A revivência dos sentidos. Estudos de literatura portuguesa

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Dionísio Vila Maior

A REVIVÊNCIA DOS SENTIDOS Estudos de Literatura Portuguesa



A RevivĂŞncia dos Sentidos Estudos de Literatura Portuguesa


Ficha Técnica Título: A Revivência dos Sentidos. Estudos de Literatura Portuguesa Autor: Dionísio Vila Maior Colecção: Ensaios LusoFonias Composição & Paginação: Luís da Cunha Pinheiro Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Instituto Europeu de Ciências da Cultura – Padre Manuel Antunes Lisboa, agosto de 2017 ISBN – 978-989-8814-66-1 Esta publicação foi financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projecto “UID/ELT/00077/2013”


Dionísio Vila Maior

A Revivência dos Sentidos Estudos de Literatura Portuguesa

CLEPUL Lisboa 2017



Índice

Nota prefacial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Baltasar Dias em filigrana dialógica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Portugal e Brasil: um diálogo essencial . . . . . . . . . . . . . . . . . Relatos de Naufrágio (configurações estilísticas) . . . . . . . . . . . . Viagens na Minha Terra (Carlos e as metamorfoses de uma ideologia) Orpheu, dialogismo, provocação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Fernando Pessoa e a projecção da “portugalidade” . . . . . . . . . . Mário de Sá-Carneiro: “morre jovem o que os deuses amam” . . . . . Almada: “Uno más uno igual a uno” . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cantos da Alma e do Sangue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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5 7 43 57 85 103 143 163 181 203



NOTA PREFACIAL Tendo sido primeiramente publicado (em 2009) numa editora que, pelo que sabemos, deixou de funcionar (a Editorial Hespéria), sentimos a necessidade de republicar os presentes estudos. Assim reaparece, revisto, este livro: A revivência dos sentidos – Estudos de Literatura Portuguesa. Trata-se de um conjunto de estudos que proporcionam um leque de reflexões cuja coluna vertebral incide, no âmbito da produção estético-literária, sobre a relação dialogal, e dialógica, eu/Outro, relação esta aqui entendida com base em cinco pilares essenciais: • em primeiro lugar, o que se identifica com o exercício dialógico entre um eu autoral e um Outro constituído polifonicamente por textos e autores outros; para esse sentido aponta um estudo sobre Baltasar Dias (do século XVI) como um escritor do povo cujo trabalho de escrita não só revela a procura, por parte do autor, de uma sociedade mais humanista, onde prevaleça o respeito pelo outro, mas também se integra num processo de absorção, adaptação, transformação e nacionalização de múltiplos Textos outros; • em segundo lugar, o que se liga ao modo como o eu se posiciona perante o Outro coletivo e divino, em tempo de adversidades; neste âmbito se inscreve o ensaio sobre alguns relatos de naufrágio da História Trágico-Marítima (compilada por Bernardo Gomes de Brito), encarados como representações literárias da tragédia coletiva do povo português; • depois, o que tende a encarar o eu e o Outro enquanto sujeitos representando planos culturalmente descoincidentes; neste vetor se enquadram dois ensaios: um estuda o documento oficial da descoberta do Brasil (a partir do qual se reflete sobre o encontro entre continentes


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culturalmente díspares, sobre o alcance das imagens que, não raras vezes, brasileiros e portugueses têm hoje uns dos outros, bem como sobre algumas das razões que mediata e historicamente se encontrarão na origem de tais imagens); o outro parte de uma reflexão de Mikhaïl Bakhtine para o estudo de alguma produção literária portuguesa e africana de expressão portuguesa, desenvolvida num contexto histórico-cultural enquadrado pela guerra colonial, onde subjaz a crítica aos absurdos da guerra; • depois ainda, o que reenvia para a ligação do eu ao Outro social, tendo em conta a vigência de determinadas considerações de recorte ideológico que, sempre no âmbito estético-literário, o posicionamento do narrador e o trajeto das personagens podem representar; cabe aqui um ensaio sobre a personagem Carlos (das Viagens na Minha Terra, de Garrett), encarado como uma personagem onde convergem importantes vetores ideológicos; • por último, com Orpheu, dialogismo, provocação, o que se relaciona com o protagonismo do grupo modernista português que, sempre equacionado pela sua centralidade na nossa Literatura, vivenciaram, em redor da revista Orpheu, o fenómeno literário de forma muito particular, sobretudo pelo diálogo que com a tradição e com a coletividade portuguesa mantiveram. Nesse sentido, também Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros – cuja produção é sempre considerada pela sua centralidade (no que ao âmbito concreto da Literatura Modernista diz respeito) – são revisitados, procurando-se, desta forma, responder de novo a autores cujos textos gratificam pela efluente exemplaridade e persistem pela convalidação paradigmática.

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BALTASAR DIAS EM FILIGRANA DIALÓGICA1 1. O que se pretende com este trabalho – norteado pela leitura da História da Imperatriz Porcina e da Tragédia do Marquês de Mântua, de Baltasar Dias – é dimensionar estas obras não apenas como textos fundamentais deste escritor, mas sobretudo como textos que, integrando o quadro da literatura de cordel, não se eximem a uma longa tradição histórico-cultural. Trata-se, no fundo, de perspetivar Baltasar Dias, cego cantor que vive num tempo de acentuadas transformações, como um escritor do povo que, especialmente nas vertentes semântica e técnico-discursiva, permanece fiel a uma tradição – entregando-se a um processo de adaptação e de nacionalização –, mas também como um autor cujo trabalho de escrita pressupõe alguma singularidade. Isto implica uma breve consideração sobre a literatura de cordel, nomeadamente o que diz respeito não só a algumas propostas de classificação desta literatura, à sua capacidade para testemunhar a História, os costumes e as mentalidades, mas também à dimensão estético-literária e ao alcance pragmático que lhe estão inerentes. Permanecerá, no entanto, em aberto, uma consideração sobre este epígono vicentino: vê-lo como um “sublime ignorante” (PICCHIO, L. C., 1969: 105) que procurou escrever e transmitir simplesmente o que sentia, sem preocupações de comentar a sociedade, ou como um crítico subtil de um contexto temporal particular, de valores humanos que continuamente se desessencializam?

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Este estudo foi apresentado em 1990, num seminário de Literatura Portuguesa (Aspectos da recepção do teatro espanhol na literatura dramática portuguesa), quando então frequentávamos, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa. Mais tarde, foi publicado na revista Discursos, 14 [II série], Coimbra, Universidade Aberta, Abril, 1997, pp. 53-81.


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2. Ao abordar, ainda que de uma forma liminar, a literatura de cordel, essa “província pouco conhecida” (SAMPAIO, A. F., 1922: 9), deparamos com uma panóplia de definições, facto que revela a dificuldade em determinar e conciliar com precisão os campos e os limites conceptuais que envolvem esse tipo de literatura – questão sobre a qual não se encontra uma opinião irrefragável. A importância da problemática aqui evocada tem preliminarmente que ver com uma premissa metodológica segundo a qual, mais do que dar um parecer definitivo, interessa, sobretudo, refletir e interrogar. Como afirma García de Enterria – numa verdadeira obra de referência neste domínio (Sociedad y poesia de cordel en el Barroco), obra que, nesta fase, seguimos de muito perto (tal como uma outra de Julio Caro Baroja, Ensayo sobre la Literatura de Cordel) –, será a literatura de cordel “un género “fronteirizo”, que participa um poco de todas las características de los restantes géneros, pero manejadas éstas con sencillez, ingenuidad, tal vez hasta con incultura” (GARCÍA DE ENTERRIA, M. C., 1973: 28), poesia “semipopular” (idem: 42), poesia ““a la manera” tradicional” (idem: 401)? Será a “expresión perfecta del gusto popular” (CARO BAROJA, J., 1969: 22)? “Contra Literatura”? “Paraliteratura”? O primeiro e originário modo da publicação dos ‘romances’? Subliteratura? Mais do que avançar para já com uma definição de tipo nominalista, importa referir antes de tudo que as reflexões daí decorrentes reenviam muitas vezes para outros problemas teóricos, cuja clarificação se torna essencial para que se possa explicar com uma maior margem de segurança as motivações mais profundas desta produção literária. Assim, será legítimo perguntar: seria esta literatura lida? Se sim, por quem? Quem a escrevia? Homens do povo, ou os que escreviam a literatura oficial? As questões acerca da literatura de cordel colocadas deste modo deverão ser norteadas por três vetores nucleares: em primeiro lugar, o que assenta na dimensão e na capacidade de veiculação cultural desses pliegos sueltos2 ; 2

“Conhecidos [em Espanha] por “autos que os cegos vendem”, quer dizer os taxados em dez réis ou oito réis de papel; eram vendidos com cartilhas pelas ruas da cidade, nas feiras e aldeias” (GOMES, A. F., s/d: 15, n.r. 9). Em Portugal, chamava-se a esses pequenos livros “literatura de cordel” – por serem vendidos “a cavalo num barbante” (como escreveu Nicolau Tolentino) –, ou “literatura de cego” (CASCUDO, L, C., 1953: 447, n.r. 4). Referindo-se Caro Baroja ao cego cantor, o “ciego de los romances”, “figura popular en España desde la Edad Media” e que durante “los siglos XVI, XVII, XVIII e XIX [. . . ] no sólo recitaba, sino que vendia

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em segundo lugar, o que aponta para o modo de perspetivar esta produção literária não só num contexto global extratextual – o que não implica, evidentemente, que retiremos a importância que lhe é inerente –, mas também nos aspetos parcelares intratextuais que se revelam como sendo os mais salientes; finalmente, o que enquadra o cunho pragmático do discurso da literatura de cordel, facto que nos obriga a aceitar esses pliegos sueltos como espaço não autotélico. Tudo isto sem nos afastarmos da opinião, comummente aceite, segundo a qual a literatura de cordel é irredutível a uma única característica que a individualize total e silenciosamente de outras modalidades de literatura. Cada vez maior é o reconhecimento do grande valor cultural que a literatura de cordel veicula. De facto, são sintomáticas as relações profundas que, num nível mediato, se encontram entre os pliegos sueltos e um macrocosmos onde as facetas histórica, social e cultural se relacionam entre si. Ora, qualen pliegos de cuatro caras o “planas”, aquellas composiciones y otras en metros diferentes o escritas en prosa llana”, adianta: “Al conjunto de impresos de esta índole se les llama “plegos”, “libros”, “literatura de cordel”. Algo equivalente, en suma, a la “littérature de colportage” de Francia, objeto del tráfico de buhoneros y vendedores ambulantes” (CARO BAROJA, J., 1980: 7). Registe-se ainda a definição que Albino Sampaio nos dá de “teatro de cordel”: “[. . . ] não é um género de teatro, é uma designação bibliográfica. E essa designação nasceu de os cegos, ou papelistas que o vendiam, o exporem à venda “pendente dum barbante pregado nas paredes ou nas portas”” (SAMPAIO, A. F., 1922: 9). Ainda sobre a literatura de cordel, leia-se BOYER, A.-M-, 1992: 47-60; nessas páginas, Alain-Michel Boyer escreve sobre múltiplos aspetos relacionados com a literatura de cordel: definição – “Volksbücher na Alemanha, libri popolari em Itália, pliegos sueltos em Espanha (e literatura de cordel), folhetos em Portugal, [. . . ] livrets bleus [em França] [. . . ]” (47), ““folhas volantes” (broadsides ou broadsheets)” (49); analogias com a paraliteratura – “facilidade de aproximação, de compra, de leitura, [. . . ] modo como o circuito de venda faz sobressair já [. . . ] técnicas próprias da grande distribuição”, “extensão da sua difusão” (48); relações desta “literatura de consumo” com a literatura oral e a “literatura legitimada” (49 ss; realce para o quadro apresentado na página 57, o qual, ainda que muito esquemático, ilustra bem aquelas relações); “origem erudita que remonta por vezes ao séc. XII” (54); autores – “raramente conhecidos”, “sem direitos sobre os seus escritos”, “chefes, operários tipográficos”, que “não inventam”, antes recompõem em função dos gostos do público (53); características temático-estilísticas e estruturais – “evocavam fait divers espantosos e acontecimentos insólitos” (49), “linguagem simples”, “narrativas breves” (53); difusão – por “retroseiros ou bufarinheiros [. . . ], de feiras em mercados”, nos “campos”, em pontos estratégicos das “ruas das cidades” (50), mais tarde por livreiros, “nas grandes feiras anuais” (51); modo como e por quem era lida – “leitura colectiva”, em “voz alta” (55), dos folhetos “deitados fora depois de lidos [. . . ] ou reservados para outras utilizações” (51); impressão “pouco cuidada” (51); apresentação – “dobravam[-se], mas [. . . ] não eram brochadas” (49).

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quer escritor, inserido num contexto particular, interpreta-o de uma maneira que variavelmente diverge de outro escritor que vivencia as mesmas experiências socioculturais. Neste sentido, também a literatura de cordel refletirá uma particular “visão do mundo”. Ao ‘abrirmos o pano’ desses pliegos sueltos, deparamos então com uma representação de tipos sociais, ideias morais, preocupações sociais, usos e costumes, trajos, locuções, pormenores da história universal e/ou particular (cf. GARCÍA DE ENTERRIA, M. C., 1973: 46). Torna-se, assim, a literatura de cordel veiculadora e depositária de cultura e de culturas, ou, na expressão de Unamuno, no “sedimento poético de los siglos” (apud GARCÍA DE ENTERRIA, M. C., 1973: 44). Não menos pertinente é o valor estético dessa literatura. Neste âmbito, se há (ou houve) estudiosos (criticados por CARO BAROJA, J., 1969: 21 e 22) que, inseridos na polémica que esta problemática sempre suscitou, ‘arreiam tudo ao chão’, procurando “esgrimir razones morales contra ella [literatura de cordel]”, e se, alimentando-se com pretensões de “san[t]idade estética”, defendem os seus argumentos “en nombre del “buen gusto””, outros há que são mais moderados nas suas posições. Aqueles abjuram a beleza estética da literatura de cordel, assumindo uma atitude de descrença para com ela – defendem a pouquidade no que respeita à riqueza lexical, rotulando-a de “despreciable”: monotonia expressiva, poucas aspirações do ponto de vista literário, uso e abuso de tópicos, vulgarismos, etc. Para esses, como o Marquês de Santillana, a literatura de cordel é feita por sujeitos “sin ningun orden, regla nin cuento”. Se, por um lado, não se nega, de um modo geral, limitada riqueza lexical e exíguos recursos literários em muitos dos pliegos sueltos (a vontade de narrar os acontecimentos tal como se dizia que se tinham sucedido terá estado na origem dos pliegos sueltos narrativos, o que conduzia a um discurso o mais objetivo possível), por outro, o que aquele Don Inigo Lopes de Mendonza e outros (com Don e/ou sem dom) se esquecem é de que todo o conjunto de realizações que um povo idealiza e cria constitui a identidade cultural desse povo; e de que qualquer obra criada pelo labor humano tem, independentemente de se lho atribuir, ou não, um determinado índice estético. Por isso, qualquer que seja a manifestação literária, quer esteja ou não conforme ao “buen gusto”, tem, pelo menos, a sua razão de existir. Deste modo, o que da literatura de cordel, e fundamentalmente das duas obras de Baltasar Dias – a História da Imperatriz Porcina e a Tragédia do Marquês de Mântua –, se poderá sobretudo reter é essencialmente o que nela(s) se enwww.clepul.eu


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contra explícito (e já amplamente reconhecido por autores como Carolina Michaëlis, Teófilo Braga e Alberto Figueira Gomes), ou seja, uma grande força expressiva e narrativa, onde a naturalidade e a espontaneidade estilísticas constituem o verdadeiro ‘ciclorama’. A alusão aos procedimentos estilísticos da literatura de cordel lembra-nos, entretanto, que ela é a “expresión perfecta del gusto popular” (CARO BAROJA, J., 1969: 22). E que “gusto popular” é este? O gosto do povo “não muito amigo da complexidade”, como defendia Baroja? O gosto coletivo de um público em geral, indiferenciado? Seria uma literatura que respondia a um público inculto e douto? Situado numa zona intermédia entre a ‘cultura’ e a ‘incultura’, essa “diferencia de entendimientos” (Lope de Vega, apud MENÉNDEZ PIDAL, R., 1964: 98)? O “vulgo”? Sabe-se que os detentores de capital económico detinham possibilidades para ter um sólido capital cultural, o que favoreceria a leitura de autores reconhecidos; sabe-se de igual modo que a literatura de cordel era, na sua quase totalidade, feita por autores considerados ‘menores’; isso apontaria, silogisticamente, para uma situação particular, em que aqueles leitores não se interessariam pela literatura de cordel e, consequentemente, não a leriam – raciocínio demasiadamente simplista e linear, é certo, mas que não deixa de ter alguma verdade: de uma maneira geral, a literatura de cordel destinava-se sobretudo àquele povo que – “fiel a gostos e hábitos fortemente enraizados no seu quotidiano” (GOMES, A. F., s/d: 11) – recorria ao texto mais ligeiro, barato e mais facilmente manejável, que lhe proporcionasse a evasão da rotina do dia-a-dia, que apelasse à espontaneidade, e não à meditação, que refletisse “las pasiones [. . . ] populares” (CARO BAROJA, J., 1969: 435) – daí se justificando a presença de uma linguagem emotiva e passional nos pliegos sueltos, necessária para a adesão do público, de perfil marcadamente popular, mais ligado à natureza, ao rural, ao campo. Assim escreveria Baltasar Dias para um povo que gostava do sensacional, de temas vividos, do sentimental (e patético, por vezes). Assim escreviam também os da “escola vicentina”, os chamados “imitadores” de Gil Vicente. Como relembrou Alberto Figueira Gomes (cf. GOMES, A. F., s/d: 10-12; 1961: XX e ss; 1983: 26-28), evocando as posições de António José Saraiva e de Luciana Stegagno Picchio, se se considerar que aqueles autores – como António Ribeiro Chiado, Afonso Álvares e Baltasar Dias, entre outros – mantiveram uma relação de fidelidade variável para com as formas www.lusosofia.net


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tradicionais do modelo de auto legado por Gil Vicente, revelaram uma visível continuidade temática, denotaram múltiplas conexões homológicas com o processo operado por Gil Vicente, no que diz respeito à configuração dos retratos físicos das personagens, enraizaram os seus textos no quotidiano, então, sim, teremos a reconhecida imitação. Por outro lado, seria de igual modo injusto encarar a sua obra como se pura imitação houvesse. Além disso, como se sabe, não se tratava propriamente de uma verdadeira escola, nem tão-pouco de uma escola de imitadores – que teria vivido das “varreduras do mestre”. De facto, para além de, em muitos passos, ser possível estabelecer uma ligação entre Gil Vicente e os seus sucessores, a emulação que estes operaram, através da utilização de recursos próprios, constitui, por si só, fundamento para reformular a expressão “escola de imitadores”. O que se poderá encontrar em Afonso Álvares, António Prestes, Simão Machado, Ribeiro Chiado, Baltasar Dias (“o mais popular dos cultores da “moralidade” vicentina” [PICCHIO, L. C., 1969: 104]) e tantos outros é essencialmente um paralelismo temático com Mestre Gil, correspondência essa que se traduz, no entanto, num desenvolvimento original por parte daqueles autores; cada um deles “incute” “à obra produzida feição e inspiração próprias”, tendo naturalmente sempre em vista as “preferências manifestadas pelo público” (GOMES, A. F., s/d: 11): a configuração de situações, de ideias, da intriga, é geralmente acionada de modo diferente; além disso, de acordo com o momento histórico, desenvolvem a tradição e mantêm acesos os sentimentos que constituem o húmus da vivência do povo, estabelecendo um contacto direto com o povo. Entre os “escritores do povo”, é Baltasar Dias quem mais se salienta: “De todos os poetas dramáticos portugueses, é este o mais conhecido e amado pelo povo; tinha o segredo com que fazia entender-se pela grande e ingénua alma da multidão”, afirma-o Teófilo Braga (BRAGA, T., 1870-1871: 281). Pelo convívio direto com o povo, Baltasar Dias – nomeadamente nas duas obras que nos interessam – espelha, no fundo, o estado de alma daquele. A Tragédia do Marquês de Mântua e a História da Imperatriz Porcina são duas obras onde estão contemplados dois topoi europeus – que ganham embora uma operacionalidade específica quando reorganizados e submetidos à lavra de Baltasar Dias, em que o traço da singularidade se assume como uma das linhas orientadoras da sua produção textual.

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3. Entretanto, não podemos ler estas duas obras como textos fechados em si mesmos, como mensagens com predicados autárcicos, premissa que, por isso, leva a encarar Baltasar Dias como um escritor que não se libertou de uma herança de referências culturais e que, consequentemente, não produziu [aqueles] textos de uma forma rigorosamente original, pois eles constituem, em primeira análise, ecos onde estão projetados de modo especular discursos distantes. Torna-se, por conseguinte, indispensável, antes de mais, esboçar uma breve reflexão acerca do carácter dialógico e intertextual do discurso verbal, para depois prolongarmos essas observações preliminares ao âmbito concreto da Tragédia do Marquês de Mântua e da História da Imperatriz Porcina. No panorama dos estudos levados a cabo por Mikhaïl Bakhtine, revela-se com especial importância o seu conceito de dialogismo, conceito que (como já escrevemos noutro lugar) se alicerça numa determinada conceção da “prática discursiva”, cuja atualização é marcada por um conjunto de circunstâncias espácio-temporais. Conceito “central, capaz de explicar la condición esencialmente interpersonal y social del lenguaje” (REIS, C., 1989: 55), o perfil semântico do dialogismo bakhtiniano é sobretudo preenchido com os termos interindividualidade, inter-relação e contexto: um enunciado “présuppose toujours des énoncés qui l’ont précédé et qui lui succéderont; il n’est jamais le premier, jamais le dernier; il n’est que le maillon d’une chaîne et ne peut être étudié hors de cette chaîne”, escreve (BAKHTINE, M., 1984: 355); ou, “le text ne vit qu’en contact avec un autre text (contexte)” (idem: 384). Com estas afirmações, Bakhtine sublinha, assim, a noção de que qualquer texto verbal mantém sempre alguma relação com outros textos. Numa outra obra, Esthétique et théorie du roman, Mikhaïl Bakhtine afirma, por outras palavras, a mesma ideia, quando diz que um enunciado “vivant, significativement surgi à un moment historique et dans un milieu social déterminés, ne peut manquer de toucher à des milliers de fils dialogiques vivants” (BAKHTINE, M., 1978: 100). Que outra coisa significam estas palavras senão que um sujeito que produz um discurso se encontra sempre inserido num determinado contexto e que qualquer discurso, não forçosamente literário, se relaciona dialogicamente com outros discursos? O mesmo é dizer que qualquer enunciado verbal “dialoga” sempre com outros enunciados, situados esses no passado ou no presente: “[. . . ] le mot (le texte) est un croisement de mots (de textes) où on lit au moins un autre mot (texte)”, escreve Julia Kristeva; e, refewww.lusosofia.net


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rindo-se já ao conceito de intertextualidade, acrescenta que “tout texte se construit comme mosaïque de citations, tout texte est absorption et transformation d’un autre texte” (KRISTEVA, J., 1969: 145 e 146, respetivamente). Também Augusto Ponzio esclarece que “la logica specifica del testo è una dialogica, una dialettica intertestuale. [. . . ] Il senso del testo si decide nella logica della domanda e della risposta, che non sono astratte categorie del Logos, assoluto e impersonale, ma concreti momenti dialogici che presuppongono un «reciproco trovarsi fuori»” (PONZIO, A., 1982: 58). Ora, podemos identificar, em parte, a intertextualidade kristeviana (conceito, aliás, que decorre diretamente do de dialogismo) com a relação que um texto mantém com outros textos – encarando-o, portanto, como um espaço verbal percorrido por outros discursos. No entanto, intertextualidade e dialogismo não se encontram numa relação de total similitude. Com efeito, o dialogismo, nos termos em que Bakhtine o conceituou, implica, fundamentalmente, as seguintes variáveis: 1. o dialogismo é, antes de mais, uma propriedade do discurso, do emprego da linguagem, um encontro de vozes; 2. qualquer enunciado tem conexões com outros enunciados; 3. um enunciado nunca é autotélico, pois depende sempre de outros enunciados; 4. qualquer texto, literário ou não, é – por nele convergirem sempre outros textos – um “grande diálogo”, um espaço que patenteia, implícita ou explicitamente, uma inter-relação discursiva assente numa relação dialógica; 5. qualquer enunciado contém sempre enunciados alheios que, ainda que condicionando a liberdade discursiva do sujeito, permitem configurar um texto novo como um espaço de pergunta-resposta, originando, assim, uma contínua dinâmica de transformação, uma vez que os sentidos e os valores (na “Grande temporalidade”, para utilizar uma expressão bakhtiniana) se modificam; 6. o dialogismo é, intrinsecamente, compreensão ativa: compreender (interpretar e produzir) um outro enunciado provoca um enriquecimento www.clepul.eu


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do significado e uma dilatação do ato de produção desse enunciado, pois aquele que interpreta prolonga por si só o ato produtivo do primeiro enunciado, pelo que o “intérprete” se torna, também ele, “autor”; logo, o dialogismo é dinâmico, acarretando sempre alguma transcensão de sentido: “Comprendre c’est mettre en rapport aux autres textes et penser dans un contexte nouveau (dans mon contexte, dans le contexte contemporain, dans le contexte futur)” (BAKHTINE, M., 1984: 384); 7. todo o enunciado, sendo dialógico, orienta-se sempre para o outro – exterior ou não ao enunciador, porque o dialogismo pode ser também expressão do desdobramento do eu num tu, também outro –, para alguém capaz de o compreender e de dar uma resposta (ou seja: há sempre uma “responsividade intrínseca” em toda a produção discursiva; por isso, um enunciado é sempre uma pergunta); 8. em todo o enunciado, enquanto corpo verbal produzido e actualizado, há sempre uma dimensão concitativa inerente, já que, pressupondo sempre um destinatário, uma instância que o leia (e se o lê, responde-lhe), reclama a sua escuta, exige uma réplica: um enunciado “doit être considéré, avant tout, comme une réponse à des énoncés antérieures à l’intérieur d’une sphère donnée [. . . ]: il les réfute, les confirme, les complète, prend appui sur eux, les suppose connus et, d’une façon ou d’une autre, il compte avec eux” (BAKHTINE, M., 1984: 298). Para uma melhor avaliação dos conceitos de dialogismo e intertextualidade, incidamos desde já atenção especial nos dois últimos pontos. É sabido que o modo como é enquadrada a intertextualidade kristeviana conjuga a unidirecionalidade implicada pela noção de palimpsesto textual com a intervenção e o acrescento que, num enunciado, se faz a outros já existentes. Se Julia Kristeva defende que “le «mot littéraire» n’est pas un point (un sens fixe), mais un croisement de surfaces textuelles, un dialogue de plusieurs écritures: de l’écrivain, du destinataire (ou du personnage), du contexte culturel actuel ou antérieur” (KRISTEVA, J., 1969: 144), Bakhtine, por seu lado, sublinha que “l’acte de compréhension suppose un combat dont l’enjeu réside en une modification et en un enrichissement réciproques” (BAKHTINE, M., 1984: 362), vincando, desta maneira, uma conceção dialógica do fenómeno comunicacional; por outras palavras, não só considera a necessidade de se www.lusosofia.net


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vincar um encontro de vozes (encontro esse que comporta avaliações), mas salvaguarda igualmente o dinamismo dialogal entre passado, presente e futuro (não permanecendo as suas coordenadas sobre o dialogismo nos limites das formas palimpsésticas, orientadas somente para o passado). Ou, como afirma Iris Zavala, a intertextualidade “se limita a la superficie textual, a una reminiscencia y mosaico de citas almacenadas en una suerte de museo imaginario, desligado de la conciencia coletiva, por ejemplo; teoría que mira ciertamente con nostalgia al pasado, pero no de manera dinámica, sino como un retorno”; contrariamente: “[. . . ] la dialogía, la «voz enmarcada» que propone Bajtin, es fuente de invención y renovación cultural, que revela a su vez proyectos colectivos del pasado que se incorporan a la lengua nacional, a la individual y a la de clase en una orquestación orgánica del presente” (ZAVALA, I., 1991: 108). Por este prisma, qualquer enunciado interessa-nos em função de duas facetas, diferentes, mas complementares: a primeira, que (pelo facto de aquele implicar a convergência de discursos outros, aos quais responde) incide sobre o passado; a segunda, que, tácita ou explicitamente, compreende uma solicitação de um contexto posterior: Se constituant dans l’atmosphère du “déjà dit”, le discours est déterminé en même temps par la réplique non encore dite, mais sollicitée et déjà prévue. Il en est ainsi de tout dialogique vivant (BAKHTINE, M., 1978: 103);

ainda por outras palavras, Bakhtine afirma que o discurso “veut l’audition, la compréhension, la réponse, et il veut, à son tour, répondre à la réponse, et ainsi ad infinitum. Il entre dans un dialogue où le sens n’a pas de fin” (BAKHTINE, M., 1984: 337)3 . Note-se, porém, que, ao valorizar a “resposta” do outro, está Bakhtine obviamente a referir-se menos ao “destinatário real” ao qual uma mensagem é dirigida do que a um destinatário potencial, reclamado por essa mensagem, a um “sur-destinataire supérieur (le troisième) dont la com3

É também sob este ângulo crítico que Augusto Ponzio sintetiza: “Ogni replica reagisce alla parola altrui, [. . . ] a quella che essa può provocare e cerca di prevenirla e di risponderle” (PONZIO, A., 1980: 114); igualmente Zavala explica: “Del futuro – podríamos decir – anticipamos ciertas respuestas al hacer ciertas preguntas, del pasado nos llegan otras a través de nuestro propio lenguaje y de la cultura” (ZAVALA, I., 1991: 63); ou ainda Morson, quando afirma: “Each act of speech is aware of potential responses to it, and anticipates them in its composition” (MORSON, G. S., 1978: 410).

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préhension responsive absolument exacte est présupposée soit dans un lointain métaphysique, soit dans un temps historique éloigné” (idem: 336). Assim, ao identificarmos dialogismo com a relação que, em termos semióticos, um texto mantém com outros textos – encarando, deste modo, esse texto como sendo entretecido pelo diálogo de vários textos –, importa considerar a ideia pela qual a História da Imperatriz Porcina e a Tragédia do Marquês de Mântua constituem espaços textuais polifónicos onde confluem várias outras ‘notas’, outros textos (mas onde se metamorfoseiam também através de um processo de transcensão que se enraíza na consciência individual deste escritor). E se dizemos outros textos, evocamos o que, em termos cronológicos e ontológicos, é o corpus de textos que existe antes e debaixo dos dois textos de Baltasar Dias e que, sob as estruturas temáticas destes últimos podemos ler e decifrar em diferentes modalidades e amplitudes. Nesta ordem de ideias, o que interessa a partir de agora é (negando-se o processo de criação ex nihilo por parte do “sublime ignorante” que foi B. Dias) relembrar as origens e o caminho evolutivo do “texto palimpséstico” que aflora dialogicamente na estrutura de superfície temática da História da Imperatriz Porcina e da Tragédia do Marquês de Mântua4 .

4. Baltasar Dias terá vivido entre o final do reinado de D. Manuel e o início do de D. Sebastião5 . E a sua aceitação por parte do povo foi grande, graças, entre outros motivos, à simplicidade da sua linguagem e ao aproveitamento de uma temática que despertava interesse no povo. Num texto de 1837, sobre o “Teatro Português até aos fins do século XVI”, escreve Alexandre Herculano: No reinado de D. Sebastião, o cego Baltasar Dias, poeta natural da Madeira, publicou um grande número de autos e outras obras, humildes pelo estilo, mas com toques tão nacionais e tão gostosos para o povo, 4

Para o desenvolvimento destas questões, tivemos sobretudo em conta o apoio bibliográfico essencial de alguns trabalhos de Teófilo Braga (1870-1871; 1881; 1896; 1906; 1909), Carolina Michaëlis (1934), Luís da Câmara Cascudo (1953) e Alberto Figueira Gomes (s/d; 1961; 1983). 5 No que diz respeito aos elementos biográficos de B. Dias, ao contexto sociocultural que o rodeou, ao conjunto das suas obras, assim como aos princípios estilístico-ideológicos nelas presentes, remetemos para GOMES, A. F., s/d: 13 ss e 1983: 39 ss.

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Dionísio Vila Maior que ainda hoje são lidos por este com avidez. Correi as choupanas nas aldeias, as oficinas e as lojas dos artífices nas cidades, e em quase todas achareis uma ou outra das multiplicadas edições dos Autos de S. Aleixo, de S. Catarina e da História da Imperatriz Porcina, tudo obra daquele poeta cego do século XVI (HERCULANO, A., 1986: 69).

E, “por ser homem pobre”, vendia e cantava publicamente os seus pliegos sueltos, revitalizando, deste modo, a imagem antiga do cego músico e cantor6 . Realce-se, desde já, três pontos: o primeiro diz respeito ao facto de que muitos cegos eram também autores dos pliegos sueltos que vendiam (como cegos? “Engaño”, por vezes, como referia Lope de Vega, pois muitos não o eram); o segundo liga-se com a interferência direta na configuração da massa humana: referimo-nos à figura popular do “cego dos romances” e ao papel de destaque que detinha na comunidade; por último, o que contempla o “cego dos romances” com um estatuto de representação que se adequa às exigências, neste caso, da sociedade portuguesa (e, mesmo, de uma época). Num tempo em que a palavra deteria maior valor do que a imagem, o ascendente destes narradores conferia-lhes não só a autoridade de serem as únicas fontes de onde o povo poderia receber informações, mas também um especial estatuto de alguém que, fazendo uso de todo um conjunto de jogos mímicos e vocais, permitiria ao povo visualizar os acontecimentos. É neste contexto que surge Baltasar Dias, o “ceguo da ylha da Madeira. . . ” (“quase o único sucessor português [. . . ] daqueles cegos jograis que cantam velhas façanhas” [VASCONCELOS, C. M., 1934: 256]) – um contexto, aliás, marcado por profundas modificações culturais. Ainda que no século XVI cada uma das várias literaturas europeias apresentasse estados muito divergentes de desenvolvimento7 , todo uma miríade de acontecimentos modificava as conceções tradicionais acerca da realidade: o comércio e a atividade in6

Nas antigas populações “scythicas”, prevalecia o costume de cegar os escravos, que se tornariam depois cantores de narrativas (BRAGA, T., 1981: 38). Nas raças germânicas, “cego é sinónimo de cantor e poeta” (BRAGA, T., 1885: 130). Em Portugal e em Espanha, muitos cegos – músicos e cantores – eram os vendedores de pliegos sueltos, facto que terá contribuído, provavelmente, para que se cunhasse a expressão “romances de ciego”. Sobre a figura popular e arquetípica do cego cantor, leia-se CARO BAROJA, J., 1969: 41-50; 1980: 7-8. 7 Recorde-se que quando, em Itália, os valores renascentistas entravam em declínio, por volta dos anos 30, as literaturas espanhola e portuguesa começavam a aceitar esses valores.

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dustrial desenvolvem-se; surgem novas aspirações culturais, novas necessidades; a imprensa acelera a difusão de ideias e de notícias, constituindo-se como um poderoso fator de transformação de mentalidades; as descobertas modificam as conceções multisseculares acerca do planeta, costumes, crenças; cria-se, com o desenvolvimento técnico, um horizonte de otimismo e de confiança no futuro; com as ideias de Lutero, divide-se o mundo religioso; verifica-se a ampla assimilação da cultura greco-latina, já iniciada pelos humanistas em Itália; muitos nobres e eclesiásticos vão, sob a égide da coroa, para Itália (sobretudo para Florença) para o conhecimento de “letras mais humanas”; durante os governos de D. Manuel e de D. João III, verifica-se uma forte tendência para a difusão de uma nova cultura literária. . . Entretanto, em Portugal, a tradição mantinha-se fortemente encravada. E Baltasar Dias não deixou de a servir com fidelidade, uma vez que a Tragédia do Marquês de Mântua e a História da Imperatriz Porcina refletem, em muitas vertentes, uma mundividência medieval, justificada, antes de mais, pela presença de dois eixos temáticos centrais: o cavaleiresco e o religioso (cf. GOMES, A. F., s/d: 17 ss). No que concerne à Tragédia do Marquês de Mântua, é o espírito de cavalaria, com as suas modulações – fé na justiça, honra, heroísmo –, que a orienta e lhe preside. São, por exemplo, duas as componentes da justiça que guiam os pensamentos e os movimentos do Marquês de Mântua e do Imperador: o Marquês quer fazer justiça, jurando “de por armas o fazer”8 , pois Valdovinos, seu sobrinho, fora morto “à traição” (MM: 331) “com grã falsia” (MM: 315) por D. Carloto, o filho do Imperador9 ; mais do que a justiça divina, o Marquês acredita ainda no valor da honra que poderá nortear o exercício régio no cumprimento da justiça [humana]. De facto, o Imperador, mais tarde, perante provas evidentes contra o seu filho, não hesita em condená-lo, porque “Melhor é que o sucessor / padeça morte sentida, / que ficar o pai tredor: / que será trocar honor, / pela deshonra nascida” (MM: 346); além disso, quer mais a razão “que amizade sem pavor” (MM: 346); ou,

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O juramento (não propriamente este) é outra modulação do ideal cavaleiresco. A partir daqui, quando nos referirmos às duas obras de Baltasar Dias, fá-lo-emos utilizando as seguintes abreviaturas (seguidas de página): IP, para a História da Imperatriz Porcina (que se encontra em DIAS, B., s/d: 263-303) e MM, para a Tragédia do Marquês de Mântua (que se encontra em DIAS, B., s/d: 303-349). 9

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como afirma o Marquês, “convém ao christão / que use mais de rezão / que de afeição voluntária” (MM: 347)10 . De notar sobretudo o significado assumido, nestes comportamentos, por dois elementos; por um lado, aquele que, na linha da tomada de posição do Marquês, se torna testemunho de uma justiça que roça os limiares da vingança, atitudes que, no entanto, não representam propriamente o ideal de comportamento atinente ao verdadeiro espírito de cavalaria. Por outro lado, ao falar-se de justiça régia e em honra, percebe-se que a conexão entre estes dois valores se fundamenta, antes de mais, num posicionamento específico, naturalmente assente nas bases medievais do ideal puro de cavalaria. Constituem dois termos que se equacionam perfeitamente e que vão ao encontro da verdadeira essência cavaleiresca. Se, com a prática dessa justiça, morrer D. Carloto, é porque a vida (e aqui depara-se-nos um sub-vetor semântico) é uma passagem breve (“nesta breve vida” [MM: 347]), e “a morte a toda a pessoa” é uma “Coisa [. . . ] mui natural” (MM: 320); além disso, também outra variante da justiça – a divina – é pedida (por Valdovinos): é o “Alto Deos Omnipotente” (MM: 313) quem decidirá, em primeira instância, o rumo que terá a vida de D. Carloto, pois Ele é o “juiz direito sem par” (MM: 313). Nas últimas palavras transcritas, não está em causa apenas a ilustração de uma linha temática na Tragédia do Marquês de Mântua, com base num princípio cuja presença efetiva se identifica com o ideal cavaleiresco. Está igualmente em causa a necessidade de evocarmos uma outra dominante que rege a História da Imperatriz Porcina, dominante essa que se integra na esfera da religiosidade. Não nos interessa estudar a biografia de Baltasar Dias, o que, de facto, constituiria um âmbito merecedor de especiais cuidados, pela possibilidade de revelar se, por exemplo, B. Dias teve ou não educação religiosa; o que nos interessa especialmente considerar são os termos em que se configura, ao nível da História da Imperatriz Porcina, um dos fios temáticos nucleares – o vetor religioso – e, correlatamente, verificar em que medida essa nota, em relação a esta linha orientadora, é tributária da análise das virtualidades significativas dessa configuração.

10 A própria esposa do Imperador concordara que “melhor é morrer o filho / que deshonrar o estado” (MM: 345), o que não evitaria, porém, a dor e a tristeza que sempre a acompanhariam.

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Significativo, neste contexto, é o facto de B. Dias nos deixar transparecer, através do movimento das suas personagens, uma projeção de valores que eventualmente poderão refletir a sua crença no Evangelho e na Justiça divina. É graças à intervenção da Virgem Santa Maria que Porcina – a heroína casta, que fora falsamente acusada pelo cunhado que dela se apaixonara – consegue salvar a sua honra, a sua “limpeza” (IP: 276). A fé que B. Dias mostra para com o divino poderá, mediatamente, inferir-se na confiança absoluta em Nossa Senhora, quando o que está em causa é a resolução de problemas de âmbito moral. E isto independentemente do(s) modelo(s) europeu(s) que circulava(m) na Europa com o já consagrado lugar-comum da interferência da Virgem. Na verdade, B. Dias poderia não aceitar este episódio e, muito simplesmente, não integrá-lo na sua obra, ou substituí-lo por um outro. Mas são os melindres que se deduzem no tratamento da linguagem que poderão, em princípio, e mediatamente, testemunhar e confirmar os seus princípios de fé. Não é uma linguagem muito rica e exuberante, mas simples, como se pode comprovar, lendo as palavras que descrevem a chegada da Virgem Santa Maria, que “vinha com magestade”, com a finalidade de “guardar a limpeza / de quem se a ela recorria. / Chegando com grande amor / onde a Emperatriz jazia, / disse-lhe [. . . ], / com suave melodia” (IP: 286). A sintonia de B. Dias com a mundividência judaico-cristã poderá manifestar-se ainda num outro aspeto: a conceção do corpo como obstáculo à progressão espiritual e à consecução de virtudes superiores. Esta convicção está, aliás, expressa ao longo do universo diegético da História da Imperatriz Porcina. São os desejos concupiscentes que provocam a morte, em menos tempo que “uma avé-maria” (IP: 277), dos três homens que querem gozar “primeiro dela [Porcina], / [antes] que a coma a terra fria” (IP: 276). Um Conde que vem por acaso [?] “de Jerusalém” (IP: 277) acode aos gritos da Imperatriz e torna-se o algoz dos três que pretendiam violar a inocente. A problemática da queda do Homem, consequência das liberdades lascivas do corpo, encontra, aqui, uma entoação profundamente significativa, que o autor procura denunciar com uma forte convicção, refletindo, assim, o seu paralelo com os desígnios fundamentais da religião cristã. Albano, irmão do Imperador, e Natão, irmão do Conde, ofendem a honra de uma “Emperatriz” de “muitas virtudes” (IP: 267), “tão casta” (IP: 270); ficam “doente[s] de cama muy gafo[s]” (IP: 289 e 295), pois quiseram transcender o limiar que separava a zona obscena (a deles) da esfera pudica e virtuosa (a da Imperatriz). A ofensa que levam a cabo www.lusosofia.net


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não impede, todavia, que uma outra diretiva do credo católico desempenhe também um papel relevante no enorme feixe de sentidos inscritos nesta zona do religioso: referimo-nos ao perdão, quando o arrependimento se consuma. Com efeito, é “A Emperatriz piedosa / com a humildade que havia” (IP: 291) que, sofrendo crueldades e desterro11 , perdoa e faz com que perdoem Natão (que, curado, “foi-se a fazer penitência” [IP: 294]) e Albano (que “morreu bemaventurado / porque bem se arrependia” [IP: 303]). Seria, no entanto, redutor se comprimíssemos nestas duas linhas o valor destas duas obras que as fazem entroncar em princípios religiosos que marcaram profundamente a mundividência medieval. Mas o que se não pode afastar totalmente é a noção de que Baltasar Dias é um autor que assenta os pilares da sua fé nessa imago. Os princípios representados na sua obra permitem-nos, em segunda instância, relacioná-los com um verdadeiro “crente de convicções inteiras” (GOMES, A. F., 1961: LII), com um “crente que não discute, nem duvida, nem interroga” (GOMES, A. F., s/d: 22). É isso que se poderá deduzir das leituras destes dois textos, quando são analisadas as falas e os movimentos das personagens. Por elas, a fé do autor poderá – à margem de uma determinada conceção alteronímica e dialógica do fenómeno de produção estético-literária – exprimir-se; pelos lábios das personagens, Dias espelhará então a sua inspiração cristã, como naquela importante passagem em que Valdovinos, exangue, pronuncia a Salve-Rainha: “Salve, Senhora benigna, / madre de misericórdia” (MM: 324). Baltasar Dias refletirá, assim, uma determinada conceção religiosa, em que o castigo, o arrependimento e o perdão funcionam como três elementos suscetíveis de informarem situações e conflitos de enorme representatividade religiosa, desígnios que o carácter certamente cristão do autor pôde concretizar. Com intuitos meramente estéticos? Com intuitos apologéticos? Talvez, para um cego e poeta lírico, a sua visão interior sentisse a necessidade de excitar a fé daquele povo que ouvia e lia estas obras; provavelmente este “espírito místico e piedoso” terá percebido que, oferecendo alimento espiritual ao povo, poderia contribuir para um dos objetivos essenciais do Cristianismo – a “salvação da alma” (GOMES, A. F., s/d: XLVII) –, tentando

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A dor que permite ainda mais o aperfeiçoamento moral é, como sabe, também muito cara à imagística cristã medieval.

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para isso revelar quão belo é o esforço de cada um, quando tem por primeira e última finalidade atingir a Ideia de Deus. É isto que se pode inferir da leitura da Tragédia do Marquês de Mântua e da História da Imperatriz Porcina. Seguindo de perto as posições de Teófilo Braga, Luciana Stegagno Picchio e Alberto Figueira Gomes, não se torna difícil evidenciar esse facto na escrita de B. Dias, numa época de transição e renovação, em que “o soneto, a canção, o hendecassílabo, o terceto dantesco, a oitava rima de Policiano” se assumem como “novas formas” (GOMES, A. F., s/d: 21). Se é certo que (como, por exemplo, Alberto Ferreira Gomes variavelmente confirmou) o modo de divisão das cenas, o tom declamatório (tão ao gosto do público), a poesia em “medida velha” – na Tragédia do Marquês de Mântua –, a assonância das rimas em “-ia” – na História da Imperatriz Porcina –, constituem, entre outros, exemplos de uma fidelidade à tradição, também não é menos verdade que podemos encarar a escrita deste “sublime ignorante” como sendo “um dos mais felizes autores [. . . ] [da] literatura de cordel” e que “não era de todo inculto” (PICCHIO, L. C., 1969: 105). “Poeta de coração sensível”, Baltasar Dias, em função do estatuto social e ontológico das personagens, utiliza ou um estilo marcado por uma expressiva simplicidade (quase sempre), ou um estilo cuidado. Repare-se na Tragédia do Marquês de Mântua, onde, por exemplo, a linguagem do pajem denota um evidente contraste com a do Imperador ou dos embaixadores (D. Beltrão e o Duque de Amão), reflexo evidente da consciência atenta do autor da relação entre a estirpe social da personagem e o discurso por ela utilizado, de modo a que não resultassem dissonâncias com a tonalidade discursiva exigida. Note-se a sequência que se estende do verso 94 (“Madre minha muito amada”) até ao verso 113 (“nem louvar-me de esforçado” [MM: 312]) – trecho que se aproxima do patético e que em parte poderá ilustrar o porquê da aceitação de B. Dias pelo povo e ainda hoje por uma tão grande “diferencia de entendimientos”. Além disso, aos pensamentos que Dias coloca na boca de algumas das suas personagens não faltam alguns rasgos apelativos. Repare-se que, quando B. Dias coloca os versos “pois quem não só conhece a si / mal conhecerá ninguém” (MM: 317) nos lábios do moribundo Valdovinos, apelará, em segunda instância, para que cada um se conheça a si próprio antes de ajuizar o comportamento alheio.

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Atente-se igualmente na subtil crítica que o autor tece, pela boca do marquês, às ilusões e desenganos do “triste mundo coitado, / ninguém deve em ti fiar, / pois és tão desventurado, / que os que tens mais exalçado / mor queda lhe fazes dar!” (MM: 317). Registe-se ainda a tirada proverbial do ermitão, já por si um símbolo da personagem que vive solitária e em oração, quando – depois de falecer Valdovinos –, como que para atenuar o espírito do marquês, diz que a “vida é um vento / tão ligeiro de passar / que passa em um momento / por nós assim como o ar” (MM: 326). De igual modo as tiradas e os diálogos entre as personagens revelam uma grande sensibilidade, uma grande delicadeza de sentimentos por parte de Baltasar Dias, que parece conhecer os condicionalismos socioculturais que determinam o comportamento linguístico daquelas. B. Dias conhece a vera regola, facto que se pode comprovar, por exemplo (após Valdovinos “expirar), na diferença que marca os registos linguísticos das tiradas do Marquês e do pajem; por um lado, o enunciado do Marquês, marcado por um registo sublime: “Quebrem-se minhas entranhas / rompa-se meu coração / com minha tribulação. / Chorem todas as companhas / minha grande perdição, / escureça o sol com dó, / caiam estrelas do céu, / as trevas de Faraó / venham já sobre mim só, / pois minha luz se perdeu / na luz de mui claro dia” (MM: 325); o do pajem, pelo contrário, é particularizado por uma maior simplicidade: “Ó meu senhor muito amado / porque vos tornastes pó? / Porque me deixastes só / em este mundo coitado / com tanta tristeza e dó?” (MM: 325). Assim, Baltasar Dias terá sido, com certeza, um poeta que agradava à multidão, ao povo: soube percorrer os vários registos linguísticos; soube imprimir à sua linguagem (como, por exemplo, em quase toda a História da Imperatriz Porcina) uma tocante intensidade lírico-religiosa. E não será mesmo excessivo pensar que não falta a um Baltasar Dias tradicional momentos inovadores que testemunham alguma originalidade na construção dos seus textos, no desenvolvimento de tópicos, histórias encantadoras, que eram ouvidas com agrado pela Europa fora. Na verdade, já estudiosos como Teófilo Braga, Carolina Michaëlis e Alberto F. Gomes cristalizaram a ideia de que Baltasar Dias foi o nacionalizador de alguns ‘romances’ europeus. De facto, mais do que introdutor (uma vez que algumas versões desses ‘romances’ já seriam conhecidas entre nós), Dias desenvolve os temas do Marquês de Mântua e da Imperatriz Porcina, tentando provavelmente atingir uma concatenação harmónica (dialógica) entre um vasto tecido de tradições (no qual as obras em www.clepul.eu


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estudo se enraízam) que conformam a história da poesia lírica europeia, a imaginação popular e, também, a sua originalidade.

5. Falar em ‘romance’ obriga-nos a recuar aos séculos XIII e XIV, em que a palavra designava “dialectos populares”, servindo igualmente aos “latinistas” “para designar os cantos do povo” (BRAGA, T., 1881: 42), pelo facto de aqueles “eruditos [. . . ] considerarem os dialectos em que eram cantados como desprezíveis em comparação à língua latina” (idem: 33)12 ; refere ainda Menéndez Pidal: “La palabra romance en su sentido primario significó “lengua vulgar”, a diferencia de latín [. . . ]; pero además tuvo desde la Edad Media en el campo literario un sentido vago, designando composiciones varias redactadas en lengua común, no en el latín de los clérigos”; e acrescenta, dizendo que “se llama romance a un poema extenso escrito en cuartetas del mester de clerecía, que no se cantaba, sino que se «rezaba» o recitaba” (MENÉNDEZ PIDAL, R., 1953: 3). Entretanto, para o povo, esse ‘romance’ tinha o mesmo sentido que ‘estória’13 . E “estória” é a obra intitulada História da Imperatriz Porcina, obra que, estruturalmente, sofreu sucessivas transformações ao longo dos tempos (cf. CASCUDO, L. C., 1953: 288-289). Dois outros aspetos fundamentais importam entretanto, sublinhar: a história da castidade heroica de uma Imperatriz e a sua salvação pela intervenção do sagrado, motivos que têm como herança tópicos difundidos noutras produções europeias. No que diz respeito ao “romance-conto” que é a História da Imperatriz Porcina, são fundamentalmente cinco as raízes consi-

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Sobre a “génese e o desenvolvimento do romance”, veja-se SILVA, V. M. A., 1990: 671-684. “[. . . ] do nome dado a esses cantos, ou romance”, escreve Teófilo Braga, “veio a designação do género poético. O povo porém chamou-lhes Aravia, e mais geralmente Estória [. . . ]” (BRAGA, T., 1881: 33). Carolina Michaëlis de Vasconcelos sublinha, também neste contexto, que os romances “primitivos” (do século XV), enraizando-se mediatamente nos cantares de gesta, “são trechos desligados de cantares jogralescos”, em que “cada um dos quais equivale a uma das tiradas das gestas [. . . ]”; e continua: “Estes trechos fixaram-se na memória do povo, por serem os mais impressivos e românticos, e ganharam assim vida independente, lucrando em beleza poética e movimento dramático pelo processo de simplificação e encurtamento, a que a colaboração popular os submeteu [. . . ]” (VASCONCELOS, C. M., 1934: 12-13). 13

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deradas nucleares: as vias francesa, espanhola e oriental, assim como a Gesta Romanorum e a Crescentia14 . Em todos os finais de século, e sobretudo em todos os finais de milénio, a História tem testemunhado a emergência no imaginário coletivo de uma atmosfera pessimista de tonalidade crepuscular. E se, para poucos, a aproximação desse fim cronológico é perspetivado como a antecipação de um tempo de plenitude, para muitos, ele é teleologicamente sentido como aproximação de um desenlace, fomentando-se sentimentos coletivos de apreensão e fatalismo. As razões desta atitude fazem, aliás, parte de toda uma cultura ocidental, estando já latentes na sua memória coletiva, como que obrigando, a priori, o indivíduo a pensar dessa forma. Como afirma M. Bressollette, o fim de século é um sentimento que resulta de uma evolução, de um “processo subterrâneo” (BRESSOLETTE, M., 1989: 587-588). Em tal ambiência se encontra o homem europeu nos finais do século X, facto que o conduzirá paulatinamente a encontrar no sagrado um termo de transcensão daquele sentimento de receio do fim do mundo. Por isso, escreve Cascudo: “No meado do século XI, como consequência dos terrores colectivos do Ano Mil, a devoção à Virgem Santíssima, como intercessora das graças e defensora dos fiéis ante seu Divino Filho, teve amplitude maior e popularidade absoluta” (CASCUDO, L. C., 1953: 290). Consequentemente, são cada vez mais os textos apologéticos, que seriam agrupados sob o nome de Miracle de la Vierge, obedecendo a dois desígnios: o primeiro, já referido, consistia numa procura do sagrado como forma de salvação da alma e como meio de ultrapassar os medos coletivos; o segundo, na narração dos milagres da Virgem Maria, incitando a um cada vez maior culto mariano (idem: 290-291). Importa ainda relembrar a migração de dois outros motivos: a intervenção da Virgem e o da mulher casta perseguida pelo cunhado. Trata-se de dois motivos codificados pela tradição cultural, com uma estrutura figurativa variavelmente caracterizada por uma certa coesão interna, e que – no que diz respeito à História da Imperatriz Porcina – se integram no âmbito do dialogismo discursivo. 14

Estas fontes foram estudadas por A. Wallensköld e sistematizadas num importante estudo de Luís da Câmara Cascudo (leia-se CASCUDO, L. C., 1953: 289-313), trabalho que seguimos de perto, e para o qual reenviamos a partir de agora, para um melhor esclarecimento da matéria que se segue.

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A este propósito, Luís da Câmara Cascudo (idem: 291-292)15 lembra que, no século XIII, aqueles motivos se encontram em vários textos: no Alphabetum Narrationum (de Étienne de Besançon) e no Speculum Historiale (de Vincent de Beauvais); na obra do monge Gautier de Coinci, intitulada Miracles de Notre Dame – onde, entre outras, aparece a narrativa “De l’empeeris qui guarda sa chastée par mout temptations” – narrativa que, na Península Ibérica, teria tido tradução galega, desta resultando, mais tarde, uma versão castelhana (“Muy fermoso cuento de uma santa imperatriz que ovo en Roma et de su castidat”); nas Cantigas de Santa Maria (do Rei Afonso X), uma das quais, a quinta (“Esta é como Santa Maria ajudou a Emperadriz de Roma a sofrel-as grandes coitas per que passou”), evoca o milagre da “Madre de Deus” – episódio este que, divulgado em Espanha (e mais tarde conhecido e adaptado por Juan Timoneda, que escreve a “Patraña XXI”), transita para Portugal. E diversas poderiam ter sido as fontes de Afonso X (como este deixa perceber, quando escreve “E desto vos quer’ eu ora contar, segund’ a letra diz / un mui gran miragre que fazer quis pola Emperadriz / de Roma, segund’ eu contar oy” [METTMANN, W., 1986: 66]), entre elas a versão galega, o Speculum Historiale (de Vincent de Beauvais), ou (como defende Wallensköld) os Miracles, de Gautier de Coinci (sobre esta questão, leia-se CASCUDO, L. C., 1953: 320-321); Walter Mettmann, porém, afirma, a este propósito, que “a narração muito extensa de Gautier [. . . ] não pode ter sido a fonte [da V Cantiga de Afonso X]. É provável que o autor da cantiga tenha utilizado uma versão sucinta em latim, que devia estar muito perto da transmitida por Vincent de Beauvais, no seu Speculum Historiale [. . . ]” (METTMANN, W., 1991: 80). Não pertencendo ao intuito deste trabalho dar uma resposta definitiva a estas questões, o que sobretudo importa, quando estão em causa os prolongamentos e metamorfoses dos motivos acima referidos, é reter o facto de tudo isto conduzir à ideia de que Baltasar Dias terá conhecido ‘lugares-comuns’ europeus, vindos de França, através do idioma galego, mas que terá tentado modular a tradução galega (isto evidentemente sem se excluir a hipótese de que teria conhecido as sequências da história da Imperatriz Porcina – provavelmente já com as deformações populares –, tal como as narra no seu texto). De qualquer modo, como aponta Cascudo (CASCUDO, L. C., 15 Cf. também BRAGA, T., 1870-1871: 283, 291; PICCHIO, L. S., 1969: 105-106; VASCONCELOS, C. M., 1934: 199, 240, 256.

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1953: 326), enquanto Afonso X se refere ao episódio em que o marinheiro se enamora da Imperatriz Beatriz, B. Dias exclui-o; se, na cantiga V, a “emperatriz de Roma” não perdoa ao marido (“nunca quis / a dona tornar a él”), em B. Dias, a Imperatriz perdoa ao Imperador (“foram todos bemaventurados” [IP: 303]); o autor das Cantigas de Santa Maria menciona ainda a confissão do cunhado da Imperatriz Beatriz diante do Papa e do Imperador (“ant’ o Apostolig’ e ante vos”), mas Albano confessa-se somente “diante do Emperador / e da nobre companhia” (IP: 298) – excluindo, então, B. Dias a presença individual do Papa, em benefício do coletivo, pois talvez, segundo este autor, mais do que um desvirtuar de princípios católicos, a atitude anterior de Albano poderia ter sido uma desconsideração e uma afronta em relação a todos os que rodeavam a Imperatriz. E a origem asiática do motivo da “mulher casta perseguida pelo cunhado e falsamente acusado por ele”? Wallensköld situa a sua origem na Índia, tendo transitado para a Pérsia, onde teria sido integrado em múltiplos contos, que se podem encontrar em coleções como as Mil noites e uma noite, os Mil e um dias e o Tuti-Namé (apud CASCUDO, L. C., 1953: 298-301, 312). Mas igualmente documentos como a Gesta Romanorum e a Crescentia (idem: 304-308) – grupos de textos em latim, com finalidades catequísticas, redigidos nos finais do século XIII, princípios do XIV (Gesta Romanorum), ou conhecidas já no século XII (Crescentia), e onde aparece, entre outros motivos, a perseguição da esposa casta pelo cunhado – teriam sido fontes de uma literatura de cordel e de uma tradição oral, e que, por modificações operadas através dos tempos pelas culturas, pelas mentalidades, terão chegado até Baltasar Dias. Com tudo isto, torna-se evidente a necessidade de revalorizar um dos aspetos nucleares no âmbito do estudo da procedência e do desenvolvimento de “motivos dinâmicos” (TOMACHEVSKI, B., 1989: 150) na História da Imperatriz Porcina, os quais, inscritos numa memória coletiva, e revelando a condição dialógica das produções discursivas inerentes ao ciclo “Milagres da Virgem”, constituem os elementos fulcrais do texto de Baltasar Dias e asseguram a sua plenitude: pelas investigações feitas por Wallensköld (apud CASCUDO, L. C., 1953: 312-313), a versão oriental com o motivo da mulher casta perseguida pelo cunhado ter-se-á fixado na Europa, no século XI, dividindo-se na coleção Miracle de la Vierge e na Gesta Romanorum. Do primeiro conjunto de textos ter-se-á destacado e particularizado o episódio da intervenção da Virgem,

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com acentuada repercussão em França, em Espanha e, mais tarde, em Portugal, episódio que Baltasar Dias incluirá na sua História da Imperatriz Porcina. Mas o problema da intervenção divina liga-se ainda a um outro domínio de reflexão: o do género dos ‘milagres’16 . Ora, é no contexto do teatro francês do século XIV que os ‘milagres’ se assumem de forma destacada. O ‘milagre’, com um enredo confuso, contemplava a intervenção do sobrenatural e uma finalidade de índole pedagógica. Referindo-se ao género dos ‘milagres’, “característicos do século XIV em França”, António José Saraiva escreve: Na sua forma primitiva, antes de ser posto em cena, tal como se nos apresenta nas Cantigas de Santa Maria, de Afonso X, o milagre tinha uma intenção puramente edificativa e repelia todos os temas de interesse exclusivamente profano. Mas a própria estrutura do género é caracterizada pelo interesse romanesco: o milagre supõe sempre uma situação embrulhada cujo desenlace só pode vir do sobrenatural; desta maneira, todas as situações difíceis, todos os casos extraordinários e todas as façanhas em que interviesse de uma maneira próxima ou remota o miraculoso eram assimiláveis ao género milagre (SARAIVA, J. A., 1942: 59).

Ao longo da sua evolução histórica, o ‘milagre’ começa a transformar-se no quadro da sua sintaxe dramática interna: no ‘milagre’, o mundo terreno e o mundo sobrenatural encontravam-se relacionados, mas no sentido em que o primeiro dependia profundamente do segundo; as duas esferas estavam separadas (o que, segundo José Saraiva, não impedia o seu “cruzamento” “no palco”), encontrando-se o Homem completamente sujeito à holista vontade divina. Dessa situação resultava a subordinação total do terreno para com Deus e, por isso, a noção de que a existência do “homem-paciente” era regida pelas exigências específicas da intervenção do divino – o qual funcionava, assim, como “agente externo”, pouco a pouco verificando-se igualmente a sua insinuação como “inspirador” do desenlace (idem: 60-64). Ora, é evidente que toda esta questão tem que ver, mediatamente, com a História da Imperatriz Porcina. E isto por duas razões: em primeiro lugar, é de facto a “Virgem Santa Maria”, a “Madre de Deos” (IP: 286), quem (indicando a Porcina a erva com a qual ela daria “saúde / a quem a mister havia” [IP: 287]) contribui imediatamente para o desenlace da narrativa (o que 16

Sobre esta problemática, remetemos para SARAIVA, J. A., 1942: 57 ss.

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manifesta, desde logo, a relação de dependência da Imperatriz para com a Virgem). Por outro lado, porém, o facto de a Imperatriz Porcina, no decurso de toda a sua existência, aceitar – como “agente” responsável e livre – uma consciente conformação a princípios éticos e morais, evidencia também a sua condição de ser humano independente da vontade divina; se é verdade que ela, “em nome do Redemptor” (IP: 287), cura os culpados que a tinham ferido com falsidades e calúnias, também não é menos verdade que ela o faz seguindo decisões e determinações muito suas; salvá-los, sim, mas com a garantia de confessarem o “grave pecado” (IP: 292), o que acarretaria, em seguida, a reafirmação e a reposição da honra e da castidade da protagonista. Não será, assim, gratuita a afirmação segundo a qual, neste texto, a relação da total dependência do humano para com o divino está, em parte, mitigada, uma vez que se procura centralizar o comportamento de Porcina no plano das suas decisões e determinações próprias. Não se abandonando embora o princípio da submissão do Homem a Deus, nem aceitando dogmaticamente a elevação do homem a “agente” absoluto da ação, o que está em causa é então a movimentação da História da Imperatriz Porcina entre as duas posições, confirmando-se, portanto, uma constante e dinâmica interação entre a “objetivação” e a “subjetivação” das ações da protagonista e, por contiguidade, do enredo.

6. É possível agora, então, referirmo-nos às questões atinentes ao estudo do “romance-diálogo” que constitui a Tragédia do Marquês de Mântua. Também este romance – onde, como referia Ramón Menéndez Pidal a propósito de outros romances-diálogo, “la narración era suprimida y la escena o la situación se desarrollaba toda en forma de diálogo” [MENÉNDEZ PIDAL, R., 1953: 64]) – foi sujeito, ao longo dos tempos, a variações no título, embora o título considerado mais apropriado desta obra de Baltasar Dias seja Tragédia do Marquês de Mântua (cf. VASCONCELOS, C. M., 1934: 96) – o que não impede que, ainda nos nossos dias, haja grupos de teatro (em São Tomé, por exemplo) que o referem como auto17 . 17 A este propósito, relembre-se, porém, que esta história, “sabida de los niños” (“tema aproveitado de um romance e transposto para a cena” [GOMES, A. F., s/d: 25]), é referida como “Auto”, na Aulegrafia, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, onde este se refere a uma pessoa que “entra por fegura no Auto do Marquês de Mântua”.

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De qualquer modo, de acordo com os nossos objetivos, e tal como nas considerações que foram feitas em relação à História da Imperatriz Porcina, não interessa aqui equacionar pormenorizadamente as questões que dizem respeito à clarificação do título ou da data da redação da Tragédia do Marquês de Mântua. Interessa, sim, evocarmos brevemente o caminho histórico-cultural deste antigo romance que remonta ao ciclo dos cantos épicos carolíngios – um entre muitos construídos à volta da figura central de Carlos Magno, pelo que (tendo sobretudo em conta os estudos de Teófilo Braga e Carolina Michaëlis de Vasconcelos) se torna pertinente recordar brevemente os primórdios e o percurso destes cantos, sobretudo para daí partirmos para a busca de alguns dos princípios em que assenta a Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carlos Magno. Assim, em primeiro lugar, torna-se necessário recuar até aos inícios do século XI, quando aparecem as primeiras gestas, como a Chanson de Roland, a Chanson de Girard de Roussillon (BRAGA, T., 1896: 204). . . Duas particularidades assumem nessas gestas especial importância: por um lado, as lutas dos “grandes vassalos contra a realeza”; por outro, a figura de Carlos Magno, personagem histórica célebre cujo perfil e peso considerável na conformação da forma mentis coletiva (sobretudo, popular) não poucas vezes determinou a configuração discursiva daqueles cantos épicos, emprestando-lhes uma dimensão histórica e incutindo-lhes, pelo lugar representativo que ocupava no imaginário popular, uma dinâmica nacionalista (cf. idem: 203-204). Estes cantares desenvolvidos pelo génio épico francês são mais tarde trazidos para Portugal por cavaleiros que passam pela Península com a finalidade de ajudar D. Afonso Henriques a conquistar Lisboa, cavaleiros esses que, “ávidos de aventuras heróicas [. . . ], no descanso do arraial se desenfadavam com as suas tradições guerreiras” (BRAGA, T., 1896: 205). No centro da Península Ibérica, aqueles cantares épicos – sujeitos a um longo processo de nacionalização, e atingindo uma grande vitalidade até meados do século XIII, mas refundindo-se até finais do século XIV (VASCONCELOS, C., 1934: 11 ss) – sofrem um processo de “aristocratização” por poetas “de engenho e arte” que os refundem em linguagem cuidada e sóbria (processo que se estende até ao século XVI); mais: pouco a pouco, são “democratizados” por cantores (cegos, jograis) que, participando assim num processo de receção e transformação, os adaptam ao gosto popular, dando origem a um aglomerado de composições de contornos diferentes dos primordiais, caracterizadores dos www.lusosofia.net


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cantos carolíngios, não deixando, no entanto, de se manter vinculados aos aspetos essenciais desses cantos; muitos cantores, adequando então os cantares ao seu destinatário, recorrem a determinadas transformações técnico-narrativas, situadas sobretudo num plano formal. Sem, todavia, subverterem a essência primordial dos cantos, ativam e propiciam modificações ao nível da versificação, da linguagem conotativa, e mesmo do enredo: renovam a linguagem e a versificação, procedem a “adições hiperbólicas” em algumas passagens, “multiplicam episódios” e “ampliam descrições”; destas recomposições procede “a maravilhosa eflorescência dos romances” (VASCONCELOS, C., 1934: 12). Entretanto, estes “romances” são minimizados por eruditos como Diego de Burgos, Juan de Mena, Marquês de Santillana (idem: 12-13), devido essencialmente à valorização da cultura latina e da palavra escrita em detrimento dos dialetos populares e da palavra oral. No século XV, muitos espíritos, marcados por uma educação cuidada e elitista, e paulatinamente desinteressando-se pelos combates sanguinários, proclamam o divórcio entre a poesia culta (a que consideram sua) e os romances do povo, que, segundo eles, eram para “gente servil e de baixa condição” (cf. BRAGA, T., 1881: 43). De qualquer modo, esta ambiência não retraiu o imaginário popular, pois esses cantos do povo fixaram-se na memória coletiva; como já lembrámos atrás, muitos desses romances “más viejos non son otra cosa que un fragmento de poema, conservado en la memoria popular” (MENÉNDEZ PIDAL, R., 1969: 11); ou, como escreveu Carolina Michaëlis, esses romances “primitivos”, enraizando-se mediatamente nos cantares de gesta, “são trechos desligados de cantares jogralescos”, equivalendo “cada um dos quais [. . . ] a uma das tiradas das gestas”; e acrescenta: Estes trechos fixaram-se na memória do povo, por serem os mais impressivos e românticos, e ganharam assim vida independente, lucrando em beleza poética e movimento dramático pelo processo de simplificação e encurtamento, a que a colaboração popular os submeteu [. . . ] (VASCONCELOS, C. M., 1934: 12-13).

Assim, tendendo “la mayor parte de las veces el fragmento épico [. . . ] a tomar vida independiente”, e ganhando, “al desgajarse del conjunto de la gesta [. . . ], sustantividad y vida aparte” (MENÉNDEZ PIDAL, R., 1969: 11 e 12, respetivamente), o trecho solto sofre diversas modificações operadas em função de cada região particular. Resultado: os muitos e diferentes vulgarismos www.clepul.eu


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que nesses trechos penetram, as contaminações e fusões, as omissões e/ou introduções de episódios narrativos, contribuem para que, de região para região, de país para país, e mesmo em cada país, surjam múltiplas variantes, por vezes desconexas e deturpadas, do mesmo trecho originário. Em Portugal, é pelo trabalho coletivo do povo (“pouco amigo de análises complicadas”) que os pormenores históricos e os longos episódios narrativos desaparecem; o fragmento solto é reorganizado, e simplificado, é encurtado; dissolve-se a parte descritiva em frases feitas ou em textos resumidos; o diálogo, ou torna-se incisivo, ou amplia-se em modo litânico, à semelhança de um baixo continuum; o novo texto ganha mais emoção e subjetividade; os versos circulam de boca em boca (MENÉNDEZ PIDAL, R., 1969: 12-13; VASCONCELOS, C. M., 1934: 13, 97-98). Também o povo português recebeu e transformou, portanto, os poemas carolíngios e os cantares jogralescos; também ele fez e nacionalizou romances; também ele trabalhou os nomes próprios das personagens dos antigos cantos carolíngios, naturalizando-os, ridicularizando-os e/ou incutindo-lhes um impulso adverbial (cf. VASCONCELOS, C. M., 1934: 81, 87, 94; BRAGA, T., 1881: 63-64; 1896: 209): nesse sentido, Beltrão passou a aplicar-se a todo aquele que mostrava fanfarronice, tal como Roland, que foi modificado para Roldão; Bauduin de Vannes terá sido modificado para Valdevinos, passando a significar, na gíria popular, todo aquele que era vadio, devasso (embora este significado não se aplique, como se pode comprovar, ao Valdevinos da Tragédia do Marquês de Mântua, de Baltasar Dias); Fierabras foi também modificado para Ferrabrás, que se aplicava igualmente a todo o valentão. Ora, é sabido como Baltasar Dias, também homem do povo, mais do que simples introdutor, foi o nacionalizador de romances europeus. E falar na nacionalização de tópicos europeus, quando se trata de B. Dias, é valorizar, neste contexto, a retransmissão de histórias que já arrebatavam os espíritos de outras zonas da Europa. É Baltasar Dias quem desenvolve em Portugal o romance sobre o Marquês de Mântua, “um desses velhos romances populares tecidos à volta de Carlos Magno e da sua época” (GOMES, A. F., 1961: XXXVI) e que permaneceram durante algum tempo em Espanha. E, nesta fase do trabalho, a alusão a uma personagem que protagonizava muitos dos romances que corriam em Espanha torna-se pertinente, pois essas narrativas teriam constituído as fontes de que B. Dias ouvira falar (ou cantar); este autor teria assim conhecido o Romanceiro Espanhol. Com efeito, o tema do Marquês de www.lusosofia.net


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Mântua terá sido inspirado em três romances castelhanos (cf. WOLF, F. J.; HOFMANN, C., 1856: 171-217) que narram a história do Marquês de Mântua e que são transpostos para a cena como “Tragédia” por B. Dias (a linguagem nobre, as personagens ilustres e o fim trágico são fatores que em parte ilustram essa dominação). Algumas são, portanto, as circunstâncias que, envolvidas no processo de criação da Tragédia do Marquês de Mântua, afetam esta obra e nela se encontram, ao mesmo tempo, explícita e subtilmente disseminadas, contribuindo para se legitimar a noção de nacionalização e adaptação. As histórias sobre o Marquês de Mântua em que se terá inspirado – “romances sobre el Marques de Mantua, Valdovinos y Carloto” (cf. WOLF, F. J.; HOFMANN, C., 1856: 171 ss) –, reuniu-as Baltasar Dias num só romance, permanecendo fiel à lógica sequencial das ações. Além disto, não se torna difícil aceitar que terá incluído igualmente inúmeros versos das cantilenas jogralescas, versos que entravam em circulação e que suscitavam variantes e imitações. Confrontemos, por exemplo, algumas passagens de um dos romances (presentes na Primavera y Flor de Romances. . . ) e da Tragédia do Marquês de Mântua, passos inscritos no famoso ‘suspiro’ de Valdovinos, exangue na floresta: Romance I pues á los tristes consuelas (v. 137)

Tragédia do Marquês de Mântua consola os desconsolados (v. 51)

y tu muy precioso Hijo por mí te plega rogar que perdone mis pecados (vv. 139-141)

e roga a meu Senhor Deos que perdoe os meus pecados (vv. 53-54)

¡Esposa mia y señora! (v. 199)

Ó minha esposa e senhora (v. 74)

¡Oh mi primo Montesinos! [. . . ] ¡Ya no esperéis mas de verme (vv. 207 e 211)

Meu amigo Montesinhos, já nunca mais vos verei (vv. 126-127)

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¡Oh esforzado don Ronaldos! ¡Oh buen paladin Roldan! ¡Oh valiente don Urgel! ¡Oh don Ricardo Normante! ¡Oh marques don Oliveros! ¡Oh Durandarte el galan! ¡Oh archiduque don Estolfo! ¡Oh gran duque de Milan! ¿Dónde sois todos vosotros? (vv. 215-223)

Ó valentes cavaleiros, Reinaldos de Montalvão, ó esforçado Roldão, ó Marquez Dom Oliveiros, Dom Ricardo, Dom Dudão, Dom Gaifeiros, Dom Beltrão, ó grão Duque de Milão, que é da vossa companhia? (vv. 114-121)

¡Oh emperador Cárlo Magno, [. . . ] Aunque me mató tu hijo (vv. 225 e 229)

Ó Carlos Emperador [. . . ] ainda que me matou vosso filho mui amado (vv. 140 e 148-149)

¡Oh principe don Carloto! ¿que ira tan desigual te movió sobre tal caso à quereme así matar (vv. 233-236)

o príncipe D. Carloto, quem, sendo tão desigual, se moveu a fazer mal [. . . ] a teu amigo leal? (vv. 150-152 e 154)

¡Oh alto Dios poderoso, justiciero y de verdad, sobre mi muerte inocente justicia quieras mostrar! (vv. 251-254)

Alto Deos Omnipotente, juiz direiro sem par, sobre esta morte inocente justiça queirais mostrar (vv. 155-158)

Oh triste reina mí madre [. . . ] que ya es quebrado el espejo en que te solias mirar! (vv. 257 e 259-260)

Madre minha muito amada, [. . . ] que quebrado é o espelho em que vos soheis olhar. (vv. 94 e 102-103)

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Atente-se também na tirada de Valdovinos, no Romance I espanhol – “¡Oh mundo desventurado; / nadie debe en ti fiar: / al que mas subido tienes / mayor caida haces dar!” (vv. 281-284) –, mas que Baltasar Dias cuidadosamente põe na boca do Marquês de Mântua – “Ó triste mundo coitado, / ninguém deve em ti fiar, / pois és tão desventurado, / que os que tens mais exalçado / mor queda lhe fazes dar!” (vv. 291-295); ou ainda, pela boca de Valdovinos, nos dois textos: No me pesa del morir pues es cosa natural (Romance I: vv. 246-247)

Coisa é mui natural a morte a toda a pessoa (MM: vv. 369-370)

Comparar e sistematizar mais profundamente as diferentes passagens entre, neste caso, o Romance I e a Tragédia do Marquês de Mântua de B. Dias é tarefa de um trabalho que exigiria, certamente, muito mais páginas. Mas isso não impede que se exemplifiquem algumas tiradas que melhor se ajustam, sinteticamente, ao contexto em que nos encontramos. Como quer que seja, importa relembrar e sublinhar o papel de B. Dias, que confere à sua Tragédia do Marquês de Mântua um pendor dialógico. Já se sabe que a força narrativa, a linguagem vitalista e passional, as unidades dramáticas e temáticas não triviais, são aspetos fundamentais do labor pessoal de B. Dias. Se considerarmos que o contacto direto que este escritor manteve com o povo terá propiciado, na Tragédia do Marquês de Mântua, a manifestação de um lirismo sentimental português, se tivermos em conta a linguagem simples, os pensamentos ajustados às diferentes situações, o registo linguístico adequado ao estatuto sociocultural da personagem, a grande sensibilidade de sentimentos expressos nos diálogos (note-se, por exemplo, a apóstrofe de Valdovinos a sua mãe [MM: 312, vv. 94-113], passagem plena de delicadeza e de ternura), então haverá algo de dialógico em B. Dias. Entretanto, falar em dialogismo na Tragédia do Marquês de Mântua é falar também em depuração. Baltasar Dias seleciona os episódios mais sugestivos, conformando-se, por isso, ao gosto do povo. Leia-se a longa introdução do Romance I que B. Dias condensou, conduzindo rapidamente a ação até Valdovinos. E aqui a subjetividade e o lirismo baltasariano souberam combinar a entoação diswww.clepul.eu


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cursiva próxima do patético (como se verifica na anaforização, no discurso de Valdovinos, da partícula “Oh”) com uma ou outra interrogação integrada no discurso dessa personagem, pretendendo B. Dias, com isso, refletir de outro modo um estado de espírito atormentado e triste, bem como contribuir para criar com o público laços de empatia ainda mais fortes. Atente-se também na ação: começa in media res, ao contrário do Romance I (prescindindo B. Dias dos preliminares, que terá julgado desnecessários), e igualmente de maneira abrupta, com palavras em discurso direto, desenvolvendo-se cuidadosamente num crescendo de situações inesperadas. Além disso, provavelmente, como sucede, aliás, em ‘romances’ posteriores, o protagonista (Marquês de Mântua), no momento da introdução, não seria visto em cena, só ouvido, talvez pelo facto de que seria mais interessante (e mais lógico) Valdovinos estar já em palco, exangue e moribundo, aos olhos do público; tal situação contribuiria para acrescentarmos mais um ponto a favor da articulação dialógico-discursiva em Dias e do seu romance-diálogo (em contraste com as três fontes diretas castelhanas, que oscilam entre a narração e o diálogo). E que dizer da intensidade com que o discurso baltasariano de índole cristã se manifesta em determinadas passagens, como, por exemplo, a oração que ele coloca no coração exânime de Valdovinos? Note-se na Salve-Rainha que esta personagem reza antes de morrer, passagem esta também ausente nas fontes castelhanas, o que contribui para que mais se evidencie a representação dos valores religiosos de B. Dias (os mesmos, no fundo, do destinatário para quem se dirige). Parece-nos também ser imprescindível referir dois pontos: por um lado, o processo de eliminação que B. Dias opera sobre determinados eventos singulares dos romances castelhanos – como, por exemplo, o cerco de “Paris” pelo Marquês de Mântua e os seus guerreiros, o julgamento de D. Carloto pelos vários “jueces” (e não diretamente pelo Imperador), os castigos impostos a D. Carloto (“arrastrado / por el campo y por la arena”, “descabezado / en un alto cadahalso”, “çe corten los piés y manos”, “descuartizado” [WOLF, F. J.; HOFMANN, C., 1856: 213-214]), etc.; por outro, o desenvolvimento de determinadas situações, o que demonstra não só a opção de um autor que terá resistido a uma mera continuidade da lógica das ações presentes nas fontes castelhanas, mas também a necessidade eventual de as submeter dialogicamente ao crivo da sua pena, como ainda o seu lirismo religioso. Atente-se, www.lusosofia.net


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por exemplo, nos versos 556 a 564: “Chorem todas as companhas / minha grande perdição, / escureça o sol com dó, / caiam estrelas do céu, / as trevas de Faraó / venham já sobre mim só, / pois minha luz se perdeu / na luz de mui claro dia, / claridade sem clareza” (MM: 325); revelam a harmonia, a evocação temporal, a fusão do ‘eu’ com o mundo e a agradável exploração da luz e da razão – versos, como se vê, capazes de contribuir para o “encantamento poético” desta obra. Primordialmente de acordo com o pendor dialógico de que a escrita de B. Dias se reclamará, a valorização da construção dos versos constitui mais um fator de confirmação das virtualidades artísticas da mão deste escritor que cria tensões e fusões entre as palavras, que concebe a poesia também como espaço de aproveitamento do significante. Repare-se, neste caso, na homologia significativa que se estabelece, a um nível imediato, entre os versos 175-178 – “não me negueis a verdade, / contai-me vosso pesar, / que vos prometo ajudar / com toda a força e vontade” (MM: 314) – e os versos 188-191 – “Dizei-me vossa agonia, / que se remédio tiver, / eu vos prometo fazer / com que tenhais alegria” (MM: 314). E que dizer de procedimentos técnico-discursivos como a anadiplose, presente nos versos 242-247: “[. . . ] ó amargosa ventura, / ó ventura sem prazer, / prazer cheio de tristura, / tristura que não tem ser! / Ó desventurada sorte, / ó sorte sem sofrimento” (MM: 316)? Ou o enjambement, nos versos 255-256: “[. . . ] ó desventurado velho / cativo sem liberdade” (MM: 316)? Ou ainda o desenvolvimento da mesma ideia em suportes diferentes? Repare-se, a este propósito, nas tiradas do Ermitão (vv. 385-388 e 617-620): “[. . . ] veja este mundo coitado / e não o engane o malvado, / que não dá por galardão / senão tristeza e cuidado” (MM: 320) e “diria com grã razão / que este mundo, coitado, / não dá outro galardão, / senão tristeza e paixão” (MM: 326). Baltasar Dias terá vivido, agido, sentido, pensado, como um verdadeiro cristão, é certo. Também criticou a sociedade e os costumes. E especial atenção deve ser conferida à Tragédia do Marquês de Mântua, textual poliédrico, no qual a articulação entre o nível dos procedimentos estéticos e, sobretudo, o nível pragmático contribui para o desejado processo de humanização do mundo e dos valores de Moral e de Justiça que suportam o Homem. Os versos 922-926 (“[. . . ] que, agora, mal pecado, / nenhum rei nem julgador / faz justiça do maior; / mas antes é desprezado / o pequeno com rigor” [MM: 336]) constituem um exemplo evidente do modo como B. Dias teria procuwww.clepul.eu


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rado: a um tempo, estigmatizar a desindividuação do homem “pequeno” pelo “maior”; a outro tempo, chamar a atenção para que este procure a sua individualidade, processo que terminará com a condenação de D. Carloto pelo Imperador, seu próprio pai – graças à justiça ainda presente nos valores do Imperador, “juiz sem par” (MM: 332), que, afinal, sempre castiga “o iníquo, / ora seja pobre ou rico, / ou servo ou grão senhor” (MM: 335).

7. Em conclusão, deve ser acentuado que, na base da Tragédia do Marquês de Mântua e da História da Imperatriz Porcina, residirá uma moralidade (consciente? inconsciente?): a contribuição para aquele que lê (ou ouve; ou vê, lê e ouve) estas obras se consciencialize do respeito pelos outros; para que consciencialize – à luz da tradição judaico-cristã – a exigência de reconhecer a sua boa essência, recuperando-se para si mesmo e recuperando os outros. Estando B. Dias integrado num processo dialógico de absorção e transformação de múltiplos textos que estão projetados nas duas obras analisadas, não participarão estas no movimento representativo e dialógico da arte? Não poderíamos, por isso, aceitar, nestas obras, para além de todos os vetores semânticos e técnico-discursivos trabalhados por B. Dias, um empenhamento na procura de uma sociedade mais humanista? Os textos de Baltasar, cremos, exigiram do público contemporâneo, e exigirão sempre, uma réplica, quer ao nível da atuação técnico-analítica sobre o texto, quer ao nível do comportamento humanista. Os públicos veem, sonham, e as verdades nascem (ou morrem). Baltasar Dias não via, mas ouvia, e escrevia, e sonhava, e acreditava. . .

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PORTUGAL E BRASIL: UM DIÁLOGO ESSENCIAL1 Senhor, posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta vossa terra nova, que se ora nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que para o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer! (Carta, 2000: 4)2 .

1. Começa assim aquele que é considerado o documento oficial da descoberta (ou “achamento” intencional, segundo Jaime Cortesão [CORTESÃO, J., 1994: 54 ss e 184]) do Brasil, em 22 de Abril de 1500: a Carta que o cronista Pêro Vaz de Caminha escreveu para o rei D. Manuel I3 . 1

Este estudo corresponde, no essencial, a uma conferência proferida em Junho de 2000, no Anfiteatro da ACERT, no âmbito do projecto educativo intitulado A Escola e os Descobrimentos, com o apoio da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Posteriormente, este trabalho foi publicado numa colectânea de estudos por nós organizada (com a participação de diversos investigadores portugueses e brasileiros), publicada, em 2002, com o título de Diálogos literários luso-brasileiros (Coimbra, Pé de Página Editores). 2 A Carta de Pêro Vaz de Caminha (2000), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses [Coordenação de Joaquim Romero de Magalhães e João Paulo Salvado], p. 4. A partir daqui, neste estudo, a referência a este documento será feita da seguinte forma: Carta, seguida da página. 3 Não é objetivo deste trabalho estudar a problemática da descoberta do Brasil (sobre a qual se debruçaram já diversos historiadores), estudo esse, contudo, que não deverá ignorar uma eventual presença anterior de Duarte Pacheco Pereira em algumas regiões litorais brasileiras – o próprio Pacheco Pereira relatá-lo-ia mais tarde, no Esmeraldo de Situ Orbis (1505-1508), o que leva a crer que, enviado por D. Manuel, teria descoberto o Brasil entre Novembro


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Já por muitos reconhecido como um texto que percorre vários registos (o histórico, a relação de viagem, o literário), a Carta de Caminha – cuja escrita historicamente se inscreve num palco histórico europeu cúmplice de uma entoação ideológico-cultural predominantemente etnocêntrica – apresenta-nos o testemunho de um sujeito maravilhado com uma “terra nova”, com as cores, as aves e o arvoredo (“tanto e tamanho e tão basto e de, tantas prumagens que lhe não pode homem dar conta” [Carta: 25]). No entanto, se essa questão é por demais evidente neste texto, que ocupa um lugar central no âmbito da literatura de viagens, outra há que o enriquece de um ponto de vista cultural, antropológico e cultural: o encontro entre dois continentes e entre duas culturas. Nesse encontro – que envolveria fundamentalmente as relações culturais, e comerciais, entretanto estabelecidas entre a tripulação que integrava a armada comandada por Pedro Álvares Cabral e os indígenas –, por diversas vezes entrevemos a aproximação entre o indígena e o Adão bíblico: asseado4 , nu e sem preconceitos, nem vergonha com a sua nudez5 , desconhecendo o ferro6 .

e Dezembro de 1498. Essa descoberta, no entanto, por motivos políticos – que encontram alguma da sua razão de ser no Tratado de Alcáçovas (1479) e no Tratado de Tordesilhas (1494) –, teria permanecido em segredo, já que, de acordo com o tratado de 1494, as terras entretanto descobertas por Duarte Pacheco Pereira seriam espanholas. Por outro lado, não se encontra de igual modo nas finalidades deste trabalho o desenvolvimento da questão relativa à intencionalidade da descoberta do Brasil por Pedro Álvares Cabral. Sobre essa intencionalidade já se referiu, justificando-a, Jaime Cortesão (1994: 54 ss). 4 “[. . . ] andam muito bem curados e muito limpos” (Carta: 19). 5 Todos eles andavam “[. . . ] nus, sem nenhuma cousa que lhes cobrisse suas vergonhas” (Carta: 6); quanto às mulheres, em particular, andavam com “suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas que não havia aí nenhuma vergonha” (Carta: 17). 6 “[. . . ] eles não têm cousa que de ferro seja e cortam sua madeira e paus com cunhas, metidas em um pau, entre duas talas mui bem apertadas” (Carta: 22). A aproximação acima referida – reforçada quando Caminha escreve que “a inocência desta gente é tal, que a d’Adão não seria mais quanta em vergonha” (Carta: 29) – estende-se ainda aos próprios atributos geográficos que este cronista do Norte de Portugal encontrou, e que com flagrante visualismo descreveu. O mesmo cronista prosseguiria, aliás, com uma outra analogia, decorrente daquela, e que encontraria na robustez de Entre Douro e Minho o segundo termo explícito de comparação: “A terra, porém, em si, é de muito bons ares, assim frios e temperados como os d’Entre Doiro e Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas, infindas” (Carta: 30).

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2. Como quer que seja, o que sobretudo nos interessa para já não é tanto estudar o modo como Caminha descreve os primeiros contactos com os índios brasileiros (que tiveram lugar a 23 de Abril de 1500), antes contribuir para uma reflexão não só sobre o alcance das imagens negativas que, por vezes, brasileiros e portugueses ainda têm uns dos outros, mas também sobre algumas das razões que mediata e historicamente se encontrarão na origem de tais imagens. Como se sabe, aquelas imagens ainda hoje persistem por vezes no anedotário de ambos os países. Nesse registo, ‘simplório’, ‘arrogante’, são alguns dos adjetivos com que ainda a imagem do português é por vezes construída nesse registo; ‘indolente’, ‘mandrião’, constituem alguns dos predicados com que o brasileiro é por vezes apresentado no mesmo registo. E se bem que se restrinjam essencialmente ao plano do dito, da anedota e da chalaça, os atributos transcritos não deixam, por parte de uns e outros, de denotar não raras vezes alguma leviandade e frivolidade, senão mesmo alguma falta de entendimento. Acrescente-se, entretanto: se, para alguns, será ingénuo ignorar que a exceção não faz a regra, para outros, a atitude (em alguns círculos apenas, note-se, e em determinados registos de discurso) com que aqueles atributos são enunciados insinuará não só a hipertrofia de uma isenção estética no entendimento do outro, mas também um inevitável desinvestimento subjetivo por parte de quem os enuncia. O ato de compreender (o mundo, os outros), esclarece Bakhtine (embora num outro contexto), deve ser encarado como “la condition première d’une approche esthétique du monde” (BAKHTINE, M., 1984: 121), pressupondo esse ato “un combat dont l’enjeu réside en une modification et en un enrichissement réciproques” (id.: 362). Fará sentido ao português criticar, por exemplo, a motivação inerente à escolha por parte do brasileiro do seu apelido, ou do seu nome próprio – afinal, um ato cultural, essa escolha do “príncipe dos significantes”, como escreveu Barthes? Será hoje proveitoso a algum brasileiro desmerecer a sua integridade ética, qualificando pejorativamente o português, ou veiculando que os primeiros portugueses que desembarcaram no Brasil foram a escória da sociedade7 ? Será justo para com a humil7

Note-se que Pedro Álvares Cabral, quando chega ao Brasil, pretende, com efeito, deixar em terra alguns degredados; os motivos prendiam-se com a necessidade de observação direta dos índios, de aprendizagem da sua fala e de os converter ao Cristianismo. Escreve, a esse propósito, Caminha: “E, portanto, se os degredados que aqui hão-de ficar aprenderem bem

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dade e o rigor científicos dos investigadores (brasileiros e portugueses) haver ainda quem continue a depreciar o valor do “achamento” oficial do Brasil pelos portugueses, insistindo no carácter acidental desse “achamento” – quando, por alguma razão, se sabe que Cabral levava a maior armada que Portugal até então montara e que Vasco da Gama, quando chegara à Índia em 1498, viajara apenas com um número de embarcações muito menor8 ? Quem, com legitimidade e com discernimento histórico, fará obstinadamente sua a convicção de que tudo o que os portugueses conheciam das artes de navegação lhes fora ensinado pelos espanhóis? É certo que Portugal lucrou com o ouro do Brasil; não menos verdade é o facto de os portugueses terem escravizado os índios, por certo com arrogância e prepotência. . . Não se encubram, porém, as assimetrias culturais e socioeconómicas ainda hoje existentes (num e noutro país); não se confunda, todavia, o legítimo discurso ético-moral com pretensiosas hipocrisias farisaicas. . . Assim, se, por um lado, não nos podemos esquecer que certas imagens negativas ainda hoje veiculadas por alguns falantes de ambos os países encontram a sua razão de ser em frequentes incompreensões e desconhecimento de uns e de outros (tantas vezes originando representações culturais deturpadas), por outro lado, não podemos sonegar posturas e comportamentos do passado que oscilaram entre a salvaguarda de pesadas cláusulas religioso-culturais e uma prevalecente obediência a disposições de feição político-económica – não raras vezes engajadas, é certo, com um certo anti-humanismo de que o discurso da expansão marítima apesar de tudo se não demitiu. Todas estas subordinações eram, aliás, proporcionadas pelo domínio quase absoluto do discurso religioso e do discurso económico (ambos se implicando mutuamente). Com efeito, os descobrimentos portugueses foram amplamente favorecidos pela Igreja, e a tal gesto teria a coroa que corresponder com a condição primordial de expansão da fé cristã9 . Entretanto, não mea sua fala e os entenderem, não duvido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé” (Carta: 25). 8 Repare-se ainda, a este propósito, como Jaime Cortesão considera estranho o facto de Caminha não relatar uma possível atitude que era frequente nestas situações, o interrogatório pelo intérprete, assim como o facto de ninguém ter perguntado por especiarias (CORTESÃO, J., 1994: 58-59). 9 N’Os Lusíadas (Canto VII: est. 25), Camões dá conta desse objetivo: chegados à Índia, o Gama envia “Um Português”, João Martins, um degredado que seguia na frota de Vasco da Gama. Um mouro, que por ali passava, enquanto o português entrava pelo rio, conhecia

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nos importante foi a aprovação pela coroa da expansão do Império, saldando-se essa atitude na progressiva sobreposição do discurso económico – discurso esse ao qual presidiu um enorme materialismo e pragmatismo (recorde-se o papel das companhias comerciais, a corrida dos portugueses ao ouro brasileiro [SILVA, A., 1992: 55 ss]).

3. De certo modo se abre assim o caminho não tanto para a definição de um quadro geral tarjado pelo enquadramento de um pujante património comum (de um ponto de vista linguístico, cultural e sentimental), mas, antes, para a identificação de algumas razões sobre as quais, historicamente, se sustentam alguns retratos mais ou menos desgraciosos do português. Essas razões, ou porque se confinam a uma ótica histórica, ou porque partem de premissas de inclinação sociológica, podem resumir-se a quatro (com todos os riscos que qualquer síntese e esquematização inevitavelmente acarretam): determinações de carácter religioso, motivações artísticas e socioeconómicas, justificações de teor linguístico-cultural e circunstâncias de índole literária. Deste modo, é reconhecida a subversão efetuada por alguns atores do palco da expansão marítima sobre o modelo espiritual cristão, contribuindo para a propagação da incoerência entre uma teoria e múltiplas práticas tantas vezes dissonantes entre si. E se entretanto a conduta sexual do português colonizador contrariava frequentemente o monogamismo preconizado pela já os portugueses; vai ter com aquele e pergunta-lhe qual a razão de ele estar tão longe de Portugal; responde-lhe o português que viera buscar a Índia, descobrindo o mar para dilatar a fé Cristã: “Abrindo, lhe responde, o mar profundo, / Por onde nunca veio gente humana, / Viemos buscar do Indo a grão corrente, / Por onde a Lei divina se acrescenta”. Por outro lado, e no que diz respeito à partida da armada (que se verificou a 9 de Março de 1500, com treze embarcações e uma tripulação com cerca de 1500 homens), comandada por Pedro Álvares Cabral, repare-se que, antes de essa partida efetivamente se verificar, se celebra com pompa e circunstância uma missa (em 8 de Março de 1500), à qual assiste o próprio rei D. Manuel I (“Rei de Portugal e dos Algarves, de aquém e de além mar em África, senhor da Guiné e da conquista, da navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”), e celebrada por D. Diogo Ortiz, Bispo de Viseu – “que deu grandes louvores ao capitão-mor por tão assina(la)do serviço como fazia a el-rei em fazer aquela viagem, e que não somente servia a el-rei, seu senhor temporal, mas também a Deus eterno, seu senhor espiritual” (Fernão Lopes de Castanheda, História do descobrimento & conquista da Índia pelos Portugueses, 2a ed. [1554], Livro I, apud GARCIA, J. M., 2000: 57).

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Igreja (verificando-se por vezes o abuso da mulher índia e o nascimento indiscriminado de “filhos ilegítimos”), de igual modo a eversão do humanitarismo cristão seria patenteada com uma vergonhosa escravidão dos índios (que, em 1500, eram, segundo alguns estudiosos, cerca de 4 milhões). Por outro lado, e juntamente com essa subversão, uma outra foi gradual e amargamente experimentada: a submissão do nativo brasileiro a critérios e modelos europeus que lhe eram estranhos, vendo-se repentinamente a ter que se sujeitar aos modelos sociais, artísticos, arquitetónicos e económicos que lhe eram impostos. E se nos recordarmos do modo como a História testemunhou as progressivas investidas contra a essência linguística e a constituição biológica do índio (como, por exemplo, a eliminação por Pombal do uso do Tupi, ou a sucessiva e dominadora eliminação do índio, manifestamente visível após a corrida ao ouro em Minas Gerais) – investidas essas quase sempre justificadas pelo diapasão político-económico –, mais facilmente compreenderemos como, na literatura brasileira a figura do português aparece alusiva ou explicitamente identificada com a imodéstia, a prepotência, a soberbia, a descortesia, a avidez: no século XIX, por exemplo, em José de Alencar (n’O Guarani, ou n’A Guerra dos Mascates), ou já no século XX, em Jorge Amado (em Gabriela, Cravo e Canela, em Jubiabá, n’Os Pastores da Noite). Note-se, entretanto, que, fundamentadas ou não, as atitudes de alguns vultos da literatura portuguesa terão igualmente promovido uma dinâmica de representação coletiva da figura do brasileiro num registo menos favorável. Recorde-se, a este propósito, Gil Vicente, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós: Gil, no século XVI, com o Auto da Barca do Purgatório, onde a regateira, Marta Gil, em diálogo com o Diabo, não deseja o degredo para o Brasil (“Ora assi me salve Deus / E me livre do Brasil, / Que estais sutil”). Já cronologicamente mais próximo de nós, Camilo, como se sabe, ridiculariza por diversas vezes a figura do brasileiro, ainda que adotando um outro timbre: o do emigrante português regressado do Brasil (que, em Eusébio Macário, por exemplo, é encarado como uma terra de oportunidade), passando então a ser designado pelos habitantes da sua região como ‘o brasileiro’. Contudo, aquele cujos escritos terá incitado mais ânimos no seu tempo foi porventura Eça de Queirós, fundamentalmente pelo que escreve n’As Farpas, satirizando o Imperador D. Pedro, do Brasil (atitude que, sobretudo em Pernambuco, conduziu ao aparecimento do panfleto Os Farpões, onde o imigrante português no Brawww.clepul.eu


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sil seria classificado pejorativamente como ‘galego’) (cf. VIEIRA, N. H., 1991: 92).

4. Como quer que seja, indissociável ainda das razões acima mencionadas (que, direta ou indiretamente, contribuíram para um desentendimento das considerações que alguns portugueses e alguns brasileiros terão tido entre si), houve um facto histórico que nos permite apreender com uma latitude ainda maior certas fragilidades que ainda possam existir: referimo-nos ao nascimento e à consolidação da consciência brasileira10 . Com efeito, após os primeiros contactos e respetiva política de colonização, depois das invasões dos ingleses, franceses e holandeses (que também cobiçavam as riquezas do Brasil), cresce no Brasil o ressentimento e o sentimento de revolta contra uma altiva e indiferente coroa portuguesa, que não ajudava a expulsar os invasores. Mais: com a descoberta de ouro no Brasil, a coroa portuguesa agrava os impostos, o que causaria não só a emigração de muitos portugueses para o Brasil, movidos pela ganância11 , como também a reação dos paulistas – fundamentando a sua indignação no facto de terem sido eles a descobrir o ouro (e de, por isso, deverem ter a exclusividade da exploração), reação essa que culminaria com a guerra civil de 1708-1709. Ora, o despesismo de D. João VI, o aumento dos impostos sobre a exploração desse mesmo ouro e a absoluta necessidade deste por parte da coroa teria conduzido à noção, entre os que habitavam no Brasil, de um Brasil rico e próspero e de um Portugal aflito, esbanjador e, no fim de contas, pobre. Entretanto, enquanto o Brasil cresce de um ponto de vista económico, nasce paulatinamente o sentimento de independência, para o qual muito concorre o prestígio dos “senhores do engenho” (com grande poder e prestígio locais, com avultado património de terras e escravos), como também o contacto de estudantes brasileiros com os ideais filosóficos franceses – resultando daí uma cada vez maior consciencialização dos abusos da coroa portuguesa e uma necessidade de refletir sobre o ser brasileiro. As sensibilida10

Cf. VIEIRA, N. H., 1991: 29-44. Essa ganância seria, aliás, mais tarde duramente criticada por Almeida Garrett, n’A Lírica de João Mínimo, na ode O Brasil Liberto, quando se refere às “terras inocentes” brasileiras devassadas pelas “Ousadas quilhas de Cabral, Colombo / [. . . ] Prenhes de ferros, de punhais, de fachos”, pela “Cobiça” e pela “Fome indigna” do ouro brasileiro (GARRETT, A., s/d: 1579). 11

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des intelectuais, progressivamente imbuídas desses ideais, contribuem então para a confirmação da independência do Brasil, em 1822 (apenas reconhecida definitivamente por Portugal em 1825), proclamada por D. Pedro.

5. Não menos elucidativo quanto a possíveis desencontros entre Portugal e o Brasil é o enquadramento da consciência linguístico-cultural dos dois países. É relativamente pacífica a noção segundo a qual essa consciência reenvia para uma particular tradição histórica. José Herculano de Carvalho, na sua Teoria da Linguagem, afirma que a língua “é sobretudo uma entidade histórico-social” (CARVALHO, J. G. H., 1967: 327) – sublinhando deste modo o passado, o presente e o futuro de uma comunidade linguística, e vincando todo o sentido da tradição e da continuidade cultural inerente à mesma comunidade; Mikhaïl Bakhtine, por seu lado, afirmara que “La véritable substance de la langue n’est pas constituée par un système abstrait de formes linguistiques ni par l’énonciation-monologue isolée, ni par l’acte psycho-physiologique de sa production, mais par le phénomène social de l’interaction verbale, réalisée à travers l’énonciation et les énonciations” (BAKHTINE, M.; VOLOSHINOV, V. N., 1977: 135-136); refere-se deste modo Bakhtine à importância da ação e sentido sociais e práticos envolvidos pela atualização que da sua língua faz uma determinada comunidade. No fundo, trata-se substantivamente do mesmo sentido que Eça de Queirós e Fernando Pessoa conferiram à língua: a atualização e o reconhecimento, por parte dos falantes, da língua que falam como sendo a sua língua. É, aliás, numa carta destinada a uma “Madame S.” que Eça de Queirós, pela voz alteronímica de Fradique Mendes, defende a necessidade de esse reconhecimento ser levado a um grau supremo, alertando para os perigos da “desnacionalização” do poliglota, quando procura exprimir-se com “esforço contínuo [. . . ], com genuína e exacta propriedade de construção e de acento, em idiomas estranhos” (QUEIRÓS, E., s/d [a]: 131); e repare-se como sobre essa “desnacionalização” também discorre Fernando Pessoa, quando se refere à vivência “mental” regulada pela “hipnose do de-la-fora” (PESSOA, F., 1986: 591), quer na esfera linguística, quer no panorama político e ideológico-cultural. Ora, no que estas reflexões encerram, encontram-se, afinal, algumas linhas diretrizes que presidem à noção de identidade linguística. Diz-se que

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a Língua Portuguesa tem 200 milhões de falantes por todo o mundo; que só no Brasil há perto de 160 milhões; que em Portugal, esse número se cifra em cerca de 10 milhões. Sabe-se ainda que as reformas ortográficas entre Portugal e o Brasil têm, desde 1913, procurado malogradamente harmonizar as diferenças, acima de tudo fonéticas, dos dois sistemas ortográficos. Já em 1991, com o Decreto do PR n.os 43/91, de 23 de Agosto, a conciliação ganha novo ímpeto, sustentando-se entre todos os países lusófonos uma posição uníssona, ao nível das consoantes surdas, da dupla acentuação, da supressão de acentos gráficos em determinadas palavras graves e agudas, do próprio alfabeto (pela inclusão das letras ‘K’, ‘W’ e ‘Y’), da abolição do hífen em algumas situações, bem como da abolição do trema. Agora, pergunta-se: porquê a inconsequência dos acordos ortográficos (que, essencialmente, contribuiriam para que as virtualidades afirmativas de um discurso identitário da ampla comunidade lusófona se não desvanecessem)? Encontrar-se-á a resposta na obstinação e inflexibilidade de determinadas posições, que lembram por vezes comportamentos de um passado distante e/ou que refletem uma consciência patriótica muito vincada? Não será necessário reprimir procedimentos que não vingam, por uma presunção e uma filáucia orgulhosas de um certo passado matreiro e suspenso nos desígnios que historicamente o informaram? Será necessário lembrar que no Brasil existem 80% dos falantes lusófonos? Será preciso ressaltar as consequências que tal situação acarreta, também por isso, ao nível de um importante mercado editorial? Não se tornará importante relembrar a maciça e consequente política cultural brasileira no plano da tradução?

6. Ao relembrarmos estas questões, pretende-se que nelas se reconheça o consentimento e a necessidade da flexibilidade – sobretudo quando o convívio linguístico é hoje uma realidade essencial. É nestes termos que também poderá ser equacionada toda esta problemática nas nossas escolas. E, por exemplo, a dramatização do primeiro contacto entre os portugueses e os índios, a promoção do contacto entre alunos pela Internet (através de correios eletrónicos, ou de chats), a assinatura de protocolos (e visitas de alunos) entre escolas portuguesas e brasileiras contribuiriam decididamente para (a par de

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colóquios, concertos e encontros de escritores) retificar e polir imagens desleais para com a identidade dos dois países. São estes propósitos e procedimentos, e sobretudo a intensidade colocada na sua aplicação, que favorecem a divulgação de trabalhos como aquele escrito pela Clara Gonçalves, a Paula Alves e a Patrícia Bernardo (da Escola Secundária de S. Brás de Alportel) – e que, pela sua naturalidade e singeleza, merece ser transcrito quase na totalidade. Intitulado Chegada ao Brasil, esse trabalho (orientado por Jorge Fernandes) começa assim: Ao fim de largos meses em alto mar, por fim foi avistada terra: – Terra à vista! Terra à vista! – gritou de cima do mastro um dos tripulantes. – Estás certo do que dizes marujo? – pergunta o capitão da frota. – Decerto vejo um monte muito grande e muita vegetação. [. . . ] Assim o fizeram, lançaram âncora nas águas límpidas que encontraram e baptizaram a terra de Terra de Vera Cruz.

Seguem-se os diálogos: [. . . ] Entre os índios: – Que tribo estranha! – Vieram dos céus! – Andam com folhas na cabeça e têm pinturas pelo corpo completamente e diferente das nossas. – Que fazemos? Vamos ao seu encontro? – Eu não, podem ser maléficos! – Não parecem ser! Eu vou. [. . . ] Entre os portugueses: – Nus! Completamente nus! – Que inocência! Que simplicidade! Que bonitos! – Serão inofensivos? Ou poderão atacar-nos? – Não sei que hei-de fazer? – Esperemos pelo primeiro passo deles. – diz o capitão. [. . . ] Entre portugueses: – Confesso que me espanta tal naturalidade e inocência nos seus movimentos. – Não se sentem intimidados por nós! www.clepul.eu


Portugal e Brasil: um diálogo essencial – Penso que será fácil o nosso contacto embora por gestos, já que não conseguimos compreender o seu dialecto. – diz o capitão aos seus marinheiros. – Só não sei o que hei-de relatar no diário de bordo para conseguir descrever este momento. – diz o escrivão maravilhado. [. . . ] Entre índios: – Eles estão a apontar para a canoa com asas. – Acho que querem mostrá-la! – Eu não tenho medo! Eu sou valente! Vou com eles! – Vai e conta-nos o que vistes. [. . . ] De volta a terra (entre os índios): – É uma canoa muito esquisita, tem escadas. Eles comem comidas que foram as piores que eu já comi e além disso não comem sentados no chão, sentam-se em pedaços de troncos de árvores. [. . . ] – Tenho uma ideia. Porque é que não os convidamos para vir à nossa tribo para nos poderem conhecer melhor. – Concordo contigo. Na noite seguinte encontram-se todos na praia e seguiram até à tribo dos índios onde os portugueses depararam com um enorme banquete, embora estranho. Os índios apanhavam algumas das iguarias e levavam à boca, fazendo sinal aos portugueses para lhes seguirem o exemplo. E assim fizeram. – Estranhas, mas não posso negar, boas. – diz um marinheiro. [. . . ] No dia seguinte os portugueses teriam de partir e graças a um tão bom relacionamento com aquele povo levaram dois deles consigo, de própria vontade. A despedida foi algo de engraçado. Os portugueses levantaram a mão e fizeram sinal de adeus, os índios imitaram-nos e fizeram também, mesmo sem saber porquê. Prosseguiram para os navios e pouco a pouco foram desaparecendo no horizonte com a promessa de voltar àquela terra de tão grandiosa beleza e de gentes tão simples e sem pecado (<http://educom.sce.fct.unl. pt/proj/por-mares/chegada_brasil.htm>; 20 de Junho de 2000)

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7. Rematando, torna-se necessário da parte portuguesa uma maior abertura às inovações lexicais. Tal atitude, no fundo, fortaleceria de um modo particular a revitalização da Língua Portuguesa. Note-se, entretanto: é óbvio que continua a existir a diferença entre o registo oral e o registo escrito; decerto que a Literatura, enquanto “Arte Superior” (como a caracterizou Fernando Pessoa), assim como a sua leitura, terão que se orientar por padrões incompatíveis com excessos linguísticos. E decerto que, no contexto escolar, o professor é fundamental para que não se redunde em comportamentos linguísticos imoderados. Por outro lado ainda, é imperioso corrigir as imagens equívocas acerca de dois países irmanados singularmente pela Língua Portuguesa. A base deverá talvez começar no reconhecimento de que Portugal e o Brasil têm, cada um, uma identidade própria, ainda que desfrutem de um património linguístico, cultural, histórico (e, até, sentimental), comum; compreendendo que o que se comemora em 2000 é uma Viagem, a Viagem de Pedro Álvares Cabral, uma viagem que uniu dois continentes e que, para a época foi extremamente importante (tal como foram importantes para a Humanidade a descoberta do caminho marítimo para a Índia, a descoberta da América, ou a chegada à Lua); percebendo que o que se verificou em 22 de Abril de 1500 não foi tanto a descoberta do Brasil (pois a “descoberta” foi recíproca), antes o encontro entre duas civilizações, que, ao longo da História, consentiram, apesar de todas as vicissitudes, um diálogo intercultural, apoiado acima de tudo na Língua Portuguesa, uma daquelas três línguas, afinal, sobre as quais, como avisou Fernando Pessoa, assentará “o futuro do futuro” (PESSOA, F., 1993: 237).

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Bibliografia Bibliografia Activa A Carta de Pêro Vaz de Caminha (2000), Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses [Coordenação de Joaquim Romero de Magalhães e João Paulo Salvado].

Bibliografia Passiva AZEVEDO, Ana Maria de (2000) – “Desta Vossa Ilha de Vera Cruz. . . é já outro Portugal”, in Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.o 8, Instituto Camões, Janeiro/Março, pp. 40-52. BAKHTINE, Mikhaïl (1984) – Esthétique de la création verbale, Paris, Gallimard. BAKHTINE, Mikhaïl; VOLOSHINOV, V. N. (1977) – Le marxisme et la philosophie du langage. Essai d’application de la méthode sociologique en linguistique, Paris, Les Éditions de Minuit. Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas (2000), n.o 8, Instituto Camões, Janeiro/Março (tít. genérico: “Terra Brasilis”). CARVALHO, José G. Herculano de (1967) – Teoria da linguagem. Natureza do fenómeno linguístico e a análise das línguas, Coimbra, Atlântida, Tomo I. CORREIA, Ferrer (1994) – “Da comunidade luso-brasílica”, in Convergência Lusíada, n.o 11, Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, pp. 146-155. CORTESÃO, Jaime (1994) – A Carta de Pêro Vaz de Caminha, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda. COUTO, Jorge (2000a) – “A Gente da Terra”, in Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.o 8, Instituto Camões, Janeiro/Março, pp. 9-22. COUTO, Jorge (2000b) – “O Achamento da Terra de Vera Cruz”, in Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.o 8, Instituto Camões, Janeiro/Março,


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pp. 23-39. GARCIA, José Manuel [org.] (2000) – O descobrimento do Brasil nos textos de 1500 a 1571, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. GARRETT, Almeida (s/d) – Obras de Almeida Garrett, 2a ed., Porto, Lello & Irmão Editores, vol. I. MASCARENHAS, Domingos (1992) – “Brasil, Esse Desconhecido”, in TRIGUEIROS, Luís Forjaz e DUARTE, Lélia Parreira [eds.] – Temas Portugueses e Brasileiros, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, pp. 207-213. MOREIRA, Adriano (1992) – “Aspectos Negativos da Imagem Recíproca de Portugal-Brasil”, in TRIGUEIROS, Luís Forjaz e DUARTE, Lélia Parreira [eds.], Temas Portugueses e Brasileiros, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, pp. 37-51. MOREIRA, Adriano (1998) – “Temas da Lusofonia”, in Discursos, n.o 15, Coimbra, Universidade Aberta, Abril, pp. 13-24. NEVES, João Alves das (1992) – As relações literárias de Portugal com o Brasil, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. PESSOA, Fernando (1986) – Obras de Fernando Pessoa [Introduções, organização, biobibliografia e notas de António Quadros], Porto, Lello & Irmão Editores, vol. III. PESSOA, Fernando (1993) – Pessoa Inédito [coordenação de Teresa Rita Lopes], Lisboa, Livros Horizonte. QUEIRÓS, Eça de (s/d [a]) – A Correspondência de Fradique Mendes, Lisboa, Livros do Brasil. QUEIRÓS, Eça de (s/d) – Uma Campanha Alegre, Porto, Lello & Irmão – Editores, vol. II. SANTILLI, Maria Aparecida (1998) – “O papel do Brasil na lusofonia”, in Discursos, n.o 15, Coimbra, Universidade Aberta, Abril, pp. 25-35. SEABRA, José Augusto (2000) – “A Descoberta do Outro na Carta de Pêro Vaz de Caminha”, in Camões – Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.o 8, Instituto Camões, Janeiro/Março, pp. 63-71. SILVA, Agostinho da (1992) – “Ensaio para Uma Teoria do Brasil”, in TRIGUEIROS, Luís Forjaz e DUARTE, Lélia Parreira [eds.], Temas Portugueses e Brasileiros, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, pp. 53-64. VIEIRA, Nelson H. (1991) – Brasil e Portugal – A imagem recíproca, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.

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RELATOS DE NAUFRÁGIO (CONFIGURAÇÕES ESTILÍSTICAS)1

1. Nenhuma análise estilística que se queira profunda e sistemática pode esquecer duas considerações primordiais: por um lado, um conhecimento sistemático dos recursos técnicos que conformam a estruturação de um determinado estilo; por outro lado, a indispensável orientação pela ideia de que, do contexto sobre o qual se exercerá a presente análise estilística, só determinados contornos deverão merecer atenção, noção esta que confirma a impossibilidade de apreender, de uma forma total, as particularidades estético-literárias dos textos na sua globalidade. Acrescente-se que esta segunda diretriz metodológica é problemática, quando aplicada em textos muito extensos. De facto, não descurando a importância da quantificação de elementos estético-estilísticos para o cumprimento de uma segura valorização estética, esse levantamento não é fácil, se o(s) texto(s) a analisar forem muito extensos. Procuraremos, assim, abordar algumas das multímodas e ricas dimensões que os Relatos de naufrágio nos apresentam. A tal atitude está inerente não um objetivo de fracionar este(s) objeto(s) de estudo, mas o reconhecimento de que os vários recursos estilísticos são avaliados pela intuição e por um apoio metodológico – conforme o destaque que evidenciam na estruturação do estilo presente no texto –, observação esta que não se esquece, porém, de contemplar a noção de que os fragmentos textuais a analisar – fundamentalmente a Tempestade e o Nau1

Este estudo foi apresentado em 1990, num seminário de Literatura Portuguesa Clássica (As Narrativas de Naufrágios), quando então frequentávamos, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa. Mais tarde, foi publicado na revista Letras de Hoje, n.o 120, Porto Alegre, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Junho, 2000, pp. 7-38.


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frágio – constituem apenas uma imagem parcelar dos recursos e evocações significativas que conformam a totalidade dos textos referidos. Sabendo-se que uma análise estilística, quando orientada para a pesquisa dos domínios subjetivos do sujeito da enunciação, poderá mais facilmente concretizar-se em textos redutíveis (como são os Naufrágios) a uma livre expressão de estados de alma, procurar-se-á não estabilizar num simples enumerar de algumas características técnico-estilísticas, mas valorizar esses recursos. Só assim será em parte atingida uma mais completa satisfação que – num contexto histórico-literário particular (a segunda metade do século XVI), numa área onde predominam certas orientações temáticas (o ‘Naufrágio’) configuradas num género determinado (a Narrativa de Viagem) – legitime conformidade estética a essas categorias2 . Quando se pretende estudar, do ponto de vista estilístico, os Relatos de Naufrágio, há uma primeira questão que desde logo se nos depara: a de saber em que termos e com que profundidade a análise estilística poderá explorar esse vasto leque de textos narrativos incluídos na História Trágico-Marítima. Decerto que estes relatos são muito sugestivos no que toca à possibilidade de determinar posicionamentos discursivo-ideológicos muitas vezes diferenciados entre si; mas também não é menos certo que se torna metodologicamente necessário selecionar um corpus específico, atitude que nos afasta de um outro caminho mais árduo (que seria a análise de todos os Relatos de Naufrágio). Que critérios de escolha se encontram, portanto, subjacentes à delimitação por nós operada? Os relatos do Galeão Grande S. João, da Nau S. Bento, da Nau S. Paulo, da Nau Santiago e da Nau S. Tomé são os únicos em que a sequência narrativa tempestade se encontra, em termos consecutivos, em ligação direta com um outro segmento narrativo: o naufrágio. Ora é, sobretudo, a harmonia desta conexão que se pretende analisar: equacionar a seção narrativa da Tempestade (cuja função primordial é preparar o Naufrágio) com a leitura estilís2

Para a análise que fizemos dos Relatos de Naufrágio, apoiámo-nos em várias obras. Realçamos, no entanto, duas essenciais: LANCIANI, G., 1979 e REIS, C., 1981; para estes dois trabalhos remetemos de imediato: o primeiro, pelo seu valor de referência indesmentível no âmbito do estudo das Narrativas de Naufrágio, mas também pelo muito que a ele deve o presente estudo; o segundo, pelo facto de ter constituído para a análise estilística que apresentamos o principal ponto de partida, sobretudo no que concerne às linhas metodológicas e aos “princípios operatórios” seguidos.

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tica do Naufrágio. Repare-se que, de todos os outros relatos, só a relação da Nau Santa Maria de Barca apresenta, neste contexto, afinidades com os cinco já citados, embora não se verifique aí a total consumação da Tempestade, mas apenas a presença de ventos contrários. Note-se, ainda, que nos encontramos perante relatos históricos, e não de ficção, facto que impedirá, a priori, a existência, em todos os relatos, de uma total homogeneidade no que concerne à unidade estrutural; e se dizemos total, fazemo-lo porque estamos diante de textos, apesar de tudo, com intensas relações dialógicas (o autor de cada relato conheceria, em princípio, os relatos anteriores). Com base neste aspeto estrutural (que antecede imediatamente a noção de que, entre estes relatos selecionados, há, então, um nível superficial, uma sequência factual que segue uma estrutura em parte semelhante), parece-nos possível chegar a um outro critério novamente de incidência técnico-discursiva: o de que a representação da Tempestade e do Naufrágio resulta de um específico código artístico, dele recolhendo virtualidades que potenciam o perfil estrutural dos discursos produzidos: referimo-nos aos traços de acumulação, amplificação e intensificação que emprestam aos relatos uma maior dramaticidade, e aos quais não faltaria uma outra finalidade: manter o leitor preso à narração. Outros dois aspetos concorrem para viabilizar a seleção efetuada: uma relativa homogeneidade – no plano da sucessividade dos eventos narrados que contribuem para que se consume o inevitável naufrágio – e a visualidade. Vale a pena, por isso, chamar a atenção para a importância de que, no plano da ‘história’, se revestem determinados episódios: a adversidade dos ventos que estragam as velas e os mastros, os rombos nos barcos (bem explorados sobretudo nos relatos das Naus S. Bento e S. Tomé), os desastres que a carga solta provoca (ao matar, ferir, ou impedir manobras, como sucede de maneira tão visível no relato da Nau S. Paulo), as bombas que se entopem, revelando-se insuficientes, as cenas de desespero, a confissão dos pecados (tão presentes nos relatos das Naus S. Bento e Santiago). E, se se atentar nos cinco relatos acima enumerados, facilmente nos deparamos com um facto de importância preambular: o de que eles dão muita relevância ao perigo inevitável de naufrágio e às cenas coletivas de pânico e desespero, de terror incontrolado perante a morte irremediável (motivo este que constitui extensão da tempestade), quadros plenos de uma grande vivacidade e de visualidade (o

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que contribui, ainda mais, para aumentar o ‘efeito emotivo’) – cambiantes estes suscetíveis de afirmar e realçar o sentido do horrendus. Porém, embora o valor estilístico divirja de relato para relato, escolhemos três: a “relação da mui notável perda do Galeão Grande S. João. . . ”, a “relação da viagem que fez Fernão d’Álvares Cabral. . . ” (Nau S. Bento) e a “relação do naufrágio da Nau S. Tomé. . . ”. Porquê só estes três? Em primeiro lugar, por imperativos de espaço; depois, porque seria, ainda assim, um trabalho penoso (dentro de objetivos pré-estabelecidos) analisar todos os cinco relatos atrás referidos; e ainda, porque estes três relatos estão dependentes de um contexto de apreciação que sugere a referência a alguns pontos especialmente significativos: a análise do relato do Galeão Grande S. João é, desde logo, inevitável, por ele ser o primeiro da extensa série de relatos incluídos na História Trágico-Marítima; além disso, a necessidade de provar a sua qualidade estilística torna-se desde logo um desafio. Escolhemos, depois, o relato da Nau S. Bento, pelo facto de ele ser o primeiro da História Trágico-Marítima com um autor que vivenciou o naufrágio. Por último, o relato da Nau S. Tomé: se, por um lado, era indispensável acentuar a qualidade literária do discurso de um nome consagrado, como era Diogo do Couto, por outro, a escolha deste relato justifica-se também pelo facto de ele ser, cronologicamente, o mais distante (escrito em 159[?]) em relação ao primeiro relato que contém a sequência factual Tempestade –> Naufrágio.

2. O que no relato do Galeão Grande S. João nos parece, desde logo, significativo é o posicionamento desse narrador desconhecido. Quando, no Título, ele faz referência à “mui notável perda do galeão grande «S. João»”, aos “grandes trabalhos e lastimosas cousas” que sobrevieram a Manuel de Sousa Sepúlveda, e ao “lamentável fim” (I: p. 25)3 deste capitão, o narrador desencadeia já um processo que evidencia a utilização de um discurso ava3 Para efeitos de esclarecimento, qualquer referência à Bibliografia Ativa (História Trágico-Marítima [Compilada por Bernardo Gomes de Brito] (s/d), Lisboa, Publicações Europa-América, 2 vols.] se processará do seguinte modo: I, se o volume referido for o primeiro; II, se for o segundo. Além disso, procuraremos evitar repetir continuamente a citação do número do volume especificado, pelo que optaremos por uma solução: o número do volume não será repetido até que seja mencionado o outro volume. Sublinhe-se ainda que, com a finalidade de destacar determinadas palavras retiradas dos Relatos, os itálicos serão nossos.

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liativo, pelo uso do adjetivo ‘subjectivo’; repare-se que os adjetivos “notável” (este reforçado ainda com o advérbio de intensidade “mui” que fortalece o valor do adjetivo), “grandes”, “lastimosas” e “lamentável” sugerem-nos um discurso totalmente virado para o ‘eu’ do narrador. No plano das virtualidades ideológicas, este título revelará, em primeira instância, a empatia deste narrador para com os sacrifícios de Sepúlveda – um narrador, portanto, que participa emocionalmente dos sofrimentos daquele desditoso capitão. Assim se tende para uma atitude significativamente valorativa que decorre do perfil ideológico-afetivo do narrador. De referir ainda que este primeiro relato não pode ser pensado à margem de uma dimensão pragmática. De facto, quando, já no Prólogo, o narrador nos reenvia para o fim triste de Sepúlveda, que “foi acabar sua vida em tanta lástima e necessidade entre os cafres” (p. 25) e que “passou tantos trabalhos” (p. 25), torna-se possível adivinhar a vigência subtil de duas funções da linguagem: a expressiva e a conativa. Se, por um lado, a utilização, neste contexto, de um discurso (valorativo ou não) é, por si só, a manifestação de uma instância subjetiva, então, quando esse mesmo discurso interfere no leitor, fá-lo com uma determinada injuntividade. Assim, neste prólogo, o narrador solicita com delicadeza o leitor a assumir fundamentalmente três posições: uma posição afetiva como leitor, que implicaria a sua participação sintonizada com os “trabalhos” por que passou Sepúlveda; uma posição ideológica-existencial como cristão4 ; finalmente, uma posição de prudência como navegante, quando o narrador explicita que o seu relato servirá também para “aviso e bom exemplo a todos” (p. 25). Assim se esboça, portanto, um processo cuja eficácia depende deste discurso valorativo, um discurso que, afinal, parece obedecer a um objetivo primordial: relatar a tragédia de Manuel de Sousa Sepúlveda, personagem de elevada estatura social e moral que se vê incapaz de ultrapassar a diretriz de um destino cruel e inexorável, pois “como já estava de cima que acabasse este capitão com sua mulher e filhos e toda sua companhia, nenhum remédio se podia cuidar a que a fortuna não fosse contrária” (p. 30). 4

Esta atitude torna-se bem evidente, quando o narrador sublinha uma das finalidades que o norteiam neste relato – “[. . . ] para os homens muito temerem os castigos do Senhor e serem bons cristãos” (p. 25) – facto este que testemunha a vivência da ideia de um Deus como entidade omnipotente que castiga.

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Mas esta tragédia é indicada logo à Partida, quando a “nau” inicia a sua “desventurada viagem” (p. 25); partia “muito carregada”, “tão tarde” e com “ruins velas” (p. 26), circunstâncias estas que exercem a sua capacidade de evocação pelo facto de, sendo as principais causas do seu “perdimento”, remeterem premonitoriamente para um desenvolvimento particular da intriga: o final trágico de Manuel de Sousa, o que confirma mais uma vez a presença efetiva do narrador. O sujeito da enunciação ‘anima-se’, então, com este início da dança trágica do galeão, o que o habilita a adotar fundamentalmente uma visão dinâmica dos acontecimentos: atente-se na presença inicial das orações verbais “Partiu [. . . ] a três de Fevereiro” (p. 25) e “partiu tão tarde” (p. 26) – em que o significado predicativo é dado pelo verbo “partir” (acompanhado de complemento) –, que contrastam, por exemplo com a oração nominal “a nau [. . . ] nem por isso deixou de ir muito carregada” (p. 26) – em que a ideia predicativa é dada pelo advérbio “muito” e pelo adjetivo “carregada”, que concentram toda a força semântica e prenunciam o clima de tragédia. Todavia, a Tempestade adivinha-se; resolve-se encostar o barco à costa. As razões de tal decisão são-nos transmitidas em discurso indireto: “[. . . ] todos responderam que [. . . ] a nau era muito grande e muito comprida e ia muito carregada e [. . . ] traziam [. . . ] velas [. . . ] tão rotas que se não fiavam nelas” (p. 26). Não é gratuito este emergir das vozes das personagens neste modo de representação específico. Embora seja a forma menos mimética de reproduzir o discurso das personagens, o narrador, ao selecionar ao e resumir as “razões que davam para arribar” (p. 26), continua a não abdicar do seu estatuto de sujeito de enunciação que modeliza o universo diegético, fornecendo, deste modo, um suporte verosímil às críticas que já apontara (mau estado da nau e carregamento excessivo). O emprego de tal artifício técnicodiscursivo ajuda, assim, a imprimir mais força à posição do narrador assumida no início do relato. Começa, então, a delinear-se o ambiente de dramaticidade, pela utilização, neste discurso indireto, do polissíndeto: “[. . . ] era muito grande [. . . ], e ia muito carregada [. . . ], e não traziam já outras velas [. . . ], e estas eram tão rotas [. . . ]; e que se parassem, e o vento crescesse, e lhes fosse necessário arribar [. . . ]; e tais eram [. . . ]; e portanto. . . ” (p. 26). Sabendo-se que esta figura consiste na utilização repetitiva de recursos que coordenam grupos sintáticos, emprestando por isso uma dimensão estilística particular às relações entre www.clepul.eu


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as frases, devemos posicionar a nossa atenção sobre os efeitos estilísticos veiculados por essa multiplicidade de conectivos. Apesar da ideia, geralmente aceite, de que este recurso linguístico se enquadra num discurso em que o esforço que o sujeito coloca na formulação do enunciado é mínimo, aqui, ele destaca-se precisamente pelo efeito significativo complementar, não se tratando de um simples levantamento das razões para “arribar” (e evitar a catástrofe!). Assim, o uso anafórico dos conectivos sublinha a tonalidade trágica da situação que os espera (e o narrador sabe isso); mais: este recurso traduz ainda, pelo efeito acumulativo que concentra, o rápido e encadeado desfilar dos discursos das personagens, como se o narrador nos quisesse transmitir já o pânico que paulatinamente vai crescendo de intensidade entre os tripulantes da nau. Apercebemo-nos, então, da importância de recursos técnico-estilísticos marcantes5 que gradualmente se evidenciam: a anáfora, a antítese e a articulação de diferentes ritmos. Deste modo, através da utilização da anáfora (aqui presente através da repetição constante da construção “[e] + [verbo de gerúndio] + «assim»”: “E vindo assim” [p. 26], “E assim” [p. 27], “Andando assim” [ibid.]), o narrador coloca no discurso narrativo diversas situações assinaladas num mesmo plano: um continuum temporal que, no entanto, é frequentemente interrompido pelo vento – que ora fazia “bonança”, ora ficava “furioso” (p. 26) –, ou pelo mar – umas vezes, “tão grande” (p. 27), outras, “muito grosso” (p. 27). Mas não menos importante, também neste contexto, é a presença da antítese. O narrador, ao longo do texto, vai opondo, alternadamente, dois tipos de situações: a “bonança” (p. 26) e o “temporal” (p. 27), facto que ajuda a criar uma certa tensão no leitor. Através deste dualismo de situações, somos como que arrastados num movimento cada vez mais rápido, que culminará, em última instância, na tempestade e no consequente naufrágio. E o contraste de situações é ainda reforçado pela utilização da dicotomia gerúndio/perfeito. Constituindo o gerúndio mais um recurso epocal do que propriamente individual, pensamos, todavia, que o narrador o utiliza aqui para aligeirar os períodos e acentuar a conotação aspectual, imprimindo valor imperfectivo ao seu discurso; as ações “vindo” (p. 26), “Andando”, “indo”, 5 Seguimos, como acima dissemos, as orientações metodológicas de Carlos Reis (cf. REIS, C., 1981: 155-238).

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“estando” (p. 27), são reiteradas em forma de um continuum, sendo claro o cunho de simultaneidade que as reveste. Todavia, além do fluir temporal que “passa” por uma nau subjugada aos elementos naturais, o alcance estilístico desta forma nominal encontra-se relacionado também com uma intenção pragmática por parte do narrador: a captação da atenção do leitor, o que contribui de forma decisiva para a intensificação do ambiente da tragédia que se avizinha (intensificação presente também em formas da perifrástica como “foi o vento crescendo” [p. 28], por exemplo). Mas a coloração aspectual não decorre apenas do emprego do gerúndio. O pretérito perfeito, cujos cambiantes aspectuais de momentaneidade representam ações singulares e acontecidas uma só vez (“lhes virou o vento” [p. 26], “ficou o mar tão grande”, “a nau [. . . ] perdeu três machados do leme”, “o vento [. . . ] lhe levou” [p. 27]), o pretérito perfeito constitui, igualmente, um recurso técnico-narrativo com amplas potencialidades estilísticas. O seu emprego consuma-se sobretudo em períodos da narrativa onde a adversidade (personificada nos elementos naturais: “[. . . ] vento [. . . ] furioso” [p. 26], “o mar [. . . ] não consentia” [p. 27]) se manifesta de modo abrupto, o que evidencia o contraste de situações. A ‘transformação’ opera-se. Ao nível da sintaxe narrativa, a articulação no tempo dos eventos que são narrados é reduzida, portanto, a um jogo de relações polarizadas em torno da oposição “bonança” vs “tempestade”, atualizadas pela utilização constante do “gerúndio” vs “pretérito perfeito”. Interessa ainda fixar a atenção sobre um outro tempo: o presente. Perspetivado numa utilização estética mais insinuante, apresenta um grande impacto estilístico. O presente do indicativo (“veem supitamente arrebentar o mastro grande” [p. 27]) surge aqui como exceção num texto quase sempre marcado por tempos do passado. O seu uso, aqui, empresta ao episódio uma impressão do real; utilizando-o, o narrador apela ao leitor para que se integre na ação, com o objetivo de esta não ficar esquecida. No fundo, este presente não é mais do que um perfeito; contudo, a sua utilização reenvia o leitor para o acontecimento (que, aliás, o narrador não viveu, pois, nas suas palavras, foi “Álvaro Fernandes, guardião do galeão, que [. . . ] [lhe] contou isto” [p. 25]); este presente incita, portanto, o leitor a tomar parte, a viver o perigo por que outros passaram, para que, deste modo, aquela ação passada se presentifique perante si, e para que ele sinta impressivamente o quanto abrupta é a adversidade do mar; para que ele possa, afinal, “ver qual ficaria Manuel de www.clepul.eu


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Sousa, com sua mulher e aquela gente” (p. 28) – expressão esta que mostra claramente, por parte do narrador, uma estratégia (“todos os que nisto bem cuidarem, poderão ver” [p. 28] e imaginar o que lhes sucederia), através da qual, neste curto momento de reflexão, a sua subjetividade se encontra nitidamente implicada. O terceiro artifício estilístico acima referido – a exploração dos diferentes ritmos – concretiza-se de igual modo em diferentes segmentos textuais. No entanto, quando perspetivado em termos de uma semântica global, e conjugado estilisticamente com a anáfora e a antítese, o elemento em questão adquire uma importância acrescida. Repare-se, por exemplo, nestes dois períodos de texto: (A) – E como tiveram tudo guarnecido [1] deram às velas com o vento su-sueste [2]. E como o leme vinha já com três ferros menos, que eram os principais [1], não lhes quis a nau governar senão com muito trabalho [2], e já então as escotas lhe serviam de leme [3]. E indo assim [1], foi o vento crescendo [2], e a nau aguçou de ló [3] e pôs-se toda à corda, sem querer dar pelo leme nem escotas [4]. E desta vez lhe tornou a levar o vento a vela grande e a que lhe servia de guia; e vendo-se outra vez desaparelhados de velas, acudiram à vela da proa, e então se atravessou a nau e começou de trabalhar; e por o leme ser podre, um mar que lhe então deu lho quebrou pelo meio e levou-lhe logo ametade, e todos os machos ficaram metidos nas fêmeas (p. 28); (B) – Desde que se viram sem mastro, sem leme e sem velas [1], ficou-lhes a nau lançada no bordo da terra [2] (p. 29).

O primeiro exemplo deixa transparecer o facto de que, tal como as diferentes ações se alternam rapidamente, também muda o ritmo na tensão ou distensão articulatória. O texto começa com um movimento pronunciado, onde somos arrastados numa curta subida até ao acento “guarnecido”, para aí fazermos uma pausa ligeira; trata-se de uma pausa curta, porque a tensão sobre este vocábulo é mínima, uma vez que se, por um lado, nos parece transmitir uma presumível segurança que a nau teria – provocando, concomitantemente, um aliviar da intensidade dramática –, por outro lado, o seu enquadramento no meio da frase torna-se motivo para sublinhar ainda mais essa certeza. Todavia, logo a seguir, o movimento torna-se mais rápido. De www.lusosofia.net


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facto, após a utilização inicial do ritmo binário, instaura-se o ritmo ternário. Apesar da presença da anáfora (“E como”), que poderia sugerir aqui um continuidade da ideia de segurança implícita na palavra “guarnecido”, somos compelidos pelo narrador para um sinal de alarme: o leme que “vinha já com três ferros menos”; mais: “[. . . ] eram os principais”. Note-se a dilatação deste primeiro elo; puxa-nos para diante. O primeiro sinal de algo que ritmicamente se modifica. A princípio, pensamos poder descansar em “menos”, mas um segundo membro conduz o movimento, até que, finalmente, é possível a paragem em “principais”. O narrador dá-nos já a entender que, tal como os acontecimentos diegéticos se modificam, assim a cadência rítmica do seu discurso se torna mais rápida. Ao instaurar-se o segundo movimento, fornecendo-nos o narrador mais um “oponente” ao bom sucesso da viagem (“não lhes quis a nau governar”), parece repetir-se o ritmo binário acima referenciado; considerar-se-ia, então, o vocábulo “principais” o centro de tensão. Mas, apesar das enumerações de lexemas da mesma categoria lexical (“leme”, “ferros”, “nau”), apesar da fingida uniformidade rítmica, o narrador valoriza os dois primeiros momentos, introduzindo um terceiro (“e já então as encostas lhe serviam de leme”); o período parece terminado; o ritmo binário parece continuar a prevalecer, mas. . . surge um terceiro! É o inesperado! Afinal, o narrador consegue colocar em destaque o terceiro acento rítmico (destacando-se significativamente este segmento textual). A sensação de perigo aumenta. Também o ritmo se modifica novamente. Depois, é o ritmo quaternário. Após o início simétrico, começa pouco a pouco o jogo de cursos rápidos e expressivos do discurso (tal como o vento, que vai “crescendo”), onde a reiteração, a partir daqui, do conectivo “e” assume um papel bastante sugestivo, ao manter, no plano significativo, uma ligação com o crescendo da tempestade. Mas além destes aspetos, também a coloração tímbrica vocálica e consonântica nos ajuda a perceber melhor a força natural do vento e do mar. É a repetição das vogais – nasais – ([e], [a]) e das consoantes oclusivas surdas ([p], [t], [k]) que, pelos efeitos expressivos que possuem, constituem um prolongamento técnico-estilístico da ideia do texto: o efeito imitativo do vento rijo; a aliteração destas consoantes, pelas suas virtualidades imitativas ou sugestivas de um som seco, veicula um efeito acústico enfático para todo o sintagma, pois as suas sonoridades se relacionam nitidamente com o quebrar da madeira. É, então, com este baixo contínuo que o narrador nos consegue transmitir o efeito acumulativo, recurso estilístico www.clepul.eu


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tão caro nestes relatos de naufrágio6 . Com o segundo fragmento textual, situado temporalmente num momento posterior, o narrador regressa ao ritmo binário. Somos puxados por um primeiro movimento, que nos faz subir até ao acento “mastro”. Mas é ainda uma subida curta; a anaforização da preposição “sem” – conferindo uma maior intensidade na construção paralela, pois continua a alargar o primeiro momento rítmico (e a obrigar, por isso, à formação de grupos paralelos com dois acentos cada) – conduz o movimento até, finalmente, ser possível a paragem em “velas”. A prótese desta frase está moldada, tornando-se a pausa em “velas” o ponto culminante da tonalidades ascencional da ‘voz’, depois de uma fórmula tripla, construída de modo completamente simétrico, e que se destaca de todas as fórmulas anteriores do texto; essa construção simétrica cria uma grande intensidade da articulação, o tempo diminui, encontrando-se inerente no final da frase, “bordo de terra”, uma grande força expressiva. Com estas observações, somos conduzidos à esfera dos sentidos presentes neste relato, não esquecendo que os recursos acima referidos não se podem dissociar da moldura discursivo-ideológica particular do narrador, cuja subjetividade, embora encontrando-se à tona do discurso, reenvia mediatamente para certas intenções pragmáticas que, de maneira implícita, se entrecruzam no texto. A manifestação da subjetividade do narrador projetada no enunciado reveste-se de feições diversas. Não se trata, obviamente, de apontar a simples presença deste narrador no discurso; ela já por si é um facto, pela própria existência deste relato. Trata-se, sim, de analisar e criticar os elementos pontuais que manifestam a irrupção da subjetividade – fenómeno, aliás, natural e inevitável neste tipo de narrativa –, atitude que não poderá, evidentemente, dissociar-se do alcance ideológico do texto. Ora a subjetividade do sujeito desta enunciação é denunciada, desde o início do texto, sobretudo por meio do adjetivo valorativo, do presente

6 Alfredo Margarido sublinha o facto de, até ao século XVIII, a produção do “discurso marítimo português” se dividir em dois “registos”: o “registo heróico, a que não falta um elemento particularmente interessante (a ideia do sacrifício)”, tipo de discurso produzido e solicitado pela “corte” e pelos “intelectuais”, e o registo do “naufrágio”, propriamente dito (produzido por autores “por vezes anónimos”, “aparecendo sob a forma de folhetos de cordel”, e dirigido ao povo), o que conduzia, assim, a “duas leituras opostas da verdade simbólica do mar” (MARGARIDO, A., 1991: 991-993).

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de cunho aforístico, do modalizador, da animização, recursos estilísticos estes que, definitivamente, abrem caminho às ‘digressões’. O uso do adjetivo valorativo, como se sabe, sublinha o perfil afetivo-ideológico do narrador, dependendo em parte do valor que se concede à sua utilização a eficácia do seu juízo a propósito dos factos [a] que [se] refere. Adjetivos como “desventurada viagem” (p. 25), “grande risco”, “ruins velas”, “vento [. . . ] furioso” (p. 26), “vento [. . . ] bravo”, “mares [. . . ] grandes”, “mar [. . . ] grosso” (p. 27), “leme [. . . ] podre” (p. 28), “história verdadeira e lastimosa” (p. 30), refletem bem a inscrição do sujeito da enunciação no enunciado, por traduzirem uma atitude apreciativa. É sobretudo através destes adjetivos que o discurso avaliativo se manifesta de forma mais explícita (embora certos advérbios [“tão”, “tanta”] veiculem também um juízo de valor). Dos adjetivos referidos, depreende-se um aspeto que se pode revestir de uma importância axial, pela possível atitude crítica que, em última instância, os mesmos deixarão transparecer. Estes adjetivos propõem um efeito específico, pela forma como agem sobre o leitor. Se conjugarmos estes recursos com o apelo do narrador no Prólogo, poder-se-ia deixar uma conclusão em aberto (uma vez que seria arriscado aceitá-la incondicionalmente): não adotará o narrador, mais do que uma atitude de constatação, um posicionamento de censura ao mau estado de uma nau (“leme [. . . ] podre”, “ruins velas”) que, perante a fúria dos elementos naturais, só dava azo a que acontecessem histórias “lastimosas”? A plausibilidade desta postura crítica poderá corporizar-se, igualmente, na utilização do presente intemporal – “Verdadeiramente que cuidarem os homens bem nisto faz grande espanto!” (p. 29) –, recurso que nos conduz de igual modo a fixar a nossa atenção sobre o domínio subjetivo do narrador, sobretudo porque a presença daquela modalidade temporal, ao contrário do simples presente, se enraíza numa enunciação de carácter ‘durativo’, individualizado por um cariz moralizante: parece, com efeito, este presente (“faz”) desviar-se do domínio da subjetividade; o eu parece dissimular-se pela enunciação de um discurso que possa ser lido como veiculador de uma verdade aceite por todos – facto que, incondicionalmente aceite, criaria uma distância entre o narrador e o seu enunciado. Todavia, a utilização deste tempo indica-nos, pelo contrário, um quadro de referências ideológicas particular: o do narrador. Afinal, a posição que este narrador deixa aqui transparecer não constituirá um reflexo da sua visão do mundo, uma crítica implícita para com atitudes irrefletidas tomadas pelos tripulantes da nau (neste caso, dewww.clepul.eu


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sembarcar numa terra hostil, “em terra de cafres”)? Não podemos ignorar a inserção desta reflexão no mais vasto contexto do relato. Com efeito, se tivermos em conta que, após o desembarque, iria descer a tragédia sobre Sepúlveda e a sua família (que o narrador conta tão intensamente), facilmente veríamos nesta sua reflexão, a nível da sintaxe narrativa, um prenúncio dessa tragédia – inevitável, “como já estava de cima” (p. 30). É igualmente em função da orgânica sintagmática deste texto e das várias intrusões, explícitas ou implícitas, do narrador que se pode compreender a utilização de modalizadores, como, por exemplo, o verbo de opinião “parecer”: “[. . . ] cada balanço que o galeão tomava parecia que o metia no fundo” (p. 27). Assim, apesar de a história deste relato ter sido contada ao narrador por Álvaro Fernandes, “guardião do galeão” – facto que comprovaria o conhecimento limitado do acontecimento por parte de um narrador que não vivenciara a situação –, não podemos de modo algum negar que é a presença da sua subjetividade que viabiliza a expressão de uma atitude interpretativa. É norma aceite que a intrusão do narrador consiste numa manifestação que pode revestir-se de modos muito diversos. Aqui, através desta imagem, o narrador transparece a sua posição; ele não só ‘pinta’ a situação, como também procura despertar a emoção do leitor. Mais do que transmitir uma dúvida (“parecia”) e do que aspirar à visualidade, obriga-nos a reter a atenção sobre o conteúdo emocional e sugestivo dessa imagem – pois é sempre um “fundo emocional, uma referência íntima, humana, que determina a imagem e o seu efeito estilístico”. O sujeito deste enunciado tenta, afinal, a “movimentação dos afetos” (o que vai provocar a movimentação afetiva do leitor ao texto), elemento este, como se sabe, marcante na passagem para o Barroco. Por sua vez, o clima de inquietação é sugestivamente representado por meio da animização. É desta forma que o vento ora vem “furioso” (p. 26), tornando “outra vez a saltar” (p. 27), ora vem “bravo” (p. 27); é assim que a nau, perante um “mar tão grande” que lhe dá golpes no “gurupés”, se nega a ser comandada pela mão humana (“não lhes quis [. . . ] governar” [p. 28]), abandonando-se totalmente à força dos elementos naturais; são estes, “o mar e o vento” (p. 28), que, dotados de vida, “iam levando para terra” (p. 29) os navegantes. Este processo estilístico confere, desta maneira, aos elementos em causa um alcance figurativo, acentuando, por um lado, a adversidade exercida sobre os tripulantes da nau (são esses elementos que a capitaneiam “para terra”, para a sua perdição) e, por outro lado, a própria disparidade de www.lusosofia.net


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forças entre o homem e a natureza, desproporção esta bem visível também na comparação “o mastro grande [. . . ] o lançou o vento ao mar [. . . ] como que fora uma cousa muito leve” (pp. 27-28); o mastro principal, o mais vigoroso, construído por mãos humanas, desaba perante a imensa força do vento e do mar conjugados. O “vento bravo” (p. 27) e o “mar bravo” (p. 30) como que se confundem, ao unirem as suas forças contra esta nau que “desde que a Índia é descoberta, até então não partiu nau de lá tão rica” (p. 31), desfazendo-a em “migalhas” (p. 31). O narrador, esse, não viveu ontologicamente o acontecimento, mas vive-o estética e literariamente. E isso verifica-se não só pela dinâmica que imprime ao seu discurso, ao empregar determinados adjetivos valorativos que coloram a ação; o narrador também formula asserções, comentários ou reflexões de teor genérico, suspendendo momentaneamente a velocidade narrativa que adota. Repare-se nas seguintes frases: “Por onde se deve ter grande recato nos lemes e velas das naus, por causa de tantos trabalhos quantos são os que nesta carreira se passam” (p. 28), “Quem entender bem o mar, ou todos os que nisto bem cuidarem, poderão ver qual ficaria Manuel de Sousa, com sua mulher e aquela gente, quando se visse em uma nau em cabo de Boa Esperança sem leme, sem mastro e sem velas, nem de que as poder fazer” (p. 28) e “Verdadeiramente que cuidarem os homens bem nisto faz grande espanto! Vêm com este galeão varar em terra de cafres, havendo-o por melhor remédio para suas vidas, sendo este tão perigoso” (p. 29); estas frases são exemplos evidentes de digressões [curtas] do narrador. Aqui, direta e explicitamente, elas comportam, a um tempo, o preparar da consumação da tragédia, incrementando um ambiente de suspense, e, a outro tempo, um processo de afirmação com princípios de índole axiológica, veiculando, por isso, um determinado perfil ideológico. Nestas aceções, facilmente se verificará uma atitude pedagógica, à qual se imbrica ainda uma outra atitude: a apelativa. Se a interferência do narrador se manifesta no conselho que dá a futuros navegantes – terem grande cuidado com os lemes e velas, e com o desembarque em terras desconhecidas –, também não se esquece de documentar a realidade existente: a ganância, o desejo de lucro rápido e o consequente descuido com a segurança da nau. No entanto, reafirme-se e sublinhe-se a atitude de simpatia afetiva do narrador, baseada num interesse humano; se se tivesse em conta, aliás, o resto do relato, facilmente se observaria a acuidade do narrador em estudar www.clepul.eu


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determinada dramaticidade das situações e das personagens: de Sepúlveda, da mulher, dos filhos, da sua gente. No entanto, também não se pode postergar definitivamente a noção segundo a qual, aqui, o narrador procura, ao mesmo tempo, subtil e explicitamente, traduzir os seus valores individuais, transportando no seu discurso uma dimensão pragmática, ao procurar ‘agir’ sobre o leitor. Não só pelo adjetivo o narrador consegue transmitir um conjunto de sentidos mediatos; é sobretudo pelo lugar de destaque destas ‘digressões’ que apreendemos suavemente essa atitude pragmática. Porém, o reflexo de crise não se consuma ao âmbito de valores sociais e éticos. O sentimento de insegurança existencial, de efemeridade da vida, a imagética da morte e do trágico, tudo isto denota, afinal, o rompimento com normas, padrões e valores renascentistas: os ideais de harmonia e de ordem, de conciliação entre o homem e a natureza desaparecem gradualmente; em seu lugar – e o texto analisado justifica esta interpretação –, aparece a insegurança de um homem marcado por uma fatalidade trágica, temeroso do seu destino, subjugado às leis da natureza, da fortuna (“nenhum remédio se podia cuidar a que a fortuna não fosse contrária” [p. 30]), de Deus (“já então parecia que Deus era servido do fim que ao depois tiveram [p. 27], “a nau aberta, que por milagre de Deus se sustentava sobre o mar” [p. 29], “como já estava de cima” [p. 30], “quis Nosso Senhor” [p. 30]). Nesse sentido, não se estranha a frase exclamativa que significativamente aparece neste contexto, como que mostrando o narrador a preocupação (que evidenciará, no resto do relato, através da exploração cada vez mais acentuada do sentido do patético) com a crença otimista do homem, com a atitude de serenidade perante a vida: “Verdadeiramente que cuidarem os homens bem nisto faz grande espanto!” (p. 29); uma exclamação que denota inquietação e que mediatamente remete para o que seria um contexto histórico-literário marcante, conformado por valores que revelam a crise do Renascimento e preparam o surgimento do Barroco.

3. Uma leitura deste relato não pode alhear-se, por razões já apontadas, de uma análise operada também sobre um outro “relato velho”: a “Relação sumária da viagem que fez Fernão d’Álvares Cabral”, a narração, afinal, da nau S. Bento, escrita por Manuel de Mesquita Perestrelo, roteirista e cartó-

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grafo (cf. SÉRGIO, A., 1974: 78). A nossa preocupação centrar-se-á na leitura do Naufrágio, enquanto segmento narrativo dotado de enormes virtualidades significativas, e do segmento narrativo que o precede imediatamente, a confirmar as situações de pânico e confusão generalizada, situações essas tão reais e características nestes momentos. Assim, um primeiro elemento merece desde logo ser destacado: o Título. Nele, o narrador declara ter vivenciado pessoalmente o naufrágio: diz ele que “se achou no dito naufrágio” (I: p. 44). O que é dito nesta nota em jeito de introdução é significativo; não só, em primeira instância, pelo facto de o narrador escrever uma “relação sumária” [!] de acontecimentos que resultam do vivido, da experientia, mas também, em segunda instância, por conceber um relato à margem da teorização. Numa época de explícita teorização, através da qual se traduz uma conceção elitista da criação literária (que viabilizaria a noção da distância escrito/vivido, em nome de um decorum), este relato surge-nos, então, como um espaço onde se espelha uma função lúdico-dramática: patenteia-a o narrador, numa atitude que revela o gosto de contar o que se viveu, o que se experimentou, a satisfação de transmitir ao leitor as peripécias vividas por ele, dando-lhe prazer de imaginar o que aconteceu. Mas ao seu discurso subjaz, antes de mais, uma entoação com indicadores “programáticos”: trata-se basicamente de transmitir ao destinatário duas atitudes: a de que se escreverá em “comum estilo” e “sem acrescentar nem diminuir a verdade” (p. 45). Procurará, então, o narrador não fugir à fluência de um estilo claro e simples – passível de ser compreendido por todos (o que demonstra já uma preocupação com o leitor) –, nem à precisão objetiva (a “certidom de verdade”); mas será esta uma verdade ‘objetiva’ ou ‘subjetiva’? Como quer que seja, o que parece indiscutível é que o fragmento deste relato que se pretende analisar (da partida da barra de Cochim no “ano de 1554” [p. 45] até ao momento do naufrágio) evidencia, dentro daquilo que interessa estudar, momentos importantes cujos aspetos estilísticos mais importantes procuraremos analisar. Num primeiro momento, encontramo-nos numa etapa em que surge um sinal de perigo integrado num curto momento de reflexão: o “tempo perfeito” (p. 45) que fazia à partida de Cochim é interrompido pela conjunção adversativa “mas”, que acompanha a intromissão do narrador, quando este põe em causa os momentos de alegria, referindo-se aos “contentamentos do www.clepul.eu


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mundo”, como não sendo de “muita dura” (p. 45). Com efeito, tudo (o mar e o vento) se “mudou [. . . ] ao contrário” (p. 45). E, pouco depois, a utilização de recursos técnico-estilísticos confirmam a presença do sujeito da enunciação; referimo-nos ao advérbio “tão”, que intensifica o adjetivo “teso” (p. 45), e à expressão “a qualquer outra boa nau [. . . ] se pudera ter receio, quanto mais aquela” (pp. 45-46). Do mesmo modo, a comparação e a hipérbole revelam essa intromissão do narrador. Se a comparação se relaciona com a essência emocional do sujeito (atente-se que o elevado número de caixas presentes na nau “igualava o convés com os castelos e chapitéus” [p. 46]), a hipérbole (que sublinha o facto de as palavras não possuírem somente o seu respetivo significado, mas ainda outras energias sugestivas) relaciona-se com a perceção agitada que o narrador tem das coisas; neste caso, é aquela “multidão de caixões e fardagem” (p. 46), frase precedida pelo advérbio “tanta”, fator que, se tivermos ainda em conta o papel ativo deste sujeito, contribui – a par de certas descrições (as “cobertas” a abarrotarem de “fazendas”, o convés cheio com “setenta e duas caixas de marca e cinco pipas de água a cavalete” [p. 46]) – para uma manifestação crítica por parte desse narrador, em relação aos excessivos carregamentos a que as naus eram sujeitas (“quanto mais aquela” [!]). Note-se, ainda, que já aqui, neste primeiro momento, se indicia, pela referência a “Nossa Senhora [que] foi servida” (p. 46), a configuração de um valor fundamental, presente ao longo deste relato: uma conceção excessivamente providencialista dos factos. Tudo o que sucedeu foi por vontade divina, cuja manifestação é, paradoxalmente, condicionada pelo próprio homem; mesmo que, por exemplo, a fatalidade se manifestasse, ele consciencializava-se de que era culpado e, por consequência, ‘chamava’ Deus para o castigar, pelos seus “pecados o ordenarem” (p. 48). Este castigo corporizava-se nos elementos naturais – que, também neste relato, surgem animizados pelo narrador, o que reforça já o elevado grau de visualismo de que este discurso se impregna (a “fúria do temporal”, a “grossidão e força das ondas” [p. 46]) –, ou na impotência da nau – que, por força do alcance visual que suscita, é sujeita pelo narrador à configuração expressiva da imagem: “[. . . ] afogada dos mares” (p. 46). O visualismo é ainda sugerido pela presença da aliteração. Atente-se, por exemplo, na reiteração das consoantes fricativas labiodentais [f] e [v] (“a fúria do temporal [. . . ] fez sofrer a nau [. . . ], ficando muitas vezes afogada dos mares [. . . ] e a traziam de todo vencida; [. . . ] a grossidão e a força das ondas” [p. 46]) – cujos efeitos expreswww.lusosofia.net


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sivos, prolongamentos da ideia do texto, sugerem o vento forte que desaba sobre a nau; e repare-se ainda na repetição das consoantes oclusivas bilabiais [p] e [b] (“dava tão grandes pancadas na água com a proa que rendeu as obras mortas por baixo do beque” [p. 46]) – que, ao sublinharem as sensações auditivas, e a par das sensações visuais (que decorrem das descrições que o narrador faz da carga colocada na nau e do movimento do mar), concorrem para acentuar ainda mais esse visualismo. E que dizer da dupla hiperbolização (“foi o mar todo coberto de infinitas riquezas” [p. 46]), estratégia estilística que ajuda a instituir esse visualismo? Entre este primeiro e o segundo momento, verificamos não poder abolir ainda um tempo intermédio, que se estende de “e como o desejo de passar aquele ano a este reino” (p. 46) até “pela muita confiança que nele tinham” (p. 48). Neste espaço temporal, é ainda possível uma vez mais atestar a intrusão do narrador. O que visivelmente ele afirma é a necessária submissão que é preciso ter a Deus para que qualquer viagem corra bem; se os tripulantes na nau S. Bento tivessem obedecido a “Nosso Senhor”, não seria essa nau entre as “rochas e braveza do mar” (p. 47). A apreensão revelada por esses navegadores (“se esperava não ser aquele o derradeiro contraste”, “com estes sobressaltos navegámos” [p. 47]) é, no entanto, ultrapassada pela confiança do divino. Isto nos revelam frases como “Nossa Senhora foi servida abonançar aquele mau tempo” (p. 46), “o que prouvera a Deus”, “o que [. . . ] despois de Deus mais esforçava”, “não cessava de dar graças a Nosso Senhor” e “prouve a Nosso Senhor” (p. 47), e “sua alma, a qual deu a Deus” (p. 48) – a comprovarem a omnipresença da imagética cristã, uma cosmovisão de índole eminentemente medievalista, uma visão altamente providencialista dos acontecimentos; só a total confiança em Deus e em Nossa Senhora justificaria o regresso “a este reino”. Sem desejarmos conduzir a nossa análise por impressionismo críticos, não podemos deixar de, curiosamente, atentar no dia em que o tempo “acabou de acalmar de todo” – o terceiro dia –, nem tão pouco no dia da semana em que faleceram (em tempos diferentes) o pai do narrador e o piloto – a sexta-feira; sabendo nós que o imaginário cristão medieval está presente não apenas neste extrato textual, mas também em todo o relato, não poderíamos nós aqui evocar um dos significados inerentes ao número três (a Santíssima Trindade) e à sexta-feira (dia em que foi crucificado Jesus Cristo, “condutor” dos cristãos à Terra da salvação, tal como o piloto da nau S. Bento, aquele www.clepul.eu


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que a guiava a bom porto)? Não é esta, contudo, uma questão que interesse desenvolver, pois poderíamos incorrer em análises subjetivistas sobre este relato, histórico e não ficcional, atitude que desde o início pretendemos abolir. Por agora, importa notar que a instauração desta situação intermédia se imbrica num segundo momento que culmina com o afundar da nau. Depois da bonança, de novo uma outra tempestade que aparece repentinamente. Mais uma vez o “contraste” (p. 48) entre o continuum e o corte temporal nos é dado pelo gerúndio (“seguindo a mesma [nau]” [p. 48]) e pelo pretérito perfeito (“se nos mudou o bom vento” [ibid.]). Pode-se dizer, então, que, apesar desta feição momentânea do pretérito, manifestada na mudança brusca do vento, nos encontramos perante um ritmo ascendente da mordaz manifestação desse elemento natural (“veio em tanto crescimento” [p. 48]). De novo se encontra subjacente uma inevitável relação entre este crescendo do perigo e a agitação coletiva dos tripulantes; o narrador subordina então o seu discurso ao gizar de situações de apreensão e de terror coletivo, imprimindo-lhe, pela representação de ações das personagens (“um marinheiro [. . . ] começou de se benzer e chamar pelo nome de JESUS”, “a gente começou a recrescer aos brados” [p. 48]) e das suas apreensões (“começando de lhe haver medo” [p. 48]), um sentido cada vez mais dinâmico, dominado pelo imediatismo das emoções. Mais flagrante se torna ainda esta intensificação da ação da natureza, se atentarmos nos termos em que são equacionados os dois grandes grupos de ondas, que, sujeitas a um processo de animização, ‘atacam’ o barco. No primeiro grupo de ondas, parece-nos sugestiva a presença de três variações, no que diz respeito à utilização do artigo. Em primeiro lugar, o artigo “uma”, presente na frase pela qual nos é transmitida a aproximação dessas ondas: “[. . . ] uma onda que de muito longe vinha levantada por cima das outras todas” (p. 48). O narrador concretiza e apresenta ao leitor uma onda que se destaca de entre muitas outras que se aproximam. A utilização deste artigo (em conexão, aliás, com o processo de animização a que estas ondas são sujeitas) revela, pelos valores concretizantes e atualizantes que encerra, o poder que o narrador tem de fazer real, de presentificar o acontecimento. Em segundo lugar, o artigo indefinido: “[. . . ] a gente começou a recrescer aos brados” (p. 48). Com isto, o narrador procura tirar o substantivo “gente” “da essência para a existência”; isto é: pretende, com esse artigo, individuar aquilo que o substantivo designa, que seria uma coisa mais abstrata e mais vaga, se lhe www.lusosofia.net


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faltasse precisamente esse artigo. Por último, a inexistência do artigo, processo este que também se ajusta, com toda a propriedade, à capacidade que o narrador tem para apreender a agitação coletiva e, concretamente, do marinheiro, que vê chegar essas ondas, as quais “não podiam ser senão diabos” (p. 48). Este tipo de procedimento refletirá assim a propensão para valorizar algo que existe difuso e impreciso na imaginação do marinheiro (pela perspetiva do narrador), estimulada pelo mundo concreto e medonho que o rodeia. Conseguidos, portanto, estes três artifícios estilísticos, encontrando-se o narrador voltado para uma situação em que se integrara, importa referir, então, que eles se conjugam para se transmitir um maior visualismo aos acontecimentos: a apreensão crescente provocada pelo temporal que também cresce em intensidade e a impotência daquelas pessoas (sintetizadas no sujeito coletivo “gente”) perante a força dominadora dos elementos naturais. A intensificação dos temores é refletida ainda na utilização, pelo narrador, do polissíndeto – “e foi o ímpeto [. . . ]; e com o pendor [. . . ], e juntamente [. . . ]; e feriu [. . . ] e seus ofícios” (p. 49); logo de seguida, um outro grupo de ondas, o segundo, também este submetido a uma descrição onde predomina o conectivo: “E por este mar veio outro [. . . ]; e porque o peso dos caixões [. . . ]; e de cada vez [. . . ]; e ajuntando” (p. 49), “e das pancadas [. . . ], e posto que [. . . ]; e despois” (p. 50). Com este artifício, pertencente ao domínio da sintagmática narrativa, o narrador tende para um determinado processo de representação – a pluralidade das ações, a rapidez com que estas se sucedem –, ao procurar transmitir-nos, por intermédio desse torvelinho linguístico, o pânico, a confusão generalizada, a barafunda da carga: “[. . . ] veio de romania a carga arrombando os paióis da pimenta” (p. 50). Repare-se como o narrador parece preocupado em dissecar também aspetos um pouco à margem de uma situação de pânico comum; é curioso verificar que tal procedimento se coaduna com a profissão do autor: roteirista e cartógrafo, o narrador terá diversamente recorrido a um vocabulário técnico (pormenores do barco, a sua localização no mapa), em função dos seus próprios conhecimentos. É frequente a referência cuidadosa e exata a elementos da nau: o “traquete”, os “pés de carneiro”, os “costados”, as “cobertas”, as “talhas do leme”, o “plão”. . . A partir daqui, poder-se-á, mais uma vez, relacionar estas situações de confusão e apreensão coletivas com o universo das virtualidades significativas. Se, a um nível imediato, a seleção de expressões que nos reenviam www.clepul.eu


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para uma atmosfera de religiosidade (mais uma vez, a cosmovisão religiosa medieval) está ao serviço da exploração do patético (“chamar pelo nome de JESUS” [p. 48], “pedindo a Deus misericórdia” [p. 49], “cada um tratasse de se encomendar a Deus [. . . ] tão justo Juiz” [p. 50], “ainda nos ficava a [. . . ] misericórdia de Nosso Senhor” [p. 51]), por outro lado, a um nível mediato, torna-se necessário interpretar estas situações à luz de fenómenos culturais (que transcendem, pois, este campo dos recursos estilísticos), fenómenos estes que dizem respeito a um entrelaçamento de conceções antropológicas e metafísicas do homem dos meados do século XVI (relembre-se que a primeira edição deste relato aparece em 1564). É visível o sentido de pessimismo que percorre o texto; visível é também o facto de a representação deste cenário (“rostos cobertos de tristes lágrimas e de uma amarelidão e trespassamento da manifesta dor e sobejo receio que a chegada da morte causava” [p. 51]) espelhar uma dimensão indesmentivelmente disfórica de um conjunto de personagens não só perspetivadas autonomamente, mas também tipificando comportamentos que refletem o medo, a insegurança existencial do homem dos meados do século XVI – que tem consciência da contradição dos seus comportamentos e, por consequência, tem “receio [. . . ] perante tão justo Juiz” (p. 50). Cremos que a análise da exploração que o narrador opera sobre o patético da situação, mostrando as diferentes reações dos tripulantes da nau S. Bento perante o perigo, não se pode, pois, alhear da crise espiritual, ética e religiosa que conforma, de um modo geral, o século XVI: uma crise que se fundamenta em valores humanistas e que gera o sentimento de “cru desengano”, o arrependimento (“cada um começou de [. . . ] ter com sua consciência, confessando-se” [p. 51]), o desejo dolorido de penitência, o desejo da busca de Deus (“cada um [. . . ] gastava [o tempo] em pedir a Nosso Senhor remédio espiritual” [pp. 51 e 52]). Daí que este extrato textual encerre com uma imagem, em que ecoa a angústia não só dos tripulantes da nau S. Bento – quando lançam “todos a uma voz” um “confuso, alto e miserável grito” (p. 53) –, mas também do homem quinhentista que tem necessidade de pedir “a Nosso Senhor misericórdia” (p. 53).

4. Aquilo que consideramos ser, nos Relatos Velhos analisados, uma contenção de processos (docere), traduzida numa exploração evidente do sentido

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do patético, desajusta-se na contribuição de Diogo do Couto, quando escreve a “Relação do naufrágio da nau «S. Tomé» na terra dos Fumós” (II: p. 94). Se é certo que (Giulia Lanciani sublinha-o [LANCIANI, G., 1979: 98]) no relato do galeão S. João se verifica um comedimento no uso de tintas fortes (embora no relato da nau S. Bento o narrador procure pintar as situações de maior carga dramática com tons mais violentos), o que neste relato de Diogo do Couto se verifica é uma exuberância de processos (delectare), na tentativa não de tornar banal o sentido do patético, mas de o intensificar. Convém sublinhar que a curta análise estilística deste relato – operada, como já dissemos, apenas sobre uma parte (que se estende da partida de Cochim até ao naufrágio da nau) – tem, como finalidade capital, comprovar a qualidade estilístico-literária deste texto, evidenciando os recursos estilísticos que a atestam. Assim, e tendo em vista a necessidade de captarmos esquematicamente o conjunto dos elementos técnico-estilísticos presentes no relato da nau S. Tomé, nada melhor do que definirmos algumas atitudes fundamentais, por parte do narrador, no tratamento a que submete o seu discurso: a exploração cuidadosa do elemento “água”, a organização lógica da diegese, o visualismo que coloca na descrição que faz de determinadas situações e, por fim, a intrusão que pratica de maneira explícita. Repare-se, antes de mais, que a ação da água sobre a nau se consuma à custa de um processo gradativo: primeiro, “a água [era cada vez] em maior quantidade” (p. 94); depois, a água “acabou de encher o porão” (p. 95); finalmente, “estava já a coberta de sobre o porão cheia de água” (p. 96). Este processo, usado em alternância com a antítese (“a água que por baixo lhes entrava, e de cima que o céu lançava sobre eles” [p. 96]), ou com a animização dos mares, que “entravam [. . . ] para [. . . ] alijarem tudo” (p. 96), concretiza uma representação dinâmica e profundamente elaborada dos acontecimentos, procurando o narrador acentuar a adversidade que qualquer homem tem de sofrer, ao aventurar-se no mar. É de notar, em sintonia com o ponto anterior, que o texto obedece ainda a uma cuidada organização lógica. Uma disposição que se traduz ora numa ordenação temporal – “em Janeiro de 1589” (p. 94), “sendo já catorze de Março” (p. 95), “Ao outro dia” (p. 96), “Ao outro dia em amanhecendo” (p. 96) –, ora numa exata referência espacial – “altura de trinta e dois graus e meio do sul, cento e cinquenta léguas da baía da Alagoa e oitenta da mais chegada Terra do Natal” (p. 95). Por outro lado, também o polissíndeto (“e a água começou www.clepul.eu


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a ser menos na bomba, e assim foram seguindo [. . . ] e toda a gente se meteu em grande revolta, e se começou a alijar [. . . ]; e com os aldrobes das bombas [. . . ] e sendo já [. . . ]. E porque a água crescia” [p. 95]) – a sugerir, no plano dos significados, a sucessão rápida das ações, a confusão, o pânico (a “gente se meteu em grande revolta” [p. 95]) – e a alternância de ‘quadros’ (“Os da nau” [p. 98], “E tornando ao batel” [p. 99], “os de dentro” [p. 99]) – exemplos de uma gestão medida dos eventos – contribuem para viabilizar esse desenvolvimento lógico e calculado da narrativa por um narrador omnisciente. Porém, este sujeito não permanece num simples enumerar de acontecimentos. Consciente de que isso não concitaria a adesão do leitor, ele imprime ao seu discurso um forte visualismo, demonstrando, assim, o seu dom de observação e de captação do pormenor. Atente-se nas metáforas (“tudo quanto viam lhes representava a morte” [p. 96], “viram [. . . ] [a nau] esconder-se toda debaixo da água” [p. 100]), na animização do vento (“O ar assobiava” [p. 96], “[o vento] parecia lhes estava bradando, morte, morte” [p. 96]) e do mar (“cruéis ondas”, “a nau [. . . ] [era] comida das ondas” [p. 100]), no jogo de contrastes (“por baixo, viram a nau cheia de água, por cima, o céu conjurado contra todos” [p. 96]), nos modalizadores (“parecia lhes estava bradando”, “parecia que os queria alagar com outro dilúvio”, “parecia que andavam todos os espíritos danados” [p. 96], “cruéis ondas, que pareciam que já a queriam tragar” [p. 98]), na duplicação do substantivo (“bradando morte, morte” [p. 96]) – tudo isto tendo certamente um objetivo: comover (animos impellere), ou melhor, presentificar no leitor as condições adversas que se manifestaram contra os tripulantes da nau S. Tomé. Acrescente-se que este efeito de visualização é suportado ainda pelo recurso a outros artifícios estilísticos. A comprovarem-no, encontramos inúmeras sensações auditivas (“O ar assobiava” [p. 96], “estrondo das cousas” [p. 96], “[ouvia-se] vozes e clamores tão altos”, “responderam com grandes gritos e prantos, pedindo misericórdia em vozes tão profundas e piedosas” [p. 99]); deparamo-nos com a exploração do sentido do patético – nomeadamente no episódio com D. Joana de Mendonça (“grandes prantos e lástimas”, “tantas as mágoas” [p. 97], “com lágrimas e piedades”, “espectáculo [. . . ] [que causou] em todos gravíssima dor” [p. 98]) – e do belo horrível (“vozes tão profundas e piedosas que metiam medo e terror”, “a manhã não era bem clara [e] fazia parecer aquilo mais medonho e espantoso”, “a gente toda como alienada com o temor da morte”, “escravas descabeladas, em um piedoso pranto pedindo àquela Senhora misericórdia” www.lusosofia.net


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[p. 99])7 . Verificamos ainda como se manifesta a resposta cristã face à aproximação da morte (“velas acesas”, “procissões e ladainhas, encomendando-se a Deus Nosso Senhor” [p. 99]) – diante, no fundo, de uma natureza que, metamorfoseada e operando sobre ela o narrador e os tripulantes da nau um processo de transcendentalização, é considerada como um castigo do Céu, como a penalização dos seus pecados, como um “juízo de Deus muito evidente” (p. 99); o simples humano não pode, por isso, fazer nada, a não ser virar-se para Deus, uma vez que Ele já “tinha escolhido aqueles [. . . ] [que acabariam] naquele lugar” (p. 98). Esta crença generalizada na vontade divina é demonstrada ainda no quarto, e último, aspeto que importa realçar: a intromissão direta e explícita do narrador. É através dela que se estabelece a crítica aos pecados, os quais “taparam os olhos a todos para não entenderem isto” (p. 101); por isso, é “certo que [o naufrágio] devia de ser [. . . ] castigo de Deus” (p. 98), e facilmente se veria “ser aquilo um juízo de Deus muito evidente” (p. 101). Num outro campo se manifesta também a crítica direta, facto que deixa perceber, com alguma segurança, o posicionamento ideológico deste narrador omnisciente que sabe que não há remédio para tantos pecados (“algum remédio, se o havia” [p. 96]). A ganância e os poucos escrúpulos (“tudo nasceu do calafeto, por cuja causa se perdem muitas naus, no que se tem muito pouco resguardado e os oficiais muito pouco escrúpulo, como se não ficassem à sua conta tantas vidas e tantas fazendas” [p. 94]), a avareza e o desejo de lucro rápido (“todas estas naus andam a Deus misericórdia, por pouparem quatro cruzados” [p. 95]) são, então, escopos visados pelo narrador, tal como a aspereza e a brutalidade dos homens do mar – defeitos que, sob a forma de um discurso valorativo, ele critica abertamente (“os mais destes homens são desumanos e cruéis por natureza” [p. 100]). Com o que se acabou de escrever, julgamos ser evidente a possibilidade de se partir do fragmento textual analisado para uma ação de reflexão suscitada pela enumeração e interpretação dos recursos estilísticos. Assim, quando, nos últimos anos do século XVI, Diogo do Couto escreve este relato, poderá querer sublinhar uma atitude nuclear: a capacidade de, pelo seu discurso, 7

Note-se a presença do adjetivo demonstrativo “aquela”, que revela o cuidadoso tratamento por Diogo do Couto do seu discurso, pois Nossa Senhora seria estranha à religião dos escravos negros. Sobre o papel das mulheres na literatura de viagem, e, mais precisamente, nos Relatos de Naufrágio, cf. MONIZ, A. M. A., 1995 e TONNIES, A., 1995.

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representar parte do perfil do homem dos relatos de naufrágio, reflexo evidente da contextura globalizante que constitui esse século: De facto, o relato da nau S. Tomé mostra-nos: um homem inseguro, perante os perigos do mar; um homem ganancioso que não hesita em gastar pouco para muito obter; um homem que, no entanto, se arrepende, quando confrontado com a imagem da morte que se lhe apresenta através do ar, da água, do fogo, da terra, das forças trágicas; um homem que, nesta condição, anseia pela penitência, procurando o apoio de Deus e da Virgem Maria (a intercessora dos portugueses); um homem imerso num jogo de contrastes (bom tempo/mau tempo, bonança/tempestade), onde as oposições dualistas (Céu/Mar, Vida/Morte) constituem termos binomiais de uma condição que caracteriza a visão pessimista que se abate sobre eles. Porém, este discurso, tangenciando uma configuração de tipo maneirista, parece também capaz de apontar para valores de natureza barroca8 . O narrador procurou, de facto, explorar o paradigma da transitoriedade do homem (a nau escondera-se toda debaixo da água; só Deus conhece o destino de cada pessoa), suportando-o estilisticamente com as animizações (a transfiguração do mundo empírico) – o resultado da metamorfose na natureza. Esse narrador confere especial atenção à morte omnipresente (“tudo quanto viam lhes representava a morte” [p. 96]), ao horrível (a filha de D. Joana de Mendonça seria o “manjar de algum monstro do mar” [p. 101]), ao estado apocalíptico em que se encontravam os tripulantes, antes de morrerem numa manhã escura que “fazia parecer aquilo mais medonho e espantoso” (p. 99); encontra-se representado um ‘mundo às avessas’ (os fidalgos consentem em lançar pessoas ao mar, uma “abominável crueldade” [p. 100]; dão-se, “despiedosamente”, “cutiladas e crisadas [p. 97] aos que tentam salvar-se desesperadamente); o narrador mostra conhecer a psicologia das personagens (repare-se na exploração que faz dos sentimentos de D. Joana de Mendonça, quando esta vê que era forçoso deixar a filha e quando assiste ao afundar da nau, com ela dentro (“tão tenra e mimosa sua” [p. 101]).

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Sobre a problemática do Maneirismo e, nomeadamente, do Barroco (sobretudo temática e estilo), remetemos para SILVA, V. M. A., 1990: 464-502.

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5. Ora, a análise estilística do discurso dos relatos de naufrágio não pode deixar de conduzir a várias ilações que, naturalmente, reenviam em parte para algumas das conclusões já brevemente referidas ao longo deste texto, mais precisamente no final das leituras operadas sobre cada um dos três relatos. Assim, em termos gerais, o que foi exposto permite realçar uma conceção de um homem profundamente marcado por um derrotismo existencial. Por outras palavras, estes três relatos, muito próximos no tempo (escritos na segunda metade do século XVI), permitem esboçar os contornos de um homem pós-renascentista. Deste modo, o homem dos relatos de naufrágio é um homem frágil e contingente; estamos perante um homem sofrido, não afirmativo; um homem que, quando antevê a morte, procura imediatamente os símbolos de entrega total a Deus. E é nos momentos da Tempestade e do Naufrágio que esse homem é posto perante a sua miséria; para não ser vencido, este homem humilha-se, penitencia-se, arrepende-se, confessa-se a Deus. Os relatos analisados, e basicamente todos aqueles que constituem a História Trágico-Marítima, refletem tragédias individuais, é certo, mas essencialmente a tragédia coletiva do povo português que ousou enfrentar os deuses e o desconhecido, reservado apenas para os aventureiros e corajosos; que melhor documento do que este conjunto de textos para retratar uma faceta da gesta marítima de um povo que se entregou ao mar? Que melhor forma para testemunhar o drama de um povo que, angustiado, sofreu – com mais ou menos ambição, com mais ou menos avidez – o destino que lhe fora reservado? “Valeu a pena?”, perguntaria mais tarde o poeta Fernando Pessoa, que logo responderia: [. . . ] Tudo vale a pena Se a alma não é pequena. Quem quer passar além do Bojador Tem que passar além da dor.

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Bibliografia Bibliografia Activa História Trágico-Marítima [Compilada por Bernardo Gomes de Brito] (s/d), Lisboa, Publicações Europa-América, 2 vols.

Bibliografia Passiva GENETTE, G. (1972) – Figures III, Paris, Éd. du Seuil. INGARDEN, Roman (1965) – A obra de arte literária, 3a ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. KAYSER, Wolfgang (1976) – Análise e interpretação da obra literária, 6a ed., Coimbra, Arménio Amado. LANCIANI, Giulia (1979) – Os Relatos de Naufrágio na Literatura Portuguesa do séc. XVI e XVII, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa. LAPA, M. Rodrigues (1979) – Estilística da língua portuguesa, 10a ed., Coimbra, Coimbra Editora. LAUSBERG, Heinrich (1982) – Elementos de retórica literária, 3a ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. MARGARIDO, Alfredo (1991) – “Os relatos de naufrágios na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”, in Estudos Portugueses. Homenagem a Luciana Stegagno Picchio, Lisboa, Difel, pp. 987-1023. MELO, Glasdtone Chaves de (1979) – Ensaio de estilística da língua portuguesa, Albufeira, Ed. Poseidon. MONIZ, António Manuel de Andrade (1995) – “Protagonismo feminino na Peregrinação e na História Trágico-Marítima”, in Cadernos Condição Feminina, 43, Lisboa, Comissão para a Igualdade para os Direitos das Mulheres, pp. 741-745. REIS, Carlos Reis (1981) – Técnicas de análise textual, 3a ed., Coimbra, Livraria Almedina. SÉRGIO, António (1974) – “Em torno da “História Trágico-Marítima” (Informes para leitores nada eruditos, mas amadores das relações e visões glo-


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bais dos acontecimentos)”, Obras Completas – Ensaios, Lisboa, Sá da Costa, Tomo VIII, pp. 75-174. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e (1990) – Teoria da Literatura, 8a ed., Coimbra, Livraria Almedina. SIMÕES, Manuel [ed.] (1985) – A literatura de viagens nos séculos XVI e XVII [Apresentação crítica, selecção e fixação do texto, notas e sugestões para análise literária de Manuel Simões], Lisboa, Editorial Comunicação. TONNIES, Ana (1995) – “O silêncio das personagens femininas em relatos de naufrágios dos séculos XVI e XVII”, in Cadernos Condição Feminina, 43, Lisboa, Comissão para a Igualdade para os Direitos das Mulheres, pp. 245-251.

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VIAGENS NA MINHA TERRA (CARLOS E AS METAMORFOSES DE UMA IDEOLOGIA)1 1. Se a reflexão teórica sobre o conceito, evolução e ontologia da personagem é irredutível a uma plena consumação no seio de qualquer teoria da literatura, isso não nos obriga a esconder a necessidade de uma constante recuperação (hoje concretizada num âmbito de contínuas renovações metodológicas), no domínio da praxis literária, desta categoria fundamental da narrativa. O seu papel e importância inscrevem-se, de facto, numa tradição – sobretudo a do romance oitocentista –, onde corporiza um conjunto de potencialidades de amplo destaque, suscetíveis de transcenderem o mero aproveitamento estético e de remeterem já para o campo das potencialidades de representação ideológica. Mas se o fenómeno personagem viveu, no acontecer histórico, momentos de intenso destaque – num suceder de diferentes teorias, cada qual proclamando a sua validade no estudo da personagem –, também se sujeitou a uma leptoconsideração, e mesmo a um descrédito metodológico, axiologicamente imposto por determinadas tendências do romance atual (atente-se, por exemplo, na ‘crise da personagem’ instaurada pelo Nouveau Roman). O que se pretende neste texto é, essencialmente, equacionar a personagem Carlos, das Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, não apenas en1

Este estudo foi apresentado em 1990, num seminário de Literatura Portuguesa (Literatura e Ideologia), quando então frequentávamos, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, o Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa. Mais tarde, foi publicado na revista Máthesis, 4, Viseu, Universidade Católica Portuguesa / Faculdade de Letras, 1995, pp. 223-238.


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quanto entidade peculiar considerada como suporte da ação (e em função da qual se conforma a economia da obra), mas igualmente como lugar estratégico onde convergem importantes vetores ideológicos. Assim, privilegiar-se-á o estudo da personagem Carlos, acentuando-se a sua condição de signo ideológico: subordinado, portanto, a processos de configuração que definem o seu relevo na novela; delineado num sistema de relações sintagmáticas e perspetivado num veio paradigmático (o que contribui, inevitavelmente, para que se delimite a “verosimilhança interna” desta personagem); contemplado como suporte de potencialidades semionarrativas (como o valor da instabilidade dos sentimentos, ou o do estigma da mudança); equacionado – enquanto elemento no âmbito de uma progressão (Natureza > Sociedade; Idealismo > Materialismo) – como “unidade de significação”, da qual é possível extrair (concebendo-o não como imitação de um real, mas como “ser aparencial” de uma realidade) um vasto feixe de implicações ideológicas. Trata-se, no fundo, de perspetivar esta personagem como uma categoria plena de virtualidades significativas, apta a plasmar, ao longo das Viagens, uma tripla dimensão sígnica: a semântica, a sintática e a pragmática. Ora, em função deste modo de abordagem, importa também viabilizar a noção de ‘vida’ da personagem (Carlos), pois esta revela-se configurada como um todo com significado, como uma “unidade de significação, construída progressivamente pela narrativa” (HAMON, P., 1983: 20). Além disso, as potencialidades semionarrativas de Carlos – figura da qual é indissociável um elenco de sentidos de extração temático-ideológica – devem ser analisadas tendo em vista não só o lugar central que ele ocupa na novela e as conexões que se estabelecem entre ele e as outras personagens do universo [hipo]diegético, como também as relações que mantém com um narrador que apresenta, descreve e comenta as suas atitudes. Só assim poderemos perspetivar esta personagem como um “instrumento fundamental para la visión o exploración” (TACCA, O., 1983: 131) do mundo que se lê nas Viagens e como um “élément proprement structural, véritable opérateur de la syntaxe narrative [. . . ] [qui] donne forme au récit” (MATHIEU, M., 1974: 367). Compreendendo Carlos à luz de uma conceção da personagem como signo ideológico equivale, então, a avaliá-lo como categoria nuclear ao nível da “história”, ou como entidade bivalente (veiculando uma marca e uma ausência), ou ainda como uma unidade suscetível de ser delineada no eixo sintagwww.clepul.eu


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mático e integrada no plano das conexões paradigmáticas, afirmada como simbiose de um significante descontínuo – pois faz parte de um sistema de personagens construídas no texto – que reenvia para um significado descontínuo – porque a sua significação não se estabelece unicamente por ‘repetição’ ou ‘acumulação’, mas especialmente por ‘diferença’ diante das outras personagens.

2. Garrett apresenta a novela como a história de Joaninha (a “história da menina dos rouxinóis” [GARRET, A., 1983: 135]2 ). Contudo, a personagem por quem tudo centralmente passa, a personagem cujo perfil assegura a esta narrativa um peso ideológico-literário terminante é Carlos; e conceder-lhe o estatuto de personagem central significará que Joaninha é, afinal, uma falsa heroína. E justamente a reflexão acerca do papel desta personagem passa pela valorização de noções como “qualificação diferencial”, “distribuição diferencial”, “autonomia diferencial” e “funcionalidade diferencial” (cf. HAMON, P., 1976: 92 ss), que, funcionando como veículo de demonstração, asseguram Carlos, de facto, como a “personagem central da novela” (MONTEIRO, O. P., 1960: 17). Ora, o primeiro momento de integração de Carlos define-se em termos de “ausência”, já que a sua primeira aparição na história não é física: Carlos é evocado por uma alusão de sua avó e de Frei Dinis (“onde está ele?”, “O outro. . . ” [p. 157]); e neste diálogo entre Frei Dinis e Dona Francisca pode-se, desde logo, equacionar Carlos no centro de uma situação conflitual. Assim, a alusão a esta personagem não será de todo inocente, uma vez que a inserção de Carlos neste universo hipodiegético é afetada por declarações suscetíveis de permitirem equacionar Carlos como uma personagem desde logo revestida de sentidos problemáticos. Qual será, então, a “função” que o concebe como unidade e/ou ser fragmentado? Que implicações ideológicas decorrem da valorização operada sobre ele? Quais os termos de oposição que o definem e que se distribuem, numa homologia binária, entre um antes e um depois? Que relações dialéticas em Carlos transportam e articulam diferentes esferas e níveis de significado? 2

A partir daqui, a referência a esta obra será feita apenas através da enunciação da página.

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As informações propiciadas pelo código ideológico do narrador – sujeito que emite juízos e entidade responsável, portanto, pela complexidade e densidade significativa da personagem –, no que concerne, em primeira instância, à inserção de Carlos no nível diegético, encontram-se bem patentes no início do capítulo XXIV. É neste capítulo, aliás, que se estabelece a primeira interdependência dinâmica entre “a metonímia da viagem e a metáfora da novela” (MACEDO, H., 1979: 19), o que contribui, efetivamente, para que a novela passe “a ter um valor designativo, ou documental, de funcionalidade metonímica” (ibid.). Ao construir, numa breve intrusão, e em evidente harmonia com os princípios filosóficos patentes no Discours sur l’origine de l’inégalité (1755), de Jean-Jacques Rousseau, um discurso sobre a realeza do “Adão Natural” que, moldado e colocado por Deus “num paraíso de delícias” (p. 212), se transforma num animal “incongruente”, e ao relacionar Carlos com essa questão, o narrador pretende, assim, encontrar nessa personagem um suporte privilegiado onde convirja um feixe de sentidos fundamentais suscetíveis de configurarem o primeiro (não em ordem de importância) grande domínio de incidência ideológica: a dialética Natureza/Sociedade (cf. COELHO, J. P., 1977b; REIS, C., 1989: 95-97). A Natureza é o espaço modelar e edénico, onde a mentira, a hipocrisia, a dissimulação, as convenções não têm lugar; é o domínio do homem sincero, íntegro e transparente nas suas atitudes. A Sociedade é o topos caracterizado pela coação, pela mesquinhez e pelo materialismo; é a civitas; é domínio do “Adão Social”. O Homem “que Deus fez” (p. 212), puro e verdadeiro, desnaturou-se; sucumbiu perante os interesses materialistas e as regras sociais “a qual mais desvairada” (ibid.); ficou prisioneiro de uma sociedade que o transfigurou com os seus “moldes de ferro” (ibid.) e lhe anulou todas as esperanças de “voltar à natureza e a Deus” (p. 213). Mas as memórias de um tempo, de um espaço e de uma condição natural e pura, essas “memórias da primeira existência” (ibid.), permanecem, assim como a necessidade de resolver um conflito interior: ou “morrer ou ficar monstruoso e aleijão” (ibid.), isto é, ou a conformidade aos valores da “primeira existência”, ou a adesão às normas da sociedade. Se tentarmos passar para além destas leituras evidentes e se equacionarmos aquele conflito dilemático – bem característico, aliás, do herói romântico – com Carlos (“Poucos filhos do Adão social tinham tantas reminiscências da outra pátria mais antiga [. . . ] como [. . . ] o nosso Carlos” [ibid.]), não muito www.clepul.eu


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dificilmente nos aperceberemos de que esta personagem só se define com clareza na transformação de estados sucessivos – porque a narrativa modifica o estado em processo. E se, a um tempo, Carlos pode parecer uma personagem plana, por nos aparecer construída “em torno de uma única ideia ou qualidade” (FORSTER, E. M., 1937: 93) – a tendência para a mudança –, parecendo não veicular, por isso, a capacidade de nos surpreender, a outro tempo, ele não o é. Com efeito, é-lhe inerente uma condição de imprevisibilidade, quando o narrador, ao longo da obra, explora as mudanças, as vacilações, os conflitos de ordem amorosa, social e familiar, vividos com particular intensidade dramática por essa personagem. Deste modo, ao nortearmo-nos pela noção de que “«l’étiquette sémantique» du personnage n’est une «donnée» a priori, et stable, [. . . ] mais une construction qui s’effectue progressivement” (HAMON, P., 1983: 21), verificaremos que as características de uma personagem não poderão ser apenas estudadas de modo isolado, por um processo de individuação concretizada na atribuição de um nome próprio, de uma única ideia, ou numa descrição, mas também enquanto condições de uma “verosimilhança interna”, que determinem as relações que se estabelecem entre si e as outras personagens. Deste modo, o que é sugerido na descrição (muito importante) a que Carlos é sujeito (cf. pp. 192-193) – centrada sobre a configuração psicológica projetada no aspeto físico – é um conjunto de características de singularidade, marcadamente distintivas do herói romântico: o predomínio do coração e do instinto sobre a reflexão; a tendência para a busca da solidão; a sua “superioridade inquestionável”; um excessivo potencial anímico, gerador de tensões, de desejos ilimitados; a “mobilidade do espírito” denunciada nos “olhos pardos”, a natureza contraditória de Carlos (“fácil na ira, fácil do perdão”) que não se cristaliza num comportamento único e estático (cf. REIS, C., 1989: 71). O percurso existencial de Carlos vai, com efeito, confirmar esta impermanência (característica do “civilizado”), esta contradição consigo mesmo e com os outros, esta flutuação entre o dever ser e o sentir. Se Joaninha, fruto de um vale simbolizado (vale este que adquire um significado mítico de paraíso impoluído e uno), é pura e íntegra (características de uma estabilidade em todas as dimensões), Carlos incarna o “drama da inconstância afectiva” (COELHO, J. P., 1977b: 81). É esta, afinal, a ideia nuclear da novela: a indeterminação de um Carlos que não sabe encontrar-se, dilacerado entre o compro-

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misso a uma causa social (e concomitante defesa dos ideais liberais) e o apelo do amor. A visão que o narrador nos fornece da fragmentação de Carlos dificilmente permite que lhe seja atribuída uma unidade. De facto, as suas desenganadas relações amorosas (com Laura, Georgina, Soledade e Joaninha) contribuem para acentuar essa “polivalência sentimental de Carlos, dilacerado por um coração já grande que a civilização tornou mais plástico ainda” (MONTEIRO, O. P., 1966: 173). E, no que diz respeito à relação com Joaninha, se à partida essa relação parecia ter como fim último a harmonia (ambos nascem no vale de Santarém; ambos são órfãos; ambos possuem um potencial afetivo superabundante), a impossibilidade dessa união é previsível quando o narrador, ao caracterizar Carlos, nos confessa que os seus “olhos [. . . ] denunciavam [. . . ] talvez a irreflexão” (p. 193), forma subtil de dizer que a força do instinto estava em vias de se dissolver, que o homem natural estava a dar lugar ao homem social; e o trajeto existencial de Carlos mais não é do que a transição gradual do estado natural para o estado social, o progressivo esquecimento das raízes naturais e a progressiva contaminação pela sociedade. Entretanto, é o “som repentino de guerra e de alarme” (p. 197) que chama Carlos e Joaninha à realidade. As afinidades desaparecem quando, reencontrando-se no vale de Santarém, despertam de um “sonho encantado que os transportara ao Éden querido de sua infância” (ibid.); a guerra, símbolo das opressões da sociedade, instaura a crise entre as duas personagens. No entanto, o “momento mais intenso”, onde se verifica a “incompreensão que entre ambos se estabelece”, e que revela a incompatibilidade de valores entre as duas personagens é aquele em que “Carlos reflecte sobre os olhos verdes de Joaninha” (REIS, C., 1989: 82). E se, por um lado, essa tentativa de entendimento racional poderá aqui ser encarada como algo que se opõe ao que de instintivo tal entendimento deveria em si conter, por outro, é já visível a inacessibilidade do seu significado à capacidade de compreensão de Carlos (“[. . . ] porque tens tu os olhos verdes?”, “Que língua falam eles?” [pp. 209 e 210, respetivamente]). Serão esses olhos que deixarão transparecer a morte quando Joaninha, depois de pronunciar tão sinceramente a palavra “amo-te”, depara com uma “indizível expressão de afecto e de tristeza” (p. 222) por parte de Carlos. Os seus olhos, de um verde vivo e transparente, começam a “amortecer, a apa-

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gar-se” (ibid.) e têm já o “lustro baço e morto” (ibid.). É, afinal, a morte que espera Joaninha e a cedência de Carlos aos valores impostos pela sociedade. O problema de Carlos é, assim, uma espécie de luta pela integridade do seu próprio ser, a busca da coerência interior que ele nunca conseguirá atingir. Ele poderia pura e simplesmente negar o passado, mas negar é reconhecer. Em Carlos, tudo é movimento. Para ele, ser é ser sempre outro. O “monstro”, comenta o narrador, “amava-as a ambas” (p. 269), a Georgina (a quem se entregara num amor total) e a Joaninha (cuja graça e encanto o iriam perturbar). Carlos, corporizando uma esfera ideológica (a dialética Natureza/Sociedade), permite, assim, que despolete e se confirme uma rede de vetores ideológicos na novela – demonstração, afinal, das teses de perfil ideológico, que chama a si intuitos de natureza pragmática, através dos quais se esboça o posicionamento de narrador. E se, na história de Carlos – o Homem puro que a Sociedade transformou num ser inconstante e mentiroso –, convergem e se cruzam dimensões várias (individual, nacional e universal), a relação que une Carlos e Joaninha ao vale deriva numa relação metafórica que confere a essa relação amorosa uma implicação simbólica. A traição de Carlos ao seu idealismo – o ideal de amor (nunca alcançado por ele) – conduz Joaninha à morte (e Georgina ao convento); essa atitude adquire, de facto, um significado simbólico, traduzido pela circunstância de os valores do ideal moral positivo de personagens femininas como estas nunca terem lugar nas contradições de um mundo prosaico e materialista. Carlos encontra-se, deste modo, envolvido por um conjunto de valores de pendor moral e sentimental, perante os quais toma as suas atitudes, mas lutando sempre com a necessidade de decisão perante as diferentes situações de conflito; e, neste caso, responder ou não ao chamamento de amor de Joaninha constitui para ele uma opção entre recuperar a sua vitalidade original e abandonar-se à rede da sociedade, sem, no entanto, perder reminiscências daquela energia primordial. Mas Carlos, não conseguindo integrar o seu passado no presente, resolve o seu dilema: foge a Joaninha (e a Georgina) e ao mundo das suas raízes; e essa fuga acontece num espaço intensamente metaforizado (a cidade de Santarém), profanado no entanto pelo mal social dos barões sacrílegos. Com isto, Carlos falha em dois sentidos: por um lado, não soube escolher entre Joaninha e Georgina; por outro, não foi capaz de materializar na prática o seu amor – que existia apenas no âmbito do “idéalisme www.lusosofia.net


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platonicien” (LAWTON, R. A., 1986: 118). É, afinal, o seu eu que se torna o polo maior na sua vida amorosa. Trata-se do individualismo da personagem, da exaltação desse valor humano que se torna para Carlos o único, o autêntico e o verdadeiro. O seu amor é ególatra, não aceitando Carlos nem Joaninha, nem Georgina, quando estas se apresentam nos seus próprios termos efetivos e ontológicos.

3. A partir daqui, estão criadas as condições para estabelecermos um elo de ligação entre a situação sentimental e a situação político-social de Carlos, para analisarmos o conflito ideológico que se instaura dentro de Carlos e deste com Frei Dinis, e para enraizarmos este(s) conflito(s) num determinado contexto histórico-social. No campo amoroso, Carlos evoluía, ao longo da sintaxe narrativa, em termos de mudança; também aqui a sua ligação à causa social se resolve nos mesmos termos. Vale a pena recordar as palavras de Jacinto do Prado Coelho, quando, ao referir-se a esta personagem, sublinha que a “verdade humana de Carlos reside nos seus íntimos contrastes e flutuações” (COELHO, J. P., 1977b: 81), acentuando a inconstância e a ligeireza de espírito dessa personagem, como, aliás, o demonstra o narrador no capítulo XX. Nessa personagem, entrelaça-se mais um drama: o “conflito” com Frei Dinis. Em Carlos e em Frei Dinis, encontra-se representada uma relação entre dois pontos antagónicos, que correspondem a duas posições ideológicas diferentes: por um lado, a defesa do Liberalismo, por parte de Carlos; por outro, a ligação de Frei Dinis às ideias do Antigo Regime. Ambas as personagens contêm, porém, elementos antitéticos. Carlos e Frei Dinis contêm, embora “em fases diferentes das suas vidas e em ordem temporal inversa, os mesmos elementos antinómicos que o outro [. . . ], cuja sucessão [é] em ordem inversa” (MACEDO, H., 1979: 18). Com efeito, Frei Dinis foi primeiro um materialista. Um amor culpado (pela mãe de Carlos) e dois “crimes” (assassinara o pai de Carlos e o pai de Joaninha) acentuam sobre ele um ideal de feição negativa. Prendera-se às paixões, o suporte do Materialismo. Mas arrependeu-se, espiritualizou-se e tornou-se no frade austero de “rigidez ascética” (p. 165).

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Pelo outro lado, o idealismo egocêntrico de Carlos levou-o, pelo contrário, a escolher primeiro as ideias liberais. Sofrendo de um depauperamento da vontade e de um profundo egotismo, constantemente dividido entre vários afetos que lhe revitalizavam uma incoerência interior, “engordou”, “enriqueceu”, fez-se “barão” e político. Degradou-se; caiu no “inferno de tolices”, alimentado pelos interesses do Materialismo. É nesta tensão que podemos encontrar um outro sentido ideológico que Garrett quis imprimir às Viagens, sentido esse onde Carlos, mais uma vez, imerge e participa. Trata-se da dialética Espiritualismo/Materialismo (cf. COELHO, J. P., 1977a; REIS, C., 1989: 92-95), princípios opostos mas que sempre coexistiram e sempre conduziram o mundo, e que Garrett simboliza, respetivamente, nas figuras de D. Quixote e de Sancho Pança – ou, noutros termos, nas duas figuras típicas integradas no tempo histórico que o rodeia: o frade (“o Dom Quixote da sociedade velha” [p. 149]) e o barão (“o Sancho Pança da sociedade nova” [ibid.]). Valorizando a evolução progressiva daqueles dois princípios dialéticos no acontecer histórico, Garrett, ao perfilhar uma ideologia filosófica que conferisse prioridade ao Ideal (o que o enquadrava, aliás, no quadro das principais orientações ideológicas românticas), e sintonizando-se, no campo dos projetos políticos, com um Liberalismo de desígnios utilitários, Garrett confirma estas diretrizes na verosimilhança interna da novela. Entretanto, também relacionado com esta questão, encontra-se uma outra: a que reenvia para o facto de a representação ideológica se poder consumar por um caminho sinuoso, recurvado – anuído pela sua integração no domínio estético-literário aconselha. Por isso mesmo, neste contexto, a personagem Carlos constitui um essencial elemento de extração também estético-literária, suscetível, portanto de funcionar, aqui, como um importante signo ideológico. É esta personagem que se movimenta num mundo de provas sucessivas e às quais ele não se soube adaptar. É esta personagem que – funcionando como redundância – vai, juntamente com Frei Dinis, exemplificar, no plano sentimental e romanesco da novela, a tese da marcha do progresso social português, tese, aliás, que o narrador sentiu e pensou na sua viagem pelo Tejo. A oposição Sancho Pança/D. Quixote, ou Materialismo/Espiritualismo, serve, no fundo, para explicar a situação cultural e sociopolítica do Portugal do presente do narrador. Tipificando o passado em Frei Dinis e o presente www.lusosofia.net


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no Carlos-barão, apreciando negativamente um tempo pretérito de absolutismo (“Frades. . . frades. . . Eu não gosto de frades” [p. 149]) e uma sociedade presente degradada (essa “geração de vapor e de pó de pedra” [p. 96]) que traíra os ideais mais puros perfilhados pela filosofia política do Liberalismo, o narrador concebe a identidade de Portugal numa dinâmica de futuro. De acordo com essa perspetiva, a transformação do Carlos-liberal no Carlosbarão e candidato a deputado conexiona-se com a vitória do Materialismo sobre o ideal do Liberalismo na época de Garrett. É nesse barão, identificado com os males sociais e satirizado pelo narrador, que Carlos se transforma, facto que permite que ele se constitua como “personagem-referencial”, porque, assegurando o “efeito do real” (no sentido barthesiano), remete para o grande texto da ideologia do narrador: a desilusão do Liberalismo em Portugal; a crítica à estruturação da sociedade capitalista; a denúncia da incapacidade do Idealismo (distante do real) ou do Utilitarismo (malquerente aos valores do coração e da alma) para governar um país. A partir daqui, é possível equacionar um outro problema ligado ainda à funcionalidade literária do signo ideológico que constitui a personagem Carlos: o antagonismo de Carlos (jovem liberal) com Frei Dinis (antiliberal, frade do Antigo Regime), em função da relação entre filho e pai (reprodução de um contexto mais global, onde as referências histórico-políticas transparecem visivelmente pelas linhas ideológicas centrais do narrador) e a consequente paralisação dos sentimentos em Carlos. Trata-se, então, de se encarar a relação de enfrentamento Carlos-Frei Dinis como um conflito com significados históricos (cf. REIS, C., 1989: 100 ss). Relembre-se que Frei Dinis, personagem multifacetada, envolve diversos significados: um significado político (identificado com as forças políticas do Antigo Regime, proclamando-se resistente ao Liberalismo, “seita toda material em que a carne domina e o espírito serve” [p. 164]); um significado histórico-ideológico (Frei Dinis é um frade que honra o que há de digno na instituição clerical e perfilha a conceção de que o poder de Deus é o único e de que as instituições não fazem falta para transmitir as leis universais, pois reforçá-las seria “supérfluo, melhorá-las impossível, desviar delas monstruoso” [p. 163]); um significado moral (Frei Dinis mostra-se fiel aos princípios do Espiritualismo: “Igualdade” e “Liberdade” [p. 164]); um significado psicológico (Frei Dinis é, para Carlos, uma personagem carregada de um certo estigma, pois é acusado de ser o culpado de uma tragédia familiar, “um howww.clepul.eu


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mem que parecia o fado mau daquela [. . . ] família” [p. 207]). Ele é, assim, uma personagem do passado, do tempo anterior ao Liberalismo, e caracteriza-se por um acentuado pessimismo histórico. Como se sabe, o desenlace da intriga – quando Carlos se dá conta de que aquele Frei Dinis com quem mantinha uma relação conflitual era seu pai – relaciona-se com os últimos acontecimentos dramáticos da guerra civil entre absolutistas e liberais, guerra fratricida entre duas gerações filhas de um mesmo País; trata-se do conjunto de eventos que se desenrolam entre os capítulos XXXII e XXXV. Não será, por conseguinte, despropositado considerar-se a tensão que Carlos mantém com Frei Dinis uma intriga familiar em estreita conexão com um conflito histórico muito mais extenso, e avaliar as Viagens como uma obra que é “ao mesmo tempo “verdadeira”, porque designa esses elementos [os elementos diversos da realidade que circunda(ram) o autor], e é “simbólica”, porque os articula como significantes do modelo semântico da realidade a que correspondem” (MACEDO, H., 1979: 16). Isto não significa que se encare a personagem Carlos, defensor e protagonista na defesa dos ideais liberais, numa correspondência exata com qualquer pessoa do real. O narrador, ao conceber esta personagem como um “verdadeiro ser aparencial”, não procura mais do que lhe atribuir uma verosimilhança ficcional, conformando-o com a aparência do real; não faz mais do que, como diria a este propósito Roman Ingarden, “«dar a conhecer» algo diferente do elemento representante, em que o representante «imita» o representado, oculta-se a si mesmo como representante para se mostrar ao mesmo tempo como pretensamente representado e assim trazer, por assim dizer, da distância o outro que de facto apenas representa e deixá-lo a ele mesmo falar na sua própria figura” (INGARDERN, R., 1973: 267). Com efeito, se a pessoa real é totalmente determinada, a personagem nunca conseguirá esgotar as infinitas virtualidades das determinações dessa pessoa individual, ou seja, permanecerá sempre independente de critérios de veracidade cognoscitiva; isso quer dizer que seria falacioso contrariar a intencionalidade do narrador (que se dirige ao leitor sem passar diretamente pelas realidades empíricas representadas na sua ficção), operando qualquer tipo de relação unilateral a novela e a realidade histórica – pois se “a ficção é o único lugar – em termos epistemológicos – em que os seres humanos se tornam transparentes à nossa visão, por se tratar de seres puramente intencionais sem referência a seres autónomos” (idem: 35). . . www.lusosofia.net


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4. Carlos, por ter sido acérrimo defensor das ideias promovidas pela causa liberal, deveria mostrar-se eufórico pela vitória sobre os seus compatriotas. Contudo, não é assim que o encontramos na carta (escrita em Maio de 1834, em Évora-Monte, o mês e o local onde se assina, na realidade, o acordo que demarca a vitória dos liberais, colocando fim à guerra entre liberais e absolutistas) – carta essa que marca também a condição epilogal das relações de antagonismo que contrapuseram Carlos a Frei Dinis, seu pai. Pode entrever-se aí não um tom triunfalista, mas uma densidade sentimental com o sabor amargo da derrota existencial. O enraizamento desse “tom de desencanto e derrota moral” (REIS, C., 1989: 106) situa-se numa intensa agitação interior em que se encontra Carlos, ora por lhe ter sido revelado que Frei Dinis – com quem estava em colisão de um ponto de vista ideológico e familiar – era seu pai, ora por ter saído vitorioso de uma guerra civil, de uma guerra contra irmãos. Mas mais do que definirem-se fatores justificativos do intenso pendor de desencanto existencial que privilegiem a ótica político-familiar, importa sublinhar um outro fator inerente à carta que Carlos escreve à prima (“É a ti que escrevo, Joana” [p. 312]). Toda a carta é a evocação de um passado, o que implica um confronto entre um tempo passado vivido intensamente (em que viver era contemplar e sentir) e um tempo presente de recordação. Não é, todavia, um confronto silencioso, mudo, em que esteja ausente um enfoque reflexivo (ou automoralizador), uma meditação sobre a evolução do sujeito e personagem Carlos. Existe aí, por parte deste, um gosto especial pela problematização psicológica, existencial, na qual importa não esquecer três questões que se cruzam (e se complementam). Uma delas relaciona-se diretamente com o pedido de desculpabilização, ou, mais concretamente, com uma forma de captatio benevolentiae – tendo em conta que a atitude de Carlos se inscreve num domínio em que o destinatário (Joaninha) surge enquanto entidade vulnerável à dimensão pragmática inerente à carta; Carlos implora a clemência de Joaninha, mas fá-lo também com outro objetivo: reclamar igualmente a piedade de outros destinatários – os leitores. Daqui resulta, então, um encadeamento de observações e de explicações facultadas por Carlos, às quais se encontra inerente um desejo de eficácia injuntiva. A carta, nesta primeira dimensão, traduz-se num eixo sintagmático de elementos esclarecedores que, por imbricação lógica, se sucedem (as três inglesas que conheceu no seio de uma “família elegante” [p. 314], a adorawww.clepul.eu


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ção, o desejo e o amor por uma delas – Laura – e, mais tarde, por Georgina [cf. pp. 316 ss], a partida para os Açores [cf. p.333], Soledade. . . ). Mas a própria progressão dos elementos apresentados assenta numa prática persuasiva, já que são estratégias de persuasão que Carlos apresenta para obter a indulgência: Carlos procura a desculpabilização, pelo facto de: ter “poderes de mais no coração” (p. 312); ser o coração o “maior inimigo” (p. 313); Joaninha não encontrar homens “melhores” (p. 313) do que ele; acreditar na “inexaurível piedade” (p. 324) de Deus, que, talvez querendo acudir à sua “alma antes que se perdesse” (ibid.), colocou diante dela “a única imagem que podia chamá-la [a alma] do abismo” (ibid.) – a de Joaninha; o verdadeiro culpado ser a “fatalidade” que o “persegue” (p. 335). Por outro lado, a carta aparece como resultado de uma vivência problemática do tempo – motivação primeira para o regresso ao passado. E, aí, a recordação, mais do que pela necessidade de uma explicação, é motivada por um impulso de fugir a um presente frustrante e, talvez – quando Carlos se recorda da “Joaninha pequena, inocente, aquele anjinho de criança, tão viva, tão alegre” (pp. 324-325) –, pela necessidade de recuar para um tempo em que não estalara ainda a sua crise existencial. A imagem daquela Joaninha, no fluir das recordações passadas, não se combina apenas com o desejo de uma vida bela e harmoniosa; essa imagem projeta-se também sobre o presente, e, fazendo-o, parece a Carlos que lhe oculta a problemática situação do presente. Como quer que seja, é possível encontrar pelo menos dois elementos comuns nas duas questões avançadas: a evocação e a confrontação (de Carlos com quem o rodeia e de Carlos consigo mesmo), facto que torna ainda mais significativa essa coincidência, ao reenviar-nos para uma terceira linha de leitura, relacionada com o registo ideológico. A lucidez é a grande qualidade de Carlos: ao examinar-se, reconhece a sua excecionalidade (“Oh! eu sou um monstro, um aleijão moral deveras” [p. 326]); e, ora assumindo-se como um caso individual, ora como um paradigma da vacilante condição humana, percorre um caminho ondulante entre o horror de si mesmo e o sentimento da inocência e da sensibilidade primordiais. Carlos é um homem de ardentes e inconstantes paixões, com um coração insaturável, “grande de mais”, com impressões fortes, mas que se esgotavam rapidamente, e o seu percurso existencial (nos domínios amoroso e ideológico) assenta, como já se disse, na impermanência; por isso mesmo, e por um www.lusosofia.net


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lado, é vítima de si próprio, pois transporta a sua própria morte: “[. . . ] c’est la mort qu’on voit dans le visage de l’homme qui paraît devant Joaninha” (LAWTON, R. A., 1986: 115); por outro (qual homem fatal romântico), propaga a destruição e a desgraça à sua volta.

5. Em tom de conclusão, e retomando reflexões já avançadas por Jacinto do Prado Coelho e por Carlos Reis, deve relembrar-se que os domínios em que transparecem mais visivelmente as linhas de força que se centram na personagem Carlos – enquanto signo ideológico – são os que envolvem os problemas do “Homem Natural/Homem Social” e do “Idealismo/Materialismo”. Carlos, com uma perspicácia a todos os níveis notável, reconhece a sua excessiva vitalidade. Confessa que tem “energias de mais” (p. 312), energias que não consegue controlar; corrompera-se: as convenções, as constrições, as regras de uma organização social, tinham-lhe roubado a pureza e a bondade congénitas, desenraizando-o do espaço e do tempo matriciais, esvaziando-o dos valores primordiais3 . Resta-lhe o dilema: ou “morrer” (permanecendo fiel ao ideal original), ou “ficar monstruoso ou aleijão” (p. 213) (pactuando com a sociedade); isto é: ou persistir homem natural, ou desfigurar-se irremediavelmente. Carlos escolhe: “Creio que me vou fazer homem político” (p. 335). Entre os Ideais da Natureza e do Liberalismo e a política que tornaria exequíveis os valores desse mesmo Liberalismo – mas que apenas os desvirtuaria –, Carlos faz-se “barão”, criando, assim, uma total incom3

As problemáticas do “Homem Natural/Homem Social” e “Idealismo/Materialismo” reenviam-nos, aliás, para as reflexões que Georg Simmel mais tarde tecerá sobre a “modernidade” e sobre a oposição “[grande] cidade/campo”. Para Simmel, a modernidade está relacionada, entre outros aspetos, com a inquietação do indivíduo face às transformações e ruturas da vida moderna que a grande cidade acarretou: subversão e descaracterização das relações sociais, individualismo. Na sequência desta ideia, a [grande] cidade, nascida com a vida moderna, opõe-se à pequena cidade e à vida no campo, “dont le modèle de vie sensible et spirituel a un rythme plus lent, plus habituel et qui s’écoule d’une façon régulière” (SIMMEL, G., 1989: 235); o espírito da [grande] cidade é entretanto caracterizado pela “impessoalidade” e “minimização da afectividade” das relações humanas, pelo “espírito calculista”, pela “insensibilidade”, pela necessidade de “individualização”, enfim, pela “hipertrofia da cultura objetiva” (idem: 235-252). O Homem “que Deus fez”, Carlos no primeiro estado, cuja existência assentara, usando dois termos de Simmel, na pura “sensibilidade” e na “relação afetiva”, fica preso desse “espírito calculista”, passando a agir de modo inconstante, ‘insensível’, ‘individual’, ‘objetivo’.

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patibilidade entre si e Joaninha. Lutara pela causa liberal, é certo; contudo, engordando e tornando-se barão do “papel”, não a soubera servir concretamente. O fim de Carlos, cujo trajeto existencial sempre esteve marcado pelo timbre da mudança, é um fim caricato que é revelado ao narrador por Frei Dinis – tendo em conta o desenvolvimento da sintaxe narrativa, entre o ardente apelo daquele a Santarém para que levante a sua cabeça e a sua chegada a Lisboa. De facto, o fim de Carlos constitui a confirmação definitiva da representação semântica que decorre do posicionamento ideológico do narrador: a sua descrença relativamente à nova estrutura política, económica e cultural, dominada pelos “barões”, que se seguiu à vitória do Liberalismo. É sabido que as verdades de uma personagem estão estreitamente dependentes da função que ela exerce na estrutura global de um romance, e que ela somente mantém a sua identidade ao longo do romance se estiver enquadrada num mecanismo de coreferência anafórica – processo de “permanência” sintagmática – e se funcionar não só como personagem “referencial”, mas também “embraiadora” (cf. HAMON, P., 1976: 97). É neste sentido que Carlos (tendo, afinal, o mesmo fim que o dos liberais de 1820) funciona, portanto, como signo ideológico. E se o narrador, em relação a esta personagem, se posiciona favoravelmente – fazendo dele o verdadeiro herói das Viagens (Carlos constitui, segundo Jacinto do Prado Coelho, “o auto-retrato estilizado de Garrett” [COELHO, J. P., 1977a: 78]) –, também não deixa se mostrar distanciado (Carlos pertenceria, segundo o narrador, àquela galeria dos “sonhadores acordados que andam pelo mundo”, chamados “malucos” [p. 207] pelo Povo); além disso, a identificação de Carlos com os excessos do Romantismo (cf. p. 211), criticados pelo narrador já no capítulo V, constitui outra manifestação explícita do narrador que viabiliza o posicionamento crítico relativamente a esta personagem. A partir daqui, parece possível enquadrar Carlos numa articulação entre dois polos, correspondentes a duas situações: Carlos-social e Carlos-barão; Carlos move-se entre essas duas extremidades, desvirtuando progressivamente alguns propósitos e ideais primordiais, inocentes, verdadeiros. E o movimento contínuo de Carlos entre esses dois termos não terá a ver com a morte moral de uma Nação que acreditara num Ideal de intenções igualitárias? Não constituirá uma denúncia do mito do progresso e da visão utilitarista do mundo de que o barão é o emissário e mandatário? www.lusosofia.net


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Quando está em causa o estudo de uma categoria da narrativa como é a personagem, não nos podemos alhear nunca da sua funcionalidade como signo ideológico, como elemento, enfim, que, como escreve Carlos Reis (num texto intitulado “Le discours de l’idéologie”, publicado no Le journal canadien de recherche sémiotique, 1980-1981, vol. VIII, 1-2), “se soumettant à une formulation textuelle d’incidence esthético-littéraire et à une pratique combinatoire (dimension syntactico-signifiante), renvoie à des signifiés d’ordre axiologique (dimension sémantique) que visent de façon plus ou moins explicite la situation historique et les coordonnées politiques et sociales de ses interprètes (dimension pragmatique)” (apud REIS, C., 1983: 261). Só da interação destas três dimensões poderá resultar, então, um estudo mais completo que contemple simultaneamente o que há de coerente e de diferente numa globalidade como é a personagem.

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Bibliografia Bibliografia Activa GARRET, Almeida (1983) – Viagens na minha terra, Lisboa, Editorial Estampa.

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ORPHEU, DIALOGISMO, PROVOCAÇÃO1 1. O comportamento provocatório que, em 1915, assinalou o fenómeno Orpheu encontra, ainda que com outros cambiantes, uma referência num contexto não muito distante, precisamente em posições defendidas e atitudes assumidas por alguns dos elementos da Geração de 70, durante as décadas de 60 e 70 do século XIX2 , informados que se encontravam pelo ideário de Marx, Comte, Flaubert, Baudelaire e Hegel. Recorde-se, em síntese, algumas das premissas que caracterizaram ideologicamente o discurso desta geração: o desejo de regeneração e revitalização nacionais; a crítica da estagnação político-social, do alheamento, da decadência nacional e da desnacionalização da Cultura Portuguesa; os reparos feitos à marginalização de Portugal face à Cultura Europeia; a irreverência, o apelo à renovação e a busca da novidade. Ainda dentro deste contexto, relembre-se também alguns acontecimentos então marcantes: as ações de subversão levadas a cabo pelos estudantes de Coimbra ao então Reitor da Universidade daquela cidade, assim como as suas atitudes de protesto durante a receção do príncipe Humberto de Itália à mesma Universidade (em 1862); o manifesto redigido por Antero de Quental e alguns estudantes, onde avançam as razões das suas atitudes contra o Reitor (que se demitiria em 1863); os posteriores conflitos entre os estudantes e as autoridades da Universidade; as críticas de Antero à Igreja e à injustiça social; a polémica que envolveu Antero e Feliciano de Castilho (a crítica 1

Este estudo esteve na base de uma Acção de formação de Professores, que, juntamente com Ana Nascimento Piedade, orientámos em 2000, na Universidade Aberta, tendo, entretanto, integrado, também em colaboração, um Manual de apoio didáctico: A Geração de 70 e a Geração de Orpheu: Portugal em Questão, Lisboa, Universidade Aberta, 2001. Impõe-se, por isso, que a leitura deste texto seja feita em conformidade com os objectivos que estiveram subjacentes à sua elaboração. 2 Sobre esta questão, remetemos, essencialmente, para BERARDINELLI, C., 1985.


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que aquele tece à “cegueira espiritual” de Castilho e à sua incapacidade para acompanhar a evolução); a reunião entre Antero, Eça, Batalha Reis, Ramalho, Junqueiro, Salomão Sáraga e outros jovens, delineando uma reforma, com base nas teorias de Proudhon; as Conferências do Casino (começam em Maio de 1871); a portaria assinada pelo Marquês d’Ávila e Bolama, que, em nome do Rei, põe fim às Conferências do Casino, alegando os ataques à religião e instituição política, bem como a ofensa às leis e à monarquia que teria caracterizado o espírito e os textos das Conferências; a reação de Antero, apoiado, entre outros, por Eça, Batalha Reis, Salomão Sáraga, Adolfo Coelho, Teófilo, Oliveira Martins, Augusto Seromenho, com um texto (publicado na imprensa), onde protestam em nome da “liberdade do pensamento, da liberdade da palavra, da liberdade da justiça social”, e onde apelam para a “consciência liberal do país”. Independente de todos estes factos, o que, no presente contexto, interessa sobretudo realçar é um ponto fundamental, de certo modo mundividente nos desideratos da Geração de 70 (que, note-se, se constitui como um grupo ativo só depois de 1871): a conceção dinâmica e empenhada do fenómeno literário – que se traduz num discurso de provocação, suscetível de, com objetivos atestados por alguma agressividade, ilustrar com um cunho altamente pragmático o ideário defendido. Esse ideário foi sustentado à custa de uma “rutura” explícita contra a cultura e a política (os valores ideológicos que sustentavam o regime monárquico-constitucional, o desajustamento da Cultura Portuguesa às exigências da evolução histórica, o papel negativo da Contra-Reforma. . . ), a Literatura (o sentimentalismo ultrarromântico, a falta de originalidade) e as práticas literárias oficiais (marcadas fundamentalmente pelo academismo)3 . Que essa “rutura” adquiriu foros de aberto antagonismo (entre os “poetas da nova geração” e os que, segundo estes, defendiam, tutelados por Castilho, uma conceção passadista da Literatura e da sociedade) sabemo-lo através de alguns textos entretanto publicados, e que, pelo tom de antagonismo de que se revestiram, contribuíram para uma revisão da Literatura Portuguesa e, em última instância, do sentido da História de Portugal: concorreram para isso 3

Lembre-se a reação sarcástica e negativa de Castilho, na carta-posfácio ao Poema da Mocidade (de Pinheiro Chagas), em relação às obras de Antero e de Teófilo e ao espírito irreverente dos jovens escritores, quando, zangado, verifica que, contra a prática frequente, se publicavam obras sem o seu imprimatur.

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alguns textos, como as Odes Modernas e as Tendências novas da poesia contemporânea (de Antero), as Visões dos Tempos e Tempestades Sonoras (de Teófilo), o opúsculo Bom Senso e Bom Gosto (de Antero) e as conferências intituladas Causas da decadência dos povos peninsulares (proferida por Antero) e A Literatura Nova: o Realismo como nova expressão de arte (proferida por Eça). De alguma forma, estes textos e o ideário que, de um modo geral, os norteou têm inerente a si uma linha de pensamento com um discurso específico que se aproxima, em parte, do gesto vanguardista, se por esse gesto compreendermos o timbre de agressividade que os marcaram, assim como o processo de raciocínio que envolveram: a crítica do passado e a correlata orientação para a descoberta de novas expressões da sensibilidade estética. Esse gesto, encontrá-lo-emos de forma evidente décadas mais tarde em Fernando Pessoa, quando, em (provavelmente) 1914, referindo-se à Literatura Portuguesa de então, escreveria: “Afastamo-nos de Camões, de todos os absurdos enfadonhos da tradição portuguesa, e avançamos para o futuro” (PESSOA, F., 1966: 122). Como se vê, desde logo se torna evidente o alcance duplo destas afirmações: romper com a literatura do passado (e com os símbolos e imagens da memória cultural) e atualizar o futuro. Entretanto, para devidamente avaliarmos as motivações subjacentes a estas palavras assumidas pelo mentor do Grupo de Orpheu, torna-se necessário, em seguida, entender as virtualidades que conformam o termo e conceito geração literária e a problemática envolvida pelo conflito de gerações.

2. Quando se fala em geração literária, tem-se normalmente em conta um somatório de propriedades que, articuladas entre si, compreendem esse termo e conceito. Encontrando-se embora a sua origem no domínio genealógico, o termo geração é, hoje, amplamente utilizado nos mais diversos quadrantes e domínios culturais. De certa forma banalizado, ele é um termo utilizado em áreas tão diferentes como a História Literária, a História das Civilizações, a História da Cultura, a História das Artes, a Sociologia, a Antropologia, a Biologia, a Psicologia, a Política, ou os Estudos Demográficos. Também por isso é natural ouvirmos falar com alguma frequência em ‘gerações familiares’, em ‘gerações de intelectuais’, em ‘gerações literárias’. . .

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Ora, uma vez que o que nos interessa é abordar (sem, obviamente, esgotá-lo) o problema da geração literária, é sobre esta que iremos falar, apoiando-nos essencialmente em vários estudos que já se dedicaram a essa questão, mas fundamentalmente num trabalho de Julius Petersen (PETERSEN, J., 1984) – intitulado “Las generaciones literarias”4 . Nesse sentido, importa rever alguns aspetos importantes que, cremos, ajudarão a melhor compreender o que foi realmente o Grupo que se convencionou chamar Geração de Orpheu. Antes de mais, uma geração literária forma-se devido a um conjunto de circunstâncias históricas e socioculturais particulares que permitem o seu aparecimento. Por isso mesmo, uma geração literária representa um “indicativo sociológico com características específicas”. Resultado, portanto, de uma determinada ambiência coletiva, a geração literária constitui-se como uma pequena “comunidade de indivíduos” (um “cuerpo social”, no sentido de Ortega y Gasset) que, participando comummente de uma atmosfera cultural de alguma forma marcante para todos eles, e devido a um determinado conjunto de condições, alcança um papel destacado na vida cultural de um país. Note-se, entretanto, que, se bem que por vezes se aproximem, as “faixas etárias” dos indivíduos que formam a geração literária não devem ser consideradas como um elemento que a defina de modo invariável. É certo que a componente etária pode ter uma importância capital para a unidade de geração e para o cumprimento de um determinado objetivo, como é a tentativa de perturbar a geração que se propõem afrontar; mas não é também menos certo que há reconhecidamente um conjunto de forças evolutivas de índole histórica que contribuem para o aparecimento de uma geração. Contudo, essa componente etária não constitui um distintivo sine qua non da geração literária. Acrescente-se a isto o seguinte: os artistas que constituem uma determinada geração literária participam de um “semelhante quadro de referências culturais, literárias e artísticas” que, de um modo geral, emolduram um contexto histórico particular e que, por vezes, prefiguram bases educativas não muito distantes entre si. Por este prisma, e em função dessa “comunhão de informações”, os objetivos tenderão para um certo grau de “uniformidade”, 4 Leia-se, de igual modo, SILVA, V. M. A., 1983: 427-429; REIS, C., 1995: 386-389; ARIÈS, Ph., 1997; ATTIAS-DONFUT, C., LAPIERRE, N., 1988; Communications, 1994, n.o 59; MANNHEIM, K., 1990; VIZINCZEY, S., 1992 e WOHL, R., 1986.

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os quais, em princípio, procurarão ser atingidos comummente pelo grupo dentro de um quadro de atuação com idênticos parâmetros axiológicos. Refira-se, contudo, que isso não anula a possibilidade de uma “configuração polifónica do discurso da geração”, ainda que esse discurso normalmente propenda para a conformidade estético-ideológica, já que, de um modo geral, na geração literária se agrupa um conjunto de indivíduos irmanados por “princípios e valores de incidência ideológica comuns” (no que diz respeito à conceção global do homem, da sociedade e do universo, assim como à reformulação de problemas) e por análogas linhas de força técnico-artísticas e estético-semânticas. É isso que permite falar numa linguagem de geração e numa homogénea unidade de teorização (se a houver) e atuação – unidade esta tanto mais expressiva, quanto mais saliente for a presença dessa geração no contexto histórico-cultural em que se manifestar. Evidentemente que, quando opera dentro de princípios esclarecidos pela dinâmica dos grupos geracionais, uma geração literária manifesta-se consonante com o seu “guia”, o seu “mentor”, cujos propósitos e aspirações serão corroborados pelos restantes elementos do grupo, que assim os reforçam – inúmeras vezes pela “luta do poder simbólico”, em oposição aberta a uma gramática e a um discurso instituídos. Ora, isto reenvia-nos de imediato para outros problemas, como, por exemplo, a duração da geração literária e o conflito de gerações. Questão muito debatida, importa dizer que a “duração” da geração literária depende naturalmente da “relação entre forças endógenas e exógenas” ao funcionamento do grupo geracional, assentando sobretudo nessa interrelação a robustez ou a debilidade do grupo. Segundo alguns estudiosos, como Ortega y Gasset, a geração dura, em média, 15 anos – período que, segundo outros, é alargado para 30, ou mesmo para 72 anos, como defende Guy Michaud. Já no que concerne à lógica do conflito de gerações, deverá ter-se em conta que ela se relaciona primacialmente com múltiplos fatores: culturais, sociais, filosóficos, científicos, religiosos, económicos, etc. Mas falar em conflito de gerações é falar sobretudo em “diferenças de sensibilidades”, que se movem numa “articulação entre esgotamento e estimulação”. Cada geração criticará, portanto, os ‘defeitos’ da geração que a precede (ainda que esses ‘defeitos’ possam constituir os mesmos que, antes, tinham estado na mira dessa

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geração anterior, quando, por sua vez, na sua formação, havia criticado a geração que a antecedera). Como quer que seja, o que é normalmente reconhecido pelos investigadores que, mais profundamente, que se debruçam sobre a Teoria das Gerações é o facto segundo o qual “a resposta enfraquece perante um cansaço de estímulos”, pelo que se torna necessário variar aqueles mesmos estímulos. Isto não implica, note-se, que o conflito de gerações tenha forçosamente a ver com uma perspetiva biológica. Não será, contudo, abusivo afirmar que as gerações mais velhas tenderão, de um modo geral, a ficar mais apegadas a um passado que já viveram e a orientar-se pelos ensinamentos que a sua própria experiência lhes dita – e que considerarão mais consistente e avisada do que a dos mais novos. Em certa medida, quando se atenta no problema do conflito de gerações, procura-se, portanto, ter em conta o antagonismo entre grupos de pessoas com vivências diferentes. E obviamente que a dinâmica desse antagonismo assume contornos particulares, quando o que está em causa é o conflito de gerações literárias. Neste caso, e recorrendo à palavra de Bourdieu, impõe-se perceber esse conflito como uma disputa por “bens simbólicos”, traçada também à custa de um jogo entre a manutenção e a subversão das estruturas do “campo literário”. Por outras palavras, esse conflito deve ser entendido como uma espécie de “luta entre os que dominam o ‘poder simbólico’ e os que pretendem dominá-lo”. Podendo ter que ver com fenómenos exoliterários, o conflito de gerações literárias tem certamente que ver com uma relação tensional entre diferentes forças e posições estético-literárias, pelo que esse conflito se torna mais visível quando se sente que a funcionalidade de um determinado produto (texto, doutrina, procedimento técnico-literário) enfraqueceu. Nesse sentido, a nova geração literária – que é normalmente identificada com a data da sua primeira manifestação ao público (WOHL, R., 1986: 69) – pretende, num determinado momento, a revisão da norma e dos valores, obras e autores que a conformam, perturbando a lógica dos instrumentos pragmáticos que até então preenchiam e ativavam a comunicação literária vigente. Desse modo, por intermédio de doutrinas e textos então tidos como marginais em relação à tendência do sistema literário para a sua autoconservação e estabilidade, a nova geração literária acaba por, de algum modo, inquietar “esquemas mentais de leitura já instituídos”. E, também por isso, www.clepul.eu


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o problema do conflito de gerações literárias pode ser identificado de acordo com uma perspetiva institucional, ou seja, como um conflito entre os que defendem o “discurso gramaticalizado do código literário” e os que pretendem modificá-lo, e não propriamente de acordo com uma perspetiva biológica (conflito entre escritores jovens e menos jovens). É certo que, no caso dos elementos que colaboraram diretamente na revista Orpheu, praticamente todos eles nascem nas décadas de 80 e de 90 do século XIX5 . No entanto, o que acima de tudo importa reter é o facto de o Grupo de Orpheu ter movimentado um conjunto de consciências e de, com alguma agressividade, ter contribuído efetivamente para uma revisão dos valores culturais.

3. Num dos mais interessantes textos dedicados ao estudo da Geração de Orpheu, intitulado “Orpheu ou a poesia como realidade”, Eduardo Lourenço escreve as seguintes palavras: “No coro dos imortais, Orfeu é apenas um semideus. Os jovens de 1915, porém, invocaram-no como Deus da Poesia, ou, mais gravemente, viram nele a poesia como deus. Talvez mesmo como Deus”; pouco depois, continua, referindo-se às sequelas que tal atitude e tal comportamento iriam arrastar: [. . . ] diante do seu exigente deus se despirão de toda a habitual dignidade humana, de todo o direito ao respeito público, nada lhes ficando como prova da sua sinceridade senão a coragem de se confrontar sem temor com uma solidão extrema, a loucura ou a morte (LOURENÇO, E., 1974: 57)6 . 5 À exceção de Ângelo de Lima (que nasce em 1872), registe-se que, em 1886, nasce Raul Leal; em 1888, Fernando Pessoa; em 1889, Santa-Rita Pintor [e Alberto Caeiro]; em 1890, Mário de Sá-Carneiro [e Álvaro de Campos]; em 1891, Alfredo Pedro Guisado, Armando Côrtes-Rodrigues e Luís de Montalvor; em 1892, Eduardo Guimarães; em 1893, Almada Negreiros e Ronald de Carvalho. 6 Para além do estudo de Eduardo Lourenço (1974) acima indicado, e no que a toda esta questão diz respeito, remetemos, desde já, para um outro trabalho importante: JÚDICE, N., 1986. Leia-se, também: Cadernos da Colóquio/Letras (1984), 2 (referimo-nos ao Inquérito “O significado histórico do Orpheu”, ao qual responderam Jorge de Sena, Eduardo Lourenço, José-Augusto França, Fernando Guimarães, José Blanc de Portugal, E. M. de Melo e Castro, Ana Hatherley, Eugénio de Andrade e Vergílio Ferreira). Cf. ainda: SENA, J., 1984b; SARAIVA, A., 1983, 1984 e 1988; GUIMARÃES, F., 1982: 35-43; GUIMARÃES, F., 1994: 9-12; SEABRA, J. A., 1985: 133 ss; GALHOZ, M. A. D., 1984a e 1984b; BRÉCHON, R., 1986; CUADRADO FERNÁNDEZ, P., 1987; MACHADO, A. M., 1986: 571-593; VILA MAIOR, D., 1994: 63-111.

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Ora, o que fundamentalmente interessa sublinhar nestas palavras são dois aspetos: em primeiro lugar, o facto de os jovens poetas que colaboraram e lançaram a revista Orpheu (em 1915) terem recorrido à figura de Orfeu, intitulando, assim, a revista com o nome dessa personagem mitológica, reveladora dos mistérios dionisíacos; em segundo lugar, a circunstância de esse convite à mitologia ter envolvido uma cadeia de acontecimentos que ainda hoje permanecem na nossa memória coletiva. Ora, é conhecida a importância de Orfeu na reforma ao culto a Dionísio, bem como, a partir daí, as funções (de índole filosófica) que àquele entretanto foram conferidas: iniciar e revelar o mistério divino; ensinar a conduta moral; encaminhar o Homem para a purificação (através da libertação de tudo o que era maligno), orientando-o com a finalidade de integração no divino. A última função encontra, aliás, a sua justificação num episódio mitológico, segundo o qual os homens terão nascido das cinzas dos Titãs, que tinham sido queimados pelo fogo divino de Zeus, após terem morto o filho deste, Dionísio. Por esse motivo, nos homens comparecem uma base divina e uma particularidade ferina. Como quer que seja, uma outra circunstância singulariza a figura mitológica de Orfeu: a sua ligação ao amor, à poesia e à música (capaz até de dominar a morte e os deuses do inferno). Assim, para “aqueles jovens de 1915”, reclamar a figura de Orfeu significava vivenciar plenamente o ato de criação poética. Ou, dito por outras palavras, esse ato traduziria o assumir a poesia na sua total dimensão, como plenitude “artística” e “mágica”. No fundo, e em última instância, tal escolha poderá entender-se, reenviando para a possibilidade de, através da poesia, se criticar algo que estava mal na coletividade portuguesa e de se atuar “sobre o psiquismo nacional” (como escrevera Pessoa em 1915), talvez em nome daquele “futuro glorioso”, daquele “supra-Portugal de amanhã” que, em 1912, Fernando Pessoa pressentira, quando publicara n’A Águia, o texto A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente Considerada (cf. PESSOA, F., 1986b: 1151 ss).

4. Note-se, entretanto, que, de acordo com os primeiros objetivos do Grupo que se convencionou chamar Geração de Orpheu, os colaboradores não se deveriam interessar pelos problemas políticos e sociais. Ao contrário do

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que, programática e doutrinalmente, sempre pretendera a Geração de 70 (que, sob a égide do discurso positivista, utilizara a Literatura e a Arte como instrumentos de justiça social e de ação sobre os problemas sociais e políticos), Orpheu teria que se manter à margem do discurso ideológico e da intervenção social; pelo menos, foi isso que foi defendido, pela voz de um dos seus diretores, Luís de Montalvor, na Introdução ao número 1 da revista Orpheu)7 . De facto, quando, em 26 de Março de 1915, Orpheu 1 é posto à venda, os leitores deparam-se com as seguintes palavras: Bem propriamente, ORPHEU, é um exílio de temperamentos [itálicos nossos] de arte que a querem como a um segredo ou tormento. . . Nossa pretensão é formar, em grupo ou ideia, um número escolhido de revelações em pensamento ou arte, que sobre este princípio aristocrático [itálicos nossos] tenham em ORPHEU o seu ideal esotérico [itálicos nossos] e bem nosso de nos sentirmos e conhecermo-nos. A fotografia de geração, raça ou meio, como o seu mundo imediato de exibição a que frequentemente se chama literatura e é sumo do que para aí se intitula revista, com a variedade a inferiorizar pela igualdade de assuntos (artigo, secção ou momentos) qualquer tentativa de arte – deixa de existir no texto preocupado de ORPHEU (Orpheu 1: 11 [Introdução]).

As palavras transcritas falam por si, quando nelas encontramos um dos desígnios que, em princípio, deveriam estar inerentes a todos os colaboradores da revista: o desprendimento em relação ao contexto político-social, pela vocação estética de um certo “exílio de temperamentos”. Mais: o pressuposto que se encontra subjacente a estas palavras – que reclama para Orpheu um posicionamento de isenção político-ideológica (uma postura, portanto, de afastamento relativamente ao discurso de intervenção, nos moldes que habitualmente lhe são conferidos) – seria sublinhado mais tarde por Almada Negreiros. Em 1935, num texto com o título de Um aniversário: Orpheu, para além de reafirmar que Orpheu tinha sido “o primeiro grito moderno” que se dera em Portugal, dizia que Orpheu “era exclusivamente literário” e que “não tinha o mais pequeno vislumbre político” (NEGREIROS, J. A., 1992: 60 e 63). Nesse sentido, o desprendimento deveria ser conseguido com o cultivo da “diferença”. No entanto, como é sabido, esta diferença (de que um 7

Daqui em diante, e por uma questão de índole puramente metodológica, a referência aos três números da revista Orpheu será feita da seguinte maneira: Orpheu 1, Orpheu 2 e Orpheu 3.

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certo elitismo e antiburguesismo não eram alheios) seria igualmente percebida, pelo menos pela imprensa da época, com uma dimensão nitidamente provocatória.

5. Mas o que foi, exatamente, Orpheu? É o próprio Fernando Pessoa quem com maior lucidez aborda este assunto (num texto publicado por François Castex, na Colóquio, em 1968), distinguindo as “três coisas que habitualmente se confundem quando se fazem referências ao «Orpheu» ou aos «poetas do Orpheu»”: em primeiro lugar, a “revista”, propriamente dita, com dois números publicados em Março e em Junho de 1915 (o 3o número seria publicado somente em 1984, em edição facsimilada); em segundo lugar, “os que estiveram ligados a ela”, direta ou indiretamente8 ; finalmente, “os que escreveram subsequentemente em estilo semelhante ou aproximado ao dos que de facto colaboraram no Orpheu” (PESSOA, F., 1986b: 1323). Ter em conta esta reflexão de Pessoa é insistir na extrema clarividência crítica dos elementos do Grupo de Orpheu; mas mais do que isso, é ter em consideração a sua profunda consciência geracional (sobretudo dos seus principais representantes, como seria o caso de Pessoa, Almada e Sá-Carneiro), consciência essa à qual não foi indiferente o escândalo provocado pela revista, ao ponto de Eduardo Lourenço considerar o Grupo de Orpheu “a experiência mais radical de quantas a história da nossa poesia dá conta” (LOURENÇO, E., 1974: 51), acrescentando, pouco depois (e reforçando a transgressão que esse Grupo pratica sobre o horizonte de expectativas de uma Lisboa cultural e literariamente adormecida): “Para uma seriedade tão funda a Lisboa de 1915 não estava preparada. Mas talvez não seja escandaloso afirmar que os seus portadores também o não estavam. [. . . ] eles tinham querido ver 8 Neste sentido, importa lembrar a presença manifesta de Fernando Pessoa (e o seu heterónimo Álvaro de Campos), Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, António Ferro, Luís de Montalvor, Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado, Armando Côrtes-Rodrigues (e Violante de Cysneiros, pseudónimo deste), Ângelo de Lima, Eduardo Guimarães, Carlos Pacheco, Raul Leal, José Pacheco, Santa-Rita Pintor, Augusto Ferreira Gomes, D. Tomás de Almeida, Castelo de Morais e Albino de Meneses. Sublinhe-se, entretanto: em primeiro lugar, que os quatro últimos só colaborariam em Orpheu 3; depois, que uma contribuição de Amadeo de Sousa-Cardoso (com os seus hors-textes), anunciada por Pessoa a Côrtes-Rodrigues (em Setembro de 1916), não se chegaria a concretizar; finalmente, que o papel de António Ferro se reduziu unicamente ao de editor.

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«algo nuevo» e na realidade o haviam visto. [. . . ] A sua poesia foi a maneira de se lançar ao mar. [. . . ] Para serem fiéis à nova experiência, as palavras habituais da tribo pareceram-lhes mesquinhas e a sintaxe secular revelou-se-lhes demasiado estática para suportar a alma incoerente, múltipla e tumultuosa nascida de uma tal visão” (id.: 52).

6. Relembremos, ainda que sucintamente, algumas informações que de forma mais evidente marcaram a vida da revista Orpheu9 . Recuemos um pouco até aos anos de 1912 e 1913 – de que datam reuniões diversas nos cafés da baixa lisboeta (Martinho, Brasileira, Irmãos Unidos) entre alguns dos elementos que, mais tarde, constituirão a Geração de Orpheu. Nestes anos que precedem o aparecimento da revista Orpheu, a amizade entre Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, António Ferro e Alfredo Guisado vai-se cimentando; são discutidos projetos e programas; comentam-se as participações na vida cultural dos companheiros; e, entre estas, houve uma, que se revelaria muito importante: a de Fernando Pessoa, na revista A Águia. Ora, é precisamente em 1912 que, n’A Águia (publicada desde 1910, mas agora órgão do Grupo da Renascença Portuguesa), Fernando Pessoa publica um conjunto de artigos sobre a Nova Poesia Portuguesa (A Nova Poesia Portuguesa Sociologicamente considerada [PESSOA, F., 1986b: 1145 ss], Reincindido [id.: 1158 ss] e A Nova Poesia Portuguesa no seu Aspecto Psicológico [id.: 1174 ss]). As teses que defende apontam essencialmente para o facto de a Literatura constituir um indicador sociológico de um determinado período, sublinhando audaciosamente que à poesia portuguesa, vivendo então um período de renascimento, só faltava um autor, um “Grande Poeta” que, na prática, corporizasse esse renascimento. Esse autor seria, di-lo-ia em Setembro de 1912, numa Réplica (ao Doutor Adolfo Coelho), uma espécie de “super-Camões, isto é, um poeta máximo, inevitavelmente maior do que aquele poeta verdadeiramente grande” (id.: 1203); reformula, deste modo, Pessoa o mito camoniano sob a forma de um outro mito que, na sua opinião, transcenderia aquele (o do “supra-Camões”). Assim, procurando talvez integrar um movimento literário “representativo da nova geração”, ou obedecendo a uma solicitação 9

Cf., sobretudo, JÚDICE, N., 1986: 20 ss.

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interior para escrever algo que elevasse o nome de Portugal, Pessoa caracteriza a estética da nova poesia portuguesa (conformada por três princípios: o “vago”, a “subtileza” e a “complexidade”) e fundamenta o pensamento de Teixeira de Pascoaes sobre “o futuro glorioso que espera a Pátria Portuguesa” – afirmações, aliás, que provocariam reações dentro e fora do Grupo da Renascença Portuguesa, sendo, neste contexto, conhecida sobretudo a polémica com o Professor Adolfo Coelho, no jornal República, que acusa Pessoa de messianismo. Como se sabe, Pessoa era, até aqui, conhecido sobretudo como crítico. É certo que já escrevera alguns poemas e criara imensos pseudónimos. Mário de Sá-Carneiro (que parte para Paris em Outubro) incita-o mesmo a mostrarse como poeta. E o ano de 1912 marca precisamente o início da correspondência entre Pessoa e Sá-Carneiro – um Sá-Carneiro que, note-se, publica, também em 1912, a peça Amizade e o volume de novelas intitulado Princípio –, correspondência essa considerada essencial para compreendermos melhor o que foi o Modernismo em Portugal, já que nessas cartas se encontram alguns dos princípios fundamentais que orientarão a revista Orpheu. Durante o ano seguinte, 1913, continua o intenso convívio intelectual entre Fernando Pessoa e os companheiros. É com eles que Pessoa partilha a sua atividade de produção estético-literária e de crítica literária. Nesse sentido, e com um tom provocatório, aprecia, na revista Teatro, Bartolomeu Marinheiro, de Afonso Lopes Vieira, e comenta a escrita de Manuel de Sousa Pinto. Entretanto, Pessoa começa a mostrar-se como poeta, lendo inclusivamente alguns versos seus a João Correia de Oliveira e a Rui Coelho, mostrando assim preferir ainda a récita à publicação. Em Março, escreve Pauis – poema que, como se sabe, “dará origem” ao Paulismo e que, publicado no ano seguinte, marcará a sua estreia poética no contexto literário português. Por seu lado, Mário de Sá-Carneiro – que, entre Janeiro e Maio, em Paris, assiste aos espetáculos de teatro e convive com alguns artistas portugueses (alguns dos quais satirizará depois nas suas novelas) – dedica-se à escrita de poesia e de narrativa. Os seus projetos, as suas ideias, os seus comentários, relata-os ao amigo, Pessoa, nas cartas que lhe escreve. Em Junho, regressa a Lisboa, retoma o convívio com os companheiros e continua a escrever (O Fixador de Instantes, Mistério, Eu próprio o Outro e A Confissão de Lúcio). Em Novembro, n’O Rebate, publica um texto doutrinário sobre o teatro (O Teatro Arte), no qual elogia as revistas dos music-halls de Paris – texto este, aliás, onde se www.clepul.eu


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encontram algumas razões que explicam as críticas futuras ao Orpheu. Já no que diz respeito a Almada Negreiros, importa para já lembrar que realiza a sua primeira exposição individual (para o catálogo da qual escreve um texto provocatório), na Escola Internacional, sobre a qual Pessoa publicará um artigo n’A Águia. Entretanto, de 1914 data a publicação de “Silêncios”, texto em prosa, de Almada (que dirige artisticamente o semanário O Papagaio Real e colabora graficamente na Ilustração Portuguesa). Quanto a Mário de Sá-Carneiro, que regressa de Paris (para onde partira em Junho) por causa da guerra, reencontra-se com os amigos, como de costume, nos cafés lisboetas. Entretanto, escrevera já algumas novelas (A estranha Morte do Prof. Antena e Ressurreição) e alguns poemas (7e 16). Mas mais: neste mesmo ano, regressa também do estrangeiro (mas do Brasil) o cabo-verdiano Luís de Montalvor – onde estivera a trabalhar na Embaixada Portuguesa, desempenhando o cargo de secretário do Dr. Bernardino Machado, então Ministro Plenipotenciário de Portugal naquele país. Para todos os efeitos, recorde-se que o ano de 1914 foi importante não apenas pelo convívio, mas também pela produção literária. Fernando Pessoa escreve a Ode Triunfal (dando-a a ler a Almada, que a aprova entusiasticamente); dá-se ainda conta da falta de personalidades literárias com valor no palco literário português: os heterónimos, consciente ou inconscientemente, “responderiam” a essa consciência. Segundo Pessoa, tornava-se, assim, necessário fazer alguma coisa que mostrasse esses seus “desígnios”. Passando por uma crise profunda10 , escreve uma carta a Álvaro Pinto, em 12 de Novembro, terminando com a sua ligação com a revista Águia. No mês anterior, aliás, numa outra carta dirigida a Côrtes-Rodrigues, considerara entanto que seria importante publicar-se uma antologia com textos do grupo, cujo título, na sua opinião, poderia ser Antologia do Interseccionismo (e onde poderiam ser inseridos textos de Pessoa, Sá-Carneiro e Álvaro de Campos).

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Esta crise é confessada por Pessoa numa carta enviada ao amigo Armando Côrtes-Rodrigues, onde dá a entender que ela fora provocada, por um lado, pela crítica negativa do inquérito do jornal República sobre a “produção literária da Renascença Portuguesa” e, por outro lado, pelo desinteresse que A Águia mostrara em publicar o seu “drama estático” O Marinheiro.

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Ora, como se sabe, todos estes acontecimentos iriam proporcionar a Pessoa um determinado estado de espírito que lhe permitiria estar mais liberto para se dedicar a outros projetos. Nos meses que antecedem o do aparecimento da revista Orpheu, a ideia de lançar uma revista (no princípio, Orpheu estaria para se chamar Europa [PESSOA, F., 1986b: 1324]) vai ganhando mais consistência nas conversas entre aqueles companheiros. Ronald de Carvalho, no Brasil, sugerira essa ideia a Luís de Montalvor; este, ao regressar a Portugal, comunica-a a Pessoa e a Mário de Sá-Carneiro. Em Fevereiro, fica decidido: Orpheu seria uma revista trimestral, cujos diretores seriam Luís de Montalvor, em Portugal, e Ronald de Carvalho, no Brasil. Em 26 de Março, Orpheu 1 está pronta e é colocada à venda. Temos, então, formado o primeiro grupo de colaboradores para o Orpheu 1: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros, Luís de Montalvor, Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado e Armando Côrtes-Rodrigues (acrescente-se ainda três outros colaboradores: o heterónimo pessoano Álvaro de Campos – cuja participação é mesmo considerada como uma das mais importantes neste número –, António Ferro, escolhido “à força” para editor da revista [e que, em 1912, em colaboração com Augusto Cunha, já publicara umas quadras ao gosto popular, intituladas Missal de Trovas], e José Pacheco [que desenha a capa de Orpheu 1, e desenhará a de Orpheu 2]). Não esqueçamos, entretanto, alguns pontos fundamentais, por vezes ignorados quando se fala nos elementos que fizeram a geração de Orpheu: para além de constituírem um grupo de amigos que estavam informados sobre o que se passava no palco cultural europeu, para além de, de um modo geral, se nortearem por objetivos comuns (intervir e mostrar a sua qualidade no contexto literário português), para além de funcionalmente trabalharem num âmbito particular (o da poesia), para além de viverem segundo uma dinâmica de sincronia, todos os principais colaboradores eram já conhecidos antes da publicação da revista Orpheu. É certo que os nomes identificados como ligados ao Modernismo Português só seriam plenamente conhecidos – pelo público leitor não perfeitamente conhecedor do fenómeno literário que foi o Modernismo – nos finais dos anos 30 e nos anos 40, divulgação essa que muito deveria ao Grupo da revista Presença. Contudo, os primeiros colaboradores não eram propriamente desconhecidos. Em relação a Fernando Pessoa, lembre-se a polémica com Adolfo Coelho e as suas colaborações com as revistas A Águia (os artigos sobre A Nova Poesia www.clepul.eu


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Portuguesa, o texto Na Floresta do Alheamento e o texto crítico As caricaturas de Almada Negreiros), Teatro e A Renascença (onde publica Impressões do Crepúsculo). Quanto a Mário de Sá-Carneiro (considerado por José Régio como “o nosso maior intérprete da melancolia moderna” [RÉGIO, J., 1977a: 28]), também se pode dizer (nesta altura, até talvez mais do que o próprio Pessoa) que era conhecido pelo público. Senão vejamos: nos anos de 1908 e 1909, na revista Azulejos, publicara já poemas e contos (assinando por vezes com o anagrama Sirconera); em 1910, n’O Século, um artigo de elogio ao Liceu Camões; em 1911, no Almanaque dos Palcos e Salas, o monólogo Beijos; em 1912, n’A Ilustração Portuguesa, O Sexto Sentido. No mesmo ano, publica igualmente a peça Amizade (escrita em parceria com Tomaz Cabreira Júnior) e Princípio (conjunto de novelas, dedicado ao pai) – volume este por diversas vezes mencionado pela imprensa (Sá-Carneiro colecionaria mesmo esses recortes num pequeno caderno escolar comprado em Paris). Note-se ainda que, no ano anterior, quando ainda era aluno do Liceu Camões, proferira uma conferência (que iria ser considerada pelos jornais como um “trabalho de valor”) sobre “a situação poética nacional”. Em 1913, embora datados do ano seguinte, publica os volumes A Confissão de Lúcio (novela) e Dispersão (livro de poemas), livros estes dos quais a imprensa igualmente fará inúmeras recensões críticas. E Almada Negreiros, aquele que se entregaria “de corpo e alma, com todos os sentidos” (FERRO, A., 1987: 370) ao projeto Orpheu? Em 1911, quando então frequentava a Escola Internacional, publica o seu primeiro desenho (intitulado Razão Ponderosa) n’A Sátira. Em 1912, publica o jornal ilustrado A Paródia (jornal manuscrito na Escola Internacional) – assinando “Espinafre” (alcunha que lhe vinha do tempo do colégio) –, participa na I Exposição do Grupo dos Humoristas Portugueses (realizada em Lisboa, no Grémio Literário, e considerada como a primeira manifestação do Modernismo Português, no domínio das artes plásticas) e colabora, com desenhos, n’A Luta (Lisboa), n’A Rajada (Coimbra), n’A Bomba e n’A Manhã (Porto). No ano seguinte, expõe cerca de 90 desenhos na Escola Internacional, participa da II Exposição de Humoristas Portugueses, ilustra alguns jornais (como O Século Cómico, A Capital e o Jornal de Arganil) e executa uma série de painéis decorativos de figurinos para a Alfaiataria Cunha, em Lisboa. Também a Ilustração Portuguesa e o semanário Papagaio Real contariam, no ano de 1914, com a colaboração

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artística de Almada, que, como já foi dito, chega ainda a publicar (diz J.-A. França) o Frisos “Silêncios”, no n.o 1 de Portugal Artístico. Igualmente conhecido era Luís de Montalvor (pseudónimo de Luís Filipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos). Aquele que seria o primeiro diretor (em Portugal) da revista Orpheu, aquele que fundaria em 1916 a revista Centauro, que orientaria realizações gráficas e que fundaria a editora Ática, vivera no Rio de Janeiro, onde trabalhara na Embaixada Portuguesa. E fora no Brasil que tivera a oportunidade de conhecer um poeta, Ronald de Carvalho, que seria o outro diretor (no Brasil) de Orpheu 1. Hoje, é conhecido sobretudo pela participação na Semana de Arte Moderna, pela carreira diplomática que seguiu depois de Orpheu, assim como pelo ensaísmo, crítica e estudos acerca da história da literatura e dos problemas políticos do Brasil. Ronald de Carvalho tivera a sua estreia poética em 1913, com Luz Gloriosa. Aquele que seria o último sobrevivente do Orpheu, Alfredo Pedro Guisado (morreria em 1975), português de ascendência galega, foi deputado e Governador Civil. Este poeta, que se oporia mais tarde a Salazar, viria a ser vice-diretor do jornal República; o mesmo poeta que, sob o pseudónimo de Pedro de Meneses, publicaria As Treze Baladas das Mãos Frias (em 1916), Mais Alto (em 1917) e Ânfora (em 1918), antes de 1915 também já tinha publicado um livro de poesia, intitulado Rimas da Noite e da Tristeza (1913). Armando César Côrtes-Rodrigues, futuro professor no Liceu de Ponta Delgada e futuro diretor da Secção Etnográfica do Museu Carlos Machado (também em Ponta Delgada), no seu amor ao sentimento açoriano, de onde, aliás, era natural, fundaria a Sociedade dos Amigos das Letras e a Sociedade de Estudos Açorianos Afonso Chaves. Antes de Março de 1915, não era tão conhecido do público, como, por exemplo, Mário de Sá-Carneiro. No entanto, o poeta que viria em 1953 a ganhar o Prémio Antero de Quental (com Horto Fechado e Outros Poemas) participou também dos objetivos do Grupo. Conhece Pessoa em Lisboa e publica poemas de índole saudosista n’A Águia. É certo que, na aventura órfica, Armando Côrtes-Rodrigues (a quem se deveria a única colaboração “feminina” no Orpheu 2, quando alteronimicamente publica sob o pseudónimo de Violante de Cysneiros) nunca mostrou a atitude de uma certa ufania presente na Ode Triunfal, de Álvaro de Campos, antes enveredando, no Orpheu 1, pela exuberância imagética e esteticista, circunvizinha de uma figuração paúlica. É certo igualmente que não tinha obra publicada. Porém, realce-se desde já o papel de quase confidente de Fernando Pessoa, www.clepul.eu


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nos últimos oito meses antes de sair Orpheu. Com Pessoa troca diversa correspondência. De facto, é sobretudo com Côrtes-Rodrigues que Pessoa, antes de se publicar Orpheu, fala da problemática do processo heteronímico, da produção dos heterónimos, dos momentos de crise, da possibilidade de publicação de uma Antologia do Interseccionismo, da sua “terrível e religiosa missão que todo o homem de génio recebe de Deus” (PESSOA, F., 1986b: 176); a este propósito, relembre-se essa tão importante carta que Pessoa lhe escreve em 19 de Janeiro de 1915, ou, já agora, a carta de 4 de Abril do mesmo ano, na qual Pessoa revela ao amigo o modo como a revista estava a ser recebida pelo público em Lisboa: Somos o assunto do dia em Lisboa; sem exagero lho digo. O escândalo é enorme. Somos apontados na rua, e toda a gente – mesmo extraliterária – fala no Orpheu (id.: 185).

É conhecida a recetividade negativa que teve a revista, tanto pela literatura oficial, como pelo público, de um modo geral. O próprio Fernando Pessoa faz alusão à aridez estética e intelectual que grassava então na Cultura Portuguesa (num texto publicado em 1916 [PESSOA, F., 1986b: 1329-1330]), ou (num texto de provavelmente 1925) à chacota a que Orpheu fora sujeito – mas também, paradoxalmente ou não, à imitação posterior do estilo dos seus colaboradores11 . Considerados “doidos varridos” pela imprensa (que se mostrava intransigente com a nova estética, e não compreendendo o verdadeiro valor da revista)12 , os órficos foram por ela duramente criticados – sem que, por vezes, nos artigos, aparecesse a assinatura do seu autor, ou confundindo frequentemente o plano da crítica literária (que se desejava lúcida) com o plano político. Ora, a publicidade negativa, tantas vezes acompanhada da anedota e do 11 “Como todos os inovadores, fomos objeto de largo escárnio e de extensa imitação. Não esperávamos, para falar verdade, nem uma cousa nem outra; dadas elas, não nos preocupou uma, nem a outra nos envaideceu. O simples escárnio nada significa; o escárnio de uns, acompanhado da imitação de outros, designa a inovação” (PESSOA, F., 1993: 256). 12 Em 24 de Fevereiro de 1929, n’O Notícias Ilustrado, publica António Ferro o artigo Alguns precursores, onde escreve: “Relembro, com saudade e ternura, aquela tarde em que Sá-Carneiro se dirigiu a mim no Rossio, de braços abertos, com uma alegria infantil que era, afinal, a alegria do mártir: – Você leu os jornais? Leu a Capital? Vê o que dizem sobre o Orpheu? Somos todos doidos varridos! Da fama já ninguém nos livra. . . Reclamam, para mim, o colete de forças e um exame às minhas faculdades mentais. . . Estou contentíssimo! O êxito excedeu a minha expectativa” (FERRO, A., 1987: 368).

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dito gracioso, chamou inevitavelmente a atenção dos leitores: foi exacerbado sobretudo o carácter de blague dos órficos, o seu comportamento bizarro; a imprensa (onde sobressaíram os jornais A Capital e O Século Cómico) recorreu frequentemente ao vocabulário psiquiátrico (vocabulário esse aproveitado no dia-a-dia pela voz comum) e caracterizou até algumas passagens de “pornográficas”, associando ainda perfidamente alguns textos às biografias dos autores13 . O que se verificou, portanto, logo depois de Orpheu 1 ter sido posto à venda, em 26 de Março de 1915, foi um confronto de discursos entre um grupo de poetas que (querendo, ou não, fazê-lo de forma radical) perturbava a cultura e a literatura oficiais, e agitava a retraída mentalidade portuguesa (uma causa, segundo Pessoa, da decadência de Portugal). Na sequência, aliás, desse confronto, Pessoa escreverá no mês seguinte uma crónica n’O Jornal (dirigido por Boavida Portugal), onde (ainda que tendo efetivamente por alvo o Sr. Crispim, d’A Nação, que atacara Orpheu) faz uma alusão aos chauffeurs de Lisboa, em termos que provocaram de imediato uma reação violenta dos mesmos. Como quer que seja, o Orpheu 2 será posto à venda em 28 de Junho, mas, agora, com uma nova direção: já não se encontram como diretores Luís de Montalvor, nem Ronald de Carvalho, mas Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro (facto do qual resultaria até uma orientação mais desligada do esteticismo finissecular que caracterizara Orpheu 1). Com esta mudança de diretores (que tinham com certeza ficado preocupados com o ridículo a que tinham sido sujeitos), o Grupo de Orpheu terá mostrado que a união tão ca-

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Em 30 de Março de 1915, n’A Capital, aparecia o seguinte: “Literatura de manicómio (Os poetas do “Orfeu”) foram já cientificamente estudados por Júlio Dantas, há 15 anos, ao ocupar-se dos “artistas” de Rilhafoles. Casos de paranóia – Tem a palavra o sr. Júlio de Matos!” (apud SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 213). Por sua vez, o Século Cómico, de 8 de Abril de 1915, “relatava”: “Não podemos hoje dar, com o desenvolvimento que desejávamos, notícia do aparecimento da publicação trimestral O Orfeu, cujo primeiro número temos à vista. Fica para o próximo número, se algum dos nossos redactores encarregados das críticas literárias conseguir ler o folheto até o fim sem percalço de maior. Quatro dos nossos companheiros de trabalho, que tentaram a empresa, recolheram ao hospital com terríveis indícios de alienação; dois outros faleceram de apoplexia fulminante às primeiras linhas; mais três tiveram tal destempero intestinal que de momento a momento correm a despejar-se. Veremos se algum insiste e é capaz de arcar com a tarefa” (apud SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 197-198).

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racterística de uma geração literária não era, afinal, tão consistente como no princípio se fizera crer. De qualquer modo, é importante relembrar que, em Orpheu 2, mais esvaziado de incidências estético-literárias simbolistas, se intensifica o clima de antagonismo dos órficos em relação à sociedade, à imprensa, à crítica oficial, ao “lepidóptero burguês”. Publicam-se textos ainda mais obscuros para o leitor comum (Chuva Oblíqua [de Pessoa], Ode Marítima [de Álvaro de Campos] e Manucure [de Sá-Carneiro]), e novos colaboradores intensificam o carácter contestatário. Com efeito, dos primeiros colaboradores, não chegam a participar neste novo número Ronald de Carvalho, Alfredo Pedro Guisado e Almada Negreiros, mantendo-se os outros (Armando Côrtes-Rodrigues publicará com o pseudónimo de Violante de Cysneiros, com receio de represálias pelos professores do Curso Superior de Letras, de que então era aluno). Nos novos colaboradores, encontramos Ângelo de Lima, Raul Leal e Santa-Rita Pintor. Em relação a Ângelo de Lima (nascido em 1872), importa dizer que a sua poesia é tida como um contributo importante para se perceber a estética simbolista, embora muitos dos seus textos só tenham sido publicados na segunda década do século XX. Em 1891 e 1892, participara como voluntário numa expedição militar a Moçambique; em Novembro de 1894, seria internado no hospital do Conde de Ferreira, no Porto, onde permaneceria até 1898. Em 1900, é de novo internado, então em Lisboa, no Hospital de Rilhafoles. Raul Leal (de nome completo Raul de Oliveira Sousa Leal), nascido, por sua vez, em 1886, descendente de família nobre e formado em Direito pela Universidade de Coimbra (em 1909), abandonara a prática da magistratura para se dedicar à Literatura. Aquele que se tornaria sobretudo conhecido por textos como o Antéchrist et la Gloire du Saint-Esprit, ou Sodoma Divinizada, ou ainda Uma lição de moral aos estudantes de Lisboa, escrevera, já em 1909, A “Apassionata” de Beethoven e Viana da Mota e, no ano seguinte, proferira a conferência A situação do estudante em Portugal. Santa-Rita Pintor (Guilherme de Santa-Rita), nascido em 1889, concluíra (em 1908) com 18 valores o curso na Escola das Belas Artes, sendo seguidamente nomeado pensionista em Paris, onde viveria quatro anos, e onde conviveria, por exemplo, com Mário de Sá-Carneiro. De regresso a Portugal, proclamar-se-ia adepto do Cubismo e defensor do Futurismo (estética da qual se tornaria, em Portugal, uma referência). Já então conhecido pelas suas www.lusosofia.net


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atitudes extravagantes e pela sua irreverência (seria ainda de certa forma mitificado pelos companheiros, sobretudo Raul Leal e Bettencourt-Rebelo, que sobre ele escreveram), colabora então em Orpheu 2, onde são reproduzidos alguns desenhos e colagens futuristas seus. Ora, depois de sair o Orpheu 2, que acontecimentos se verificaram, que neste contexto interessa evocar? Essencialmente três: o primeiro diz respeito a um panfleto escrito e distribuído por Raul Leal; o segundo, a um artigo publicado no dia 5 de Julho, n’A Capital; o terceiro, aos problemas financeiros que inviabilizariam a continuação da revista Orpheu. Sem pretenderem diretamente agir no palco político, alguns órficos declaram-se efetivamente monárquicos. Depois da saída de Orpheu 2, Raul Leal (identificado como monárquico) distribui em Lisboa um panfleto seu (O Bando Sinistro), assinando “colaborador do Orpheu”. Tal texto provoca o riso e a zombaria, como demonstra o jornal O Mundo, no seu número de 5 de Julho. Seria, no entanto, um outro facto que diretamente iria pôr à prova a unidade dos órficos: no mesmo dia, A Capital noticia ofensivamente, em tom de troça, uma “récita paúlica” planeada pelo Grupo de Orpheu: Entre outras produções cénicas pensam em representar um “drama dinâmico”. . . Graças a Deus, há gente para tudo. Nunca, porém, as boas tradições históricas foram tão religiosamente respeitadas como nesse grupo de inofensivos futuristas que se propõem enriquecer a teratologia literária e artística da nossa terra publicando o Orfeu, planeando conferências e dispondo-se até a exibir a maluqueira no tablado de um teatro. Os antigos reis não dispensavam, na corte, o concurso dos bobos. Há pessoas que imaginam ser ainda indispensável esse concurso à vida das sociedades do nosso tempo. . . A última é uma récita paúlica, planeada em segredo, destinada a irritar o burguesismo artístico e a criar mais um motivo para que se fale no assunto, porque esses pobres moços, afinal, não desejam outra coisa mais senão que se fale deles. Bem ou mal, pouco importa. [. . . ] O clou do espectáculo é um drama dinâmico! intitulado A Bebedeira, representado por. . . pernas. O pano sobe apenas até à altura do joelho dos actores, de forma que o espectador não vê mais do que pernas humanas, pernas de cadeiras, pernas de mesas, tudo isto iluminado por estranhos efeitos de luz, dançando coisas macabras é desconexas. . . A realizar-se, porém, a récita, envolve um perigo para o público, porque é natural que as batatas encareçam. www.clepul.eu


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Com vista à comissão reguladora dos preços dos géneros de primeira necessidade. . . (apud SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 204-205)

Ainda que longa, esta citação justifica-se pela necessidade de se perceber o tom, de nítido achincalhe, que provoca de imediato a reação violenta de Pessoa. Assinando sob o nome de Álvaro de Campos, escreve uma carta ao diretor d’A Capital, onde manifesta a sua revolta com o artigo publicado; e, em determinada passagem, visa Afonso Costa (Chefe do Partido Democrático) – que, dias antes, tivera um acidente (caíra de um elétrico e ficara às portas da morte): “De resto”, escreve, “seria de mau gosto repudiar ligações com o futurismo numa hora tão deliciosamente mecânica em que a própria Providência Divina se serve dos carros eléctricos para os seus altos ensinamentos” (PESSOA, F., 1986b: 1101-1102). No dia seguinte (em 6 de Julho, portanto), A Capital publica não a carta toda de Pessoa (Álvaro de Campos), mas apenas o período em que este visava Afonso Costa, apelidando então os órficos de “criaturas de vis e baixos sentimentos”. De imediato os elementos do Grupo de Orpheu (à exceção de Pessoa) se retratam, distanciando-se em relação a Raul Leal e a Pessoa / Álvaro de Campos: Alfredo Guisado e António Ferro repudiam conjuntamente n’O Mundo “qualquer solidariedade com esses senhores” [Raul Leal e Campos]; Alfredo Guisado acrescenta, aliás, que já o fizera depois de se publicar Orpheu 1; António Ferro diz que deixará de se responsabilizar como editor de Orpheu; o próprio Mário de Sá-Carneiro assina um texto para A Capital, onde afirma que a carta de Campos fora “apenas um gesto individual”, não a considerando, de modo nenhum, “uma manifestação coletiva do Orpheu”, realçando que Orpheu tinha “uma ação exclusivamente artística”. Ainda segundo A Capital, Almada Negreiros teria dito que “discordava com o Sr. Álvaro de Campos”, “pseudónimo literário do Sr. Fernando Pessoa”. Ora, todos estes factos provocarão a dispersão do Grupo de Orpheu. Mas dois outros viriam, como se sabe, a revelar-se decisivos para o fim da revista: as dívidas entretanto provocadas pela publicação da revista e a falta de apoio financeiro para levar a cabo a sua continuidade. De facto, a dívida relativa à fatura da revista não fora ainda saldada. Sá-Carneiro parte para Paris, chegando mesmo a delinear o terceiro número, que chega até a ser composto numa outra tipografia (mais tarde, segundo Carlos D’Alge, os credores da tipografia venderiam a peso o Orpheu 3, parcialmente impresso). Contudo, dewww.lusosofia.net


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pois de uma chamada de atenção de seu pai, Sá-Carneiro pede a Pessoa para suspender a publicação de Orpheu. O próprio Sá-Carneiro chega a propor a Pessoa que este continuasse com a revista, dando-lhe a decisão de aceitar, ou não, uma “malandrice” de Santa-Rita Pintor, que queria “apoderar-se” da direção da revista – facto contudo impensável para Sá-Carneiro, visivelmente irritado com as atitudes e comportamentos do pintor, e receando provavelmente que este se tornasse o “chefe” da revista (cf. SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 88-89 e 97-98)14 . Como quer que seja, em 13 de Setembro de 1915, Sá-Carneiro, de Paris, declara o fim de Orpheu, ainda que por diversas vezes Pessoa tenha tentado, malogradamente, publicar o terceiro número.

7. Independentemente do interesse histórico-cultural que todos estes acontecimentos possuem, é necessário, acima de tudo, evidenciar o facto de eles remeterem, em primeira e última instâncias, para uma outra questão igualmente importante: a que diz respeito ao facto de alguns dos elementos 14

Em carta datada de 25 de Setembro de 1915, escreve Cá-Carneiro: “Você tem mil razões: O Orpheu não acabou. De qualquer maneira, em qualquer «tempo» há-de continuar. O que é preciso é termos «vontade». Mas junto envio-lhe um coup-de-théatre: a carta ontem recebida do futurista Rita Pintor que não quer que o Orpheu acabe, e o continuará, com alguns haveres que possui, caso nós nos não oponhamos, etc., etc. – e contando comigo e consigo – pois já lhe não chama nomes feios!. . . O caso é bicudo – especialmente para você que o tem de aturar. Dou-lhe carta branca. O meu querido amigo diz-lhe o que entender, resolve o que entender. Por mim limito-me a escrever-lhe logo uma carta vaga: que sim e mais que também. . . Esse sarilho resolva-o você. Claro que Santa-Rita “maître” do Orpheu acho pior que a morte. Entretanto, você resolverá tudo. «Eu, aqui de longe, nada de positivo posso fazer, nem decidir» – será o tema, o resumo da minha carta ao Gervásio Vila Nova” (SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 88-89). A mesma tonalidade continuará dias depois, numa outra carta datada de 2 de Outubro de 1915; aí, referindo-se ao fracasso económico da revista, confessa: “Escrevi ao Santa-Rita pelo mesmo correio o seguinte, em resumo: longe e atravessando demais a minha vida vários perigos (sic) – desinteresso-me por completo da questão do Orpheu, do qual – se ele continuasse – eu seria apenas um colaborador intermitente. Mas isto nada quer dizer, pois para mim, eu coisa alguma posso decidir. O Orpheu é propriedade espiritual tanto minha como sua. Eu desisti da minha parte: logo hoje o Orpheu é propriedade exclusiva de você, Fernando Pessoa – que se encontra ser assim actualmente o seu único árbitro. Digo-lhe a ruína que é a sua exploração financeira: que se ele “emprestar” dinheiro a Orpheu, este nunca mais lho pagará. . . Acrescento que lhe mostre a minha carta. Assim você proceda como entender, à bruta. – Incite Guisado e Mira à revista, tanto mais que tem dinheiro” (id.: 97-98).

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do Grupo de Orpheu mostrarem variavelmente possuir a consciência de esvaziamento da função fixista da tradição. Mas se, internamente, essa consciência promovia, indicialmente, uma união de grupo (característica, como se disse, de uma geração literária), de um ponto de vista externo, a união acabou por não se verificar – como o ilustram o afastamento dos primeiros diretores e o que se seguiu ao affaire Afonso Costa. Assim, quando se fala no Grupo da revista Orpheu e na dinâmica que, estética, literária e sociologicamente, o envolveu, são tidos normalmente em conta alguns dos seguintes parâmetros: tratou-se de um grupo de personalidades que vivenciaram artisticamente o fenómeno literário e que constituíram um marco fundamental na estética modernista em Portugal; procuraram não seguir escolas (antes sintetizá-las e transcendê-las), tentando abrir-se às novas estéticas europeias – já que os elementos do grupo nunca se alhearam do contexto geral em que viviam, antes mantiveram com ele intensas e complexas ligações15 ; aceitaram a diversidade na unidade (o que não significava que admitissem o vulgar); alguns dos textos ‘refletem’ a dispersão do eu (em Orpheu, encontramos textos do heterónimo pessoano Álvaro de Campos e do pseudónimo feminino de Armando Côrtes-Rodrigues, Violante de Cysneiros); desejaram harmonizar o lusitanismo e o europeísmo16 ; as colaborações distinguiram-se igualmente pela diversificação estética17 ; no plano técnico-literário, pode afirmar-se que alguns textos inseridos na revista subverteram a linguagem comum, recorrendo a uma nova substantivação, à in15 É, aliás, o próprio Fernando Pessoa quem (num apontamento para uma entrevista de, presumivelmente, 1915 e numa carta enviada a Unamuno) aponta para esse sentido, sublinhando o desejo de concretização de um espírito sintético que se encontrava inerente ao Grupo: “Criar uma arte cosmopolita no tempo e no espaço”; e, pouco depois, acrescenta: “Por isso a verdadeira arte moderna tem de ser maximamente desnacionalizada – acumular dentro de si todas as partes do mundo” (PESSOA, F., 1986b: 1318). 16 Por um lado, os órficos desejavam ser “portugueses simplesmente” (NEGREIROS, J. A., 1992: 61); por outro, afirmavam-se com o espírito unanimista em relação aos movimentos literários europeus (cf. PESSOA, F., 1986b: 1087-1088; PESSOA, F., 1993: 254). A razão é apontada por Almada Negreiros, ao afirmar que o homem português “não pode deixar de ser europeu, e cada vez menos pode deixar de o ser, pela simples razão de que a Europa é cada vez mais Europa” (NEGREIROS, J. A., 1992: 62). 17 A revista Orpheu foi, nas palavras de Almada, um “encontro português das letras e da pintura” (NEGREIROS, J. A., 1993: 174). Com efeito, a revista congregou não só o discurso literário, mas igualmente o discurso das artes plásticas, com realce para os desenhos e colagens futuristas de Santa-Rita Pintor em Orpheu 2.

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fração das proposições, ao uso de analogias forçadas, à manipulação ‘feroz’ e ‘insólita’ do vocabulário, à forma livre de certos poemas, à ilogicidade de determinadas imagens18 . É sobretudo esta última questão que, agora, deve valorizar-se: alguns elementos do Grupo de Orpheu mostravam de facto possuir uma mentalidade aberta à novidade, procurando, em primeiro e último graus, atingir objetivos comuns: colocar Portugal em questão e reavaliar a Literatura Portuguesa19 . Tinham, como se sabe, as suas diferenças (no que diz respeito, por exemplo, ao local de nascimento, ou ao tipo de educação)20 . Arrogavam-se, contudo, ao direito de se interrogarem sobre o estado da Cultura Portuguesa de então. No entanto, note-se, nem todos os textos então publicados na revista constituem textos de “rutura”. José-Augusto França, no já referido inquérito realizado sobre O significado histórico do “Orpheu” (cf. Cadernos da Colóquio/Letras, 1984, 2), vinca muito bem esta ideia: Orpheu, a revista e o movimento que lhe tomou o nome, marca uma 18 Numa carta dirigida a Camilo Pessanha, em provavelmente 1915 (não se sabe se terá sido enviada), Fernando Pessoa atesta esse desejo do Orpheu para contrariar a vulgaridade e a sensaboria que lavrava no panorama cultural português (cf. PESSOA, F., 1986b: 203); num outro texto, escrito entre provavelmente 1915 e 1917, chega mesmo a conferir à revista Orpheu a única ligação entre a Literatura Portuguesa e a Literatura Europeia (cf. PESSOA, F., 1993: 254). Mais tarde, em 1934, Almada Negreiros sublinharia, com o mesmo tom, o carácter precursor do Grupo de Orpheu, realçando inclusivamente os defeitos e a decadência literária que evidenciava a Cultura Portuguesa, assim como a incompreensão e o ódio de muitos para com os órficos: “[. . . ] surpreendeu-nos o ódio que levantámos contra nós. [. . . ] Não os tínhamos adivinhado tão concretos. Pelo contrário, julgávamos os erros que atacávamos e a rotina que queríamos romper como defeitos de nós todos, mais do que apenas de alguns que se sentiram molestados nos seus prestígios” (NEGREIROS, J. A., 1992: 56). 19 A título de curiosidade, quando se fala em particularidades comuns de certos elementos do Grupo, tem-se em conta outros três atributos: o comportamento aristocrata, a educação superior diversificada (nos domínios da Literatura, da Filosofia, da Música e das Artes plásticas) e a orfandade (Pessoa, Almada, Sá-Carneiro, Armando Côrtes-Rodrigues [e, ao que parece, Raul Leal]). 20 Recorde-se, por exemplo, que Pessoa e Mário de Sá-Carneiro nascem no continente português; Almada, em São Tomé e Príncipe; Ronald de Carvalho, no Brasil; Armando Côrtes-Rodrigues, nos Açores; Luís de Montalvor, em Cabo Verde. Por outro lado, note-se que Fernando Pessoa estuda na África do Sul, Mário de Sá-Carneiro e Santa-Rita Pintor, em Paris – ou, ainda, que Armando Côrtes-Rodrigues se licencia em Letras, Alfredo Pedro Guisado e Raul Leal, em Direito.

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data de extrema importância na evolução da mentalidade portuguesa – até ao ponto de assumir a situação do primeiro “Modernismo” português. Não deve, porém, esquecer-se que há dois Orpheus (senão três) e que, no primeiro número da revista, que esteve para se chamar Lusitânia e depois Europa, um simbolismo decadentista representa uma fase paramodernista mal saída da Águia; os “Frisos” de Almada Negreiros exprimem essa situação literária que na capa de José Pacheko se traduz, entre velas meio consumidas e uma nudez feminina. . . Eram produtos do confessado “exílio de temperamentos de arte” que o divino poeta cantor simboliza com o seu próprio nome. O Orpheu de que se fala quando se fala de Orpheu é o número dois, com a “Manucure” e a “Ode Marítima” e os quatro “hors-textes” futuristas de Santa-Rita Pintor; o número três (para Pessoa-Álvaro de Campos mais interessante que o fim da guerra. . . ) traria a “Cena do Ódio” do autor dos “Frisos”, que entretanto mudara (provisoriamente) de rumo, e reproduções de Amadeo. No primeiro Orpheu estamos dentro da estética simbolista defendida no Porto por “modernistas” que assim se baptizavam com duvidosa consciência, longe de qualquer aventura futurista, e mais perto de Carrière ou de Rodin. No Segundo Orpheu, irrompe a aventura e o escândalo desejado, que dois anos mais tarde terminaria nas páginas do Portugal Futurista [. . . ] (FRANÇA, J.-A., 1984: 18-19).

Ainda que longa, esta citação justifica-se plenamente. De facto, alguns textos publicados na revista Orpheu encontram-se ligados a uma estética simbolista. Sabe-se que nenhum discurso, qualquer que ele seja, surge desenraizado historicamente. Maria Aliete Galhoz, Jorge de Sena e Fernando Guimarães, entre outros investigadores, já fundamentaram também esta ideia, lembrando a herança visível do Simbolismo e do Decadentismo Francês, presente fundamentalmente no Orpheu 1. O tom verdadeiramente polémico, de “rutura” com a tradição, esse sim, distingue, sobretudo, o Orpheu 2. Esta ideia reenvia-nos, então, para duas outras questões, que importa relembrar: a polifonia literária da revista Orpheu e a sua duplicidade estético-literária.

8. Quando se fala na herança pós-simbolista e decadentista do Orpheu, importa ter em consideração um leque de particularidades que, de um modo geral, marcaram a poesia nos últimos anos do século XIX. Isto não significa, porém (já o lembrou Arnaldo Saraiva), que esse decadentismo fosse equivawww.lusosofia.net


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lente de passadismo; lembre-se, a este propósito, que Fernando Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos, considerava que o Orpheu era “a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos” (PESSOA, F., 1986b: 1087). Além disso, recorde-se que algumas das marcas estilístico-formais normalmente apontadas como caracterizadoras da vertente vanguardista do Orpheu – a desarticulação lógica das imagens, o verso livre e a musicalidade poética – já se encontravam em poemas conformadores da estética simbolista. Para além disto, é, aliás, costume apontar os simbolistas como sendo os primeiros responsáveis pela crise do sujeito emissor/autor, característica normalmente apontada como sendo uma das principais características da poesia modernista. Mallarmé, por exemplo, defendia que o seu Livro, uma vez desligado do autor, se volveria numa entidade autónoma e transcendente, afirmando que a “obra pura” deveria ceder a “iniciativa às palavras”, de modo a que se verificasse então a “plenitude encantatória da linguagem”. De um ponto de vista estético-literário, não há, portanto, uma “rutura” radical entre a poesia modernista do Orpheu e a poesia simbolista – facto já amplamente salientado e estudado por José Carlos Seabra Pereira, Fernando Guimarães e Teresa Rita Lopes, ao refletirem sobre as afinidades estético-literárias entre Modernismo e Simbolismo. De facto, o que existe, sobretudo em alguns textos do Orpheu 1, é uma “sutura”, uma continuidade literária em relação a Camilo Pessanha, Eugénio de Castro, António de Oliveira Soares, entre outros. Segundo essa perspetiva, tem toda a pertinência a noção de “o moderno ser uma tradição” – num contexto em que se entenda por “moderno” aquele que acrescenta um novo patamar cultural a um caminho já percorrido, aquele que (tantas vezes sob o epíteto de maldito) revela aos seus contemporâneos uma nova perceção, uma nova perspetiva das riquezas (ou defeitos) do Homem. Assim, e na esteira deste raciocínio, dever-se-á chamar a atenção para alguns procedimentos técnico-discursivos e técnico-estilísticos característicos dos textos simbolistas, que justificam falar-se numa relação de continuidade entre a estética simbolista e alguns textos do Orpheu; eles são conhecidos: o recurso à estética, não da nomeação, mas da “sugestão”, do vago, da paisagem esfumada e melancólica, do pessimismo existencial, do tédio; a exploração poética da “face escondida e essencial das coisas e dos seres”, através do sortilégio do verbo; a utilização da plurissignificação, despojando-se as palavras do significado quotidiano; a repetição da maiúscula, para fugir precisawww.clepul.eu


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mente ao uso comum da palavra; o uso de metáforas inéditas que, sobretudo, sugiram; a defesa da expressividade fonética ao poema, promovendo-se a relação intrínseca entre significante e significado; a subversão das restrições impostas pelas regras lógico-gramaticais; o emprego de um vocabulário bastante evocativo, requintado, raro, erudito (tantas vezes alusivo a um mundo de pedras raras, perfumes exóticos, símbolos heráldicos, etc.). Lembre-se, por exemplo, o papel de Eugénio de Castro, nome tutelar do Simbolismo Português, que, no Prólogo-Prefácio de Oaristos (de 1890), reage contra os lugares-comuns e advoga o uso de vocabulários esquecidos (cf. MARTINS, F. C., 1990: 175). Mas lembre-se igualmente como, no livro Horas (de 1891), o mesmo Eugénio de Castro mostra uma atitude de nefelibatismo e de superioridade cultural, de deliberado distanciamento em relação às coisas triviais (cf. id.: 181-182). Ora, esta atitude de superioridade cultural e de cultivo da diferença, já o vimos, seria enunciada igualmente por Luís de Montalvor, na Introdução a Orpheu 1, quando escreve que Orpheu é “um exílio de temperamentos de arte que a querem como a um segredo ou tormento”, ou quando se refere ao “princípio aristocrático” e ao “ideal esotérico”, que, segundo ele, deveria caracterizar o Grupo de Orpheu. Muito do que se publicou em Orpheu 1 aproxima-se, de facto, da poética simbolista. Ronald de Carvalho, por exemplo, com os seus Poemas, não traz propriamente nada de novo, que justificasse falar-se em “rutura” com a tradição literária: “Fujo de mim como um perfume antigo / foge ondulante e vago de um missal / e julgo uma alma estranha andar comigo”; “vago perdido em outros num jardim”; “A Vida é uma princesa dolorosa / no seu castelo de rubis e opalas, / tanjendo ao poente”; “Dor dos repuxos ao Sol-Pôr agonizando”; “Dor dos repuxos ao crepúsculo cantando!”. Estes versos, como se confirma, acentuam esteticamente os desígnios literários patentes na “Introdução” de Luís de Montalvor; e, com a laboração temática que os caracteriza – o vago e a interioridade, a paisagem melancólica e crepuscular, a fluidez do tempo, as pedras raras, algumas ideias desconexas –, relacionam-se intimamente com a poética simbolista. Quanto a’O Marinheiro, esse “drama estático” de Fernando Pessoa, composto em 1913: não segue as leis do teatro representável, mas do teatro simbolista (teorizado por Mallarmé e praticado por Maeterlinck, nos seus “dramas estáticos”); não existe nele propriamente uma intriga, nem uma linearidade temporal; o espaço é indefinido, fictício; a morte encontra-se presente www.lusosofia.net


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de forma obsessiva; as [falsas] personagens vivem numa imobilidade quase total: as três veladoras não representam discursos individualizados, antes se constituem como uma única voz21 . E que dizer das marcas decadentistas e simbolistas em Alfredo Pedro Guisado, nos seus Sonetos, com a evocação de palácios, reis, princesas, sonhos, saudades e armaduras, da “Dor”, do “templo do [. . . ] Ser”, com a reinvenção das relações sintáticas e das analogias semânticas do uso corrente (“Os lagos dormem cisnes na alameda”, “Fita paisagens-Ânsia”. “Cismam príncipes-Cor”, “E desci Deus para me encontrar em mim. / Voei-me sobre pontes de marfim”)? Mas, então, no que diz respeito à revista Orpheu, o que provocou realmente o escândalo, que justifica falar-se do discurso de Orpheu como se de um discurso de “rutura” se tratasse? Foi a Ode Triunfal (em Orpheu 1), de Álvaro de Campos – texto sensacionista e futurista, muito próximo do registo oral, de clara provocação, constituída por versos libertos da estrutura melódica tradicional, abordando motivos considerados menos poéticos (as máquinas, os motores, as fábricas, os cartazes, os anúncios luminosos, os “progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos” [PESSOA, F., 1990: 69]). Essa dinâmica de ‘rutura” continuaria, aliás, com a Ode Marítima (em Orpheu 2). Foram os Frisos (em Orpheu 1), de Almada Negreiros, conjunto de textos que abordam a temática amorosa, e cuja [aparente e inquietante] ingenuidade os aproxima da expressão infantil. Desse modo, segundo David Mourão-Ferreira, colidiram com o horizonte de referências de um determinado público habituado à expressão ornamental (MOURÃO-FERREIRA, D., 1988: 22-23). Foi a escrita de Mário de Sá-Carneiro, irredutível, por vezes, aos códigos de então. Mário de Sá-Carneiro exacerba a linguagem pós-simbolista, reforçando a fragmentação do sujeito e apelando à inovação morfológica e sintática (os substantivos são adjetivos, os verbos intransitivos são transitivos. . . ), à elipse, à justaposição, ao esbatimento entre o real e a ficção, ao absurdo, à inovação semântica. Repare-se em alguns versos do poema Apoteose (em Orpheu 1): “Mastros quebrados, singro num mar d’Ouro”; “E em metade de mim hoje só moro. . . ”; “São tristezas de bronze as que ainda choro – / Pi21 Elas funcionam, segundo Manuel Gusmão, “como uma dimensão íntima de uma única voz” (GUSMÃO, M., 1986: 146).

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lastras mortas, mármores ao Poente. . . ”; “Lagearam-se-me as ânsias brancamente”; “Desci de mim”; “Findei. . . Horas-platina. . . Olor-brocado. . . ”; “Luar-ânsia. . . Luz-Perdão. . . Orquídeas pranto. . . ”. O que, porém, causou ainda maior escândalo foi o experimentalismo nos poemas Manucure e Apoteose (em Orpheu 2), que podemos considerar como tentativas formais de uma incorporação de pressupostos teóricos do Futurismo literário. Para além disso, no poema Manucure, o sujeito poético entusiasma-se com os signos que representam a vida moderna, procurando vê-los com os seus olhos “futuristas”, “cubistas” e “interseccionistas”, cantando as “estações” e os “cais de embarque, / Os grandes caixotes acumulados, / As malas, os fardos – pêle-mêle. . . [. . . ]”, desejando a união com esses signos da modernidade. E esta apologia do progresso e da civilização moderna continuariam na poesia Apoteose (em Orpheu 2) – através do elogio dos jornais, da indústria tipográfica, dos reclames e cartazes, dos anúncios publicitários, das marcas comerciais, ou através do recurso à técnica da justaposição e da colagem, procedimento estético que não terá sido positivamente apreciado pelo público de então. Mas outros textos contribuíram de igual modo para o escândalo de Orpheu, ao colocarem em causa a linguagem tradicionalmente aceite pelos “lepidópteros burgueses”. Também esses textos ajudaram a enquadrar o Grupo de Orpheu, disse-o Jorge de Sena, como um grupo inscrito na Literatura Portuguesa pela sua “tão lúcida iconoclastia” e “equilibradamente juvenil audácia de espírito” (SENA, J., 1984b: 103): E que dizer dos Poemas Inéditos (em Orpheu 2), de Ângelo de Lima, que, antecipando de certa forma o Surrealismo (pela exploração do mundo interior e pela imagética), se encontram marcados pela linguagem ilógica, suficiente para afetar o significado do poema? E mesmo o facto de Ângelo de Lima se encontrar internado num manicómio concorreu para a crítica oficial jornalística desvalorizar ainda mais o grupo e, por defeito, os textos publicados. Por seu lado, a prosa “vertígica” de Atelier (em Orpheu 2), de Raul Leal (com a complexidade do seu discurso, ao qual subjaz uma filosofia visionária e uma divinização da homossexualidade), e os quatro hors-textes futuristas de Santa-Rita Pintor (em Orpheu 2), blagueur célebre, conhecido pelo comportamento excêntrico (é célebre a sua fotografia, vestido de palhaço), ajudaram a cimentar a ideia geral “dos rapazes de Orpheu” como um grupo de personalidades excêntricas, à margem das convenções.

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Finalmente, importa não esquecer ainda a série poemática Chuva Oblíqua (em Orpheu 2), de Fernando Pessoa, aquele que seria o texto paradigmático do Intersecionismo – o ismo modernista que melhor enuncia a dialética entre unidade e diversidade do sujeito poético. Neste contexto, constitui um texto deveras importante, sobretudo pela relação estreita que detém com o fenómeno da heteronímia pessoana. Como se sabe, o desenvolvimento poético de Chuva Oblíqua assenta na representação simultânea de vários planos da realidade (terrestre / aquático, luz / sombra, horizontalidade / verticalidade, passado / presente, som / silêncio, entre outros), através de uma intercalação (inter + seccionismo) desses planos, sem que nenhum perca a sua identidade22 .

9. Em função também do que se tem vindo a dizer, facilmente se pode concluir acerca da feição polifónica da revista Orpheu (cujo levantamento e estudo já foi feito por Maria Aliete Galhoz [1984a: XXXIII-XLVIII]), especificidade que Almada considera ser “a característica mesma da modernidade actual” (NEGREIROS, J. A., 1993: 187). Como temos vindo a mostrar, nela encontramos, entre outros, textos com ligações explícitas às estéticas decadentista e simbolista, textos de índole intersecionista, de carácter sensacionista e mesmo de natureza futurista. Pode inclusivamente dizer-se que a vertente futurista de Orpheu se encontra bastante bem representada num outro texto, este de Almada Negreiros: A Cena do Ódio. Escrito para o número três da revista Orpheu, foi publicado somente no n.o 7 da revista Contemporânea (e, de forma integral, em 1958). Como se sabe, e de um ponto de vista estético-ideológico, este poema, o mais longo de Almada, tem ligações com o pensamento de Nietzsche e com o ideário futurista, fundamentalmente pelas atitudes de provocação, arrogância e de iconoclastia que o percorrem23 . Provocação contra quê e contra quem? Contra o convencionalismo de uma moral tradicional e contra uma coletividade portuguesa apática, no seu 22

Noutro local (VILA MAIOR, D., 2000: 28-31), já estudámos esta questão, apoiando-nos em bibliografia específica: PICCHIO, L. S., 1977; CENTENO, Y., 1978; GOTLIB, N. B., 1976; LIND, G. R., 1981: 62-68. 23 Cf. FRANÇA, J.-A., 1986: 197-202; D’ALGE, C., 1989: 105-117; AMARAL, A. L., 1990; CEIA, C., 2003.

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conjunto (aristocratas, intelectuais, anarquistas, gente humilde e simples, classe operária, políticos, jornalistas, etc.), mas, fundamentalmente, contra a figura do burguês – figura que, na sua opinião, concentra os defeitos nacionais. Qual o objetivo dessa invetiva? Em primeira e em última instância, contribuir para a revitalização sociocultural da coletividade portuguesa.

10. No já referido inquérito realizado a várias personalidades da Cultura Portuguesa sobre O significado histórico do “Orpheu”, Vergílio Ferreira retomava a seguinte questão: “Em que medida [. . . ] a lição de Orpheu se nos extinguiu ou não?”; e respondia, logo a seguir, considerando que “a poesia de hoje” é “dificilmente concebível [. . . ] sem tal lição” (FERREIRA, V., 1984: 24). Com base nestas palavras, e tendo em conta a leitura que procurámos sistematizar acerca dos fundamentos socioculturais, estéticos e literários do Grupo de Orpheu, cremos poder então compreender-se melhor de que forma o discurso dos órficos foi um discurso de subversão – apesar das ligações a um certo esteticismo finissecular. Com esse discurso – que, historicamente, encontra na Geração de 70 objetivos e manifestações semelhantes –, procurou-se essencialmente negar o convencional. Dessa forma, alguns elementos do Grupo de Orpheu favoreceram uma nova descontinuidade na Literatura Portuguesa, na tentativa de acordar a coletividade nacional e de afiná-la com os diapasões estético-literários europeus. Sem, todavia, perderem de vista o desejo “o mais difícil dos títulos portugueses: [. . . ] [serem] portugueses simplesmente!” (NEGREIROS, J. A., 1992: 60), os órficos acompanharam o movimento europeu de renovação da Literatura, exprimindo as tendências esteticamente mais ‘atrevidas’ de então do cenário europeu. E acrescente-se a isto o seguinte: a vertente vanguardista de Orpheu continuaria nos anos seguintes, sob a forma de atitudes e manifestações culturais de alguns dos elementos que em 1915 se “lançaram à aventura”. Tais atitudes e manifestações acabariam inclusivamente por se tornar factos de referência da história da nossa Literatura: o exemplo mais evidente foi a publicação da revista Portugal Futurista, em 1917. Aí, o discurso de subversão assumiu um relevo ainda maior, pela linguagem belicista, assim como pela dinâmica des-

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mistificatória e desmitificatória presente em muitos textos dos seus colaboradores. Entre estes, realce para Almada Negreiros (com o Ultimatum Futurista às Gerações Portuguesas do Século XX) e Álvaro de Campos (com o Ultimatum). Como quer que seja, o “corte epistemológico”, o golpe na estética gramaticalizada, a apetência pelo estranhamento estético-literário, a necessidade de épater le bourgeois, tudo isso já trazia a marca do Orpheu. Entretanto, a herança histórico-cultural e estético-literária do Orpheu continuaria entretanto pelas décadas seguintes e o Grupo seria plenamente reconhecido anos depois, sobretudo pela divulgação que dele faria o Grupo da Presença. É certo que, como afirma José Blanc de Portugal, Orpheu mais não fez afinal do que atualizar “componentes dos invariantes estéticos e literários que são de todas as épocas” (PORTUGAL, J. B., 1984: 21). Mas não é menos certo que do Grupo de Orpheu fazem parte inúmeros poetas que, posteriormente a 1915, assinariam a História da Literatura Portuguesa do século XX. A este propósito, é conhecido, por exemplo, a relação (sobretudo no plano da materialidade do texto) que, na década de 50, os nossos surrealistas manteriam com os órficos. Perfecto Cuadrado Fernández demonstra-o de forma inequívoca (CUADRADO FERNÁNDEZ, P., 1987: 79 ss), quando, na poesia dos surrealistas, encontra propriedades essenciais que derivam direta ou indiretamente de alguns dos elementos do Grupo de Orpheu: a conceção da poesia como forma privilegiada de autoconhecimento; o recurso ao humor subversivo e criativo; a utilização de um discurso complexo e ilógico (suficiente para afetar o significado do poema); a manifestação alteronímica; a perceção do poeta como figura à margem da sociedade. O próprio Fernando Pessoa reconheceria, entretanto, ao longo da sua vida, o lugar de destaque conquistado pelo Grupo de Orpheu na Literatura Portuguesa do século XX. E, em 1935, um mês antes de morrer, a revista Sudoeste publicaria um texto seu, onde, resumidamente, o líder do Grupo regista: Orpheu acabou. Orpheu continua (PESSOA, F., 1986b: 1334).

Com estas palavras, Fernando Pessoa rematava com consistência a noção segundo o qual o legado de Orpheu permaneceria. Continua, no fundo, a sustentar a mesma ideia que defendera vinte anos antes, quando, já então, alinhava o discurso do Grupo de Orpheu com o Discurso da posteridade. Nesse www.clepul.eu


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texto, garantia Pessoa que “«Orpheu» não acabou” e que “«Orpheu» não [. . . ] [podia] acabar”; e rematava: Na mitologia dos antigos, que o meu espírito radicalmente pagão se não cansa nunca de recordar, numa reminiscência constelada, há a história de um rio, de cujo nome apenas me entrelembro, que, a certa altura do seu curso, se sumia na areia. Aparentemente morto, ele, porém, mais adiante – milhas para além de onde se sumira – surgia outra vez à superfície, e continuava, com aquático escrúpulo, o seu leve caminho para o mar (PESSOA, F., 1993: 247).

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FERNANDO PESSOA E A PROJECÇÃO DA “PORTUGALIDADE” 1 Le monde intérieur et la réflexion de chaque individu sont dotés d’un auditoire social propre bien établi, dans l’atmosphère duquel se construisent ses déductions intérieures, ses motivations, ses appréciations, etc. (BAKHTINE, M.; VOLOSHINOV, V. N., 1981: 123)

1. As afirmações acima transcritas merecem, previamente, alguns comentários. Antes de mais, importa contextualizar esta citação: ela faz parte de um livro onde Mikhaïl Bakhtine, apesar de se acercar de diversas latitudes epistemológicas (a psicologia cognitiva, a pedagogia das línguas, a comunicação, a estilística, a crítica literária, a semiologia), proclama a necessidade de uma aproximação marxista da linguagem. Nesse sentido, e explorando as relações entre a linguagem e a sociedade, Bakhtine antecipa investigações no âmbito da sociolinguística, procurando, desse modo, responder a questões fundamentais: “Em que medida a linguagem determina a atividade mental?”; “Em que medida a ideologia determina a linguagem?” Para Bakhtine, parece aí indiscutível que, por um lado, todo o signo é ideológico (e a palavra, o signo ideológico por excelência, já que regista as mais pequenas variações das relações sociais) e que, por outro, a ideologia é um reflexo das estruturas sociais. Se, para além disso, partirmos deste nível de leitura para outro mais localizado (como a problemática do diálogo), poderemos verificar como este quadro conceptual se vai firmando como um espaço ainda mais frutígero: Bakhtine defende que toda a enunciação, fazendo parte de um processo de 1 Este estudo corresponde a uma conferência intitulada Lusofonia e Quinto Império, proferida em Outubro de 2009, no I Congresso Internacional Portugal/Brasil – Relações Linguísticas e Culturais, a convite do Departamento de Letras da Universidade da Beira Interior.


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comunicação ininterrupto, é um elemento de um diálogo, no sentido largo desse termo e conceito. O mesmo é dizer, por outras palavras, que a enunciação é, para este teorizador, a unidade de base da língua, quer se trate do diálogo exterior, quer do diálogo interior (do “monde intérieur”, da “réflexion de chaque individu”). Um pouco mais tarde, em 1930, aparece um texto intitulado “La structure de l’énoncé”. Neste estudo – que constitui uma tentativa do Círculo de Bakhtine para expor, de um modo sistemático, princípios da Teoria da Linguagem –, Voloshinov refere-se à bifacialidade do discurso humano (porque todo o enunciado exige a presença de um locutor e de um “auditor”); acaba, assim, por defender a natureza dialógica inerente ao “discurso íntimo”: [. . . ] les discours les plus intimes sont eux aussi de part en part dialogiques: ils sont traversés par les évaluations d’un auditeur virtuel, d’un auditoire potentiel, même si la représentation d’un tel auditoire n’apparaît pas clairement à l’esprit du locuteur (BAKHTINE, M.; VOLOSHINOV, V. N., 1981: 294).

Depois, analisando alguns trechos da obra de Gogol, considera que qualquer discurso é um “discours dialogique, orienté vers quelqu’un qui soit capable de le comprendre et d’y donner une réponse réelle ou virtuelle” (id.: 298). Ora, o significado de todas estas palavras parece-nos muito pertinente, fundamentalmente porque nelas é possível apreender uma conceção dialógica do sujeito, conceção essa que se desenvolve de acordo com a premissa segundo a qual cada sujeito falante vive inevitavelmente marcado pelo outro. Isto é: a prática discursiva é uma prática compassada com uma especificidade dialógica que tende para uma conceção de sujeito irredutível à ótica solipsista; para Bakhtine, o sujeito, enquanto produtor de enunciados, não é nunca uma entidade isolada e independente; é sempre, pelo contrário, uma entidade polifónica (porque alteronímica) e dinâmica (se a este termo creditarmos os postulados teóricos do dialogismo bakhtiniano). Por esta ordem de ideias, quando se refere ao “auditório social” e ao “auditor virtual”, Bakhtine/Voloshinov acaba, em primeira e última instâncias, por traduzir o “discurso íntimo” do sujeito falante como um “mundo interior”, em que a dinâmica do monólogo se encontra subordinada à dinâmica do diálogo, pelo que

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de desdobramento do eu num tu (o outro, o alocutário) essa dinâmica comporta. Como quer que seja, e quaisquer que sejam os termos avançados, o que, então, importa destacar é o facto de, em Bakhtine, a noção de dialogismo também aparecer entrelaçada com o princípio da alteridade absoluta, segundo o qual cada sujeito, porque plural (logo, descentrado), se constrói sempre no espaço do outro.

2. O problema, assim considerado, abre caminho para duas outras equacionações imediatamente complementares, relacionadas ainda com o dialogismo bakhtiniano: a que se relaciona com a orientação social do discurso e a que diz respeito à inevitável presença do outro em cada enunciado produzido. Num importante texto (“Les genres du discours”, de 1952-1953) que sintetiza as suas reflexões linguísticas dos anos 20, Bakhtine reflete sobre o dialogismo e o destinatário. Manifestando-se contra a linguística estrutural, defende o carácter social e intersubjetivo da linguagem e do pensamento; escreve: Un énoncé concret est un maillon dans la chaîne de l’échange verbale d’une sphère donnée. [. . . ] Un énoncé est rempli des échos et des rappels d’autres énoncés, auxquels il est relié à l’intérieur d’une sphère commune de l’échange verbale. Un énoncé doit être considéré, avant tout, comme une réponse à des énoncés antérieurs à l’intérieur d’une sphère donnée [. . . ]: il les réfute, les confirme, les complète, prend appui sur eux, les suppose connus et, d’une façon ou d’une autre, il compte avec eux (BAKHTINE, M., 1984: 298).

Como se pode ver, a importância da questão aqui evocada tem que ver com a tese que advoga que qualquer produção discursiva deve ser entendida enquanto prática dialógica inscrita no social, uma vez que qualquer enunciado é uma réplica (“une réponse”) a outros enunciados – cada um deles constituindo também, já por si, réplicas a outros enunciados. Sob esta ótica, deve considerar-se qualquer texto verbal como um enunciado que se relaciona sempre com outros textos, já que (nele sempre se inscrevendo o enunciado alheio) se configura, dialética e dialogicamente, como um espaço de pergunta-resposta. “Un énoncé”, escreve Bakhtine, “présuppose toujours des énoncés www.lusosofia.net


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qui l’ont précédé et qui lui succéderont; il n’est jamais le premier, jamais le dernier; il n’est que le maillon d’une chaîne et ne peut être étudié hors de cette chaîne” (id.: 355); e, mais tarde, enuncia de forma lapidar: “Je vis dans l’univers des mots d’autrui” (id.: 363). Ora, estes testemunhos de Bakhtine assumem aqui um significado especial. E valem sobretudo (no presente contexto) por nos permitirem retirar uma importante ilação: a que reenvia para a noção de responsividade ativa, noção esta também ela inseparável do termo e conceito dialogismo. Qualquer enunciado, defende Bakhtine, reclama a sua escuta, “veut l’audition” e, consequentemente, solicita um “julgamento de valor” (id.: 332). Por isso, qualquer enunciado pressupõe ab initio um destinatário, uma instância que o leia, que lhe responda, que o compreenda; e “compreender”, defende Bakhtine, “c’est mettre en rapport aux autres textes et penser dans un contexte nouveau” (id.: 384). Seguindo este raciocínio, pode dizer-se que, se é verdade que um enunciado é sempre uma réplica a outro enunciado, não é menos verdade que cada enunciado acaba, por isso mesmo, por solicitar um enunciado posterior. Mais: se o sujeito é uma entidade social e ideológica, ele constitui uma consciência plural, que (resultando da participação de uma pluralidade de sujeitos outros, concebidos, por sua vez, como “alteridades” em interação com o sujeito que enuncia um discurso) acaba por animar a transcensão e a amplificação dos sentidos. A partir destas noções gerais, confirma-se, portanto, o perfil dialógico subjacente à atitude do “destinatário” bakhtiniano, enquanto entidade que não só se envolve num processo de reiteração de sentidos, mas que também se afirma capaz de variavelmente transcender esse mesmo processo. Assim é encarada esta problemática, quando Bakhtine, situando a sua reflexão no contexto geral da “grande temporalidade” (BAKHTINE, M., 1984: 393), retoma e valoriza a necessidade de realçar prioritariamente a dinâmica de transcensão e consequente transformação do sentido, promovendo, deste modo, a noção que serve para atestar o diálogo entre passado, presente e futuro. De facto, depois de afirmar que “il n’y a pas de limites au contexte dialogique” e que os sentidos “passés eux-mêmes, ceux qui sont nés du dialogue avec les siècles passés, ne sont jamais stabilisés” (ibid.), Bakhtine acrescenta: Ils se modifieront toujours (se renouvelant) dans le déroulement du www.clepul.eu


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dialogue subséquent, futur. En chacun des points du dialogue qui se déroule, on trouve une multitude innombrable, illimitée de sens oubliés, mais, en un point donné, dans le déroulement du dialogue, au gré de son évolution, des sens seront remémorés de nouveau et ils renaîtront sous une forme renouvelée (dans un contexte nouveau). Il n’est rien qui soit mort de façon absolue. Tout sens fêtera un jour sa renaissance. Le problème de la grande temporalité (ibid.).

Naturalmente que, quando se trata do “sur-destinataire” bakhtiniano, estas considerações envolvem uma outra questão: esse “sur-destinataire” deve ser encarado como uma instância discursiva ativa, não só porque ele é um “participante” envolvido dialogicamente no ato comunicativo, mas também porque funciona como componente de um processo só concretizado pela sua implicação: ao decodificar um enunciado, esta entidade consente o exercício de um processo de compreensão, um processo dinâmico de ação e reação que comporta sentidos acrescentados. Nesta ordem de ideias, e relativamente a esta questão, torna-se necessário evidenciar o investimento subjetivo que, dentro de uma comunidade, particularize qualquer sujeito discursivo. Por essa ótica, é permitido equacionar esse sujeito de acordo com uma conceção dinâmica no que ao entendimento do Outro (enunciado, ou sujeito) diz respeito. “La compréhension elle-même est de nature dialogique dans un système dialogique”, defende Bakhtine; e continua: Comprendre c’est, nécessairement, devenir le troisième dans un dialogue [. . . ]. L’énoncé a toujours un destinataire [. . . ] dont l’auteur de la production verbale attend et présume une compréhension responsive. Ce destinataire, c’est le second [. . . ]. Mais, en dehors de ce destinataire (de ce second), l’auteur d’un énoncé, de façon plus ou moins consciente, présuppose un sur-destinataire supérieur (le troisième) dont la compréhension responsive absolument exacte est présuppos ée soit dans un lointain métaphysique, soit dans un temps historique éloigné (id.: 336)

3. Esta questão, em função do que ela naturalmente permite evocar, abre a possibilidade de a relacionarmos com uma perceção muito específica do papel do sujeito outro, entidade à qual (a partir da noção de “enrichissement”) www.lusosofia.net


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deve ser atribuída um sentido dialético, e inequivocamente dinâmico, na relação que com cada eu, ou sujeito, variavelmente certifica. Nesse sentido, somos de novo conduzidos à necessidade de orientarmos a ideia deste outro para um quadro conceptual circundado pelo princípio de que este outro é sempre necessário para que qualquer significado preliminar se amplifique, e se multiplique. Como é evidente, não interessa aqui devolver exclusivamente este princípio ao sentido existencialista – no qual, em última instância, poderiam entroncar os pressupostos que se insinuam relativamente ao papel do outro na definição, verificação e enriquecimento da consciência individual de cada sujeito. Escreve, mais uma vez Bakhtine, na sua Esthétique de la création verbale: [. . . ] l’homme a un besoin esthétique absolu de l’autre, de sa vision, de sa mémoire, qui le rassemble et l’unifie et qui, seule, est susceptible de lui procurer un achèvement extérieur. Notre individualité n’aurait pas d’existence si l’autre ne la créait (BAKHTINE, M., 1984: 55).

Como se vê, as palavras citadas admitem o reconhecimento da necessidade do outro para a completa perceção que cada sujeito possa estética e afirmativamente modelar de si – interpretação que podemos cotejar, aliás, com as teses de Carlos Bousoño, segundo as quais individualismo e autoconsciência se encontram ligados, uma vez que o Individualismo se caracteriza quer como a consciência que cada sujeito tem de si mesmo, quer como o sentimento afirmativo do homem. E independentemente do alcance teórico para onde estas noções possam reenviar, o que nos parece importante para já é sublinhar a configuração do outro como um atributo fundamental do eu, ou, mais exatamente, como uma entidade necessária para a construtividade estética de cada sujeito. Por isso, Bakhtine doutrina que compreender o mundo dos outros “est la condition première d’une approche esthétique du monde” (id.: 121). A partir daqui, parece-nos possível consolidar as noções de consciência e subjetivação, sobretudo quando sob a égide dessas noções se encontram três convicções: a de que ao sujeito se deve subtrair a marca de ausência (conferida, segundo Alain Badiou, pela psicanálise lacaniana); a de que o sujeito deve ser postulado como uma entidade com possibilidade para interagir, conscientemente, com diversos níveis de construção de sentido (o do eu, o dos outros, o do acontecer histórico e o que advém da ‘rutura” com o sentido www.clepul.eu


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estabelecido); finalmente, a de que a consciência aponta etimologicamente tanto para a interioridade subjetiva, como para a relação de cada sujeito com outros sujeitos2 . Impõe-se, assim, perceber de que forma cada sujeito deve ser entendido numa relação imediata com o ato de “autorreferenciação”. E, exatamente pelo que de desdobramento alteronímico essa “autorreferência” implica, assim se concretiza uma outra premissa fundamental, que contempla o sujeito integrado num processo de “referência”, cujo enquadramento estético e/ou existencial se aproxima quer da conceção de exotopia, de Bakhtine (BAKHTINE, M., 1984: 36 ss), quer da conceção de identidade subjetiva, de Morin (MORIN, E., 1995: 74). De certa maneira, esta questão, assim formulada, relaciona-se com a premissa fundamental bakhtiniana no que ao sujeito diz respeito: a que se desenvolve de acordo com a premissa segundo a qual o sujeito vive em contínua atividade com o(s) outro(s), com o contexto que o rodeia e com o passado. Por isso, Bakhtine escreve: Les signes ne peuvent apparaître que sur un terrain interindividuel. [. . . ] Il est essentiel que ces [. . . ] individus soient socialement organisés, qu’ils forment un groupe (une unité sociale): c’est uniquement à cette condition que peut se constituer un système de signes. Non seulement la conscience individuelle ne peut rien expliquer, mais au contraire elle doit être expliquée elle-même à partir du milieu idéologique et social (BAKHTINE, M.; VOLOSHINOV, V. N., 1977: 29-30).

Não deixa de ser sintomático, nestas palavras, o facto de Bakhtine se referir à inscrição de um “système de signes” no palco social. Deste modo, condicionando a constituição da linguagem pela sujeição do individual ao coletivo, Bakhtine defende que a conjugação entre uma “conscience individuelle” e o “milieu idéologique et social” não pode ser compreendida dentro de uma conceção idealista e unicamente psicologista do sujeito. “La conscience”, escreve também, “ne devient conscience qu’une fois emplie de contenu idéologique (sémiotique) et, par conséquent, seulement dans le processus d’interaction sociale” (id.: 28). Justifica assim Bakhtine a “conscience individuelle” como “un fait socio-idéologique” (id.: 30 e 46). 2

Cf. MACHADO, J. P., 1990: 212; CHÉDIN, J.-L., 1997: 23-26

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Contudo, note-se que as reflexões desenvolvidas, neste contexto, por Bakhtine estão estritamente ligadas ao seu posicionamento contra a redução do sujeito apenas aos limites da sua interioridade, num equacionamento epistemológico com nítidos recortes idealistas, próximos das teorias de expressão. Essas teorias defendem a existência de um certo “dualisme entre ce qui est intérieur et ce qui est extérieur, avec une primauté certaine du contenu intérieur” (id.: 121); essas teorias, Bakhtine critica-as, acautelando-se contra uma excessiva valorização da interioridade do sujeito e advogando o palco pluridiscursivo da cultura e da sociedade, com o qual o sujeito se relaciona diversamente de forma bivalente: ou pela afirmação da diferença individual, ou pela inter-relação com a “subjetividade coletiva”. Quaisquer, entretanto, que seja a conceituação avançada, o que não se pode negar é, nessa inter-relação, a importância da alteridade e da exotopia. Entretanto, no estudo “L’Auteur et le Héros” (1920-1930), Bakhtine aborda, no plano da produção estético-literária, a relação que existe entre o criador e os seres por ele criados (entre “auteur” e “héros”) – um dos temas centrais, aliás, do seu pensamento. Nesse âmbito, defende que qualquer personagem criada é vista pelo seu criador sob uma perspetiva exotópica: “La conscience d’un auteur est conscience d’une conscience, autrement dit, est une conscience qui englobe et achève la conscience du héros et de son monde, qui englobe et achève la conscience du héros à la faveur de ce qui, dans le principe, est transcendant à cette conscience et qui, immanent, la fausserait” (BAKHTINE, M., 1984: 34); e, noutra passagem, completa este raciocínio: “Toute l’entreprise n’est possible qu’à la faveur de la position exotopique au héros qu’occupera l’auteur-contemplateur, une position empreinte de tension et d’amour” (id.: 97). Nesta ordem de ideias, e ainda neste cenário, a relação artística entre “auteur” e “héros” revela-se como um prolongamento da relação eu-outro, no âmbito das relações humanas, em que um dos dois elementos, ao perspetivar exotopicamente o outro, o vê como um todo e lhe dá sentido. O mesmo e dizer que a alteridade (assim conceituada por Bakhtine) permite que a relação eu-outro se torne ativa, como, aliás, escreve: “[. . . ] l’homme a un besoin esthétique absolu de l’autre, de sa vision, de sa mémoire, qui le rassemble et l’unifie et qui, seule, est susceptible de lui procurer un achèvement extérieur”. Mas também Fernando Pessoa refletiu sobre esta questão. O poeta da multiplicidade vocal escreveu, a este propósito, textos interessantíssimos sowww.clepul.eu


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bre o modo como cada sujeito se articula com a sociedade em que se encontra inserido. Lembre-se, por exemplo, um texto de 1924, intitulado A influência da Engenharia nas artes racionais (PESSOA, F., 1986c: 122), onde considera que a articulação eu-outro se desenvolve pelo equilíbrio entre duas “forças” (a “força” de “integração” e a “força” de “desintegração”), dependendo fundamentalmente desse equilíbrio a vitalidade daquela articulação. E o mesmo Pessoa confirmará essa ideia, quatro anos depois, no folheto O Interregno, onde justifica a necessidade de se considerar a vida social em função do equilíbrio das forças de “integração” e de “desintegração”, equilíbrio esse que é conseguido quando ambas as forças, ainda que diferentes, agem com igual intensidade nas direções opostas para que apontam (id.: 811-812). A partir daqui, somos imediatamente conduzidos a duas outras questões que com esta se relacionam: a que concerne ao problema da identidade nacional e a que diz respeito à dimensão nacionalista da Mensagem, de Fernando Pessoa.

4. Caberá perguntar desde já: quais os contornos que emolduram o termo e conceito identidade nacional? Esta questão (como, aliás, já defendemos noutros contextos) tem a sua razão de ser, quando se sabe: primeiro, que a relação entre cada sujeito com o outro coletivo é convalidada quer pela unidade na diferença, quer pela diferença na unidade; segundo, que a própria conceção de identidade individual é devedora da noção de pluridiscursividade, pois cada indivíduo, inserido numa coletividade, é sempre um sujeito coletivo; terceiro, que a identidade nacional existe em devir, já que – sendo a insígnia de um povo, o conjunto de atributos que o caracteriza (do ponto de vista bio-psicológico, cultural e histórico-literário) – marca um processo amplo de receção, transmissão e/ou revisão de um passado comum, de ação no presente, alvejando o futuro; finalmente, que a identidade nacional se fundamenta numa memória histórico-cultural comum. O mesmo é dizer que a identidade nacional se fundamenta num património histórico coletivo; numa comunhão de vivências culturais; em mitos, crenças, ideias e símbolos comuns; na difusão de narrativas exemplares que apoiam as representações coletivas; na mitificação e/ou mistificação de figuras históricas marcadas exemplarmente por elementos psicológicos e sentimentos interindividuais –

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mistificação e/ou mitificação essas tanto mais adscritas quanto maior o seu favorecimento afetivo. E se tudo isto ajuda a perceber e a justificar alguns dos fundamentos que estão na base da constituição da identidade nacional, serve também para ilustrar um leque de fatores que, por dizerem respeito a um longo processo cultural que resgata ao passado o capital identitário de uma comunidade, imprimem ao coletivo nacional a territorialização ideológico-cultural que existe entre os indivíduos dessa comunidade. Para além disto, poder-se-ia ainda acrescentar que a mais-valia deste enraizamento é atestada ainda por uma consciencialização linguístico-cultural por parte de todos os elementos que ocupam, e dizem, o espaço verbal dessa cultura, assim se conformando de uma forma mais clara (pelo voluntarismo que é inerente a essa atualização e a esse preenchimento) um imaginário comum; afinal, não é a língua uma entidade em evolução permanente, ou, como escreveu Eduardo Lourenço, “un corps vivant [. . . ], mais aussi immatériel de celui, individu ou peuple, qui parle” (LOURENÇO, E., 1994: 40)? Note-se que o ato de consciencialização cultural se verifica por vezes de forma paradigmática, quando a dinâmica que o caracteriza é atualizada em textos considerados, a este nível, importantes: um deles é a Mensagem, onde a representação literária da identidade nacional ganha uma especial operacionalidade, sobretudo pelo facto de Pessoa ajustar a consciencialização da história portuguesa ao investimento estético-ideológico, percebido nas virtualidades interpretativas subjacentes a esse investimento: virtualidades sagradas; valor intemporal; dimensão nacionalista; discursividade de índole messiânica; disposição exortativa; reanimação do mito sebástico; providencialismo; Quinto Império.

5. Constituída por um conjunto de poemas escritos entre 1913 e 1934, a Mensagem reenvia desde logo para a dimensão sagrada e nacionalista que Pessoa lhe pretende conferir. E as frases em latim no início e no final da Mensagem (logo, em lugar de destaque) abonam a esse favor, como prova a epígrafe Benedictus Dominus Deus Noster Qui Dedid Nobis Signum (“Bendito Deus Nosso Senhor Que Nos Deu O Sinal”) e as últimas palavras, Valete, Fratres (“Saúde, Irmãos”). Com isto pretenderá Pessoa justificar a sua função de

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“mensageiro”, de “receptor privilegiado” de uma mensagem divina que por ele será transmitida à “tribo”, aos portugueses (LOURENÇO, A. A., 1994: 23). Entretanto, ainda que de alguma forma encerre a noção de coletividade e que compreenda um valor inequivocamente intemporal, a Mensagem de Pessoa não é uma glorificação incondicional do Nacionalismo pan-individualista, de matriz totalitária. Pelo contrário: Pessoa concebe a Pátria como logos, topos e kronos, onde se realizaria totalmente o ser português “de todas as maneiras”. Como quer que seja, e acima de tudo, trata-se de um texto que transcende o nacionalismo de ‘vistas curtas’ e interesses mesquinhos; e, aí, o que está em causa é não só uma crítica tácita ao presente e um enaltecimento visível do passado português, mas a proclamação de um futuro radioso para os portugueses, com a concretização profetizada do Quinto Império. Encontramos, por vezes, é certo, uma crítica ao passado expansionista português. Contudo, o nacionalismo da Mensagem de Pessoa deve ser equacionado, acima de tudo, numa dimensão virada para o futuro; para ele, o passado de Portugal é evocado na Mensagem “em função do futuro” (COELHO, J. P., 1977: 201); do que se trata, no fundo, é do destino de um povo no devir [in]temporal. Entroncando nas teorias proféticas das “Sete Idades” (de Santo Agostinho), das “Três Idades” (de Joaquim de Flora) e dos “Cinco Impérios” (do Profeta Daniel), a Mensagem de Pessoa poderá igualmente ser entendida como um texto onde se reconhece a referência céltica, arturiana, judaico-messiânica e templária, mas também a orientação do discurso utópico, ao cantar profeticamente o regresso de alguém que ressurgirá e conduzirá Portugal à constituição do Quinto Império. Ora, o Sebastianismo pessoano é desenvolvido num contexto ideológico-cultural marcado que foi também pelo Saudosismo, que, mitificando a figura do rei D. Sebastião (a imagem do Pai Perdido), desejou, a seu modo, corporizar o Sebastianismo numa entidade providencial que fosse capaz de fazer sair o país das crises em que vivia mergulhado. Por aqui se pode confirmar como, com raízes na mitologia bretã (onde o Rei Artur regressará um dia para reanimar o espírito que cingia a Távola Redonda) e na religião judaico-cristã (onde Jesus, depois do Apocalipse, virá para a Libertação final), o Sebastianismo obedece, no essencial, a uma visão providencialista e escatológica da História. E os nossos modernistas, essencialmente Fernando Pessoa e Almada Negreiros, diversamente refletiram sobre isso. Almada, por exemplo, na sua Histoire du Portugal par cœur (de 1919), escreveu: www.lusosofia.net


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Dionísio Vila Maior Un jour, Dom Sebastião, notre Roi le plus jeune, notre plus beau Roi, rassembla toute la jeunesse Portugaise pour accomplir la grande Victoire. Mais Dieu garda cette Victoire, en attendant. . . en attendant demain. . . en attendant toujours demais. . . . . . Nous attendant, nous autres, les Portugais d’aujourd’hui! (NEGREIROS, J. A., 1990: 119)

Por sua vez, Pessoa, num texto sem data, onde reflete sobre o Sebastianismo, refere-se a um dos seus pontos negativos: o facto de se esperar passivamente pela vida do representante do Quinto Império: O defeito, a fraqueza, do sebastianismo tradicional reside, não em ele, senão em a deficiência e a fraqueza de seus intérpretes. Ignorantes, decadentes, ensinados a crer pelo espírito católico, esperavam de fora o Encoberto, aguardavam inertes a salvação externa. O Encoberto, porém, é um conceito nosso; para que venha, é preciso que o façamos aparecer, que o criemos em nós através de nós (PESSOA, F., 1993: 228).

Não temos como objetivo desenvolver a questão (muito mais complexa) do Sebastianismo3 . Interessa, no entanto, retirar a ilação que estas palavras permitem, ou seja, a de que a projeção do coletivo na figura do Encoberto deve beneficiar de um dinamismo cuja eficácia dependerá do grau e da intensidade com que cada indivíduo manifeste essa projeção. Quer isto dizer, por outras palavras, que, num plano pragmático, os sinais visíveis da Ideia daquele que trará a solução para problemas com que a sociedade se defronta dependem exclusivamente de cada sujeito, da sua força de vontade, da sua atitude perante essa Ideia, da ânsia colocada por cada um nessa atitude. E continua, pouco depois, corroborando os parâmetros com que enfoca tal problemática: Deve cada um de nós fazer por em si realizar o máximo que pode de semelhante ao Desejado. A soma, a confluência, a síntese por assim dizer carnal dessas ânsias será a pessoa do Encoberto (ibid.). 3 Sobre esta questão já se manifestaram variavelmente outros autores: QUADROS, A., 1982; QUADROS, A., 1983: 75-109; QUADROS, A., 1987; COELHO, J. P., 1992: 60-62; ANTUNES, A., 1983: 433-476; SEABRA, J. A., 1996: 195-207; MATOS, M. V. L., 1993: 253-260, 274-276; LOURENÇO, A. A., 1994: passim; GOMES, M. A., 1993; GONÇALVES, M. M., 1990; LOUREIRO, F. S., 1984: 56-60.

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A questão assim enunciada abre a possibilidade de a relacionarmos com um dos mitos representados na Mensagem: o “mito” do Quinto Império: [. . . ] passados os quatro Tempos do ser que sonhou, A terra será teatro Do dia claro, que no atro Da erma noite começou. Grécia, Roma, Cristandade, Europa – os quatro se vão Para onde vai toda idade (PESSOA, F., 1986a: 1162).

As palavras citadas são muito sugestivas no que concerne ao enquadramento do problema de uma ‘idade’, de um “tempo”, que terá o seu lugar após quatro “eras” de ascendente grego, romano, cristão e europeu. É desta forma que Pessoa localiza o ‘seu’ Quinto Império – acabando por realçar, e justificar, no registo poético, a importância conferida a um estado último de transcendência e perfeição da civilização. Esse estado último, grandioso (ideia compatível com o mito sebastiânico), acaba, no fundo, por compreender a valorização de um ideal cultural, ao atribuir-se justamente a esse “tempo” de ‘claridade’ uma essência espiritual e universalista, onde prevalecerá o sentido linguístico e o sentido estético-literário.

6. Com estas palavras, pretende-se sublinhar um testemunho que, ainda que visando repetidamente a crise de identidade nacional portuguesa, nunca deixou de, à sua maneira, contribuir para que se criasse uma nova consciencialização de identidade coletiva: essa consciencialização assentaria na transcensão do passado (embora lembrando-o) e na construção de um novo estádio cultural, à custa da reformulação da consciência coletiva. Dois dos principais modernistas portugueses, Fernando Pessoa e Almada Negreiros, reivindicaram essa reformulação, através de manifestos literários, cartas, artigos jornalísticos, ensaios, entrevistas, etc. Nunca postergaram, contudo, a noção segundo a qual cada “caso individual” só ganharia se se manifestasse num registo de diferença em relação à coletividade. Como quer que seja, em todos os textos em que, neste nível, se expressaram, emergem www.lusosofia.net


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alguns dos atributos menos positivos com que avaliaram o homem português: o sentimentalismo piegas, a abulia, o amadorismo, a calúnia, a grosseria, a carência de uma unidade coletiva e o gosto acrítico por tudo o que é estrangeiro. Contudo, e por outro lado, Pessoa e Almada também tiveram em conta algumas das qualidades do homem português. Só que o núcleo central do pequeno leque de qualidades que nele encontram é limitado cronologicamente, pelo facto de praticamente se restringirem a algumas etapas de um tempo passado: as Descobertas e a progressiva construção da nacionalidade portuguesa – etapas estas onde (aí, sim) o homem português teria demonstrado todas as qualidades do homem de exceção: vitalidade, coragem, honra, integridade, cosmopolitismo. Qualquer que seja, todavia, o enquadramento desta problemática em Pessoa e Almada, há que reconhecer que ela se tende a resolver à custa de uma reelaboração crítica da atitude passivamente melancólica e contempladamente nostálgica do português face às Descobertas. “A tradição, o único valor positivo da tradição”, afirma Almada em 1935, “é o de servir com os seus exemplos históricos a iniciativa individual dos atuais de uma mesma civilização”; e remata: A descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama mais do que a Portugal pertence ao século XV. O feito ficou exactamente no século XV (NEGREIROS, J. A., 1992: 77)

Como quer que seja, Pessoa e Almada nunca deixaram de reconhecer ao homem português três atributos claramente axiais: sonhador, poeta e ‘amante’ de Portugal por onde quer que vá. Por isso, o soldado desconhecido (que luta e morre servindo o seu país), o emigrante (que leva sempre Portugal no coração), os heróis da História de Portugal, o povo humilde, algumas mulheres portuguesas e o poeta (que tem a possibilidade de melhor aceder aos sentimentos universais) serão aqueles que melhor representam o lado positivo do Povo português. Por isso também, D. Nuno Álvares Pereira, o Infante D. Henrique, Gago Coutinho, Sacadura Cabral e os poetas do Orpheu eram referidos como exemplos e modelos daquele que deveria ser o homem português de qualidade excecional. Outros desenvolvimentos poderiam ainda ser concedidos ao perfil do homem português e à figuração da identidade nacional; sobre isso já profusamente se manifestaram Eça, Ramalho, Teófilo Braga, Oliveira Martins, Paswww.clepul.eu


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coaes, Agostinho da Silva e Eduardo Lourenço. Como quer que seja, algumas perguntas são obrigatórias: será desacertado afirmar-se que o homem português foi lutador na Reconquista, aventureiro e corajoso na aventura dos Descobrimentos, sentimental no ultrarromantismo, mordaz e satírico nos anos 70 do século XIX, permissível, sempre, à influência estrangeira, agónico e rebelde na aventura futurista? Estaremos a confundir critérios de identidade nacional com critérios de história ou de história literária? Será o homem português isso tudo? Afinal de contas, foi Pessoa quem afirmou em 1923: O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada (PESSOA, F., 1986c: 700).

Não terá o homem português percorrido afinal dialogicamente, ao longo da sua história literária, e em relação ao outro estrangeiro, os caminhos definidos quer por uma maior abertura (como aconteceu com o Renascimento, o Classicismo, o Romantismo inicial, o Realismo, o Naturalismo, o Simbolismo, o Neorrealismo, as Vanguardas Históricas), quer por um maior ensimesmamento (como aconteceu com o Neogarrettismo, o Saudosismo, o Integralismo Lusitano, etc.)?

7. Em última análise, tudo isto reenvia para uma dinâmica dialógica (predicado fundamental da identidade nacional), isto é, para o consentimento do sentido teleonómico de uma comunidade, por tal se entendendo a atenção profunda concedida ao diálogo entre passado, presente e futuro, entre “nacional e estrangeiro”, entre o sujeito individual e a coletividade, entre o eu e o outro. Almada Negreiros evidencia esta ideia, quando, em 1930 escreve a peça dramática Protagonistas. Aí, o Protagonista, depois de significativamente revelar ao Público que “Han matado el protagonista de la civilización” e que “Han matado el Hombre!” (NEGREIROS, J. A., 1993: 183), enuncia uma tirada a este nível verdadeiramente consequente: En esta época de los números y donde todo se cuenta por millones el problema sigue siendo la unidad. La unidad de todos y la unidad de cada individuo que son afinal la misma unidad. Uno mas uno igual www.lusosofia.net


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Dionísio Vila Maior a uno. Son dos las personalidades que buscan la unidad. Una es la personalidad colectiva y otra la individual. La colectividad jamás será perfecta si no es también cada individuo. Confundir la colectividad con la unidad total es el grave error de los Estados. No. La unidad es igual a la personalidad colectiva más la personalidad de cada individuo. Esta es señoras y señores: La tragedia de la unidad (id.: 184).

Importa sublinhar nestas palavras alguns aspetos: em primeiro lugar, a dimensão de certo modo autónoma quer do sujeito individual, quer da coletividade, quando o Protagonista diz que, na busca da unidade, há “dos [. . . ] personalidades”, referindo-se, por um lado, à “personalidad colectiva” e, por outro, à “personalidad [. . . ] individual”. Contudo, a procura da “unidade perdida” resultante do “progreso” deve apoiar-se na inter-relação sujeito individual/coletividade, sem que com isso se identifique o todo com a mera soma das partes. O mesmo é dizer que à relação entre o sujeito individual e a coletividade, entre o eu e os outros, deve presidir uma ideia: há características do todo, da sociedade, e características de cada uma das partes, de cada um dos sujeitos, que se diferenciam, mas que, por uma inter-relação, se complementam. Porém, cada uma das duas “personalidades” (a “colectiva” e a “individual”) nunca deve deixar de reconhecer e aceitar as diferenças inerentes à outra; diz o Protagonista que “Confundir la colectividad con la unidad total es [. . . ] grave error”. E ainda decorrendo desta questão, encontramos ainda uma outra: a que diz respeito à necessidade de cada sujeito estar perfeitamente consciente do facto de a sua própria identidade, implicando uma complementaridade com a “personalidade colectiva”, se encontrar quer na identidade com o todo, quer na diferença em relação ao todo, quer ainda na capacidade de se individualizar como idêntico a si mesmo (“La colectividad no pude progresar encuanto cada individuo no esté enterado de lo que es lo suyo y cual lo de la colectividad”). Perguntar-se-á: que relação existe entre esta questão e o título deste trabalho? Responder-se-á: a mesma relação que procure encontrar no desígnio relativo de uma alteridade absoluta o princípio segundo o qual o eu se configura identitariamente no espaço de um Outro – seja no domínio estético-literário, seja no espaço intersubjetivo da linguagem e do pensamento, seja no palco da experiência cultural –, resultando desse encontro o acrescentamento do próprio sujeito. www.clepul.eu


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A este propósito, relembre-se um fragmento de uma “novela policial” (que deveria chamar-se O Caso Vargas) da série do investigador Abílio Quaresma (personagem de um outro eu de Fernando Pessoa, Abel Botelho). Aí se lê o seguinte: “O homem [. . . ] tem uma vida psíquica ou mental composta de dois elementos opostos”: “[. . . ] «os sentidos», pela qual [sic] entra em contacto com o mundo chamado externo, dele toma conhecimento, e com ele se relaciona” e o “que vai desde a consciência de si à inteligência abstracta, pelo qual entra em contacto com o mundo a que podemos chamar interno – o mundo das suas memórias, das suas imaginações, das suas ideias, do seu ser, como o pensa e o sente” (PESSOA, F., 1986b: 478). Os problemas centrais encontram-se, como se pode ver, na entidade sujeito, no seu posicionamento perante o exterior, bem como na colocação dos “sentidos” e dos “elementos” que vão “desde a consciência de si à inteligência abstracta”, pelo qual o eu acede ao seu mundo interior; porém, logo a seguir, adverte: Ambos estes elementos são necessários à vida do homem, e ambos eles são necessários em igual porção [. . . ]. Para, porém, haver equilíbrio entre duas coisas, é preciso que entre elas haja uma relação (id.: 479).

A relação destes dois “elementos” em cada sujeito não se compadece, portanto, com a sua separação estanque. Pelo contrário: Fernando Pessoa reconhece, como se vê, a articulação e o “equilíbrio”. É este sentido que, em primeira e última instâncias, encontra o seu rumo conclusivo na noção segundo a qual a relação entre eu e o Outro se categoriza, é certo, na consciência de que identidade é distinção, mas também de que a identidade não é possível sem a alteridade. Em última análise, é, afinal, para esta ideia que mediatamente reenviam as palavras do heterónimo pessoano Álvaro de Campos, quando, no poema Reticências, resolve esta questão: Os outros também são românticos, Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres, Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar, Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos, Os outros também são eu (PESSOA, F., 1986a: 982).

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MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO: “MORRE JOVEM O QUE OS DEUS AMAM”1 1. Considerado como uma das figuras mais importantes da Geração do Orpheu e da literatura portuguesa, Mário de Sá-Carneiro nasce em 19 de Maio de 1890, em Lisboa. Dois anos depois, morre sua mãe, facto que teria consequências na sua vida futura. Em 1899, ano em que morre sua avó Cacilda, Sá-Carneiro escreve pequenas peças de teatro. Habita na Quinta da Vitória, em Camarate. No ano seguinte, ingressa no Liceu do Carmo. Em 1902, começa a escrever poesia. Em 1904, com seu pai, visita Paris e Itália. Regressa a Lisboa, redige e manda imprimir O Chinó, jornal “académico com pretensões a humorístico” (que seu pai fará mais tarde suspender, reprovando o seu carácter demasiado satírico). Em 1905 e em 1906, faz traduções (de Victor Hugo, Goethe, Heine, Schiller). A 15 de Maio de 1907, Mário de Sá-Carneiro participa numa récita organizada por Mário Duarte e pelos alunos do liceu de S. Domingos, a favor das vítimas do incêndio da Rua da Madalena. A peça é D. César de Bazan, representando Sá-Carneiro o papel de Marquês de Montefior. Passa de novo as férias em Paris, com o pai, de onde regressam em Outubro. Escreve outros poemas, que, no entanto, não publicará. Colabora, nos dois anos que se seguem, na revista Azulejos, onde publica poemas e contos. Em 1909, ano em que ingressa no Liceu Camões, começa a escrever a peça Amizade, de parceria com Tomaz Cabreira Júnior, peça que é terminada em Abril do ano seguinte. Em 1911, a 9 de Janeiro, Tomaz Cabreira Júnior suicida-se, com um tiro, nas escadas do Liceu; chocado com a morte do amigo, Sá1

Este estudo esteve na base de uma Acção de formação de Professores, que orientámos em 2000, na Universidade Aberta, tendo integrado um Manual de apoio didáctico: Pessoa, Sá-Carneiro e Almada: Representação Estético-Ideológica, Lisboa, Universidade Aberta, 2000. A leitura deste texto deverá, por isso, ter em conta os objectivos que preexistiram à sua elaboração.


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-Carneiro escreve um poema, A um suicida, à memória do amigo. Termina o curso dos Liceus e, em Outubro, matricula-se na Universidade de Coimbra, na Faculdade de Direito; um mês depois, após pedir ao pai que o retire de Coimbra e do curso, regressa a Lisboa. Publica, em 1912, Princípio (novelas). Conhece, entretanto, Fernando Pessoa (e outros companheiros com quem lançaria a revista Orpheu em 1915), e, em Outubro do mesmo ano, parte para Paris, onde se inscreve no curso de Direito. Apaixona-se pela cidade luz, frequentando cafés, onde escreve. Antes do final do ano, deixa de ir às aulas. Ainda no mesmo ano, começa a correspondência com Pessoa. Em 1913, recomeça a escrever poesia, regressando ainda a Lisboa, em Junho. Publica, no final do ano e datados do ano seguinte, os volumes A Confissão de Lúcio (novela) e Dispersão (primeiro e único livro de poemas que publica). No ano de 1914, programa a saída de uma revista literária, com a colaboração daqueles que viriam a fazer parte de Orpheu. Regressa a Paris no início de Junho. Entre Junho e Agosto, escreve frequentemente a Fernando Pessoa, a quem confessa a sua “crise”. Após a declaração da guerra, sai de Paris, no final de Agosto, passa por Barcelona e vem para Lisboa, em Setembro. Reencontra os amigos, nas Brasileiras (do Chiado e do Rossio), no Café Montanha, no Café Martinho, no Martinho da Arcada e no Restaurante Irmãos Unidos. Em Outubro, reside na Quinta da Vitória, em Camarate, vindo ocasionalmente a Lisboa. Em 1915, prepara-se a revista Orpheu, que sai em Abril (o n.o 2 sairá em Julho, tendo como diretores Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro), provocando grande escândalo na vida cultural. No mesmo mês, publica o volume Céu em Fogo. Em Agosto, encontra-se de novo em Paris, agravando-se a sua crise existencial. Resolve que o n.o 3 da revista Orpheu não sairá: seu pai pagara a conta do número anterior e não aprovava a publicação do seguinte. A crise interior de Sá-Carneiro aprofunda-se. Em 1916, escreve com frequência a Fernando Pessoa, suplicando-lhe que continue o contacto, e que lhe envie notícias (note-se que as cartas de Fernando Pessoa dirigidas para o Hotel de Nice desapareceram). Escreve, entretanto, Aqueloutro e Fim. Numa longa carta a Pessoa, Sá-Carneiro confessa a sua crise profunda, relacionada com o casamento do pai com uma mulher que era conhecida dos cabarets da Baixa. Mário de Sá-Carneiro conhece entretanto uma mulher, por quem terá nutrido grande afeição, gastando com www.clepul.eu


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ela grandes quantias de dinheiro. A companheira parece partilhar os mesmos sentimentos por ele, tendo procurado inclusivamente evitar um final trágico de Sá-Carneiro. Esse fim teria definitivamente lugar em 26 de Abril, no Hotel Nice, onde se suicida com estricnina2 .

2. Antes de mais, torna-se necessário lembrar que o discurso epistolográfico de Mário de Sá-Carneiro (fundamentalmente as cartas enviadas a Fernando Pessoa) não pode passar despercebido, quando nos debruçamos sobre o autor da Confissão de Lúcio. Com efeito, as cartas que Mário de Sá-Carneiro envia ao amigo, escritas entre 20 de Outubro de 1912 e 18 de Abril de 1916, constituem não só um dos mais importantes testemunhos acerca quer de Orpheu, quer do meio social e literário parisiense, como ainda (facto normalmente relacionado com o texto epistolográfico) um vigoroso testemunho da evolução estética de Sá-Carneiro, das suas crises interiores, das suas incertezas, das suas dúvidas. Nessas cartas, Sá-Carneiro não só pede constantemente a Pessoa a opinião deste acerca dos seus poemas, contos, novelas, de problemas, inclusivamente, do foro existencial e psicológico, mas também analisa criticamente algumas produções de Pessoa e dos seus heterónimos. Ora, é precisamente numa carta datada de 14 de Maio de 1913, enviada a Fernando Pessoa, que Mário de Sá-Carneiro se pronuncia sobre uma questão que se relacionará com uma das problemáticas mais importantes da sua obra: a que diz respeito à sua constante busca de um “Ideal” e à frustração resultante de não ter conseguido atingir esse mesmo “Ideal”. Confessa Sá-Carneiro ao amigo, concordando com este: Gosto muito da sua ideia, que define bem o meu eu. Muitas vezes sinto que para atingir uma coisa que anseio (isto em todos os campos) falta-me só um pequeno esforço. Entanto não o faço. E sinto bem a agonia de ser-quase. Mais valia não ser nada. É a perda, vendo-se a vitória; a morte, prestes a encontrar a vida, já ao longe avistando-a (SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 139).

2

Para uma mais completa visão sobre a vida de Mário de Sá-Carneiro, cf. GALHOZ, M. A., 1963: 9-55; GALHOZ, M. A., 1990; DIAS, M. T., 1990.

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Independente do problema da reconhecida ligação entre a vida e a obra de Sá-Carneiro3 , o que fundamentalmente nos interessa realçar nestas palavras é uma outra sugestão: a que aponta para um dos estigmas que atravessa a sua obra poética, o derrotismo, patente, aliás, de forma programática no poema Quase, escrito também em Maio de 1913. Aí regista o sujeito poético: Um pouco mais de sol – eu era brasa. Um pouco mais de azul – eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa. . .

e adianta, pouco depois: Quase o amor, quase o triunfo e a chama, Quase o princípio e o fim – quase a expansão. . . (SÁ-CARNEIRO, M., s/d [b]: 68)

Os versos acima citados são muito claros quanto ao desejo poeticamente expresso pelo sujeito de uma ânsia de algo superior, o “mais”, algo que permanecerá, contudo, sempre aquém da obtenção, desenvolvendo-se então toda uma atitude poética em torno da ideia de fracasso – ideia que já em 1911, no poema A um suicida, dedicado a Tomás Cabreira Júnior, explorara (“[. . . ] há tantos como eu que não alcançam nada. . . ”); já nesses versos aparece uma imagem das “asas partidas”, como que prenunciando, assim, a “asa que se elançou mas não voou” do Quase. Aliás, em dois outros conhecidos poemas, intitulados Escavação e Crise Lamentável, Sá-Carneiro desenvolve a mesma noção: no primeiro poema (anterior ao Quase), depois de o sujeito poético se enunciar como alguém que se procura (mergulhando na sua subjetividade) e que não se encontrou (depois de o ter feito através da produção poética), reconhece, vencido, que a “vitória fulva [se] esvai”, não restando mais nada do que “cinzas só, em vez de fogo”; no segundo poema, o sujeito poético confirma, afinal, que tudo em si é “fantasia alada” e que, consigo, “sempre o Oiro em chumbo se derrete” (id.: 55 e 161, respetivamente). Encontramos então um sujeito que, poeticamente, concluirá, em Aqueloutro, acerca do fracasso 3

Por diversas vezes, por exemplo, em cartas escritas a Pessoa, Sá-Carneiro parece identificar-se, direta ou indiretamente, com personagens das suas narrativas, como é o caso de Estanislau Belcowsky (personagem de uma obra ficcional que pretendia intitular Novela Romântica), do protagonista da novela Ressurreição, Inácio de Gouveia, e de uma personagem da Confissão de Lúcio, Ricardo de Loureiro.

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a que conduziram os “berros ao Ideal”, um sujeito que reconhece que não passou, afinal, de uma “Esfinge Gorda”; e repare-se, assim, como as imagens do fracasso na obra poética de Mário de Sá-Carneiro possuem um peso considerável – sobretudo quando o sujeito poético se apresenta metaforicamente como “estrela ébria que perdeu os céus” (como acontece em Estátua falsa). Esta questão encontra-se, além de tudo, articulada com uma coloração derrotista que percorre algumas das cartas (sobretudo as últimas) que envia a Pessoa. Num dos seus textos epistolográficos nucleares (no que concerne à afirmação de um estado psicológico de coloração profundamente derrotista), uma longa carta datada de 13 de Julho de 1914, considera-se “o embalsamento de mim próprio”; e acrescenta: “Não tenho estados de alma, nem os posso ter já porque dentro de mim há algodão-em-rama (o algodão-em-rama que há dentro dos animais naturalizados). . . Estados de alma, ânsias, tristezas, ideias, grandes torturas de que saíam os meus livros tudo isso acabou. . . Ilusões de glória, “de espanto” já não existem em mim” (SÁ-CARNEIRO, M., 1992: 169). Como se pode comprovar, neste texto, onde a imagem do embalsamento se assume como linha axial, é possível ver o quanto essa imagem se relaciona com a “sensação de «fim»” e com a noção de esvaziamento do sujeito, um esvaziamento que reenviará para aquela “dispersão total” referida pelo sujeito poético em Dispersão, assim como, em última instância, para as ideias de cansaço e morte, onde o suicídio se assume como central4 . Repare-se, aliás, como estas noções aparecem já em Novembro de 1908 (quando Sá-Carneiro tinha, portanto, 18 anos), num pequeno conto intitulado Página de um suicida (que publica no ano seguinte, na revista Azulejos): Lourenço Furtado não consegue resistir à sua curiosidade e decide suicidar-se para conhecer a morte. Num século em que o desenvolvimento científico e tecnológico é uma realidade, o privilégio da racionalidade torna-se flexível, a partir do momento em que se pensa a morte, em que se teoriza sobre ela. A partir daí, parece possível antever também algum ceticismo em relação àquele desenvolvimento que tanto se elogia, mas que não consegue esconder o receio do desconhecido; por isso, Lourenço Furtado considera que será um descobri4

Note-se que a ligação à morte e ao suicídio aparecem intensa e variavelmente representados na sua obra, desde o texto poético (Amor ou morte), até ao texto dramático (Feliz pela infelicidade, Amizade), passando pelo texto narrativo (nos contos João Jacinto, Ladislau Ventura, Página de um suicida, Tragédia, em praticamente todos as novelas de Princípio, na novela Confissão de Lúcio, n’A Grande Sombra, Mistério e n’O Homem dos Sonhos).

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dor, mas não revelará a sua descoberta. Vê-se como um dos sacrificados ao triunfalismo da sua época, onde, por sinal, só faltava “viajar” e descobrir a morte, viagem que, segundo ele, será fácil. Ou, como escreve: Afinal sou simplesmente uma vítima da época, nada mais. . . O meu espírito é um espírito aventureiro e investigador por excelência. Se eu tivesse nascido no século XV descobriria novos mares, novos continentes. . . No começo do século XIX teria talvez inventado o caminho de ferro. . . Há poucos anos mesmo, ainda teria com que me ocupar: os automóveis, a telegrafia sem fios. . . Mas agora. . . agora que me resta?. . . A aviação. . . Pf. . . essa já nada me interessa depois dos último resultados dos Wrights e de Farman. . . Para o Pólo Sul partiu há pouco o Dr. Charcot. . . Não há dúvida, não: a única coisa interessante que existe actualmente na vida é. . . a morte! Pois bem, serei o primeiro explorador dessa região misteriosa, completamente desconhecida. . . (SÁ-CARNEIRO, M., s/d [c]: 128)

3. Repetidamente mostrando sinais de uma espécie de narcisismo invertido (sempre por si mostrou ter uma imagem negativa e, por vezes, pena), Sá-Carneiro sente-se sempre um inadaptado – qual “Rei exilado”, em relação ao meio sociocultural português –, inadaptação essa que procura ultrapassar pela via da piedade por si, ou pela ânsia da totalidade, ou, ainda, por um desdobramento estético. Não é desconhecida, como vimos, a relação intensa entre a sua vida e a sua obra. E, por esse prisma, facilmente se entenderiam tanto as dualidades temáticas que percorrem a sua obra – ascensão/queda; interior/exterior; alma/corpo; multiplicidade/unidade; vida/morte; ideal/ real –, como outros eixos temático-ideológicos que insinuam (mais ou menos visivelmente) ao longo da sua curta, mas rica, obra: a amizade, o sonho, o mistério e o fantástico, o ato de escrever, a relação eu/outros, a superioridade da vivência do artista e a banalidade da vivência quotidiana, a dispersão. . . Entretanto, incompreendido (sentindo profundamente o conflito interior entre o desejo da totalidade e o sofrimento por esse desejo causado), por diversas vezes encontramos vinculações estético-ideológicas à estética simbolista e decadente, paúlica, sensacionista, intersecionista e futurista. Pela via decadente e simbolista – evidenciada, por exemplo, nas novelas de Princípio (1912) e nos poemas de Dispersão (1914) –, a preferência pelo bizarro, pela www.clepul.eu


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degenerescência, pelo mistério, pela ligação entre perversão e génio, o gosto pelo vago, pela fluidez e pelo sonho, o culto da beleza enquanto Ideal, a ânsia de Além, conceção do poeta enquanto ser exilado da multidão, etc., etc.5 Algumas destas particularidades farão parte, aliás, de uma outra faceta sua, a faceta paulista (percebida n’A Confissão de Lúcio [impressa em 1913, mas editada em 1914], nas novelas de Céu em Fogo [1915] e em alguns poemas de Indícios de Oiro [antologia publicada postumamente em 1937]). Geralmente apontado como um dos percursores do Surrealismo em Portugal (facto percetível, por exemplo, n’A Confissão de Lúcio e na novela A estranha morte do Professor Antena), o seu discurso evidencia ainda as facetas sensacionista, intersecionista e futurista. E se o peso das sensações assume uma enorme importância em alguns textos narrativos de Princípio e de Céu em Fogo, ela manifesta-se inequivocamente n’A Confissão de Lúcio, particularmente na passagem onde o narrador relata a soirée organizada por uma mulher americana, para quem Lúcio Vaz, Ricardo Loureiro e Gervásio Vila Nova tinham sido convidados. Depois de serem recebidos pela americana (em cuja túnica “Todas as cores enlouqueciam”), passam depois para uma sala, já visitada, mas entretanto modificada para a realização de um espetáculo. Particularmente atento ao cenário que o envolve, o narrador fixa-se na iluminação e nas sensações físicas, “sexualizadas”, por aquela sinestesicamente provocadas. É esse momento que, pela sua importância, no que evidencia de peculiar no âmbito sensacionista (e precedendo uma outra passagem plena de erotismo, sensualidade e voluptuosidade), importa registar: Pouco antes chegara-se a nós a americana e, confidencialmente, nos dissera: – Depois da ceia, é o espectáculo – o meu Triunfo! Quis condensar nele as minhas ideias sobre a voluptuosidade-arte. Luzes, corpos, aromas, o fogo e a água – tudo se reunirá numa orgia de carne espiritualizada em ouro! .............................. Ao entrarmos novamente na grande sala – por mim, confesso, tive medo. . . recuei. . . Todo o cenário mudara – era como se fosse outro o salão. [. . . ] o mais grandioso, o mais alucinador, era a iluminação. Declaro5 Veja-se LOPES, Ó., 1987: 527 ss, 531, 538 ss; MARTINS, F. C., 1990; PEREIRA, J. C. S., 1990, passim; SANTOS, G. C., 1994; ROCHA, C., 1995: 39 ss.

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Dionísio Vila Maior -me impotente para a descrever. Apenas, num esforço, poderei esboçar onde residia a sua singularidade, o seu quebranto: Essa luz – evidentemente eléctrica – provinha de uma infinidade de globos, de estranhos globos de várias cores, vários desenhos, de transparências várias – mas, sobretudo, de ondas que projectores ocultos nas galerias golfavam em esplendor. Ora essas torrentes luminosas, todas orientadas para o mesmo ponto quimérico do espaço, convergiam em um turbilhão – e, desse turbilhão meteórico, é que elas realmente, em ricochete enclavinhado, se projectavam sobre paredes e colunas, se espalhavam no ambiente da sala, apoteotizando-a. De forma que a luz total era uma projecção da própria luz – em outra luz, seguramente, mas a verdade é que a maravilha que nos iluminava nos não parecia luz. Afigurava-se-nos qualquer outra coisa – um fluido novo. Não divago; descrevo apenas uma sensação real: essa luz, nós sentíamo-la mais do que que a víamos. [. . . ] ela não impressionava a nossa vista, mas sim o nosso tacto. [. . . ] E depois – eis o mais bizarro, o mais esplêndido – nós respirávamos o estranho fluido. [. . . ] em breve todos os espectadores evidenciavam, em rostos confundidos e gestos ansiosos, que um ruivo sortilégio os varara sob essa luz de além-Inferno, sob essa luz sexualizada (SÁ-CARNEIRO, M., s/d [a]: 38-40).

Ora, indissociável desta vertente sensacionista encontra-se ainda a exploração do erotismo e da sensualidade em episódios literários não raras vezes marcados pela excessividade (cenas de amor, assassínios por amor), raiando mesmo a loucura (também esta um eixo temático nuclear da narrativa de Sá-Carneiro) – visível n’A Confissão de Lúcio e em narrativas como O Homem dos Sonhos, Ressurreição e, sobretudo, n’A Grande Sombra e n’O Fixador de Instantes. Repare-se, a este propósito, como, n’O Fixador de Instantes, o narrador relata uma relação sua com uma mulher eslava, que muito amava; para petrificar, para eternizar os instantes com ela, mata-a, atingindo, segundo ele, a glória e o triunfo. Da mesma forma, em A Grande Sombra, o narrador relata a sua passagem por um baile de Carnaval em Nice, no Casino, onde se deixa abandonar pelo ambiente. Entretanto, deixa-se seduzir por uma desconhecida, “mulher esplêndida”, que se apresenta como “a Princesa velada” – cujo punhal perturba e, ao mesmo tempo, atrai o narrador. A desconhecida leva-o até um quarto de hotel, iluminado por uma estranha luz. Aí fazem www.clepul.eu


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amor, sem que ela, contudo, tire a máscara, permanecendo assim o mistério que, no fundo, acaba por garantir ao narrador um momento de amor ainda mais intenso. Como que hipnotizado pelo punhal, e com a possibilidade de que o mistério se desvendasse (se ela tirasse a máscara após o ato de amor), assassina-a com esse mesmo punhal: [. . . ] os meus olhos pararam de novo sobre a arma. . . Como nunca o mundo inteiro se me centralizou no punhal. . . Pairava todo um sonho de Ópio. . . . . . Até que, por último, um espasmo recamado em insinuações astrais me soçobrou. . . Mas, ao esvair-me ah! não foi a carne sumptuosa que eu possuía, opulento – foram os reflexos imperiais da jóia maldita!. . . .................................................................................... .................................................................................... .................................................................................... De súbito, desenvencilhei-me. . . Precipitei-me sobre o punhal. . . Era tempo! O Mistério ia desmoronar-se. . . Ela erguia-se já. . . Tiraria a máscara, por certo. . . eu próprio lha arrancaria. . . E vê-la. . . saber quem ela era. . . ver os seus olhos. . . deixá-la. . . Não! Não!. . . Impossível. De resto, o ambiente, após os êxtases, por força me havia de surgir em toda a sua realidade. . . Apenas durante os espasmos lograra imaginá-la talvez – purpureamente. Eu ia acordar. . . Despertava, do Ouro. . . Ia perder todo o Milagre. . . Tive medo. Receei pelo meu orgulho. . . Que bom seria de mim se não tivesse o génio de ficar – leonino! – aquele Segredo escultural, de me enroscar nele para sempre, de o estilizar em mim-próprio para sempre o viver?. . . Foi uma Ânsia de estertores! Mas venci!. . . Empunhei a arma rudemente. . . e cambaleado, num redemoinho, numa vertigem, enterrei-lha toda no coração. . . Não houve um gemido. Apenas os seios oscilaram. . . Que hora grandiosa! Pareceu-me que chocara em verdade contra o destino, e o meu braço – só o meu braço – o fizera deter!. . . (SÁ-CARNEIRO, M., 1993: 76-77)

É, afinal, através do que esta atitude do narrador engloba que se revela uma dominante que acaba por presidir a esta narrativa e que aqui se aproxima muito de contornos psicológicos atestados impressivamente por uma relação muito estreita com o estado da loucura, estado esse que fora já abordado esteticamente em 1910, numa novela intitulada significativamente Louwww.lusosofia.net


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cura (publicada em 1912). Nela, o narrador esclarece o suicídio do escultor Raul Vilar, seu amigo. Depois de Raul se casar com Marcela, mulher que considera esplêndida, os esposos vivem uma imensa felicidade, vivendo momentos de êxtase amoroso e sexual. Mais tarde, Marcela tem conhecimento de uma relação do marido com uma modelo, Luísa Vaz, mas perdoa-lhe. Raul, por sua vez, diz a Marcela que a ama e que, um dia, lhe dará a maior prova de amor, prova essa que, confessará ao narrador, nunca encontrara, pelo que se sente triste e melancólico. Preocupado com a sua velhice e com a passagem do tempo, descobre um dia a dita prova. Algum tempo depois, Raul declara de novo o seu grande amor por Marcela, mas pela sua alma, não pelo seu corpo, dizendo-lhe então que a desfiguraria completamente com vitríolo e que, mesmo assim, continuaria a amá-la; seria essa a sua maior prova de amor: tenta atirar-lhe com o vitríolo à cara e ao corpo, mas esta consegue fugir. Louco, não compreendendo a Esposa, acaba por criticar-lhe essa atitude e qualificá-la de devassa. Raul bebe então o vitríolo e morre. Ora, esta atitude, que o narrador pede para não ser julgada como tendo sido tomada por um assassino, antes por um louco, pode ser perspetivada numa determinada ótica, que atesta, em último grau, o gosto de Sá-Carneiro pelo desenvolvimento literário de uma lógica narrativa concretizada pela exploração estética das dualidades amor/morte e amor/loucura – dualidades essas variavelmente presentes também no texto poético (O amor, O castigo da cortesã, Duas existências e Amor ou morte) e no texto narrativo (João Jacinto, Ladislau Ventura, Amor vencido, Recordar é viver, O incesto e A Confissão de Lúcio). É evidente que a adoção deste ponto de vista, apesar das (eventualmente) fortes impressões causadas no leitor, não se relaciona com a vertente futurista de Mário de Sá-Carneiro, vertente essa que não pode deixar de ser confrontada, no âmbito dos recursos estético-literários e técnico-discursivos, com as atitudes de vanguarda do nosso primeiro Modernismo, e, em última instância, com a crise de um sujeito que se dissolve no próprio discurso. Como se sabe, o discurso vanguardista que, em Portugal, atinge o seu ápice em 1917, com a revista Portugal Futurista, nega os convencionalismos tradicionais, as matrizes dominantes de representação estético-cultural, os processos miméticos e realistas, o universo discursivo dominante e a significação da expressão lexicalizada. Por outro lado, esse mesmo discurso compreende ainda a apologia da libertação e autonomização da arte, do transgressivo, procurando, com isso, a superação do tempo em que se vive e a www.clepul.eu


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projeção para o futuro. Nesse sentido, os procedimentos discursivos que ilustram essas opções acabam por plasmar a necessidade de transmitir o sentido de mudança e dinamismo transformador que ideologicamente informa as atitudes de vanguarda. De um ponto de vista exclusivamente sintático-semântico, verifica-se no texto futurista a desarticulação da linguagem lógica, a inovação e a subversão das linguagens estéticas, a subversão das regras da gramática, a utilização de figuras de retórica arrojadas, a subversão do significante (através de justaposições, aglutinações, neologismos, colagens, anagramas. . . ) e a utilização de processos de índole experimental. No que diz respeito a este último aspeto, assume um papel central a poesia caligramática Manucure, de Mário de Sá-Carneiro. Composto em Maio de 1915 e publicado no n.o 2 da revista Orpheu, o poema Manucure denota o conhecimento por parte de Mário de Sá-Carneiro da lição do Futurismo de Marinetti, assim como algumas influências da Ode Triunfal e da Ode Marítima, de Álvaro de Campos6 . Embora não chegue, contudo, a transmitir o gesto radical dos futuristas, o sujeito poético procura fundir-se com o presente; para isso, identifica-se com o “Ar” para conseguir apreender a sua Beleza, uma “Beleza-sem-Suporte”. Entusiasmado pelos signos que representam a vida moderna, o sujeito moderno procura vê-los com os seus olhos “futuristas”, “cubistas” e “interseccionistas”, cantando as “estações” e os “cais de embarque, / Os grandes caixotes acumulados, / As malas, os fardos – pêle-mêle. . . [. . . ]”; e, logo a seguir, exclama, desejando cada vez mais a união com esses signos da modernidade: “Ó beleza futurista das mercadorias!” (SÁ-CARNEIRO, M., s/d [b]: 172). Tal como em Apoteose, o sujeito poético leva a cabo a apologia do progresso e da civilização moderna (dos jornais, da indústria tipográfica, dos reclames e cartazes, dos anúncios publicitários, das marcas comerciais), constituindo ambos os poemas provas indesmentíveis dos princípios futuristas: as “palavras em liberdade”, a desarticulação da linguagem lógica, a escrita marcada pelos signos de uma linguagem irredutível aos códigos convencionais, a discursividade em que os limites entre real e ficção estão esbatidos, em que o absurdo sobressai e em que a inovação 6

Repare-se, a este propósito, como Fernando Cabral Martins considera Manucure um poema verdadeiramente “futurista sem adesão ao Futurismo [. . . ]”; classifica-o mesmo como “o texto português mais próximo do cânone do Futurismo”, “se exceptuarmos K4 O Quadrado Azul, Saltimbancos e o Manifesto Anti-Dantas” de Almada Negreiros (MARTINS, F. C., 1997: 280 e 279, respetivamente).

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semântica e vocabular é aplicada. E se a isso juntarmos, no final de Manucure, o verso “É no ar que ondeia tudo! É lá que tudo existe!. . . ” (a lembrar os Calligrammes de Apollinaire), e em ambos os poemas, o recurso à montagem tipográfica (o que em parte os aproxima da técnica intersecionista), facilmente concluiremos que esse processo técnico-discursivo evidencia um discurso da descontinuidade, pela subversão dos parâmetros percecionais de espaço que acarreta, como que remetendo assim, pela justaposição de discursos heterogéneos, para a noção de fragmentação

4. Como quer que seja, às facetas estético-literárias que caracterizam a obra de Mário de Sá-Carneiro não pode ser indiferente uma linha de desenvolvimento suscitada pelos últimos poemas escritos todos eles em Paris, quase todos em 1916 – uma linha que aponta para um sujeito poético desencantado, derrotista, para um sujeito que deseja o esquecimento, que pretende estar só, no seu quarto, como em Caranguejola: [. . . ] Larguem-me! Deixem-me sossegar. . . [. . . ] Desistamos. A nenhuma parte a minha Ânsia me levará. Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria? Tenham dó de mim. Co’a breca! levem-me prà enfermaria! (SÁ-CARNEIRO, M., s/d [b]: 157-158);

um sujeito – “Rei-lua postiço”, “papa-açorda”, “lacaio invertido e pressuroso”, “balofo arrotando Império astral”, “mago sem condão”, “Esfinge Gorda” – que “passou na vida incógnito”, como afirma no soneto Aqueloutro (escrito em Fevereiro de 1916), adotando um diapasão crítico cujas reverberações acabam por refletir um profundo e amargo desencanto. Afinal, corresponde este sujeito poético ao mesmo que, em 1913 e em 1914, em Escavação e em 1916, se indagara, tentando encontrar os contornos que dotassem com a consistência possível o perfil que, enquanto sujeito estético-literário, procurava. Trata-se, assim, do mesmo sujeito que, no poema Fim, mostra o seu desprezo por si, como que anunciando a sua própria morte, enquadrada pelo gesto bizarro e funambulesco, através do qual expõe os seus últimos desejos e carnavaliza a sua própria morte.

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Quando eu morrer batam em latas, Rompam aos saltos e aos pinotes, Façam estalar no ar chicotes, Chamem palhaços e acrobatas! Que o meu caixão vá sobre um burro Ajaezado à andaluz. . . A um morto nada se recusa, E eu quero por força ir de burro! (SÁ-CARNEIRO, M., s/d [b]: 168)

Em conclusão, poderíamos dizer que Mário de Sá-Carneiro é um escritor onde a preocupação com o mundo interior é constante; um escritor em cuja obra se lê múltiplas vezes a representação de um sujeito onde se rasteia a presença de um eu fundamentalmente desencantado com o mundo e com os outros – um eu que, tal como aquele Mário de Sá-Carneiro que se suicidou no Hotel Nice, com estricnina, procurou uma forma de totalidade estética, procurou o Ideal, a Beleza; essas totalidades, escreve num poema de Maio de 1913, Além-Tédio, nunca as atingiu (ele, que imaginara “escalar os céus” e que “se fora Deus”, mas que regressara à Dor). No entanto, sem ter chegado a sabê-lo (mas tendo-o intuído), Mário de Sá-Carneiro acabou por atingir a Totalidade que procurou. Essa totalidade, como escreveria em 1924 Fernando Pessoa, tem um nome – imortalidade: Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge, são os sinais notáveis desse amor divino. Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama, ama só a igual, porque o faz igual com amá-lo. Como porém o homem não pode ser igual dos Deuses, pois o Destino os separou, não corre homem nem se alteia deus pelo amor divino: estagna só deus fingido, doente da sua ficção. Não morrem jovens todos a que os Deuses amam, senão entendendo-se por morte o acabamento do que constitui a vida (PESSOA, F., 1986[a]: 1276-1277).

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ALMADA: “UNO MÁS UNO IGUAL A UNO”1 1. José Sobral de Almada Negreiros nasce a 7 de Abril de 1893, na Ilha de São Tomé e Príncipe. Quatro anos depois, morre sua mãe. Em 1900, é internado do Colégio dos Jesuítas de Campolide (que deixará em 1910, passando para o Liceu de Coimbra). Seu pai reside em Paris, onde contrai novo casamento. Em 1905 e 1906, redige e ilustra jornais manuscritos. Em 1911, ingressa na Escola Internacional. No mesmo ano, publica n’A Sátira o seu primeiro desenho assinado, intitulado Razão Ponderosa. No ano seguinte, publica o jornal ilustrado A Paródia (assina “Espinafre”, alcunha do tempo de colégio) e faz a primeira autocaricatura para o jornal A Briosa, que não chega a ser publicado. Expõe ainda neste ano, na I Exposição de Humoristas Portugueses. Convive entretanto com Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. No ano de 1913, para além de ter lugar a sua primeira exposição individual, na Escola Internacional (onde apresenta cerca de 90 desenhos), e de participar na II Exposição de Humoristas Portugueses, escreve Rondel do Alentejo, o seu primeiro poema. Ilustra ainda vários jornais (entre eles, A Capital e O Século Cómico), desenha o seu primeiro cartaz, Boxe, e projeta o bailado O sonho da rosa. Em 1914, colabora no semanário Papagaio Real. Em 1915, escreve A Engomadeira, A Cena do Ódio e colabora, com Frisos, no o n. 1 da revista Orpheu; mantém uma polémica com Júlio Dantas. Convive com Santa-Rita Pintor e com Sonia Delaunay. No ano seguinte, escreve Saltimbancos contrastes simultâneos e Mima-Fataxa sinfonia cosmopolita, publica o 1

Este estudo esteve na base de uma formação de professores, que orientámos em 2000, na Universidade Aberta, tendo integrado o Manual de apoio didáctico à mesma formação: Pessoa, Sá-Carneiro e Almada: Representação Estético-Ideológica, Lisboa, Universidade Aberta, 2000. Tal como o estudo anterior, a leitura deste deve, por isso mesmo, ter em consideração os objectivos que preexistiram à sua elaboração.


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Manifesto da Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso, colabora com o jornal futurista O Heraldo de Faro, expõe alguns trabalhos na Galeria das Artes, mantém um convívio epistolar com Sonia Delaunay e funda com Santa-Rita o Comité Futurista de Lisboa. Em 1917, a 14 de Abril, apresenta no Teatro da República a conferência[-manifesto] Ultimatum futurista às gerações portuguesas do século XX e colabora na revista Portugal Futurista, onde publica Mima Fataxa e Saltimbancos. Ainda no mesmo ano, publica A Engomadeira, com uma dedicatória a José Pacheco, e contacta com Diaghilev, Massine e os Bailados Russos. No ano de 1918, encena vários bailados, sendo ainda primeiro bailarino no grupo de bailado de Helena de Castelo Melhor. Viaja, no ano seguinte, para Paris, mantendo-se como dançarino de cabaret e empregado de armazém. Escreve a Histoire du Portugal par coeur e a peça Antes de começar. Dedica-se de igual modo ao desenho. Surge também agora a assinatura “almada” com o “d” com haste prolongada. Em 1920, regressa a Lisboa e trabalha no filme O Condenado, de Afonso Gaio. Expõe individualmente. Em 1921, profere a conferência A Invenção do Dia Claro, publica O cágado, colabora regularmente no Diário de Lisboa e participa no comício contra a SNBA. Entre 1922 e 1926, colabora na Contemporânea, no Diário de Lisboa, em Athena, em O Sempre Fixe, no Diário de Notícias, no Domingo Ilustrado, na Presença, etc. Publica Histoire du Portugal par Coeur, Pierrot e Arlequim, entre muitos outros textos literários e artigos jornalísticos. Escreve o romance Nome de Guerra (só publicado, no entanto, em 1938). Participa em múltiplas exposições. Desenha cartazes e vinhetas, painéis (alguns deles para a Brasileira do Chiado, para o Bristol Club), recebe diversos prémios e profere algumas conferências (entre elas, a intitulada Modernismo). Entre 1927 e 1932, permanece em Espanha: aí, participa no grupo do Café Pombo, colabora em La Gaceta Literária, na Presença, no ABC, em Blanco y Negro, no Nuevo Mundo, na Revista do Ocidente; participa e apresenta diversas exposições; publica diversos desenhos e artigos; escreve El uno, tragédia de la unidad, Protagonistas, O público em cena; recebe o prémio de concurso de cartazes para a exposição portuguesa na Feira de Sevilha; realiza decorações de fundações, cinemas e teatros. De regresso a Lisboa, em 1932, lê a conferência intitulada Direcção Única (texto axial do seu pensamento), no Teatro D. Maria II, em Lisboa, e na Associação Académica, em Coimbra; continua a colaborar em diversos jornais e www.clepul.eu


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revistas e a participar em exposições. Nos anos seguintes, realiza mais exposições, pinta mais cartazes, profere conferências (entre elas, Artes e Artistas), realiza entrevistas e casa-se em 1934 com a pintora Sarah Affonso. Entre este ano e 1940, continua a expor, a escrever, a pintar e a decorar; desenha selos, cartazes e vitrais; pinta mosaicos, painéis decorativos e desenhos publicitários; profere conferências e palestras; entra em polémicas sobre o Futurismo; publica os cadernos Sudoeste. No ano de 1941, o Secretariado de Propaganda Nacional organiza a exposição Almada–Trinta Anos de Desenho. Entretanto, Almada continua a expor, a escrever e a publicar. Desenha o Pégaso da Coleção de Poesia para a Livraria Ática (1942), o selo comemorativo do Ano Mundial do Refugiado (1960) e o “Ex-Libris” do Tribunal de Contas de Lisboa (1947). Decora as fachadas da Faculdade de Letras, de Direito, Secretaria-Geral e Reitoria da Cidade Universitária de Lisboa; executa o painel gravado, intitulado Começar (1968), encomendado para o átrio da Fundação Calouste Gulbenkian; realiza o fresco Verão, na Faculdade de Ciências da Universidade de Coimbra (1969); desenha o cartão da tapeçaria Justiça de Salomão, para o Palácio da Justiça de Aveiro (1962); executa os cartões das tapeçarias para o Hotel Ritz, em Lisboa (1959). Desenha cartões de tapeçarias várias, pinta o Retrato de Fernando Pessoa (I) para o Restaurante Irmãos Unidos, de Lisboa (1954), e o segundo Retrato de Fernando Pessoa, variação do primeiro, para a Fundação Calouste Gulbenkian (1964). Executa, entre outros, os frescos da Gare Marítima de Alcântara, em Lisboa. Entretanto, para além de participar em múltiplas exposições, continua as suas atividades como cenarista, ilustrador, retratista, vitralista, conferencista, crítico de arte, poeta, dramaturgo (escreve, por exemplo, Aquela noite e O mito de Psiché [1949], Aqui Cáucaso e Galileu e Leonardo e eu [1965]). Publica uma série de entrevistas no Diário de Notícias sobre a reconstituição do políptico de S. Vicente de Fora. Recebe o Prémio Columbano (em 1942), o Prémio Domingos Sequeira (1946), o prémio “extra-concurso” da I Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian (1957), o Prémio Nacional das Artes, atribuído pelo SNI (1959), e o Prémio do Diário de Notícias (1966). É eleito membro honorário da Academia Nacional de Belas-Artes (1966) e condecorado com o Grande Oficialato da Ordem de Santiago e Espada (1967). Em 1969, participa num programa da série Zip-Zip, de Raul Solnado. Em 15 de Junho de 1970, falece2 . 2

Cf. FRANÇA, J. A., 1986: 449 ss; CABRAL, G. S, MAIA, M. A., LOPES, F., 1993: 7-12.

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2. Como desde já se vê, falar sobre Almada Negreiros é falar sobre uma das personalidades mais importantes que, no século XX, marcaram profundamente a cultura portuguesa. E é importante não só pela riqueza da sua obra (que se estende desde o plano estético-literário até ao das artes plásticas), como pela seriedade com que sempre encarou a Arte. Reconhecidamente original no campo da pintura e do desenho, Almada é, contudo, mais conhecido como artista de vanguarda pelo teor agressivo dos seus manifestos. Como se sabe, o discurso das vanguardas que marcaram o panorama estético-literário dos inícios do século acentua decididamente uma componente agressiva, pretendendo-se com isso dizer que a vanguarda estético-literária procura, em primeira e última instâncias, cortar com o passado e alcançar novas formas de expressão3 . Ora, alguns dos nossos escritores modernistas (entre eles, Álvaro de Campos e Almada Negreiros) adotaram precisamente esse gesto vanguardista, no campo programático e estético-literário, não só criticando iconoclasticamente os convencionalismos, o gosto kitsch e sentimentalista do “rotundo e pançudo-sanguessuga” burguês, a literatura do passado (“Camões” e os “todos os absurdos enfadonhos da tradição portuguesa”, escreve Pessoa em, provavelmente, 1914), mas também “avançando para o futuro”, assumindo a possibilidade de uma (qualquer) renovação (da cultura, da Arte, da literatura. . . ). Isto é, em síntese: o discurso vanguardista no nosso primeiro Modernismo procurou, por um lado, destruir a tradição e, por outro, atualizar o futuro. Em 1916, aparece um folheto de Almada, intitulado Manifesto Anti-Dantas (cf. NEGREIROS, J. A., 1993a: 19-23)4 – que não tinha propriamente que ver 3 No que diz respeito ao estudo do termo e conceito vanguarda, poderíamos invocar estudiosos que sobre ela variavelmente se debruçaram, como Bürger, Adorno, Poggioli, Calinescu, Perfecto Cuadrado, Adrian Marino e, entre nós, E. M. de Melo e Castro, José-Augusto França, António Quadros, Fernando Guimarães e Osvaldo Silvestre. Contudo, o estudo dessa problemática não faz parte dos objetivos deste texto, servindo aqui a breve referência a esse termo e conceito apenas para introduzir o discurso de intervenção de Almada Negreiros. 4 Refira-se desde já que este texto já por nós foi estudado em VILA MAIOR, D., 1996: 138-145. Contudo, para uma mais completa leitura, remetemos para as seguintes referências: FRANÇA, J.-A., 1986: 194-196; LIND, G. R., 1981: 205-206; LOPES, Ó, 1987: 553 ss; PICCHIO, L. S., 1982: 305-330; PICCHIO, L. S., 1989; SIMÕES, J. G., 1987: 385-388; QUADROS, A., 1989: 32-33; NEVES, J. A., 1987: 35-41; D’ALGE, C., 1989: 110-117, 129-142; McNAB, G., 1984: 103-107 e 109-110; SILVESTRE, O. M., 1990: 125-129; SILVA, C., 1994a: 178 ss.

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com a crítica pessoal e direta a Júlio Dantas5 , antes contra o que ele representava: o convencionalismo. De facto, o que aparecia como mais evidente neste manifesto de Almada Negreiros era a explícita recusa de toda uma geração que pactuasse com o que Júlio Dantas representava: o academismo, o conformismo e a submissão a regras canonicamente impostas e a valores (burgueses, e não só), que, segundo Almada, constituíam a “vergonha da intelectualidade portuguesa” e a causa da “decadência mental!”. Que valores são esses? De uma forma geral, eles resumem-se ao academismo formalista, ao historicismo artificial e aos estereótipos culturais6 . Nesse sentido, Almada visa a falta de originalidade (“O Dantas é uma autómato que deita pra fora o que a gente já sabe que vai sair. . . ”; “O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum”) e a submissão às regras e às convenções (“Basta usar o tal sorrizinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas!”). Prosseguindo com a sua diatribe, Almada alveja também a vida cultural portuguesa (o jornalismo, o teatro, as artes plásticas, a crítica literária, o movimento da Renascença Portuguesa), atingindo no concreto determinadas individualidades do panorama cultural português (Rui Chianca, Vasco Mendonça Alves, Ramada Curto, Mello Barreto. . . ). Para isso, para poder imprimir uma forte carga emotiva às suas palavras, Almada recorre a procedimentos estilísticos e técnico-discursivos, como, por exemplo: a crítica explícita e direta (“Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrizinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!”; “O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa! O Dantas é a meta da decadência mental!”); a ironia e a caricatura (“Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!”; “O Dan5

Júlio Dantas era então um académico reconhecido, com uma obra literária, onde apareciam textos como A Severa, A Ceia dos Cardeais e Sóror Mariana – esta última teria, aliás, constituído um dos motivos principais para a escrita do Manifesto Anti-Dantas, pela falta de originalidade que, segundo Almada, apresentava. Para além disso, Júlio Dantas tinha sido criticado por Almada, quando, em 19 de Janeiro de 1911, este ilustrara um soneto intitulado “A Caixa de Rapé do Prior” (paródia a um outro texto, “A Liga da Duquesa”, de Júlio Dantas); cf. D’ALGE, C., 1989: 111-112; McNAB, G., 1984: 103-107; NEVES, J. A., 1987: 38-39. 6 Cf., essencialmente, D’ALGE, C., 1989: 112-113, McNAB, G., 1984: 105-106; NEVES, J. A., 1987: 36-38.

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tas usa ceroulas de malha!”); a exclamação e a interjeição (“Pum”, “Pim!”); a onomatopeia e a aliteração em [p] (desejando a imitação do som natural produzido por uma arma, a arma com que se “matará” o Dantas: “Pim!”; “Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!”; “O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum”); o conjuntivo exortativo (como que obrigando o leitor a cumprir com intensidade a ação simbólica de “matar o Dantas”: “Morra o Dantas, morra!”); a anáfora (procurando-se fundamentalmente, por este meio, apelar para o ato simbólico da “morte do Dantas”)7 , etc. Entretanto, o final deste manifesto, possuindo por si só um lugar de destaque, é rematado com uma imagem que aponta para uma confrontação aberta de Almada com a geração representada por Dantas: Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia – se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!

As palavras citadas são muito sugestivas; elas saldam-se por uma imagem negativa com que Almada fala de Portugal, país que considera “cego” para a realidade atual. Almada como que exige que a sua geração “abra os olhos” para essa realidade e deixe de pactuar com valores estéticos e culturais que ele considera ultrapassados. Da mesma forma, procura agir em 1916 sobre o público português, no Manifesto da Exposição de Amadeo de Souza-Cardoso (cf. NEGREIROS, J. A., 1993a: 29-30), que escreve depois da resposta negativa do público à exposição do pintor8 . Nesse manifesto, critica a “incompetência”, a “Imbecilidade” e a “indiferença” dos portugueses, reduzindo assim o público e, de um modo mais geral, o povo português, a um conjunto de indivíduos passivos, que precisa de acordar para o século XX: “A Raça Portuguesa”, escreve, “não precisa de reabilitar-se, como pretendem pensar os tradicionalistas desprevenidos”; e continua: “[. . . ] precisa é de nascer pró século em que vive a Terra. A Descoberta do Caminho Marítimo prá Índia já não nos pertence porque não participamos deste feito fisicamente e mais do que a Portugal este feito pertence 7

A primeira edição do Manifesto Anti-Dantas é ilustrada por seis mãos negras ao longo do texto, sempre que Almada afirmava a necessidade de “matar” Júlio Dantas. 8 Cf. SILVESTRE, O. M., 1990: 130; FRANÇA, J.-A., 1986: 118-120, 208-209.

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ao século XV”. Ora, a obra de Amadeo (que “pertence à Guarda Avançada na maior das lutas que é o Pensamento Universal” e que é “a primeira descoberta de Portugal na Europa no século XX”) ajudará, segundo Almada, a alcançar os intuitos pretendidos. Almada dirige-se então ao “leitor”, “ordenando-lhe”: “[. . . ] começa já hoje, vai à Exposição na Liga Naval de Lisboa, tapa os ouvidos, deixa correr os olhos e diz lá que a Vida não é assim?”; e acrescenta: “Não esperes, porém, que os quadros venham ter contigo, não! Eles têm um prego atrás a prendê-los. Tu é que irás ter com eles”. Mais tarde, a 14 de Abril de 1917, em Lisboa, no então Teatro República, e publicado depois na revista Portugal Futurista, Almada declama o seu Ultimatum Futurista às Gerações portuguesas do Século XX (cf. NEGREIROS, J. A., 1993a: 37-43), texto que reenvia, aliás, para o Ultimato inglês de 1890. E de novo, neste texto, para além da manifestação de um egocentrismo exacerbado (atitude de índole vanguardista), para além de uma intensa manifestação de superioridade individual em relação ao resto da nação portuguesa (atitude patente, por exemplo, na reiteração anafórica da partícula “Eu”), Almada lança um apelo à “geração portuguesa do século XX” para que crie a verdadeira “pátria portuguesa do século XX”. Nesse sentido, com uma evidente atitude de vanguarda, declara guerra à tradição (“as fórmulas das velhas civilizações”), ao academismo (“as proporções do valor académico, todas a convenções de arte e de sociedade”), ao “sentimentalismo saudosista e regressivo” e a todas as outras causas da decadência de Portugal. Entre essas causas, encontram-se: a indiferença do povo português (“a indiferença absorveu o patriotismo”); a não abertura dos poetas portugueses à sociedade contemporânea, com todas as suas manifestações de modernidade (“os poetas portugueses [. . . ] são portanto absolutamente insensíveis às expressões do heroísmo moderno”; Portugal encontra-se “a dormir desde Camões”); a literatura sentimentalista (a literatura portuguesa apresenta todo um “gramatical piegas e salista”); a predileção pelas coisas estrangeiras e a não valorização do que é nacional (o português “assimila de preferência todas as variedades de importação e em descrédito das próprias maravilhas regionalistas”); o amadorismo (“Portugal [. . . ] é um país de amadores”). Almada aponta, seguidamente, soluções para transcender essa decadência, adotando um discurso fortemente injuntivo, quer pela via destrutiva, quer pela via apologética. Por esta segunda via, Almada elogia todas as formas que representem a vitalidade e a modernidade, como a hora presente, o cosmopolitismo (“É preciso criar e desenvolver a www.lusosofia.net


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actividade cosmopolita”) e os “criadores” do século XX (“Edison, Marinetti, Pasteur, Elchrïet, Marconi, Picasso, e o padre português Gomes de Himalaia”). Cabe, então, ao povo português destruir o passado e cantar a modernidade e a pátria portuguesa do século XX: “[. . . ] é preciso criar a pátria portuguesa do século XX. / Digo segunda vez: é preciso criar a pátria portuguesa do século XX. / Digo terceira vez: é preciso criar a pátria portuguesa do século XX”. Essa possibilidade, segundo Almada, será uma realidade, se o povo português adotar uma atitude ativa perante a vida e perante as novas realidades – atitude em relação à qual, apesar de tudo, Almada mostra um certo ceticismo: “O povo completo será aquele que tiver reunido no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem, Portugueses, só vos faltam as qualidades.” Contudo, o discurso de intervenção vanguardista almadiano não se limita aos manifestos acima evocados. Estamos a pensar obviamente no mais longo poema de Almada, A Cena do Ódio (cf. NEGREIROS, J. A., 1990: 47-66)9 , onde o sujeito estético se manifesta criticamente contra tudo e contra todos, atitude sob a qual reside um efetivo desejo de revitalização sociocultural. Poema escrito para o n.o 3 da revista Orpheu (que, como se sabe, embora tendo sido composto, não se chegou então a imprimir), publicado somente no n.o 7 da revista Contemporânea, e, de forma integral, em 1958, A Cena do Ódio denota algumas ligações ao Nietzsche do Assim Falava Zaratustra, assim como ao ideário futurista, sobretudo pelo tom hipertroficamente egotista, antipassadista, iconoclasta, arrogante, subversivo e provocatório do sujeito contra uma apática coletividade no seu conjunto (e nomeadamente contra a figura do burguês), bem como contra as convenções da moral tradicional. É assim que atinge negativamente não só o burguês, que constitui de facto um dos alvos centrais, como ainda figuras e personagens que, segundo ele, concentram os defeitos que critica: aristocratas, intelectuais, anarquistas, prostitutas, gente humilde e simples, classe operária, varinas, mulheres do campo, políticos, jornalistas, militares e burgueses. Em relação a eles, o sujeito acentua o seu afastamento, o seu “desterro”; em relação à sociedade, sofre (qual Job) o martírio das ofensas que ela lhe provoca: “E eu vivo aqui desterrado e Job / da Vida-gémea d’Eu ser feliz! / E eu vivo aqui sepultado vivo / na Ver9 Sobre este texto de Almada, remetemos, essencialmente, para AMARAL, A. L., 1990; D’ALGE, C., 1989: 78-79, 105-117; FRANÇA, J.-A., 1986: 197-202; LOPES, Ó., 1987: 554-555; NEVES, J. A., 1987: 44-45; SANTILLI, M. A., 1984: 13; SILVA, C., 1994a: 152, 153, 154, 158, 170.

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dade de nunca ser Eu! / Sou apenas o Mendigo de Mim-Próprio, / órfão da Virgem do meu sentir”. Entretanto, se é necessário lembrar que este texto e os manifestos referidos tiveram efeitos muito profundos na sensibilidade literária e cultural portuguesa, não menos necessário será igualmente afirmar que agitação semelhante provocaram as opções técnico-discursivas de Frisos, em 1915, em Orpheu 1: esses poemas apresentam-se como poemas em prosa cujas dominantes técnico-discursivas aparecem revestidas de uma grande sobriedade e simplicidade [aparente, embora], enquanto opções reveladoras de uma expressão linear, assemelhando-se mesmo à expressão infantil, e traduzindo uma visão do mundo [aparentemente] ingénua. Habituados que estavam os leitores de 1915 a uma poesia ornamental, Frisos é interpretado como um conjunto de textos que choca precisamente pela simplicidade, sendo talvez o poema Canção o exemplo mais evidente (cf. NEGREIROS, J. A., 1990: 74)10 . E esta (aparente) ingenuidade de Almada continua em 1921, n’A Invenção do Dia Claro, considerado por Ellen Sapega como um verdadeiro “manifesto poético da ingenuidade”, no sentido em que conta as etapas percorridas pelo poeta numa viagem que conduz espiritualmente à clareza imaginada da ingenuidade”, iniciando-se o poeta “numa «vida interior»”, através dessa viagem11 – uma ingenuidade incompatível com a complexidade expressiva, ideia, aliás, que desenvolve em “O Regresso ou o Homem Sentado”, texto que integra A Invenção do Dia Claro: segundo Almada, embora o desenho que faça (representando uma flor) se reduza a uma série de linhas desencontradas, a criança aproxima-se de Deus (“são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor”), pela sua própria naturalidade e simplicidade. Em última instância, estas noções apontarão para a busca da totalidade pelo sujeito, se com isso relacionarmos a noção de que essa totalidade se encontra no próprio sujeito, constituindo neste caso a sua própria identidade, como se poderá interpretar num excerto d’A Invenção: 10

Para uma leitura mais esclarecida destes textos, ainda que tematicamente ligados apesar de tudo a um ideário pós-simbolista, tenha-se em conta FRANÇA, J.-A., 1997: 18 ss; SAPEGA, E. W., 1992: 19 ss; SILVA, C., 1994a: 102-103; COELHO, N. N., 1997: 75-78. 11 SAPEGA, E., 1992: 99 e 100. Para além do conceito de ingenuidade, Óscar Lopes e José-Augusto França referem-se ainda a uma outra componente básica da temática almadiana, presente neste texto: a figura materna (LOPES, Ó., 1987: 569; FRANÇA, J.-A., 1986: 248), o que poderá explicar, em parte, o estilo [aparentemente] simples nesse poema.

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Dionísio Vila Maior Bom-Dia, Mãe! Senta-te ao meu lado, que eu vou contar-te a viagem que eu fiz. Dá-me a tua mão para que eu a conte bem! Dei a volta ao mundo, fiz o itinerário universal. Tudo consta do meu diário íntimo onde é memorável a viagem que eu fiz desde o universo até ao meu peito quotidiano. Vim de muito longe até ficar dentro do meu próprio peito e defendido pelo meu próprio corpo. Durante a viagem encontrei tudo disposto de antemão para que nunca me apartasse dos meus sentidos. E assim aconteceu sempre desde aquele dia inolvidável em que reparei que tinha olhos na minha própria cara. Foi precisamente nesse dia inolvidável que eu soube que tudo o que há no universo podia ser visto com os dois olhos que estão na nossa própria cara. Não foi, portanto, sem orgulho que constatei que era precisamente por causa de cada um de nós que havia o universo. E assim foi que todas as coisas que a princípio me pareciam tão estranhas começaram logo desde esse dia inolvidável a dirigirem-se-me e a interrogarem-me, quando ainda ontem era eu que lhes perguntava tudo. Foi-me fácil compreender que o universo era precisamente o resultado de haver quem tivesse olhos na própria cara. Muito maior foi o meu orgulho, portanto, quando tive a certeza de que hoje o universo esperava ansiosamente por cada um de nós. Ontem, cada um de nós viajava por todas as partes do universo, com aquele desejo legítimo de se encontrar, e se a viagem demorou mais do que devia é porque não seria fácil acreditar imediatamente que cada um de nós estava, na verdade, em todas as partes do universo. Confesso que pude supor logo de entrada que o papel de que seríamos incumbidos cá na terra fosse precisamente o mais importante de todos. Ainda ontem o universo me parecia um gigante colossal capaz de me atropelar sem querer; e enquanto eu procurava a maneira de não ficar espezinhado pelo gigante, quem poderia, Mãe, ter-me convencido de que éramos nós próprios o gigante? Todas as coisas do universo aonde, por tanto tempo, me procurei, são as mesmas que encontrei dentro do peito no fim da viagem que fiz pelo universo (NEGREIROS, J. A., 1990: 170-171 [itálicos nossos]).

3. Ora, quando se tem em conta a relação de Almada Negreiros com todo um contexto histórico-literário e sociocultural que o envolve (e, portanto, o processo de interação entre o eu e a coletividade), deve-se assumir a noção www.clepul.eu


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segundo a qual essa relação viabiliza a premissa que aponta para uma necessária articulação entre cada indivíduo e a coletividade em que se integra – mesmo que essa articulação assente em variáveis sociais que beneficiem quer a diferença, quer a identidade coletiva. Na conferência Direcção Única, que profere em 1932 (no Teatro Nacional de Almeida Garrett, em Lisboa, e, em Coimbra, no Salão Nobre da Associação Académica), Almada defende precisamente a ideia de que qualquer indivíduo pertence à coletividade em que se encontra inserido. Contudo, tal pertença não implica, segundo ele, que o indivíduo fique preso unilateralmente aos deveres sociais. Pelo contrário; como afirma Almada, trata-se de relação bidireccional (o que, a não ser tido em conta, provocaria a revolta, uma “catástrofe” social [como defenderia posteriormente], ou, em última instância, o suicídio): O indivíduo nunca pertenceu a si mesmo. Pertence em absoluto à sua colectividade. [. . . ] Mas que não se julgue por estas palavras que o indivíduo há-de servir apenas de instrumento à sua própria colectividade. Não! nem vice-versa tão-pouco. É um jogo simultâneo da colectividade para os seus indivíduos e de cada indivíduo para a sua colectividade (NEGREIROS, J. A., 1992b: 48).

Significa então isto que, para Almada, é exigível que as entidades culturais, sociais e políticas promovam o enquadramento do indivíduo na sua coletividade; e, aí, o Estado é “o único a quem compete atender à sorte dos indivíduos da sua coletividade e que ele representa”, como também afirmaria em 1933, numa outra conferência lida na S. N. B. A., e intitulada Arte e Artistas (cf. NEGREIROS, J. A., 1993a: 84). Neste sentido, depois de, em Direcção Única, acentuar a necessidade daquele “jogo simultâneo” (através do qual um não existiria de forma completa sem o outro) e de uma estreita colaboração entre cada sujeito e a coletividade a que ele pertence, Almada adverte que a “tragédia da unidade” é o facto de não haver indivíduos que colaborem nesse “jogo”; e afirma, então, que a “humanidade inteira está reduzida à solidão de cada um dos seus indivíduos” (NEGREIROS, J. A., 1992b: 52), concluindo, no final do texto, com um apelo ao sujeito português (aproximando-se aqui este ensaio do texto manifestatário, pelo que de injuntividade contém): Queremos a colectividade portuguesa à altura de si-própria, vista de www.lusosofia.net


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Dionísio Vila Maior todos os lados da terra. Que cada português, dentro ou fora da nossa terra, seja o perfeito indivíduo da nossa própria colectividade (id.: 54).

Como quer que seja, isso não conduz obviamente à perda da identidade do sujeito. Na peça Protagonistas (escrita em 1930, mas inédita até 1993), Almada aborda concretamente essa questão, deixando claro que é necessário haver tanto uma articulação entre a “direcção única” por todos seguida (“La máquina funciona admirablemente”, afirma sem dúvida o Protagonista [NEGREIROS, J. A., 1993b: 182]), como a possibilidade de cada indivíduo seguir a sua própria direção; não se esquece, contudo, da força por vezes desumanizante das maiorias e da destruição da autonomia do sujeito que a imposição de interesses ideológicos pode, eventualmente, acarretar; escreve no poema A sociedade está podre: [. . . ] chamam civilização andarem os homens agrupados e como há vários lados em toda a combinação fazem-nos parte de todos os de um lado e não entendemos todos que nos matam um por um por todos os lados em nome da sociedade [. . . ] (NEGREIROS, J. A., 1990: 243).

Neste contexto, falar em articulação entre sujeito e coletividade, ou falar na necessidade de o sujeito encontrar a sua identidade na relação consigo próprio e na relação com a sua coletividade, significa que se deve ter em conta o facto de que o desenvolvimento de uma coletividade, em particular, e de uma civilização, em geral, poderá ainda depender de um investimento por parte de cada um de nós, no modo como criamos, como nos relacionamos com os outros e como selecionamos os estímulos sociais, culturais, científicos, tecnológicos, em que nos encontramos cada vez mais submersos, com o risco de, sem esse investimento, perdermos a nossa própria identidade. Entretanto, diz o protagonista da peça Protagonistas que, na “época de los números” em que vive, em que uma civilização foi “atropellada por el progreso”, e onde tudo “se cuenta por milliones el problema sigue siendo la unidad”, devemo-nos orientar pelo “Uno mas uno igual a uno” e pela noção de que a coletividade “jamás será perfecta si no es también cada individuo” (NEGREIROS, J. A., 1993b: 184). Assim, se é certo que cada sujeito deve preservar a sua www.clepul.eu


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própria identidade – o seu “íntimo pessoal”12 –, não menos certo é que a sua vivência em sociedade se encontra diretamente dependente de uma direção única que toda a coletividade deve perseguir, residindo, afinal, nessa direção a verdadeira unidade na diversidade. Fernando Pessoa – embora reconhecendo (no plano poético) que passou “indiferente entre os triviais e os vis” (LOPES, T. R., 1990: 115), ou que “a única realidade social é o indivíduo” (PESSOA, F., 1986: 294) – denominou essa unidade de identidade: [. . . ] para se sentir puramente Si-próprio cada ente tem que estar em relação com todos, absolutamente todos os outros entes; e com cada um deles na mais profunda das relações possíveis. Ora a mais profunda das relações possíveis é a relação de identidade. Por isso, para se sentir puramente si-próprio, cada ente tem que sentir-se todos os outros, e absolutamente consubstanciado com todos os outros (id.: 286-287).

Por seu lado, Mário de Sá-Carneiro, o incompreendido, “o Esfinge Gorda”, aquele que “errou continuamente entre si e os mais” e que “passou na vida incógnito”, não encontrou essa mesma unidade – porque se via desajustado em relação aos interesses da coletividade portuguesa, interesses esses que considerava banais e triviais. Por isso, percorreu-se interiormente, procurando a construção do seu espaço e da sua verdade, tendo como último objetivo o conhecimento de si (um conhecimento, todavia, que, no conjunto da obra sá-carneiriana, se pauta pelo malogro); é isso, afinal, o que, no plano poético, deixa transparecer na segunda das Sete canções de declínio, ao escrever: Atapetemos a vida Contra nós e contra o mundo [. . . ] Quero ser Eu plenamente: Eu, o possesso do Pasmo. 12

No romance almadiano Nome de Guerra – no qual, segundo Nelly Novaes Coelho, “Almada aponta [. . . ] para o encontro do Eu consigo próprio” (COELHO, N. N., 1997: 89) –, repare-se como o narrador afirma, a este propósito, que o “íntimo pessoal” de cada sujeito “é inatingível por outrem. [. . . ] O nosso íntimo pessoal é de ordem humana, estética e sagrada. Serve apenas o próprio”; e continua: “Que uma pessoa tome a seu cargo dirigir o próprio destino que lhe coube, é com ela. Que seja a sociedade quem se proponha dirigi-lo, é ingenuidade. O mais que neste caso poderá a sociedade é eliminar esse destino pessoal. A sociedade só tem que ver com todos, não tem nada que cheirar com cada um!” (NEGREIROS, J. A., 1992a:29-30).

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Dionísio Vila Maior – Todo o meu entusiasmo, Ah! que seja o meu Oriente! (SÁ-CARNEIRO, M., s/d: 120)

Quanto a Almada Negreiros, pode, em última instância, dizer-se que nele se encontra a defesa constante de unidade estreita entre indivíduo e coletividade. E, previne na conferência Direcção Única, só nessa unidade – resultante do (des)empenho individual e do valor de cada sujeito ao serviço do coletivo – a coletividade portuguesa se poderá encontrar “à altura de si própria, vista de todos os lados da terra” (NEGREIROS, J. A., 1992b: 54). É aqui que, segundo Almada, reside a grandeza e a unidade de um povo, unidade esta sem a qual nos arriscaremos a everter simbolicamente a direção indicada pela própria Entidade Divina – como alertou na conferência de 1932, através da evocação que, com refinado humor, faz do começo da História do Mundo, e com alguns passos da qual terminamos: Minhas Senhoras e meus Senhores: Direcção Única são as duas palavras postas ao lado uma da outra para indicar o único caminho por onde deve seguir toda a gente. [. . . ] A direcção única não é assim uma coisa tão recente como toda a gente o pode imaginar à primeira vista. Muitíssimo antes de haver automóveis, carruagens e carroças, muitíssimo antes mesmo de ter sido inventada a própria roda, já havia no mundo a direcção única. Ela data já daquele dia memorável em que Deus, depois de ter criado o Mundo, deu alternativa ao Homem. Mas entre Deus e o Homem há uma diferença dos diabos. Entregou Deus ao Homem o nosso planeta inteirinho, com todas as suas maravilhas, com todo o esplendor de todas as suas múltiplas fortunas, e ao confiar-lhe desta maneira todas as riquezas da terra, disse-lhe: – Toma para ti, tudo isto tem uma direcção única. E levou ao máximo a sua lealdade de Deus para com o Homem, avisando-o como bom e verdadeiro amigo, de que havia também direcções proibidas e, por conseguinte, que tivesse muito cuidadinho com elas. Mas contemos exactamente como as coisas se passaram: Comecemos exactamente pelo princípio. Pois ao princípio não havia nada. E sete dias depois já estava feito tudo. Mas mesmo o que se chama tudo. E tudo isto que levou sete dias a fazer foi tudo feito expressamente para uma pessoa só. [. . . ] Fazia dó vê-lo ali sozinho, metido no meio de todas as riquezas do www.clepul.eu


Almada: “Uno más uno igual a uno” mundo. Tudo aquilo só para ele e para mais ninguém. Pois se havia só ele em todo o mundo! [. . . ] Mas Deus reparou logo nessa sua falta e emendou a mão. Logo que apanhou o homem a dormir, viu que lhe tinha posto uma costela a mais. E é que não lhe fazia mesmo falta nenhuma como se provou logo a seguir. E vai Deus tirou-lha. Neste momento o homem acordou e pronto, já estava acompanhado! Já eram duas as pessoas que havia em todo o mundo! [. . . ] E então Deus disse com os seus botões: Não há dúvida! Eu tinha criado o mundo para uma pessoa só. Tinha-me esquecido disso mesmo. Os seres isolados não participam da vida. São seres isolados. Fora do conjunto. Longe de tudo. À parte da própria vida. E já estamos no dia oito do mundo. [. . . ] Mas Deus, que vê muito mais longe que as pessoas, não havia maneira de se esquecer daquele horroroso espectáculo que oferece uma pessoa quando está sozinha neste mundo, e então tomou as suas precauções para que aquilo não se tornasse a repetir. E fez então a mulher para que fossem duas pessoas e uma única combinação entre elas. [. . . ] Uma mulher e um homem são duas pessoas, mas só são dois quando não têm nada que ver um com o outro. Por conseguinte é mais verdadeiro dizer que os dois são uma coisa só, única, um par. Foi esta a condição que Deus pôs a todos os que entrassem no Paraíso Terrestre para gozarem todas as riquezas da Terra: que viessem aos pares, que fossem sempre juntinhos os dois, como os pombinhos, como as cegonhas, como os elefantes, como os cavalos, como os burros, ambos ao mesmo tempo por toda a parte, sem ter cada um nada que pensar em si-próprio, sendo-lhes apenas consentido pensarem nos dois ao mesmo tempo. Numa palavra: a direcção única. [. . . ] E assim foi que Deus fez o homem e a mulher semelhantes um ao outro, mas de caracteres opostos, antagónicos; de naturezas independentíssimas cada um deles, acérrimos disputadores da igualdade no par, inimigos do sexo alheio mas irresistivelmente atraídos um pelo outro, inseparáveis de verdade, e condenados para sempre à fatalidade da sua única unidade comum. Por outras palavras, fez Deus do homem e da mulher dois animais selvagens que não podem ser domados isoladamente. Fez o isolamento ainda pior do que era, tornou a solidão ainda mais amarga do que devia ser e indicou a direcção única da colaboração entre ambos: 1 + = 1. Mas por causa das dúvidas, e não estando completamente seguro dos

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Dionísio Vila Maior resultados por causa deles, não fossem eles estragar-lhe a sua obra (Deus sabe muito bem o que faz), arranjou as coisas de tal maneira que a Humanidade se multiplicasse e continuasse pelos séculos ainda mesmo naqueles casos em que não fosse possível o entendimento entre a mulher e homem. [. . . ] Tudo o que se está contando passou-se nos primeiros dias do mundo à sombra de uma árvore. E daqui vem porém agora todas as culpas à árvore. Chamam-lhe a árvore do bem e do mal. Pois sim, agora chamem-lhe nomes! É desta maldita mania que temos de pôr sempre a culpa aos outros. E quando, como nesse dia não há mais ninguém a quem se possa pôr as culpas, pomo-las ao que está mais à mão, – à árvore! Mas a verdade do que se passou é a seguinte: O par. . . Ah! agora me lembro de como se chamavam os dois: Adão e Eva! Pois este par andou por toda a terra, pelas cinco partes do mundo, o qual por esse tempo era todo conhecido e não tinha ainda nenhum pedaço por descobrir; conheceu e gozou todas as maravilhas, todas as fortunas, todas as riquezas, todas as infinitas felicidades que Deus deitou ao Mundo, até que um dia, dia maldito na História do nosso planeta, depois de já terem feito o que lhes estava permitido fazer, já não tinham mais novidades do que aquelas que eram proibidas. Oh curiosidade! Oh apetite! E claro está também fizeram o que era proibido. [. . . ] E então foi o diabo! Desde esse momento escangalhou-se tudo. Tudo! E foi-se por água abaixo a primeira colaboração que se fazia no mundo. Cada um para seu lado, cada um no seu isolamento, cada qual na sua solidão. [. . . ] Era o castigo de Deus. Cumpria-se pontualmente naquele instante em que eles saíram da direcção única e meteram por outras proibidas. Desde esse mesmo instante todas as coisas deste mundo perderam o seu único sentido e ficaram com vários, um único bom e todos os outros maus, dificílimo de distinguir os maus do bom, parecidíssimos todos, uma trapalhada. Foi este o pecado mais original que se fez no mundo até hoje. Tão original que aqueles que não puseram para aí nem prego nem estopa também pagam as mesmíssimas favas que os verdadeiros culpados. [. . . ] Foi por culpa deles! Por culpa desses dois curiosos de direcções proibidas! Por causa dessa senhora e desse cavalheiro! Por culpa des-

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Almada: “Uno más uno igual a uno” ses dois caloiros da humanidade, nunca mais ninguém soube no mundo até hoje como se fazem as coisas espontaneamente. [. . . ] Pedimos a VV. Exa s a fineza de repararem em que a História da Humanidade começa exactamente por um fracasso, o fracasso da primeira colaboração entre pessoas. Ao primeiro homem e à primeira mulher não lhes bastou terem por sua conta todo o Paraíso Terrestre, completo. Ainda quiseram mais do que ter tudo. Ah! não há dúvida nenhuma de que ambos eram muito humanos! Por outro lado, ele tinha lá as suas ideias, suas dele, e ela tinha as dela, suas dela. Pagavam-se na mesma moeda. Mas ideias que eram de ambos ao mesmo tempo, essas que eram as únicas dos dois, essas que eram a própria direcção única, foram-se pelas direcções particulares, pelas direcções proibidas. Palavra de honra que até parece que eram portugueses! E os seus filhos lá saíram também aos pais. [. . . ] E, continuem reparando VV. Exa s o fracasso da colaboração entre pessoas prossegue na História da Humanidade, de pais para filhos, é hereditário o fracasso, e vai de mal para pior, porque Caim já não pode aguentar tamanho desentendimento com o mano e tem de matar Abel. [. . . ] E aqui temos uma família desgraçada: o pai e a mãe não se entendem, os filhos saem aos pais, e com esta desgraçada família começou a Humanidade (id.: 33-39).

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Bibliografia Bibliografia Activa NEGREIROS, José de Almada (1990) – Obras Completas – Poesia, 2a ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, vol. I. NEGREIROS, José de Almada (1992a) – Obras Completas – Nome de Guerra, 2a ed., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, vol. II. NEGREIROS, José de Almada (1992b) – Obras Completas – Ensaios, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, vol. V. NEGREIROS, José de Almada (1993a) – Obras Completas – Textos de Intervenção, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, vol. VI. NEGREIROS, José de Almada (1993b) – Obras Completas – Teatro, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, vol. VII.

Bibliografia Passiva Almada [Compilação das comunicações apresentadas no Colóquio sobre Almada Negreiros, realizado na Sala Polivalente do Centro de Arte Moderna em Outubro de 1984] (1985), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian. AMARAL, Ana Luísa (1990) – “A Cena do Ódio de Almada-Negreiros e The Waste Land de T. S. Eliot”, in Colóquio / Letras, n.os 113-114, Janeiro-Abril, pp. 145-156. BAPTISTA, António Alçada (1986) – “Nome de Guerra ou um outro amor em Portugal”, in NEGREIROS, José de Almada, Obras Completas – Nome de Guerra, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, vol. II, pp. 9-22. BARREIRA, Cecília (1981) – Nacionalismo e Modernismo. De Homem Cristo Filho a Almada Negreiros, Lisboa, Assírio e Alvim. CABRAL, Eunice (1998) – “A apreensão relativista da realidade em Nome de Guerra de Almada Negreiros”, in SILVA, Celina [Coord.], Almada Negreiros – A Descoberta como Necessidade, Actas do Colóquio Internacional (Porto, 12-14 de Dezembro, 1996), Porto, Fundação Eng.o António de Almeida, pp. 297-301. CABRAL, Graça Sampaio, MAIA, Maria Augusta, LOPES, Flávio (1993) – Al-


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CANTOS DA ALMA E DO SANGUE1 1. Obedecendo a determinados imperativos estético-filosóficos, ensinou um dia Fernando Pessoa que a identidade de cada sujeito não se preenche com a mudez falaciosa da resignação desse sujeito face ao outro. E assim escreve: “Do nosso grau de consciência do exterior nasce o nosso grau de c(onsciênci)a do interior” (PESSOA, F., 1993: 408). Mais tarde, em 1974, sob o influxo de conhecidas configurações literárias e político-ideológicas, Vergílio Ferreira iria desenvolver o mesmo raciocínio. Mas mais: como que respondendo, dialogicamente, a Pessoa e ao projeto deste de unificação dos eus, reforça o pressuposto segundo o qual a identidade de cada sujeito é potenciada pela harmonia do eu consigo mesmo. Nesse sentido, avança com uma questão (que por si só nos esclarece quanto à resposta): “Que significado pode ter a unidade de tudo, nem que seja no seu sonho, se não temos a nossa?” (FERREIRA, V., 1974: 15). Estas ideias, desenvolvidas tanto pelo criador dos heterónimos, como pelo autor do Espaço do Invisível, remetem-nos desde logo para as reflexões de um dos mais importantes pensadores soviéticos no domínio das ciências sociais; referimo-nos a Mikhaïl Bakhtine. Com a segurança metodológica e a convicção ideológica que sempre o caracterizaram, Bakhtine referiu-se por diversas vezes ao fenómeno da alteridade, encaminhando-o quase sempre para o terreno estético e filosófico. Talvez por isso terá recorrido à imagem do espelho para sintetizar precisamente esse fenómeno: “[. . . ] quando me vejo ao espelho”, escreve, “não estou sozinho [. . . ], encontro-me sob o domínio da outra alma”. Pouco depois, completa este raciocínio, ao defender que, para se ver a ele mesmo, terá que viver, não na categoria do eu uno e indivi1

Este estudo resulta de uma comunicação proferida em 14 de Abril de 2000, no 1o Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial: Realidade e Ficção, realizado em Lisboa, no Instituto de Defesa Nacional – posteriormente publicada nas Actas do mesmo Congresso.


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sível, mas na “categoria do outro” (BAKHTINE, M., 1984: 53-55). Ou seja: para que o sujeito consiga aprofundar a consciência de si mesmo e dos outros, e assim enriquecer-se, terá que se desdobrar internamente num outro eu. Contudo, de um determinado ponto de vista, esse processo pode não escapar a alguma perversidade: é que, se, por um lado, no contexto pessoal e interpessoal, o sujeito, pelo desdobramento, aprende a conhecer (e a melhorar) os seus limites, por outro, esse desdobramento confere ao próprio sujeito (ainda que este não se aperceba) uma ainda maior autonomia. E é nesta maior autonomia que justamente se poderá encontrar o desvirtuamento do processo da alteridade, já que, pensará o sujeito, “se me vejo com capacidade para me criticar, terei tendência a ver-me com capacidade para criticar também o outro”.

2. Ora, o que tem esta questão a ver com os objetivos deste estudo? A relação encontra-se em três níveis, todos eles articulados entre si: em primeiro lugar, se considerarmos essa problemática no terreno da produção estético-literária – a poesia africana de expressão portuguesa (angolana e moçambicana, sobretudo); em segundo lugar, ainda que mediatamente, se alvejarmos a mesma questão num palco histórico-cultural enquadrado fundamentalmente pelo paradigma do sistema cultural e colonial português; por último, se privilegiarmos a sintonia entre alguma produção literária portuguesa e africana de expressão portuguesa (desenvolvida num contexto histórico comprometido com a guerra colonial) e um conjunto de procedimentos de coloração ideológica que traduzem um pragmatismo marcante: a crítica dos absurdos da guerra e a tentativa de recuperação de identidades: de um lado, a identidade africana (abalada pela assimilação e pela exclusão); de outro, a identidade portuguesa (desconfiada de uma postura ainda recente). E porquê a reconstituição da identidade portuguesa? Não porque o exija a noblesse, nem tão-pouco o politicamente correto, mas por três outros motivos: por um lado, porque o presente nos atinge de forma inflexível – e obriga-nos a rever o passado e os homens que o construíram; por outro lado, porque todos somos sujeitos (e o sujeito, explica Manuel Faria Carrilho, “define-se pela referência aos outros” [CARRILHO, M. F., 1989: 9]); finalmente, porque, sendo portugueses, devemos mostrá-lo, ou, parafraseando Alberto

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Caeiro, devemos sobretudo ser do tamanho que vemos e não do tamanho da nossa altura – afinal, a mesma razão pela qual “um país tem o tamanho dos seus homens”, como lembrava Manuel Alegre em meados dos anos 60 (ALEGRE, M., s/d: 22).

3. “Cantos da Alma e do Sangue”, assim se intitula este estudo. Reconhece-se facilmente neste título um verso de um conhecido poema de António Jacinto, intitulado “Poema da alienação” (publicado em 1961, em Poemas). Aí, este paladino do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (e, na década de 50, uma das personalidades mais proeminentes da geração da Mensagem), apontando tacitamente para uma consciencialização posterior (ratificada, aliás, pelo resto do poema), escreve: “Não é este ainda o meu poema / o poema da minha alma e do meu sangue” (FERREIRA, M., 1988: 136). Ainda que denotando António Jacinto uma influência evidente dos parâmetros ideológicos neorrealistas, o sujeito poético do “Poema da alienação” pretende, ao mesmo tempo, desligar-se dos modelos europeus, refletir sobre os valores africanos (angolanos) com os quais se identifica, e, em última instância, lembrar que o povo angolano podia agir contra o esvaziamento da identidade promovido pelo sistema colonial. Esta situação encontra-se, aliás, bem ilustrada nos últimos seis versos: Mas o meu poema não é fatalista o meu poema é um poema que já quer e já sabe o meu poema sou eu-branco montado em mim-preto a cavalgar pela vida (id.: 138).

Como se vê, estas palavras conjugam três ideias que importa reter: num primeiro nível, prevalece o desdobramento do sujeito poético em dois eus (um eu “branco” [António Jacinto é branco] e um eu “preto” [com o qual se solidariza ao longo de todo o poema]); depois, ressoa a imagem do negro colonizado com o branco colonizador montado sobre ele; por último, o apelo ao leitor. E se este apelo se insinua ao longo do poema, ele torna-se explícito nestes últimos versos, apelo esse reforçado precisamente pelo recorte de vitalidade da imagem do “cavalo”; o sujeito poético deixa então de se encarar www.lusosofia.net


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como uma vítima conivente com um fatalismo qualquer e o seu “poema” refulge com o desejo de uma mudança. Na década de 50, aliás, essa mudança foi também desejada, e variavelmente cantada, por Ermelinda Pereira Xavier, Alda Lara, Humberto da Sylvan, Henrique Guerra, Luandino Vieira, António Cardoso, Henrique Abranches, entre outros – uma mudança construída paulatinamente com a denúncia da falsificação da consciência do negro africano operada pelo colono durante o longo processo de assimilação, exclusão e/ou segregação2 . Por essa falsificação entendeu-se: uma repetida despersonalização e coisificação do sujeito negro; uma contínua polarização entre valores positivos e valores negativos; um esvaziamento do poder político dos chefes das populações africanas; o estabelecimento de colonos em terras que pertenciam, pelo menos moralmente, ao indígena africano; o desmembramento das estruturas e dos valores das sociedades indígenas; a exploração do negro muitas vezes sob a aparência de uma pretensa “missão civilizadora”. Mais: essa falsificação, denunciaram-na igualmente Maurício Gomes, Agostinho Neto e Viriato da Cruz: Maurício Gomes, no poema “Estrela pequenina” – quando o seu apelo e as suas palavras acerca dos “angolanos [escravos] / Que fizeram o Brasil!” repousam comovidamente sobre a dor de ser negro e sobre a fragmentação do sujeito angolano em “mil pedaços de pele / Arrancados a chicote” (FERREIRA, M., 1988: 81); Agostinho Neto, em Sagrada Esperança, ao criticar a alienação cultural, a exploração económica e a repressão policial sobre o negro africano; Viriato da Cruz, em “Mamã Negra (Canto de Esperança)”, convocando agora o drama negro de todo o mundo, apelando para o fim da alienação e anunciando a confraternização universal num holístico “dia da humanidade”.

4. De certa forma, esta questão reenvia-nos de novo para a dinâmica identitária do funcionamento estratégico e ideológico do discurso colonial. Esse discurso – onde um implacável passado colonial não deixava esquecer as noções de identidade de referência, de periferização do sujeito, de suprematismo 2

O processo de aculturação na África lusófona estendeu-se igualmente ao campo da produção literária; até a própria instalação do prelo nos anos 40 e 50 do século XIX negou em parte, justamente, o desenvolvimento pleno de uma literatura autóctone. Já então uma recente burguesia negra e mestiça se encontrava afastada dos antigos valores (cf. FERREIRA, M., 1989: 30).

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do colonizador, de poder representativo do centro – obriga-nos agora a pensar nos cerca de 75 milhões de africanos mortos ao longo do que Cornel West denominou de “assalto à humanidade Negra”. No caso português, obriga-nos a ter consciência da nossa própria fragilidade; trata-se, no fundo, da mesma consciência que, segundo Almada Negreiros, faz “gigantes e heróis”, da mesma consciência que nos permite equacionar e apreender estética e humanamente o outro, da mesma consciência, afinal, que nos obriga a aceitar o outro, a sua singularidade, a sua diferença. Podemos até nem concordar com a diferença dita pelo outro; mas impõe-se-nos o dever não só de defender o direito de o outro dizer essa diferença, como ainda de nomear esse outro, quando por essa nomeação se entende o simples facto de o reconhecer como sujeito. Ora, num contexto geral de reflexão sobre o passado (nomeadamente, sobre um período tão recente como foi a guerra colonial, e anticolonial), e sendo a literatura uma prática inevitavelmente contextualizada, facilmente se compreende a razão de ser dos textos de guerrilha – produzidos entre os anos de 1961 e 1974, com uma afirmação ideológica evidente, escritos sobretudo por quem vivenciou diretamente essa mesma guerrilha. Talvez por isso se compreenda também a razão de ser de obras como Mayombe (1970) e As aventuras de Ngunga (de Pepetela, este último escrito em 1972), As Lágrimas e o Vento (1975) (de Manuel dos Santos Lima) e Caderno de Um Guerrilheiro (1974) (de João-Maria Vilanova)3 . Talvez por isso se justifique igualmente o aparecimento das antologias Poesia de Combate I (1971) e II (1977), publicadas pela Frente da Libertação Nacional, cujos contornos ideológicos convergiam na exortação à luta pela libertação e se confinavam fundamentalmente à denúncia do colonialismo – o mesmo a que, em Jornada de África, de Manuel Alegre, o guerrilheiro angolano Domingos Da Luta se referia, quando falava com o companheiro Trinta e Nove4 . Trata-se, é certo, de uma poesia de circunstância, mas alguns versos ganharam rapidamente estatuto de refrão: “Vamos marchando / e as vozes vão cantando”, alerta Marcelino dos Santos (em “Nampiali”) (FERREIRA, M., 1984: 199); “[. . . ] o sangue / é terra onde cresce a liberdade”, declara Sérgio Vieira (em “Canto de Guerrilheiros”) (id.: 310); “Na nossa terra / as balas começam 3

Sobre isto, leia-se LARANJEIRA, P., 1994. Às perguntas insistentes de Trinta e Nove, o guerrilheiro angolano Domingos Da Luta “está farto de lhe explicar que o inimigo não é o branco, a cor da pele não interessa, o inimigo é o colonialismo” (ALEGRE, M. 1989: 189). 4

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a florir”, ou “Há uma mensagem de justiça em cada bala que disparo”, proclama Jorge Rebelo (em “Vem contar-me o teu destino, irmão” e em “Carta de um combatente”) (id.: 366 e 369, respetivamente).

5. E que dizer dos que, do lado português, representaram literariamente a guerra colonial? Já o sublinhou Pires Laranjeira (LARANJEIRA, P., 1991): a literatura cuja temática é a guerra colonial trouxe algumas mudanças no contexto da produção literária portuguesa, sem que por tal se pressuponha que tivesse nascido uma literatura diferente, marcada por conceitos e procedimentos técnico-narrativos novos. O que acontece é que essa literatura tem assumido uma importância particular para o leitor português que, sobretudo esse, vivenciou, direta ou indiretamente, aquela guerra. Como quer que seja, estudar a literatura da e sobre a guerra colonial implica ter necessariamente em conta a crítica movida por alguns escritores aos absurdos da guerra. E se, após o 25 de Abril de 74, essa crítica se assumiu por diversas vezes, com maior ou menor desenvoltura, sob a forma de registo autobiográfico, um outro sentido se insinuava tácita e progressivamente: o de resgate de uma identidade hipotecada com a cumplicidade de um regime – que obrigava a “conjugar na primeira pessoa o verbo matar e o verbo morrer”, certifica Manuel Alegre (ALEGRE, M., 1989: 70); o de resgate de uma identidade desvirtuada pelo estigma da guerra, como também escreve o narrador em Jornada de África: “Para Angola e em força. As mães redobram de atividade em suas lidas, preparam roupas, malas e compotas, à noite choram. Os pais sentam-se calados olhando para dentro. Se apanham os filhos distraídos demoram neles o olhar aflito, carne de sua carne, quem sabe se para canhão. E de repente ficam velhos” (id.: 179). Lembremo-nos ainda como, antes do 25 de Abril, Manuel Alegre se insurgia contra os absurdos da guerra colonial; que outro alcance senão este terão, por exemplo, alguns poemas que integram a antologia Praça da Canção (1965)? “[. . . ] a palavra vida rima / com a palavra morte em Nambuangongo”, regista em “Nambuangongo, meu Amor” (ALEGRE, M., s/d: 110); “[. . . ] vento que vens do lado da guerra / sem trovas / sem trovas / carregado dos ecos da metralha [. . . ]”, escreve em “Toada do Vento Africano”; e, pouco depois, continuando a dirigir-se a esse mensageiro, pede-lhe:

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Traz-me tudo o que quiseres. Mas por favor ó vento amigo vento viageiro Não tragas mais os mortos do meu povo (id.: 122).

Mais flagrante e pujante se torna esta denúncia na antologia O Canto e as Armas (1967), do mesmo Manuel Alegre, em poemas como “Metralhadoras cantam”, “É preciso um País” e “As mãos”: nesses poemas se firma o cotejo e a consonância desabrida entre o som da guerra e o silêncio da morte, quando o sujeito poético se refere às “Metralhadoras [que] cantam a canção da guerra” (ALEGRE, M., 1970: 40). Nesses poemas se projeta a contínua demanda de um sujeito poético em busca da pátria onde a “vida foi traída” (id.: 51). Nesses poemas refulge a inscrição ambivalente das mãos que edificam e subvertem, das mãos que revitalizam e pervertem: “Com mãos se faz a paz se faz a guerra”, escreve o poeta; e acrescenta: “Com mãos tudo se faz e se desfaz” (id.: 121). Correspondendo ainda às linhas de força acima descritas, a literatura portuguesa após o 25 de Abril que tem como pano de fundo a temática da guerra colonial acentua gradativamente a crítica de um passado então recente. Trata-se de uma literatura que procura rever a identidade nacional, uma literatura que regressa a África para redefinir espaços preenchidos pela História e destilados pelo crivo da cultura oficial. Neste âmbito, por exemplo, António Lobo Antunes, com Os Cus de Judas (1979), João de Melo, com Autópsia de um Mar de Ruínas (1984), Lídia Jorge, com A Costa dos Murmúrios (1988), e novamente Manuel Alegre, com Jornada de África (1989), constituem referências nucleares e paradigmáticas, cujas narrativas são envolvidas por uma considerável incidência pragmática, em função das diretrizes ideológico-literárias de que não se demitem. Essas diretrizes são essencialmente três: antes de mais, um certo derrotismo e antitriunfalismo com que se analisa a História (desencanto esse confessado naqueles “lusíadas do avesso”, presentes n’A Jornada de África, na carta que Sebastião escreve a Bárbara); por outro lado, a coloração negativa com que se pinta o desvanecimento de uma sociedade colonial (por demais visível n’A Costa dos Murmúrios, nas vaticinadoras palavras do General, quando prenuncia o futuro fragmentado do Hotel Stella Maris); finalmente, a representação do contexto social e histórico-político que envolveu a guerra

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colonial e os que nela direta ou indiretamente participaram. . . ou não. . . , como pungentemente se critica n’Os Cus de Judas: Éramos peixes [. . . ], treinados para morrer sem protestos, para nos estendermos sem protestos nos caixões da tropa, nos fecharem a maçarico lá dentro, nos cobrirem com a Bandeira Nacional e nos reenviarem para a Europa no porão dos navios, de medalha de identificação na boca no intuito de nos impedir a veleidade de um berro de revolta. [. . . ] Éramos peixes, somos peixes, fomos sempre peixes, [. . . ] espiados pelos mil olhos ferozes da PIDE, condenados ao consumo de jornais que a censura reduzia a louvores melancólicos ao relento de sacristia de província do Estado Novo, e jogados por fim na violência paranóica da guerra, ao som de marchas guerreiras e dos discursos heróicos dos que ficavam em Lisboa, combatendo corajosamente o comunismo nos grupos de casais do prior, enquanto nós, os peixes, morríamos nos cus de Judas uns após outros, tocava-se um fio de tropeçar, uma granada pulava e dividia-nos ao meio, trás! (ANTUNES, A. L., 1997: 123-125).

Desta rede temática, onde vibram exigências éticas de um imaginário social suspenso sobre o escritor, não se pode dissociar entretanto uma dimensão pedagógica com que, em última instância, aqueles textos acabam tangivelmente por se comprometer; rever o passado, é certo, mas para com sabedoria aprender com ele; não basta conquistar a sabedoria, é preciso usá-la, ensinou Cícero. Por isso, esses textos, escreve Margarida Ribeiro, revestem-se “de um valor duplo intrinsecamente cúmplice: são importantes elementos de reflexão sobre o modo europeu/português de estar em África [. . . ] e simultaneamente peças indispensáveis para entender o modo de estar hoje em Portugal” (RIBEIRO, M., 1998: 149). Por isso também esses textos nos convidam a usufruir da liberdade, não abdicando dela; por isso igualmente esses textos procuram explicar o “sentimento esquisito de absurdo”, aquele “gigantesco, inacreditável absurdo da guerra” que repetida e violentamente deflui das palavras do Capitão e do narrador d’Os Cus de Judas (ANTUNES, A. L., 1997: 28, 61 e 74, respetivamente); por isso ainda esses textos nos convocam para nos reencontrarmos à custa da nossa perda.

6. No que diz respeito à relação com o outro, Mikhaïl Bakhtine esclareceu-nos que o que verdadeiramente interessa não é que esse outro seja igual www.clepul.eu


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ao eu, mas que ele traduza a diferença, tantas vezes julgada negativamente como resultado do desconhecimento do lugar ocupado por aquele na esfera de valores em que se insere: “Somente o outro”, escreve, “pode [. . . ] fazer-me viver o finito humano, a sua materialidade empírica delimitada” (BAKHTINE, M., 1984: 56). Por esta perspetiva, torna-se, assim, necessário nomear o outro, sem que sobre essa nomeação pendam interesses político-económicos. No que diz respeito à guerra em si, aos que nela combateram, aos que dela regressaram: doutrinou Heraclito que a guerra é a mãe de todas as coisas; mas à guerra se referiu Lobo Antunes como uma “dolorosa aprendizagem da agonia” (ANTUNES, A. L., 1997: 43) de cujas recordações não se isenta nenhum sobrevivente; escreve o narrador n’Os Cus de Judas: “Trazemos o sangue limpo”; e acrescenta, com uma ironia mordaz: [. . . ] as análises não acusam [. . . ] o homem enforcado pelo inspector na Chiquita, nem a perna do Ferreira no balde dos pensos, nem os ossos do tipo de Mangando no telhado de zinco. [. . . ] tenho o mijo limpo, [. . . ] o mijo irrepreensivelmente limpo, posso regressar a Lisboa sem alarmar ninguém, sem pegar os meus mortos a ninguém, a lembrança dos meus camaradas mortos a ninguém, voltar para Lisboa, entrar nos restaurantes, nos bares, nos cinemas, nos hotéis, nos supermercados, nos hospitais, e toda a gente verificar que trago a merda limpa no cu limpo [. . . ] (id.: 233-235).

Alegou Fernando Pessoa que a literatura aponta continuamente a nossa imperfeição. Ora, quando se tem em conta o perfil ideológico-literário das narrativas e dos poemas referidos (tantos outros deveriam ser evocados!), assim como a latitude pedagógica em parte tributária desse perfil, torna-se necessário participar com eles – com esses “cantos da alma e do sangue” – na procura daquele ideal que nasce da consciência que temos da nossa imperfeição. Mas, acima de tudo, é imperativo que com eles procuremos a complacência da relação eu – outro, dignificada, apesar de tudo, com a relação resguardada de cada sujeito consigo mesmo. Terá sido para esta relação que, em Jornada de África, apontam as palavras que o Alferes Sebastião deixou com o Poeta. Antes de, numa emboscada, desaparecer no mato, Sebastião deixa ao amigo uma mensagem; e o alcance dessa mensagem investe-se de um significado nuclear cujos matizes marcaram implacavelmente o protagonista, é certo, mas também os que, em www.lusosofia.net


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guerra, sob a sombra da morte, conviveram de perto com o verbo morrer e com o verbo matar. Diz essa mensagem, e termino: Talvez tenhamos de nos perder aqui para chegar finalmente ao porto por achar: dentro de nós. Talvez tenhamos de não ser para podermos voltar a ser. Há outro Portugal, não este. E sinto que tinha de passar por aqui para o encontrar. Não sei se passado, não sei se futuro. Não sei se fim ou se princípio. Sei que sou desse país: um país que já foi, um país que ainda não é. É por ele que me apetece dar de novo Santiago (ALEGRE, M., 1989: 231).

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Esta publicação foi financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projecto “UID/ELT/00077/2013”





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