando a atenção da justiça portuguesa para a questão: É tempo de perdermos os confortáveis complexos de culpa herdados dos nossos avós colonizadores, e dos nossos bisavós esclavagistas, e dos nossos tetra-avós inquisidores e dos nossos fundadores cruzados. É mais do que tempo de abandonarmos o relativismo cultural em que nos consolamos, numa serenidade turística19 . 16 17 18 19
Inês Pedrosa, Crónica feminina, op. cit., p. 14. João Pereira Coutinho, Expresso, 13 de agosto de 2005. Inês Pedrosa, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 de fevereiro de 2013. Cf. idem, Crónica feminina, op. cit., p. 117.
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Em “As costas largas da História”, o assunto é o escândalo da Casa Pia e a lista de figuras públicas potencialmente envolvidas com a prostituição de menores que, desamparados na sua condição de indefesos, sem família, sem referências, serviram de objeto sexual. Mais uma vez, Inês expõe a acomodação dos que preferem acreditar na conivência das vítimas: “levamos por vezes a tolerância a extremo de cegueira que a tornam indiferença para com a crueldade”20 . Muitos textos da cronista trazem temas relacionados às mulheres, desde o destacado caso da parteira da Maia, ou outros do interesse. Porém, percebe-se sempre uma exortação às causas femininas, uma provocação para o ato de repensar as questões deste universo. Assim, “A violência de pechisbeque” aborda a violência contra as mulheres, o número de vítimas que morrem por ano em Portugal, maltratadas em sua própria casa e profetiza: O silêncio das vítimas continuará, por muitos anos, a sobrepor-se às campanhas de informação. As vítimas tornam-se cúmplices inabaláveis dos seus torcionários, em particular em países como o nosso, com tradições religiosas árabes e judaico-cristãs de severa subalternização da mulher21 .
A política aparece com títulos diversos: “Acompanhante para deputado, oferece-se”; “Os nossos homens de ontem”; “Chamem-me Deus”, e outros. E a cultura é sempre um assunto inquietante para a cronista. Assim, temos: “Crise, a palavra assassina”; “Continuar a ler dentro do túnel”; “O viril metal”; “O país dispersivo” e muitos outros títulos, com seus perfis literários ou de outras artes, assim como os livros e filmes que comenta. Ao arrojo dos diversos temas eleitos, dilui-se a aparente circunstância de que o subgénero propõe, pois temos a impressão de que a palavra da cronista é sempre tomada pela urgência e pela consciência de uma 20 21
Ibidem, p. 180. Cf. ibidem, p. 297.
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palavra que vai até ao fulcro de cada tema, assinalando a sua importância no tempo presente, sem perder o distanciamento do passado e do futuro. O compromisso com a escrita é renovado no seu artigo “Empenhamento cívico” e ecoa na advertência: “Os que têm o pensamento e arte como profissão não podem demitir-se da intervenção cívica – toda a arte é política. Os artistas que se reclamam imunes à «sujidade» dos dias tomam também, com esta atitude, uma posição política”22 . E alude àqueles que, a pretexto de se esquivarem, disseram durante o salazarismo que “«a minha política é o trabalho», ou daqueles que, depois do nazismo ou do estalinismo, vieram a dizer que nunca se aperceberam de nada”23 . Além de sublinhar este compromisso da arte, Inês Pedrosa afirma: “pratico um empenhamento cívico constante que excede em muito a escrita: é a minha maneira de estar no mundo”24 . Para ela, é necessário reconhecer e honrar a luta das mulheres e dos homens pelos direitos que obtivemos e a isto se refere como “gratidão infinita”, justificando o seu prolongamento nestes combates, que ainda julga como tantos e necessários. Inês Pedrosa não quer para si a palavra usada “como muro de defesa, excluindo-se da contaminação do mundo”25 , sob a pulsão da realidade. A palavra é o instrumento que atravessa o tempo e é compartilhada com aqueles que a voz da cronista conclama para refletir e participar efetivamente nas questões do nosso tempo. Entre a alquimia do jornalismo e da literatura, os factos vão-se tornando textos atropelados pela roda dos acontecimentos e, na impossibilidade de estancar o tempo, emerge o papel da cronista do século XXI, destacando-se Inês como voz contundente, imbuída no labor das crónicas ou nas transfor-
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Idem, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 de fevereiro de 2013. Ibidem. 24 Ibidem. 25 Ibidem. 23
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mações desta experiência em texto romanesco, sob a égide da contemporaneidade.
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Referências bibliográficas
COUTINHO, João Pereira, "s.t.”, Expresso, 13 de agosto de 2005. PEDROSA, Inês, Crónica feminina, 1.a ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2005. PEDROSA, Inês, "Empenhamento cívico”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 6 de fevereiro de 2013. REIS, Carlos, "s.t.”, Jornal de Letras, 12 a 15 de outubro de 2005.
O folhetim na era digital: A mulher que venceu Don Juan Teresa Martins Marques1 tmartinsmarques@gmail.com
Ma légende. . . C’est une histoire épique, interminable, épisodique, confuse, absurde, rebondissante commme un feuilleton ou comme la vie. Michel de Ghelderode, Don Juan (1928)
Para Amadeu Ferreira, personagem de A mulher que venceu Don Juan
O folhetim A mulher que venceu Don Juan foi publicado pela autora, na sua página pessoal do Facebook, durante 28 Sábados, entre 13 1
Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (CLEPUL).
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de Outubro de 2012 e 18 de Maio de 2013. A interacção com os leitores foi permanente, não apenas para transmitir opinião, mas também para dar sugestões de continuidade da história, com garantia de resposta quase imediata, em tempo real, o que constitui, eventualmente, a novidade deste tipo de publicação no Facebook, visto que a interacção epistolar sempre existiu entre os autores de folhetim e os seus públicos2 . A importância sociológica do folhetim foi apontada por Vitorino Nemésio, entre outros, afirmando que ninguém pode entender o século XIX português se não sentir a comodidade e a dissipação da sua vida no rodapé de jornal chamado ‘folhetim’. Mais do que um género literário ou modo tipográfico de acomodação da escrita, o folhetim era uma autêntica forma social, um lugar onde podemos surpreender os nossos avós e bisavós em flagrante delito de convívio3 .
O folhetim serviu de incentivo de leitura a não poucos escritores, entre eles Fialho de Almeida, José Régio, Sebastião da Gama, José Saramago, cujo primeiro romance que possuiu foi A toutinegra do moinho, oferecido por sua mãe, em 1936, aos 14 anos, conforme lemos na sua Cronobiografia (on-line). Tratava-se de uma tradução de La fauvette du moulin, da autoria de um dos mais célebres folhetinistas franceses – Émile Richebourg (1833-1898) – a quem alcunharam de Terra Nova, porque quando o administrador de uma folha periclitante via a tiragem desta baixar, em proporções precursoras de um desastre próximo, encomendava um romance-folhetim a Émile Richebourg e as tiragens subiam para cem mil exemplares4 . A maior parte dos romancistas portugueses, reconhecidos pelo cânone, publicaram primeiro em folhetim e só, mais tarde, em livro. Alguns exemplos: Viagens na minha terra, de Almeida Garrett; O bobo, 2
Eugène Sue, por altura da publicação de Les mystères de Paris (1843-1844), chegou a manter um escritório para receber a numerosa correspondência dos leitores. 3 Vitorino Nemésio, “O folhetim”, Diário popular, 22 de Março de 1950, p. 5. 4 Marlyse Meyer, Folhetim: uma História, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 296-297.
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de Alexandre Herculano; A queda de um anjo e O olho de vidro, entre outros, na vasta obra de Camilo Castelo Branco; Memórias de um doido, de António Lopes de Mendonça; Da loucura e das manias em Portugal, de Júlio César Machado; A morgadinha dos canaviais e as Pupilas do senhor reitor, de Júlio Dinis; Prosas bárbaras e O mandarim de Eça de Queiroz, para além d’O mistério da estrada de Sintra, com Ramalho, o qual publicaria, quase toda a sua obra, sob forma de folhetim; Os canibais, de Álvaro de Carvalhal, com o primitivo título “A estátua viva”5 , em que se baseou livremente o filme-ópera Os canibais, de Manoel de Oliveira (1988)6 . No século XX português, talvez com excepção de Miguel Torga, muitos romancistas publicaram em folhetim. Alguns exemplos: O malhadinhas, de Aquilino Ribeiro, com o título Um português dos velhos tempos; O único animal que, de Augusto Abelaira; Uma aventura inquietante, Idealista no mundo real e O pão não cai do céu, de José Rodrigues Miguéis; Mário de Carvalho e Clara Pinto Correia, E se tivesse a bondade de me dizer porquê; Hélia Correia, A fenda erótica, da qual Ernesto Rodrigues nos deu também edição crítica, em Apêndice ao Mágico folhetim. Na segunda metade do século XIX, o folhetim foi exportado pela França também para o Brasil. Escritores como José de Alencar ou Lima Barreto tiveram obras suas publicadas em folhetim. O romance urbano A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, é considerado o exemplo de folhetim mais popular da história do Brasil, verdadeiro opiáceo cultural, tendo tido um altíssimo sucesso de vendas numa época em que a maioria da população ainda era pouco alfabetizada, mas, para o efeito, bastava que alguém soubesse ler em voz alta.
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Os sete primeiros capítulos foram publicados em folhetim na bimensal Revista de Coimbra, entre 15 de Dezembro de 1865 e 31 de Março de 1866, com o título A estátua viva. A edição em livro alterou-o para o actual e acrescentou-lhe um oitavo capítulo. 6 Cf. o meticuloso estudo e edição crítica de Ernesto Rodrigues in Mágico folhetim, Lisboa, Editorial Notícias, 1898, pp. 254-286.
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Sobre o folhetim, no domínio das literaturas africanas, informa-me a Prof.a Ana Paula Tavares: A exemplo do que ocorria com a grande maioria dos intelectuais dos finais do século XIX e princípios do século XX, que eram periodistas e escritores, Alfredo Trony inscreveria também o seu nome entre os grandes da literatura angolana com a novela Nga Muturi (a senhora viúva) publicada inicialmente em forma de folhetins na imprensa de Lisboa e reunida em livro quase cem anos depois. Nga Muturi constitui seguramente um marco histórico nas letras angolanas erigindo-se como num importante documento cultural e sociológico, ao retratar com grande rigor, uma época de referência da vida de Luanda7 .
A mulher que venceu Don Juan insere-se numa longuíssima série que tomou por tema o mito de Don Juan, cujo marco inicial se considera El burlador de Sevilla y convidado de piedra (1630), de Tirso de Molina. Segundo Jean Rousset, um dos grandes estudiosos do donjuanismo, Don Juan é e não é um mito. Em primeiro lugar os mitos não têm autor, conforme nos ensinou Lévy-Strauss. Os mitos vivem de uma longa história oral, ou seja na tradição anónima, ao contrário desta figura de que se conhece perfeitamente a paternidade literária. Todavia, a história de Don Juan rapidamente se autonomizou, relativamente ao texto fundador, e tem vindo a passar de obra em obra, como se pertencesse a todos e a ninguém. Nesta característica reconhecemos um traço do mito, isto é, o anonimato ligado à sua capacidade de persistir no inconsciente coletivo, sempre pronto a ressurgir e a sofrer alterações que lhe conferem plasticidade8 . Sabemos bem do que falamos quando falamos de Don Juan, porém a personagem assume aspectos muito diversos ao longo da História literária. Alguns dos nomes fundamentais 7
Agradeço à Prof.a Ana Paula Tavares a referência bibliográfica: Mário António Oliveira, A formação da literatura angolana, 1851-1950, Lisboa, Imprensa Nacional, 2001. 8 Jean Rousset, Le mythe de Don Juan, Paris, Armand Colin, 1976, pp. 6-7.
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que ficariam ligados a este mito serão: Don Juan ou le festin de Pierre (1665) de Molière; Don Giovanni Tenório, osia il dissoluto (1736) de Goldoni; Les liaisons dangereuses (1782) de Laclos; Don Giovanni (1787) de Mozart/Da Ponte; Don Juan (1819-1824) de Lord Byron; Don Juan Tenorio (1844) de Zorrilla; o poema de Baudelaire “Don Juan aux enfers” (Les fleurs du mal – 1857); Man and superman (1903) de George Bernard Show; Les exploits d’un jeune Don Juan (1911) de Guillaume Apolinnaire; La dernière nuit de Don Juan (1921), poema dramático de Edmond Rostand; Supplément à Don Juan (1831) de Colette; Le mythe de Sisyphe (1942) de Camus; Don Juan ou la mort qui fait le trottoir (1958) de Henry de Montherlant; Terra nostra (1975) de Carlos Fuentes. Alguns, entre os portugueses: A ondina do lago (1864) de Teófilo Braga; A morte de D. João (1874) de Guerra Junqueiro; O último D. João de Guilherme de Azevedo (poesia – 1874); O poema “A última fase da vida de D. Juan” de Gomes Leal, inserto em Claridades do sul (1875); O poema “D. João” (1906) de Silva Gaio; A alma de D. João (1918) de Rui Chianca; Poema “D. João” (1920) de João de Barros; A fábula trágica D. João e a máscara (1924) de António Patrício (a obra-prima portuguesa dentro desta temática); A peça D. João Tenório (1920) de Júlio Dantas; O castigo de D. João (1948) de Urbano da Palma Rodrigues; Um amor feliz (1986) de David Mourão-Ferreira; O conquistador (1990) de Almeida Faria. Outros poderíamos ainda referir, mas para não alongar mais a lista cito, por último, um João de Távora, que encontramos em Partes de África (1991) de Helder Macedo. A característica principal do que chamamos donjuanismo é uma forte compulsão para a sedução, seguida de desinteresse e abandono, da parte do sedutor, após a conquista. A longa lista das seduzidas, que o criado Leporello descreve para Doña Elvira, na “Área do catálogo” (Ato 1, Cena 5.a ) de Don Giovanni de Mozart/Lorenzo Da Ponte, é, não sem ironia, muito precisa: em Itália foram 640; na Alemanha 231; em França 100; na Turquia 91; mas só na Espanha contou 1003. Foi este
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número mille e tre que ficou na tradição simbólica do sedutor, todavia a conta que nos é apresentada salda-se em 2065 seduzidas. O desafio é altamente mobilizador para Don Juan, fazendo apostas sobre a conquista, como acontece com Carlos Manaças, um dos mais risíveis personagens deste folhetim, aposta essa que a autora lhe fez perder. Don Juan revela uma extraordinária facilidade para perceber e atender os gostos e fraquezas das seduzidas (a)parecendo aos olhos destas como o mais compreensivo e inteligente dos homens, em suma o prince charmant, quando afinal não passa de um anarquista do amor e do sexo. Michel Foucault apontou Don Juan como o destruidor de duas grandes regras da civilização ocidental – a lei da aliança e a lei do desejo fiel9 . O desprezo para com os sentimentos alheios indicia traços de personalidade anti-social. No donjuanismo existe frequentemente um complexo de Édipo, não resolvido. A volubilidade indicia imaturidade afetiva, medo de assumir compromissos próprios da adultícia, somada à ausência de culpa e de remorso. A velhice é o verdadeiro castigo de Don Juan, quando as armas da sedução falham. Apesar da compulsão à sedução, tal não significa que o seu desempenho sexual seja digno de nota. Don Juan não é um artista do sexo, é um artista da palavra. Logo que a vítima se apaixona desinteressa-se, podendo até dispensar a relação sexual. Por outro lado, se a interlocutora não cede à sedução, obstina-se, podendo tornar-se violento, alimentando a ferida narcísica que a rejeição lhe provoca. Hábil a teatralizar as relações, representa camaleonicamente os papéis que lhe facilitam a sedução. Não sente afeto por ninguém a não ser por si mesmo. Sendo que o afeto pelo outro define a identidade, Don Juan-Narciso é uma máscara ambulante, um lugar vazio. Denis de Rougemont em Les mythes de l’amour (1961)10 aponta uma interessante perspectiva sobre o déficit identitário de Don Juan. Ele seria o homem que não pode amar, porque amar é, antes de mais, 9
Michel Foucault, Histoire de la sexualité, tomo 1: La volonté de savoir, col. Tell, Paris, Gallimard, 1976; L’usage des plaisirs (1984); Le souci de soi (1984). 10 Denis de Rougemont, Les mythes de l’amour, Paris, Galimmard, 1967, p. 115.
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escolher. Para escolher é preciso ser e Don Juan não é, possuindo uma identidade alienada, construída em projeção no olhar das mulheres. Entre os teóricos do donjuanismo ocupa lugar de destaque o médico Gregório Marañon11 , cuja obra Don Juan, ensayo sobre la leyenda (1940) considera este personagem escassamente viril, indo contra as ideias gerais que a ele se associam. Para Urbano Tavares Rodrigues12 “o donjuanismo radica num pletora do instinto sexual ou numa limitada avidez de absoluto”. Atentemos na última parte da frase, apontando em termos gerais o que se entende filosoficamente por absoluto. Trata-se de um conceito através do qual a filosofia idealista designa um sujeito eterno, infinito, incondicionado, perfeito e invariável, que é suficiente em si mesmo, contém de per si tudo o que existe e o cria. Para a Escolástica o absoluto é Deus. Para Fichte é o “Eu”. Para Hegel é a razão universal, designada como espírito absoluto. Para Schopenhauer é a vontade. Para Bergson é a intuição. O que caracteriza, fundamentalmente, D. Juan é a variância, a relatividade de cada experiência e o conhecimento dependente do olhar de cada mulher, que na sua diversidade constituem alvos sempre em movimento. Nada de mais contrário ao “em si”, que caracteriza o absoluto, como se, por absurdo, se procurasse, pela variância, um ideal de fixidez. Don Juan simboliza o próprio relativismo da experiência amorosa o não-ser, como apontou Rougemont, e um não-estar em parte alguma, a não ser em trânsito, experiência durável como uma inscrição na água ou no vento, fluxo e refluxo, vaivém constante de inconstância. Sendo arte da palavra, a conquista donjuanesca não prescinde de um savoir faire, que pode dispensar o sexo, depois de o objectivo ter sido alcançado, isto é, após ter colocado a seduzida na sua esfera de influência, através de um jogo mental de poder. Para tal jogo aponta 11 Gregório Marañon, que se destacou na então nascente endocrinologia, foi o único médico espanhol que conheceu pessoalmente Freud, em casa da sobrinha bisneta de Napoleão – Marie Bonaparte (1882-1962). 12 Urbano Tavares Rodrigues, O mito de D. Juan e o donjuanismo em Portugal, Lisboa, Ática, 1960. Assina o verbete sobre esta temática na enciclopédia Biblos (vol. 2, 1997).
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uma das epígrafes de Alberto Savinio colocadas, por David Mourão-Ferreira, na abertura de Um amor feliz: “Il più sicuro modo de felicità é il movimento mentale: il «gioco» mentale”. A referência de Urbano Tavares Rodrigues à “pletora do instinto” pertence a um campo diverso – a bulimia do sexo, implicando compulsividade e dependência, como a droga, o álcool, o jogo, entrando na chaveta dos comportamentos aditivos. A satiríase masculina ou a ninfomania feminina não se aproximam do ideal donjuanesco da conquista “amorosa”13 . Que características costumam apresentar as mulheres seduzidas por estas borboletas que pousam de flor em flor? A característica mais comum é a ingenuidade e a credulidade, não raro associada a um carácter sonhador, não raro com uma ligação fortíssima à figura paterna, ou seja, um quadro psicológico que as faz acreditar no príncipe encantado, sendo facilmente dominadas pelo poder opiáceo da palavra. Essa crença na palavra (não) dada é uma questão de fé que não discutem, nem colocam em dúvida, pelo menos na fase da sedução. Outras há que, conhecendo a variância do sedutor, vêem-se a si mesmas como eleitas que hão-de convertê-lo à fidelidade. A (auto)eleita acredita que ela e só ela detém o poder de fixar a borboleta, ela e só ela possui o néctar salvífico, sendo esta uma atitude de cunho narcisista, provocando despique, nomeadamente se existir outra concorrente em jogo, caindo, não raro, na cilada da dependência e do masoquismo: sofrer pelo amado, sofrer pela conquista do amado, fechando os olhos para o resto do mundo, pode tornar-se um programa de vida que conduz em linha recta para o inferno. Aceita-se hoje que o donjuanismo pode ser uma camuflagem de homossexualidade recalcada. A fim de discutir esta complexa questão, 13 Estima-se que podem prevalecer na população com valores à volta de 5%. Cf. Eli Coleman, diretor do Programa de Sexualidade da Faculdade de Medicina da Universidade de Minnesota e a sua equipa, que desde finais dos anos 80 vêm publicando sobre o assunto: “Sexual compulsivity: definition, etiology and treatment considerations”, in Chemical dependency and intimacy dysfunction, Routledge, Ed. Eli Coleman, 1988.
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dentro do entrecho ficcional, coloquei uma jovem doutoranda a preparar uma tese sobre o Diário do sedutor de Kierkegaard, narrativa que fecha Enten – eller (1844)14 , obra na qual Don Juan faz a sua entrada no universo da filosofia. A minha personagem debate o estado dos trabalhos da tese com a tia, uma psicóloga, professora do ISPA, fazendo passar, através do diálogo, a teoria que sustenta a acção. A jovem identifica o conteúdo latente e manifesto de homossexualidade neste Diário, na linha que mais tarde viria a seguir H. Kaplan15 . Heterossexual compulsivo, Don Juan acumularia aventuras para se afastar do objecto do seu desejo: outro homem. Kaplan considera que, seduzindo a mulher de outro, Don Juan estaria inconscientemente a relacionar-se com o marido, motivo maior de seu prazer, sendo a seduzida a ponte entre eles. Sandór Ferenczi publica, em 1922, Le symbolisme du pont et la légende de Don Juan16 metaforizando fantasmas edipianos e homossexuais: entre Don Juan que passa na margem esquerda do rio com um cigarro apagado na boca e o diabo que fuma na margem direita, faz-se uma ponte sobre a água negra, que vai permitir acender o cigarro de Don Juan. Edipianismo, homossexualidade latente seriam as linhas de força do mito, visto da perspetiva de Ferenczi. Ainda na mesma linha, a disputa com outros homens fará dizer ao Don Juan de Carlos Fuentes: “Nenhuma mulher me interessa se não tiver um amante, marido, confessor ou Deus, ao qual pertença. . . ”. O cigarro e a ponte constituem metaforizações interessantes que poderão servir para lançar um olhar no conteúdo latente d’A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro, tornando-se claramente evidente que a personagem Marta estabelece a ponte entre os dois homens, formando uma trindade fatal, que terminou em crime e loucura. 14
Soren Kierkegaard, Ou – ou. Um fragmento de vida. Primeira parte, trad., intr. e notas de Elisabete M. de Sousa, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2013. 15 Harold I. Kaplan et alii, Sinopse de Psiquiatria, 4.a ed., Rio de Janeiro, Koogan, 1994. 16 Catherine Golliau, “Sur le divan”, Le point: les grands mythes, n.o 10, Paris, pp. 87-89.
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Atentemos no que diz Johannes, na reflexão que fecha o Diário do sedutor: Porque não pode uma noite como esta durar mais tempo? Não poderia Electrião esquecer-se, não poderia o sol ser suficientemente compassivo nesse sentido? Mas agora já passou e desejo nunca mais a ver. Quando uma rapariga entregou tudo, enfraquece, perdeu tudo, pois, no homem, a inocência é um momento negativo, na mulher, é o mérito do seu ser. Agora toda a resistência é impossível e, enquanto ela existe, é belo amar; quando cessa resta fraqueza e hábito. Não desejo que me lembrem a minha relação com ela; perdeu a fragrância e já lá vão os tempos em que uma rapariga, com a dor de perder o amante, era transformada em heliotrópio. Não quero despedir-me dela, nada me repugna mais do que choro de mulher e súplicas de mulher, que tudo modificam, não tendo, porém, propriamente nada para significar. Amei-a; mas, a partir de agora, já não constitui ocupação para a minha alma. Se eu fosse um deus, faria com ela o que Neptuno fez com a ninfa: transformava-a em homem. Usando a metáfora erótica do cigarro de Ferenczi, dir-se-ia que ninguém fuma um cigarro duas vezes. A peça de caça tem interesse enquanto está viva, podendo eventualmente fugir. Logo que é caçada, o objectivo foi atingido, atira-se morta para o lado, ou empalha-lhe como troféu e passa-se a nova presa. Mas há uma particularidade muito interessante na última frase do discurso do sedutor: “Se eu fosse um deus, faria com ela o que Neptuno fez com a ninfa: transformava-a em homem”.17
A ninfa a que se alude é Cénis, que foi transformada pelo deus Neptuno em Ceneu, o homem por quem ela se tinha apaixonado. Este desejo expresso pelo sedutor de mudar o sexo da amada, em processo fusional de assimilação, é bem significativo do recôndito desejo do sedutor. Johannes, praticando um coleccionismo desmesurado, mostrando um cinismo sem limites, mais não faz do que camuflar a sua 17
Soren Kierkegaard, Ou – ou. Um fragmento de vida, op. cit., p. 477.
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insatisfação de que a mulher não possa ser transformada em homem, como a ninfa Cénis. O verdadeiro objecto do desejo é outro homem, ou seja, o namorado da jovem seduzida, sendo ela a ponte entre ambos. Esta a razão por que o sedutor só deseja jovens comprometidas. Ainda aqui a eleita paga caro a ilusão narcísica da “única” que na realidade é pluríma, conforme é encarada por Don Juan, serial killer do afecto. Cordélia, a heroína do Diário do sedutor de Kierkegaard, pagou cara a dependência de Johannes e é patética a forma como se anula a si mesma, ao escrever-lhe: Foge para onde quiseres, sou porém tua, arrasta-te até aos extremos confins do mundo, sou porém tua, ama centenas de outras mulheres sou porém tua, sim, até na hora da morte, sou tua. Até a língua que uso contra ti tem de demonstrar-te que sou tua. Tiveste a ousadia de enganar uma pessoa de tal modo que te tornaste tudo para mim, então queria eu colocar toda a minha alegria em ser tua escrava, sou a tua, a tua, a tua maldição. Tua Cordélia18 .
A relação estabelecida entre Cordélia e Johannes está longe de ser uma relação de amor. Da parte de Cordélia é uma forma de dependência, demonstração incondicional de servidão. Quando declara o que ela entende por amor, mais não faz do que assumir-se como patética escrava. Afinal o amado, mereça ou não mereça, será sempre amado, donde se conclui que não é o amado que é importante, já que não é importante que ele tenha defeitos ou virtudes. O que é importante é transformá-lo em objeto de amor. Esta forma de dependência incondicional é, no fim de contas, uma relação de fundo narcísico, uma relação de amor-próprio, camuflada por um discurso de amor pelo outro. Don Juan, no folhetim que nos ocupa, é um conceito apresentado na teoria e na prática através de três personagens – dois homens – Amaro e Manaças, bem como uma jovem mulher – Joana – mostrando que 18
Ibidem, p. 346.
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o coleccionismo não tem género exclusivo. Procurei focar os comportamentos donjuanescos do direito e do avesso, mostrando o poder da sedução, as manhas e estratégias de caça, mas também os aspectos que esse avesso esconde, tais como narcisismo primário, mentira e dissimulação, recalcamento homofóbico e ressabiamento social. Aos três sedutores correspondem um histriónico, um psicopata e uma bordeline, fisicamente muito atraentes, encantadores por fora e negros por dentro, ao tirarem a máscara da sedução. A protagonista – Sara Dornelas – é a típica vítima ingénua, casada aos dezassete anos com um cirurgião plástico inteligente, elegante, vinte anos mais velho do que ela, o qual atrai as mulheres primeiramente pela força da palavra, e logo depois pela agressão física, não hesitando perante o crime. De crime morrerá ele também e às mãos da mais improvável das mulheres, que ele havia manipulado a seu bel-prazer e depois abandonou, não cumprindo sequer os seus deveres de pai, negando o reconhecimento a seu filho, que só tarde descobriu a filiação, fazendo-a pagar bem caro ao relapso progenitor. O foco centralizador do folhetim situa-se na recuperação das seduzidas, ao tomarem consciência da sua condição de vítimas, que deixam de ser involuntárias cúmplices. Procurando ilustrar problemas actuais através de personagens com um máximo de efeito de real, focaram-se temas como a violência doméstica exercida sobre as mulheres, mas também por mulheres sobre os homens e sobre outras mulheres, quer ao nível físico que vai dos maus-tratos à violação e ao assassinato, em todas as classes sociais. Chamei a atenção para a violência nas relações intra-familiares, patenteadas quer como abandono, ciúme e ansiedade da influência: combati fortemente os preconceitos sobre a homossexualidade, traduzidos pela homofobia. Procurei mostrar os bas-fonds da prostituição, do proxenetismo, do tráfico de drogas, do crime organizado, colocando em cena o comissário Paulo, um polícia sério e arguto para cujo desenho muito contribuíram as preciosas informações do Comissário Jorge Bordelo, também leitor do folhetim.
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No meio deste pântano de afetos negativos, procurei, por efeito contrastante, transmitir esperança através de algumas personagens luminosas como a psicóloga Lúcia, a mulher generosa que se desmultiplica em solidariedade com os outros como forma de sublimação de um passado muito infeliz, sem nunca se vitimizar. Sara Dornelas salva-se através do estudo, deixando para trás o passado de desocupada e deprimida, violentada pelo marido. Esta heroína terá como prémio a dignidade da vida que foi capaz de reconstruir e a descoberta do amor. Um amor verdadeiro de um homem que a incentiva a prosseguir e que ele mesmo se libertou não apenas do álcool, mas também da Doña Juana que o manipulava. Este homem que a ajuda a encontrar-se pelo estudo, situa-se na linha do sargento republicano Fernandes Cabete, marido da médica republicana Adelaide Cabete, que o recordava já viúva como tendo sido a pessoa a quem devia a sua emancipação. Este homem viu e respeitou na sua mulher a essência superior do seu espírito. Não obstante os preconceitos ligados à educação da mulher e ao seu papel social, foi o seu primeiro professor e o seu maior estímulo, conforme nos diz Isabel Lousada19 , sua biógrafa. São homens desta estirpe que saem valorizados nesta história habitada por seres de luz mas também por seres de trevas. A mulher que venceu Don Juan viaja de Portugal até ao Rio de Janeiro e Fortaleza; de Bora-Bora, às “îles-sous-le-vent” de que nos falou Marcel Pagnol; vai até Buenos Aires, passa por “La Ventana”, um dos lugares de culto do tango milonguero, onde uma professora da USP – Susana Ventura – surge como inesperada e competente detective. Em Portugal, a acção centraliza-se em Lisboa e no Porto, com descrições históricas e arquitectónicas das duas cidades, de que destaco a Baixa de Lisboa, antes e depois do Terramoto, o café Majestic no Porto, onde Don Juan foi por lã e saiu tosquiado, e ainda outras regiões do país, como Trás-os-Montes, mostrando cenários de casas solarengas 19
Isabel Lousada, Adelaide Cabete (1867-1935), Lisboa, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género/Presidência do Conselho de Ministros, 2010.
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de Vila Real e apresentando uma descrição pormenorizada da célebre igreja matriz de Torre de Moncorvo. Tavira ocupa lugar de destaque no folhetim, graças à excelente e generosa colaboração de três leitores – Rui Soares, Marinela Soares e Ana Gouveia20 . Acompanhados por Maria João Coutinho, da Biblioteca da Faculdade de Letras, estes leitores-personagens interagem com as personagens puramente ficcionais, ciceroniando-as numa visita guiada à história e à arquitectura de Tavira. Talvez que a maior novidade deste folhetim seja justamente a interacção entre personagens reais e personagens ficcionais. Outros exemplos de personagens reais, dentro do folhetim: Amadeu Ferreira dedicatário do presente texto que tem duas entradas no folhetim: a primeira evocado pela psicóloga Lúcia que recorda a primeira vez que entrou no restaurante “Cave Real”, com Amadeu Ferreira, numa data muito significativa para Amadeu Ferreira e para todos os mirandeses: 30 de Janeiro de 1999. Na véspera a Assembleia de República tinha aprovado a Lei 7/99, que instituiu o mirandês como segunda língua oficial de Portugal. A segunda entrada de Amadeu é na qualidade de padrinho do segundo marido da protagonista ao ser entronizado na Confraria dos Enófilos e Gastrónomos de Trás-os-Montes e Alto Douro. Ainda homenageando a gastronomia de alto coturno inclui também como personagem o leitor Virgílio Nogueiro Gomes que apresenta a ementa de um memorável jantar no “Restaurante do Hotel Fortaleza do Guincho” na altura em que o Chefe Vincent Farges tinha acabado de ser galardoado com o prémio da Academia Internacional de Gastronomia como “Chef de l’Avenir”. Para providenciar o alimento do espírito da protagonista foram decisivos os professores da protagonista Sara Dornelas, feitos personagens reais, entre eles a Prof.a de Literatura Portuguesa – Serafina Martins; a Prof.a de Cultura Portuguesa – Teresa Cadete e o Prof. Ernesto Rodrigues – orientador da sua tese de mestrado sobre Carta de guia de casados, de Don Francisco Manuel de Melo. Após a publicação do folhetim, a pedido de alguns leitores, 20
Agradeço-lhes, penhorada, a vasta informação que me disponibilizaram sobre Tavira.
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criei um Post scriptum, intitulado “Cartas de Sara”, a fim de reforçar o seu efeito de real, onde vemos o orientador esclarecer a personagem sobre a bibliografia da tese, participando os leitores neste diálogo. A pretexto de uma palestra de um personagem professor de História, os leitores revisitaram a Guerra Civil de Espanha, particularmente o estranho acidente de aviação, ocorrido no Estoril, a 20 de Julho de 1936, no qual morreu o General Sanjurjo Sacanell, que justamente nesse dia deveria apresentar-se em Burgos para chefiar o movimento militar da direita “nacionalista”. Procurei recriar não apenas ambientes da alta e média burguesia, mas também gente do povo como uma padeira, não de Aljubarrota, mas de Avintes, que vai ser a mão vingadora do criminoso Don Juan. Revelei já no final da história que a psicóloga Lúcia escondia um passado de grande sofrimento e um presente não menos doloroso de vítima às mãos de uma filha que a odeia. Através desta mãe e desta filha foram questionadas as relações entre pais e filhos para, na opinião da psicóloga, se chegar à conclusão de que “amar é separar-se quando do convívio apenas resulta dor”. Esta personagem é a diretora de uma casa abrigo da APAV, onde se abrigam vítimas de várias classes sociais, irmanadas pela infelicidade e mostrando que a violência é transversal à sociedade e que a mulher mais rica do Porto era, todavia, a mais pobre de afecto e de auto-estima. Indo frontalmente contra a vontade dela, o cirurgião plástico seu marido proibira-a de engravidar, com a desculpa de ela ser vista como a montra da Clínica Paradiso, mas a verdade profunda trata-se do pagamento de uma fatura alheia: o cirurgião plástico é um homem ressabiado, vindo de uma família disfuncional e através da rejeição do filho, que impediu de nascer, vingava-se da rejeição que sofreu às mãos de seu pai, não hesitando perante o crime, numa tentativa de assassinar a mulher tornando-se seu riquíssimo herdeiro. Viu, porém, os seus planos gorados, graças à intervenção da mais humilde das criaturas – o seu chauffeur – bem como de uma adorável velhinha, funcionando estas personagens como símbolo de coragem dedicação e ternura.
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Quem narra a história que nos é contada neste folhetim é Teresa, neta de Sara, mas o leitor só o saberá no Epílogo, que transcrevo, para com ele finalizar este meu depoimento. No dia em que fez sessenta e três anos, a protagonista Sara recebeu o melhor presente da sua vida. Era um conjunto de cadernos de capa preta, atados com uma fita de seda branca. Com eles vinha uma carta: Minha querida Mãe: Há quase um ano, quando fiz dezasseis anos, comecei a escrever nestes cadernos a história da tua vida que a tia Lúcia e o pai me foram contando aos poucos. À falta de melhor título, lembrei-me de lhe chamar A Mulher Que Venceu Don Juan. Quero oferecer-te a tua história na próxima segunda-feira, dia 20 de Maio, o dia em que vais fazer sessenta e três anos. Achei que era o melhor presente que te podia dar, um presente de que tu vais gostar, por ter sido feito com as minhas mãos. Esta é minha forma de te agradecer a minha vida. Escusas de rir, que não estou a exagerar! Se não fosses tu, Mãe, eu não estaria aqui hoje a escrever-te. Se não fosse a tua coragem para fugires desse homem terrível que foi o teu primeiro marido, nunca terias conhecido o meu pai, que te adora, e eu não teria sequer existido. Acredita que penso muitas vezes nesse irmão ou irmã, que o monstro matou, e que não teve a sorte de te conhecer, como eu tenho. Salvando-te, salvaste-me. Se não tivesses tomado a decisão de continuar a estudar, eu não seria hoje quem sou. Não terias sabido ensinar-me o que aprendi contigo e tanto tenho aprendido contigo! Quando digo às minhas colegas que tu foste para a Faculdade aos quarenta e cinco anos, elas olham-me com admiração e concluem, como eu, que nunca é tarde para realizar um sonho. A tia Lúcia também é uma grande mulher. Sei que, sem ela, tudo teria sido muito pior para ti. Ela tomou conta de ti, de longe, e ajudou-te na tua fuga. Mas tu és a minha heroína, porque não te deixaste vergar à tirania do monstro.
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Foste viver com aquelas pobres mulheres, maltratadas como tu. Tiveste até a coragem de servir de criada em casa do meu pai. Tu, que eras tão rica, quiseste saber como viviam os pobres. Essa foi também uma grande lição de solidariedade que me deste. Sim, porque tu nunca me deixaste ser uma menina rica mimada e pateta como algumas que conhecemos, que só pensam em rapazes, roupas e festas. De tudo quanto a tia Lúcia e o pai me contaram sobre ti, nunca esquecerei a história da menina das amêndoas. Ainda me lembro de me vestires o teu casaquinho branco de pele de coelho, já amarelecido pelo tempo, e de me dizeres: “Não sujes o casaquinho, Beatriz!” Agora percebo porquê. Ele era o testemunho do tempo em que inauguraste essa forma de vida que te distingue de tantos ricos que conhecemos e que são, na realidade, pobres, como era esse teu primeiro marido, que nunca te apresentou à mãe dele e que a abandonou. Tu eras uma criança, quando ofereceste as tuas amêndoas, mas já então percebias que a maior riqueza não é ter, é dar. Por isso, eu hei-de amar-te sempre e dou-te agora este meu amor de letrinhas feito, nas longas noites em que fiquei acordada a escrever, em segredo, estes cadernos para ti. Tu, a mais corajosa das Mães, és para mim a mulher que venceu Don Juan. Tua filha, Beatriz.21
Teresa Dornelas desata a fita que ata os cadernos de adolescente da sua mãe. Quantos anos passaram sobre as folhas amarelecidas pelo tempo. . . Estão agora vincadas nas pontas, rasgadas algumas, outras roídas pelo bicho do papel. Lembra-se de Beatriz lhe ter contado a história daquela extraordinária avó Sara, vestida de duas cores, como a sua vida: o preto era o passado, o branco o presente, agora passado também. Várias vezes a mãe lhe disse que queria retomar aquelas notas escritas na adolescência para escrever o romance da vida da mãe dela, a avó Sara, que houve um tempo em que se chamou Esmeralda. Beatriz, 21
Teresa Martins Marques, A mulher que venceu Don Juan, Lisboa, Âncora Editora, 2013, p. 321.
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a médica devotada aos seus doentes, e às causas sociais, morreu sem realizar esse desejo. Já muito doente, pediu à filha que o fizesse por ela. Teresa, professora de Filosofia no vetusto Liceu Camões, recebeu esta herança e quer honrá-la. Ela é a sobrevivente de uma família em que duas mulheres, pela primeira vez, ao longo de muitas gerações, elegeram o estudo como valor maior. Sara e Beatriz escolheram dormir para sempre à sombra de um fóssil vivo, a árvore forte, símbolo de paz e de resistência, que sobreviveu à bomba atómica de Hiroshima. Mortas e esfumadas em cinza, ainda persistem em fazer a diferença, em ser úteis, alimentando uma Ginkgo Biloba, no Jardim Tropical de Belém. O seu jardim, onde tantas vezes as duas passearam, e que é agora o seu Éden. Para sempre. Seria ela, Teresa, que iria escrever o livro que há duas gerações estava destinado a ser escrito. Seria capaz de vencer as dificuldades que o romance lhe colocaria? Seria capaz de convencer os leitores? Seria capaz de vencer este Don Juan de papel? Não vence quem não tenta. E foi como se ouvisse a avó Sara a falar-lhe baixinho ao ouvido. Sorriu, confiante. Ao alto da página branca, com tinta preta, Teresa colocou o título que Beatriz escolhera: A mulher que venceu Don Juan.
Nota: Por vontade da autora, o artigo mantém a ortografia anterior ao novo A.O.
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Referências bibliográficas
COLEMAN, Eli, “Sexual compulsivity: definition, etiology and treatment considerations”, in Chemical dependency and intimacy dysfunction, Routledge, Ed. Eli Coleman, 1988. KIERKEGGARD, Soren, Enten – eller. Et Livs-fragment. Forste deel (1844). Ou – ou. Um fragmento de vida, 1.a parte, trad., intr. e notas de Elisabete M. de Sousa, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2013. LOUSADA, Isabel, Adelaide Cabete (1867-1935), Lisboa, Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género/Presidência do Conselho de Ministros, 2010. MEYER, Marlyse, Folhetim: uma História, São Paulo, Companhia das Letras, 1996. NEMÉSIO, Vitorino, “O folhetim”, Diário popular, 22 de Março de 1950. OLIVEIRA, Mário António, A formação da literatura angolana, 1851-1950, Lisboa, Imprensa Nacional, 2001. RODRIGUES, Urbano Tavares, O mito de D. Juan e o donjuanismo em Portugal, Lisboa, Ática, 1960. ROUGEMONT, Denis, Les mythes de l’amour, Paris, Galimmard, 1967.
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ROUSSET, Jean, Le mythe de Don Juan, Paris, Armand Colin, 1976.
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Índice de autores
Apelido Antunes, Luísa Marinho Barata, Filipa Barbosa, Maria Lúcia Barroca, Iara Bernardo, Ana Paula Capelo-Pereira, Bernardette Cordeiro, Célia Dallabrida, Norberto Duarte, Constância Lima Francisco, Carla Laguardia, Angela Leandro, Sandra Lopes, Ana Maria Costa Lousada, Isabel Maia, Sara Marques, Teresa Martins Marreco, Maria Inês Meira, Maria José Mello, Adriana Oliveira, Ana Maria de Rodrigues, Ernesto Rosa, Maristela da Santos, Sofia Simões Júnior, Alvaro Santos Sousa, Maria Teresa Sousa, Rui
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Isabel Lousada e Vania Pinheiro Chaves
Teixeiro, Alva MartĂnez Weigert, Beatriz
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Índice de autores
Nome próprio Adriana Mello Alva Martínez Teixeiro Alvaro Santos Simões Júnior Ana Maria Costa Lopes Ana Maria de Oliveira Ana Paula Bernardo Angela Laguardia Beatriz Weigert Bernardette Capelo-Pereira Carla Francisco Célia Cordeiro Constância Lima Duarte Ernesto Rodrigues Filipa Barata Iara Barroca Isabel Lousada Luísa Marinho Antunes Maria Inês Marreco Maria José Meira Maria Lúcia Barbosa Maria Teresa Sousa Maristela da Rosa Norberto Dallabrida Rui Sousa Sandra Leandro Sara Maia
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Isabel Lousada e Vania Pinheiro Chaves
Sofia Santos Teresa Martins Marques
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Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto Estratégico «PEst-OE/ELT/UI0077/2014»