História da cultura portuguesa na época moderna

José Eduardo Franco

História da Cultura Portuguesa na Época Moderna

História da Cultura Portuguesa na Época Moderna

F ICHA T ÉCNICA Título: História da Cultura Portuguesa na Época Moderna Autor: José Eduardo Franco Coleção: Ensaios L USOFONIAS Capa, Composição & Paginação: Luís da Cunha Pinheiro Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Lisboa, julho de 2014 ISBN – 978-989-8577-26-9 Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto Estratégico «PEst-OE/ELT/UI0077/2014»

José Eduardo Franco

História da Cultura Portuguesa na Época Moderna

CLEPUL

Lisboa 2014

Este livro resulta da Proposta de programa de cadeira apresentada a Provas de Agregação na Universidade de Lisboa na Área de História e na especialidade de História Moderna

Índice Preâmbulo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Introdução: Cultura, Identidade, Nacionalidade: bater e a compreender . . . . . . . . . . . . . .

Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . .

I

. . . . . . . . . conceitos a de. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Dealbar da Cultura Moderna

Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

5 17 19 31

35 39 52

II Humanismo e Renascimento: o quadro e a difusão dos saberes 55 Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

59 66

III

69

Expansão, a ideia de Portugal e de Império

Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

73 82

IV

85

Reformas: continuidades e descontinuidades

Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

3

89

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Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

V

Resistências e imaginários

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103

Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112

VI

Restauração e prospetiva

115

Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

VII

Tempo das Luzes e da ideia de progresso

129

Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133 Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141

VIII

Iluminismo Institucional

145

Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154

IX

Fraturas e negações

155

Explanação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159 Orientações Bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

X

Processo pedagógico

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Aulas teórico-práticas e propostas de avaliação . . . . . . . . . 169

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PREÂMBULO “O historiador é um manipulador do tempo. Prende-o num campo ou castelo de palavras (. . . ). Manipulador do tempo no sentido de que trabalha, opera, torce e distorce esse mesmo tempo e no sentido de que com ele intervém, mesmo quando não quer intervir, condicionando de algum modo a concepção do presente e do futuro, é ainda (. . . ) um homem de ofício, um homem de oficina, um verdadeiro artesão. Obviamente, o historiador vive e viveu no seu tempo. Traz na mente e no corpo as suas marcas”.

António Borges Coelho1

A investigação e o ensino da Cultura Portuguesa como história e como objeto de estudo interdisciplinar têm-se consolidado nas últimas década no campo universitário das Ciências Humanas e Sociais em Portugal.

De facto, uma disciplina de História da Cultura Portuguesa com várias vertentes de abordagem em conformidade com a arquitetura pedagógico-didática dos cursos onde seja ministrada, como tem sido consagrado em diversos currículos do ensino superior em Portugal, pode e deve constituir matéria fundadora de bases de conhecimento com utilidade transversal a várias áreas de saber.

1

e 16.

António Borges Coelho, O Tempo e os Homens, Lisboa, Caminho, 1988, pp. 13

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Considerando, na linha do pensamento de Manuel Antunes, que a Cultura é aquilo que faz o homem ser plenamente homem2 , o ensino superior da História da Cultura situada no tempo, no espaço e numa dada circunscrição definida pelas fronteiras das culturas nacionais como comunidades culturais de origem torna-se nuclear para a abordagem das chamadas culturas identitárias. Entende-se aqui o fenómeno cultural como “mundo de significações”, que foi perspetivado por Pedro Calafate3 no contexto da sua tematização crítica da cultura portuguesa e da sua teorização em torno do conceito de “comunidade cultural de origem”, tendo por pano de fundo o pensamento de Max Weber interpretado por Francisco Gama Caeiro4 .

O ensino e a investigação de uma história da cultura assim situada e circunscrita como campo particular do fenómeno cultural que se caracteriza pela análise dos seus contornos próprios, não pode deixar de articular-se com os liames que o ligam ao campo problemático da cultura universalmente entendida. Este esforço de desentrincheiramento de uma análise que se tornaria demasiado isolacionista permitirá abrir horizontes de compreensão e de sentido com vista a favorecer uma abordagem em espiral cada vez mais abrangente. Teremos, pois, por horizonte uma visão da cultura humana entendida numa dimensão cada vez mais complexa suscitada pela interrogação do seu todo, onde se articule o particular com o universal.

Procurando ter em linha de conta os primeiros contributos dos mestres pioneiros da promoção do estudo, da sistematização e do ensino de um saber em torno de um objetivo científico denominado História da Cultura Portuguesa ou da História da Cultura em Portugal, bem 2

Padre Manuel Antunes, História da Cultura, tomo I, vol. IV da Obra Completa, Edição Crítica, Coordenação Científica de Luís Filipe Barreto, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 86 e ss.

3 Pedro José Calafate Villa Simões, Filosofia em Portugal – Relatório de Agregação, Lisboa, Texto policopiado, 2000, p. 2 e 5.

4 Francisco Gama Caeiro, “A noção de Filosofia na Obra de Manuel Antunes: Em torno ao problema das Filosofias Nacionais”, in Ao encontro da Palavra: Homenagem a Manuel Antunes, Lisboa, Faculdade de Letras (Filosofia), 1986, pp. 9-42.

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como a evolução registada com o enriquecimento de temáticas e de perspetivas advindas de análises interdisciplinares, sem esquecer as novas propostas de síntese e de roteiros pedagógicos entretanto surgidos em contexto universitário e em outros círculos de transmissão cultural, propor-nos-emos desenhar um trajeto didático para o ensino de uma cadeira de História da Cultura Portuguesa recortada pelos limites cronológicos convencionados na área científica da história como sendo os da Época Moderna.

Pretenderemos, pois, que esta disciplina possa constituir uma oferta de ensino transversal a vários cursos das Ciências Humanas e Sociais, podendo ser oferecida quer como disciplina opcional, quer como disciplina obrigatória, nomeadamente para cursos de licenciatura, em particular, no âmbito da História, das Ciências Literárias, da Filosofia, dos Estudos Europeus, entre outros.

Assim sendo, teremos em linha de consideração os ensaios e lições pioneiros de Cultura Portuguesa dos professores Hernâni Cidade, Joaquim de Carvalho, António José Saraiva e Joel Serrão, que certamente geraram um campo de conhecimento a que não será alheia a criação da Cadeira de História da Cultura Portuguesa no contexto da reforma governamental das Faculdades de Letras estatuída pelo Decreto de 30 de Outubro de 1957 (Diário do Governo, n.o 246, 1.a Série), começando por ser lecionada na área da Filosofia e depois tornando-se mais tarde transversal a outras áreas de ensino.

Ministraram esta cadeira professores de renome da história da Faculdade de Letras como Vitorino Nemésio e Artur Moreira de Sá. Apesar de não estar diretamente relacionada com a Cultura Moderna não podemos deixar de invocar aqui uma cadeira criada por esta reforma de 1957, a de História da Cultura Clássica, cuja lecionação na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa foi confiada ao Professor Manuel Antunes, e o quanto esta disciplina transversal a vários cursos de Letras, ministrada por aquele professor, se tornou seminal e fecundadora do ponto de vista intelectual e pedagógico para várias gerações de alunos. Nós tivemos a oportunidade de estudar de perto, com grande

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proveito, o legado intelectual e pedagógico deste notável professor da Faculdade de Letras ao promovermos, com outros colegas desta Faculdade, quer um Congresso Internacional em 2005 dedicado ao estudo do seu contributo intelectual, quer a edição da sua obra completa em 14 volumes na Fundação Calouste Gulbenkian.

Consideraremos como marcos de novas tendências críticas as reflexões consubstanciadas naquela que denominamos “nova literatura da identidade portuguesa” que emergiu no pós-25 de Abril com as obras emblemáticas de Eduardo Lourenço (1978)5 , Manuel Antunes (1979)6 , Jorge Borges de Macedo (1988)7 ou de José Fernandes Fafe (1990) com o desiderato de repensar culturalmente a identidade portuguesa na sua relação com a Europa e o mundo, perdido que fora o império, até aos mais recentes rebentos desta genealogia da nova literatura identitária e cultural, entre as quais figuram as obras de José Gil (2004)89 , Fernando Pereira Marques (2005)10 , Miguel Real (2007)11 , Guilherme d’Oliveira Martins (2007)12 , Manuel Clemente (2008)13 e Boaventura Sousa Santos (2011)14 . Significativas são também as propostas de sistematização de conhecimento e ensino de professores como Pedro Calafate, cujas 5

Cf. Eduardo Lourenço, Labirinto da Saudade. Psicanálise mítica do destino português, 2.a ed., Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1982.

6 Cf. Manuel Antunes, Repensar Portugal, Prefácio de José Eduardo Franco, 3.a ed., Lisboa, Multinova, 2006.

7 Cf. Jorge Borges de Macedo, Portugal-Europa para além da circunstância, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988.

8 Cf. José Fernandes Fafe, Nação: Fim ou metamorfose?, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.

9 Cf. José Gil, Portugal, hoje: O medo de existir, Lisboa, Relógio d’Água, 2004.

10 Cf. Fernando Pereira Marques, Sobre as causas do atraso nacional, Lisboa, Coisas de Ler, 2010.

11 Cf. Miguel Real, Morte de Portugal, Lisboa, Campo das Letras, 2007.

12 Cf. Guilherme d’Oliveira Martins, Portugal, Identidade e Diferença, Lisboa, Gradiva, 2007.

13 Cf. Manuel Clemente, Portugal e os Portugueses, Lisboa, Assírio e Alvim, 2008, p. 10.

14 Cf. Boaventura Sousa Santos, Portugal: Ensaio contra a autoflagelação, Coimbra, Almedina, 2011.

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tematizações foram apresentadas em obra de relevo produzidas neste domínio no quadro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa15 e de Luís Machado de Abreu no âmbito do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro16 que oferece pertinentes propostas de reflexão sobre as diferentes Leituras da Cultura Portuguesa.

Do mesmo modo, tendo estudado diversos outros programas de História da Cultura Portuguesa já lecionados ou em lecionação no ensino superior em Portugal e no estrangeiro, quisemos pensar uma proposta com alguns contornos próprios, integrando também os contributos da nossa investigação em torno de temas que cruzam problemáticas relevantes do período delimitado para estudo, nomeadamente os nossos trabalhos em torno dos autores Fernando Oliveira e António Vieira e das correntes do joaquimismo e do profetismo nacionalizante, assim como das representações negativas dos Jesuítas promovidas com grande investimento estatal a partir da época pombalina.

Constituirá certamente uma base de estudo relevante a integração do nosso trabalho de transcrição, fixação e anotação crítica de obras manuscritas pouco conhecidas, ou quase nada estudadas e não integradas nos manuais de historiografia consagrados para ensino, nomeadamente a publicação que fizemos do manuscrito daquela que consideramos ser, assim nomeada, a primeira História de Portugal (c. 1580-1582) de Fernando Oliveira, do manuscrito intitulado Apologia do Japão de Valentim de Carvalho sobre a polémica entre Jesuítas e Franciscanos no contexto da derrocada da empresa missionária no Japão, assim como daquele que foi o primeiro Tratado da Quinta Monarquia (1641) de Frei Sebastião de Paiva.

Não deixaremos de aproveitar para compor nesta proposta de ensino os resultados do nosso empenho dos últimos anos na organização de reuniões científicas internacionais com alguma dimensão, mormente 15

Cf. Pedro Calafate (org.), Portugal como problema, Vols. I-IV, Lisboa, Público/Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 2006.

16 Cf. Luís Machado de Abreu, Leituras da Cultura Portuguesa, Separata da Revista da Universidade de Aveiro/Letras, N.o 12, Aveiro, 1995.

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no âmbito do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, sob a direção da Prof.a Doutora Annabela Rita. Permitir-nos-emos aqui destacar a organização dos congressos internacionais dedicados à Inquisição Portuguesa: Tempo, Razão e Circunstância, ao Padre Manuel Antunes (1918-1985): Interfaces da Cultura Portuguesa e Europeia, aos Jardins do Mundo: Discursos e Práticas, às Ideias de Europa, às Ordens e Congregações Religiosas em Portugal: Memória, Presença e Diásporas, ou neste ano de 2011 o evento científico dedicado à Europa das Nacionalidades: Mitos de Origem – Discursos Modernos e Pós-Modernos.

Não serão desconsiderados, antes poderão constituir campo fértil de enriquecimento e alargamento de possibilidades hermenêuticas para a compreensão de determinados constructos da História da Cultura Portuguesa os resultados da investigação e análise ocorrida no processo da criação em 2007-2008 da Associação Internacional de Estudos Ibero-Eslavos (CompaRes) no quadro do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias. Com efeito, empenhámo-nos em criar esta plataforma com a colega Beata Cieszynska, juntamente com colegas investigadores portugueses, espanhóis e oriundos dos países eslavos que têm trabalhado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ou em círculos de algum modo ligados a esta instituição de Ensino Superior tornando-se possível, pela primeira vez na Europa, promover iniciativas científicas e culturais conducentes ao desenvolvimento de investigação e ensino que releve os pontos de contacto (por semelhança e dissemelhança), em perspetiva comparada, entre as culturas e línguas dos países ibéricos e as do bloco cultural formado pelos países eslavos.

A criação desta associação científica veio institucionalizar e potenciar um esforço de aproximação já em curso através de iniciativas várias, desde reuniões científicas a exposições culturais Destes eventos científico-culturais, que têm juntado um significativo número de especialistas nacionais e internacionais e permitido trocar reflexões e perspetivas de análise inovadoras, advieram, com efeito,

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contributos novos capazes de iluminar criticamente o estudo dos diferentes discursos que à cultura portuguesa possam dizer respeito. O esforço de publicação dos resultados destes encontros em livros (alguns deles não só em língua portuguesa, mas também em língua inglesa) teve ainda em vista disponibilizar conhecimento organizado para servir o escopo do ensino e da investigação em torno de grandes temas da cultura portuguesa interligada com aquilo que se pensa e estuda relativamente a outros blocos da História da Cultura Europeia.

Cumpre-nos, nesta linha, destacar as sucessivas semanas e conferências internacionais ibero-eslavas que desde 2007 têm sido realizadas todos os anos na Faculdade de Letras em parceria com o Instituto Camões, contando com a participação de dezenas de professores e investigadores dos países ibéricos e eslavos, ou outros oriundos de outras nacionalidades que se dedicam a estes objetos de pesquisa. Através destas reuniões científicas tem-se gerado um campo de conhecimento novo, circunscrito epistemologicamente pelo fito da evidenciação de aspetos interculturais e pela eleição de tópicos de comparação da História das Culturas portuguesa e espanhola e a História das Culturas dos países eslavos. As atas desses encontros que temos vindo a preparar, com os colegas com quem trabalhamos, para edição em português e inglês permitem situar diversos elementos e fenómenos da História da Cultura portuguesa num quadro mais vasto que abre possibilidades novas de compreensão crítica. Ao mesmo tempo, não deixa de ser uma empresa científica que, à sua escala, poderá dar um impulso para a internacionalização do conhecimento crítico e oferecer dados novos para o ensino da cultura portuguesa enriquecida com perspetivas delineadas a partir destes estudos comparativos.

Não deixaremos de considerar no projeto desta cadeira alguma da nossa experiência de ensino superior, ao lecionarmos cadeiras que tiveram enfoques importantes no quadro de temas ligados direta e indiretamente à História da Cultura Portuguesa. Importa registar a lecionação a partir do ano de 2006 da cadeira de Cultura Portuguesa com programa próprio para os Cursos de Licenciatura em Artes Decorativas e Arquite-

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tura de Interiores ministrados na Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva.

Contribuiu ainda para o aprofundamento da reflexão em torno do campo da Cultura para efeitos pedagógicos a montagem e coordenação, em conjunto com o Professor Doutor Luís Machado de Abreu, de um projeto de curso de licenciatura e mestrado em Ciências da Cultura/Cultura Artística no âmbito da criação do Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes (instituição fundada pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em parceria com a Escola Superior de Artes Decorativas da Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva), que veio a ser aprovado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior.

No curso de mestrado iniciado em 2008-2009 regemos, na nossa qualidade de professor-coordenador, a cadeira de “Mitos e Utopias da Cultura Portuguesa e Europeia”, onde contámos com a colaboração do Dr. Guilherme d’Oliveira Martins que lecionou alguns módulos da referida disciplina. A coordenação deste mestrado em parceria com Luís Machado de Abreu ganhou para nós relevo significativo, na medida em que procurámos aplicar o ideário pedagógico-didático subjacente ao Acordo de Bolonha. Desenvolvemos um processo de lecionação co-participada pelos discentes, valorizando os resultados do seu investimento na investigação e aprofundamento dos temas expostos pelos professores. Além das teses de mestrado que foram elaboradas pelos mestrandos desta primeira turma de mestrado sob a nossa orientação e a dos colegas professores, importa referir que concretizámos o projeto estabelecido pelos professores e alunos como meta logo no início da lecionação no sentido de realizar a seleção dos melhores trabalhos de pesquisa para coroar a conclusão deste primeiro curso de mestrado em Ciências da Cultura/Cultura Artística com um livro, em fase de edição intitulado Cultura com Vida: Estudos em Ciências da Cultura. É em todo este envolvimento criativo, investigativo e docente apresentado que pretendemos inscrever as raízes deste nosso projeto pedagógico-didático consubstanciado numa cadeira de História da Cultura

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Portuguesa que aqui queremos propor como caminho de ensino/aprendizagem e de investigação pautado por uma relação professor/aluno assente na exposição das matérias, no forte estímulo ao estudo e à pesquisa co-participada sob a orientação tutelar do professor.

Certamente enriquecerá este projeto de cadeira a nossa experiência acumulada na orientação de teses de mestrado, de doutoramento e de projetos de pós-doutoramento. Não será de desconsiderar como benefício científico e pedagógico, a nossa experiência de coordenação de equipas de pesquisa no âmbito do trabalho de coordenação e co-coordenação de projetos científicos financiados por instituições portuguesas e estrangeiras, mormente pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Ministério da Ciência e Inovação do Estado Espanhol. O nosso trabalho de promoção e gestão científica de projetos com resultados conhecidos no plano da promoção editorial demonstrados curricularmente, favorecerá certamente um trabalho de docência da História da Cultura Portuguesa apostada numa relação de ensino/aprendizagem em que o aluno seja acompanhado de perto e estimulado a desenvolver o seu caminho de estudo, despertando-lhe o gosto pela investigação na esteira do aprofundamento de temas de eleição sem deixar de beneficiar da visão de conjunto dos problemas e das grandes linhas de compreensão que ao objeto central de estudo dizem respeito.

Não será irrelevante, por isso, o nosso percurso pessoal para a concepção desta proposta de disciplina, que se tem pautado por uma relação estreita entre investigação/coordenação/formação/orientação, privilegiando o acompanhamento de perto a investigadores em formação.

De realçar será igualmente o investimento feito na organização e na publicação dos resultados da pesquisa realizada, com interesse científico e pedagógico para a História da Cultura Portuguesa em articulação com outros universos culturais a nível internacional, nomeadamente no âmbito da Europa, pretendendo abarcar várias áreas em perspetiva interdisciplinar, mas que tendo sempre por centro aglutinador a questão cultural lato sensu.

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Na construção e descrição enunciativa dos conteúdos a tratar no programa que construímos não teremos a pretensão de tudo abarcar, mas assumiremos as escolhas feitas procurando o equilíbrio entre o que é representativo, na enunciação dos dados clássicos estabelecidos na literatura de referência em articulação com os contributos novos e o que podem ser perspetivas peculiares de ensino, estudo e pesquisa, deixadas aos discentes como hipóteses que favoreçam o desenvolvimento de um percurso próprio de investigação. Valorizaremos, neste sentido, a participação e capacidade de colocar questões por parte dos alunos e o seu compromisso com o saber que iremos construindo na linha do que Delfim Santos defendia na sua reflexão já clássica sobre a “missão do estudante”17 , complementando com a perspetiva barthesina da formação dos saberes co-participados pelo incentivo do gosto da aprendizagem como aventura de conhecimento, saberes esses construídos sobre os processos de racionalização das percepções das realidades. Deste modo, caminharemos no sentido de criar saberes progressivamente abrangentes e capazes de oferecer chaves de compreensão de ângulo mais vasto contra a “trivialização” que se teme estar em curso no ensino superior em Portugal. Esse é o risco conhecido que corre a universidade de entrar no espírito deste tempo e oferecer também uma “cultura superficial”, seduzida, em grande medida, pela revolução que está a ser operada pelos novos meios de circulação de informação e pela ditadura da cultura dos ecrãs, com tem sido bem observado criticamente por Moisés de Lemos Martins18 .

Na apresentação da bibliografia não sobrecarregaremos o aparato com vastíssimas referências que tornariam este relatório excessivamente pesado, mas remeteremos, sempre que possível para obras nossas ou de colegas especialistas na área, que apresentam aparatos bibliográfi-

Cf. Delfim Santos, “A Missão do Estudante”, in O Clarão, No 3, Fevereiro de 1935, p. 1.

18 Moisés de Lemos Martins, Crise no castelo da Cultura: Das estrelas para os ecrãs, Coimbra, Grácio Editor, 2011.

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cos maiores que poderão ser consultados para efeitos de estudo e aprofundamento especializados.

Na criação desta proposta de disciplina temos, portanto, como grande escopo não só expor os conteúdos clássicos da Cultura Portuguesa Moderna ajuntando dados das novas investigações e perspetivas hermenêuticas, mas também criar um espaço de reflexão crítica e de interesse pelo desenvolvimento da investigação neste campo de cruzamento interdisciplinar e transdisciplinar que poderá tornar-se fecundo na promoção de um conhecimento aberto a novos pontos de vista e ângulos de análise que poderão beneficiar outras áreas de saber.

Procuraremos, assim, estabelecer um quadro epistemológico e oferecer pistas hermenêuticas da História da Cultura Portuguesa da Época Moderna, tendo por base um programa de cadeira que vise atingir os seguintes objetivos pedagógicos: – Problematizar e compreender os conceitos de cultura, identidade e nação, procurando exercitar o espírito crítico dos alunos através de uma acertada prática de interrogação e comentário analítico; – Situar as coordenadas espácio-temporais da Cultura Moderna e o seu processo de conceptualização; – Contextualizar a emergência de uma cultura definida como “moderna” nas derivas históricas que marcaram a história portuguesa em articulação com a história europeia e mundial; – Caracterizar a espiral de contextos que se sucedem e dão as pistas hermenêuticas para situar os respetivos fenómenos culturais; – Identificar e caracterizar as principais obras, figuras e correntes culturais da História Moderna; – Delimitar e propor caminhos de interpretação dos processos de construção da identidade cultural portuguesa e dos seus principais elementos constitutivos; www.lusosofia.net

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José Eduardo Franco – Estabelecer a formação daquilo a que chamaremos o complexo mítico de uma cultura identitária nacionalizante na Modernidade; – Oferecer uma visão panorâmica do universo caleidoscópico de temáticas e problemáticas culturais que envolvem o estudo da História da Cultura Moderna e motivar os alunos para que se interessarem pela sua investigação e estudo, à luz de uma orientação docente que implique uma escolha criteriosa das várias possibilidades temáticas; – Desenvolver o espírito crítico dos discentes através da promoção de debates orientados sobre temas e problemas da Cultura Moderna.

Estes objetivos serão cumpridos através da organização da disciplina em nove grandes núcleos temáticos, precedidos por um aula de introdução, metodológica, em que serão enunciadas as metas teóricas e práticas que se pretendem atingir. A introdução atenderá à reflexão patenteada em torno da problematização dos conceitos de identidade, cultura, civilização, nação e dos processos de construção de um universo cultural adjetivado como português.

A esta luz procuraremos desenhar um programa de cultura portuguesa na Modernidade que destaque as grandes dinâmicas e momentos criadores e modeladores, apontando caminhos de aprofundamento, refletindo pedagogicamente sobre a complexidade do fenómeno cultural e a sua expressão pletórica.

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INTRODUÇÃO: CULTURA, IDENTIDADE, NACIONALIDADE: CONCEITOS A DEBATER E A COMPREENDER

Módulo 0 Visão sinóptica – Enquadramento e opções.

– Cultura, Identidade, Nacionalidade: conceitos e problemas.

– A problemática da História da Cultura Moderna: noções e balizas temporais.

– Nova literatura da identidade portuguesa e a hermenêutica da Cultura Portuguesa.

EXPLANAÇÃO Estabelecer um roteiro de docência de História da Cultura Portuguesa mesmo circunscrito nas balizas temporais da Modernidade, implica, desde logo, assumir o desafio de fazer escolhas muito seletivas entre a miríade de possibilidades de temas a tratar nos limites de uma cadeira semestral, vencendo a tentação do historiador, como dizia Lucian Febvre, de ser completo19 . Todavia, não poderemos descurar a apresentação didaticamente organizada dos conteúdos orientados no intuito de oferecer uma visão fundamental sobre as grandes tendências, linhas ideográficas, obras, correntes e metamorfoses de uma mundividência como a da Modernidade marcada que é por grandes transformações e andamentos culturais.

Importará desde logo pensar e projetar pedagogicamente a discussão dos conceitos de Cultura e de Civilização no plano mais geral para depois aplicar e definir o entendimento de cultura portuguesa e de História da Cultura portuguesa situada na Modernidade.

Esta clarificação preliminar de conceitos não pode deixar de relevar a consciência de que, como pensa Edgar Morin com a agudeza que lhe é característica “o termo cultura é um camaleão conceptual”20 , dada a dificuldade em definir este conceito e dadas as imensas abordagens, usos e desusos de que tem sido objeto. No entanto, procuraremos definir cultura socorrendo-nos das tentativas de definição e aplicação feita por professores e pensadores que contribuíram para a sua compreensão conceptual, conscientes de que, como bem evidencia Luís Filipe Barreto, “o historiador da Cultura comparticipa, no quadro das Ciências do Homem e da sabedoria filosófica e literária, de todo um movimento 19

Lucien Febvre, Amour Sacré, Amour Profane, [Paris], Gallimard, 1996, pp. 11-

-12.

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Edgar Morin, L’esprit du temps, Paris, Armand Colin, 2008, p. 19.

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para a compreensão do homem, para a fundação de uma ciência da Cultura”21 .

Sendo a Cultura na sua definição ou circunscrição para efeitos hermenêuticos um objeto passível de ser estudado e tratado historicamente como campo epistemológico, ela será pouco a pouco compreendida ao longo da lecionação como uma criação transformadora do humano pelo protagonismo de um povo que forma uma sociedade convivente num determinado território22 , para avocar aqui a fecunda reflexão historiográfica de Borges de Macedo. Sendo a Cultura, na expressão de Luís Machado de Abreu, tudo aquilo que a ação criadora e transformadora do homem acrescenta aos dados da natureza23 , procuraremos apresentar pedagogicamente o modo como nos vários planos (material, erudito, artístico e espiritual) o poder modelador da comunidade de indivíduos definida como portuguesa foi produzindo dados peculiares situados num dado espaço e num dado tempo.

Não deixaremos de ter em conta a complexidade da expressão Cultura Portuguesa24 que aglutina e, por vezes, esconde, na leitura acu21

Luís Filipe Barreto, Caminhos do Saber no Renascimento Português: Estudos de História e Teoria da Cultura, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986, p. 13.

22 Cf. Jorge Borges de Macedo, "Dialéctica da Sociedade Portuguesa no tempo de Pombal", in Como interpretar Pombal?, Lisboa/Porto, Edições Brotéria e Livraria Apostolado da Imprensa, 1983, p. 16.

23 Cf. Luís Machado de Abreu, Cultura Portuguesa III – Relatório, Aveiro, Texto Policopiado – Universidade de Aveiro, 1998, p. 3.

24 Não podemos descurar o debate em torno desta expressão/conceito sobre o qual Jorge Borges de Macedo refletiu como desafio a ser encarado. Nos anos setenta do século passado problematizou os limites e as dificuldades que encerrava o uso do conceito patente na expressão “Cultura Portuguesa” e os debates não concludentes da forma mais rigorosa e menos ambígua de abordar a história da fenomenologia da cultura como parte fundamental da história de Portugal. O historiador era defensor do uso mais modesto, evitando os riscos conceptuais de uma cultura adjetivada como portuguesa, de “«cultura em Portugal», a fim de garantir uma – ainda que modesta! – participação nos grandes valores do saber universal” (Jorge Borges de Macedo, Um desafio à Cultura Portuguesa, Separata de Democracia, no 2, Março, 1977, Lisboa, Instituto Democracia e Liberdade, 1977, p. 59). No entanto, no plano académico a

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tilante do autor citado, uma “realidade complexa, multifacetada, dinâmica e plural. Tende, por isso, a escamotear a existência de tensão entre cultura e culturas, entre cultura global e áreas culturais demarcadas por territórios, sistemas mentais, aculturações, ritmos próprios de evolução no seio da cultura global. (. . . ) E tudo isto porque a cultura é essencialmente um processo em que estão envolvidos sujeitos, condições materiais e valores com cuja interação se faz a história. Um dos aspetos mais significativos do processo cultural reside no facto de as leituras que dele se fazem serem simultaneamente efeitos e agentes do seu próprio movimento. Os leitores nunca ficam do lado de fora do processo. Estão implicados nele e nele participam tanto mais profundamente quanto mais essencial e originariamente conseguem intuir o sentido e a vivência do universo cultural”25 .

Não desatenderemos à problemática controversa que envolve os conceitos de Cultura e Civilização, bem reportada pelas sínteses de Manuel Antunes que aqui avocamos e invocamos: “Tem-se discutido muito se devem distinguir-se ou identificar-se. De modo mais geral, os pensadores alemães tendem a afirmar a distinção, os anglo-saxónicos a identificação, e os franceses oscilam entre as duas posições. Por nossa parte, pensamos, com alguns, que cultura e civilização podem e devem unir-se, podem e devem distinguir-se. Unir-se, tornando-se, reciprocamente, englobantes da outra, porque partem do mesmo sujeito, o homem ser social, porque se referem, embora sob aspetos diferentes, aos mesmos objetos – por exemplo, um livro e um disco: vistos pelo conteúdo, são objetos de Cultura, vistos pela forma são objetos civilizacionais – e porque visam o bem do mesmo homem. Distinguir-se, porque a Cultura vai mais no sentido da transcendência e civilização, vai mais no sentido da imanência, porque Cultura é mais do domínio do «ser», e civilização mais do domínio do «ter» ou porque Cultura é proposta pedagógica e didática patenteadas curricularmente acabaram por consagrar a expressão “Cultura Portuguesa”.

25 Luís Machado de Abreu, Leituras da Cultura Portuguesa, Separata da Revista da Universidade de Aveiro/Letras, No 12, Aveiro, 1995, p. 48.

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mais substantiva ao homem e Civilização é mais adjetiva ao mesmo homem. Doutro modo: Cultura constitui o aspeto pessoal e criador da civilização, e civilização constitui o aspeto mais técnico e material da Cultura”26 .

Para lá da polémica, a nossa linha fundamental ao nível didático será a apresentação dos grandes resultados criadores da vontade e da razão humanas entendidos de modo lato como as produções do espírito humano, particularmente no plano da chamada cultura imaterial, não deixando de ser altamente modeladoras e criadoras de condições materiais – a chamada cultura material – que se tornam comuns a um universo de comunidades humanas unidas por linhas de coerência que as unem e identificam.

Aludiremos ainda para efeitos de problematização, às tentativas de circunscrição do campo epistemológico e dos seus desafios em perspetiva hermenêutica. Estes foram formulados pelos contributos teóricos e metodológicos trazidos a lume em favor da complexificação do ensino e investigação no campo da história cultural, em particular as propostas de Norbert Elias, de Michel Foucault, as reflexões de Peter Burke e a reunião do estado da questão a nível internacional feita por David Cannadine. No livro coordenado por este historiador, Miri Rubin procura problematizar o conceito de História Cultural como campo de cruzamento privilegiado de saberes e de perspetivas analíticas, tentando responder à pergunta “Que é a história cultural hoje?”: “Deve ser praticada com o conhecimento das raízes intelectuais dos conceitos e procedimentos que utiliza, e com a consciência da sua própria retórica. Assim, lidar com a cultura é, por definição, lidar com a mistura de categorias, já que é o sistema de significados que determina a ordem, hierarquiza as prioridades e sugere conexões úteis entre as coisas – reais, sentidas e imaginadas”27 .

26

Padre Manuel Antunes, História da Cultura, op. cit., pp. 88-89.

Miri Rubin, “O que é a História Cultural Hoje?”, in David Cannadine (coord.), Que é a História Hoje?, Lisboa, Gradiva, 2006, p. 123.

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As várias propostas de leitura interpretativa da Cultura Portuguesa serão tidas em conta e aludidas como importantes tentativas hermenêuticas de compreensão dos dinamismos e produções discursivas da cultura portuguesa. Serão trazidos à colação como pertinentes para efeitos de análise operatória e de classificação, as quatro leituras da Cultura Portuguesa propostas por Luís Machado de Abreu (mística, racionalista, psicanalítica e socioeconómica)28 as categorizações dos quatro grandes modelos-padrão da forma mentis da nossa cultura estabelecidas por Miguel Real na sua recentíssima Introdução à Cultura Portuguesa (Lírico-Espiritual, Providencialista, Racionalista, Modernista)29 , ambos os especialistas tendo por pano de fundo os caminhos de interpretação abertos por pensadores como Manuel Antunes em Repensar Portugal e, mormente Eduardo Lourenço nos seus vários textos de hermenêutica cultural. Eduardo Lourenço definiu também as quatro leituras paradigmáticas da nossa cultura, que se tornaram categorizações de referência para os anteriores especialistas citados e para outros: “a visão conservadora (a do nacionalismo político de referência católica tradicionalista), a visão mítica e profética (igualmente conservadora no plano político mas menos ligada à referência católica tradicional), a visão racionalista, de inspiração mais ou menos sergista (reformista em política e historicista liberal em matéria de cultura), a visão marxista (igualmente racionalista mas sem conotações liberais em matéria ideológica)”30 .

Pensamos que a nossa proposta de ensino deverá ter um enfoque dominante – sem deixar de seguir o caudal das linhas identificativas classicamente estabelecidas para caracterizar a Cultura Moderna Portuguesa (criações da literatura, da história, da ciência, do pensamento e de outros produtos da cultura imaterial e erudita em geral) – na questão da exposição pedagógica e na problematização dos elementos constitu28

Luís Machado de Abreu, Leituras da Cultura Portuguesa, já cit., p. 49.

Miguel Real, Introdução à Cultura Portuguesa, prefácio de Guilherme d’Oliveira Martins, Lisboa, Planeta, 2011, p. 24.

30 Eduardo Lourenço, “Contra o previsível Post-Scriptum”, in Raiz e Utopia, n.o 5-6, s.d., p. 17.

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tivos da identidade portuguesa numa perspetiva nacionalizante que encontra na Época Moderna o seu momento charneira de estruturação. De facto, consideramos que a Época Moderna, sobretudo os séculos XVI e XVII é o tempo da construção de uma cultura da proto-nacionalidade portuguesa.

Conhecendo e dando a conhecer didaticamente os debates em torno da ideia de nação e da construção de uma identidade nacional, procuraremos seguir um caminho intermédio entre aqueles autores (como Anthony Smith, Guy Hermet, Josep Llobera. . . ) que situam a emergência da ideia de nação logo no coração da Idade Média com as primeiras fundações dos reinos europeus que se vieram a consolidar modernamente e aqueles que sustentam que apenas é defensável falar em ideia de Nação e de Nacionalidade e mais ainda de nacionalismo no momento de consolidação da ideia de Estado-Nação.

Esta ideia encontra o seu período de afirmação centralizante no Iluminismo e com a Revolução Francesa (Jean-Luc Chabot) e a Revolução Industrial (Ernest Gellner), tendo depois o seu zénite nos séculos XIX e XX, aquando da exorbitação dos movimentos nacionalistas da história contemporânea (Patrick Geary), ou aqueles ainda que, mais radicais, acham que nacionalidade e nacionalismo são conceitos apenas situáveis como ideias acabadas no tempo da afirmação dos média no século XX e da comunicação de massas, perspetiva valorizada pela análise crítica mais recente de Benedict Anderson, entre outros, o que, aliás, vem pôr em evidência o que foi formulado pertinentemente por Claude-Gilbert Dubois: “A nação é em primeiro lugar uma emoção”.

E depois quanto à concepção de nação, acrescenta: “a ideia de nação é em primeiro lugar uma ideia”31 .

Na nossa ótica, e com base nos estudos que realizámos sobre o período do humanismo e do barroco tendo por centro figuras do pensamento português como Fernando Oliveira e António Vieira, consi31

Claude-Gilbert Dubois, “Qu’est-ce qu’une Nation? Conscience d’identité et respect de l’altérité”, in L’Imaginaire de la Nation (1792-1992) – Colloque européen de Bordeaux, Bordeaux, PUB, 1991, pp. 19 e 20.

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deramos o tempo dos intelectuais da corrente humanista e o escol dos autores da época barroca, que produziram pensamento e que deu densidade a uma ideia de Portugal em equação com o que se passava na Europa como o tempo dos ideógrafos da proto-nacionalidade. Com efeito, esses autores lançaram as bases míticas e forneceram conteúdos ideográficos aos elementos culturais fundamentais que mais tarde serão amplamente desenvolvidos e enfatizados pelo que viria a ser a corrente do nacionalismo português e a sua ideia de nacionalidade portuguesa.

Neste sentido, valorizaremos não só os fundamentais elementos constitutivos da identidade de um povo (território, costumes, língua. . . ) que se passou progressivamente a entender como nação, transitando da ideia medieval de fidelidade e ligação afetiva, vassálica a um senhor ou a um rei no quadro do entendimento de Portugal como um Reino, portanto, a uma forma de organização política ou a um regime e modo de exercício de uma autoridade soberana, mas também, tomando em linha de conta os contributos da Antropologia, da Filosofia, da Teologia e da Psicologia, e valorizando a importância das representações, daremos especial enfoque ao horizonte de compreensão e mobilização afetiva marcado pelo imaginário, na linha do que têm defendido autores como Benedict Anderson, Lucian Boia e Patrick Geary.

Anderson tem salientado com os seus estudos editados na obra Comunidades Imaginadas, com grande influência na problematização do conceito de nação, a ideia de nacionalidade como “uma comunidade política imaginada – e que é imaginada ao mesmo tempo como intrinsecamente limitada e soberana”32 . Portanto, reputaremos como relevante a chamada história do imaginário como horizonte hermenêutico que permitirá compreender este caminho de elaboração cultural na longa duração, conscientes de que esta é uma perspetiva que, aspirando à compreensão global da evolução das sociedades vivas no dizer do Borges de Macedo, precisa sempre de outras leituras para se completar.

Lucian Boia evidencia isto mesmo: “Os historiadores dividem a his32

Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a Origem e a Expansão do Nacionalismo, Lisboa, Edições 70, 2005, p. 25.

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tória em «domínios». Mas deve-se ter mais em atenção as perspetivas da história, as suas perspetivas diversas. (. . . ) Pode-se abordar a história sob o ângulo material e económico, como fez Braudel. Pode-se olhar do ponto de vista da demografia, das mentalidades, dos factos e das estruturas políticas. . . Cada perspetiva aspira à globalidade. Cada uma delas é suscetível de estruturar uma história global. A história do imaginário é uma dessas perspetivas, capaz de oferecer uma visão globalizante sobre o homem e a sua evolução”33 .

Têm-se aproximado deste entendimento da questão da identidade nacional pensadores como José Mattoso, António Borges Coelho, Pedro Calafate, Boaventura Sousa Santos e Eduardo Lourenço em obras diversas dedicadas à construção da cultura e dos traços identitários portugueses na linha do entendimento da “consciência de pertença” e dos “valores emotivos”34 .

Dentro deste quadro ideográfico, ganha sentido o conceito de nação avançado por Pedro Calafate entendida mais como uma comunidade de afetos e menos como uma intelectualização racionalmente bem definida. Este conceito permite destacar a importância das representações e da canonização pelo imaginário comum da visão do passado, suscitando a interrogação em torno do sentido do presente e aspirar a um futuro que é acima de tudo desejo em função dessa mesma idealização do passado35 . Todo esse processo de idealização e de produção de saber ideologicamente orientado para afirmar uma condição distinta e distintiva de cultura adjetivada de portuguesa teve um extraordinário poder modelador dos vetores definidores da Cultura Moderna elaborada em Portugal36 .

33

Lucian Boia, Pour une Histoire de l’Imaginaire, Paris, Les Belles Lettres, 1998, pp. 28-29.

34 José Mattoso, Identidade Nacional, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2008. Tradução nossa.

35 Pedro Calafate, Relatório de Agregação, op. cit.

36 Cf. António Borges, Questionar a História: Ensaios sobre a História de Portugal, 2a ed., Lisboa, Caminho, 1986.

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Contribuiremos, em contexto de docência e reflexão teórica sobre a emergência da ideia de nacionalidade culturalmente sedimentada, com uma proposta categorial do que designamos como sendo os pontos nodais mitificantes da ideia de nacionalidade portuguesa. Como temos já avançado em conferências proferidas em congressos e conferência internacionais sobre a problemática das culturas nacionais, entendemos que a formação da ideia de identidade nacional articula-se na modelação de um complexo mítico que envolve a marcação clara de pontos ideográficos de afirmação e distinção, de pontos de negação, de pontos espelhos de atração e de pontos de fuga.

No processo cultural de construção do discurso identitário português descortinaremos, através da sua voz intelectual, os traços desse desenho imaginário que formam os referentes mitificados dos contornos afetivos da nossa comunidade imaginada como comunidade nacional37 .

A elaboração cultural do que chamamos o complexo mítico da identidade nacionalizante portuguesa teve lugar na Modernidade com especial incidência entre os séculos XV-XVIII. Discursos de vários géneros (literário, poético, historiográfico, geográfico, etc.) estabeleceram este complexo mitificante em que hoje nos revemos enquanto povo, quer de forma declarada e consciente, quer de forma latente no inconsciente colectivo, mas que se vai manifestando de muitos modos.

A mitificação das origens, as gestas portuguesas engradecidas epicamente, a sobrevalorização de uma idade de ouro e a visão utópica de uma destinação teleologicamente predita para erguer o Quinto Império do Mundo constituem as quatros dimensões, os quatro pontos de afirmação de sentido histórico que se distinguem. O anticastelhanismo, o anti-islamismo, o antissemitismo e o antijesuitismo constituem os pontos de negação modelados por um discurso propagandístico intenso com implicações condicionantes da leitura da nossa história e dos nossos projetos de viabilidade enquanto país. A ideia Europa, cada vez mais mitificada com o avançar da modernidade e das nossas 37

Ver figura 1.

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perdas, funcionará como espelho, palco, meta e modelo, onde procurámos legitimação, reconhecimento credenciado, além de, a dada altura, se torna meta/paradigma crítica do nosso “atraso” e do nosso desejo de progresso nunca satisfatoriamente alcançado. Os diferentes espaços do império em expansão (Norte de África, Costa Atlântica africana e Oriente); e depois os novamente desejados (Brasil, primeiro, África depois) serão os nossos pontos de fuga, saídas almejadas para superar as crises e encontrar uma nova viabilidade para Portugal.

Veremos como a afirmação cultural de uma identidade nacionalizante, como é bem ilustrativo o processo de ideografização da nação portuguesa, é feita, no plano da construção de um imaginário nacional articulado e significativo, com recurso a processos mitificantes de afirmação firmados em referentes de leitura e de compreensão da trajetória histórica da comunidade nacional como comunidade de destino com origens lídimas e paradigmáticas. O investimento cultural de pontos de afirmação será necessariamente acompanhado por processos de negação, também mitificados, que funcionam como polos negativos de oposição/rejeição (pontos de negação), de pontos idealizados de fuga, assim como da referência a um horizonte comparatista, que chamamos ponto de espelho para avaliação/legitimação, funcionando em linguagem freudiana como uma espécie de super-ego da nação.

Serão utilizados e recomendados para o estudo da construção de uma cultura identitária nesta cadeira, fazendo eco do que a nível internacional tem sido pensado no que respeita à análise crítica da elaboração das identidades e sua problemática, as obras publicadas e promovidas pelo Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, nomeadamente um volumoso livro de estudos atualizados produzidos no quadro de uma reunião científica organizada com a finalidade de produzir reflexão sobre o assunto, com o título Nação e identidade(s)38 .

38

Cf. Hermenegildo Fernandes et al. (Eds.), Nação e Identidade(s): Portugal, os Portugueses e os Outros, Lisboa, Calesdoscópio, 2009.

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A elaboração da Cultura Moderna portuguesa, consubstanciada nos diferentes discursos mais ou menos eruditos e mais ou menos científicos em torno da filologia, da história, da dramaturgia, do romance, da poesia, da ciência náutica e da parenética é atravessada de forma dominante pelo fito de serviço a um ideário de distinção dos aspetos que perfazem aquilo a que se chama identidade portuguesa, segundo uma perspetiva nacionalizante: língua, costumes, comportamentos, realizações próprias, figuras e práticas exemplares, etc.

Demonstraremos pedagogicamente que a cultura moderna na sua esmagadora maioria está grávida de nacionalidade e é marcada pela preocupação de declarar ou implicitamente afirmar uma ideia de Portugal que surpreenderemos espraiada em diferentes discursos, à luz da preocupação quase obsessiva de distinguir o que é produzido em Portugal e pelos portugueses.

Ora este processo de afirmação da cultura de um povo à luz de um ideário nacionalizante será explicado num quadro mais vasto. Enquadrá-lo-emos no movimento de afirmação moderna dos Estados europeus e da nova ideia de Europa que sucede à ideia medieval de Cristandade decorrente do processo de desencantamento do mundo e da secularização crescente fomentada pelas reformas protestantes. Estas desencadearam o estrangulamento da unidade medieval que tinha sido consolidada pelo teocentrismo definido por uma autoridade eclesiástica única. Simultaneamente, procederemos à integração do referido processo de fratura da sociedade medieval na dinâmica culturalmente sustentada do chamado “mercado das nacionalidades”, em que se envolveram intelectuais de todos os países europeus, destacando-se os casos emblemáticos da França, da Espanha, da Polónia e da Rússia. No processo de secularização da sociedade em curso, o ponto de unidade passa cada vez mais a ser concitado pelo sentimento nacional agregador e mobilizador e menos por uma confissão religiosa única sentida e acreditada do mesmo modo na Europa cristã, como na Idade Média.

Neste contexto, procuraremos tematizar as grandes questões, evidenciaremos os temas fundamentais e as categorias de afirmação distin-

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tiva das diferentes ideias de nação. Verificaremos, que, de algum modo toda a produção cultural, mesmo a de natureza material, se orienta para definir, ou querer definir-se na óptica do particular nacional por relação ou por concorrência com o geral universal.

Como estratégia de assimilação dos marcos, acontecimentos, factos, figuras e obras da época em estudo, proporemos, desde a primeira aula, a cada aluno que individualmente elabore de forma progressiva uma tábua cronológica a partir dos elementos colhidos no processo de docência e de estudo pessoal sob a orientação do professor.

O caminho pedagógico de ensino/aprendizagem da Cultura Moderna pretenderá, pois, chegar aquilo que designámos os vários pontos/eixos que constituem o complexo mítico da cultura identitária nacionalizante: pontos de afirmação, pontos de espelho, pontos de fuga e pontos de negação, os quais irão ser definidos, explicados e aplicados analiticamente ao longo deste relatório e assinalados na referida tábua cronológica construída pelos alunos.

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Parte I DEALBAR DA CULTURA MODERNA

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Módulo 1 Visão Sinóptica – As raízes do Universalismo Português.

– Uma nova viabilidade para Portugal: Dinastia de Avis e a força de um Reino de Portugal refundado.

– “Ínclita Geração” e a problemática dos protagonismos.

– O projeto expansionista português e a proto-globalização: correntes, motivações e interpretações.

– O duplo movimento de expansão portuguesa: norte-africana e marítima descobrimentista.

– Tratados e controlo dos oceanos: mare clausum vs mare liberum.

– Transições modernas: • Autores e obras pioneiras: Protogénese da cultura Moderna; • Da Cristandade à Ideia de Europa; • Da cronística à historiografia; • A emergência do Romance Moderno; • O papel do teatro: denúncia e consciência crítica; • O desenhar das tendências: lírico-espiritual, europeísta e providencialista; • A génese da imprensa e a revolução do conhecimento.

EXPLANAÇÃO Este primeiro módulo de ensino começará por dar conta da discussão em torno das possibilidades e limites da construção da ideia de Modernidade ou de Época Moderna por referência às balizas cronológicas da disciplina e ao que foi convencionado para as diferentes fronteiras das épocas históricas. Sugeriremos, para aprofundar a problemática dos limites impostos pelo risco de simplificação que se incorrem na conveniência da compartimentação da história em épocas e/ou idades, o estudo das propostas de análise crítica de Jacques Le Goff em torno da “Memória”, da “História” e das “Idades Míticas”.

Entendemos fundamental iniciar a lecionação com a problematização dos conceitos de ruptura, de transição, regresso às fontes clássicas, crise do conceito de autoridade e da emergência de um tempo novo a que costumava andar associada a ideia de Modernidade por confronto com a Idade Média e o seu alegado crepúsculo. Consideraremos adequado dar a perceber a formação do conceito de Idade Média e desconstruir as representações simplificadas da mesma, as quais estão na base da criação de um poderoso mito negro desta época histórica enfatizado através do excessivo valor que foi conferido à tese da ruptura da Modernidade, obnubilando a complexidade da transição e a fundura das raízes.

No que a Portugal diz respeito importará descrever, desde logo, a ascensão de uma nova dinastia que contribuirá para formar uma outra visão do mundo, do homem, do cosmos e da própria ideia de povo português e do seu sentir nacionalizante. A historiogénese da ideia de nação engrandece-se num horizonte potenciado por um imaginário mitificante, em que a comunidade de origem é cada vez mais pensada sobre uma idealização dos seus primórdios, relevando-se uma história e um destino comuns e com um sentido que começa pouco a pouco a ser mais definido e necessariamente explicado. Cumprirá, pois, recuar

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às raízes políticas e sociais que se podem encontrar na revolução de 1383-85 e às possibilidades que esta mudança no corpo político e social anunciam. Nesta “primeira revolução portuguesa”, pode-se discernir as raízes da Modernidade deste reino, sendo que o tempo definido como medieval começa, então, a caminhar para o seu epílogo.

A nova Dinastia de Avis, a assunção social de uma nova classe empreendedora em termos comerciais, a burguesa mercantil e urbana, bem como a afirmação de novos protagonismos no campo da criação cultural a que se liga o conceito mitificado de “Ínclita Geração” associado ao significado da intervenção dos descendentes de D. João I e de D. Filipa de Lencastre nos planos político, empresarial, social e cultural (v.g. D. Duarte, Infante D. Henrique, Infante D. Pedro. . . ) – fizeram exprimir, no plano do discurso, a consciência de um tempo renovado que se revelará plenamente no século de Quinhentos. As raízes da Modernidade assentam numa determinada mobilidade social e circulação cultural, que cria, pois, um novo espírito e um novo dinamismo.

Não deixaremos de referir algumas perspetivas hermenêuticas que cavam mais fundo e permitem complexificar em vários foros, para além dos consagrados fatores políticos e económicos, as raízes que formam o espírito que modelará a Modernidade portuguesa, nomeadamente o cantado espírito universalista português que será motor de um dinamismo de abertura ao mundo pela aventura da expansão portuguesa para além das fronteiras europeias.

Avocaremos a perspetiva estimulante de Jaime Cortesão que, esgravatando nos alicerces da formação das mentalidades, releva, no plano da história do imaginário e das mentalidades e muito também da história religiosa, a influência modeladora do franciscanismo e do joaquimismo, associada ao ideal de cavalaria e do desejo de liberdade e democracia expresso na organização social municipalista. A força destes ideais terá gerado um espírito aventureiro, ousado e curioso. Seria esta atitude de descoberta que teria formado o movimento empenhado em desbravar o horizonte incógnito que delinearia a construção da uni-

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versalidade moderna de protagonismo luso, na esteira do que pensou o historiador Jaime Cortesão.

Esse dinamismo novo foi também assinalado por um espírito de abertura à Europa, através da circulação de pessoas e ideias, da intensificação da política de envio de bolseiros para estudar nas universidades europeias e pela preocupação em ver reconhecida junto dos centros do poder político e religioso do continente da Cristandade aquilo por que Portugal viria a ser distinguido. Desenvolve-se, paralelamente, uma cultura de corte e pela Corte promovida, especialmente, entre os reinados de Afonso V e de D. João III. O desejo de afirmação portuguesa é expresso política e culturalmente no advogado investimento que seria preciso fazer – e acabou por ser feito de muitos modos, embora considerados insuficientes pelo escol dos nossos intelectuais humanistas – para noticiar as realizações portuguesas que começaram a acontecer em crescendo ao longo do século XV. De facto, a Época Moderna portuguesa e o Renascimento associado ao dealbar daquela no contexto do Renascimento europeu – ou como sugere António José Saraiva, dos vários Renascimentos europeus – são culturalmente marcados pelo investimento político, económico e religioso no movimento de expansão para além das fronteiras continentais da velha Cristandade. Juntamente com a vizinha Espanha, e em concorrência com esta, Portugal protagonizará um pioneiro movimento expansionista que contribuirá para uma revolução da mundividência europeia e para o que isso representou na construção da Modernidade.

Valerá a pena lembrar e comentar aqui uma passagem de Vitorino Magalhães Godinho sobre a afirmação de Portugal como esforço de diferenciação no espaço peninsular, que tanto acontece no momento da primeira autonomia protagonizada por D. Afonso Henriques, como naquela que podemos considerar a segunda fundação que teria passado pela construção de uma rede globalizada de empórios designada no seu conjunto de império português: “Portugal constituiu-se, e parece ser esta a primeira característica fundamental, rasgando a homogeneidade

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de uma região peninsular (. . . ). A primeira característica fundamental da nossa cultura e do nosso País reside neste processo de formação, de ruptura com o homogéneo e de integração do que é heterogéneo, daquilo que é diferente”1 .

Procuraremos caracterizar esse movimento de expansão distinguindo dois andamentos, ora feitos em concomitância ora em alternativa consoante as opções políticas e a importância estratégica atribuída a um e a outros pelos diferentes reinados. A conquista de Ceuta em 1415 e a descoberta da primeira ilha do Arquipélago da Madeira, em 1418, inauguraram este duplo movimento expansionista português. O primeiro, tendo por base a continuação do ideário cruzadístico medieval de reconquista e expansão territorial que visava continuar o movimento de reconquista e ganhar terreno no Norte de África ao poder mouro, procurando ainda legitimação na doutrina teológica da guerra justa; o segundo, à luz de um ideário de teor universalista moderno e com a utilização dos saberes alcançados pelos progressos científicos e técnicos no campo da navegação, visava aprofundar o conhecimento do globo através de viagens marítimas arriscadas que vieram a permitir conhecer toda a costa africana, abrir caminho nos oceanos até aos povos do Oriente e do Extremo Oriente e ainda revelar um novo continente, o chamado Novo Mundo, no continente americano.

O conhecimento e reconhecimento de novos territórios e povos vão ser acompanhados da aplicação de políticas estratégicas de povoamento e de colonização em ordem a constituírem empórios através de fortalezas e feitorias comerciais, onde se ensaiaram formas de organização sociopolítica adaptadas aos novos contextos, culturas e espaços. Realçaremos o modo como este movimento expansionista permitiu criar um dos primeiros grandes impérios europeus modernos, abrindo caminhos cada vez mais largos para trocas de mercadorias, produtos, pessoas, dados civilizacionais e religiosos com grandes implicações políticas, sociais e, especialmente, culturais.

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Vitorino Magalhães Godinho, Reflexões sobre Portugal e os Portugueses na sua História, Lisboa, Fórum, 1988.

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O processo expansionista das duas monarquias ibéricas em concorrência permite descerrar aos olhos da Europa novos mundos, novos povos, novas culturas, novas religiões, até então apenas disformemente imaginadas por tratados medievais antigos, obrigando os poderes português e castelhano a sentar-se à mesa para concertar uma política de controlo dos mares neste momento charneira da proto-globalização das relações entre os povos e as civilizações do mundo.

Note-se que Portugal (à semelhança do que fará Espanha), desde os primeiros passos dados pela sua política expansionista extra-europeia procurou empenhadamente, através da acumulação de bulas papais e de outros meios de autorização, legitimar os novos domínios cada vez mais longínquos, os quais deseja ter sob o seu controlo. O religioso será aqui sempre o horizonte legitimador a que se recorre para fundar todo esse desiderato estratégico de caucionamento em sintonia com o horizonte teológico cristão de sentido e de missão. Ao mesmo tempo, serão negociados e assinados tratados importantes, entre os quais se deverá destacar aquele que ficou mais conhecido e mais operativo, o célebre Tratado de Tordesilhas em 1494, que tinha sido antecedido pelo Tratado de Alcáçovas celebrado em 1479. Estes tratados, carregado de significado político, mas também cultural, têm na base a consciência de que importava regular e estabelecer limites à empresa em curso das viagens marítimas que tinha trazido resultados espetaculares de que não havia memória na Europa. Importava continuá-la de forma concertada e em paz entre estas duas Coroas cristãs de modo a precaver a ambição previsível de outros poderes europeus.

Esta tratadística que estabeleceu o direito de controlo dos mares pelas soberanias ibéricas institui o direito reservado do Mare Clausum que mais tarde será contraposta pela nova filosofia do direito internacional consubstanciada no conceito de Mare Liberum consagrado por Hugo Grócio (1583-1645) no título que deu nome à sua obra sobre a questão em 1608 quando a Holanda começou a afirmar-se, no dealbar do século XVII, como um concorrente imperial sério contra os interesses estabelecidos dos impérios ibéricos no mundo. Uma nova mundivi-

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dência surge com as viagens de pesquisa e expansão marítima, criando-se concomitantemente a necessidade de ordenar e controlar, em termos do direito politicamente definido do usufruto, o mundo descoberto, entretanto, aos olhos da Europa.

A geração de Avis e o seu empreendedorismo político-militar e empresarial, mas também cultural vai marcar, nitidamente, o dealbar de uma era de mudanças, de transformações que fazem surgir as marcas da transição para um tempo novo. Estas são visíveis na criação de uma consciência nova de espaço-mundo, de tempo-história, de homem-povos, de conhecimento-vida, de compreensão-experiência, de passado-futuro, fruto da inspiração poderosa de um presente de realizações que são lidas como surpreendentes, extraordinárias porque absolutamente inéditas e vistas como tendo sido oferecidas como dádiva dos céus, porque possibilitadas por uma assistência especial da graça transcendente.

Esta consciência nova associada ao desenvolvimento de tecnologias mais avançadas, sobretudo de transporte, de equipamento militar e de instrumentos de difusão de conhecimento, foi expressa em produtos culturais que constituíram marcas indeléveis deste tempo. Foram produzidos documentos-charneira que permitem repensar e rever o saber herdado sobre o homem, a sociedade, a política, a moral, o mundo, a história dos povos e das suas relações, o estatuto dos diferentes reinos no quadro da Europa Cristã e da sua relação com outros blocos civilizacionais.

Nesta sucessão de mudanças se situará a emergência, no plano cultural, de uma nova consciência histórica com a cronística pioneira de Fernão Lopes (c. 1380 – c. 1458), considerado o pai da história portuguesa de feição moderna, levando a cabo uma leitura ideográfica (à luz de referentes messiânicos) da ruptura operada pela Revolução de 1383-85 e a assunção da nova geração de Avis liderada por D. João I e protegida pelo sucesso da estratégia militar do Condestável Nun’Álvares Pereira. Uma nova consciência se expressa em Fernão Lopes: uma nova percepção de povo com sentido de agregação afetiva em torno do

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rei e do reino. É aqui que começa o que o acutilante historiador António Borges Coelho considera o progressivo nascimento do sentimento nacionalizante, de crise em crise: “só quando o Estado é submetido às fortes crises de 1383, 1580, 1640, a nacionalidade se denuncia e estremece”2 .

Esta corrente de labor historiografante será continuada depois com a cronística dos reinados posteriores, pela pena de autores como Garcia de Resende e Rui de Pina e, antes destes, acompanhando o processo descobrimentista, pelas emblemáticas crónicas do Guarda-Mor da Torre do Tombo Gomes Eanes de Zurara (c. 1410 – c. 1474), que consideraremos o proto-cronista da expansão portuguesa, em face da sua fundamentação legitimadora da política expansionista portuguesa e construtora de uma nova visão do mundo à luz do ideário universalista cristão. Preponderará, no discurso sobre esta nova mundividência que se quer afirmar, a figura mitificada apresentada de forma lídima como o grande protagonista da empresa de expansão marítima: o Infante D. Henrique considerado por Zurara “pouco menos que divino” na Crónica da Guiné (1453).

Selecionaremos, para leitura e análise com os alunos, alguns trechos ilustrativos destes proto-historiadores da Modernidade portuguesa em gestação, em particular da Crónica de D. João I, da Crónica da Tomada de Ceuta e da Crónica dos Feitos da Guiné, onde se começa a desenhar uma interpretação das realizações portuguesas à luz de uma visão providencialista da história que cava os alicerces para o desenvolvimento do processo de mitificação desta nova “Idade” portuguesa como uma idade dourada de carácter messiânico. Esse escopo de elaboração mítica será seguido e evidenciado criticamente por nós ao longo das lições desta disciplina até ao século XVIII. Observaremos aqui a formação cultural de um dos mitos estruturantes da Cultura Portuguesa que se inscreve genericamente na categoria dos mitos de expansão. O mito português de expansão fundará, no que a Portugal diz respeito, precisamente aquela que será empolada como a 2

António Borges Coelho, Questionar a História. . . , op. cit., p. 223.

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Época Áurea de referência da História de Portugal, e permitirá entender a modalização de um dos pontos de afirmação daquele que denominamos de complexo mítico português. A Idade de Ouro, na sua receção será, com efeito, representada cada vez mais como a idade de ouro perdida.

Não descuraremos, neste contexto de referência ao relevo que ganham, no plano da História Cultural os discursos cronicológicos, isto é, a produção escrita de documentos que estabelece aquilo que se designou como sendo o processo de mitificação das origens do Reino de Portugal constituído por vontade divina. Aparecem, pois, em favor de uma leitura providencialista da história portuguesa e da valorização das suas realizações presentes nas primeiras narrativas do milagre de Ourique interessadamente credenciadas e reutilizadas mais tarde pelos intelectuais responsáveis pela mitificação da História de Portugal. Estas narrativas só no século XIX serão postas plenamente em causa por Alexandre Herculano, que o faz de forma contundente na sua historiografia crítica consolidando em termos de argumentação e fundamentação a crítica iluminista inaugurada no século anterior, nomeadamente por Luís António Verney, contra os “delírios proféticos” do messianismo português, argumentação essa consubstanciada na corrente sebastianista. Aludiremos à Crónica de Portugal de 1419 descoberta contemporaneamente em 1942 por Magalhães Basto e atribuída, embora de forma não conclusiva, a Fernão Lopes, por historiadores como António José Saraiva e Lindley Cintra, bem como à Crónica de D. Afonso Henriques de Duarte Galvão (c. 1438 – 1517) que engrandece e beatifica a figura do primeiro rei de Portugal.

Neste período que designaremos de proto-moderno, veremos como as transformações sociopolíticas em curso induzem à reflexão e ao estabelecimento de critérios, assim como a uma afirmação de valores em termos de ética social, de que o Leal Conselheiro, composto pelo Rei D. Duarte entre 1437 e 1438, é exemplo paradigmático. A obra deste Rei torna-se uma espécie de manual para uma nova sabedoria adequada aos novos tempos, comportando os traços característicos da moderni-

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dade assentes na referência aos valores e paradigmas clássicos. Na sua base, está o saber recuperado do pensamento ético de Cícero patente em obras como De officiis e De Amicitia, em associação com os dados da experiência do autor, tecendo um discurso que incorpora considerações de carácter pessoal, que parece inaugurar, segundo alguns autores, práticas discursivas literárias de pendor autobiográfico. Aliás, deveremos aludir à inserção da referência analítica a esta obra no âmbito daquilo que se divisa como uma espécie de preocupação/programa protagonizado por D. João I e seus filhos no sentido de oferecer instrumentos de formação das novas elites sociais de modo a promover a consolidação da ordem sociopolítica saída da dinastia instituída em 1385. O próprio D. João I tinha preparado o Livro da Montaria. Este apresenta-se não apenas como mero manual de instrução de caça. Mais do que isso, tem uma forte componente de educação moral dirigida à Nobreza. Como também se deverá referir a política legislativa dos sucessivos monarcas, a começar por D. Duarte, no sentido de compilar e reorientar a legislação dispersa em modernos códigos, sob o nome de Ordenações. Estas fundam o processo de elaboração de um novo ordenamento jurídico que servirá o ideário de centralização progressivo do poder do Estado nas mãos do rei e do organigrama do funcionalismo régio.

O investimento no regresso às fontes clássicas através da prática da tradução tornou-se uma preocupação que empenhou figuras da intelectualidade do tempo. Destacaremos, em especial, outra figura incontornável da chamada e mitificada Ínclita Geração, o outro célebre Infante da geração fecunda de Avis: o Infante D. Pedro (1392-1449), intelectual e mecenas com preocupações eruditas que muito beneficiou culturalmente com as suas viagens pela Europa. Este proto-viajante moderno, viajante do conhecimento e da cultura (que seculariza de algum modo o ideário medieval de viagem assente no apelo religioso da peregrinatio), empenhou-se na promoção do trabalho de tradução de obras clássicas, tendo também participado no trabalho de preparar a edição em vernáculo de obras de Cícero, tal como a referida anteriormente, De officiis. Bebendo nos clássicos, particularmente em Cícero e

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Séneca, D. Pedro, na linha do seu irmão rei, escreve o Livro da Virtuosa Benfeitoria, ensaiando, à luz de uma argumentação tipicamente escolástica, a definição de conceitos, problematizando a estruturação piramidal da sociedade e as relações de paridade e de dependência entre os seus diferentes graus, propondo, no fundo, uma ética social, de modo a sustentar a harmonia de um quadro social assente no reconhecimento das hierarquias que tinham por cabeça primeira Deus, fundamento de toda a organização social humana, as quais, por sua vez, tinha na terra o Rei por cabeça. Estamos diante de uma obra situada na génese da corrente cultural proto-nacionalizante que tivera em Fernão Lopes o pioneiro por ter realçado a importância da coesão, da unidade do corpo social em torno de quem conduz os seus destinos, sentimento e laços de lealdade considerados fundamentais para o sucesso do projeto comum que define a caminhada de determinada comunidade humana num dado espaço e num dado tempo.

Entenderemos como relevante alegar, de D. Pedro ainda, a famosa Carta de Bruges, que será apresentada como pioneira da nova ideia da Europa que começa a emergir na Modernidade. A Carta de Bruges torna-se referência, ou espelho crítico para, no diagnóstico dos problemas do reino, inspirar as reformas que se impõem. Com efeito, graças ao dinamismo externalista de expansão, de abertura da Europa ao mundo, associado depois aos debates e à reivindicação de reformas religiosas e políticas no seio da Cristandade que desembocaram, no século XVI, em fraturas operadas pelos diferentes movimentos reformistas que se convencionaram chamar de protestantes, opera-se paulatinamente uma transformação da consciência europeia no que se refere à percepção do espaço continental que era normalmente designado como o continente da Cristandade.

Será dado a verificar que um dos testemunhos desta mudança se pode observar na progressiva diversificação do uso do termo “Europa” na documentação portuguesa, em paralelo e, mais tarde, em substituição do vocábulo “Cristandade” para se referir ao espaço físico e cultural do continente geográfico em que se situa o nosso país. Esta assunção

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do termo “Europa” resulta de uma reconfiguração moderna da visão do espaço no âmbito daquele movimento de abertura tardo-medieval e proto-moderno que alguns autores chamarão de “desencantamento do mundo”, devendo-se ao processo sociocultural de secularização, que liberta progressivamente, à luz de uma nova racionalidade, a sociedade e os poderes da tutela do religioso e de um paradigma de compreensão do mundo monitorizada necessariamente pelo teológico e pelo mítico.

A nova ideia de Europa que então emerge é parte importante da elaboração da nova mundividência moderna3 .

Cumprirá dar relevo, neste momento charneira de construção da cultura proto-moderna portuguesa, às primeiras experiências de utilização de uma nova invenção que muito contribuirá para revolucionar a produção e divulgação de conhecimento: a nova técnica de impressão iniciada na Alemanha por João Guttenberg na viragem para a segunda metade de Quatrocentos. Aludiremos aos primeiros livros impressos em Portugal, com base nos trabalhos decisivos de Artur Anselmo, não descurando a história do debate e da pesquisa que permitiu situar com mais rigor os inícios da impressão tipográfica em Portugal, atendendo aos contributos incontornáveis do renomado especialista no Renascimento português, José Vitorino Pina Martins, que situou em Chaves a edição do primeiro livro em língua portuguesa, o Tratado de Confissom, no ano de 1489, antecedido dois anos pela edição do Pentateuco na língua original, a hebraica4 .

Assiste-se, pois, ao desenvolvimento de uma nova cultura de elite, polarizada quer na Corte em torno do Monarca, quer em algumas cortes senhoriais e em torno de algumas instituições religiosas e académicas, como a universidade portuguesa saltitando entre Lisboa e Coimbra, apostada no conhecimento das línguas e culturas clássicas, que gerará o ambiente novo da cultura que se designará como sendo a cultura do Renascimento em Portugal. A influência dos mestres renascentistas ita3

Cf. José Eduardo Franco e Pedro Calafate (coord.), A Europa segundo Portugal: Ideias de Europa na Cultura Portuguesa século a século, Lisboa, Gradiva, 2012.

4 Cf. José V. de Pina Martins, Cultura Portuguesa, Lisboa, Editorial Verbo, 1974.

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lianos marcará a cultura de corte em Portugal. Com efeito, destaca-se a requisição pelos monarcas portugueses de sábios de referência que serão convidados a residir em Portugal, como Justo Baldino chamado por D. Afonso V, ao qual se seguirão vários outros. A circulação de ideias, obras e autores favorecida pelo poder político é também realizada, como já referimos pela ida de bolseiros e de viajantes para o estrangeiro, com vista a preparar-se nos grandes centros universitários e de cultura europeus.

Referiremos, por fim, que este novo dinamismo terá efeitos na criação de novos produtos culturais pioneiros na Cultura Portuguesa, tanto na dramaturgia, com o teatro de denúncia e crítica moral de Gil Vicente (c. 1465 – c. 1536), que assinala de modo perspicaz os proto-sintomas da decadência portuguesa. Destacaremos, a título de exemplo ilustrativo, o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Índia, a Exortação da Guerra e o Auto da Fama. Preocupações críticas para com o estado da sociedade do período dos Descobrimentos serão bem patenteadas por Sá de Miranda na Carta a El-Rei D. João, em que o ilustre introdutor do soneto em Portugal aponta o enfraquecimento moral, a prática generalizada da corrupção e o mal da cobiça. Sá de Miranda defende o regresso ao campo, aos valores tradicionais, recuperando a inspiração clássica de Horácio e do conceito de aurea mediocritas contra os desejos predadores de grandezas e de famas fugazes. Viriato e a tribo dos Lusitanos são evidenciados como os proto-portugueses, exemplos fundadores de carácter, de determinação, de vida leal, modelo de que os portugueses coetâneos estariam perigosamente a afastar-se. Realçaremos ao nível das primeiras criações literárias e de textos científicos, a tentativa de confecção de romance moderno, que se entrevê no caso emblemático de Menina e Moça de Bernardim Ribeiro (c. 1480 – c.

1540) ou na História de Dois Amigos, que Gaspar Frutuoso inclui no V livro das suas Saudades da Terra; e ainda, no âmbito da ciência, os ensaios científicos de Abraão Zacuto (c. 1450 – c. 1522) patenteados no seu Almanaque.

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A nossa proposta pedagógica de apresentar estas marcas referidas como trilhos que abrem a cena no palco da Cultura Moderna portuguesa procura de algum modo analiticamente dialogar com a pertinente definição das balizas temporais da fase da Cultura Portuguesa que se situa de uma forma mais lata entre os reinados de D. Dinis e de D. Manuel com a “Certidão de Baptismo”, como defende Miguel Real, daquele que será o carácter específico da Cultura Portuguesa. Nós, por nosso lado, no que respeita ao período da protogénese da Cultura Portuguesa moderna propriamente dita, situá-la-emos, portanto, entre a assunção da dinastia da Avis até ao final do século XV. Indicaremos, para aprofundamento destes módulos, alguns textos-fontes recortados, analisados e publicados na obra antológica organizada por Pedro Calafate, Portugal como problema, para estudo e debate nas aulas.

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ORIENTAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Luís de (dir.), Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, 2 Vols., [Lisboa], Círculo de Leitores, 1994.

ALBUQUERQUE, Martim de, Estudos de Cultura Portuguesa, I Vol., Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984.

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BARRETO, Luís Filipe, Descobrimentos e Renascimento: Formas de Ser e de Pensar nos séculos XV e XVI, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1982.

BOXER, C. R., O Império colonial português (1415-1825), Lisboa, Edições 70, 2001.

CALAFATE, Pedro (org.), Portugal como problema, vol. I – Séculos X-XVI: A afirmação de um destino colectivo, Lisboa, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, Público, 2006.

CALAFATE, Pedro Calafate e FRANCO, José Eduardo (coord.), Séculos de Ideias: Ideia de Europa em Portugal Século a Século, Lisboa, Gradiva, 2011.

COELHO, António Borges, Raízes da Expansão Portuguesa, Lisboa, Prelo, 1964.

CORTESÃO, Jaime, Os descobrimentos portugueses, 3 vols., Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1990.

DIAS, J. S. Silva, Portugal e a Cultura Europeia (Séculos XVI a XVIII), Introd. e coordenação de Manuel Augusto Rodrigues, Porto, Campo das Letras, 2006.

FERREIRA, Ana Maria Pereira, O essencial sobre Portugal e a origem da liberdade dos mares, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988.

GODINHO, Vitorino Magalhães, Os Descobrimentos e a economia mundial, 4 vols., Lisboa, Presença, 1981-1982.

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LE GOFF, Jacques, História e Memória, vol. II: Memória, Lisboa, Edições 70, 2000.

MATTOSO, José (dir.), História de Portugal, vol. 3, [Lisboa], Estampa, 1993.

NEMÉSIO, Vitorino, Vida e obra do Infante D. Henrique, Porto, Vertente, 1984.

Presença de Portugal no Mundo, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1982.

Obras dos príncipes de Avis: Livro da montaria, Leal conselheiro, Livro da ensinança de bem cavalgar toda sela, Livro da virtuosa benfeitoria, Livro dos ofícios, Introdução e revisão de M. Lopes de Almeida, Porto, Lello & Irmão, 1981.

REAL, Miguel, Introdução à Cultura Portuguesa, Lisboa, Planeta, 2011.

SÁ, A. Moreira de, Humanistas portugueses em Itália, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Cronistas do Século XVI posteriores a Fernão Lopes, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.

SARAIVA, António José, As navegações e as origens da mentalidade científica, Lisboa, Gradiva, 1990.

SARAIVA, António José, O Crepúsculo da Idade Média em Portugal, Lisboa, Gradiva, 1990.

TAVARES, Maria José Ferro, Sociedade e Cultura Portuguesas, 2a ed., Lisboa, Universidade Aberta, 2005.

TOURAINE, Alain, Critique de la Modernité, Paris, La Découverte, 1985.

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Parte II HUMANISMO E RENASCIMENTO: O QUADRO E A DIFUSﾃグ DOS SABERES

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Módulo 2 Visão Sinóptica – Tempos e conceitos.

– Modelo de intelectual.

– Ideia de Ciência e a figuração de Portugal como “pedagogo dos povos”.

– Experiencialismo, Humanismo e Internacionalização.

– Nova ideia de Ciência.

– Autores, disciplinas e obras representativas: • Gramática, geografia, história e ciências náuticas; • Revolução antropológica e conflitos de mundividências; • O poder do Império da Memória.

EXPLANAÇÃO A Cultura Portuguesa e a sua construção só se entendem pela sua capacidade de participar na dinâmica de um espaço cultural mais vasto, seja europeu, seja através da relação com as culturas de outros continentes, contato este que permitiu que Portugal se tornasse plataforma de intercâmbio com a Europa.

Os momentos de choque com o Outro cultural e da inter-relação consequente foram aqueles em que se registou um dinamismo mais inovador e expansivo na nossa criação cultural. O momento maior de afirmação cultural teve início no final do século XV e estendeu-se ao longo da primeira metade do século XVI, marcado pelo labor de um renomado escol dos humanistas, mas não deixou de haver outros momentos importantes, e talvez menos valorizados, que procuraremos salientar ao longo do programa de estudos.

Foi neste tempo-charneira que o nosso país criou formas estéticas próprias, com destaque para o estilo manuelino, codificou a sua forma particular de comunicação através do desenvolvimento de uma língua própria, construiu uma ideia de passado, de história por si feita, de presente atuante e de futuro, à luz de uma mundividência peculiar, mas participante e construtora de uma ideia de universalidade de fundo bíblico, no intercâmbio mutuamente enriquecedor com culturas e povos de várias regiões do planeta.

O século XV português, muito influenciado pelo Renascimento modelado pelo Quattrocento italiano, vai criar o lastro para a assunção de uma escola humanista florescente em Portugal com especial destaque na primeira metade do século XVI que gerou frutos emblemáticos até ao tempo da perda da independência em 1580, fim de um ciclo intelectualmente muito produtivo, a que darão continuidade os intelectuais que se empenharão na produção de uma cultura de resistência, como veremos a seu tempo.

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Este módulo será, pois, dedicado à exposição dos grandes traços distintivos da escola humanístico-renascentista portuguesa, às suas raízes, às suas redes de influência e de circulação de saberes, às suas figuras mais destacadas, começando pelas definições dos conceitos e contextualizações dos tempos culturais.

Em primeiro lugar importará acentuar que o campo cultural do humanismo renascentista português é fundamentalmente aberto, poroso e, portanto, pouco homogéneo, pois é modelado por múltiplas influências e dinamismos.

A caracterização de diferentes discursos-documentos da produção cultural renascentista permitirá apresentar este período da Modernidade como um tempo por excelência de produção de um saber marcado pelo equilíbrio instável entre tradição e inovação, entre saber canonizado e saber revisto e ultrapassado, à luz de uma racionalidade que produz novos saberes tendo por base o confronto entre o saber herdado e o saber inovado pelos dados da experiência empiricamente verificável: ideário de conhecimento condensado no aforismo camoniano do “vi claramente visto”.

Neste sentido, será importante destacar o contributo decisivo das viagens marítimas promovidas pela coroa portuguesa e espanhola para ampliar, a partir dos novos dados provindos deste dinamismo de descoberta/expansão/investigação/intercâmbio, a (re)visão do mundo e da extraordinária diversidade do humano. O processo de descompartimentação do mundo influi fortemente no processo em curso de recuperação e revisão dos clássicos, que deixaram de ser apenas imitados, mas também reavaliados, atualizados e, em muitos aspetos, superados. A proto-globalização operada pelos navegadores ibéricos tem o mérito, no plano cultural, de acelerar e revolucionar crucialmente o esforço de conhecimento antropocentrado iniciado pelas elites europeias, mormente com base na Península Itálica.

A evidenciação do contributo do movimento descobrimentista europeu, liderado pioneiramente pelos navegadores ibéricos, permitir-nos-á perceber a emergência de um macro-campo específico em Por-

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tugal chamado de “cultura dos Descobrimentos”, o qual se organiza a partir de subcampos de investigação/criação/reflexão: um campo de inovação e produção de tecnologia para fornecer instrumentos à empresa de navegação e equipamento militar, abarcando a produção de normas, métodos e estratégias; e um campo de reflexão teórica à luz dos novos dados positivos que permitem a produção de novos tratados. Estes operacionalizam reconfigurações epistemológicas em diversas áreas: geografia, astronomia, botânica, medicina, zoologia, náutica, matemática, entre outros; outra área importante de reflexão/inovação situa-se no campo etno-antropológico, em que se constitui um corpus gnosiológico acompanhado da confrontação/revisão progressiva (muitas vezes polémica e ideologizada) das categorias do entendimento do humano ao deparar-se com a diversidade imensa de povos, com cores, raças, culturas, credos e civilizações muito díspares.

Em termos matriciais, se a potenciação de um renascimento moderno na história da Cultura Portuguesa começou no século de Quatrocentos muito pela influência dos intelectuais italianos, graças à circulação de intelectuais e estudantes bolseiros entre Portugal e Itália, já em Quinhentos o envio de bolseiros por D. João III para Paris abriu um novo campo de influência poderosa vinda de França. E, neste quadro, não poderemos descurar também, entre outras, os contactos com as universidades e centros culturais da vizinha Espanha, por via das relações entre as cortes dos dois reinos e da circulação cultural no âmbito das estruturas internacionais da Igreja, nomeadamente as muitas vezes esquecidas, nas histórias da cultura, trocas culturais operadas através das comunidades das Ordens Religiosas.

Veremos como esta ambiência cultural de elite com cariz erudito, em que a modelação da cultura humanista se funda paradigmaticamente, se forma primeiro no fascínio pelas raízes clássicas da cultura europeia, que se efetivou na aplicação de uma elite intelectual cultora das línguas antigas, recuperando o método filológico e procurando regressar às fontes. Tradução, edição, estudo e interpretação dos textos clássicos a partir das línguas originais em que foram escritos, come-

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çando pelo livro de referência no Ocidente cristão, a Bíblia, passando pelos grandes clássicos, desde Homero e Virgílio aos estoicos helénicos e juristas latinos: eis, de forma genérica, em que consistiu o labor fundamental dos sábios humanistas.

Baseando-nos nos contributos de estudiosos consagrados da História e da Filosofia da Cultura Portuguesa Moderna, como Luís Filipe Barreto e Pedro Calafate, enunciaremos e explicaremos os centros fontais do grande campo da cultura do Renascimento que acabam por evidenciar as chamadas duas hegemonias de saber: a de inscrição escolástica e a de filiação humanista. Nas palavras de Luís Filipe Barreto, que tem muito em conta os estudos de outro importante historiador da cultura, Silva Dias, “a cultura discursiva (isto é, o sistema de produção e de produtos de linguagem/pensamento) do Renascimento português é, acima de tudo, a resultante de três grandes mundos culturais: o escolástico, o humanista e o racionalismo crítico dos Descobrimentos”1 . Será nossa preocupação, todavia, acentuar que estes campos discursivos do cultural não são de natureza estanque, antes devem ser considerados também nas suas interpenetrações que surpreendem qualquer demarcação isolacionista.

No processo pedagógico de definição/explicação dos diferentes discursos culturais que traduzem a produção dos diferentes saberes, caracterizaremos o modelo de intelectual renascentista e a sua demanda de um saber universalizante, investindo no domínio de várias disciplinas, sem que isso signifique necessariamente aquisição de um saber generalista, mas mais acertadamente o domínio de saberes multi-especializados que têm na base o ideário de obter uma visão de conjunto do homem e do cosmos. De algum modo, surpreenderemos em algumas figuras emblemáticas deste período a recuperação da ideia clássica do sábio abrangente que domina vários saberes e desenvol-

1

Cf. Luís Filipe Barreto, Portugal, Mensageiro do Mundo Renascentista. Problemas da Cultura dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Quetzal Editores, 1989, p.

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ve várias competências, como é o caso de Fernando Oliveira por nós detalhadamente estudado em obra publicada.

Para ilustrar os diferentes núcleos de produção de saber do humanismo renascentista português, referiremos, nesta sessão, os representantes mais emblemáticos da chamada escola experiencialista que produziram saber e abordagens reflexivas na vanguarda da cultura do tempo. Procurou-se então perseguir a construção do saber verificado na experiência, valorado racionalmente à luz do critério de verdade objetivável e orientado para a utilidade no atendimento a problemas concretos. Selecionaremos alguns autores com a finalidade de descrever sucintamente os seus trajetos formativos e investigativos, bem como a novidade e significado das suas obras, a saber Duarte Pacheco Pereira (c. 1460 – 1533), D. João de Castro (1500-1548), Fernando Oliveira (c.

1507 – c. 1582), Garcia da Orta (c. 1500 – c. 1568). Daremos alguma atenção ao percurso e obra de Fernão Mendes Pinto (c. 1510 – 1583) e à sua obra Peregrinação, que ultimamente tem merecido atenção nova da parte de estudiosos e divulgadores da cultura, pela novidade que representa na percepção do Outro oriental, espelhando o relato das suas aventurosas viagens pela China o confronto entre as sociedades, religiões e culturas que o autor encontra e a civilização cristã europeia.

Daremos algum enfoque às novas correntes de pensamento crítico, de teologia e de espiritualidade que estavam a abalar, a nível europeu, pilares institucionais do velho modelo sociológico de Cristandade, reivindicando reformas de fundo. Atenção especial merecerá o pensamento reformista e as suas raízes proto-modernas inscritas numa nova espiritualidade conhecida pelo nome de Devotio Moderna, inspirada na obra fundadora de Tomás Kempis intitulada Imitatio Christi, que vai modelar o pensamento reformador de vários intelectuais e fundadores de novos movimentos, igrejas e ordens religiosas, tais como Martinho Lutero e Inácio de Loyola. Evidenciaremos, em particular, a influência de Erasmo de Roterdão, a sua Philosophia Christi e a sua obra emblemática de crítica às instituições cristãs, nomeadamente às ordens religiosas e suas práticas, o Elogio da Loucura. Proporemos o estudo

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da influência do erasmismo em Portugal através da vida e obra de alguns dos nossos humanistas mais notáveis como André de Resende e Damião de Góis.

Se a construção de uma racionalidade para ler o mundo e de uma ideia peculiar de ciência que modela a ciência moderna, autonomizada progressivamente da dependência vista como feudal e acrítica da auctoritas, será uma das grandes conclusões desta lição, importará também fazer a ponte para o enunciado pedagógico que constituirá a lição seguinte. Apontaremos assim um outro saber fundamental e fundante da cultura humanístico-renascentista, a Filologia e a História, explorados com grande investimento ao serviço da edificação de uma identidade portuguesa que se desenha com contornos bem distintivos neste tempo-charneira da Modernidade.

Neste processo de cinzelar uma ideia de Portugal que permita explicar o presente, estabelecer um cânone de leitura do passado e projetar o futuro, a história irmana-se com a gramática, como “línguas irmãs”, no dizer de Filipe Barreto, para garantir o lugar do povo português no “império da memória”: “Gramática e História são, então, pontos do mesmo ou, no máximo, línguas irmãs no quadro do saber humanista. Por isso, Ângelo Policiano (1454-1494), na obra Ponepistemon, de 1491, coloca-as no mesmo ramo disciplinar como cabeça da filosofia racional, e uma outra grande figura do Humanismo renascentista, Jean Luis Vives (1492-1540), em De Disciplinis, 1531, Parte I, Livro II, considera a História como interna à ordem gramatical, atribuindo-lhe os capítulos V e VI do livro «que trata da gramática»”2 .

Para esse efeito, considerado tão necessário como o empenho na edificação material do império, o labor da escrita é reivindicado como uma tarefa urgente, nobilíssima, a que poucos se entregam no país. Por isso, vamos encontrar em muitos autores o apelo recorrente ao “trabalho da memória” que passa pela escrita das gestas portuguesas. O humanista João de Barros, ao lado de Oliveira, entre tantos outros, será 2

Idem, Caminhos dos Saberes no Renascimento Português, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986, p. 19.

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avocado para ilustrar esta consciência de que o sucesso das realizações portuguesas só será definitivamente consagrado pela História. Barros é peremptório, ao enfatizar esta prioridade, lamentando o descuido português neste campo: “E vendo eu que nesta diligência de encomendar as cousas às custódia das letras, conservadoras de todas as obras, a nação portuguesa é tão descuidada de si, quão pronta e diligente em os feitos que lhe competem por milícia, e que mais se preza de fazer que dizer, quis nesta parte usar mais do ofício de estrangeiro que da condição natural, dispondo-me a escrever o que eles fizeram no descobrimento e conquista do Oriente, por se não perderem na memória dos homens que vierem depois de nós tão gloriosos.”3

Concluiremos remetendo para aprofundamento através dos estudos do referido historiador da cultura do Renascimento português, o historiador Luís Filipe Barreto que lembra: “todos os autores de gramáticas portuguesas no Renascimento são, ao mesmo tempo, historiadores e humanistas ou intelectuais com acentuada formação humanista (Fernando Oliveira, João de Barros, Pêro de Magalhães, Duarte Nunes de Leão)”4 .

Também, neste módulo, usaremos para estudo de textos-fonte e respetivos estudos patentes no primeiro volume antológico, Portugal como Problema, organizado pelo Professor Pedro Calafate e citado no módulo anterior.

3 4

João de Barros, Décadas da Ásia, vol. I, Lisboa, 1988, p. 2.

Luís Filipe Barreto, Portugal, Mensageiro. . . , op. cit., p. 51.

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Parte III EXPANSÃO, A IDEIA DE PORTUGAL E DE IMPÉRIO

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Módulo 3 Visão Sinóptica – Problematização da visão da Idade de Ouro portuguesa.

– A Modelação de uma identidade diferenciada.

– A ideia nacionalizante de Portugal no quadro da emergência das ideografias das nacionalidades na Europa.

– Discursos nacionalizantes: • Gramática e Ciência ao serviço da afirmação do protagonismo português; • Épica e História: Modelando a ideia de Portugal como povo pioneiro e como povo eleito; • Geografia e recortes caracteriológicos diferenciadores.

– Ponto de afirmação do complexo mítico de uma identidade nacionalizante: • Recursos mitificadores: A mitificação quadridimensional de uma identidade nacionalizante.

EXPLANAÇÃO É na Modernidade que, por excelência, a cultura portuguesa ganha abertura, dimensão e, de algum modo, se transcende pela capacidade política e “empresarial” de Portugal sair do seu espaço limitado do continente Europeu e aventurar-se, movido por diferentes objetivos (maxime religiosos, económicos,. . . ) na descoberta de “novos mundos”. É neste momento-charneira que a cultura portuguesa se enriquece, ganhando um carácter expansivo ao unir novos mundos, abrindo brechas para a criação de uma rede comunicacional entre culturas e civilizações.

Dedicaremos esta lição fundamentalmente ao estudo das leituras que o movimento de expansão portuguesa moderna inspirou no plano da criação e interpretação patenteada na produção cultural verificável na variedade dos discursos científico, filológico, historiográfico e poético. Ora, observaremos hermeneuticamente que a produção de um discurso informado pelos padrões da escola humanista europeia, valorizada com a aposta na produção de um saber experiencialista que as viagens marítimas proporcionaram e alimentaram, será acompanhada de uma “leitura mística”, providencialista e mitificante do sentido histórico e teleológico pela avaliação das realizações portuguesas. A avaliação sobrevalorizada das gestas portuguesas será posta ao serviço da construção de uma ideia de Portugal e de Império Português ideologicamente orientada para afirmar este reino cada vez mais entendido como povo, como comunidade de destino, distinto, superior, no quadro dos povos da Cristandade Europeia, primeiro, e, depois, em relação aos outros povos do mundo. A cultura nacionalizante portuguesa favorece, por sua via, a construção moderna do proto-eurocentrismo que se enfatizará mais tarde com o apogeu dos impérios coloniais europeus nos século XVIII e XIX e primeiras décadas de XX.

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Este módulo temático permitirá constatar que a afirmação moderna do antropocentrismo, tendo a leitura racionalizante do mundo como critério de objetivação do saber, não foi um processo linear que conduziu ao fito de desencantamento do mundo tal como era percepcionado pela mundividência medieval. De facto, o desencantamento do mundo operado pela construção de um novo saber globalizante, assente na verificação racional e crítica dos dados da realidade, foi acompanhado por aquilo que podemos chamar de novo reencantamento, o encantamento mítico de si, isto é, dos povos-protagonistas das realizações modernas que liberalizaram a circulação num mundo entrincheirado, compartimentado, operando-se aqui o que Pierre Léon denominou como sendo o processo de “descompartimentação do mundo” ou de “unificação do mundo” na expressão de Bernard Vincent1 .

Com efeito, as transformações que se operaram nesta época permitiram ler culturalmente e emergência de um tempo novo. Nova dinastia, assunção de novos atores sociais e culturais, progresso científico e tecnológico, viagens e conquistas extraordinárias, tratados que definem o controlo de metade dos mares do mundo, assunção de um império de abrangência nunca visto, afirmação de uma língua utilizada nas trocas comerciais e culturais em várias partes da terra, expansão do credo religioso cristão através da empresa missionária garantida pela Igreja através das Ordens Religiosas e do sistema de privilégios e de poder (que casava o temporal e religioso numa instituição que iria perdurar – o Padroado Português), são factos novos ocorridos por iniciativa do Reino de Portugal.

Veremos como estes acontecimentos marcantes da Modernidade portuguesa geraram um clima de euforia que teve tradução nos discursos culturais que procuraram reinterpretar afinal o sentido destas 1 Cf. Bernard Vincent, 1492. L’année admirable, [Paris], Flammarion, 1996, p.

149. Os Descobrimentos ibéricos inauguraram um processo histórico que, em crescendo desde então, veio a consagrar um novo quadro das relações planetárias que hoje se usa chamar de globalização. Este processo foi apelidado por alguns historiadores, primeiro por Pierre Chaunu e depois por Pierre Léon, pela terminologia que se tornou clássica da “descompartimentação do mundo”.

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realizações à luz de um processo de mitificação que terá na base uma fundamentação naquilo que designaremos de causalidade sagrada.

Enquadraremos esta leitura, que classificaremos de nacionalizante e fundadora da ideia de proto-nacionalidade portuguesa, no âmbito do conceito operativo designado por “mercado das nacionalidades”, que se afirma nos século XV, XVI e XVII em toda a Europa. Alegaremos para ilustração comparativa os casos da Espanha, da França e da Polónia.

Cada um dos reinos-cada-vez-mais-nações no continente da Cristandade utiliza estratégias eruditas, através do recurso à História, à Filologia, à Literatura, ao Direito, para distinguir a superioridade do seu valor distinto dos outros reinos. Cada reino reivindica para si uma identidade própria capaz de autonomia, de superioridade em relação aos outros reinos, sendo, por isso, capaz também de formar império, isto é, capaz de liderança em relação aos outros povos irmãos na religião cristã. Os discursos nacionalizantes, que se vão generalizar neste período, servem também para legitimar religiosa e politicamente a nova rede internacional extra-europeia de potentados sob administração primeiro de portugueses e espanhóis, e mais tarde de outras potências do continente europeu.

Ao longo da explanação percorreremos de forma sucinta a apresentação de autores e de obras emblemáticas da cultura proto-moderna e moderna que estabeleceram uma ideografia de Portugal com base numa leitura dos acontecimentos do presente explicada à luz de uma visão providencialista da afirmação do reino e do povo português no tempo e na história. A valorização de Portugal, da sua condição e da sua ação será distinguida de modo a fazer do reino uma nação que deteria uma primazia em relação aos outros reinos da cristandade. Veremos como se desenhará a ideia de um Portugal-povo-eleito-Cristandade, o povo eleito da Nova Aliança, sucedendo ao prefigurado povo judeu da Antiga Aliança.

Analisaremos como, através da voz intelectual e no plano das várias produções discursivas (historiográfica, poética, geográfica, mas também disseminada nos tratados de ciência náutica), se vai esculpindo

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uma imagem mitificada, ideal, de um reino de Portugal, que progressivamente se vai abstratizando como conceito, despindo pouco a pouco o qualificativo de “reino” para se apresentar cada vez mais e apenas como “Portugal”.

Faremos notar de que modo a expansão portuguesa e a criação de uma rede imperial, que fez de Portugal o primeiro império da Modernidade e, até então, o maior de sempre em extensão territorial (mais imaginada do que efetivamente real em termos de controlo efetivo), inspira a construção de uma auto-percepção grandiloquente. Portugal pensa-se como aquele reino/povo que teria superado as realizações dos Antigos, sentindo-se capacitado para impor um novo paradigma, um novo modelo imperial.

Com base neste sentimento-percepção de que o país viveria uma fase dourada, extraordinária, repensa-se e canoniza o que designamos como os seus “pontos de afirmação” construtores de identidade no âmbito da formação de um complexo mítico da afirmação de uma cultura nacionalizante. A sua enunciação passa pela tentativa de resposta às perguntas existenciais que se fazem quer aos indivíduos, quer aos povos: de onde vimos? qual o sentido do que fizemos e agora fazemos? para onde vamos? Nas respostas a estas perguntas subliminares explicaremos de que forma, através de várias obras representativas, se operou um processo quadridimensional de mitificação que funda a ideia mitificante de nacionalidade portuguesa: a mitificação das origens, a exaltação de realizações épicas ou heróicas, o destaque de uma idade de ouro e a projeção de uma teleologia apoteótica para completar, plenificar a missão do povo português em função da qual a nação teria sido fundada. Teremos como referência, entre outros estudiosos, a definição de mito dada por Roger Callois: “O mito (. . . ) pertence por definição ao coletivo, justifica, apoia e inspira a existência e a ação de uma comunidade, de um povo, de um grupo profissional ou de uma sociedade secreta”2 .

2

Roger Callois, O mito e o homem, Lisboa, Edições 70, s.d., p. 13. (1a ed., 1938).

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Começaremos por evocar novamente Fernão Lopes e a sua interpretação pioneira neste processo de construção de uma ideia de um Portugal que se define pela sua condição especial e missão universal.

A Geração de Avis terá inaugurado uma nova era, a sétima idade do mundo, para a humanidade. Esta ideia pode surpreender-se bem patente na leitura que aquele cronista faz do significado da primeira revolução portuguesa e da assunção do Mestre de Avis ao trono de Portugal, fundando uma nova dinastia.

Referiremos a importância de obras de diversos autores, na sequência de Gomes Eanes de Zurara, tais como André de Resende, passando por João de Barros e Duarte Nunes de Leão, cujos textos são relevantes para o processo de legitimação da expansão marítima portuguesa, da sua língua e história, bem como na extração de significados que distinguem Portugal e a sua condição de povo excecional, graças às suas realizações.

João de Barros (1496-1570), feitor da Casa da Índia, será referido, enquanto autor dos monumentais primeiros três volumes das Décadas da Ásia (1552-1563), como o primeiro historiador humanista do império português numa escala já planetária, evidenciando a capacidade portuguesa de erguer um império de abrangência universalizante.

Para esse desiderato destacaremos outras obras emblemáticas deste autor que concorrem para fundamentar a vocação imperial portuguesa: Crónica do Imperador Clarimundo (1520) e o Diálogo em Louvor da nossa Linguagem (1540), onde defende, à semelhança de outros autores gramáticos como Fernão de Oliveira, que o ensino da nossa língua seria o instrumento mais eficaz de edificação consistente do império a longo prazo.

Portugal, de facto, precisou de defender intelectualmente a sua aventura moderna de expansão que ofereceu uma nova mundividência, alterando a consciência europeia no que respeita à compreensão de si e dos outros continentes e civilizações. Bem ilustrativas deste trabalho de advocacia intelectual serão as obras de uma das mais iminentes e vanguardistas figuras do humanismo português desta época: Damião de

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Góis (1502-1574). Góis, um dos humanistas portugueses mais viajados na Europa, contactou com grandes figuras do humanismo europeu de Quinhentos (Erasmo, Luís Vives, Dürer, Lutero, Clenardo. . . ) e, nesses contactos, muito beneficiou intelectualmente, ganhando um espírito de abertura crítico verdadeiramente ímpar, no plano cultural e religioso, só comparável talvez ao espírito de abertura revelado por outro humanista também muito viajado, Fernando Oliveira. Destacaremos para referência analítica neste módulo dois textos ilustrativos (Hispania e De Rebus Imperium Lusitanorum) do contributo intelectual de Damião de Góis ao serviço da construção de uma ideia de Portugal e de império situado no espaço hispânico, região destacada pelos seus brilhantes pergaminhos históricos e culturais, posicionando-se contra os intelectuais estrangeiros que desvalorizavam os povos ibéricos, como o geógrafo alemão Sebastião Münster.

Naturalmente, analisaremos, de forma sucinta, o percurso de outra figura maior do humanismo português muitíssimo estudada, Luís de Camões, o mais emblemático autor da Época Moderna em Portugal. Debruçar-nos-emos sobre o papel desempenhado pelo seu poema épico, Os Lusíadas ao serviço do engrandecimento de Portugal nas suas sucessivas leituras, dando as pistas de aprofundamento aos alunos que quiserem detalhar o conhecimento deste humanista. Veremos como na obra de Camões se divisam bem consubstanciadas as quatro vertentes idealizadas da identidade nacional: o mito das origens, uma narrativa heroicizante dos feitos portugueses, o relevo da idade de ouro contemporânea portuguesa e a projeção de uma missão coletiva que deveria ser plenificada teleologicamente. Não deixaremos de problematizar a receção e valorização reatualizada em diferentes contextos histórico-políticos do poema camoniano entendido como, na classificação de Oliveira Martins, a “nossa Bíblia nacional”. No entanto, não deixaremos de dar conta de outras leituras críticas do obra épica de Camões que a perspetiva romântica e fortemente pró-nacionalizante escamoteou. Na verdade, como se pode constatar, perpassa em vários cantos de Os Lusíadas um diagnóstico que ressuma de uma percepção crítica

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aguda dos problemas que afetavam Portugal e o seu projeto imperial.

Este magistério crítico revela-se patente até na descrição do perfil e ação de figuras como Viriato, Luso ou Nun’Álvares Pereira, que são apresentadas por Camões de forma luminosa para estabelecer contraste crítico com o devir histórico-social do presente ensombrado pelas fragilidades morais e de coesão sociopolítica.

Destacaremos para análise mais pormenorizada o humanista Fernão de Oliveira (nome que depois evoluiu para a forma moderna Fernando Oliveira)3 e o seu pensamento paradigmático para a construção da identidade portuguesa proto-nacional espraiado que foi nas suas obras pioneiras na História da Cultura Portuguesa: a primeira gramática (1536), o primeiro livro de estratégia de guerra no mar (Arte da Guerra do Mar, 1555) e a primeira História de Portugal (c. 1580). Como evidenciaremos, se Camões foi um poeta da identidade portuguesa que estabelece a sua matriz no grande poema que cristalizou a glorificação, mas também elencou os problemas de Portugal, Oliveira será apresentado como um cantor em prosa, unindo gramática, ciências náuticas e história, para exaltar Portugal como nação superior que em quase tudo teria superado os povos-paradigmas da Antiguidade Clássica.

Através do estudo orientado de passagens selecionadas das suas diferentes obras procuraremos demonstrar como este autor da escola experiencialista teórico-prática do humanismo acaba também por servir o processo de construção de uma ideia de Portugal como nação superior, capaz de império e do maior império de sempre da humanidade. Por isso, veremos Oliveira a defender na Gramática a afirmação, de pleno direito, da língua portuguesa como língua moderna capaz de império e de superar o mito da língua latina como a mais perfeita. O investimento na codificação gramatical humanista tinha o fito de fazer da nossa língua vernácula uma língua universalmente respeitada digna de 3

Sobre a problemática da evolução do nome Fernando Oliveira e da unidade e diversidade da sua pluriforme obra intelectual já tivemos oportunidade de publicar análise aprofundada no nosso livro intitulado O Mito de Portugal, referido na bibliografia.

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ser veículo da evangelização, da comunicação da palavra divina. Assim como aconteceu com os colegas da escola humanista coetâneos, Oliveira glorifica, enaltecendo a língua a grandeza do carácter do povo português. Esta afirmação é feita pelo recurso à mitificação de sinal contrário, que denominamos de “pontos de negação” da identidade portuguesa, neste caso o estrangeiro que se torna oponente: o Castelhano ao lado do Mouro e, antes ainda, do Romano. De modo mais contundente, o Castelhano é representado de forma estereotipada como uma ameaça permanente, congénita à nossa existência autónoma para efeitos de afirmação do valor da condição portuguesa. Configura-se, pois, uma imagem negativa dos castelhanos e de outros povos estrangeiros dominadores como os romanos e os árabes. No entanto, o anticastelhanismo será, na obra deste autor, o negativo mais relevado para contrastar o valor superiorizante dos traços da identidade portuguesa estabelecidos por Oliveira: mais antiguidade, mais nobreza, mais liberdade indomável, mais grandeza de missão.

Fernando Oliveira será constituído como um autor de referência fundamental, por comparação com outros autores humanistas, de forma a percebermos as duas correntes de leitura mitificantes das origens de Portugal: a lusitanista e a biblista. A primeira, é bem representada por autores como André de Resende (1500-1575) e Luís de Camões (c. 1525-1580), que situam as origens primeiras no tempo da tribo dos Lusitanos e do herói proto-fundador, Viriato; a segunda, representada pelos que, à semelhança de Oliveira na linha de outros autores espanhóis como Floriano del Campo e Estebán Garibay y Zamalloa, fazem recuar ainda mais as origens portuguesas aos tempos patriarcais bíblicos, à era pós-diluviana, descortinando uma mítica fundação do país e da parte ocidental da Europa pelo neto de Noé, Tubal.

Fernando Oliveira será referenciado de forma emblemática como precursor de enunciados de temas e mitemas identitários que serão muito desenvolvidos mais tarde. Referiremos autores e obras, como, por exemplo, os monges historiadores de Alcobaça e a sua monumental Monarquia Lusitana, bem como a corrente do sebastianismo e a

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sua configuração da crença na vinda do Rei Restaurador, e as obras paradigmáticas para este efeito de Frei Sebastião de Paiva e do Padre António Vieira.

Em suma, desde Fernão Lopes a Vieira, faremos notar como a construção da Cultura Moderna Portuguesa estabelece as bases mitificadas da identidade portuguesa e a suas “imagens de marca”, no dizer de João Medina. Neste excurso, se poderá perceber a expressão de uma identidade, na qual o povo, a partir especialmente das suas elites intelectualizadas, se revê intelectual e afetivamente, tendo por referência propostas teóricas avançadas para a sua compreensão, como as de Fernando Braudel e mais recentemente de João Medina e Lucian Boia.

Indicaremos como obra-guião de referência a nossa obra O mito de Portugal: A primeira História de Portugal e a sua função política e o primeiro volume já indicado da obra de Pedro Calafate, Portugal como Problema.

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ORIENTAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS ALBUQUERQUE, Luís, MOREIRA, Rafael (dirs.), Portugal no Mundo, 6 vols., Lisboa, Alfa, 1989.

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Parte IV REFORMAS: CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES

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Módulo 4 Visão Sinóptica – O problema da viragem cultural da segunda metade do século XVI. – A fratura e a consciência de fratura: • Implantação da Companhia de Jesus; • Atores culturais: Ordens Religiosas, Universidade, Corte; • A emergência dos colégios e o projeto de ensino generalizado; • Reforma tridentina da Igreja e da sociedade em Portugal; • Consolidação do Tribunal do Santo Ofício e o reforço da propaganda antijudaica; • Fratura social e mental: Cristãos-Velhos e Cristãos-Novos; • A problemática da monolitização da sociedade e da cultura e as políticas de perseguição.

– Segunda Escolástica e o humanismo catolicizado.

– Cursus Conimbricensis e a internacionalização de manuais de ensino produzidos em Portugal.

EXPLANAÇÃO A implantação da Companhia de Jesus em Portugal a partir de 1540 e, especialmente, a sua assunção à cabeça de uma multiplicidade de instituições de ensino, de que é emblemático o Colégio das Artes; o impacto que teve em Portugal o Concílio de Trento e o movimento de reforma católica protagonizado pelo Jesuítas e por outras figuras e instituições da Igreja Católica; e ainda a criação do Tribunal do Santo Ofício tiveram um impacto considerável com consequências refletidas na transformação da atmosfera cultural do país.

A reforma religiosa que estas instituições, consideradas muito representativas do ideário de renovação no seio do Catolicismo, pretendiam operar passava por um revigoramento espiritual, mas também intelectual do Cristianismo de confissão católica romana, visando fortalecê-la com a realização de objetivos fundamentais: suster a forte vaga reformista protestante que se avolumava no Norte e Centro da Europa, tendo por grandes polos dimanadores o Luteranismo na Alemanha, o Anglicanismo na Inglaterra e o Calvinismo na Suíça e nos Países Baixos, para referir apenas os mais significativos; travar a alegada paganização da cultura e dos comportamentos mesmo dentro da própria Igreja propiciados graças à sedução renascentista pela Cultura Clássica; fortalecer a Europa Cristã, tentando uni-la novamente, pelo menos aqueles que se reviam na fidelidade à autoridade papal, resistindo à pressão do poder islâmico, agora bem representado na forte dinâmica expansionista do império otomano; e ainda responder ao desafio da abertura do mundo, sendo que diversos povos e culturas até então desconhecidas ou pouco acessíveis passaram a estar no horizonte do ideário proselitista do Cristianismo enquanto religião universalista.

Com esta lição, pretendemos superar aquelas perspetivas da análise dualista instituída ou muito influenciada, em especial, pelo que denominamos de cânone pombalino de leitura da história, seguido por mui-

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tos autores tanto no século XIX como no século XX, que situa aqui o adensar de uma fratura total entre o período humanista e o novo período apelidado de “nova idade das trevas” ou, pelo menos, do início da decadência portuguesa, durante a qual nada de interessante e criativo se teria registado. Procuraremos complexificar esta visão simplificada e até mitificada estabelecendo relação com o assunto que já estudámos com algum pormenor, ou seja, a construção do mito negro da ação dos Jesuítas.

A doutrinação antijesuítica subjacente à elaboração da imagem mitificada da Companhia de Jesus estabeleceu, ao mesmo tempo, um paradigma de leitura da história portuguesa, uma “história partidária” como lhe chamou Borges de Macedo, seguidora de leituras mitificantes à luz do esquema clássico da Idade de Ouro, da Idade de Ferro e da Renovatio temporum. Verificaremos de que maneira as teses da decadência portuguesa foram desenvolvidas acentuadamente no século XIX, tendo, no entanto, a sua primeira grande formulação com o Iluminismo. No caso português, a ideia da degeneração de Portugal por ação dos Jesuítas foi afirmada para justificar a política reformista pelo Marquês de Pombal. A doutrina antijesuítica pombalina constituiu-se como estratégia propagandística que teve um forte impacto nas leituras posteriores da história portuguesa, tendo cindido o passado dualisticamente entre luz e trevas, entre construtores e demolidores, entre progresso e degenerescência. . .

De facto, esta visão canonizada por muitos tratados historiográficos impediu leituras mais complexizantes que permitissem ver neste momento de reconhecida transição e metamorfose, quer rupturas, sim, mas também continuidades que apontaremos em diálogo com os alunos e com a avocação de documentos ilustrativos para efeitos de fundamentação.

Servindo-nos dos estudos e da tematização hermenêutica proposta por especialistas como Pedro Calafate e as suas análises muito elucidativas, aludiremos à importância, nem sempre devidamente destacada como precursora, da “Escola Peninsular da Paz”. Pensadores da neo-

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-escolástica ibérica que constituem o Corpus Hispanorum de Pace e alguns jurisconsultos portugueses que ensinaram e escreveram na Universidade de Coimbra, Évora e Salamanca acabaram por deixar um legado de produção de pensamento pacificizante que é precursor das bases em que vão assentar importantes princípios do Direito Internacional Moderno. Teólogos e Filósofos Juristas como Francisco Vitória, Francisco Suárez e Luís de Molina vão estabelecer caminhos de solução para problemas levantados pela expansão dos reinos cristãos europeus e o seu processo de colonização do chamado Novo Mundo, tanto no plano ético, como no plano político e ainda no plano jurídico em torno do ordenamento das relações de poder com os povos descobertos e conquistados. Apresentaremos as linhas de força da reflexão em torno da problemática da legitimidade do exercício do poder soberano pelos povos indígenas, da escravatura, da doutrina da guerra justa, da ideia de Império Cristão e das relações de intromissão entre esferas, isto é, entre poder espiritual e poder temporal.

Abordaremos o processo de implantação do Tribunal do Santo Ofício com empenho da diplomacia de D. João III, iniciando-se a sua primeira institucionalização nos anos trinta do século XVI e culminando com a sua oficialização definitiva em 1547. Exporemos o modelo institucional deste tribunal eclesiástico articulado numa relação sustentada pelo poder real interessado na afirmação de uma instância judicial desta natureza. Procuraremos compreender o investimento político feito na implantação da Inquisição portuguesa como instrumento estratégico direcionado para prosseguir objetivos de controlo religioso e moral, mas também para servir a salvaguarda de um modelo de sociedade monolitizante à luz de um ideário de resistência às novas correntes ideológico-religiosas que poderiam por em causa um sistema sociopolítico centralizante sustentado pela confissão católica romana e pelo valor-pilar da autoridade de uma doutrina e de uma mundividência que se queria proteger a todo o custo. Não descuraremos, neste tópico analítico, a avocação das abordagens (António José Saraiva, Luís Reis Torgal e António Borges Coelho) que deram grande ênfase às leituras socioe-

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conómicas de filiação marxista que relevaram a instrumentalização do Santo Ofício pela fação cristã-velha com vista a subjugar a empreendedora comunidade cristã-nova e exaurir-lhe os recursos financeiros que deteria em maior abundância.

De modo a complexificar a abordagem pedagógica do tema sempre controverso do papel, do impacto e do significado desta instituição judicial, alegaremos ainda outras teses explicativas das razões e do quadro estratégico que envolveu a implantação e consolidação do tribunal da Inquisição em Portugal. Referiremos aqui a perspetiva que destaca o papel deste tribunal como institucionalizador, regulador e limitador da violência popular desordenada que periodicamente grassava na Europa e em Portugal desde a Idade Média contra as comunidades étnico-religiosas que viviam em guetos (judiarias e mourarias), com maior incidência contra a hebraica, no seio das comunidades cristãs, instrumentalizadas estas pelos pregadores que recorriam à doutrina da conspiração para responsabilizá-las pelos males graves que assolavam periodicamente os cristãos (pestes, fomes, terramotos, . . . ).

Aludiremos, neste contexto, à influência que se tornou dominante do polemismo antijudaico inscrito na tradição medieval de construção de uma imagem negativa do Judeu e do Judaísmo, sendo modernamente expressa em tratados que procuraram fundamentar a superioridade da religião cristã frente ao Judaísmo e também a outras religiões, em particular, ao Islamismo. Para efeitos de ilustração referiremos as obras de autores emblemáticos como João de Barros e Diogo de Sá, que deram suporte no plano erudito, provido com aparelhagem intelectual, ao processo judicial de combate à teologia judaica e ao criptojudaísmo vivido. Daremos ainda atenção crítica à história da afirmação sociopolítica e religiosa traduzida na imposição sociológica da distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos e à concomitante construção do mito da limpeza de sangue, na sequência do processo político e popular de perseguição aos Judeus e ao seu baptismo forçado no tempo de D. Manuel por pressão da Coroa espanhola. Ao mesmo tempo, acentuando a perspetiva de ruptura com a tradição renascentista anterior de maior

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abertura crítica, referiremos a criação do Index dos livros proibidos, que complementou o controlo social, moral e religioso da inquisição com o controlo intelectual do pensamento crítico, especialmente no plano doutrinal.

Nesta nova fase, importará, no plano internacional, tratar daquele que foi um acontecimento nuclear e fundante para a reforma católica: o Concílio de Trento, XIX Concílio Ecuménico da Igreja, realizado, depois de várias tentativas falhadas de reunir um novo concílio ecuménico pelo papado, na Cidade de Trento – com uma parte das sessões feitas em Bolonha (nos anos de 1547 e 1548) – entre os anos de 1545 e 1563. Referiremos o papel de bispos e teólogos portugueses que participaram em Trento (v. g. Frei Bartolomeu dos Mártires, Frei Jerónimo de Azambuja, Frei Luís de Soto Maior, João Pais, entre outros) nas suas diferentes fases (1a – 1545/1548; 2a – 1551/1552; 3a – 1562/1563) e o impacto reformista que os decretos tridentinos tiveram em Portugal no plano da reforma eclesial almejada por muitos e no plano do disciplinamento dos costumes expressa também na ritualização crescente das manifestações religiosas devidamente regulamentadas por uma racionalidade fundada numa teologia prática e juscanónica.

Aproveitaremos este ensejo para aludirmos a algumas leituras da influência de Trento na Cultura Portuguesa, nomeadamente a interpretações decadentistas de autores emblemáticos do século XIX como Antero de Quental e o seu opúsculo muito influente intitulado Causas da Decadência dos Povos Peninsulares preparado para apresentar nas célebres Conferências do Casino em 1871.

O tempo de mudança cultural que o movimento de reforma católica promoveu trouxe também outros aspetos que nos merecerão registo pedagógico, com incidência na análise da afirmação de um novo ideário educativo, protagonizado pela Companhia de Jesus, mas não só. Embora venhamos a abordar de modo particular o contributo dos Jesuítas para a História da Educação, não descuraremos a referência ao enquadramento do investimento educativo por parte dos Padres da Companhia no âmbito de uma nova consciência que se vinha afirmando em

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torno da importância da preparação intelectual de elites no seio do Catolicismo. Lembraremos a importância que foi dada à estruturação dos seminários diocesanos para formar presbíteros mais bem preparados para atender aos desafios dos novos tempos, como também o papel de outras ordens religiosas que comungaram deste espírito e procuraram investir mais na formação.

Em domínios como a educação, a pedagogia e a circulação internacional de intelectuais e saberes hegemónicos no quadro da neoescolástica do tempo não se teria verificado o isolamento de Portugal em relação à Europa, como foi propalado pelos herdeiros da visão pombalina que enfatizaram o processo de ruptura cultural por ação dos Jesuítas e da Inquisição. Veremos que, no plano da educação, a criação e expansão de uma rede de colégios como foi aquela implantada nas principais cidades do Reino e em centros importantes dos territórios de além-mar, à luz de um ideário, nem sempre bem aceite, de um ensino generalizado e gratuito, acabou por favorecer dinamismos que mais tarde se vieram a consagrar como progressivos. A Companhia de Jesus tornou-se de facto a mais destacada protagonista deste ideário de ensino como estratégia de criação de uma elite intelectual bem formada e formadora de uma barreira de resistência aos desafios que se colocavam à sociedade católica, nomeadamente a investida intelectualizada da chamada heresia protestante. É a mesma Companhia que, gerindo em Portugal importantes instituições de ensino, como o pré-universitário Colégio das Artes e a Universidade de Évora, começa a produzir, na segunda metade do século XVI e primeiras décadas do século XVII, um conjunto de manuais de ensino de Gramática e de ensino de Filosofia, com destaque para a Gramática Latina do Padre Manuel Álvares (1526-1583) e o Cursus Philosophicus Conimbricensis que conhecerão diversas edições internacionais. Há que mencionar ainda a sua utilização como manuais de ensino na rede de colégios intercontinental da Companhia e, em alguns casos, fora desta rede privada gerida pelos Jesuítas. Chamaremos a atenção para o processo de composição, também com contribuição

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portuguesa, do manual pedagógico por excelência que vai regular todo o ensino na rede global dos colégios da Companhia: a Ratio Studiorum aprovada na sua versão última em 1599.

Revestiram-se de particular importância, com efeito, os chamados manuais produzidos pelos professores do Colégio das Arte de Coimbra que ficaram famosos com o nome de Conimbricences, os quais favoreceram a criação em Portugal e na Europa de uma espécie de base generalizada para um ensino secundário ou pré-universitário de Filosofia.

Por estes manuais estudaram grandes figuras que trouxeram inovação ao pensamento ocidental e que estão na base do grande debate entre Antigos e Modernos que desemboca no Século da Luzes. Descartes, Leibniz, Voltaire, entre outros, pensadores que revolucionaram o pensamento moderno beberam no caldo filosófico da escolástica jesuíta e ali obtiveram ferramentas metodológicas e desenvolveram capacidade crítica para depois romperem com os velhos paradigmas. Pinharanda Gomes destaca a novidade e a importância do contributo dos jesuítas portugueses para a promoção de um ensino propedêutico em filosofia que servia de base aos estudos avançados que lhe sucediam: “A escola conimbricense, que surgiu na história da filosofia como flor de renovação, nos fins do século XVI – num mundo em mudança e que se descobre como sujeito de observação – elaborando num sistematizado corpus philosophicum todo o saber antigo, ordenado segundo a arquitectura aristotélica, não se tinha por obra definitiva, nem por visão derradeira de toda a Filosofia. O grupo de livros que se chama conimbricences aparece como um primeiro passo, antecedente de outros passos, quais esses que a doutrina e a disciplina viessem a propor à aventura do conhecimento. (. . . ) Curso septivial, organizando em sistema as disciplinas triviais e quadriviais, a propedêutica lógica e a prática das ciências, os Conimbricenses foram novidade na filosofia europeia do século XVI, reconstituindo o liceu aristotélico, reatribuindo à filosofia o património da enciclopédia de todas as ciências, adunando o método da escolástica árabe, sobretudo a dos comentários de Averroes, aos desígnios da escolástica latina medieval, e assumindo

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as tendências modernizantes da Renascença. Por isso, se diz que eles são um dos grandes descobrimentos dos portugueses, em que, posta a claro toda a terra, e mais analisado o céu, se orientava o espírito para o esclarecimento de toda a verdade”4 .

Também destacaremos, com base nos estudos recentes na área da História da Ciência, a importância que teve, enquanto escola científica, a Aula da Esfera fundada em 1553 no Colégio de Santo Antão em Lisboa, por onde passaram e ensinaram Matemática e outras disciplinas científicas destacados professores europeus. Esses formaram missionários e outros quadros técnicos especializados para a missionação e para servir em áreas estratégicas da intervenção do Estado tanto na metrópole como nos territórios ultramarinos. O Colégio de Santo Antão e a sua Aula da Esfera acabou por se tornar uma plataforma giratória de circulação de conhecimentos científicos e de cientistas. Nela se procurava estar a par das novidades no plano dos avanços científicos e tecnológicos europeus e difundi-los no império português através da rede de colégios e de missões da Companhia de Jesus.

Com efeito, o século XVI participou e continuou, em alguns campos, do dinamismo de internacionalização iniciado no tempo dos Descobrimentos através da circulação de intelectuais e de saberes entre Portugal e o espaço europeu. Os Jesuítas – e também as outras ordens, embora com menos visibilidade e mediatismo patenteados pela memória comunicada nos textos deixados à posteridade –, continuaram a apostar na produção de manuais pedagógicos, na criação de instituições científicas de ensino como a Aula da Esfera, na divulgação de saberes e tecnologia, especialmente nos campos de missão extra-europeus, onde puseram a Ciência e a Filosofia europeias em diálogo inédito com saberes de outras culturas e civilizações. Neste plano, Portugal foi, por vezes, através dos seus agentes religiosos e também políticos, pioneiro e protagonista de uma atitude moderna de criação de campo de experiência nova e saberes enriquecidos pelos referidos contatos, confron4

Pinharanda Gomes, Os conimbricenses, Lisboa, Instituto de Língua e Cultura Portuguesa, 1992, pp. 121, 122 e 123.

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tos e intercâmbios. Boaventura Sousa Santos dá em parte conta deste dinamismo de continuidade no seu livro recente de diagnóstico sobre Portugal, realçando: “O momento inicial da expansão foi um momento extremamente criativo. Constitui um campo de possibilidades caóticas, tão vulneráveis às fulgurações quanto ao aventureirismo próprio e alheio, tão excitantes quanto medíocres, tão justificativas de Os Lusíadas como de O Soldado Prático. Essa criatividade permitiu a Portugal ter sido um dos protagonistas da primeira modernidade europeia, a modernidade ibérica (. . . ). É a modernidade de Pedro Fonseca, o Aristóteles português, e de Suarez, a modernidade dos Conimbricenses, como foram ao tempo conhecidos. A obra de Pedro da Fonseca teve 36 edições e foi lida por Descartes e Leibniz. Ou seja, o que veio a ser designado por modernidade europeia, de Descartes a Kant, foi de facto uma segunda modernidade, a da Europa Central, que se alimentou da modernidade ibérica, uma modernidade que, por ter sido protagonizada por países que entraram rapidamente em decadência, não foi reconhecida como tal nos séculos seguintes. Esta modernidade que Portugal, de algum modo, perdeu foi um longo período de inserção dependente que gerou o que designei acima por problema do passado”5 .

Com a nossa exposição, que evidenciará dois dinamismos em tensão na Cultura Portuguesa, um de ruptura e monolitização, outro de abertura e circulação de pedagogos, de manuais de ensino, de cientistas e instrumentos científicos, concluiremos que a viragem do século XVI para o século XVII ganha em ser entendida de forma complexa e evitando a tentação de juízos simplificantes.

Concluiremos que a assunção de instâncias de controlo social e de censura doutrinal, bem como o ideário de uniformização de práticas e comportamentos saído de Trento, não implicou necessariamente um corte radical com o espírito humanista, mas procurou, efetivamente, discipliná-lo, despaganizá-lo, catolicizá-lo pela fidelidade ao corpus da

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Boaventura Sousa Santos, Portugal: Ensaio contra a autoflagelação, Lisboa, Almedina, 2011.

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moral e da doutrina cristã católica definida pelo magistério da Igreja, fazendo emergir um novo tipo de humanismo, o “humanismo devoto”.

Para aquisição de conhecimentos propostos neste módulo teórico, recomendaremos a leitura e estudo aprofundado do documento-fonte que evidencia bem as duas perspetivas em confronto na polémica sobre o ensino, que estudámos e cuja edição preparámos em conjunto com Isabel Morán Cabanas: Informação sobre a causa dos estudos do Reino de Portugal (1611), que se pensa ser da autoria de um professor da Universidade de Évora pertencente à Companhia de Jesus.

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Parte V RESISTÊNCIAS E IMAGINÁRIOS

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Módulo 5 Visão Sinóptica – O impacto da perda da Independência e a crise do imaginário português.

– Crise sucessória e reflexão jurídica.

– Emergência, sentido e metamorfoses do Sebastianismo: • Sebastianismo ortodoxo e heterodoxo.

– A modelação da identidade portuguesa em tempo de subalternidade política.

– Cultura autonomista sob os Filipes como cultura de resistência.

– Autores e esferas culturais de intervenção.

– Configuração mítica da Idade de Ouro Portuguesa e a ideia de incompletude da História de Portugal e da sua missão inconclusa.

EXPLANAÇÃO Esta lição terá com fio condutor a percepção cultural do efeito da crise que provocou a perda da independência portuguesa nos moldes de uma monarquia liderada por um rei próprio segundo o direito hereditário em voga. Veremos como o pleito sucessório e a instituição da monarquia dual sob a dinastia castelhana dos Filipes produziu uma nova discursividade pautada pela reflexão sobre temas que visaram reforçar o carácter distintivo da identidade portuguesa. A perda da autonomia portuguesa torna-se fecunda na fundamentação nacionalizante de uma ideia de Portugal com elementos peculiares que lhe permitem entender-se e sentir-se como povo capaz de autodeterminar-se.

Consideraremos a referência analítica das produções de discursividades hegemónicas nos territórios de saber da História, da Gramática, da Geografia, da Poética, da Parenética e do Direito. . .

Perante o enorme fascínio que representava o poder do império e da cultura espanhola, nomeadamente da força da língua castelhana como língua moderna e influente de comunicação internacional, a elite intelectual portuguesa procurou reagir produzindo obras para aperfeiçoar a sua língua no século XVII. Com este escopo, atendia-se, de algum modo, como forma efetiva de resistência, ao repto de Fernão de Oliveira patente logo no preâmbulo à primeira Gramática da Linguagem Portuguesa editada em 1536. Oliveira advoga aqui que a promoção e ensino da nossa língua são a melhor garantia de uma consolidação a longo prazo do projeto imperial português além-fronteiras europeias6 .

Este esforço de promoção está bem expresso nas obras de autores representativos como Duarte Nunes de Leão (1530-1608), Frei Luís de 6

Cf. Fernão de Oliveira, Gramática da linguagem portuguesa, Fac-simile, texto atualizado e introdução por José Eduardo Franco e João Paulo Silvestre, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.

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Sousa (c. 1555-1632), António de Sousa de Macedo (1606-1682), Pedro de Mariz (c. 1550-1615), Francisco Rodrigues Lobo (c. 1574 – c.

1622) e depois, na pós-restauração, nele investiu, a pena extraordinária de António Vieira (1608-1697), considerado mais tarde por Fernando Pessoa “Imperador da Língua Portuguesa”. Salientaremos ainda a reflexão apologética do jurista da Restauração João Pinto Ribeiro (1590-1649), que fundava nas diferenças das línguas a autonomia dos reinos e das vontades como refletiu numa das suas emblemáticas obras: Usurpação, retenção e restauração de Portugal (1642).

Daremos alguma atenção analítica às seguintes obras para efeito de aprofundamento pedagógico: a Descrição do Reino de Portugal de Duarte Nunes de Leão que valoriza a geografia humana e física do país (finalizada em manuscrito em 1599); e editados, em 1610, os monumentais volumes da história providencialista de Portugal intitulados Monarquia Lusitana provenientes da pena dos monges historiólogos de Alcobaça com Frei Bernardo de Brito à cabeça; as Flores de España, Excelências de Portugal de António de Sousa de Macedo que procura, em perspetiva universalizante, conferir distinção ao continente europeu e ao reino lusitano; bem como a visão da História de Portugal de Pedro de Mariz espraiada nos seus Diálogos de Varia História. É, nesta fase, que germina e se desenvolve o movimento mais específico da cultura nacionalizante portuguesa – o Sebastianismo – definido mais tarde por Oliveira Martins como a “prova póstuma da nacionalidade”. Focaremos o nascimento desta corrente de sentimento e de cultura nacionalizante, surgida na sequência das expectativas goradas com a derrota portuguesa na Batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, e com a subsequente perda da independência. Aludiremos a manifestações populares de sebastianismo com o aparecimento dos falsos D. Sebastiões, ao sucesso das edições e versões das quadras de Bandarra e a obras emblemáticas que vão engrossar a aparelhagem erudita desta corrente nacionalista fundada na esperança em torno do regresso do rei restaurador, cognominado popularmente de Encoberto. Será importante realçar a expressão multiforme desta corrente que conheceu um

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processo de metamorfose, especialmente a partir da restauração portuguesa em que se começam a divisar claramente a afirmação de duas vertentes do sebastianismo em concorrência, que designaremos de sebastianismo ortodoxo e sebastianismo heterodoxo.

Esta diferenciação adjetiva, que se manterá na longa duração deste movimento político messiânico português, permite separar aqueles mentores e militantes do sebastianismo que continuam a acreditar no regresso de D. Sebastião, in persona, ressuscitado ou vindo de um alegado refúgio mais ou menos encantado onde teria sobrevivido depois de um longa peregrinação, daqueles que, percebendo que não seria plausível continuar a esperar o regresso de um Rei que teria desaparecido ou morrido havia muito, continuavam, no entanto, a acreditar no aparecimento de um Rei Restaurador ou Rei Messias, de que D. Sebastião teria sido a prefiguração à maneira bíblica. Tanto os ortodoxos como os heterodoxos esperavam em tempo de crise a chegada iminente desta figura salvadora, que subisse ao trono português e que conduzisse novamente o reino para grandes realizações e triunfos internacionais com impacto mais ou menos universal. Apresentaremos autores e obras emblemáticas destas duas vertentes do Sebastianismo. Relativamente ao Sebastianismo ortodoxo mencionaremos o chamado “Evangelho Sebástico” de D. João de Castro expresso nas suas obras matriciais do sebastianismo – Discurso da vida do sempre bem vindo e apparecido Rey Dom Sebastiam nosso Senhor o Encuberto des do seu nascimeto tee o presente (1602) e Paraphrase et concordançia de alguas Propheçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso (1603) –, a Anacephaleoses da Monarchia Lusitana (1924) de Manuel Bocarro Francês, bem como o Tratado da Quinta Monarquia de Frei Sebastião de Paiva (1641); e para o Sebastianismo heterodoxo adiantaremos a referência às obras proféticas de Vieira que analisaremos mais detalhadamente na lição seguinte.

Em paralelo com a significativa emergência de uma reflexão teológica, filosófica e jurídica em Portugal que se inscreve na tradição ibérica de tolerância patente nas teorias político-jurídicas que estarão

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na base do direito internacional moderno, nomeadamente de Vitória de Suárez e de Molina, como aludimos na lição anterior, vai tornar-se saliente uma corrente jurídica portuguesa de resistência que pretende avocar fundamentos juridicamente sólidos a favor da afirmação de um Estado autónomo em Portugal capaz de gerir sozinho o seu próprio destino. Esta reflexão é substantivada em obras de autores restauracionistas como João Pinto Ribeiro, entre outros.

Deste trabalho cultural de resistência, que não deixa de ter em horizonte a defesa do império ultramarino agora fustigado e carcomido pela cobiça dos impérios europeus emergentes, será destacada como emblemática a obra de Frei Serafim de Freitas da Ordem de Nossa Senhora da Mercê. De justo imperio Lusitanorum Asiatico escrito em 1625 é a obra daquele intelectual jurista que procura defender a legitimidade dos direitos imperiais portugueses no Oriente tendo em mira a refutação do livro de Hugo Grócio Mare Liberum publicada na primeira década do século por encomenda da Companhia Holandesa das Índias Orientais. A empresa intelectual de defesa da velha ordem de Tordesilhas representa de algum modo o fim de um ciclo, em cujo culminar, no xadrez das relações entre as potências europeias, o império holandês se afirmava de forma preponderante. A batalha intelectual que ainda foi tentada pelos portugueses para legitimar o ilegitimável decide-se cada vez mais nas batalhas dos exércitos e das frotas navais em que a tecnologia de países do Centro e do Norte da Europa, agora cada vez mais avançada em relação à portuguesa, leva a melhor.

Todo este trabalho de cultura que desenha uma ideia de comunidade com uma circunscrição identitária diferenciada da vizinha e hegemónica Espanha, nos planos da língua, da história, da literatura, da parenética, da teologia profetista e do direito, permite perceber que o movimento de restauração portuguesa viria a revelar-se como ponto de chegada de um movimento não meramente ocasional, mas de longa duração. Tratava-se de um movimento de resistência que participava de um dinamismo mais profundo, de substrato cultural com inscrição no sentimento popular através dos que faziam a opinião e procuravam ga-

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rantir a germinação, entre o povo, de um sentimento agregador em prol de uma comunidade unida pela ideia, cada vez mais viva, de ter uma origem e um destino comum, comunidade essa que se usava chamar primeiramente reino e povo e, depois, nação de Portugal.

Referindo-nos ao estudo já clássico de Hernâni Cidade, A Literatura Autonomista Sob os Filipes, atualizado, entretanto, com outros estudos, observaremos de que modo a perda da autonomia portuguesa e a vigência do consagrado regime político denominado Monarquia Dual inaugurado por Filipe II de Espanha e I de Portugal, não significaram, pois, o afrouxamento das nossas letras, antes intensificou a produção de textos literários, historiográficos, parenéticos, poéticos e proféticos.

Acompanhando a evolução da imprensa no final do século XVI e durante o século XVII, editou-se mais durante os 60 anos de subalternidade de Lisboa em relação a Madrid do que desde a fundação em Portugal do primeiro prelo. Este investimento também denota a importância crescente do recurso à imprensa como meio de difusão cultural.

Veremos como neste período de germinação de uma cultura de resistência se enfatiza maximamente uma visão providencialista da deriva histórica portuguesa, superlativando a ideia de Portugal como nação superior e com uma personalidade coletiva com um património cultural próprio e insubmergível. Então se cristalizam com toda a carga semântica identitária as palavras-mães, no dizer de Goethe, recorrentes no nosso imaginário nacionalizante. As “palavras-mães” do ideal português que são, segundo António Quadros, “Mar, Nau, Viagem, Descobrimento, Demanda, Oriente, Amor, Império, Saudade, Encoberto”7 .

Nesta lição, a obra Portugal como problema será mais uma vez proposta como manual de referência para estudo e análise de fontes antologiadas relativas a este período.

7

António Quadros, O Espírito da Cultura Portuguesa, Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1967, p. 76.

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Parte VI RESTAURAÇÃO E PROSPETIVA

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Módulo 6 Visão Sinóptica – Os conceitos e os contextos.

– Decadência ou Reconstrução?

– O problema do Seiscentismo.

– Restauração da Independência e instrumentalização de uma cultura profética.

– Força e fragilidade portuguesas: tempo de profecia e de imaginar o futuro.

– Realismo e utopia.

– O projeto utópico do Quinto Império.

– Autores e obras fundamentais: Sebastião de Paiva, António Vieira e outros.

– O medo fantasmático do turco e a protogénese dos projetos de uma Europa Unida.

– A oratória do Barroco como arte de formação de mentalidades e de coesão social.

– Projetos políticos: Reconstrução de Portugal e redefinição da política colonial e o novo mapa europeu e mundial negociado no Tratado de Vestefália.

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– O Brasil como “ponto de fuga” ou a nova viabilização de Portugal e do seu projeto imperial.

– Colonização e relevância cultural de um Portugal missionário, Povo Eleito e Apóstolo das Nações.

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EXPLANAÇÃO O século XVII, e especialmente o período histórico-cultural do barroco e da restauração portuguesa, tem sido objeto de leituras controvertidas, mas onde têm predominado as interpretações desvalorizadoras, fundadas na crítica iluminista ao período cultural que lhe antecedeu, bem como na sua receção no contexto do liberalismo que tendeu a avaliar Seiscentos como desinteressante, acriativo, imobilista e fechado em relação à Europa. Esta imagem desembocou na criação do conceito de Seiscentismo emblematicamente debatido numa conhecida polémica entre António Sérgio e Manuel Múrias, e que Pedro Calafate haveria de problematizar e analisar criticamente de forma exemplar na sua tese de mestrado sobre esta matéria.

A nossa lição, depois de avocar esta genealogia interpretativa e as questões que levanta, começará por descer à história fatual pela apresentação dos grandes acontecimentos, factos e etapas que conduzem Portugal, enquanto reino integrado na monarquia filipina, à restauração da sua autodeterminação como reino autónomo com soberano próprio dito “natural”.

Esta nova página da história do país é inaugurada com a instituição de uma nova dinastia, a dinastia de Bragança, com a assunção ao trono de D. João IV depois dos acontecimentos de 1 de Dezembro de 1640 que põem fim ao regime de Monarquia Dual fundado seis décadas antes. Será relevante revisitar em jeito de síntese o processo de afirmação política, diplomática e militar que implicou quase três décadas de combates de vária ordem (maxime militar e diplomática) e em várias frentes. Este esforço haveria de conduzir ao reconhecimento do estatuto de Portugal como reino independente, primeiro pela Espanha em 1668, permitindo logo, no ano seguinte, obter o reconhecimento almejado da Santa Sé, que regularizou as relações da Igreja portuguesa com o poder de Roma.

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Importará, neste módulo, complexificar a leitura de algum modo canonizada pela historiografia de que a Restauração acabaria por ser o desembocar natural de uma mentalidade nacionalista que se tinha instituído como resistência e exorbitado em revolução. Sem deixar de considerar o valor das abordagens que apresentam a Restauração como uma “revolução nacional”, preferiremos problematizar a ideia de nação desenhada neste tipo de leitura. De facto, não podemos falar de uma revolução nacional à maneira do século XIX e XX, mas apenas de uma ruptura com o poder espanhol para a qual concorrem fatores de natureza proto-nacionalista a par dos manifestos desafetos anticastelhanos bem patentes, associando um sentimento de descontentamento forte que se traduzia na rejeição do projeto espanhol de “uniformização institucional”, pondo em causa compromissos, garantias e direitos adquiridos aquando da fundação da dinastia filipina no modelo da Monarquia Dual.

Alguns autores têm dificuldade em aceitar a existência de um sentimento uniforme em relação a uma ideia de nação portuguesa neste período mesmo no seio das elites, preferindo falar da existência ainda de várias identidades assentes em fidelidades polarizadas em instituições, poderes e grupos de interesse vário. No entanto, pensamos que essas “múltiplas identidades” e fidelidades começam, pela ação de produtos culturais orientados para a valorização de Portugal como país detentor de uma unidade distinguida pela língua e pelo comando centrado no poder do rei, a desenhar um sentimento unificado que virá a conduzir à ideia contemporânea de nação.

Apresentadas as grandes linhas da história política, social e militar do período da chamada restauração portuguesa, veremos de que modo essa história está intimamente imbricada na história da cultura. Procuraremos demonstrar de que forma se foi produzindo uma cultura da restauração portuguesa, por esta motivada e, mais ainda, ao serviço desta.

Na linha de continuidade da profusão de produtos culturais que fizeram a chamada cultura de resistência analisada no módulo anterior,

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assistiremos à assunção, na cena cultural portuguesa, de alguns autores que se destacam pela constituição da cultura da restauração portuguesa marcada pela idealização de um futuro triunfal para o país8 . Sem deixar de enumerar outros, elegeremos para estudo duas figuras da intelectualidade que já mereceram investigação traduzida em obras publicadas.

Sebastião de Paiva e António Vieira serão abordados como significativos representantes de duas correntes de interpretação daquele período histórico e das suas implicações, expectativas e caminhos de solução para os problemas que empenhavam os protagonistas políticos e sociais daquele tempo.

Observaremos como Frei Sebastião de Paiva, da Ordem da Santíssima Trindade, numa das suas obras mais representativas, datada de 1641 com o título Tratado da Quinta Monarquia, se situa na linha do Sebastianismo ortodoxo, prolongando a crença no regresso do rei restaurador na pessoa de D. Sebastião, em pessoa, para assumir a liderança da monarquia, consolidar efetivamente a Restauração de Portugal, elevá-lo novamente às glórias do passado e realizar a missão para que estaria destinado: derrotar o império turco, figurado como a grande Besta apocalíptica, imagem do Anticristo, reconquistar Jerusalém para o Cristianismo e fundar a Quinta Monarquia do Mundo. Esta perspetiva almejava de algum modo atualizar o mito do Reino Cristão medieval, na linha da ideologia de Cruzada, tendo por horizonte o combate eficaz ao poder otomano que se apresentava cada vez mais ameaçador para a

8

A proliferação em Portugal desta literatura utópica comunga de uma tendência europeia em voga nesta época que idealiza um futuro ideal, tanto na ótica antropológica como na sociológica, devido a uma percepção da história presente marcada pela crise e pela degeneração: “Esta literatura assume uma importância particular no período que vai desde o final da época humanista até ao nascimento da economia política na segunda metade do século XVIII. É um período de desilusão e de pessimismo, que leva a sonhar estados e sociedades ideais, como fuga às realidades políticas muito pouco ideais, e como reação ao pensamento individualista e a-social do segundo humanismo” (Luigino Bruni, A ferida do Outro: Economia e relações humanas, Abrigada, Cidade Nova, 2010).

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Europa e realizar o velho sonho de recuperar o “Centro do Mundo”, a cidade de Jerusalém para a tutela dos cristãos.

Divergindo em alguns aspetos desta linha de interpretação messiânica sebastianista do passado, do presente e da projeção do futuro de Portugal, emerge nos anos 40 do século XVII, uma das figuras mais relevantes deste período: o pregador barroco Padre António Vieira (1608-1697).

Dedicaremos atenção especial à obra de Vieira enquanto expressão qualificada da produção cultural deste período no campo da parenética, da epistolografia e da tratadística profetizante, destacando a produção de obras proféticas para intervir, com uma visão própria, no contexto problemático da restauração portuguesa. Vieira revelar-se-á exímio na receção e reinterpretação da tradição profética nacionalizante anterior, reconfigurando-a para elaborar a sua síntese projetiva que funda a utopia mais universal da história da Cultura Portuguesa: o Quinto e Último Império da história humana em equação com a visão soteriológica judeo-cristã da história da salvação da humanidade.

Veremos como a perspetiva deste jesuíta diverge do seu contemporâneo da Ordem dos Trinitários, Frei Sebastião de Paiva, atualizando o sebastianismo anterior e criando uma corrente que designamos de Sebastianismo heterodoxo, na medida em que transfere a esperança no regresso do Rei D. Sebastião em pessoa (que já estaria certamente morto), para um alter sebastianus, um rei restaurador. Esta re-projeção da esperança messiânica é centrada primeiramente no Rei D. João IV, expectativa depois transferida para os seus sucessores à frente dos destinos de Portugal. Referiremos e caracterizaremos as principais obras proféticas de Vieira e deter-nos-emos de modo especial no estudo da História do Futuro, analisando alguns trechos ilustrativos. Observaremos, por comparação com a obra de Sebastião de Paiva, que o pensamento quinto-imperialista de Vieira é mais universalista e virá a tornar-se precursor influente das metamorfoses da ideia de Quinto Império na sua posteridade cultural portuguesa. A ideia de Quinto Império merecerá, com efeito, interesse e reelaboração por parte de figuras relevantes do

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pensamento português até à época contemporânea, com especial destaque para Fernando Pessoa, Agostinho da Silva e Natália Correia.

Será importante relevar analiticamente de que modo Vieira e outros autores do período da Restauração se empenharam na criação de um horizonte imaginário mobilizador, recorrendo às virtualidades da utopia para intervir na história presente, utilizando a força do mito em ordem a sobrecompensar psicologicamente o imaginário coletivo e a reforçá-lo para enfrentar os desafios que se apresentavam dramaticamente à sobrevivência de Portugal como país capaz de guiar os seus próprios destinos.

Aqui se debaterá e interpelará aquelas leituras que se tornaram dominantes de um século XVII português visto como uma idade de ferro, de decadência e afrouxamento, com dificuldade extrema em viabilizar-se. Ora, tenderemos a apresentar outros ângulos de análise, refletindo até que ponto este século de Vieira pode ser entendido como o século em que Portugal, encarando vicissitudes externas e internas de sobrevivência como reino autónomo, foi capaz de encontrar viabilidade, mercê de um concurso complexo de circunstâncias que acabaram por não lhe ser totalmente desfavoráveis. Este século de crise grave foi também o tempo de oportunidade para Portugal, como, aliás, se tem verificado nos momentos das suas revoluções históricas, desde a primeira já aludida de 1383-1385. Permitiu-lhe afirmar-se de novo como política e culturalmente capaz de nacionalidade e senhor de um Estado independente. As leituras diferentes de uma possibilidade persistente de Portugal existir e permanecer existente serão avocadas para explanação e debate, desde a leitura providencialista, passando pela racionalista até à marxista materialista.

Veremos de que modo, neste período cultural Portugal foi imaginado e propugnado como nunca, tendo por pano de fundo a ideia de história e de povo eleito patente no Texto bíblico. Aqui se consolida um traço estruturante da cultura identitária portuguesa que permite confirmar aquela asserção de Manuel Clemente, na sua obra recente sobre Portugal e os Portugueses, segundo a qual Portugal seria uma espécie

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de povo bíblico: “Digo, por isso, que a relação que mantemos com Portugal é, fundamentalmente, bíblica. Olhamos para Portugal como uma personalidade coletiva portadora de uma alma, no sentido romântico do termo, ainda que referido a algo anterior ao Romantismo. E a relação que mantemos com esse gostoso e custoso coletivo vem na esteira de um outro povo, que se descobriu eleito e portador de uma missão universal”9 . De facto, a Sagrada Escritura era tomada não só como contendo uma verdade religiosa lida de maneira diversa por Judeus, Cristãos e Islâmicos, mas também como credora de um conhecimento histórico fundamental sobre a historiogénese e a sociogénese dos povos e das nações; e ao mesmo tempo conteria, segundo os hermeneutas profetistas como Vieira, de forma prefigurada um mapa de conhecimento sobre o futuro. Será pertinente demonstrar, pois, como uma autêntica ideografia biblista alicerça toda fundamentação da identidade mitificante de uma ideia de nação portuguesa. Esta encontra no texto sagrado os principais vetores ideográficos e o respaldo legitimador realizado por uma elite intelectual hegemonicamente composta por clérigos quer provenientes da estrutura diocesana da Igreja Católica, quer, maioritariamente, provenientes de ordens religiosas. De facto, neste estabelecimento de uma ideografia mítica de Portugal opera-se plenamente um novo encantamento não só da história do Portugal passado, mas também do seu horizonte de futuro. A tematização do significado da Ideia de Quinto Império e do destino de Portugal idealizado pelos ideógrafos da nacionalidade portuguesa, será trazido à colação para debater em sala de aula, o modo como esta ideografia, que impregna a mentalidade e a cultura portuguesas, funcionou como retardadora do processo moderno de secularização em curso na Europa cristã.

Será interessante verificar que alguns destes intelectuais que prometeram futuros luminosos para Portugal, entre os quais se destaca de forma imarcescível, a figura de Vieira, tiveram um empenhamento político-social extraordinário. A ideografia utópica pensada para Portugal não alheava os intelectuais portugueses do empenhamento para 9

Manuel Clemente, op. cit., p. 10.

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viabilizar Portugal e para melhorar a sociedade do seu tempo. Para ilustração, alegaremos o estudo dos sermões de crítica social e moral de Vieira, atendendo ao seu empenhamento político e diplomático a nível internacional com o propósito de tentar defender os interesses de Portugal na Europa e obter o reconhecimento da independência portuguesa perante Espanha, nomeadamente no contexto das negociações de Vestefália (tratado assinado em 1648) e do processo de recomposição do xadrez de influências e domínio no plano planetário. Referiremos também as propostas de Vieira em favor da restruturação económica do Reino de Portugal pela via da criação de companhias de navegação e comércio, procurando seguir o bem-sucedido exemplo holandês.

Aproveitaremos o ensejo para apresentar as correntes de pensamento e prática económica, nomeadamente o mercantilismo, então em voga na Europa e a receção destas em Portugal e o seu tratamento por autores portugueses como Manuel Severim de Faria e Duarte Ribeiro de Macedo.

Também evidenciaremos a afirmação plena de um novo período cultural que entrará pelo século XVIII a dentro, o período barroco, que caracterizaremos no plano da literatura e da história da arte, tendo no horizonte as produções hegemónicas no campo da parenética, nas quais se evidenciam elementos como a metamorfose da forma, o jogo de palavras, as estratégias dialéticas da argumentação de base escolástica, e, no campo da arte sacra, o desiderato da magnificência expressa na exuberância do excesso e no brilho das representações.

Além de Vieira o autor que consideramos mais representativo do período barroco, não deixaremos de evidenciar um outro intelectual que exprime bem a vitalidade e o melhor da qualidade da cultura barroca em Portugal: D. Francisco Manuel de Melo. Este autor é representativo da cultura de resistência no tempo da vigência da monarquia filipina e merecerá ser destacado no contexto do estudo deste período cultural propriamente dito, enquanto um intelectual que exprime preocupações no plano da educação, da cultura e da construção de uma so-

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ciedade harmónica de acordo com o horizonte socializante propugnado pela mundividência barroca.

A fim de ilustrar o que se abordou no plano teórico, alguns trechos da obra de Vieira, da obra citada de Sebastião de Paiva e de Francisco Manuel de Melo serão indicados para estudo por parte dos alunos.

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Parte VII TEMPO DAS LUZES E DA IDEIA DE PROGRESSO

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Módulo 7 Visão Sinóptica – O conceito de Iluminismo: razão, ciência e progresso.

– Autores e obras fundadoras do iluminismo português.

– Iluminismo “católico” português em face dos Iluminismos europeus.

– A política modeladora de Pombal e a questão do pombalismo.

– A afirmação do Estado absoluto e do regalismo político.

– O significado das reformas pedagógicas.

– Reformas institucionais e modificação da imagem de Portugal perante a Europa.

– A Europa como ponto de espelho do programa reformista iluminista português.

EXPLANAÇÃO Começaremos esta lição por dilucidar o conceito de Iluminismo, de Século das Luzes e outros conceitos afins que se tornarão palavras-chave para entender o novo período cultural em estudo neste módulo: progresso, Luzes, razão, ciência, civilização, sociedades polidas, entre outros, bem como os seus opostos, tais como obscurantismo, trevas, atraso, ignorância, degenerescência, barbárie, quebrantamento. Não desconsideraremos a forma como a nova atmosfera cultural, com implicações em todos os ramos do social, assenta numa absolutização do valor da razão como instância de ordenação e de certificação, subalternizando e desvalorizando todas as outras faculdades humanas, nas palavras do consagrado especialista do Iluminismo Paul Hazard: “A razão é como uma soberana que, tendo alcançado o poder, toma a resolução de ignorar as províncias onde sabe que nunca poderá reinar totalmente”10 .

Cumprirá, desde logo, ter em conta que o Iluminismo, embora tenha o vetor unificador da razão como instância central de ordenação da mundividência e da certificação do conhecimento, está longe de ser uma corrente homogénea, uniforme, antes se caracteriza por diferentes expressões e até fundamentações consoante a linha filosófica e filiação religiosa ou a-religiosa em que se inscreve.

O Iluminismo encerrava, de forma unívoca, uma utopia de edificação de um homem novo, uma sociedade nova, civilizada, reformando tudo o que era “velho” e não certificado pelo crivo da razão humana, procurando um saber universalizante, enciclopédico, consolidado que estava o desbravamento dos mundos e sociedades desconhecidos, graças ao aperfeiçoamento dos meios de mobilidade através das estradas Cf. Paul Hazard, O pensamento europeu no século XVIII, 3a ed., Lisboa, Presença, 1989, p. 35 10

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marítimas, exploração iniciada no século XV pelos reinos ibéricos. No entanto, os fundamentos poderiam ser diversos para levar a cabo a obra de perfectibilidade humana. Assim há correntes que, no plano filosófico e teológico, afirmam Deus como a fonte de todo o poder e da razão divina, inscritas na tradição da teologia revelacionista. Outros negam a revelação e a intervenção de Deus na história, optando por uma teologia deísta, deixando ao homem toda a margem de responsabilidade e ação, como também encontraremos os negacionistas da existência de uma entidade transcendente, materializando radicalmente a sua visão do homem e do mundo.

Estas correntes de pensamento, no plano da fundamentação das doutrinas políticas, ora se situam no plano da afirmação do jusnaturalismo, que defende a existência de um direito natural, como extensão universalista, válido para todos os homens em todos os tempos, ora outras compaginam o jusnaturalismo com o direito jusdivinista, procurando fundamentos teológicos para a ordem social. Os diferentes princípios regentes das diferentes correntes permitiram caracterizar diferentes expressões do Iluminismo europeu, em que se destaca a predominância de um Iluminismo dito católico nos países do Sul da Europa de confissão católica, como Itália, Espanha e Portugal, o Iluminismo protestante predominante no Centro e Norte da Europa, e, por fim, os vários iluminismos vigentes em França, onde convive o católico com o ateu, o deísta com o jansenista, entre outros.

No caso particular de Portugal, tem havido um certo debate no que concerne à forma de definir o nosso tipo de Iluminismo, ora como católico, ora como produzido por católicos em consonância com os critérios fundamentais da escola das Luzes. Pedro Calafate equaciona muito bem esta problemática, clarificando: “Deixando de lado a questão terminológica, o facto é que o nosso Iluminismo conheceu, no seu conteúdo fundamental, uma preocupação de salvaguarda dos domínios da revelação e da fé, em harmonia com a razão, traduzindo-se, nomeadamente, na existência de uma corrente literária de feição apologética, na linha de Huet, Bergier e Abbadie (Ribeiro dos Santos, Cenáculo,

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Teodoro de Almeida). Neste sentido, a atuação do poder político na perseguição aos jesuítas ou nas suas dissensões com a cúria romana não traduziram um ideal irreligioso, mas antes uma preocupação em delimitar esferas de ação, secularizando a sociedade e espiritualizando a ação da Igreja”11 .

Veremos como se afirma uma ideia de Estado e de poder que reforça a soberania centralizada nas mãos do monarca e dos seus ministros inspirada na corrente política do “despotismo iluminado” ou absolutismo iluminado, que teve em França a sua expressão modelar no governo do Rei-Sol, Luís XIV, assim como nos governos de Frederico, o Grande, e de José II da Áustria.

Apresentaremos as raízes da doutrina do poder absoluto que teve na Europa moderna ideólogos inspiradores como Jean Bodin (1530-1596) e o ideólogo do Galicanismo Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), os quais reivindicaram uma legitimação do poder real por graça direta de Deus, dispensando a mediação do poder espiritual. De forma veemente esta doutrina inspirou-se no Leviatã, ou a Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil (1651) de Thomas Hobbes em linha com a fundamentação do poder absoluto do Estado à luz de uma racionalidade liberta da doutrinação teocrática que passava pela transferência de direitos do povo e dos indivíduos para o soberano que presidia todo-poderoso à ordem estatal que regulava a vida em sociedade e domesticava a humana propensão para a violência herdada do estado de natureza. Situaremos a afirmação do poder do Estado na esteira moderna da autonomização crescente do poder temporal em relação à tutela legitimadora do poder espiritual por via da mediação de uma autoridade eclesiástica competente. Este processo de autonomização do poder temporal resulta na subjugação – em concomitância com o processo de afirmação precursora do que viriam a ser os Estados-Nação – da Igreja ao poder do Estado, no que ao temporal diz respeito.

Esta linha doutrinal estruturante do absolutismo esclarecido, no que ao 11

Pedro Calafate, Metamorfoses da Palavra: Estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, p. 142.

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religioso se refere, foi praticada de forma modeladora e influente pelo absolutismo francês, chamado por isso de “galicanismo”, mas também de forma marcada na Áustria, designando-se aí essa prática política de “febronianismo”, e pelas coroas ibéricas, designando-se, neste contexto, de “regalismo”.

Focaremos, nesta abordagem, a reflexão produzida em Portugal para fundamentar a afirmação do poder real, em sintonia com a tendência europeia que iria ser consagrada na corrente geral de afirmação do poder do Estado e da sua competência para superentender a esfera religiosa no que ao temporal concerne. Haverá que considerar a obra de Gabriel Pereira de Castro (1571-1652), De manu regia publicada em 2 volumes entre 1622 e 1623 que é tida como o principal tratado teórico do regalismo português, pioneira da fundamentação da política pombalina do ultra-absolutismo esclarecido. Aquele livro viria a ser censurado e inscrito no Index dos livros proibidos em 1640 por Roma.

Todavia, acabaria por ser reabilitado e divulgado no reinado de D. João V, sendo para isso impresso em 1743, tendo conhecido na viragem para a segunda metade do século XVIII, uma grande difusão dada a importância que lhe foi atribuída na economia doutrinal dos ideólogos do absolutismo pombalista.

Não deixaremos de aludir à fundamentação de Francisco Velasco de Gouveia e à sua Justa aclamação do Sereníssimo Rei de Portugal D. João IV, publicada em 1646, para legitimar a validade da elevação ao trono de D. João IV, inspirada na filosofia política de Francisco Suarez; assim como situaremos nesta corrente doutrinal a obra de Manuel Rodrigues Leitão intitulada Tratado analytico e apologetico sobre os provimentos das Igrejas de Portugal, elaborado em 1659 e publicado só em 1715, depois da morte do autor, obra que foi projetada no contexto de uma controvérsia sobre a capacidade de D. João IV e dos seus sucessores nomearem bispos para as sés vacantes. A polémica tinha sido suscitada pela obra do espanhol Francisco Ramos del Manzano (teórico regalista afeto à Corte espanhola) sobre La provision de los obispados vacantes en la corona de Portugal, documento endereçado

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ao Papa Alexandre VII, a fim de refutar a advogada faculdade do rei português de nomear bispos para as dioceses do Reino de Portugal.

Assim sendo, daremos especial enfoque ao momento político-cultural chamado de Iluminismo pombalino, descrevendo as suas principais reformas, em especial aquelas que tiveram impacto no plano cultural e educativo, começando, todavia, por encontrar as raízes do reformismo pombalino no reinado anterior de D. João V pela apresentação daqueles que são considerados, de facto, os precursores de Pombal. Na verdade, Sebastião José de Carvalho e Melo acabou por consagrar politicamente algumas das propostas reformistas desses intelectuais portugueses, cujas obras e linhas de pensamento descreveremos sucintamente.

Sem esquecer os autores e correntes que receberam influência da Europa transpirinaica, centrar-nos-emos em autores portugueses que avançaram diagnósticos críticos e projetos de reforma influentes na política reformista seguida no governo de D. José I liderado pelo homem forte da sua equipa governativa, que foi o Conde de Oeiras e depois Marquês de Pombal. Destacaremos, no plano político, económico e social, as propostas reformista do embaixador D. Luís da Cunha, o diagnóstico e propostas de reforma pedagógica de Luís António Verney (1713-1792), na sua obra mais conhecida Verdadeiro Método de Estudar (1746), bem como as críticas e projetos de reforma educativa e social avançados por António Nunes Ribeiro Sanches, todos estes marcados pela sua experiência europeia, catalogados pelo apanágio dilemático de “estrangeirados”, conceito debatido na segunda metade do século XX pelo historiador Jorge Borges de Macedo.

Realçaremos os contributos teóricos dos “ideólogos pombalinos” (ou ao serviço de Pombal) para a fundamentação teórica da filosofia e prática política do governo josefino. Em particular, daremos conta das obras do teólogo oratoriano Pe. António Pereira de Figueiredo (1725-1797) – Veteris Ecclesiae de suprema regum in clericos potestate (1765) e a Tentativa Teológica (1766) – elaboradas para dar suporte doutrinal, nomeadamente às medidas políticas regalistas que visavam

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submeter a Igreja ao Estado no que ao Temporal dizia respeito, e para promover a valorização, na esteira do episcopalismo, do poder dos bispos diocesanos em detrimento do poder centralista papal.

Destacaremos este período peculiar do Iluminismo português de marca pombalina como um período de ponto de chegada, mas também de viragem decisiva para a afirmação plena na prática política da doutrina do Absolutismo em toda a sua extensão e com todas as suas implicações, na caracterização do historiador Luís Reis Torgal: “Ele significou a viragem decisiva do absolutismo, que deixa de ser condicionado dominantemente pela velha nobreza «senhorial» e pelo clero ultramontano para ser, em termos políticos, a afirmação de uma burguesia intelectual e mercantil, de um novo clero e uma nova nobreza de Estado. Por outro lado, representa a primeira grande tentativa, que as próprias circunstâncias extremamente graves haviam criado, de encarar de frente os grandes problemas económico-políticos do país, o que implicava alterações fundamentais geradoras de situações de conflito. Ao nível ideológico, orienta-se, à sua maneira, pelas vias do «absolutismo esclarecido», afirmando assim sem qualquer subterfúgio, a origem direta do poder, a concentração total da soberania do rei (e, na prática, no seu gabinete) e a oposição sistemática ao ultramontanismo, até aí considerado como ideologia político-eclesiástica oficial, cobrada de uma defesa viva de teses galicanistas, que até então eram consideradas como heterodoxas”12 .

Apresentaremos as linhas principais da política reformista pombalina, começando por definir a sua ideia de reforma de Portugal, como projeto de regeneração iluminista da sociedade no seu todo. À luz de uma ideografia historicizante que pretende refundar Portugal e operar uma renovatio temporum, Pombal afirmará as suas reformas procurando demonstrar que Portugal tinha caído numa degeneração extrema, tendo recuado significativamente em relação ao estádio de progresso da chamada Europa Culta. Dois paradigmas mitificados, a Idade de Ouro perdida do tempo da expansão portuguesa na Modernidade e a chamada 12

Luís Reis Torgal, História e ideologia, Coimbra, Edições Minerva, 1989, p. 47.

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“Europa polida e civilizada”, eram constituídos como modelo a seguir e metas a conquistar, tendo por negativo uma Idade de Ferro mitificada através da chave de leitura pautada na doutrina do antijesuitismo sistemático que responsabiliza a Companhia Jesus e, também, em tom menor a Inglaterra e os compromissos de aliança com este país, como responsáveis pela decadência a que se teria chegado.

As reformas serão operadas em vários sectores, começando pelos sectores do comércio, da agricultura, da indústria e acabando na reforma da educação pré-universitária e universitária em ordem à sua estatização. A política reformista no campo educativo é toda ela realizada em detrimento da importante rede de educação privada espalhada pelas principais cidades do país, em particular aquela que foi expandida pelos Jesuítas, que acabaria abatida com a expulsão desta Ordem. Não descurou, pois, Pombal, à luz da doutrina política regalista, intervir fortemente na esfera socioreligiosa e do seu reordenamento em linha com a nova ótica estatizante.

Nesta linha, referiremos como significativa a legislação social para acabar com a escravatura na metrópole e com a velha distinção entre cristãos-velhos e cristãos-novos, resolvendo de algum modo a velha questão judaica, distinção que será consagrada na reforma do Santo Ofício com a publicação de novo regimento em 1774 que estatiza plenamente este tribunal. Não deixou de ser importante a promoção, através de importantes assessores seus, como Frei João de Mansilha, dominicano, Frei Manuel do Cenáculo, franciscano, de reformas no seio das ordens religiosas, para melhorar costumes, para limitar património e pessoas, para atualização dos curricula formativos.

Realçaremos ainda um documento-relatório nem sempre muito aludido escrito pelo Marquês de Pombal para apresentar ao Rei os resultados da sua política, assinalando a inauguração da estátua equestre no Terreiro do Paço: as Observações Secretíssimas. Documento de auto-elogio, onde se vê espraiada uma das preocupações fundamentais subjacentes a toda a ação política pombalina: a assunção da importância da Europa no horizonte político e cultural português. Imitar e até mesmo

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ultrapassar a Europa era uma meta obsidiante. Por isso, é que a reforma da Universidade de Coimbra foi eleita como aquela que melhor conseguiu atingir esse objetivo, na perspetiva de Pombal, pois a sua reforma teria sido muito louvada e até imitada por outros governos europeus. O mito da Europa na Cultura Portuguesa será refletido pedagogicamente como um dos grandes vetores de compreensão do Iluminismo pombalino e do sentido da sua política educativa e cultural tendo em vista o melhoramento da imagem de Portugal perante a Europa, almejando o reconhecimento e o crédito, funcionando como o “ponto de espelho” onde o país se vê e revê. Com esta preocupação orientadora, Portugal inaugura uma nova atitude que a política portuguesa pós-pombalina acentuará e consagrará até aos dias de hoje.

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ORIENTAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Textos-Fontes “Observações secretíssimas do Marquez de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Melo na ocasião da Inauguração da Estatua Equestre no dia 6 de Junho de 1775, e entregues por ele mesmo 8 dias depois ao Senhor Rei D. José I”, in Marquez de Pombal, Cartas e outras obras selectas, 4a ed., tomo I, Lisboa, Typ. de E. J. C. Sanches, 1848, pp.

15-39.

Marquês de Pombal (Junta de Providência Literária), Compêndio Histórico da Universidade de Coimbra, Edição coordenada, fixação do texto e introdução por José Eduardo Franco e Sara Marques Pereira, Prefácios de José Esteves Pereira e Manuel Ferreira Patrício, Porto, Campo das Letras, 2008 HOBBES, Thomas, Leviatã, Prefácio de João Paulo Monteiro, Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva, 4a edição, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2009.

Estudos CALAFATE, Pedro, Metamorfoses da Palavra: Estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998.

CALAFATE, Pedro, A Ideia de Natureza no século XVIII em Portugal: 1740-1800, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.

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Como interpretar Pombal?, Organizado por Manuel Antunes enquanto diretor da Revista Brotéria, Lisboa-Braga, Edições Brotéria/Livraria A. I., 1983.

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DOMINGUES, Francisco Contente, Ilustração e Catolicismo: Teodoro de Almeida, Lisboa, Editora Colibri, 1994.

FRANÇA, José-Augusto, Lisboa pombalina e o Iluminismo, 3a ed., [Lisboa], Bertrand, 1983.

FRANCO, José Eduardo e RITA, Annabela, O mito do Marquês de Pombal: A mitificação do Primeiro-Ministro de D. José I pela Maçonaria, Prefácios de Zília Osório de Castro e de José António Ferrer Benimeli, Lisboa, Prefácio Editora, 2004.

FRANCO, José Eduardo, “Quién inspiró al Marqués de Pombal?”, in Artes de México, Revista Livro No 22 (número especial comemorativo dos 20 Anos de edição da revista dedicado a “Los Jesuitas ante el despotismo ilustrado”), dezembro de 2008, pp. 49-55.

GOMES, Pinharanda, Dicionário de Filosofia Portuguesa, 2a ed. aumentada, Lisboa, D. Quixote, 2004.

GUSDORF, Georges, Les principes de la pensée au Siècle des Lumiéres, Paris, Payot, 1971.

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KENNY, Anthony, Ascensão da Filosofia Moderna, Lisboa, Gradiva, 2011.

MERÊA, Paulo, Sobre a origem do poder civil: Estudos sobre o pensamento político e jurídico dos séculos XVI e XVII, Coimbra, Tenacitas, 2003.

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Parte VIII ILUMINISMO INSTITUCIONAL

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Módulo 8 Visão Sinóptica – Iluminismo e institucionalização cultural.

– Real Academia Portuguesa da História: • A ideia iluminista de História: Investigação e ensino.

– Real Academia das Ciências: • Intelectuais e cientistas tardo-modernos e proto-contemporâneos.

– Outras institucionalizações ensaiadas.

EXPLANAÇÃO Relevaremos, nesta lição, um dos traços distintivos da cultura das Luzes: a institucionalização dos ideários de produção de saberes competentes em determinadas áreas consideradas determinantes para a ilustração das elites, o serviço do Estado e o bem do povo.

Destacaremos para exposição mais detalhada a fundação de duas instituições emblemáticas deste processo de institucionalização de centros para a promoção de saberes estruturados à luz dos critérios advindos da racionalidade iluminista. Primeiro, a criação em 1720, no reinado de D. João V, da Academia Real da História Portuguesa. Depois, mais tarde, já no reinado de D. Maria I, a criação da Academia Real de Ciências de Lisboa. Situaremos a criação destas instituições sob proteção Real, à luz de uma política iluminista de organização de determinados atores e autores de saberes considerados fundamentais para a valorização científica e cultural do país, como ponto de chegada e de transformação progressiva de outras experiências de academização que já vinha de trás, remontando ao tempo do Renascimento. Com estas instituições do Iluminismo assiste-se a uma transição das academias de artes e letras menos institucionalizadas na órbita das cortes régias e senhoriais, assim como dos conventos e abadias, muitas vezes mais com funções lúdico-pedagógicas de entretenimento intelectual do que com a definição rigorosa e delimitada epistemologicamente de uma área de saber com uma orientação e utilidade bem definidas.

Evidenciaremos a importante influência da academização dos saberes verificada em países europeus, como a Inglaterra e, de modo especial, o caso de França modelar para Portugal, nomeadamente a partir da política de empreendimento neste domínio protagonizada pelo Cardeal Richelieu. Este valido do Rei de França promoveu uma política científica e cultural assente numa estratégia de coordenação de sinergias em

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ordem a estatizar iniciativas privadas multipolarizadas para aperfeiçoar a língua e afirmar a história de França.

Não deixaremos de registar as tentativas de institucionalização antecedentes das duas academias portuguesas selecionadas para estudo nesta lição. De facto, a Academia Real da História Portuguesa e a Academia Real de Ciências de Lisboa tornaram-se a referência deste esforço de institucionalização, quer pelo significado e importância das áreas de conhecimento regulamentadas através de uma política institucionalizadora, quer também porque perduraram no tempo.

Outras houve que não passaram de tentativas interessantes, significativas das preocupações intelectuais do tempo, mas que não singraram autonomamente nem tiveram a bênção da perenidade temporal. Referiremos a título ilustrativo as preocupações de promoção da língua e da literatura portuguesas patentes na academia que se reunia na casa do Guarda-Mor da Torre do Tombo, António Álvares da Cunha, pai do futuro diplomata de Portugal em França, D. Luís da Cunha. Empenhado em cultivar as letras portuguesas, o Guarda-Mor da Torre do Tombo, desde 1647, procurou congregar alguns intelectuais oriundos das casas nobiliárquicas do reino, entre os quais se pode destacar D. Francisco Manuel de Melo. Esta reunião de intelectuais institui-se em 1667 com o título “Academia dos Generosos”, mantendo-se ativa até ao dealbar do século XVIII. É esta academia que se viria a transformar, no ano de 1717, na Academia Portuguesa, que se diluiria três anos depois na Academia Real da História fundada, sob patrocínio régio, graças à ação de D. Francisco Xavier de Meneses (1673-1743), que dela foi diretor e censor. A primeira academia régia passa a incorporar um conjunto de intelectuais que desenvolviam o seu trabalho intelectual em academias privadas, quer seculares quer eclesiásticas, sendo a partir de então arregimentados sob o signo de uma única instituição estatizada para servir o ideário coordenado de construção de uma história do Estado em processo de afirmação à luz da ideologia política do absolutismo monárquico.

Os territórios do saber histórico tinham-se tornado cada vez mais num

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espaço de combate importante, integrando um dos vetores programáticos da política iluminista dos estados absolutistas para afirmar as suas prerrogativas de nações com direitos e privilégios assentes também nas gestas e primazias do passado.

Forma importantes de institucionalização da produção cultural em Portugal, seguindo o que se fazia então na Europa, foi, com efeito, a criação de uma academia sob patrocínio régio, com a finalidade de regular, centralizar e estabelecer um método e um sentido para a produção de um saber competente sobre o passado à luz dos novos critérios de validação advogados pela razão iluminista. O Iluminismo, de facto, passa a dar à história um lugar de destaque que se reflete nas próprias reformas do ensino, como aconteceu, de maneira bem expressiva, na política reformista pombalina, tendo por centro a Universidade portuguesa. A História passa a ser entendida como a ciência propedêutica obrigatória, trabalhada à luz do método crítico da Ilustração, que deveria fazer parte dos currículos académicos de todas as áreas de saber, desde a Medicina à Teologia. Além de a História passar a ser defendida como uma disciplina subsidiária fundamental, é utilizada concomitantemente como um saber que importa à afirmação de um Estado cada vez mais nacionalizante, que recorre ao saber histórico como lugar de legitimação, distinção e dignificação.

A título ilustrativo da nova orientação nacionalizante e estatizante da Academia Real da História aludiremos a um dos primeiros grandes projetos de investigação encomendado logo na sua génese. Uma equipa de historiadores portugueses, membros desta academia, ficaram com o encargo de fundamentar os direitos históricos imperiais de Portugal no âmbito do que foi definido no Tratado de Tordesilhas e da teoria do Mare Clausum contra a teoria do Mare Liberum, ao mesmo tempo que deveriam compor uma nova história de Portugal, destacando as realizações ultramarinas e a construção do império português, como serviço de memória aos portugueses do presente e do futuro, de modo a empenhar os portugueses do presente e fazê-los sentir-se partícipes de uma história relevante que deveria ser assumida e continuada.

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A academização do saber histórico impulsiona a produção de um saber à luz de um método que passa pela perscrutação e seleção crítica da veracidade das fontes, de modo a constituir “provas” ou “fundamentos” sólidos para estabelecer um conhecimento racionalmente estruturado sobre um determinado objeto de saber traduzido em sistematizações de grande fôlego. Exemplos emblemáticos e monumentais de afã historiográfico foram a edição da História Genealógica da Casa Real Portuguesa (1735-1748) e as suas Provas (1749) da autoria do cónego teatino D. António Caetano de Sousa (1674-1759); assim como a obra biográfica dos autores portugueses apresentados longamente em vários volumes juntamente com a sua bibliografia impressa e manuscrita sob o título Biblioteca Lusitana (1741-1759), que resultou do labor intenso de Diogo Barbosa Machado (1682-1772) cumprindo o ideário de organização de um saber enciclopedizante de abrangência global em torno de um determinado campo de conhecimento.

Daremos conta, em paralelo com a criação de uma Academia das Ciências de Lisboa, em 1779, com beneplácito régio de D. Maria I na capital da metrópole portuguesa, do registo documentado de outras tentativas que não vingaram no tempo. Aludiremos à criação da Academia Brasílica dos Esquecidos em São Salvador da Bahia por iniciativa do Vice-Rei Vasco Fernandes de Menezes, tendo por modelo a referida Academia Portuguesa da História em funcionamento. Com data de fundação de 7 de Março de 1724, aquela instituição cultural visava promover o estudo histórico da colónia brasileira e fomentar iniciativas de carácter cultural e literário. Com semelhante pretensão estatui-se, no ano de 1759, a Academia Brasílica dos Renascidos também na capital daquela colónia portuguesa, sem grande expressão por falta de apoio do governo da Metrópole.

Salientaremos ainda, de forma mais demorada, a criação com beneplácito régio da Academia das Ciências de Lisboa já no reinado de D. Maria I, ilustrando uma das linhas de continuidade da política reformista pombalina subjacente, por exemplo, à reforma da Universidade de Coimbra. A nova academia científica mariana visava incrementar

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uma nova mentalidade científica em Portugal na esteira dos países mais avançados da Europa neste domínio.

A Academia das Ciências de Lisboa foi fundada, entre outros, por intelectuais destacados como o Duque de Lafões, D. Luís António Furtado de Castro de Rio de Mendonça e Faro (1754-1830) e o Abade José Correia da Serra (1750-1823), com vista a promover a ciência em Portugal. Foi, desde o início, berço de projetos científicos inovadores e formadora de escol de cientistas que se vieram a notabilizar, tendo criado ao mesmo tempo um espaço de reflexão reformista para melhorar as condições estruturais de Portugal, tanto no plano económico, como no sociopolítico. Desta instituição saíram alguns dos ideólogos do proto-liberalismo português que influenciariam as mudanças que se iriam operar em Portugal ao longo do século XIX. Entre outros, referir-nos-emos a figuras da Academia que se destacaram no plano científico e cultural, tal como o ex-jesuíta matemático e naturalista João Loureiro.

Para aprofundamento seguiremos o estudo de alguns textos editados nas memórias destas academias no século da sua fundação.

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ORIENTAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS CIDADE, Hernâni, Cultura Portuguesa: Reinado de D. Maria I, Invasões Francesas e retirada da Corte para o Brasil, A acção reformadora de D. Maria I, Novas academias, As Artes Plásticas e a Música, S.l., Empresa Nacional de Publicidade, 1974.

BRANCO, Fernando Castelo, Significado das Academias de Lisboa no século XVIII, Lisboa, s.n., 1973.

KANTOR, Íris, Esquecidos & Renascidos: Historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759), São Paulo, HUCITEC/Centro de Estudos Baianos, 2004.

MATIAS, Else Maria Henny Vonk, Guia ilustrativo das academias literárias portuguesas dos séculos XVII e XVIII, Lisboa, [s.n.], 1995.

PALMA-FERREIRA, João, Academias Literárias dos séculos XVII a XVIII, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal (1750-1807), vol. VI, [Lisboa], Verbo, 1782.

Parte IX FRATURAS E NEGAÇÕES

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Módulo 9 Visão Sinóptica – O conceito de Cultura Negativa.

– A ruptura como programa e como estratégia.

– As reformas pombalinas e a diabolização do outro: antijesuitismo e antibritanismo.

– Rupturas e continuidades na cultura iluminista: Educação, Ciência e Renovatio temporum.

– A cultura no Reinado de D. Maria I: • O problema da tese da “Viradeira” ou uma continuidade moderada da política de D. José I? • O drama da auto e da hetero-imagem de Portugal e a urgência da sua reparação.

– As Invasões Francesas e a viabilidade de Portugal como Reino e como comunidade de afetos assente numa cultura modelada pelo Antigo Regime.

– A fuga da Corte para o Brasil e o futuro de Portugal na Europa e no mundo.

– As forças das ideias novas: crepúsculo de um modelo social caduco e fermento de uma nova sociedade em desejo.

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– “Pontos de negação” do complexo mítico de uma identidade nacionalizante.

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EXPLANAÇÃO Este módulo temático será dedicado ao estudo dos dinamismos de negação e fratura que se manifestaram de forma muito impressiva e produtora de efeitos pertinentes, que se proporá que sejam considerados numa perspetiva analítica no âmbito da História da Cultura, destacando a relevância operativa da construção de leituras de grupos, instituições, povos e civilizações consideradas oponentes e contrárias ao projeto de afirmação de um determinado caminho para Portugal.

Enquadraremos esta análise no âmbito do conceito que designamos de “Cultura Negativa”, definido como conceito operativo para compreender a capacidade modeladora e mobilizadora do negativo no plano cultural com repercussões não menos importantes no plano político e social. Inscrevem-se na área da cultura negativa os vários tipos de discursos que constituem a chamada Cultura de Combate que marcou fortemente a Modernidade, assim como todos os textos de natureza mais ou menos propagandística promovida pelo que designamos as correntes “anti”, de complô ou conspiração (antisemitismo, anti-islamismo, antijesuitismo, etc.).

Estas correntes tiveram implicações em termos decisórios tanto na esfera política como na religiosa, bem como nas leituras e representações no plano da leitura do perfil e do papel de instituições, grupos sociais e étnicos, religiões, nações, . . . A nossa proposta de estudo permitirá perceber em que medida as produções da cultura negativa, pautadas por estratégias de negação, rejeição e eliminação do Outro que pensa-crê-age-e-está-na-sociedade de maneira diferente do Nós dominante, passam pela propaganda, pelas representações negativas com recurso a vários tipos de expressão e acabam por ser tão condicionadoras das derivas da história como a produção discursiva situada no polo inverso da afirmação.

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Dedicaremos especial atenção, depois de fazer alusão aos diferentes tipos de expressões da cultura negativa, ao fenómeno do antijesuitismo que se afirmou como a produção negativa por excelência no contexto da política reformista pombalina estudada no módulo anterior. O combate aos Jesuítas, figurados como uma organização obediente a um poder estrangeiro, fora da alçada do controlo do Estado, permitiu reforçar a ideia proto-contemporânea de Estado-Nação, adverso a qualquer interferência internacional, nomeadamente ao poder papal sediado em Roma e de cuja velha tutela teocrática se queria libertar no que ao temporal dizia respeito.

Não descuraremos o processo de mudança política que representou o Reinado de D. Maria, aludindo às leituras simplificantes que julgaram, de forma redutora, o significado do novo reinado, ao catalogarem essa transição com a atribuição do conceito de “Viradeira” que aponta para um ruptura total com a política em voga no reinado anterior de D. José I. Veremos como estas leituras foram potenciadas no contexto das duas correntes de leitura do pombalinismo que se afirmaram em oposição ao longo do século XIX: a corrente filopombalista e fortemente antijesuítica, e a corrente antipombalista e legitimista. A primeira corrente de leitura, que se tornou dominante, produziu uma imagem luminosa da política de Pombal enquanto potenciadora de Modernidade e do progresso, taxando o reinado de D. Maria como a cedência ao obscurantismo pelo boicote à continuação das medidas reformadoras encetadas no reinado josefino.

Servir-nos-á de referência aqui a pertinente reflexão de António Nóvoa sobre a complexidade do processo histórico e das mudanças visíveis que escondem constantes mais fundas que persistem: “A compreensão última do processo histórico (. . . ) obriga-nos a escavar as superfícies e a olhar para as correntes subterrâneas: apercebemo-nos então que as rupturas são contemporâneas das continuidades, que a visibilidade dos tempos quentes esconde por vezes a discrição das mutações lentas”13 .

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António Manuel Seixas Sampaio da Nóvoa, História da Educação, Relatório

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Não deixaremos de aludir à importância que, nesta época, constituirá a chamada literatura de viagens da autoria de estrangeiros que visitaram Portugal, nomeadamente ingleses e franceses. As imagens predominantemente negativas e depreciadoras de Portugal e dos portugueses espraiadas nestas obras foram utilizadas por políticos e intelectuais, mormente por Pombal e por alguns dos seus conselheiros, como argumento para reformar algumas instituições do país consideradas as principais responsáveis dessa imagem pejorativa, em particular a Inquisição, os Jesuítas e o laxismo e ócio dos frades e freiras.

Observaremos ainda, durante este período da tardo-modernidade e da época proto-contemporânea o impacto cultural das Invasões Francesas no dealbar do século XIX que motivou a deslocação da Corte portuguesa para o Brasil. Teremos em conta a produção de propaganda antifrancesa que constrói um mito negro de Napoleão e do seu plano considerado anticrístico de dominação europeia e mundial. Paralelamente, tentaremos compreender como este choque social, político e mental propiciado pelos acontecimentos das sucessivas invasões dos exércitos gauleses lançou as sementes ideológicas que vão estar na base do movimento liberal que rebentará na Revolução de 1820 e inaugurará a época da História Contemporânea de Portugal.

Procuremos compreender e fazer compreender de que modo a percepção e a reação negativas à entrada violenta dos franceses em Portugal acabou por se entendida, pelas elites descontentes com a situação política de um país considerado em estagnação e atraso, como uma oportunidade, definida até como messiânica, para lançar as sementes de um tempo novo marcado pela expressão livre do pensamento e da iniciativa individual. Constataremos, pois, à semelhança do que aconteceu noutros países europeus, como o projeto imperial perseguido por Napoleão tanto foi entendido como antecipador dos tempos do Anticristo, como foi encarado como o momento de chegada de uma espécie da disciplina de História da Educação – Provas de Agregação em Ciências da Educação/Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação, Lisboa, Texto policopiado apresentado à Universidade de Lisboa, 1994, p. 178.

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de Messias dos tempos escatológicos que estava a libertar a Europa e o mundo da era da servidão. Estas perspetivas hermenêuticas antagónicas serão ilustradas com base em documentos da propaganda do tempo.

Assim se concluirá o arco temporal daquilo que denominámos a construção do complexo identitário nacionalizante na História da Cultura Portuguesa Moderna marcada que é por aqueles que denominámos como pontos de afirmação, como pontos de negação, como pontos de espelho e como pontos de fuga.

Assistimos à formação do que designamos os quatro pontos de afirmação mitificantes da ideia de nacionalidade portuguesa: o mito das origens, uma narrativa épica, o recorte de uma idade de ouro luminosa e a projeção de uma teleologia. Observámos a afirmação cultural em diferentes andamentos históricos dos pontos de negação (anticastelhanismo, anti-islamismo, antissemitismo e antijesuitismo e mais recentemente o antibritanismo e o antinapoleanismo). Constatámos a emergência do ponto de espelho através da assunção da Europa no horizonte da cultura portuguesa, quer como espelho crítico, quer como palco, quer como meta-ideal de recuperação do nosso complexo de atraso ou de cauda dessa Europa mitificada. E, finalmente, para fechar este complexo identitário, teremos em conta aquilo que designámos como os pontos de fuga mitificados para viabilizar e “salvar” Portugal como país: primeiro o processo de expansão extra-europeia, a terrestre, de pendor cruzadístico no Norte de África, e a marítima de pendor descobrimentista, começando pela Costa de África e Ilhas Altânticas e depois atingindo o Oriente que se tornou a força do nosso império primordial e ilustrou a nossa idade de Ouro mitificada; depois veio o Brasil para onde nos virámos no final do século XVII, focando toda a esperança no seu ouro e para onde fugimos por fim quando o Império francês nos ameaçou com um nova subjugação que alguns viam melhor que a Espanhola do século anterior. Deste modo, se completará o estudo em longa perspetiva da época atinente à Cultura Moderna portuguesa e dos referentes/vetores estruturadores da nossa identidade nacionalizante como fermento mobilizador e modelador.

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Referiremos, por fim, que este complexo se vai repetir metamorficamente na época histórica que se abria no dealbar do século de Oitocentos e se estende até aos nossos dias: enfatizaremos culturalmente a nostalgia da idade de ouro perdida associada conscientemente aos outros pontos de afirmação mitificantes; recriámos e reforçámos propagandisticamente velhos e novos pontos de negação conspirativos que serviram de mobilização para diferentes correntes com soluções diversas e concorrentes para o país (anticlericalismo, antimaçonismo, anticomunismo, etc.); impôs-se-nos cada vez mais o ponto de espelho pela constituição da Europa como nosso modelo mitificado e o nosso complexo de cauda do progresso em relação ao nosso continente aumentado; perdido o Brasil, procurámos outros pontos de fuga, passando a ser, no final do século XIX, o continente africano aquele para onde lançámos todas as nossas esperanças tantas vezes defraudadas de recuperação do país e do império. O Estado Novo viria a enfatizar a importância estratégica de África onde assenta bases que dão algum alento.

Por fim, com a perda do império colonial na sequência da revolução democrática de 1974, o ponto de fuga passa a ser a Europa que se confunde e funde então com o ponto de espelho que continua a exercer a sua função de referência na tentativa de medir o nosso atraso/progresso tantas vezes sobrelevado. A tensão entre progresso e decadência entre a abertura de Portugal à Europa e o seu reverso gera um imenso filão cultural produzido pelos discursos sobre a ideia de nós e do nosso estado de afirmação ou detração.

Neste ponto nodal do debate em torno da nossa identidade se vai distinguindo, especialmente a partir da segunda metade do século XVIII, a separação e diferenciação entre dois “Portugais”, da mesma maneira que em França se desenhou cultural e mentalmente a existência de duas Franças, ou em Espanha duas Espanhas em concorrência.

A base desta divisão é cultural, mas a sua expressão mais veemente manifesta-se no plano político e social14 . Esta fratura interna à socie14

Cf. Lucian Boia, Hégémonie ou déclin de la France? La fabrication d’un mythe national, Paris, Les Belles Lettres, 2009.

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dade portuguesa acentua-se devido à utilização política de certos “pontos de negação” através de uma propaganda articulada com uma utilização eficaz do poder coercivo do Estado. Assim aconteceu com os Jesuítas sob o governo de Pombal, como acontecerá com a Maçonaria no reinado de D. Miguel.

Permitir-nos-emos concluir com Borges de Macedo, em jeito de avaliação do lugar e do papel da cultura portuguesa modelada na Modernidade ao serviço da viabilização de Portugal como país com uma ideia de Nação e como Estado que se vai consolidando: “O que interessa salientar é o facto de a cultura portuguesa sempre também ter sido – na sua ordem – um elemento de unidade social e política, no agregado onde se tem desenvolvido”. Foi, assim, “capaz de elaborar uma língua, de alcançar uma sensibilidade plástica própria, nos vários estilos que lhe foram fornecidos; alcançou uma expressão heroica à volta de figuras fundamentais do seu passado e teorizou os seus objetivos e possibilidades políticas, nos primeiros séculos da sua existência e prosseguiu em fases coerentes que envolvem uma meditação transmitida”.

Em suma, a cultura realizou em Portugal com muita eficácia a sua dimensão instrumental e prática: “A cultura Portuguesa foi assim posta, desde o início, em termos superiormente práticos e funcionais”15 .

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Jorge Borges de Macedo, Um desafio à Cultura Portuguesa, Separata de Democracia, no 2, Março, 1977, Lisboa, Instituto Democracia e Liberdade, 1977, p.

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ORIENTAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Luís Machado de, Ensaios anticlericais, Lisboa, Roma Editora, 2004.

BOIA, Lucian, Hégémonie ou déclin de la France? La fabrication d’un mythe national, Paris, Les Belles Lettres, 2009.

CALAFATE, Pedro (dir.), História do Pensamento Filosófico Português, vol. III: Luzes, Lisboa, Caminho, 2001.

CHAVES, Castelo Branco, Os livros de viagens em Portugal no século XVIII e a sua projecção europeia, Lisboa, Instituto de Cultura Portuguesa, 1977.

CRISTÓVÃO, Fernando (coord.), Condicionamentos culturais da Literatura de Viagens, Coimbra, Almedina, 2002.

FRANCO, José Eduardo, O Mito dos Jesuítas em Portugal, no Brasil e no Oriente, Prefácios de Bernard Vincent, Eduardo Lourenço e Luís Filipe Barreto, 2 vols., Lisboa, Gradiva, 2006-2007.

MARUJO, António e FRANCO, José Eduardo (coord.), Dança dos Demónios – Intolerância em Portugal: Anti-seminitismo, Anti-Islamismo, Anticlericalismo, Antijesuitismo, Antiprotestantismo, Antimaçonismo, Antifeminismo, Anticomunismo, Antiliberalismo, Antiamericanismo, Lisboa, Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2009.

MACEDO, Jorge Borges de, Um desafio à Cultura Portuguesa, Separata de Democracia, no 2, Março, 1977, Lisboa, Instituto Democracia e Liberdade, 1977

Parte X PROCESSO PEDAGÓGICO

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Aulas teórico-práticas e propostas de avaliação Com carga letiva de quatro horas semanais repartidas por aulas de duas horas, a cadeira será organizada em módulos expositivos da responsabilidade do docente, considerados teóricos, e sessões práticas de análise e discussão de textos e apresentação de trabalhos dos alunos, nomeadamente recensões de obras e redação de um trabalho escrito em torno de um tema escolhido a partir de propostas oferecidas pelo Professor, havendo a possibilidade de se optar por contrapropostas avançadas pelos alunos, a avaliação, desde logo, terá em consideração a assiduidade e a participação oral dos alunos.

Assim sendo, o indicador da assiduidade e intervenção nas aulas valerá 20% no conjunto dos fatores de ponderação da avaliação final.

Para avaliação da compreensão e aproveitamento das aulas teóricas com vista a aferir o grau de aprofundamento dos temas abordados e o resultado do estudo da bibliografia proposta será feito um teste no final do semestre com dois temas de desenvolvimento e três perguntas de resposta precisa. Este indicador valerá 40% no total da avaliação.

Por fim, teremos a avaliação de uma recensão a uma obra e de um trabalho escrito, apresentados e debatidos individualmente com o professor, contando este fator de ponderação 40% no conjunto da avaliação.

José Eduardo Franco (n. 1969) Historiador, jornalista, poeta e ensaísta. Especialista em História da Cultura. Doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris em “História e Civilização” e Doutorado em “Cultura” (através de equivalência) pela Universidade de Aveiro, Mestre em História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e Mestre em Ciências da Educação pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Lisboa.

Tem desenvolvido trabalhos pioneiros de investigação nos domínios da mitologia portuguesa e das grandes polémicas históricas que marcaram a vida cultural, política e religiosa do nosso país. Especial novidade têm representado os seus estudos sobre os Jesuítas, de modo particular, sobre o fenómeno do antijesuitismo e sobre a hermenêutica dos mitos e das utopias portuguesas e europeias. Articulista assíduo da imprensa periódica, tendo já várias dezenas de artigos publicados nas áreas da História, da Mitocrítica, da Hermenêutica da Cultura, da Ideografia Europeia, da Filosofia, da Ciência das Religiões, das Ciências da Educação e da História da Mulher. Entre a sua vasta obra publicada podem-se destacar os seguintes livros: O Mito de Portugal, Lisboa, Roma Editora, 2000 (Premiado por unanimidade com o 1.o Prémio “Livro 2004” da Sociedade Histórica da Independência de Portugal); Brotar Educação, Lisboa, Roma Editora, 1999; Monita Secreta (Instruções Secretas dos Jesuítas). História de um manual conspiracionista (em co-autoria com Christine Vogel), Lisboa, Roma Editora, 2002; O Mito do Milénio (em co-autoria com José Manuel Fernandes), Lisboa, Paulinas, 1999; Falésias da Utopia, Lisboa, Editora Arkê, 2000; Teologia e Utopia em António Vieira, Separata da Lusitania Sacra, Lisboa, 1999; Vieira na Literatura Anti-Jesuítica (em co-autoria com Bruno Cardoso Reis), Lisboa, Roma Editora, 1997; História dos Dehonianos em Portugal, Porto, Edições Dehonianas, 2000; Fé, Ciência e Cultura. Brotéria – 100 anos (co-coordenação com Hermínio

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Rico, Prefácio de Eduardo Lourenço), Lisboa, Gradiva, 2003; coordenação da edição do manuscrito inédito do tratado do Quinto Império em Portugal, com edição integral do Tratado da Quinta Monarquia de Sebastião de Paiva, Prefácio de Arnaldo Espírito Santo, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006; O mito do Marquês de Pombal (em co-autoria com Annabela Rita), Lisboa, Prefácio, 2004; Metamorfoses de um povo: Religião e Política nos Regimentos da Inquisição Portuguesa – com edição integral dos Regimentos da Inquisição Portuguesa (em co-autoria com Paulo de Assunção), Lisboa, Prefácio, 2004; Dois exercícios de Ironia: “Contra os Jesuítas” de Sena Freitas e “Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade o Papa Pio IX” de Antero de Quental (em co-autoria com Luís Machado de Abreu), Lisboa, Prefácio, 2005; Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa. Com edição dos escritos de Natália Correia sobre a “Utopia da Idade Feminina do Espírito Santo” (em co-autoria com José Augusto Mourão), Lisboa, Roma Editora, 2004; O Mito dos Jesuítas em Portugal e no Brasil, Séculos XVI-XX, 2 Vols., Lisboa, Gradiva, 2006-2007; O Padre António Vieira e as Mulheres: Uma visão barroca do Universo feminino (em co-autoria com Isabel Morán Cabanas), Porto, Campo das Letras, 2008; Padre Manuel Antunes (1918-1985): Interfaces da Cultura Portuguesa e Europeia (co-coordenação com Hermínio Rico), Porto, Campo das Letras, 2007; Jesuítas e Inquisição: cumplicidades de confrontações, Rio de Janeiro, Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2007; Padre António Vieira (1608-1697): Imperador da Língua Portuguesa (coordenação e co-autoria), Lisboa, Correio da Manhã, 2008; Jardins do Mundo: Discursos e Práticas (co-coordenação com Ana Cristina da Costa Gomes), Lisboa, Gradiva, 2008; Dança dos Demónios: Intolerância em Portugal (co-coordenação com António Marujo), Lisboa, Círculo de Leitores/Temas e Debates, 2009; Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal (co-direção com José Augusto Mourão e Ana Cristina da Costa Gomes), Lisboa, Gradiva, 2010; Dicionário Histórico das Ordens, institutos religiosos e outras formas de vida consagrada católica em Portugal (direção), Lisboa, Gradiva, 2010; Arquivo Secreto do Vaticano. Expansão Portuguesa – Documentação (coordenação geral), Lisboa, Esfera do Caos, 2011. Foi Coordenador Geral do projecto da edição crítica (em 14 volumes) da Obra Completa do Padre Manuel Antunes, sj, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, e co-coordenador da Obra Completa do Padre António Vieira, publicada pelo Círculo de Leitores.

Além do seu trabalho de pesquisa, de coordenação de projectos e de organização de congressos internacionais de grande projecção (p. ex. “Inquisição Portuguesa”, “Padre Manuel Antunes: Interfaces da Cultura Portuguesa e Europeia”, “Jardins do Mundo: Discursos e Práticas”, “Ideas of/for Europe”, “Ordens e Congregações Religiosas em Portugal: Memória, Presença e Diáspora”; “A Europa das Nacionalidades.

Mitos de origem: Discursos Modernos e Pós-Modernos”, "Concílio de Trento 450 anos de História. Restaurar ou Inovar", "500 anos da Diocese do Funchal. 1514-2014

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História da Cultura Portuguesa na Época Moderna

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A Primeira Diocese Global: História, Cultura e Espiritualidades"), tem exercido as funções de Director do Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, de Vice-Presidente da C OMPA R ES – Associação Internacional de Estudos Ibero-Eslavos. Actualmente é Vice-Presidente da Assembleia-Geral do Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes (instituição fundada pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em parceria com a ESAD-Fundação Ricardo Espírito Santo Silva).

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Esta publicação foi financiada por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do Projecto Estratégico «PEst-OE/ELT/UI0077/2014»

A nossa lição pretende explanar, problematizar e analisar o contributo decisivo de dois autores da Cultura Portuguesa para aquilo que definimos como sendo as quatro dimensões mitificantes que estão na base da formação do mito maior de Portugal. Estas quatro dimensões, ou também designadas por nós como os quatro “pontos de afirmação” do complexo mítico da identidade nacionalizante estabelecidos pelos discursos da Cultura Portuguesa da Modernidade, serão compreendidos na articulação com processos similares de formação das ideografias nacionalizantes de outros reinos da Europa nesta época-charneira.

No período cultural que caracterizamos como o da construção da ideia de proto-nacionalidade, que precede a consolidação da ideia de nação portuguesa articulada com a afirmação do Estado-Nação nos séculos XVIII e XIX, o humanista Fernando Oliveira (ca. 1507 – ca. 1582) e o pregador barroco António Vieira (1608-1697) deram sustentação a uma reflexão que permitiu estabelecer uma espécie de cânone mítico nacionalizante de Portugal. Este cânone mítico estabelece-se em torno da idealização das origens de Portugal enquanto povo e enquanto reino fundados em direito divino; do recorte exaltante através da narrativa épica da sua missão histórica cumprida pela participação distinguida no movimento de reconquista cristã e nas viagens de exploração e expansão marítima; da afirmação de uma idade áurea portuguesa; e da perspetivação teleológica de uma destinação em ordem à realização plena da missão vista como estando inconclusa ou incumprida do povo português, tal como teria sido definida desde as suas origens mitificadas firmadas na vontade deliberativa de Deus.