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0.1 A sede de conhecer – Uma revisão da herança literária das viagens no Diário de Miguel Torga

Lenka Kroupová Universidade de Masaryk, Brno

Resumo: O artigo visa analisar o legado da literatura de viagens e, específicamente de Fernão Mendes Pinto e da sua obra prima, Peregrinação, na obra diarística de Miguel Torga e salientar a importância da viagem para a formação e compreensão da consciência da pátria de Torga. A estrutura reflete dois objetivos principais: por um lado, pretendemos contextualizar, muito brevemente, a obra diarística de Miguel Torga; e essencialmente, descrever e exemplificar a grande paixão por explorar sítios e grandezas presentes e passadas, utilizando como referência precisamente o Diário. Palavras-chave: Miguel Torga; diário; viagens; Mendes Pinto; Peregrinação

DESCOBERTA Coração português que não descansas: Só a fé das crianças Exige a lua. . . Guarda essa fé, que é a tua, Mas repara nos bens Que deixas no caminho da aventura.

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Lenka Kroupová Lusitano almocreve, olha o que tens: Montanha e mar, o berço e a sepultura! Miguel Torga

I. Para contribuir à homenagem da excelente obra de Mendes Pinto, escolhemos como tema da sugerida comunicação a repercussão da literatura de viagens na obra diarística de Miguel Torga. A viagem nas suas várias formas, é sem dúvida uma das temáticas e motivos fundamentais de toda a literatura. Veio manifestar-se desde a Antiguidade Clássica e mantém a sua vitalidade até aos nossos dias, o que evidencia uma imensa sede da novidade, diversidade e atração pelo outro e inexplorado que comparte a humanidade. Durante o século XX adquire a vontade de viajar, conhecer e explorar adquire uma lufada de ar fresco com novos nomes, contribuindo para o enriquecimento de um corpus da literatura de viagens nos séculos XX e XXI. Um autor que talvez não surja como a primeira pessoa de referência na literatura de viagens do século XX, é Miguel Torga, conhecido no primeiro lugar como poeta e contista. Contudo, Torga dedicou uma parte importante da sua carreira criativa à obra diarística, intitulada o Diário, onde publica as suas profundas reflexões e impressões da mais diversa índole. Esta obra é produto de 61 anos de trabalho consistente que abarca um lapso temporal extraordinário, percorrendo desde a juventude e madurez, até a velhice do autor. Nas páginas desta obra sumamente interessante e heterogénea, o escritor perspicaz discorre sobre a sua vida e os acontecimentos literários, culturais, políticos e sociais que marcaram a sua época. Além disso, seria uma pena deixar à parte o imenso potencial das reflexões tiradas durante as frequentes viagens que este escritor e viajante incessante e incansável realizou na sua vida praticamente pela Europa inteira, América do Sul e África. Nesta linha, destaca-se a corrente que Torga dedicou às reflexões sobre o antigo Portugal Ultramarino, a herança literária dos Descobrimentos incluindo a de Mendes Pinto e aos sentimentos desencontrados que o poeta sentiu ante a passada grandeza da sua pátria e o incerto presente. O objetivo da nossa comunicação será, por tanto, analisar o legado da literatura das viagens e da era dos Descobrimentos na obra diarística de Miguel Torga e salientar a sua importância para a formação e compreensão da www.clepul.eu

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A sede de conhecer – Uma revisão da herança literária das viagens no Diário de Miguel Torga 3 consciência da pátria de Torga, amante e crítico sagaz da terra portuguesa. A estrutura da comunicação reflete dois objetivos principais: por um lado, pretendemos contextualizar, muito brevemente, a obra diarística de Miguel Torga; e essencialmente, descrever e exemplificar a grande paixão por explorar sítios e grandezas presentes e passadas, utilizando como referência precisamente o Diário. II. A obra literária de Miguel Torga começou em 1928 com a publicação do seu primeiro livro de versos, Ansiedade. Em total, é autor duma obra vasta, repartida por diversos géneros: poesia, ficção narrativa, teatro, ensaio e produção autobiográfica. Neste percurso literário destacam-se o livro com rasgos significativamente autobiográficos, A Criação do Mundo, e o Diário. O Diário, com XVI volumes, começado em 1932 e concluído com a última entrada em 1993 com o poema „Réquiem por mim“, é uma obra sumamente interessante, na qual o escritor discorre sobre a sua vida e os acontecimentos literários, culturais, políticos e sociais que marcaram a sua era. Quanto ao género, Diário tem um carácter multifacetado, de marcado cunho poético, visto que contém inseridos numerosos poemas que saíram publicados em coletâneas independentes mas também os inéditos, e vários contos e textos ensaísticos intercalados. Cada entrada está notada temporal e geograficamente, permitindo fazer-mos uma ideia precisa do percurso percorrido pelo escritor. Torga é conhecido pelo seu amor por Portugal, especialmente pela sua terra natal, admiração pelos portugueses, o campo, mar, montanhas e florestas. Por outro lado, também é um crítico ágil que monitora cuidadosamente a sociedade em que vive e não tem medo de apontar às suas deficiências. Trásos-Montes, é certamente o seu amor privilegiado e o lugar de visitas absolutamente favorito, apesar de estar consciente dos lados negativos dos que advertia durante a sua juventude, relacionadas com as condições precárias de vida dos camponeses transmontanos.1 Como refere no seu estudo Paulo Carvalho (apud Choupina, 2012: 47), 30 1 Compáre-se, por exemplo: S. Martinho de Anta, 17 de Abril de 1938 – Este Trás-os-Montes da minha alma. Atravessa-se o Marão, e entra-se logo no paraíso! S. Martinho de Anta, 8 de Julho de 1946 – As minhas raízes começaram a secar. Minha mãe está no fim, meu pai ensurdece, a beleza das giestas floridas não resiste ao espectáculo lancinante de ver crianças famintas a pastar ervas como animais. Só o Marão, ao longe, conserva a majestade de sempre e a sua pureza habitual de deus. (...)

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% das viagens realizadas para além de Portugal ocupam Espanha e as regiões raianas, contudo Torga fez viagens à cerca de duas dezenas de países em Europa, Américas, África e Asia e continuou a viajar até uma idade avançada. Como Torga reconheceu no Diário, sente uma necessidade de viajar constantemente que lhe envia dum canto para o outro. Através do percurso adquire o sentido de formação e consciência da pátria. “Fundão, Serra de Gardunha, 24 de Fevereiro de 1945 – Pareço um doido a correr esta pátria. Do Gerês a Monchique, e do Caldeirão a Bornes. E sem saber ao certo para quê! (...) Talvez sem eu ter consciência disso, cultivo-me assim pelos olhos e pelos pés, no alfabetismo íntimo das cousas; expressivas na sua luz, no seu clima e no seu paralelo particular. A terra não é igual em lado nenhum (. . . ).” (Torga, 1999: 303).

Aliás, é de salientar que as viagens de Torga nunca se limitam a um mero deslocamento físico; servem, ante tudo, como estímulos para realizar uma viagem intelectual e emocional, cujos incentivos o autor retrabalha na sua obra artística. De forma semelhante funcionam os relatos e as narrativas de viagens cuja leitura foi uma grande fonte de inspiração para o autor. A partir do século XV, com a chegada de Vasco da Gama às Índias, abre-se uma nova era em Portugal, comummente conhecida como das grandes descobertas. Como observa Arruda Ferreira Gomes (2007: 81), com o propósito de encontrar novas realidades, fortuna ou sujeitos para serem evangelizados, aventureiros, mercadores e missionários embarcam numas longas viagens em busca do Outro Mundo. Ao seu regresso, traziam ou escreviam registros de tudo o que viram e ouviram nas terras desconhecidas dando lugar a uma narrativa especifica onde cabiam descrições, roteiros e diários de bordo relativos às navegação realizadas, criados frequentemente a pedido de reis ou religiosos. Para Torga, no século XX, a viagem e a época dos descobrimentos exerce semelhante fascínio que aquele sentido séculos atrás. No seu livro de ensaios e conferências, Traço de União – Temas portugueses e brasileiros, refere sobre a figura de Mendes Pinto desta maneira: “E Fernão Mendes Pinto pode a seguir dar largas à sua penetração de Proust aventureiro. Esse estranho Mendes Pinto que o mundo leu com incredulidade e deslumbramento, mal o cravo, a canela e a pimenta aguçaram o apetite dos povos, e que desgraçadamente deixou de ler www.clepul.eu

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A sede de conhecer – Uma revisão da herança literária das viagens no Diário de Miguel Torga 5 no dia em que a Índia mudou de mãos. Porque valia a pena continuar. Nos trâmites da sua acidentada Peregrinação, no enredo daquelas andanças, que seria bom completar com relatos despretensiosos e anónimos da História Trágico-Marítima, tinha a humanidade, além da mais extraordinária e penitente auto-acusação que um povo pode fazer às injustiças do seu próprio imperialismo, um dos documentos dolorosos do que custa progredir no espaço e no tempo. Livro duma vida e de muitas vidas, há nele uma autenticidade humana que tem a frescura duma reportagem de hoje e duma introspecção de sempre. A agilidade e o espanto dum espectador inteligente e sensível diante do fenómeno sempre maravilhoso e inquietante de civilizações em choque e de homens em acção.” (1969: 81)

Resulta claro que a figura de Fernão Mendes Pinto é vista neste trecho por Torga com marcado interesse. Mendes Pinto é descrito como um observador ágil, inteligente e sensível e narrador duma obra “acidentada”, lida com “incredulidade”, não obstante perfeitamente humana que testemunha importantes encontros de culturas. Torga considera esta obra como um valioso documento sobre o preço do progresso, fresco à maneira duma reportagem atual e intemporalmente introspetiva. É esta linha introspetiva que o leva a apodar Mendes Pinto do “Proust aventureiro”. Ao mesmo tempo é de ressaltar que Torga, leitor apaixonado, lamenta que atualmente esta literatura encontra poucos leitores. Os descubridores dos séculos XV e XVI são figuras de frequente referência também nas suas entradas e das entradas diarísticas, pois nota-se distintamente que a literatura de viagens medieval está muto valorada por ele. As impressões das viagens realizadas Torga reúne ora no Diário, ora em Portugal, um livro de caráter ensaístico sobre as individuais terras de Portugal, que Fidalgo Mateus chama por “roteiro literário” (2009: 235) pelas terras do país. Ao falar sobre Sagres, Torga em Portugal evoca e enumera os vários heróis das Descobertas, como por exemplo Pedro Nunes, D. João de Castro, Diogo do Couto ou Pero Vaz de Caminha. Vêja–se como exemplo: “Lisboa, 10 de Maio de 1983 – XVII exposição “Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento”. Já não sei quantas horas de pasmo e de maceração. Feitos sem par ilustrados com documentos nossos alienados ao estrangeiro, e ali presentes por empréstimo. As raras excepções eram como gotas de bálsamo que aliviaram momentaneamente uma dor passo a passo avivada. Diante da carta de Pêro Vaz www.lusosofia.net

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Lenka Kroupová de Caminha até me vieram as lágrimas aos olhos. (...) Saber que grande parte daquele acervo de provas de um passado glorioso, que deveria ser o espelho diário de um orgulho legítimo, pertencia a outros, que o guardavam avaramente, como que mais ciosos do que nós da nossa própria identidade.” (Torga, op. cit., p. 1481)

Torga expressa a sua grande admiração para com o património literário dos Descobrimentos mas lamenta vivamente que estas “provas de um passado glorioso”, como ele diz, estejam em possessão de outras nações que se orgulham com elas em vez dos portugueses que pouco sabem apreciá-los, o que entristece e perturba o poeta. Por ocasião de receber o Prémio Figura do Ano, dos correspondentes da imprensa estrangeira, deu uma palestra cuja grande parte foca a natureza andarilha dos portugueses e as alusões aos Descobrimentos. “Estoril, 8 de Junho de 1992 – (. . . ) Conheceis, certamente, a nossa História, e como desde os primórdios, somos uma pátria de andarilhos e aventureiros incansáveis, atentos à natureza, temperamento e costumes do povos alheios visitados. E sabeis também que desse convívio aturado e compreensivo resultou uma literatura singular, ecuménica, de cronistas, memorialista e epistológrafos, alguns geniais como Pero Vaz de Caminha (. . . ), ou Camões (. . . ), ou ainda Fernão Mendes Pinto, que, com uma acuidade nunca superada, desvendou para os olhos incrédulos dos contemporâneos os mistérios do Oriente brumoso. (. . . ) Não podéis, infelizmente, ter entre vós nem a sombra desses grandes correspondentes que vos precederam no tempo. Mas apresentoos modestamente, como seu discípulo aplicado. Corri também, desde a meninice, as sete partidas. Presenciei, alanceado, cenas cruentas de guerra, contemplei, atónito e envergonhado, os destroços de civilizações criminosamente destruídas, ouvi vociferações de energúmenos a anunciar a multidões fanatizadas o aniquilamento de colectividades inteiras, comunguei com naturais doutras raças e culturas no mesmo sonho dum futuro próximo de harmonia humana. E dei, com engenho que pude e algum risco, um testemunho empenhado mas descomprometido dessas andanças. Nenhum acontecimento significativo sucedido ao longo de quase um século me deixou indiferente e sem um comentário alertador. Fui uma espécie de homem da telegrafia no barco acosado pelas ondas da realidade coetânea a lançar SOSs da aflição. (. . . )” (ibid, p. 1743)

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A sede de conhecer – Uma revisão da herança literária das viagens no Diário de Miguel Torga 7 Durante a sua palestra, Torga apresenta os portugueses como um povo de aventureiros por natureza e rememora o grande período da produção literária dos Descobrimentos. Apresenta-se, também, como um discípulo aplicados deles visto que também testemunhou guerras e diferentes conflitos, destroços de civilizações e encontros com outras raças e culturas como os grandes escritores que menciona, Mendes Pinto, Vaz de Caminha e Camões. Também aponta que naquela altura não consegue ver figuras de semelhante destaque como as mencionadas. Por tanto, com motivos da entrada no Mercado Comum, e preocupado com o contraste entre o agora e o célebre passado, Torga exprime esperanças de que, no futuro a grandeza possa repetir-se e chegar a escrever-se uma nova Peregrinação. “Coimbra, 28 de Março de 1985 - (. . . ) E que um dia, depois de sedimentadas as emoções da aventura, nos possamos orgulhar de ter estado, idênticos a nós próprios, à altura do desafio, e sejamos capazes de escrever, com o mesmo gênio de outrora, uma nova Peregrinação, desta vez portas a dentro, igualmente inverosímil e verdadeira. ” (ibid, p. 1540)

Fidalgo Mateus afirma, com relação a Portugal, que Miguel Torga assume a forma de “roteiro literário visto tratar-se de uma viagem do escritor-viajante pela pátria, onde este dá a indicação ao turista / viajante daquilo que deve ver (paisagens, monumentos, pessoas, tradições, usos e costumes) e como deve fazê-lo (método de prospeção), seguindo para isso mormente o itinerário de escritores, artistas e heróis ligados à formação de Portugal e aos Descobrimentos portugueses” (Mateus, 2007: 108). Achamos que uma semelhante rota pode ser identificada em numerosas entradas do Diário como neste caso: “Chaves, 5 de Setembro de 1984 - Subida esforçada ao castelo de Monforte. De vez em quando é conveniente verificar se os marcos de Portugal estão no sítio.” (ibid, p. 1519)

Tanto como Mendes Pinto oferece na sua obra prima um rico desenho etnográfico, antropológico e sociológico dos lugares visitados, às vezes hiperbolizados ou satirizados, as entradas realizadas durante as viagens de Torga ultrapassam as meras descrições do lugares e o a voz do narrador comenta os diferentes ritos religiosos, costumes e tradições dos lugares visitados, por vezes com um notável distanciamento. www.lusosofia.net

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Lenka Kroupová “Senhora da Pena, Mouçós, 13 de Setembro de 1981 – O povo em festa. Meio Trás-os-Montes a dar largas à vitalidade da alma e do corpo numa romaria onde a fé e a força se desmedem, uma de joelhos a suplicar e agradecer, e a outra erecta, a emborcar copos de vinho e sopesar andores monumentais que deslizam seguros por cordas e lembram veleiros a navegar num mar de gente. O que eu daria para, ao menos por alguns momentos, ser capaz de tanta devoção, tanto brio, tanta alegria, tanto desbordamento! Para me não sentir envergonhado de, em vez de participar pletoricamente neste paroxismo gregário de comunhão, delírio e abandono, andar aqui a registá-lo como um intruso no segredo da retina. ” (ibid, p. 1450)

Com efeito, resta ressaltar mais um rasgo da obra torguiana. Numa mistura entre a coragem e o desejo insaciável dos homens por descobrir novas terras e culturas, que Torga também comparte, e a tendência à introspeção e profunda reflexão, situa-se o que Manuel Alegre chama a necessidade de “achar as Índias de dentro”. “Nos diferentes exílios e nas várias errâncias dos portugueses, desde as navegações até a minha geração, houve talvez um traço comum, que foi o da redescoberta de Portugal a partir do contacto com outras realidades. Miguel Torga, que também falou na necessidade de “achar as Índias de dentro”, disse-o melhor que ninguém. “Compreender”, escreveu ele, “não é procurar no que nos é estranho a nossa projecção ou a projecção dos nossos desejos. É explicar o que se nos opõe, valorizar o que até aí não tinha valor dentro de nós. O diverso, o inesperado, o antagónico, é que são a pedra de toque dum acto de entendimento.”” (Alegre, 2002: 35)

Esta brilhante metáfora expressa a vontade atemporal de atingir compreensão a sim mesmo e aos outros, precisamente através de encontros com diferenças e opostos, já que estes podem chegar a constituir umas experiências reveladoras ora sobre nós mesmos, ora desde o ponto de vista mais amplo da nossa condição humana. III. Para concluir, resta dizer que o roteiro diarístico de Miguel Torga difere daqueles escritos na época dos Descobrimentos, principalmente, como observa Mateus Fidalgo, “pelos métodos de escrita, abordagem e apreensão da realidade, mas não deixa, contudo, de receber influências do género claramente visto de Quinhentos, quando “descobre” as regiões de Portugal e além www.clepul.eu

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A sede de conhecer – Uma revisão da herança literária das viagens no Diário de Miguel Torga 9 das fronteiras.” É através da deslocação física, em primeiro lugar e resumir as impressões no papel, pela notável paixão por viajar e a grande sede de conhecer, ora gente, ora modos de viver, e em caso de Torga, de evocar frequentemente o passado glorioso dos heróis aventureiros e literários das Descobertas portuguesas. A literatura dos Descobrimentos é um ponto de referência frequente nas entradas diarísticas de Torga e numa delas, proclama-se ser um “discípulos” deles. Como observa Álvaro Saraiva, os ecos da literatura dos Descobrimentos e mais sobretudo de Mendes Pinto já por si constituem uma aventura apaixonante que certamente ainda tem muito por revelar. Saraiva segue: “Se hoje contemplamos a bibliografia sobre a Peregrinação, podemos encontrar áreas privilegiadas, e áreas claramente deficitárias, como a dos estudos sobre a formação cultural de Fernão Mendes Pinto, a dos estudos estilísticos e a dos estudos intertextuais. Mau grado contribuições como as de Aníbal Pinto de Castro, ainda está por fazer o estudo sistemático dos autores lidos por Fernão Mendes Pinto, ou dos que dele beneficiaram, alguns com nomes tão sonantes como os de Jonathan Swift e Guimarães Rosa”. (2010: 135)

Sem dúvida, entre os recetores da influência do legado de Mendes Pinto pertence, com vimos, também Miguel Torga.

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Bibliografia ALEGRE, Manuel (2002). A arte de marear: Ensaios. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2.a edição. BAPTISTA, Joel Machado (2010). “A gemelaridade entre a reportagem literária de Miguel Sousa Tavares e a literatura de viagens: A clarificação do eu através da revelação do outro como via de aquisição da experiência”. Disertação de Mestrado em Ciências da Comunicação: Estudos dos Media e Jornalismo. Supervisor: professor doutor Jacinto António Rosa Godinho. Universidade Nova de Lisboa. CARVALHO, Paulo (2012). “Geografia e paisagem no universo literário de Miguel Torga. A Cordilheira Central através do Diário (1932-1993)”. In: Revista da Faculdade de Letras – Geografia – Universidade do Porto, III série, Vol. I, pp. 45 -58 GOMES, Maria Alice Arruda Ferreira (2007). “O discurso sensorial da Peregrinação”. In: Revista de Filología Románica. Anejo V. CD Jóvenes investigadores. Los sentidos y sus escrituras, pp. 80-098 MATEUS, Isabel Maria Fidalgo (2009). “Viajar Com Miguel Torga em Portugal”. In: Veredas, Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, Santiago de Compostela, no 11, 2009, pp. 233 – 250 PINTO, Fernão Mendes (1983). Peregrinação (Seleção, prefácio e notas de Rodrigues Lapa). Lisboa: Sá da Costa. PONTES, Roberto (2003). “Mentiras e verdades na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”. In: Revista de Letras, no 25, Vol. 1/2. pp. 36 - 39 SARAIVA, Arnaldo (2010). “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto revisitada : a sua teoria moderna da viagem”. In: Cem Cultura, Espaço & Memória : revista do CITCEM, No 1, pp. 129-142 TORGA, Miguel (1999). Diário Vols. I a VIII (1941 – 1959). Coimbra: Publicações Dom Quixote, 2.a edição integral. TORGA, Miguel (1999). Diário Vols. IX a XVI (1964 – 1993). Coimbra: Publicações Dom Quixote, 2.a edição integral.

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A sede de conhecer – Uma revisão da herança literária das viagens no Diário de Miguel Torga 11 TORGA, Miguel (1955). Traço de União – Temas portugueses e brasileiros. Coimbra: Coimbra Editora.

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0.2 Agustina Bessa-Luís: narrativa de viagens e diálogos da lusofonia

Maria do Carmo Cardoso Mendes Universidade do Minho

Resumo: As narrativas de viagens ocupam um lugar proeminente na obra de Agustina Bessa-Luís. Embaixada a Calígula (1961) e Breviário do Brasil (1989) permitem conhecer a visão pormenorizada de Agustina sobre países e relações interculturais. Este ensaio tem como principais propósitos: 1o ) revisitar, em Breviário do Brasil, momentos que ligaram a História de Portugal e deste país sul-americano desde o ano de 1500; 2o ) sublinhar de que modo Agustina questiona estereótipos associados à representação cultural do Outro; 3o ) assinalar o contributo da produção de Agustina Bessa-Luís no âmbito mais vasto dos Estudos Culturais, onde as narrativas de viagens são textos fundamentais, pois permitem ao mesmo tempo uma interrogação sobre as imagens do estrangeiro e uma análise da identidade nacional. Palavras-chave: Bessa-Luís (Agustina) – viagens – Estudos Culturais

Pressupostos da viagem Escrito em 1989 e publicado em 1991, Breviário do Brasil é um diário de anotações de viagem por vários espaços deste território sul-americano que Agustina percorre não para neles encontrar a mimese de Portugal, mas um espaço outro com os seus mistérios e mitos. A própria escritora confessa que “não

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fiz esta viagem ao Brasil para fotografar tipos e paisagens e divagar sobre a História comum dos dois países” (Bessa-Luís, 1991: 53). A recusa da fotografia enquanto representação fiel da realidade é acompanhada pela busca da identidade “a que cada país tem direito” (Ibidem). Esta observação adquire especial relevância numa interpretação do próprio conceito de viagem: ele supõe, como sugere Alain de Botton em A arte de viajar, uma disponibilidade para aceitar a novidade e um esforço, por vezes pouco compensador, para não procurar no lugar visitado um símile do lugar de origem. Já em Embaixada a Calígula (1961), também uma narrativa de viagens, desta vez por países europeus, Agustina sustentava que a viagem envolve uma relação de afeto desinteressado e espontâneo com lugares e gentes visitados: A viagem é a intimidade do importuno. Tudo o que não preferimos em quaisquer outras circunstâncias de fixação prolongada – uma paisagem, as criaturas, um acontecimento – é-nos oferecido para que o tomemos com esse amor espontâneo que não se pode evitar por que vive da surpresa em que se comprometeu. (. . . ) a viagem, com o seu mistério e a sua intimação à consciência, com as suas alegrias que nascem inexplicavelmente dum golpe de vento na poeira sobre uma ponte, duma sensação de vida isolada e profunda quando atravessamos uma terra estrangeira – ah, essa viagem poucos a podem experimentar!” (Idem, 2009: 11-12).

Encontramos aqui os pressupostos da viagem em Agustina: ela envolve a intimidade, a disponibilidade emocional para a surpresa, a descoberta daquilo que não faz parte de um típico roteiro turístico. Embaixada a Calígula e Breviário do Brasil inscrevem-se numa longa tradição de literatura de viagens que, em Portugal, remonta aos Descobrimentos.1 A partir daí, a narrativa de viagens é não só a construção de relatos sobre outros lugares e outros povos, mas também a criação da própria imagem do escritor que se torna simultaneamente cronista, personagem e inventor de um universo imaginário. Em Embaixada a Calígula, Agustina 1

Cf. Álvaro Manuel Machado (1996: 566-567). Importantes narrativas de viagens na literatura portuguesa das Descobertas são as crónicas de Gomes Eanes de Zurara, a Carta de Achamento do Brasil de Pêro Vaz de Caminha, e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.

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Agustina Bessa-Luís: narrativa de viagens e diálogos da lusofonia

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Privilegia a descoberta do Outro e da sua cultura através da exaltação do espírito do lugar, bem como da reflexão sobre aquilo que, desde o século XIX, se costuma chamar ‘psicologia dos povos’, aqui alicerçada nas paixões individuais e coletivas, nos sobressaltos da história europeia desde os seus fundamentos greco-latinos. Logo no princípio do livro, Agustina nota que a verdadeira viagem não é a turística, mas sim a iniciática (Machado, 2011: 90).

Se em Embaixada a Calígula Agustina faz uma viagem que congrega representação mítica da natureza, contacto com lugares, linguagens, povos e modos de vida, e revisita estética – da literatura, da pintura, da música, da filosofia e da arquitetura europeias –, em Breviário do Brasil propõe-se, como o próprio título sugere, reunir em livro “os ofícios que os sacerdotes católicos rezam diariamente”.2 O breviário é, na definição de Catherine Dumas (2002: 35), “uma compilação abreviada de celebrações ritualizadas: o ofício divino da religião católica, o protocolo das sessões dos tribunais ou as celebrações de amor, entre outras”. Quer isto dizer que a viagem cultural promovida pelo Centro Nacional de Cultura, na qual Agustina, com outros intelectuais, participou em 1989, se inscreve “no tempo cíclico que toca a eternidade, ao contrário do diário que, mesmo que retomado dia a dia, tem um começo e um fim (. . . ). Para Agustina Bessa-Luís, o livro prolonga a utilidade muito além do fim da viagem, através da liturgia que o fundamenta” (Ibidem). Esta vertente religiosa do breviário é repetidamente expressa por Agustina ao afirmar: Escrevo este livro como se pusesse o joelho em terra no confessionário do Brasil, e contasse peripécias que são amores bem compreendidos. Há uma ternura imensa em correr o Brasil em simples reza, onde não entram memórias, só uma fé tranquila (. . . ); uma viagem como esta é um recreio baseado em exercícios espirituais, e não um percurso à recomendação da História (Idem, 36 e 38).

Não creio que as notas de viagem de Breviário do Brasil possam ser interpretadas como uma peregrinação no sentido estrito do termo, envolvendo uma intencionalidade devota; mas a peregrinação comporta uma outra significação e esta está presente no texto de Agustina: trata-se já não de veicular 2

Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

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a fé de um peregrino, mas de desvendar lugares, usos, costumes, lendas e mitos. Nesse ato de desocultação dos mistérios de um lugar “outro”, são questionados lugares-comuns que o espaço estrangeiro muitas vezes suscita. Pretendo por isso concentrar a minha reflexão em dois aspetos desta viagem ao Brasil: o questionamento de estereótipos associados à representação do Outro e a imagem humanizada, intimista e emotiva do Brasil (imagem que seria impensável num simples guia turístico ou no comportamento de colecionador de fotografias de um turista).

Nós e os Outros A viagem é necessariamente um confronto com o Outro, com a noção da alteridade. Assim a define Carl Thompson (2011: 9): All journeys are (. . . ) a confrontation with, or more optimistically a negotiation of, what is sometimes termed alterity; (. . . ) all travel requires us to negotiate a complex and sometimes unsetting interplay between alterity and identity, difference and similarity.3

É esta “negociação” entre alteridade e identidade, diferença e similaridade que pode encontrar-se em Breviário do Brasil e que, desde as primeiras páginas do texto, demonstra que Agustina não se mostra interessada em construir um relato confinado ao que seria a visão de um mero turista: Para o turista, o que conta é o folclore, muitas vezes degradado e reduzido à sensibilidade cosmopolita; os vestígios nobres da presença colonial vão-se apagando, e alguns, em breve tempo, serão irrecuperável ruína. O que vi do Brasil todos o podem ver em passeio guiado, com um pároco de permeio e algumas senhoras abraçadas às cartilhas turísticas. Mas o que eu vi além disso dá para uma síntese tão resumida, que em 3

De facto, as narrativas de viagens revelam “fenómenos de alteridade na formação complexa e frequentemente contraditória da imagem do Outro, o estrangeiro, terreno fértil de estudos da chamada imagologia. Textos que revelam, no próprio confronto com o espaço estrangeiro (. . . ), um princípio fundador: não há alteridade sem uma qualquer forma de identidade que propicie, simultaneamente, a distância e a aproximação. Ou antes: a aproximação baseada na própria distância” (Machado, 2011: 83).

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dois traços cinjo o Brasil e me sobra compasso e tira-linhas. Foi a bondade de povo prudente o que me impressionou. Um olhar leve e quase compungido, de nos ver estranhos em terra tão imensa (Bessa-Luís, 2012: 15 e 44).

Ver “além disso” significa ao longo desta viagem uma representação essencialmente humanizada do Brasil. A viagem de Agustina tem um carácter iniciático enquanto (re) descoberta de si mesma. É uma viagem orientada pela curiosidade e por uma certa inocência, pela capacidade de experimentar emoções e pela atenção à singularidade. A citação da obra do escritor austríaco Stefan Zweig Brasil, país do futuro, na primeira afirmação do Breviário, dá conta desses valores que norteiam a viagem: “Quando se põe o pé no Rio, acode-nos a palavra de Stefan Zweig, quando o visitou em 1936: ‘Vou poder dizer tudo sobre o Rio, sem esquecer demasiado?”’ (Idem, 11). Curiosidade, emoção e atenção à singularidade traduzem-se, entre outras, nas seguintes observações: O brasileiro é desvelado com os filhos, tem uma paciência deliciosa para os atender (Idem, 17). Há uma ternura imensa em correr o Brasil em simples reza (Idem, 36). Foi a bondade do povo prudente e triste o que me impressionou. Um olhar leve e quase compungido, de nos ver estranhos em terra tão imensa (Idem, 44). O Brasil não se deixa ver, nem ouvir, senão por assombração (Idem, 59). Eu propus-me escrever um livro carinhoso e breve que traçasse o desenho dos meus passos aqui no Brasil. Mas este país é tão grandioso e cheio de sublimes encostas para vencer (umas botânicas, outras religiosas, outras históricas), que não me entendo com poucas palavras. (. . . ) Para onde quer que me volte, tenho que crer e admirar. Gente boa, que até Lampião tinha sentimento no coração errante; gente de muitas almas e conversas (Idem, 61). Eu gostaria de ter ido ao seringal Paraíso onde trabalhou Ferreira de Castro; e ver as madeiras sangradas e as sebes de orquídeas de que ele fala (Idem, 65). Mas o mais importante para mim do que vi, foi esse cálido rosto da bondade, feliz, se o surpreendemos, triste se o ignoramos (Idem, 151).

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Nestas anotações de viagens, a imagem do Outro corresponde à definição proposta por Daniel-Henri Pageaux (2004: 136): A imagem é a representação de uma realidade cultural através da qual o indivíduo ou o grupo que a elaborou (ou que a partilha, ou que a propaga) revelam e traduzem o espaço cultural e ideológico no qual se situam. O imaginário social a que nos referimos está marcado – vemo-lo – por uma profunda bipolaridade: identidade versus alteridade.

A recusa de estereótipos é perentória e merece ainda, antes da sua verificação no texto agustiniano, uma breve reflexão apoiada de novo nas considerações de Daniel-Henri Pageaux (2004: 140-1). Considera este comparatista que O estudo do estereótipo, encarado como uma forma elementar, caricatural mesmo da imagem, é obscurecido pela questão da falsidade e dos seus efeitos perniciosos no plano cultural. (. . . ) Se admitirmos que toda a cultura pode ser considerada, a dado tempo, como um espaço de invenção, de produção e de transmissão de signos (. . . ), o estereótipo apresenta-se não como um ‘signo’ (como uma possível representação geradora de significações), mas como um ‘sinal’ que remete automaticamente para uma única interpretação possível. O estereótipo é o índice de uma comunicação unívoca, de uma cultura em vias de bloqueio (. . . ). O estereótipo é o figurável monomorfo e monossémico (. . . ). O estereótipo coloca, de forma implícita, uma constante hierárquica, uma verdadeira dicotomia do mundo e das culturas.

Agustina procura em Breviário do Brasil afastar-se de estereótipos, o que equivale a dizer que não sustenta uma hierarquia de culturas nem aceita uma imagem unívoca do Brasil: “Devo dizer que não me interessa nada o que se diz em geral do Brasil e dos brasileiros. São coisas sem nenhuma relevância; sem nenhuma importância no que se pensa que são coisas muito bem vistas” (Bessa-Luís, 2012: 26). Alguns lugares-comuns associados ao Brasil são tomados como índices de ignorância sobre o país ou, nos termos de Pageaux, de uma visão monossémica que associa o país à alegria e à festa permanentes: “Nesta viagem, (. . . ) recorta-se um continente austero, que pouca gente vê. Só lhe percebem o samba e o violão; mas, por dentro, o Brasil é imensamente severo. Como a floresta e o rumor dos rios que nela abrem caminho” (Idem, 165). www.clepul.eu

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Poderá assim concluir-se que Agustina encara a viagem em sentido idêntico ao de Michel Onfray (2009: 65-66): o pensador francês alerta para a necessidade de o viajante possuir “um olho vivo”, “um olhar mordaz” e uma “percepção de predador”; “o viajante necessita não tanto de uma capacidade teórica mas antes de uma aptidão para a visão”, e recusa as imagens empobrecedoras do Outro, isto é, os clichés que o viajante muitas vezes associa ao destino e aos povos visitados: É sempre aprazível submeter a multiplicidade inalcançável à unidade facilmente compreensível: Africanos dotados para o ritmo, Chineses fanáticos pelo comércio, Asiáticos em geral com tendência para a dissimulação, Japoneses extremamente educados, Alemães obcecados pela ordem, Suíços famosos pela sua limpeza, Franceses arrogantes, Ingleses egocêntricos, Espanhóis orgulhosos e fascinados pela morte, Italianos fúteis, Turcos desconfiados, Canadianos hospitaleiros, Russos com inclinação para a fatalidade, Brasileiros hedonistas, Argentinos corroídos pelo ressentimento e pela melancolia e, evidentemente, Magrebinos que excelam na hipocrisia e na delinquência (Idem, 57-58).

A recusa de estereótipos tem como consequência a resolução do problema de “hierarquia de culturas por eles provocado.4

Uma pátria é um sentimento e não um punhado de razões: imagens do Brasil Não sendo esta a primeira viagem de Agustina ao Brasil, ela é pontuada por referências à sua história pessoal e à da sua família neste país, concretamente à figura do pai, que no Rio de Janeiro viveu durante mais de vinte anos.5 Mas 4

“O estereótipo distingue o Eu do Outro e constitui uma forma massificada de comunicação, uma expressão cultural simplista, fomentando mitos culturais, frequentemente cristalizados em grandes cidades europeias” (Machado, 2003: 112). 5 Em “Portugal-Brasil, a memória pede meia sombra”, Agustina recupera a evocação do seu precoce conhecimento do Brasil e do papel deste país na vida da sua família: “Eu comecei muito cedo a conhecer o Brasil. Meu pai foi para o Rio aos doze anos, recomendado por um tio que tinha na Baía e para quem a fortuna foi amável. É muito diferente conhecer um país como itinerário, com a consulta académica dos seus livros, e conhecê-lo de maneira quotidiana, natural e familiar. Eu conheci o Brasil assim, antes de cruzar as suas portas com o passaporte na mão” (Bessa-Luís, 2000: 251-2).

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na própria biografia de Agustina o Brasil é uma presença precoce, em especial no que se reporta a leituras: aos doze anos lê a poesia de José de Alencar; na infância conheceu a revista Tico-Tico e o romance O Guarani: “li-o um pouco surpreendida. Eu não passara ainda de Dumas e de Hugo; fiquei a pensar naquelas terras onde bramiam os rios e aconteciam inundações pavorosas; e os coqueiros do rei eram tão altos como catedrais” (Bessa-Luís, 2012: 23).6 Às referências biográficas junta-se um conjunto de alusões a obras e a autores de literatura brasileira, tomando assim a viagem uma natureza cultural que, por vezes, aproxima escritores portugueses e escritores brasileiros. João Cabral de Mello Neto, Manuel Bandeira, Machado de Assis, Carlos Drummond e Andrade, José Montello, Gonçalves Dias, Gilberto Freyre e Clarice Lispector são alguns dos escritores que marcam esta viagem, ao lado dos Portugueses Pero Vaz de Caminha, padre António Vieira e Ferreira de Castro. Parece haver um cuidado de Agustina na seleção de escritores portugueses diretamente vinculados ao Brasil (é o caso de Ferreira de Castro) ou na criação de nexos de proximidade entre escritores brasileiros e portugueses. É assim que, no Recife, recorda o poeta Manuel Bandeira e o “tom pessoano nos versos que parecem vento empurrando folhas” (Idem, 23); “Quando fui ao Recife pela primeira vez, fui à feira de que fala Vitorino Nemésio e, ao pensar nisso, ocorre-me Clarice Lispector”’ (Idem, 65). Este aspeto representa um primeiro vínculo entre os dois países. Mas ao longo do texto Agustina encontra outros motivos de aproximação: a descoberta do Outro torna-se então uma redescoberta da própria identidade. Espaços, realidades e comportamentos são com frequência vistos pela sua proximidade. Comparar significa superar imagens empobrecedoras e estereotipadas, reduzidas a lugares-comuns: Quanto mais as regiões se distinguem em costumes e tradições, mais a curiosidade dos povos é por eles acentuada e a criação é libertada da tirania do modelo único. (. . . ) o sentido da comparação, essencial como pilar da civilização, somos nós, os portugueses, quem melhor o exerce (Idem, 21). 6

Está assim presente “a função autobiográfica das notas de viagem, quando, no Rio de Janeiro, Agustina evoca o pai, recriando-o como uma personagem de romance, através de pequenos pormenores extremamente significativos, desvendados pela memória” (Machado, 2013: 160).

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Esta observação de Agustina traduz uma visão nietzschiana da arte de viajar, em termos muito similares àqueles que são propostos por Michel Onfray (2009: 60) para o que designa como “arte de viajar”: ela é inspirada no perspectivismo nietzschiano: Não há verdades absolutas, mas verdades relativas, não há padrões de medidas ideológicas, metafísicas ou ontológicas para avaliar as outras civilizações, não há instrumentos comparativos que imponham a leitura de um lugar a partir das referências de outro, mas o desejo de deixar-se impregnar pelo líquido local, à semelhança dos vasos comunicantes. Quando reflete sobre a natureza dos dois povos, afirma Agustina: “Os portugueses, como os brasileiros, não gostam de coisas difíceis; chegam à perfeição à custa de apurar o que é fácil. É uma maneira de viver bastante honesta, porque no sentido da glória há sempre algo de vão e predador” (Bessa-Luís, 2012: 12).

As imagens de vários lugares percorridos vinculam-se, na memória, a espaços portugueses, num exercício dominado por termos do campo semântico da comparação: Se entramos em Curitiba, alegra-nos o pinheiro de altas copas, e dele dizemos que nos lembra o pinheiro litoral ou da montanha, pinheiro sempre, emblema da paisagem portuguesa. Lembra, e é diferente. As feiras (. . . ) lembram coisas nossas (Idem, 45-6). Ouro Preto (. . . ) tudo lembra o Douro, de Portugal (Idem, 111). São Paulo é uma cidade que tem ainda bairros residenciais arborizados com aspecto sonolento, como nas praias da Granja e Valadares (Idem, 136). Vista do lado oposto, Cachoeira tem semelhanças com a paisagem do Douro (Idem, 158-9).

Mas a comparação não significa uma concessão à mimese ou uma mera procura dos vestígios da presença portuguesa no Brasil. Sendo Breviário do Brasil “uma digressão em torno da psicologia dos povos” (Idem, 86), interessam a Agustina muito mais traços humanos que vinculam portugueses e brasileiros – sobretudo quando esses traços são identificados em figuras da cultura – do que fotografias de “tipos e paisagens”, “por muito belos que sejam www.lusosofia.net

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os monumentos por nós deixados e o nosso programa cultural que se vai desvanecendo” (Idem, 87). A comparação também não significa uma menor adesão ao Brasil, exaltado nos seus lugares, nos seus ritmos diferenciados de região para região, no espírito dos seus lugares, nos hábitos alimentares, nas suas tradições e costumes e, sobretudo, no seu património cultural (literário, musical, arquitetónico). Bastaria para isso considerar o relevo concedido a personagens e episódios – factuais e lendários – da História do Brasil: o escultor e entalhador barroco Aleijadinho, o ativista anti-colonial Tiradentes, a personagem lendária do escravo Chico Rei, a “rainha do Maranhão” Donana Jansen, a história de amor de Lampião e Maria Bonita, entre outros. Breviário do Brasil é uma visão descentrada e aberta de um viajante, liberta de um espírito nacionalista, eurocentrado e limitado.

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Referências bibliográficas BESSA-LUÍS, Agustina (2000). “Portugal-Brasil, a memória pede meia sombra”. In: Contemplação carinhosa da angústia. Lisboa: Guimarães Editores, pp. 251-255. BESSA-LUÍS, Agustina (2009). Embaixada a Calígula, Lisboa: Guimarães Editores. BESSA-LUÍS, Agustina (2012). Breviário do Brasil, Lisboa: Guimarães Editores. DUMAS, Catherine (2002). Estética e Personagens nos Romances de Agustina Bessa-Luís. Porto: Campo das Letras. MACHADO, Álvaro Manuel (1996). Dicionário de Literatura Portuguesa. Lisboa: Presença. MACHADO, Álvaro Manuel (2003). Do Ocidente ao Oriente. Mitos, imagens, modelos. Lisboa: Editorial Presença. MACHADO, Álvaro Manuel (2011). “Estudos Culturais e Literatura Comparada: o primado da literatura”. In Diacrítica 25/3, pp. 81-102. MACHADO, Álvaro Manuel (2013). “As viagens de Agustina: espírito do lugar, memória e ficção”. In Colóquio Letras 184, pp. 159-164. ONFRAY, Michel (2009). Teoria da Viagem. Uma Poética da Geografia. Lisboa: Quetzal. PAGEAUX, Daniel-Henri (2004). “Da imagética cultural ao imaginário”. In BRUNEL, Pierre e CHEVREL, Yves (org.). Compêndio de Literatura Comparada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 133-166. THOMPSON, Carl (2011). Travel Writing. London and New York: Routledge.

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0.3 Alexandra David-Néel: l’écriture d’un voyage personnel Ana Fernandes CLEPUL/Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Résumé: D’écrivains-voyageurs au féminin, on n’entend pas beaucoup parler, cependant le XIXème siècle a été riche en récits de voyages sous la plume de femmes, appartenant à différentes nationalités et ayant traversant différentes contrées. Nous nous intéresserons à Alexandra David-Néel, voyageuse hors du commun, prolifique en récits de voyages dont le Voyage d’une Parisienne à Lhassa sera le centre de notre étude. Nous tenterons de cerner comment Alexandra David-Néel a toutes les caractéristiques d’une voyageuse audacieuse et sensible qui favorise l’expérience du voyage à celle de l’écriture, bien que celle-ci ait une grande fonction informative et descriptive, qui reste essentielle à la définition du rapport de voyage. L’écriture du voyage chez cette auteure conserve toute la spécificité de l’écriture du “voyageur-écrivain”, un genre à la limite entre l’autobiographie et le récit anthropologique. Elle sait conserver un style littéraire simple, souvent narratif, qui lui permet de transmettre des informations précises. Elle s’intéresse à écrire ou décrire le monde avec justesse mais elle raconte surtout l’histoire d’un voyage personnel dans le but de sensibiliser le lecteur au monde extérieur et lui enseigner des aspects insolites de l’Ailleurs. Mots-clé : Littérature de voyage ; autobiographie ; anthropologie ; écriture ; Tibet.

D’écrivains-voyageurs au féminin on n’entend pas beaucoup parler, cependant le XIXème siècle a été riche en récits de voyages sous la plume de

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femmes, appartenant à différentes nationalités et ayant traversé différentes contrées. C’est là un élément révélateur de l’évolution de la pratique du voyage au XIXème siècle que cet engouement des femmes pour les voyages proches et lointains. Ces textes portent la marque du féminin. La résonance en est indéniable dans l’écrit du voyage. Les expériences des voyageuses donnent lieu à des itinéraires textuels pour le moins tortueux. L’incursion des femmes dans le genre du récit de voyage produit des textes dominés par une rhétorique du féminin qui leur attribue un caractère distinctif au niveau de la forme et de la substance. Nous nous intéresserons à Alexandra David-Néel, voyageuse hors du commun, prolifique en récits de voyages dont le Voyage d’une parisienne à Lhassa sera le centre de notre étude. Toutefois, avant de l’analyser, il faut passer en revue ce que fut le récit de voyage au XIXème siècle pour mieux comprendre les écrits d’Alexandra David-Néel. L’écriture du voyage se caractérise à partir du XIXème siècle, d’une part par le développement du récit autobiographique et la recherche d’une certaine authenticité dans les récits des moments du voyage. La fin du siècle manifeste un intérêt plus développé par l’anthropologie moderne dans la mesure où certains auteurs, et notamment Alexandra David-Néel, entrevoient un lien étroit entre le déplacement géographique et son récit et l’étude comparative de l’être humain. L’écriture du voyage correspond à un nouveau rapport de l’homme et du voyageur au monde qui l’entoure. Deux types de textes coexistaient à cette époque, le rapport et le récit de voyage, qui se distinguent au niveau de la subjectivité de l’auteur. Tandis que le récit est “l’action de raconter une chose”, le rapport correspond à “l’action de rapporter, de réciter, de témoigner en un lieu. C’est le compte que l’on rend de quelque chose dont on est chargé” (LITTRÉ, 1872-1877). Au récit de voyage qui permet que le narrateur s’y implique en reformulant et en interprétant ce qu’il a pu voir semble s’opposer le rapport de voyage plus objectif et impersonnel dans la façon de rendre les faits. Alexandra David-Néel semble se rapprocher du rapport dans lequel l’expérience du voyage reste l’intérêt principal au centre du projet initial et dont la finalité du travail d’exploration et d’écriture semble être la découverte elle-même et tenant un intérêt surtout anthropologique. Il s’agit d’un texte

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moins esthétique et littéraire du point de vue de la forme, mais plus sociologique, descriptif et personnel au niveau du contenu. Nous verrons par la suite qu’Alexandra David-Néel s’intéresse surtout à la dimension anthropologique du voyage.

1. Alexandra David-Néel : la fusion entre voyageuse et écrivain Le vrai propos du voyage chez Alexandra David-Néel est de mettre en valeur une attitude plus sensible et humaine dans le voyage vers l’Autre et l’Ailleurs, concepts fondamentaux qui font référence à la notion d’altérité et d’étranger. Elle cherche à mieux le connaître, voilà pourquoi le voyageur a besoin d’apprendre la langue, les valeurs, les traditions, la culture et la situation politique, économique et sociale du Tibet. Alexandra David-Néel est née le 24 octobre 1868 à Saint-Mandé et morte le 8 septembre 1969 à Digne. De nationalités française et belge, elle est orientaliste, tibétologue, chanteuse d’opéra, journaliste, écrivaine et exploratrice. En épousant Philippe Néel, ingénieur en chef des Chemins de fer tunisiens, elle abandonne sa carrière de chanteuse pour se consacrer entièrement à ses voyages, d’abord en Inde, ensuite en Chine et au Tibet. Un voyage en Asie qui n’était en principe que de dix-huit mois durera en réalité quatorze ans et fera de cette femme la première femme occidentale à pénétrer en 1924, dans la cité interdite de Lhassa, au Tibet, déguisée en pèlerine mendiante au côté de son fils adoptif Yongden. Son rapport de voyage intitulé Voyage d’une parisienne à Lhassa retrace avec précision les nombreux kilomètres de marche à travers le territoire, les nuits passées dehors dans le froid et le danger incessant, et enfin le besoin à tout moment de se fondre dans la culture locale de peur d’être reconnue : Quand ils sont assez chanceux pour être invités à entrer dans une maison, les ardjopas authentiques ne refusent jamais cette bonne aubaine. L’insistance du bonhomme m’ennuyait, mais je craignais que ma conduite ne semblât par trop étrange si je persistais dans mon refus. Je fis donc un signe à Yongden qui se rendit aux bonnes raisons qu’on lui donnait et nous passâmes la porte en proférant à voix très haute, suivant la coutume des pauvres, toutes sortes de remerciements et de

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Ana Fernandes souhaits pour la prospérité des hôtes. (DAVID-NÉEL, 1927: 106)1

Alexandra David-Néel fait ainsi l’expérience de la vraie vie selon les habitants dont elle adopte le comportement. Elle montre sa détermination dans les situations les plus incommodes et sa volonté d’accepter de vivre comme une mendiante dans ce pays : Ce fut la première fois que je logeais chez des indigènes dans mon déguisement de pauvresse. [. . . ] J’y allais maintenant expérimenter par moi-même nombre de choses que j’avais jusque-là observées à distance. Je m’assoirais à même le plancher raboteux de la cuisine sur lequel la soupe graisseuse, le thé beurré et les crachats d’une nombreuse famille étaient libéralement répandus chaque jour. D’excellentes femmes, remplies de bonnes intentions, me tendraient les déchets d’un morceau de viande coupé sur un plan de leur robe ayant, depuis des années servi de torchon de cuisine et de mouchoir de poche. Il me faudrait manger à la manière des pauvres hères, trempant mes doigts non lavés dans la soupe et dans le thé, pour y mélanger la tsampa et me plier enfin à nombre de choses dont la seule pensée me soulevait le cœur. (DAVID-NÉEL, 1927: 106-107)

Dans ce passage, nous pouvons constater que, même si Alexandra DavidNéel tente par le voyage de côtoyer l’Autre et de vivre au sein d’une communauté bien différente de la sienne, elle reste toujours consciente de son étrangeté, de sa différence. Le voyage, aussi éprouvant soit-il, est avant tout pour cette femme une chance unique de vivre dans un pays et d’apprendre à en connaître la culture et les traditions. Notre auteure fait l’expérience du vrai voyage lorsqu’elle accepte d’abandonner l’aspect divertissant et exotique du voyage pour découvrir divers aspects socioculturels, économiques et politiques du pays. Alexandra David-Néel se révèle une voyageuse hors du commun non seulement par son courage mais aussi par la force de son caractère et l’attitude qu’elle prend vis-à-vis d’une expédition si périlleuse. Pourtant elle est si fascinée par l’Autre et l’Ailleurs interdit qu’elle s’aventure à pied, par temps glacial et affronte tous les dangers et même la possibilité de mourir. Quoi qu’il en soit, elle ne réfléchit pas longuement à ces problèmes : le désir de venger son propre insuccès et d’attirer par son exploit l’attention du monde sur 1

Toutes les citations seront à partir de cette édition.

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le phénomène des territoires interdits l’entraîne dans son projet démesuré. Les échecs pour entrer à Lhassa et sa curiosité d’orientaliste motivent son voyage : J’ai pour principe de ne jamais accepter une défaite, de quelque nature qu’elle puisse être et qui que ce soit qui me l’inflige. C’est même, alors, que l’idée d’aller à Lhassa, restée un peu vague jusqu’à ce moment, devint, chez moi, une décision fermement arrêtée. Aucune revanche ne pouvait surpasser celle-là ; je la voulais et à n’importe quel prix je l’aurais. (DAVID-NÉEL, 1927: 14)

Ayant conscience qu’elle doit être prudente dans un territoire fermé pour des raisons politiques, notre voyageuse prend des précautions face aux tibétains qui risquent de la dénoncer : “J’avais décidé de voyager nuitamment et de demeurer cachée pendant le jour, jusqu’à ce que j’aie pénétré assez avant dans le pays pour que nul ne puisse discerner de façons certaines l’endroit d’où je venais et les chemins que j’avais suivis” (DAVID-NÉEL, 1927: 20). Sous la forme de courtes anecdotes, elle dévoile ce qu’elle a appris et donne à voir au lecteur divers aspects de la vie tibétaine. Elle ne prend pas uniquement connaissance de la géographie du pays, mais elle s’intéresse également à sa culture et aux traditions culturelles et religieuses qu’elle observe. Par la présentation des différentes caractéristiques des habitants et du pays, elle manifeste une véritable compréhension des modes de pensée des habitants et du pays lui-même : Nous devions tâcher d’avoir, à ce moment, atteint la route du pèlerinage. Une fois là [. . . ] nous pourrions prétendre [. . . ] nous perdre dans la foule banale des dévots. Ces derniers, venus de pays parfois lointains et appartenant à des tribus différentes, présentent une grande diversité de types ; leurs dialectes, tout comme les coiffures et les costumes des pèlerins, sont extrêmement variés [. . . ] On nomme ardjobas ces pèlerins – des moines pour la plupart – voyageant à pied, chargés de leurs bagages, qui, par milliers, errent à travers le Tibet, visitant les lieux que la tradition a consacrés comme vénérables à un titre quelconque. (DAVID-NÉEL, 1927: 23-24 et 38)

En pénétrant dans le pays, Alexandra David-Néel rencontre de plus en plus d’habitants toujours en observant la pratique de certaines coutumes du pays comme celle de se déplacer en groupe : www.lusosofia.net

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Ana Fernandes Le vieux paysan avait quitté son village avec une bande d’amis pour faire, en pèlerinage, le tour du Kha-Karpo. Une maladie qui ne s’expliquait pas l’avait privé de ses forces, il ne pouvait plus se traîner. Ses compagnons avaient ralenti le pas pendant quelques jours, ils s’étaient même arrêtés une journée entière. Et puis ils avaient continué leur route. Telle est la coutume thibétaine même au désert, où, s’il ne se rétablit pas promptement, le retardataire, ayant épuisé ses provisions, meurt de faim. . . (DAVID-NÉEL, 1927: 68)

Alexandra David-Néel arrive à déchiffrer les paroles de cet Autre tibétain, ce qui lui permet de communiquer avec lui et d’interpréter les paroles des gens du pays pour ce qui concerne les visiteurs comme elle : Ses mains ressemblent à celles d’une philing. Avait-elle jamais vu des gens de race blanche ? C’était douteux [. . . ] Mais les Thibétains ont des idées fortement arrêtées en ce qui concerne le canon des traits et des particularités des Occidentaux. Ceux-ci doivent être de stature, avoir des cheveux blonds, la peau claire, les joues roses et les “yeux bleus”, dénomination qui s’applique distinctement à toutes les nuances d’iris qui ne sont point noir ou brun foncé. (DAVID-NÉEL, 1927: 84)

Cette expérience proche du peuple tibétain rend possible à Alexandra DavidNéel de partager l’intimité de ce peuple, de mieux connaître sa religion et ses croyances : Yongden commence à lire à voix très haute, après m’avoir ordonné d’un ton impératif : “Mère, récite “Dôlma” ! Obéissant, j’entonne une psalmodie qui n’a aucun rapport avec le texte récité par mon fils adoptif et dont le but est, simplement, de m’occuper afin d’empêcher que les femmes ne m’ennuient et ne m’embarrassent avec leurs questions. [. . . ] Au tapage que nous faisons, des voisins apparaissent qui hochent la tête d’un air pénétré et approbateur. Je dois répéter au moins vingt fois Dôlma et peut-être cinq cent fois la formule du Kyapdo. Le sens des phrases que je récite arrête mes pensées. . . “Afin d’atteindre le terme de la crainte et de la douleur, tournez vos pas vers le savoir...”, dit le Kyapdo. (DAVID-NÉEL, 1927: 151-152)

À plusieurs reprises, Alexandra David-Néel utilise dans son rapport des termes tibétains, ce qui suggère qu’elle comprend la langue du pays. De plus, plusieurs comportements décrits dans le texte montrent qu’elle adopte les www.clepul.eu

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attitudes de ce peuple (sa manière de dormir, de manger, de se déplacer, de parler), tout en restant étrangère. Elle sait incarner un personnage, forcée en partie par les circonstances du voyage et pour fuir les obstacles qu’elle doit affronter : Je m’amuse in petto de la mentalité de mendiante que j’ai acquise depuis que je joue le rôle de pauvresse errante. Mais tout n’est pas plaisanterie dans notre mendicité, les aumônes qui remplissent nos sacs nous dispensent d’acheter de la nourriture, de montrer que nous possédons de l’argent et elles sauvegardent grandement notre incognito. (DAVIDNÉEL, 1927: 154)

Alexandra David-Néel balance entre deux extrêmes : la femme qu’elle est et le déguisement qu’elle porte, même si elle intériorise de plus en plus son personnage. Notre auteure évolue au fur et à mesure de son voyage et du contact avec la différence vers une adoption progressive des modes de vie tibétains. Elle se révèle une véritable “voyageuse-écrivain” de par le travail de recherche qu’elle a élaboré grâce au récit d’une succession d’anecdotes développées chronologiquement. Soucieuse d’authenticité, elle retranscrit des faits qu’ils soient positifs ou négatifs comme preuve d’une véritable expérience tibétaine. À travers une méthode descriptive objective elle offre au lecteur occidental un tableau complet du Tibet au lieu de donner des impressions que les Occidentaux s’imaginent de ce continent. Elle sait conjuguer trois facettes du voyage : son expérience personnelle, la rencontre avec l’Autre et la place qu’elle lui donne dans son texte. Alexandra David-Néel reste tout au long de son rapport une voyageuse audacieuse mais sensible qui privilégie l’expérience du voyage à celle de l’écriture même si celle-ci maintient son importante fonction informative et descriptive, essentielle dans tout rapport de voyage. Nous verrons par la suite les caractéristiques de son écriture qui est à la base de la définition du rapport de voyage.

2. L’écriture du voyage L’écriture du voyage a une spécificité, celle d’un genre entre l’autobiographie et le récit anthropologique. Le caractère autobiographique du Voyage d’une parisienne à Lhassa www.lusosofia.net

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se perçoit dans le récit à la première personne et quand Alexandra DavidNéel assume son identité d’auteure en signant son rapport de son vrai nom. S’adressant souvent à ses lecteurs, elle admet que la voix narratologique – qui renvoie à un narrateur homodiégétique, témoin et participant - correspond à celle de l’auteur : “Je trouvai pourtant un moyen de m’arranger. M’arrêtant un instant, je simulai le geste, familier à tous les Thibétains, de quelqu’un – je prie mes lecteurs de m’excuser – que des poux tourmentent et qui cherche à découvrir ces animaux désagréables dans sa robe.” (DAVID-NÉEL, 1927: 203) La voix de l’auteur et celle du narrateur arrivent à s’entremêler lorsqu’Alexandra rappelle certains détails biographiques qui ne font pas partie de ce voyage à Lhassa. Elle s’affirme à la fois comme l’auteur qui raconte sa propre histoire, le personnage principal du rapport et le narrateur. La narration autodiégétique est donc instaurée par l’emploi de la première personne et les références à son fils adoptif, élément biographique indubitable. Dans l’introduction de son texte, Alexandra David-Néel explique qu’il s’agit de son propre voyage et qu’elle va raconter au lecteur le résumé des aventures qu’elle a expérimentées : Huit mois de pérégrinations accomplies dans des conditions inaccoutumées, à travers des régions en grande partie inexplorées ne peuvent se raconter en deux ou tris cents pages. Un véritable journal de voyage exigerait plusieurs gros volumes. L’on ne trouvera donc, ici, qu’un résumé des épisodes qui m’ont paru les plus propres à intéresser les lecteurs et à leur donner une idée des régions auxquelles je me suis mêlée de façon intime en tant que chemineau thibétain. Cette randonnée vers Lhassa sous le déguisement d’une pèlerine mendiante n’est, du reste, elle-même, qu’un épisode de longs voyages qui m’ont retenue en Orient pendant quatorze années successives. (DAVIDNÉEL, 1927: 5)

Voyageant anonymement pour éviter les périls et interpellations, Alexandra David-Néel élimine son nom propre du rapport et encore son fils adoptif Yongden ne l’appelle que “Jétsunema”, son pseudonyme tibétain. Le pacte de lecture qu’elle établit avec son lecteur est simple et permet à celui-ci de suivre son parcours depuis son départ jusqu’à son arrivée. Son rapport manifeste une certaine ambiguïté entre le personnel et l’impersonnel car l’auteure tente de maintenir l’équilibre entre le récit de ses aventures personnelles et la description des lieux qu’elle découvre. www.clepul.eu

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Le lecteur est maintenu en suspens face aux nombreuses étapes dangereuses qui auraient pu faire échouer Alexandra David-Néel. Elle partage ainsi avec son lecteur la peur d’être reconnue par les habitants du pays (p.67), sa rencontre avec des panthères (p.32), le danger affronté dans la montagne en hiver (p.187), la possibilité de se perdre ou d’être attaquée par des voleurs (p.103), la rencontre avec des soldats (p.84), l’accident de Yongden qui se casse la cheville (p.227), les conditions trop difficiles du voyage, sans eau et parfois même sans nourriture (p.200). Tout en suivant les aventures personnelles de cette voyageuse particulière, le lecteur a accès à tout un enseignement objectif sur l’Ailleurs, basé sur un travail de recherche anthropologique qu’elle a effectué pendant quatorze ans avant cette aventure. Le caractère autobiographique de l’écriture d’Alexandra David-Néel est évident dans les passages descriptifs où elle présente et explique un aspect du pays ou de la culture qu’elle connaît. Le Voyage d’une parisienne à Lhassa révèle une connaissance approfondie du Tibet obtenue par des recherches effectuées avant ce voyage ou sur le champ. De ce fait, lors d’un soir glacial, n’arrivant pas à se servir du briquet pour allumer le feu et se réchauffer, elle a recours à une pratique tibétaine apprise lors d’un séjour précédent et qui lui permet de provoquer, par la pensée, un feu intérieur pour se réchauffer : – Jétsunema, me dit soudain Yongden, en déposant sur le sol le petit sac contenant le briquet inutile, “vous êtes une initiée en toumo réskiang et pouvez vous passer de feu. Réchauffez-vous et ne vous occupez pas de moi [. . . ]”. Il était vrai que j’avais étudié auprès de deux anachorètes thibétains l’art singulier d’accroître la chaleur du corps. Pendant longtemps, les histoires rapportées dans les livres thibétains et celles que j’entendais raconter autour de moi sur ce sujet m’avaient fortement intriguée. Comme j’ai l’esprit quelque peu enclin aux investigations critiques et expérimentales, je ne manquai pas de concevoir un vif désir de voir par moimême ce qui pouvait exister sous ces récits que j’étais tentée de tenir pour de pures fables. Avec les plus grandes difficultés, après avoir fait montre d’une persévérance obstinée dans mon désir d’être initiée à ce secret et m’être résignée à subir un certain nombre d’épreuves passablement fatigantes et quelquefois même un peu dangereuses, je réussis, enfin, à apprendre et à “voir”. (p.191-192)

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La recherche anthropologique amène Alexandra David-Néel à se fondre dans la culture tibétaine, en se servant de ce qu’elle a appris sur le pays pour y vivre véritablement. Tout dans le Voyage d’une parisienne à Lhassa s’apparente à un récit anthropologique à cause de l’emploi des termes tibétains, traduits ou expliqués en bas de page, et de la fidèle réécriture dans son rapport de ce qu’elle a appris du pays. Son intention n’est pas de créer avec les mots étrangers une sensation d’exotisme mais de souligner le caractère exceptionnel du lieu. Elle tisse ainsi dans l’introduction des considérations phonétiques et orthographiques sur la langue tibétaine : J’ajouterai un mot au sujet de l’orthographe des mots tibétains. Je les ai simplement transcrits phonétiquement afin de permettre au lecteur de les prononcer à peu près comme le font les Thibétains. Exceptionnellement, j’ai parfois écrit ph pour distinguer l’un des trois p de l’alphabet thibétain, comme dans le mot philing (étranger) qu’il faut prononcer pi line gue. Le son f n’existe pas en thibétain. Le troisième p et le troisième t ont souvent été écrits respectivement b et d selon l’usage généralement adopté par les orientalistes, bien que ces lettres n’aient le son de b et de d que lorsqu’elles sont précédées d’une lettre-préfixe muette. L’orthographe thibétaine, très compliquée, déroute forcément ceux qui ne peuvent lire les mots écrits en caractères thibétains. [. . . ] Quant au mot Thibet il peut être intéressant de savoir qu’il est inconnu des Thibétains. Son origine reste obscure. Les Thibétains appellent leur pays Peu yul, ou poétiquement en littérature, Gangs yul (le pays des neiges). ((DAVID-NÉEL, 1927: 15-16)

Encore une fois, elle fait preuve de son vif intérêt pour cette culture en même temps qu’une connaissance linguistique, phonétique et étymologique des mots tibétains. Le pronom personnel je sert le rapport anthropologique et le récit autobiographique dans la mesure où le personnage principal raconte le récit d’une aventure personnelle et décrit un pays et un peuple différents du sien. La particularité du récit de cette voyageuse vient du fait qu’elle maintient un équilibre entre le récit de ses exploits et la description qu’elle fait de l’Autre et de l’Ailleurs. Le rapport se fonde sur de nombreux carnets de route et des lettres qu’elle envoyait fréquemment à son mari Philippe Néel, étant son écriture postérieure au voyage proprement dit. Son style épistolaire, parfois journalistique, www.clepul.eu

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enregistre d’une façon détaillée et dans un style simple les différentes étapes du voyage. Joëlle Désirée-Marchand met en relief la particularité du style et du contenu des écrits de notre auteure : Dépositaire de connaissances originales, elle veut les transmettre, respectant ainsi l’un des préceptes même du Dharma. Elle veut faire partager son enthousiasme pour le Pays des Neiges et pour l’Inde, millénaire. [. . . ] L’intense activité créatrice qu’elle déploie n’empêche pas notre héros de faire quelques promenades. . . [. . . ] Certains livres sont de nouveaux récits de voyages, des témoignages, des reportages sur ce qu’elle vient de vivre et d’observer. Alexandra intègre ses propres expériences dans les narrations. (DÉSIRÉE-MARCHAND, 1996 : 380-381)

Le rapport de voyage a donc une fonction principalement informative où l’auteure privilégie les renseignements et donc l’information précise à la forme ou au style littéraire. Il est certain que le Voyage d’une parisienne à Lhassa manque de lyrisme et de sensibilité littéraire mais à certains moments du récit les descriptions sont frappantes, d’une grande qualité au niveau de la forme et des images, qui révèlent le style littéraire de notre auteure quand même. Parfois Alexandra s’arrête devant un paysage et fixe sa beauté et sa singularité : Je fus enchantée de pouvoir rester tranquillement assise, jouissant d’un paysage qui était véritablement grandiose. Dans un cadre fait de plusieurs chaînes de montagnes étagées et couvertes de forêts, un pic du Kha-Karpo se dressait, gigantesque, tout blanc, éblouissant, son sommet pointant droit dans le lumineux ciel thibétain. (DAVID-NÉEL, 1927: 55)

La voix narrative qui initie la description s’efface devant l’émerveillement du paysage hyperbolisé. Dans une autre description, elle excelle dans la représentation du paysage en utilisant des adjectifs littéraires métaphoriques : L’automne est paré, dans ce pays, de tous les charmes juvéniles du printemps. Le soleil matinal enveloppait le paysage d’une lumière rosée qui répandait la joie depuis la rivière aux eaux moirées opalines et vert clair, jusqu’à la cime des hautes falaises rocheuses sur lesquelles quelques rares sapins se dressaient en plein ciel d’un air triomphant. Chaque caillou du chemin paraissait jouir voluptueusement de la chaleur www.lusosofia.net

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Ana Fernandes du jour et babillait sous nos pas avec des rires étouffés. Des arbrisseaux minuscules croissant sur le bord du sentier imprégnaient l’air d’un violent parfum aromatique. (DAVID-NÉEL, 1927: 60)

La personnification et même l’érotisation du paysage (“jouir voluptueusement”, “babillait”, “violent”) mettent en relief le caractère poétique de ce passage. Dans une autre description encore, Alexandra David-Néel avoue se sentir incapable de transcrire convenablement la beauté du spectacle qui s’offre à son regard : Comment expliquer ce que je ressentis à ce moment ? C’était un mélange d’admiration et d’angoisse, j’étais à la fois émerveillée, stupéfaite et terrifiée. Soudainement, un formidable paysage, qu’enfermés dans la vallée nous n’avions pu entrevoir, se révélait à nous. Imaginez une immensité couverte de neige, un plateau terminé très loin, à notre gauche, par un mur vertical de glaciers glauques et de pics drapés de blancheur immaculée. A notre droite, une large ondulation de terrain, bordée par deux chaînes basses, montait en pente douce jusqu’à ce qu’elle se nivelât, à la ligne d’horizon, avec les sommets qui l’encadraient. En face de nous le vaste plateau s’élevait aussi, graduellement, et s’évanouissait dans le lointain, sans que nous puissions distinguer s’il conduisait au sommet du col ou à un autre plateau sans issue. Nulle description ne peut donner une idée d’un tel décor. (DAVIDNÉEL, 1927: 186)

Sans trouver les mots qui puissent décrire le mieux le paysage, Alexandra David-Néel définit le sublime2 , concept anticlassique attaché à l’élévation de la beauté. Excepté ces descriptions plus ou moins poétiques, le Voyage d’une parisienne à Lhassa reste un texte narratif dans lequel l’auteure se limite à transmettre ce qu’elle a appris et vécu au Tibet. 2

Le sublime est en soi une notion problématique. Le beau et le sublime vont généralement de pair. Tel que nous pouvons lire dans Le dictionnaire du Littéraire (ARON, SAINTJACQUES, & VIALA, 2002 : 573), “Diderot et Rousseau ont souligné ce qui donne une ouverture sur le sublime peut être une harmonie de données très simples, un retour aux éléments de la conscience. Reste que – Kant l’a montré – le sublime est un sentiment éprouvé par qui voit, lit ou entend une œuvre. Ainsi la catégorie du sublime peut être un moteur de la création (éprouver ce sentiment et vouloir l’exprimer, le transmettre, le susciter chez autrui) mais reste, en dernière analyse, un enjeu de la réception des œuvres.”

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En tant que voyageuse et écrivain, Alexandra David-Néel raconte l’histoire de son voyage au Tibet pour renseigner ses lecteurs des aspects insolites de l’Ailleurs. Son écriture mélange récit autobiographique et anthropologique. Elle a choisi de vivre une expérience de voyage proche d’un pays et de ses habitants, dans des conditions extrêmes, très périlleuses et trop difficiles. Au style généralement peu littéraire, le rapport d’Alexandra David-Néel est un texte narratif où les différentes étapes du voyage surgissent progressivement et révèlent une voyageuse et une femme qui se laisse transformer absolument par ce voyage. C’est sa philosophie du voyage qu’elle exprime dans ce passage : Jamais de toute ma vie je n’avais fait un voyage aussi peu coûteux. Yongden et moi riions souvent, le long des routes, en nous remémorant les détails que nous avions lus dans les ouvrages des explorateurs, concernant les nombreux chameaux, yaks ou mules composant leurs caravanes, les centaines de kilogrammes de vivres qu’ils transportaient au prix de dépenses considérables et, tout cela, pour échouer plus ou moins près de leur but. J’aurais pu parcourir toute la route sans un sou, mais comme nous nous conduisions en mendiants sybarites, nous régalant de gâteaux de mélasse, de fruits secs, de thé de première qualité, et consommions énormément de beurre, nous arrivâmes au bout de quatre mois – nous étant rendus de Yunnan à Lhassa – à dépenser, pour nous deux, à peu près cent roupies. Il n’est pas nécessaire de rouler sur l’or pour voyager et vivre heureux sur la bienheureuse terre d’Asie. (DAVID-NÉEL, 1927: 173-174)

Alexandra David-Néel suit les parcours qu’elle-même a établis dans le contexte d’un projet qui n’appartient qu’à elle : étudier la pensée orientale à travers le contact direct avec ces lieux d’origine et de diffusion et écrire pour un public-lecteur européen le rapport de ce qu’elle observe, accompagné de ses réflexions.

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Références bibliographiques ARON, P., SAINT-JACQUES, D., & VIALA, A. (2002). Le dictionnaire du Littéraire. Paris: PUF. BAUDRILLARD, Jean. (1994). Figures de l’Altérité. Paris, Descartes. BORER, Alain. (1992). Pour une Littérature voyageuse Bruxelles, Éditions Complexe CHALON, Jean. (1985). Le Lumineux destin d’Alexandra David-Néel Paris, Perrin DAVID-NÉEL, A. (1927). Voyage d’une parisienne à Lhassa. Paris: Plon. DÉSIRÉE-MARCHAND, J. (1996). Les Itinéraires d’Alexandra David-Néel. Paris: Arthaud. DÉSIRÉE-MARCHAND, Joëlle. (2004). Tibet, Voyage à Lhassa. Sur les traces D’Alexandra DavidNéel Paris, Arthaud HARTOG, François. (1991). Le Miroir d’Hérodote : Essai sur la représentation de l’Autre, Paris,Gallimard. Les Modèles du Récit de Voyage. Nanterre: Centre de recherches du Département de français de Paris X- Nanterre, 1990. LITTRÉ, É. (1872-1877). Dictionnaire de la langue française. Obtido em 13 de agosto de 2014, de http://littre.reverso.net/dictionnaire-francais/ MILLS, Sara. (1991). Discourses of Difference: an Analysis of Women’s Travel, Travel Writing and Colonialism London; New York, Routledge

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0.4 A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto em Espanha, França, Inglaterra e Alemanha no século XVII

Sandra Pina Gonçalves Doutorada em Literatura pela Universidade do Algarve Faculdade de Ciências Humanas e Sociais

Resumo: Este trabalho de investigação comparativista insere-se no âmbito das relações entretecidas pelos Estudos de Tradução e a Literatura Comparada, nomeadamente no que respeita ao conceito de tradução literária na Europa Ocidental do século XVII. Trata-se de um Estudo Intercultural, atendendo a que a tradução promove a mudança cultural decorrente de um processo de transferência intercultural com implicações literárias e ideológicas. Palavras-chave: (In)fidelidade, expansão, supressão, interrelação, peregrinação.

O Projeto de Doutoramento que venho apresentar intitula-se “A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto em Espanha, França, Inglaterra e Alemanha no século XVII” e consiste num estudo comparativista da referida obra publicada em 1614 com quatro das suas primeiras traduções, a espanhola, da autoria de Francisco de Herrera Maldonado, a francesa, de Bernard Figuier, a inglesa, de Henry Cogan Gentleman, e, finalmente, a alemã, dos editores Henrich e Dietrich Boom, publicadas em 1620, 1628, 1653 e 1671, respetivamente.

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Na base da decisão de levar a cabo este projeto encontram-se os factos de se tratar de um trabalho comparativo ainda por realizar e de consistir numa obra portuguesa que iniciou a sua viagem pela Europa fora através dos tradutores atrás mencionados logo após a sua publicação no século XVII, dando-se a conhecer a outros destinatários, os quais tiveram a oportunidade de, também eles, viajar pelo Extremo Oriente do século XVI. Os principais objetivos deste trabalho foram o de estabelecer relações de interdependência entre as referidas obras a partir da análise dos procedimentos tradutológicos adotados em determinados momentos narrativos, e o de procurar encontrar as possíveis razões que levaram os seus tradutores a um maior afastamento ou, pelo contrário, a uma evidente proximidade, atendendo sobretudo aos contextos religiosos, culturais e sociais de chegada. Pretendeu-se demonstrar não só que os tradutores referidos foram de certa forma criadores, como também que facilitaram a divulgação desta obra portuguesa, do seu conteúdo e, fundamentalmente, da sua mensagem universal. A tese encontra-se dividida em três capítulos. Do capítulo 1, intitulado “Aspetos teórico-metodológicos”, destaco o facto de a estética neoclássica da técnica da fluência ter surgido em França no século XVI e de alguns tradutores, tais como John Denham e Abraham Cowley, terem tomado conhecimento da mesma durante o período de exílio; realço, ainda, que na segunda metade do século XVII, a estratégia dominante de tradução passa a ser “Les belles infidèles”, teoria que se difundiu, posteriormente, pela Inglaterra e pela Alemanha. A tradução encontrou assim um clima favorável ao seu florescimento, tendo-se registado um considerável número de traduções de espanhol para francês e desta língua para inglês. Estes textos passam então a servir para transmitir mensagens culturais e políticas, lutando contra os sistemas implantados, contribuem para a instituição de grandes géneros literários, revitalizam as literaturas de partida e de chegada, promovendo, em simultâneo, o estatuto social e económico do escritor. Tendo em conta o trabalho tradutivo dos quatro tradutores em estudo, realço, igualmente, o contexto dos Descobrimentos, a expansão do Cristianismo, a tradução da Bíblia para várias línguas europeias na versão protestante e na versão católica romana, a crise religiosa do século XVI e o avanço do Protestantismo na Europa, até ao final do mesmo século. Do Capítulo 2, nomeado “Traduções-(Re)criações da Peregrinação e os Processos Tradutivos no século XVII Europeu”, saliento as designações de “enciwww.clepul.eu

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A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto em Espanha, França, Inglaterra e Alemanha no século XVII 41 clopédia dos descobrimentos” e de “testemunho da experiência asiática” utilizadas frequentemente para designar esta narrativa portuguesa, tendo despertado o interesse de muitos curiosos ávidos de informação acerca de terras pouco conhecidas, contribuindo para o desenvolvimento da história, cartografia e antropologia, e para o incremento do gosto pelas narrativas de aventura. Tais condições resultaram em inúmeras edições e traduções para várias línguas, incluindo o húngaro e o chinês. Em relação também ao impacto das quatro versões em análise, note-se que, por exemplo, a espanhola foi reimpressa no mesmo ano e reeditada quatro vezes ainda no século XVII, a saber em 1628, 1645, 1664 e 1666. Relativamente aos tradutores, Maldonado era um sacerdote da Igreja Real de Arbas que terá vivido durante algum tempo em Évora, fase em que terá manuseado o manuscrito, e que revela no seu texto uma admiração assinalável quer pelo autor português, pela sua obra e por várias personagens nela intervenientes. Bernard Figuier, o segundo tradutor, era supostamente um fidalgo português chamado Bernardo Figueira que vivera cinquenta anos em França e que reconhece igualmente a singularidade desta obra num texto de quatro páginas dirigido ao cardeal Richelieu. Quanto a Henry Cogan, o tradutor inglês, para além de outros textos de sua autoria, pouco se sabe, no entanto, o seu trabalho tradutivo demonstra também que a considerou uma obra cujo conteúdo merecia a sua atenção e dedicação. Em relação aos editores alemães, é de notar que a participação do seu pai Jan Hendriksz Boom na publicação da tradução neerlandesa estará inegavelmente na origem da iniciativa de levar a cabo o seu trabalho tradutivo e de existir entre estas versões uma relação de contacto direta. No que diz respeito às relações de interdependência, Maldonado contribuiu decisivamente para dar a conhecer esta obra além-fronteiras, seis anos após a publicação da Peregrinaçam. Os contactos entre a tradução espanhola e a francesa são atestados nos paratextos desta última versão e em algumas passagens textuais, no entanto, a edição de Figuier revelou-se, no geral, mais próxima do original português, o que denuncia então o contacto com esta última obra. Quanto à proximidade entre as versões francesa e inglesa, são inúmeros os momentos textuais em que é possível constatá-la, para além das referências à primeira apresentadas num paratexto da última. No que diz respeito à edição alemã, essa situação também se verifica, contudo considero que se terá tratado de uma relação de interdependência indireta. www.lusosofia.net

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Relativamente ao capítulo 3, designado “Da Peregrinaçam às Traduções Espanhola, Francesa, Inglesa e Alemã”, começo por me referir aos títulos, nos quais o estilo dos tradutores, as intenções de agradar aos novos leitores ou, tal como nos paratextos, os contactos entre as traduções são imediatamente percetíveis. No caso espanhol, Maldonado parece ter procurado tornar o seu título mais claro e representativo do conteúdo da obra ao incluir os vocábulos “Historia Oriental” e ao usar peregrinação no plural. No título de Figuier, “Les Voyages Advantureux”, verifica-se uma tentativa de aproximar o seu trabalho ao gosto do público-leitor francês, ou seja, por narrativas de aventuras. O título inglês “The Voyages and Adventures” evidencia uma intenção semelhante e, simultaneamente, denuncia a interdependência com a tradução francesa. Finalmente, o título alemão “Die wünderliche Reisen” demonstra-se também próximo ao da versão neerlandesa, publicada em 1652, cujo título é “De wonderlyke Reizen00 , e revelando, paralelamente, a intenção de ir ao encontro do interesse do seu destinatário, ampliando igualmente as vertentes aventurosa e romanesca da obra. Na edição alemã, outros pormenores, tais como a organização dos capítulos, o frontispício, as notas laterais e as ilustrações, demonstram que o texto de partida usado terá sido o neerlandês. Consciente de que a comparação integral do texto original com as quatro traduções em questão seria um projeto demasiado ambicioso, realizei a análise comparativa após delimitados os momentos diegéticos estruturantes que seriam objeto de estudo em cada uma das edições, e selecionados os excertos mais representativos do interior daqueles. No decorrer da análise comparativa, tive em consideração a estrutura e a significação da própria obra de partida, os motivos que levaram a que um vasto público- -leitor a considerasse uma obra peculiar, atrativa e exótica, os contextos em que a obra original bem como as suas traduções-adaptações foram publicadas e as imposições próprias da época e dessas realidades. Como seria de esperar, verificou-se a adoção de determinados processos tradutivos em detrimento de outros por cada tradutor. As expansões frásicas ou textuais, de extensão variada, são um dos procedimentos tradutológicos a que mais recorre o tradutor espanhol; quanto a Figuier, o seu processo tradutivo primordial é a adaptação linguístico-estilística, procurando ser fiel/literal e, simultaneamente, ir ao encontro do gosto e da exigência do seu público-leitor; já Cogan manifesta-se muito próximo da versão francesa, www.clepul.eu

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A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto em Espanha, França, Inglaterra e Alemanha no século XVII 43 porém, no que diz respeito a questões ideológico-religiosas, recorre à compressão e, inclusivamente, à supressão de cerca de quinze capítulos. Estes procedimentos são adotados a propósito da missão do padre Francisco Xavier e do elogio às suas capacidades, desde o capítulo CCIV português até ao capítulo CCXIX. Os editores alemães adotam as mesmas técnicas tradutivas embora de forma mais acentuada, resultando, por seu turno, na eliminação de aproximadamente dezassete capítulos. A supressão em questão tem lugar ainda no capítulo CCIII e a compressão estende-se ao capítulo CCXX. Os vinte e seis capítulos portugueses em causa surgem agrupados em oito ingleses e em quatro alemães em que nos deparamos com as passagens comprimidas referentes às deslocações e às experiências vividas pelo narradorpersonagem e aos dados acerca daquelas paragens. O quarto momento analisado e designado de “O Japão e a Missão de Francisco Xavier” é, assim, claramente aquele em que se verificou uma maior liberdade nestas duas traduções. De mencionar que a obra original, bem como as suas duas primeiras traduções são constituídas por duzentos e vinte e seis capítulos e que estas versões apresentam reorganizações de capítulos distintas. A tradução inglesa contém oitenta e um capítulos e a alemã, por sua vez, sessenta e três. Estes dados são também eles reveladores da liberdade de tradução evidenciada em ambas as edições. Por questões também relacionadas com os destinatários das traduções, pelo valor documental, com o intuito de tornar o discurso mais claro e rico, para informar o leitor, por razões de economia diegética ou por motivos puramente estilísticos, verificou-se o recurso a outros processos tradutológicos que, ainda que não afastem os textos da mensagem original, tornam distintas as várias edições e adequadas aos seus novos contextos, denunciando, paralelamente, os contactos entre si. De entre os vários exemplos encontrados no decorrer da análise comparativa, realço do primeiro momento, “A Partida de Lisboa e o Início da Aventura”, a expansão textual espanhola da “Quebra dos Escudos” e a expansão informativa relativa ao Caquesseitão; quanto ao segundo momento, nomeado “Na Companhia de António de Faria e o seu Derradeiro Naufrágio”, atente-se na expansão textual espanhola, apesar de não transposta para as restantes edições, designada de “Desfecho da narrativa de António de Faria” em que Maldonado enaltece as qualidades deste capitão. Nas passagens relativas ao diálogo com o Mouro e à ilha de Calempluy, em que encontramos a crítica indireta colocada na boca do outro, neste caso www.lusosofia.net

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do ermitão Hiticau, todos os tradutores procedem a breves expansões frásicas, condenando as atitudes dos portugueses e deixando perceber as interrelações entre si; no excerto relativo ao rapto da noiva todos os tradutores manifestam uma evidente intenção de se manterem fiéis à mensagem original, não obstante é de enfatizar a clara proximidade entre a versão francesa e a obra portuguesa e entre aquela e as edições inglesa e alemã; de recordar também o elevado grau de fidelidade demonstrado por todos os tradutores nas passagens relacionadas com a fauna e com informações geográficas dos lugares por onde o narrador-personagem passou, de acordo, naturalmente, com o interesse que essas questões despertariam nos seus públicos-alvo; no terceiro momento, “A China: Utopia e Deambulação do Sujeito Peregrinante”, veja-se a fidelidade no que toca à perfeição civilizacional e ao processo de remissão dos pecados, e a expansão francesa subordinada à inversão da observação antropológica em que o português é objeto do olhar do Outro enquanto come com as mãos; finalmente, no quinto momento, “O Retorno a Portugal” destaquem-se as expansões frásicas e/ou textuais acerca do castigo divino e da aceitação abnegada do destino nos diferentes textos. De enfatizar o respeito que todas patenteiam no “incipit” e no “explicit”, segundo o autor António Rosa Mendes, “duas asas minúsculas mas estabilizadoras” que conferem “equilíbrio e unidade orgânica”1 à obra original e aos textos de chegada, atendendo, suponho, ao gosto por narrativas de aventuras dos diferentes destinatários. Para além destes, outros processos foram adotados nas várias versões, de entre os quais saliento a adaptação, a modulação, a tradução interlinear e a tradução interlingual, no âmbito de questões linguísticas, culturais, editoriais e factuais. Quanto às razões das opções tradutológicas características de cada texto, no caso espanhol, terão resultado, em grande medida, da necessidade de clarificar determinados factos e informar o seu público-leitor, intenção corroborada nas notas laterais e nos apartes parentéticos. Este tradutor preocupouse, de forma incansável, com a veracidade do relato, com a natureza da Peregrinaçam e com o estilo de Fernão Mendes Pinto. Na tradução francesa, é percetível uma intenção de “melhorar” o texto, a 1

Mendes, António Rosa, A ‘Peregrinação’ e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Gente Singular Editora, Olhão, 2011, p. 6.

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A Tradução da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto em Espanha, França, Inglaterra e Alemanha no século XVII 45 escrita, a forma de dizer as coisas, indo ao encontro do gosto e da exigência do seu público-leitor. Este tradutor revelou-se menos preocupado com determinados pormenores ou certas informações demasiado roteirísticas ou quantificadoras, tendo optado por proceder a alterações estilísticas que adaptam o texto às regras e à estrutura da língua francesa da época. Relativamente às traduções inglesa e alemã, a intenção de assegurar a boa receção fez-se sentir de forma notória. As compressões e supressões de passagens em que se percebe um elogio aos membros do clero católico estarão em ambos os casos intimamente relacionadas com os contextos religiosos de chegada, enfim com a censura dos seus rituais com o intuito de agradar as autoridades protestantes. Tendo em conta as constatações apresentadas e face aos paralelismos estabelecidos entre a Peregrinaçam e as traduções em estudo, considero que os tradutores Bernardo Figueira e Herrera Maldonado foram aqueles que procuraram traduzir mais fielmente e de forma completa esta obra, revitalizandoa notoriamente. Henry Cogan, não descurando o facto de a sua tradução não ser completa, dado que a sua preocupação com a receção do texto o tenha levado a suprimir a passagem relativa à missão de Francisco Xavier, foi um tradutor que procurou também ser fiel a uma parte substancial da mensagem de partida. Os tradutores alemães foram os que mais se afastaram, avaliando o recurso mais frequente às compressões textuais, e a adoção da supressão de todas as referências ao padre Francisco Xavier, procedimentos patentes na sua tradução-adaptação incompleta, ainda que a intenção de agradar e satisfazer o gosto de seu público-alvo os tenham levado a dar a conhecer muito do que nesta obra portuguesa se pode encontrar. Concluo, assim, que a análise comparativa das traduções espanhola, francesa, inglesa e alemã com a obra original e entre si demonstrou que são textos com características próprias de cada tradutor, variando ao nível do grau de criatividade e/ou de estética, publicados em contextos diferentes e dirigidos a públicos-leitores com gostos e vivências distintos, tendo, não obstante, todas elas contribuído para ampliar e difundir esta obra-prima da literatura e cultura portuguesas, reconhecendo-lhe um valor inigualável e uma riqueza informativa e expressiva invulgares. Face ao exposto, penso que a metáfora “les belles infidèles”, aplicando-se a todo o ato tradutivo, também se aplica a estes textos de chegada que foram modificados, embelezados e reajustados em função de novos objetivos, www.lusosofia.net

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leitores e contextos, influenciando a sociedade recetora e, paralelamente, a evolução dos géneros, desde então e até aos nossos dias, nos vários locais por onde se difundiu a “tosca e rude escritura” de Fernão Mendes Pinto. Considero ter dado um contributo, com este trabalho de investigação, para o estudo das traduções do século XVII da Peregrinaçam, mas também tenho plena consciência de que tal empreendimento ambicioso requer a abordagem de outras facetas que aqui não puderam ser consideradas. O alargamento dos dados textuais para análise, a abordagem dos contextos de produção/receção das traduções ou a inclusão do estudo da tradução neerlandesa são alguns dos exemplos que requerem ainda a minha atenção futura (e a de outros interessados na matéria).

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Bibliografia - Pinto, Fernão Mendez (1614), Peregrinaçam de Fernão Mendez Pinto, Lisboa. - Pinto, Fernan Mendez (1620), Historia Oriental de las Peregrinaciones, tradução de Francisco de Herrera Maldonado, Madrid. - Pinto, Fernand Mendez (1628), Les Voyages Advantvrevx de Fernand Mendez Pinto, tradução de Bernard Figvier, Paris. - Pinto, Fernand Mendez (1653), The Voyages and Adventures of Fernand Mendez Pinto, tradução de Henry Cogan Gent., London. - Pinto, Ferdinandi Mendez (1671), Die wünderliche Reisen Ferdinandi Mendez Pinto, tradução de X., Amsterdam. - Pinto, Fernão Mendez (1995), Peregrinaçam de Fernão Mendez Pinto, edição fac-similada de José Manuel Garcia, Castoliva Editora, Maia. - Mendes, António Rosa (2011), A ‘Peregrinação’ e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Gente Singular Editora, Olhão.

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Um olhar estrangeiro: as impressões de Francis de Castelnau em sua viagem pelo Brasil Flávia Lúcia Espíndola Silva Doutoranda/Universidade Federal Fluminense

Resumo: A partir da tradução de trechos selecionados da coletânea intitulada Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para, exécutée par ordre du gouvernement français pendant les années 1843 à 1847, sous la direction de Francis de Castelnau, analisaremos como o olhar do Outro interpreta a cultura, a relação entre brasileiros, europeus, índios e escravos e a sociedade brasileira da primeira metade do século XIX. Palavras-chave: Relato de viagem, Literatura Comparada, identidade nacional.

Francis de Castelnau foi designado pelo Rei de França para realizar, juntamente com dois botânicos e um taxidermista, uma expedição à América do Sul e investigar a fauna e a flora do continente. Entre 1843 e 1847, Castelnau ‘desbravou’ o Brasil até o Peru, fazendo anotações muito além da fauna, da flora, da geografia e da geologia encontradas. Viajar. Lançar-se ao mar e descobrir novos mundos. Encontrar a Novidade, o diferente, o exótico, o Outro... E, nesta descoberta, reconhecer a si mesmo e se encontrar. Partiram, assim, todos os exploradores europeus em busca das especiarias, do ouro e da prata, do Novo Mundo... e de seu reconhecimento no Outro. Na história do Brasil, o século XIX é marcado pelas inúmeras visitas que ao país fizeram eminentes personalidades, entre elas, notáveis viajantes naturalistas. Auguste Saint-Hilaire, Johann Emmanuel Pohl, George Gardner

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e Francis Castelnau foram alguns desses que se lançaram ao mar com o intuito de explorar cientificamente as terras novas. É mister ressaltar que os relatos desses viajantes são alguns dos elementos fundamentais na construção da identidade nacional brasileira. Afinal, “a América dos viajantes não existe pelo que ela é, mas sim pelo que não é. Em outras palavras: ela não é Europa”, de acordo com as palavras de ROUANET (1991: 70). Influenciados pelas doutrinas científicas e filosóficas em voga, esses viajantes elaboravam sua descrição do Brasil, fundamentando-se no determinismo, no evolucionismo e no positivismo para explicar a realidade social do país. Tais teorias foram incorporadas e adaptadas pela elite intelectual brasileira da época que nelas se respaldava para explicar questões étnicas e construir uma identidade nacional. Ao comparar América com Europa, as marcas da identidade nacional se construíam, reforçando a (inquietante) estranheza entre suas culturas e seus povos. À Europa e aos seus colonizadores/exploradores, cabia a tarefa de domesticação do povo americano, adequando seus padrões aos parâmetros já existentes. Desta forma, as expedições ditas científicas assumiam missões, posto que desempenhavam uma função simbólica e atuavam como agentes propagadores de melhorias para a nação explorada. De certo, o objetivo último das expedições visava os interesses financeiros. No Mundo Novo ou nas Índias, as riquezas naturais possibilitariam o acúmulo de alguns muitos baús da melhor moeda: ouro, além do acúmulo do próprio. Em nosso estudo, nos detemos às contribuições da expedição do naturalista Francis de Castelnau. Entusiasta do Novo Mundo, Castelnau já havia realizado expedições à América do Norte e à África. Entretanto, seu fascínio maior era pelo hemisfério sul do continente americano. Nas páginas iniciais de seu relato intitulado Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para, exécutée par ordre du gouvernement français pendant les années 1843 à 1847, sous la direction de Francis de Castelnau, esse fascínio se manifesta. Diz ele: “Mas, de repente, a grande figura de Colombo vinha, como um espectro imenso, exigir o meu respeito; apoiando-se em Cortez e Pizzarro, ela parecia me repreender pelo abandono no qual eu deixava esse continente inventado pelo seu gênio. Então, o resto do mundo era esquecido. Niágara, Mississipi e Amazônia absorviam completamente www.clepul.eu

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os meus pensamentos. Perder-se com os selvagens nos lagos outrora franceses do Canadá, perseguir bisões nas pradarias do Oeste, visitar as minas de prata do México e de Potosí e as formações auríferas do Brasil, estudar esses seres anormais que se escondem entre as árvores tão variadas dos trópicos... Esse era o sonho ao qual me abandonava. Oh! Nesse momento, minha cabeça se perdia e eu ficava louco de felicidade e ávido de curiosidade.”1

Entre 1843 e 1847, Castelnau ‘desbravou’ o Brasil até o Peru, fazendo anotações muito além da fauna, da flora, da geografia e da geologia encontradas. Segundo o próprio Castelnau, seus manuscritos foram perdidos e o relato somente foi possível graças aos esforços de memória e à correspondência entre as famílias e os integrantes da expedição. Na Introdução, no primeiro Tomo, Castelnau afirma: “A perda de todos esses documentos será sentida durante o curso desse relato e o leitor perceberá frequentemente a impossibilidade que tenho de dar à minha narração uma importância igualitária. Em alguns momentos, tenho numerosas anotações; em outros, salvei menos material. Enfim, de alguns momentos, não tenho mais nenhum documento e me vejo reduzido a indicar sumariamente e de memória os principais acontecimentos da viagem.”2

Entretanto, como o explorador usou de tanta precisão citando datas, nomes, situações de forma tão detalhada? Qual seria a fronteira entre a memória e o imaginário desse viajante e de seus relatos? Ou seria pura estratégia argumentativa para diminuir as expectativas do leitor, o surpreendendo com seus relatos? Para ilustrar uma dessas estratégias argumentativas, reproduzimos aqui um trecho dessa mesma Introdução em que diz Castelnau: “Este relato deve, então, ser considerado como redigido apenas a partir das informações que escaparam do desastre que causou a perda de mais de quatro anos de trabalhos contínuos. Por causa dessa triste circunstância, ele tem direito à indulgência do público ao qual o submeto hoje.”3 1

CASTELNAU, 1850, p.11. CASTELNAU, 1850, pp. 21-22. 3 Opus cit, p. 22.

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Desta forma, Castelnau se qualifica como aquele que merece a bondade e a credibilidade de seu leitor, pois o atraso na publicação de seu relato deve-se a fatos alheios a sua vontade, como arrola ainda em sua Introdução: “A crise financeira que sucedeu os acontecimentos políticos de 1848 não é a única causa do atraso que sofreu a publicação desta obra; havia voltado para a Europa num estado de saúde que não me permitiu, por muito tempo, nenhum tipo de trabalho: fiquei quase cego durante um ano. Hoje, enfim, de volta ao Brasil, onde exerço as funções de cônsul do governo francês, sou obrigado a me entregar a um trabalho considerável, sem nenhuma ajuda e privado das obras mais indispensáveis; então, posso apenas solicitar novamente, e em todos os sentidos, a indulgência do público para uma obra redigida em circunstâncias tão desfavoráveis.4

Apesar da delonga na publicação e da falta de documentos ditos importantes, Castelnau escreveu seis tomos de informações preciosas sobre a sociedade, sobre os costumes, sobre as etnias indígenas e africanas (os escravos trazidos para suprimir a necessidade de mão de obra), sobre a miscigenação das raças, sobre a fauna e a flora, sobre a geologia e a geografia do Brasil, sobre as curiosidades do estrangeiro sobre o ‘exótico’ habitante dos trópicos mantêm-se em silêncio. Restritas a um número limitado de leitores que dominam a língua francesa. Entrementes, tal silêncio se quebrará. Como resultado do trabalho do grupo de pesquisa capitaneado pelas Professoras Doutoras Maria Elizabeth Chaves de Mello e Maria Ruth Machado Fellows, uma antologia desse relato está sendo traduzido e em breve estará acessível aos falantes de língua portuguesa. As traduções aqui apresentadas são retiradas dessa antologia. No presente momento de nosso trabalho, estamos analisando o relato do Tomo I. Ao falarmos de tradução, é inevitável a associação entre a tradução de um vernáculo e a tradução de uma cultura. Sendo a tradução uma atualização de conhecimentos prévios ou pré-constituídos, ela consiste em uma tentativa de decifração do sentido através da procura de aproximações entre várias esferas de intimidade. Desta forma, traduzir textos ou traduzir ‘sociedades’, nesse ponto, assemelham-se. 4

Opus cit, p.31.

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As traduções sempre estão imersas em questões de identidade e poder. Assim, reescrever é manipular. Hierarquia, hegemonia e dominância cultural refletem-se nas traduções. As observações de Castelnau refletem sua ‘tradução’ do Brasil. Castelnau reproduz a visão do colonizador sobre o colonizado ao descrever a população local, tanto indígena quanto africana. Entretanto, à população indígena, admira por sua aparência saudável, apesar de a reconhecer como oponente feroz e violento; vide seus hábitos antropofágicos. Já em relação à última, reproduz o conceito – ou antes, o pré-conceito – da sociedade de então. É importante salientar que não há pensamento humano imune às influências ideologizantes de seu contexto social. Desta maneira, o negro será sempre reproduzido como ‘preguiçoso’. Relata Castelnau: “Seria impossível descrever a alegria que senti pisando pela primeira vez no continente africano, onde tudo era novidade para mim. Tendo estudado, durante longos anos, a raça africana transportada para as colônias da América, sempre havia desejado ardentemente vê-la em seu próprio país, livre e independente. Mas confesso que essa experiência não fez mais do que confirmar as ideias que eu tinha formado sobre o pequeno desenvolvimento intelectual dessa variedade da raça humana. Como na América, encontrei-a aqui embrutecida pela bebida e pelas mais absurdas superstições; cômica em todos os seus movimentos, ela lembra sem cessar o macaco. O fato é que, livre na África ou escravo no Novo Mundo, o negro é sempre preguiçoso, depravado, ladrão e mentiroso; e a extrema facilidade com que se submete à escravidão prova nele a ausência de uma das mais nobres faculdades da alma humana. Reduzido ao cativeiro, o negro engorda; o Índio da América se deixa morrer.”5

Um dos aspectos mais chocantes para Castelnau e seus conterrâneos era a prática da escravidão em território brasileiro. Nas colônias francesas, o tráfico de escravos já havia sido abolido em 1815. No Brasil, a mão de obra escrava sustentava a economia. Segundo CARELLI, ‘o lugar reservado ao negro na sociedade colonial luso-brasileira choca por seu arcaísmo a partir da “redescoberta” do Brasil no início do século.’ (1994, p.67). Exemplificando esse choque, trazemos um trecho em que Castelnau, descrevendo a crueldade a que era submetido um escravo, se mostra contrário a alguma dessas ideias pré-concebidas: 5

CASTELNAU, 1850, pp.44-45. (Grifo nosso)

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Flávia Lúcia Espíndola Silva “Ficamos pouco tempo no Hotel Pharoux. Para nos dedicarmos a nosso trabalho, precisávamos de mais espaço do que um hotel pode oferecer. Bastava que nosso sono fosse perturbado, às vezes, pelos gritos de um escravo infeliz sendo castigado para que tivéssemos vontade de nos afastar dali. Cabe lembrar que o mau tratamento que o homem inflige aos seres que o cercam está em proporção direta à semelhança que esses têm com aquele. Assim, os animais domésticos, tais como os gatos, os papagaios etc, só recebem carícias, ao passo que o cavalo e – sobretudo – o cão, muito mais chegados à sua intimidade e de quem recebe benefícios reais, são alvo de suas sevícias. Contudo, se algumas leves chicotadas são infligidas a esses últimos, o que são estes castigos em comparação àqueles reservados aos indivíduos pertencentes à ordem inferior de sua própria espécie [os escravos]? Para estes, o homem vê necessidade de chicotes gigantescos. Para eles, também, se diverte construindo pelourinhos. E, a seu ver, o menor erro só parece ter sido suficientemente punido quando as carnes estão dilaceradas e o sangue espirra. Compreende-se, assim, que os romanos, que tinham escravos brancos em tudo semelhantes a si próprios, tenham chegado ao cúmulo da crueldade, a ponto de se deleitarem com o espetáculo das últimas convulsões da agonia de seus irmãos.”6

Imbuído no cientificismo e antevendo as teorias evolucionista e determinista, Castelnau, no capítulo III, intitulado “Zoologia – Geologia – Estabelecimentos públicos – Estado moral dos habitantes – Agricultura”, faz um breve estudo sobre a miscigenação do povo brasileiro. Vejamos: “Quando se chega pela primeira vez da Europa aos trópicos, fica-se particularmente chocado com as cores variadas que o sistema cutâneo dos homens que nos cercam apresenta. O Brasil, mais do qualquer outro país, encontra-se nessa condição. Logo ao chegar, você é cercado por pessoas de todos os matizes, desde o negro mais escuro ao amarelo cobre.”7

Mais adiante, relata: “Os brasileiros propriamente ditos têm a aparência de seus pais portugueses. São, aliás, geralmente pequenos e pouco vigorosos, de tez 6 7

Opus cit, pp. 65-66. CASTELNAU, 1850, p. 130.

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escura; seus traços são em geral regulares e sua inteligência bastante viva. A maioria deles tem sangue de cor e, em muitas localidades do interior, pode-se dizer que toda a população é negra ou mulata. Aqui, não existe qualquer preconceito de cor, e, na mesma família, você vê, frequentemente, crianças com nuances das mais opostas.”8

Talvez, uma das visões/reflexões mais interessantes de Castelnau sobre a população local, sobre o imenso ‘caldeirão’ étnico da formação do povo brasileiro seja a passagem abaixo, onde Castelnau classifica as ‘espécies’ encontradas, de acordo com suas observações: “Aqui, os mestiços são muito comuns e, sobre eles, obtive as seguintes informações: 1a ) O filho de um branco e de uma índia tem a aparência de sua mãe: seus cabelos são grossos e seus olhos oblíquos. 2a ) O rebento de um índio com uma negra se chama cafuzo: tem os cabelos crespos, os olhos oblíquos e a cor de um bronze escuro. 3a ) O mestiço de um índio e de uma cafuza tem os cabelos quase lisos ou ligeiramente frisados, os olhos oblíquos e a cor do índio. 4a ) O mestiço da mistura anterior e do índio tem a aparência do último e pode ser considerado um puro sangue. 5a ) A mistura de um branco e de um mestiço número 1 tem a cor ligeiramente acobreada, os cabelos duros e os olhos oblíquos. 6a ) A mistura do branco e do número anterior é branco. Seus cabelos têm a aparência comum, mas são sempre de um negro escuro. Os olhos permanecem ligeiramente oblíquos. 7a ) Enfim, o mestiço de um branco e o da mistura número seis pertence completamente a nossa raça. Por meio de diversas conversas com os plantadores, certifiquei-me que, para os que são negros, após quatro gerações misturadas, os filhos tornamse brancos e que é necessária a quinta geração para que eles sejam negros novamente – o que é uma bela prova a favor da lei da progressão das raças.”9 8 9

Opus cit, 1850, p.130. CASTELNAU, 1850, p. (p.205-206).

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Ao partir rumo à América do Sul, Castelnau possuía uma visão de que, se existisse um paraíso na terra, era para lá que estava se encaminhando. Entretanto, o Brasil de seu imaginário não se revelou de todo na prática. Em Terra Brasilis, o encontro com o Outro, refletiu – num primeiro momento – uma visão muito próxima ao mesmo, ao eu, ao europeu. É a natureza exuberante que lhe trará o deslumbramento. O estranhamento e a falta de parâmetros na percepção da alteridade marca o olhar desse viajante – de todo o viajante europeu contemporâneo de Castelnau, é bem verdade. Movidos pela visão europeia de mundo, esses viajantes analisam a realidade de uma forma impressionista, sem considerar as especificidades de cada povo, mantendo como modelos de avaliação dos nativos as normas e os valores europeus. Sobre Castelnau e sua expedição muito ainda há por se dizer. Nosso estudo encontra-se ainda em fase inicial. O exposto aqui é apenas o estopim de minhas inquietações e meus estranhamentos ao entrar em contato com o relato desse viajante.

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Bibliografia: CARELLI, Mario (1994). Culturas cruzadas: intercâmbios culturais entre França e Brasil. Tradução Nícia Adan Bonatti. Campinas, SP: Papirus. CASTELNAU, Francis de Laporte (1850). Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à Lima, et de Lima au Para, exécutée par ordre du gouvernement français pendant les années 1843 à 1847, sous la direction de Francis de Castelnau. Paris: Beertrand, (1a ed.). MELLO, Maria Elizabeth Chaves de. Lições de crítica (1977). Niterói, RJ: EDUFF. ______________________________(2001). “Construindo o conceito de identidade nacional”. In MELLO, Maria Elizabeth Chaves de (org). Revista Gragoatá no 11, Niterói, RJ: EDUFF, pp. 173-190. ______________________________ & FELLOWS, Maria Ruth Machado (org). O Passado no Presente: releituras da modernidade. Niterói, RJ: EDUFF, 2011. ROUANET, Maria Helena (1991). Eternamente em berço esplêndido: a fundação de uma literatura nacional. São Paulo: Siciliano. SÜSSEKIND, Flora (1990). O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Companhia das Letras. TADIÉ, Jean-Yves (1970). Introduction à la vie littéraire du XIXe. siècle. Paris: Bordas. TODOROV, Tzvetan (1993). Nós e os Outros – v.1. A reflexão francesa sobre a diversidade humana. Tradução Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar.

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Cartografar a Literatura: contributos da abordagem geocrítica para a perenidade da Literatura de Viagens Sara Cerqueira Pascoal Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto Instituto Politécnico do Porto CEI- Centro de Estudos Interculturais e IELT (FCSH-UNL) spascoal@iscap.ipp.pt

Resumo: Quatrocentos anos após a publicação, pelos prelos de Pedro Craesbeck, de uma das obras mais relevantes da Literatura de Viagens portuguesa, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, pretende esta comunicação abordar novas metodológicas de análise destas narrativas, propondo-se nomeadamente uma perspetiva geocrítica. Se é verdade que a Literatura tem estabelecido relações metodológicas com outras Ciências Humanas e Sociais, como a História, a Sociologia, a Filosofia, a Antropologia ou a Psicologia, que têm redundado em frutuosas revelações, já as suas relações com a Geografia são tímidas e por vezes relutantes. A despeito das brilhantes intuições dos nossos primeiros geógrafos – Amorim Girão ou Orlando Ribeiro – que cedo mediram o valor das relações entre Geografia e Literatura, são atualmente muito parcos os estudos que usam fontes literárias na reconstituição do saber geográfico e métodos geográficos para a análise literária. Há, no entanto, algumas contribuições, que seguem a esteira de investigadores estrangeiros, como Tuan, Pocock, Moretti, Chevalier, Bailly. Recentemente, em Portugal, o uso de fontes literárias na análise geográfica tem sido efetuado por investigadores como Fernanda Cravidão, Rui Jacinto ou João Carlos Garcia.A Literatura não pode virar as costas à importância dos métodos geográficos na análise literária. Tal como afirmou Charles Batten (1978), “travel books also bear a striking resemblance to descriptive geographies in their treatment of such subjects as the physical appearance, customs, commerce,

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history and laws of specific areas”. Partindo, num primeiro momento, do estado de arte do cruzamento dos estudos literários com os estudos geográficos, esta comunicação apresenta exemplos de cartografia temática elaborada com base nos itinerários percorridos em algumas narrativas de viagem portuguesas da segunda metade de Oitocentos, revelando muitas das vantagens e novas metodologias que advêm da abordagem geocrítica. Palavras-chave: Narrativa de viagens, Geografia literária, Cartografia temática, Geocrítica.

A abordagem crítica das narrativas de viagens tem sido sobretudo encetada pela Literatura Comparada, e mormente pelos estudos imagológicos, em que a viagem é encarada enquanto prática cultural, mas igualmente enquanto espaço propiciador de um contacto com o Outro, que se cristaliza na criação de auto e hetero-imagens e na consolidação da identidade nacional, pela atitude comparativa que se estabelece em contacto com o estrangeiro1 . A abordagem imagológica da Literatura de viagens tem servido essencialmente o propósito de contribuir para entender a aprofundar a formação das identidades nacionais, uma vez que, tal como sublinharam Elsner e Rubiès, “ (. . . ) the literature of travel not only exemplifies the multiple facets of modern identity, but it is also one of the principal cultural mechanisms, even a key cause, for the development of a modern identity, since the Renaissance” (ELSNER e RUBIÈS, 1999:4). Se a perspetiva imagológica nos tem dado preciosos contributos no quadro da análise da Literatura de viagem e de construção de um conhecimento sobre a imagem ou representação do estrangeiro, particularmente a) a imagem de um referente estrangeiro, b) a imagem se uma nação2 , c) a imagem conformada pela sensibilidade autoral (MOURA, 1999:184), nos últimos tempos, de uma forma consolidada nos países anglo-saxónicos e, de forma mais tímida, em Portugal, temos assistido a um verdadeiro spatial turn, isto é, um interesse crescente dos estudos literários pelo espaço e pelos métodos geográficos. Esta relevância dada à dimensão espacial foi interpretada de diversas formas pelas Ciências Sociais, uns sustentando que a pós-modernidade se caracterizaria por uma inversão da hierarquia entre tempo e espaço, outros invocando um fim da História. Não é que a História tenha sido posta de 1 2

Ver OUTEIRINHO, 2000. BELLER e LEERSSEN, 2007.

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parte, mas parece haver um declínio de um certo modelo histórico. Na verdade, a inscrição dos fenómenos humanos e sociais no espaço tem interessado cada vez mais as Ciências Sociais e até a História. Não podemos deixar de relembrar, por exemplo, Fernand Braudel que propôs o termo “geohistória” para descrever as relações que uma sociedade mantém na História e na diacronia com o espaço. Para além da Geohistória, outra terminologia surgiu para dar conta desta nova metodologia. As novas designações como Geocrítica,3 Geopoética4 ou Geofilologia parecem, de facto, encerrar novas metodologias e desafios para os estudos literários. E quais são estes desafios? Daniel-Henri Pageaux num artigo inserido na recolha La Géocritique mode d’emploi, editado por Bertrand Westphal, em 2000, interroga-se precisamente sobre a questão, a saber, não só qual o lugar da Geografia na metodologia comparatista, mas sobretudo qual a sua utilidade. Pageaux responde-nos desta forma: "La prise en compte de la géographie permet d’entrevoir, sinon d’élucider la nature, la fonction et les modalités d’étude de l’imaginaire littéraire et d’approcher des questions qui touchent la création poétique” (PAGEAUX, 2000 : 157). Por seu turno, o próprio Bertrand Westphal, que cunhou o termo Geocrítica, neste mesmo livro, descreve-nos uma metodologia capaz de “articular a literatura em torno das suas relações com o espaço, de promover uma Geocrítica, poética, cujo objeto seria não o exame das suas relações com o espaço na literatura, mas as interações entre espaços humanos e literatura. A despeito das brilhantes intuições dos nossos primeiros geógrafos – Amorim Girão ou Orlando Ribeiro – que cedo mediram o valor das relações entre Geografia e Literatura, são ainda muito parcos os estudos portugueses que usam fontes literárias na reconstituição do saber geográfico. As relações entre Geografia e Literatura são, porém, já muito remotas. Se recorrermos às palavras de Maurice Chevalier, remontam a 1907: “(. . . ) la mention la plus ancienne que j’ai pu repérer apparaît en 1907 sous la plume d’un essayiste quelque peu polygraphe ” (CHEVALIER, 2001 : 17). Na verdade, desde a Antiguidade, e, mais tarde, no século XIX, se recorria aos relatos de viagem para a produção do conhecimento geográfico. Basta relembrar os estudos de Alexander von Humboldt. Também o I Congresso Internacional de 3 4

Termo cunhado por Bertrand Westphal (WESTPHAL, 2000 e 2007). Termo conhecido desde a década de 70 e ilustrado sobretudo por Kenneth White.

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Geografia, realizado em Bruxelas, em 1871, teve como tema, numa das quatro sessões, a rubrica “Navegação e Viagens” (CAPEL, 1989: 20). Apesar destas origens “longínquas” da relação entre Geografia e Literatura, a verdade é que teremos de aguardar até à década de 70, do século XX, para que a produção geográfica sobre o discurso literário ganhasse novo fôlego. Nos finais da década de sessenta, assiste-se a um interesse renovado pela criação e reestruturação de novas metodologias e novos continentes científicos, de índole marcadamente interdisciplinar. Sob o influxo de temários e metodologias especializados pela Geografia anglo-saxónica, multiplicamse inéditas abordagens e renovados objetos de investigação. A Geografia humanista, de genética e primado anglo-saxónicos, rapidamente estenderia o âmbito dos seus estudos à leitura e análise das fontes literárias em reação contra a “nova Geografia”, de cariz teorético, abstrato e quantitativo. Trabalhos como os de SALTER E LLOYD (1978), de SIMPSONHOUSLEY e MALLORY (1987), POCOCK (1988), LAFAILLE (1989), ORTEGA (1992), BROUSSEAU (1994), fornecem-nos pistas, sugestões e novas leituras sobre a evolução das relações entre Geografia e Literatura5 . Em 1974, Yi-Fu Tuan, num estudo que se tornaria clássico – a obra Topofilia – foi um desses pioneiros que defenderiam a utilização de fontes literárias para o conhecimento geográfico. Os seus contributos continuariam a aprofundar-se a partir de então, com outras obras célebres como Literature, Experience and Environmental Knowing (TUAN, 1976), “Literature and Geography: implications for geographical research” (TUAN, 1978), ensaio publicado na coletânea Humanistic Geography: prospects and problems, editada por David Ley e Marwin Samuels (LEY, SAMUELS, 1978). Aos 81 anos, Tuan é ainda hoje um eminente geógrafo, continuando a publicar obras de referência, nomeadamente Humanistic Geography. An Individual’s search for meaning (2012) da Universidade de Michigan, onde resume e passa em revisão aspetos fundamentais da sua carreira. Nos anos oitenta, autores como Douglas Pocock, professor da Universidade de Durham, foi um dos investigadores que procuraram trilhar também este caminho, publicando em Inglaterra obras como Humanistic Geography 5

Não é nosso propósito, porque não caberia dentro do âmbito de um trabalho tão espartilhado, reconstituir exaustivamente todos os trabalhos e pesquisas que historicamente relacionaram Geografia e Literatura, apenas tentar fornecer um quadro conceptual diacrónico da sua evolução.

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and Literature (POCOCK, 1981). Continua a aprofundar a sua obra em Geography and Literature (POCOCK, 1988) onde faz um levantamento dos geógrafos britânicos que conduzem pesquisas sobre Geografia e Literatura. Em língua francesa, para além dos trabalhos precursores de Armand Frémont, que foi dos autores que maior apelo lançou à Literatura em La région, espace vécu (FRÈMONT, 1976), juntam-se Antoine Bailly com La perception de l’espace Urbain (1977) ou a obra que editou juntamente com Robert Scariati, L’Humanisme en Géographie (BAILLY, SCARIATI, 1990). Na mesma esteira das pesquisas anteriores, não podemos deixar de referir o nome de Bertrand Lévy. Professor da Universidadde de Genève, Bertrand Lévy deu os primeiros passos usando como fonte a obra de Herman Hesse, com o livro Géographie humaniste et littérature: l’espace existentiel dans l’oeuvre de Hermann Hesse (1877-1962) (LEVY, 1989). Em 2006 e posteriormente em 2009, Lévym divulgaria uma síntese dos temários da Geografia literária com Géographie et littérature. Une synthèse historique (LEVY, 2006) e Paysages urbains nocturnes et littéraires. Exemples pris à Tokyo et Paris (LEVY, 2009). Dos vários artigos que publicou destacamos ainda “Géographie culturelle, géographie humaine et littérature, position épistémologique et méthodologique”, de 1997. Atualmente, dirige o projeto “ GeoLitt. Géographie urbaine et Littérature : mythe, image et expérience des villes ”, onde leva a cabo dois estudos comparados : “ Paris-St-Pétersbourg à travers la littérature de Balzac et de Dostoïevski (XIX siècle)” e “ Genève-Prague à travers le discours sur la métropolisation (XXX et XXI siècles) ”6 . Por seu turno, Michel Chevalier contribuirá igualmente com estudos fundamentais para a temática em apreço, tais como a obra Géographie et Littérature (CHEVALIER, 2001 e 2003). Na Universidade Paris 1, Jean-Louis Tissier tem também ele contribuído, desde os anos oitenta, com a leitura geográfica de obras literárias com Paysages: expressions littéraires et audiovisuelles, a sua tese de Doutoramento apresentada à Universidade de Paris 1 (TISSIER, 1986) e ainda com artigos como “De l’esprit géographique dans l’œuvre de Julien Gracq”, publicado na revista L’Espace géographique (TISSIER; 1981), ou “Géographie et littérature”, texto inserido na Encyclopédie de Géographie, editada por Antoine Bailly, em 1992. Na mesma Universidade, Jean-Marc Besse tem votado as suas investiga6

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ções à interrogação das representações da paisagem e às experiências do espaço, no quadro da Geografia. As suas publicações mais relevantes são Voir la Terre. Six essais sur le paysage et la géographie (BESSE, 2000), traduzida para português pela Editora Perspetiva de S. Paulo, em 2006 ; Face au monde. Atlas, jardins, géoramas (BESSE, 2003) ; Le goût du monde. Exercices de paysage, (BESSE, 2009) ou La sombra de las cosas. Sobre paisaje y Geografia (BESSE, 2010). Destacamos ainda, do outro lado do Atlântico, os trabalhos de Marc Brosseau que, desde 1993, com o artigo “La géographie olfactive ou le flair romanesque”, tem vindo recorrentemente a aprofundar as relações entre Geografia e Literatura. Dos seus últimos trabalhos constam, por exemplo, os artigos “L’espace littéraire en l’absence de description: un défi pour l’interprétation géographique de la littérature” (BROUSSEAU, 2008), “L’espace littéraire entre géographie et critique” (BROUSSEAU, 2011) ou “Imaginaire des bas-fonds chez Bukowski” (BROUSSEAU. 2012). Em horizontes geográficos mais próximos, na vizinha Espanha, os estudos geográficos também não têm descurado o papel das fontes literárias. Na Universidade de Barcelona, Horacio Capel tem vindo, nos últimos trinta anos, a realizar trabalhos de Geografia urbana, onde a Literatura tem amplo destaque. Relembramos a sua publicação “Geografia y Arte Apodémico en el siglo de viajes” (CAPEL, 1985) e as revistas Geocritica7 e Scripta Nova8 que tem coordenado e impulsionado. Uma das discípulas de Horacio Capel, Maria del Mar Serrano, tem desenvolvido também um trabalho emblemático, utilizando os guias de viagem nas suas prospeções geográficas, onde se destacam a sua dissertação de Doutoramento La percepción del espacio geográfico através de las guías y los relatos de viaje en la España del XIX, ou os artigos, como “La ciudad percibida. Murallas y Ensanches desde las Guias urbanas del siglo XIX” (1991), ou “Viajes y viajeros por la España del siglo XIX” (1993). Os relatos de viagem têm constituído, de facto, uma fonte privilegiada no discurso geográfico. Sobrelevamos aqui outros contributos de geógrafos para o conhecimento do espaço espanhol a partir da Literatura de viagens. De Dolores Brandis que defendeu uma tese sobre a paisagem residencial de 7

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Madrid, destacamos “Los relatos de viajes en la construcción de la imagen de la ciudad. Itinerarios de viajeros extranjeros en el Madrid de los siglos XVI, XVII y XVIII” (BRANDIS, 2010). A compilação Viajes y geografía, organizada por Perla Zuzman, Carla Lois e Hortensia Castro é igualmente exemplo deste interesse (ZUSMAN, LOIS, CASTRO, 2007). Em 2001, constitui-se na Assembleia Geral da Asociación de Geografos Españoles, o “Grupo de trabajo de Historia del Pensamiento Geográfico”9 , que utilizará fontes históricas e literárias na construção do pensamento geográfico. Este grupo reuniu vários interessados nas pesquisas em Geografia literária, nomeadamente Eduardo Martínez de Pisón, Nicolás Ortega Cantero, Josefina Gómez Mendoza, Jacobo García Álvarez, Francisco Ojeda Rivera, António López Ontiveros, entre outros e organizou diversos colóquios, cujas atas foram reunidas em livro10 . Estes investigadores são responsáveis por algumas das pesquisas mais reveladoras das relações entre Geografia e Literatura. Eduardo Martinez de Pisón, catedrático emérito da Universidade Autónoma de Madrid, dedicou a sua obra à análise da paisagem das montanhas, tendo publicado Miradas sobre el paisage (MARTINEZ DE PISÓN, 2009) ou El sentimeinto de la montaña (MARTINEZ DE PISÓN, 2010). Juntamente com outro catedrático da Universidade Autónoma de Madrid, Nicolás Ortega Cantero, tem publicado várias obras, no âmbito dos seus trabalhos como membros fundadores do “Instituto del Paisaje da Fundación Duques de Soria”, nomeadamente Los valores del paisage (MARTINEZ DE PISÓN e ORTEGA CANTERO, 2009) e Paisage: valores y identidade (MARTINEZ DE PISÓN e ORTEGA CANTERO, 2010). Em Portugal, também o geógrafo Amorim Girão, no início dos anos 50, mediu a importância das relações entre a Geografia e a Literatura. As relações entre estas duas áreas do saber sempre foram intermitentes e pouco amplas. Amorim Girão afirmava: “(. . . ) parece à primeira vista que não ligam muito bem estas duas expressões – Geografia e Literatura -, e até algumas vezes elas se têm enlaçado quando se quer diminuir a obra de muitos cultores da ciência geográfica. Acusam-se frequentemente os geógrafos de literatos, 9

Ver o site do grupo em: http://www.agepensamiento.es/page.php?id=3 LÓPEZ ONTIVEROS, NOGUÉ, ORTEGA CANTERO, 2006; PAÜL I CARRIL, TORT I DONADA, 2007; ORTEGA CANTERO, GARCÍA ÁLVAREZ, MOLLÁ RUIZ-GÓMEZ, 2010. 10

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Sara Cerqueira Pascoal querendo talvez significar que eles desprezam todo o contacto com a realidade, vivendo no domínio da pura fantasia. Fala-se de “Literatura geográfica” quase sempre com intuitos de maldizer; e, deturpando muito embora a expressão, também se terá falado de “Geografia literária” mais ou menos no mesmo sentido.” (GIRÃO, 1952: 105).

Foi no sentido de reativar a relação entre a Geografia e a Literatura, em boa verdade reabilitando a Geografia vidaliana, que Amorim Girão abordou a obra de Gil Vicente em “A corografia portuguesa nas obras de Gil Vicente” (GIRÃO, 1936a), ou “O Ribatejo na obra de Gil Vicente” (GIRÃO, 1936b). Este mesmo geógrafo haveria ainda de apresentar ao XVI Congresso Internacional de Geografia (Lisboa, 1949) a comunicação “As descrições de viagens dos séculos XVI e XVII e a Geografia Humana” (GIRÃO, 1951). Mas depois deste impulso inicial de Amorim Girão, só muito mais tarde, já na década de 70, se assistiria ao lançamento de um outro trabalho geográfico que tem como fonte o texto literário. Referimo-nos aos trabalhos de Orlando Ribeiro e ao seu “Comentário geográfico a dois passos de Os Lusíadas” (RIBEIRO, 1989b), ou “Camões e a Geografia” (RIBEIRO, 1989a). Na década de 80, serão os trabalhos de João Carlos Garcia que renovarão o uso de fontes literárias para a reconstituição do saber geográfico com “Eça de Queirós na Aquitânia: o turismo no fim do século” (GARCIA, 1986), ou com Teresa Barata Salgueiro “Lisboa nos finais do século XIX. Geografia de uma transição” (SALGUEIRO e GARCIA, 1988). Datado de 1992, o artigo de Fernanda Cravidão “Ficção, espaço e sociedade. Notas para uma leitura geográfica e social da obra de Alves Redol, Avieiros” (CRAVIDÃO, 1992) continua, já na década seguinte, a reiterar a importância da Literatura dentro da Geografia Histórica. Ainda na mesma década, mas em 1995, Rui Jacinto contribui para a temática em apreço com “As outras Geografias: a Literatura e as leituras do território” (JACINTO, 1995) e, em 1997, Suzanne Daveau utiliza as cartas do Padre António Vieira como fonte primária para uma análise em Geografia Física (DAVEAU, 1997). Em 1999, João Carlos Garcia e Miguel Nogueira publicam “ Cartas de S. Jorge (1899-1913): O Espaço vivido e recordado da Família Lacerda” (GARCIA e NOGUEIRA, 1999). A partir de 2000, são inúmeros os artigos e comunicações em Conferências que refletem sobre as ligações entre Geografia e Literatura. Relevamos a comunicação “Literatura e Geografia: outras viagens, outros territórios. www.clepul.eu

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Emigrantes de Ferreira de Castro” (CRAVIDÃO e MARQUES, 2000), apresentada no Simpósio Internacional 500 Anos de Descobertas Literárias, na Universidade de Brasília, ou “Lição de Geografia através de uma poesia” (GOUVEIA e MOREIRA, 2001), apresentada ao Encontro Ibérico de Professores de Geografia. Ainda em 2000, assinalamos um outro estudo, onde a Geografia se serve da Banda Desenhada como fonte. Referimo-nos à tese de Mestrado de Miguel Coelho, defendida na Faculdade de Letras da Universidade do Porto e intitulada Pranchas do Espaço Ibérico Medieval. Um olhar geográfico sobre a banda desenhada histórica (COELHO, 2000). Mais recentemente, destacamos o trabalho de Francisco Choupina que culminaria com uma tese de Mestrado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra intitulada O Lugar do Meio – Uma leitura geográfica da obra de Miguel Torga (CHOUPINA, 2005). A metodologia aplicada por Choupina faz-nos revelações, até aqui insuspeitáveis, sobre a obra de Torga, que a Literatura e os literatos teimam em ignorar. A Leitura geográfica da obra de Torga põe em causa muitos dos estribilhos que, um por um, analistas da obra e carácter torguiano vão repetindo, nomeadamente a sua transmontanidade, a sua portugalidade e o seu iberismo. Choupina desmonta o discurso torguiano para provar que não passa de mera construção literária e que esses espaços não são deveras vividos, mas meras vivências intelectuais. Mas se a Geografia tem recorrido frequentemente à Literatura “ora como fonte de informação primária e secundária, ora como relato subjetivo da experiência do espaço e do lugar, ora como denúncia da ordem estabelecida e estímulo à mudança; ora como um meio para abordar a história da Geografia, ou ainda como recurso didático no ensino da própria Geografia” (CHOUPINA, 2005: 34), como se tem desenvolvido a relação entre a Literatura, geral ou comparada, e a Geografia? Nos últimos anos, vários investigadores nos dão conta da importância deste spatial turn, Basta referir, a título de exemplo os artigos “Literary Studies and the Spatial Turn” (WINKLER, SEIFERT, DETERING, 2012), “The Spatial Turn in Literary Historiography” (CABO ASEGUINOLAZA, 2011), “Littérature et géographie : lieux, espaces, paysages et écritures ” (BARON, 2011), “Pour une géographie littéraire” (COLLOT, 2011), “Spatial turn: On the Concept of Space in Cultural Geography and Literary Theory” (HESS-LÜTTICH, 2012), ou os livros Communicating in The Third Space (IKAS, WAGNER, 2009) e Spatial Turns : space, place and mobility in german visual culture (FISHER, MENNEL, www.lusosofia.net

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2010). Nos E.U.A., Robert Tally tem sido o grande impulsionador do método geocrítico. Tradutor da obra de Bertrand Lévy, Tally tem também publicado artigos como “Geocriticism: Mapping the Spaces of Literature” (2009), e livros como Melville, Mapping and Globalization. Literary cartography in the American baroque writer (TALLY, 2009), Geocritical Explorations: Space, Place, and Mapping in Literary and Cultural Studies (TALLY, 2011) e o mais recente, Spatiality (TALLY, 2012). A Geografia literária, que parece ser o termo preferido, está efetivamente na moda, embora possua já cerca de duas a três décadas. Uma das contribuições mais relevantes foi, sem dúvida, a de Franco Moretti, um italiano que é professor na Universidade de Stanford. O seu livro - Atlas do romance europeu (1800-1900), traduzido para português em 2003, mas publicado pela primeira vez em 1998, é uma obra estruturada em duas partes. Por um lado, Moretti interessa-se pela representação dos espaços na Literatura, o que faz sobrelevar a metodologia da Geografia literária e, em segundo lugar, pelo estudo da Literatura nos espaços, pelos lugares de difusão e receção dos textos romanescos do séc. XIX, que é no fundo a metodologia de uma Geografia da Literatura. A ideia de Moretti de constituir mapas ou cartas com base nos romances tem inspirado muitos outros investigadores, como é o caso de um dos trabalhos mais ambiciosos que está em curso, o de constituir um Atlas do Romance Europeu. Este projeto do Instituto Cartográfico da Universidade de Zurique, coordenado por Barbara Piatti, recorre às mais modernas ferramentas de Cartografia Assistida por Computador, para tentar reconstituir um Atlas literário da Europa11 . Barbara Piatti é uma das mais recentes investigadoras desta área, contando já diversas publicações em língua alemã, entre as quais destacamos Die Geographie der Literatur. Schauplätze, Handlungsräume, Raumphantasien (PIATTI, 2008). No entanto, a ideia de construir atlas literário já não é nova. Em 1973, Jeremiah Benjamin Post editou An Atlas of Fantasy que reúne mais de cem mapas que cartografam terras imaginárias, descritas nas mais emblemáticas obras 11

O projeto “A Literary Atlas of Europe”, que se propõe cartografar e analisar, através de ferramentas electrónicas, a Geografia da Ficção, pode ser consultado em inglês em http://www.Literaturatlas.eu/en/project/ Este projeto é coordenado pela Universidade de Zurique com a colaboração de investigadores da Universidade de Göttingen, na Alemanha e da Universidade de Praga, República Checa.

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da Literatura mundial (POST, 1973). Em 1880, Alberto Manguel e Gianni Guadalupi publicaram O Dictionary of Imaginary Places, que foi posteriormente reeditado em 1987 e 1999, obra definida pelos autores como um Baedecker de terras ficcionais, cuja tradução para português foi editada em 2003 (MANGUEL e GUADALUPI, 2003). O livro conta com ilustrações de Graham Greenfield e Eric Beddows, e os mapas e plantas são de James Cook. Este é o resultado de um desses mapas, neste caso o País das Maravilhas: Na Université Sorbonne III, e com o patrocínio do CNRS, Michel Collot12 e Julien Knebusch, dirigem o programa de pesquisas “ Vers une Géographie Littéraire ”13 que possui um blog, espécie de caderno onde se recolhem os seminários realizados no âmbito do projeto, mas também uma bibliografia muito completa, notas de leitura e livros recentemente lançados sobre a temática. Este programa visa sobretudo refletir sob as novas designações Geocrítica, Geopoética14 ou Geofilologia, terminologia que parece encerrar novas metodologias e desafios para os estudos literários. Para além de Michel Collot15 e Julien Knebusch16 , fazem ainda parte deste grupo Christine Baron ou Yvon Le Scanf17 . Nos últimos cinco anos são inúmeros, de facto, os projetos na área da Geografia Literária. Arrolamos apenas aqui alguns dos mais importantes. O projeto American Tropics: Towards A Literary Geography18 ,da Universidade de Essex, terminou em 2011 e resultou já uma publicação Cuba’s Wild East de Peter Hume (HUME, 2011). Outro projeto de cartografia literária é o Digital Literary Atlas of Ireland (1922- 1949)19 que pertence à Universidade de Dublin. Na Lituânia, o projeto Geography of Literature: textual territories and imaginary maps20 tenta igualmente unir a Geografia e a leitura do espaço à análise filológica, tentando focalizar a sua atenção nos espaços reais e imaginados. 12 Michel Collot forneceu-nos em 2011, um estado da arte da Geografia Literária, na sessão introdutória do programa de estudos “Vers une géographie littéraire”, disponível em vídeo em: http://archive.org/details/Geographielitteraire1.collot.etatdeslieux 13 http://geographielitteraire.hypotheses.org/a-propos 14 Termo conhecido desde a década de 70 e ilustrado sobretudo por Kenneth White. 15 COLLOT, 2011. 16 KNEBUCSH, 2012. 17 LE SCANF, 2007. 18 http://www.essex.ac.uk/lifts/American_Tropics/index.htm 19 http://www.tcd.ie/longroomhub/digital-atlas/ 20 http://www.vilniusliterature.flf.vu.lt/?page_id=22

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Mapping St Petersburg: Experiments in Literary Cartography21 tem como objetivos cartografar a cidade de S. Petersburgo a partir das obras de grandes autores russos, como Dostoievski. Propósitos semelhantes apresenta o projeto Mapping Nordic Literary Culture: A Virtual Exhibit sponsored by the Nordic Council of Ministers, unindo Universidades como a UCLA, Berkeley e a Brigham Young University22 . Finalmente, na Universidade de Lancaster o projeto de cinco anos Spatial Humanities: Texts, Geographic Iinformation Systems and places23 financiado pelo Conselho Europeu de Investigação visa a criação de uma mudança radical na maneira que o espaço, lugar e geografia são explorados nas Humanidades, unindo Linguística de Corpus com os Sistemas de Informação Geográfica. Em Portugal, se o interesse pela Literatura de Viagens é antigo e se refletiu em variadas investigações, este renovado interesse da Literatura pelos métodos geográficos parece dar apenas os primeiros passos. De facto, ao invés da Literatura comparada e dos estudos imagológicos, a Geografia literária é ainda muito embrionária. Desde finais da década de setenta, com a emergência dos Cultural Sudies, pretende-se que a abordagem dos textos de viagem se faça de forma mais abrangente e multidisciplinar, entendendo estes textos como culturais e abordando-os de forma complexa e aprofundada. A recente publicação do volume “Viagens e Viajantes” da Revista CEM, Cultura, Espaço Memória, em 2010, coordenado por Isabel Morujão e que acolhe a colaboração de especialistas de diversas áreas, é disso exemplo. Mais recentemente, temos assistido no nosso país aos primeiros passos para o desenvolvimento e expansão da Geografia literária. Maria Helena Buescu intitulou a sua abordagem das Rotas de escritores do século XX, “Torga. Identidades humanas numa Geografia literária” (BUESCU, 2004). Resultado do impulso da obra de Maria Leonor Machado de Sousa, também o Centro de estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa tem contribuído para a interpretação hermenêutica da Literatura de Viagens, quer de olhares de portugueses sobre a Inglaterra, quer de autores de expressão inglesa sobre Portugal. Várias propostas de alargamento transdisciplinar têm, no entanto, sur21

http://www.mappingpetersburg.org/site/ http://tango.bol.ucla.edu/orientnorth/intro.html 23 http://www.lancaster.ac.uk/spatialhum/

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gido e o colóquio promovido nos dias 22 e 23 de setembro de 2011 pelo Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Intitulado "LÉA ! Lire en Europe aujourd’hui. Lire, de près de loin. Close reading versus Distant reading", este Colóquio Internacional veio problematizar as conjeturas de Franco Moretti que defende uma maior objetividade na leitura dos textos literários. Destacamos também aqui os trabalhos do Congresso “Rotas e Raízes. Identidade e Intercâmbio Intercultural de Viagens e Turismo”. Organizado pela Universidade de Aveiro, este congresso, embora da área dos Estudos Culturais, conseguiu congraçar a atenção de investigadores para a importância do espaço na obra literária. Para atestar o interesse da viagem no nosso país, o Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho organizou, nos dias 28 de fevereiro e 1 de março de 2013, o colóquio "O Imaginário das Viagens - Literatura, Cinema, Banda Desenhada". O evento reuniu cerca de 50 investigadores ligados a múltiplas áreas das ciências humanas e sociais, refletindo sobre as poéticas e configurações imaginárias da viagem na literatura, no cinema e na banda desenhada: ficção arturiana, Märchen, travel writing, ficção científica, narrativa de aventuras (o romance de aventuras desde Defoe, o cinema, a literatura popular e a paraliteratura, a banda desenhada). Da mesma forma, o Grupo Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, com o Grupo “Locus, Spaces, Places, Landscapes” parece começar a interessar-se por estas temáticas, nomeadamente a linha de investigação que une o turismo e a Literatura. A organização da conferência Lit&Tour: Conferência Internacional sobre Literatura e Turismo, em Novembro de 2012, dá-nos disso conta e, no nosso país, o interesse pela investigação na área da Geografia Literária parece começar agora a despertar. Este renovado interesse da Literatura pelos métodos geográficos parece dar agora passos mais firmes, nomeadamente no Instituto de estudos da Literatura Tradicional, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, com a linha de investigação coordenada pela Ana Isabel Queiroz, Atlas das paisagens Literárias de Portugal continental, que tem redundado em preciosos contributos. Por último, gostaríamos de sublinhar duas iniciativas programadas para o ano de 2015. De 19 a 21 de janeiro de 2015, na Faculdade de Letras de Lisboa, congratulamo-nos com a organização do III Congresso Interdisciplinar Li-

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teratura, viagens e turismo cultural no Brasil, em França e em Portugal 24 e, de nos dias 23 e 24 de abril, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, o Colóquio Luso-Francês Géographie, langue et textes littéraires: écrire le lieu, fictionnaliser l’espace, encontros científicos que contribuem para a consolidação da importância dos métodos geocríticos na renovação e na perenidade da Literatura de Viagens. Para ilustrar a renovação e as virtudes desta metodologia, apresentamos um exemplo de cartografia temática realizada no âmbito da tese de doutoramento que apresentámos à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, intitulada “Pela Espanha alheia: espaços vividos, espaços ficcionados”. Nesse trabalho, a análise das narrativas de viagem de autores portugueses a Espanha entre 1850 e 1900 e o levantamento toponímico efetuado permitiram elaborar uma vasta cartografia que nos deixou antever e compreender de forma mais aprofundada algumas das caraterísticas fundamentais dos relatos de viagem portugueses a Espanha e da construção da identidade espanhola. Em primeiro lugar, seja uma descrição panorâmica, fragmentária ou de passeio, as cidades são sempre um momento de paragem e de descrição obrigatória para os viajantes portugueses, concentrando toda a sua atenção. E através das descrições criaram-se verdadeiras imagens literalizadas das cidades, imagens essas que perduram até hoje, sob a forma de memórias turísticas. De facto, “la ciudad española puede llegar a ser también de esa forma, un edén para el romántico. Como lo es Granada en la prosa de Chateubriand. (. . . ) Granada, Sevilla, Cádiz, Córdova o Ronda: ciudades románticas por excelencia, ciudades que quedaron indeleblemente grabadas en la imaginación y en la memoria del viajero.”316

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Fig. 1: Cidades espanholas visitadas pelos viajantes portugueses (1850-1900)

O mapa da Fig. 1 permite compreender quais as cidades mais valorizadas e, atendendo aos vazios encontrados, as cidades cuja visita os viajantes portugueses menosprezam. A nível regional, destacam-se nitidamente como espaços mais percorridos os percursos por Castela ou pela Estremadura, com destino a Madrid, e posterior visita, quase obrigatória, ao Escorial. Na sequência da visita a Madrid, nota-se igualmente a prevalência dos roteiros com destino aos países europeus, quer pelo País Basco, quer, quando as guerras carlistas não o permitiram, pela Cantábria. Um outro roteiro relevante é o que leva os viajantes rumo ao Sul de Espanha, sobretudo às cidades da Andaluzia, Sevilha, Granada, Córdova, Cádis e Málaga. Nota ainda para as cidades do litoral Mediterrâneo, visitadas por barco em direção à Catalunha, nomeadamente www.lusosofia.net

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a Barcelona e, finalmente, para a Galiza, sobretudo o litoral. Uma colação deste mapa com um mapa do caminho de ferro deixa-nos sobretudo antever a perfeita coincidência entre as principais cidades visitadas e as cidades atravessadas pelas linhas ferroviárias. Os percursos preferidos pelos viajantes portugueses são os que em direção à capital, Madrid, e em direção aos restantes países europeus, constituem os eixos ferroviários principais e os mais importantes corredores de circulação na época, no seio da Península Ibérica. Em contrapartida, Uma outra colação com o mapa das Províncias espanholas permite isolar os espaços não frequentados pelos portugueses. Desde logo, a Norte, as Astúrias, Navarra e Huesca. E no Centro da Península, a Rioja, Guadalajara, Teruel, Cuenca, Albacete e Jaén. Os métodos geocríticos permitiram-nos mais facilmente compreender que há um predomínio de referências, em primeiro lugar e à escala regional, às regiões de Castela e de Andaluzia e, em segundo lugar, à escala local, à cidade de Madrid e às cidades andaluzas (Sevilha, Granada e Córdova). Ainda à escala local, a cartografia temática também nos permitiu concluir que os itinerários percorridos, os monumentos visitados e os temários abordados pelos viajantes portugueses são estereotipados e convivem com vazios geográficos, ou com territórios menosprezados. A insistência das narrativas portuguesas na visita e no discurso sobre determinados espaços estereotipado coincide com a codificação de uma retórica nacionalista espanhola, cuja construção era partilhada também por alguns dos mais influentes intelectuais espanhóis, com quem os portugueses mantinham contactos e amizades, como Juan de Valera, Emílio Castelar, Benito Perez Galdós, e essa narrativas contribuirão, em definitivo, para a construção da identidade espanhola, pela repetição de imagens estereotipadas e de itinerários estandardizados que se transformarão nos locais frequentados pelos turistas atuais.

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Bibliografia ARROYO ILERA, Fernando (2008), “Geografía, Literatura e ideología en la segunda mitad del siglo XX: las “Guías de España” de Ediciones Destino”, in Estudios Geográficos, Vol 69, No 265, pp. 417- 452. BAILLY, Antoine (1977), La perception de l’espace Urbain, Paris, Centre de Recherche d’Urbanisme. BAILLY, A e SCARIATI, R. (1990), L’Humanisme en Géographie, Paris, Armand Colin. BARON, Christine (2011), “Littérature et géographie : lieux, espaces, paysages et écritures ”, in LHT , Littérature, Histoire Théorie, N˚8, disponível em http://www.fabula.org/lht/8/index.php?id=221. BASSNETT, Susan. (1995) Comparative Literature. A Critical introduction, Oxford UK & Cambridge USA, Blackwell. BELLER, Manfred e LEERSSEN, Joep (org.) (2007) Imagology. The cultural construction and literary representation of national characters. A critical survey, Amsterdam, Rodopi. BESSE, Jean-Marc (2000) Voir la Terre. Six essais sur le paysage et la géographie, Arles, Actes Sud. __________(2003) Face au monde. Atlas, jardins, géoramas, Paris, Desclée de Brouwer. __________(2006) Ver a terra. Seis ensaios sobre a paisagem e a Geografia, Sao Paulo, Editora Perspectiva. __________(2010) La sombra de las cosas. Sobre paisaje y Geografia, Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 2010. BRANDIS, Dolores (2010), “Los relatos de viajes en la construcción de la imagen de la ciudad. Itinerarios de viajeros extranjeros en el Madrid de los siglos XVI, XVII y XVIII”, in Ería, Revista Cuatrimestral de Geografía, Oviedo, Ediuno, no 83, pp. 311-325. BROSSEAU, Marc (1993), “ La géographie olfactive ou le flair romanesque ”. dans CHEVALIER, M. (dir.) La littérature dans tous ses espaces, Paris, Éditions du CNRS, (coll. Mémoires et documents), pp.87-101.

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A viagem imaginária do humanista Luis Vives (Somnium Vivis, 1520)1 Alexandra de Brito Mariano Universidade do Algarve CLEPUL

Resumo: Os sonhos (somnia) são parte de uma extensa tradição literária cultivada desde a remota Antiguidade e que se estende até à contemporaneidade. Nesta apresentação pretendemos revisitar um conjunto de sonhos detendo-nos, em particular, no sonho, ou viagem imaginária, do valenciano Juan Luis Vives. Texto fundamental deste representante maior do Humanismo, o Somnium Vivis, radica na fonte ciceroniana, reflecte as preocupações do seu autor relativamente à educação e exercerá influência indiscutível no corpus da sátira humanista posterior. Palavras-chave: Humanismo, Juan Vives, Somnium Vivis, viagem, educação.

O dispositivo literário de contar ou descrever um sonho, associando-o com frequência ao motivo da viagem, foi bastante popular entre os escritores antigos. Os sonhos (somnia) fazem parte de uma tradição que foi acarinhada desde a Antiguidade – basta para tal, e na literatura latina, recuar até Énio (séc. III a.C.)2 – e que tem como epígono o Sonho de Cipião (Somnium Scipionis) com que Cícero conclui o seu famoso diálogo De Republica (séc. I a.C.). Este 1 Este texto é uma versão abreviada da comunicação apresentada no Congresso Internacional “Os fundamentos de uma Europa sem fronteiras: para o sentido universal do humano”, realizado nos dias 13 e 14 de maio de 2014, na Universidade de Évora. 2 Cfr. o célebre sonho de Énio, com o poeta grego Homero, no canto I, fragmentos 2 a 8 dos Anais.

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género de textos ficionais permeou a Idade Média, estendeu-se pelo Humanismo e interessou autores de épocas posteriores. Passarei em breve revista um conjunto de sonhos, sobretudo humanísticos, cujo modelo não é marcadamente ciceroniano, bem como alguns textos inspirados directamente pelo Sonho de Cipião3 , para me deter no Somnium do humanista valenciano Juan Luis Vives; texto que é um prefácio à sua edição e comentário (ou Vigilia) sobre o texto de Cícero – i.e. obra publicada com o título Somnium et Vigilia in Somnium Scipionis, muito elogiada por Thomas More e, sobretudo, por Erasmo, mestre do Valenciano em Lovaina e de quem este se tornou amigo. Podemos afirmar, de forma genérica, que determinados "Sonhos"de autores humanistas sustentam na base um interesse filológico, outros reflectem preocupações científicas específicas da época em que foram escritos. De entre os primeiros, é possível destacar os dois "Sonhos"com que Petrus Nannius (1496-1557), professor de latim no Colégio Trilingue de Lovaina, inicia os seus cursos sobre os poetas latinos Virgílio e Lucrécio, em 15454 . Outro exemplo, bem mais famoso, é o Somnium da autoria do filólogo e humanista flamengo Justo Lípsio, cuja edição princeps de 1581, foi impressa na tipografia plantina em Antuérpia. Lípsio, imitando a Apocolocintose de Séneca, introduz o leitor numa reunião do Senado onde autores, como "Salústio"e "Ovídio", entre outros de épocas variadas, discutem o problema dos editores e filólogos excessivamente zelosos que corrompem os textos clássicos com emendas e alterações que considera infelizes e desnecessárias. De entre os testemunhos de cariz mais científico, podemos referir Saturnalitiae cenae variatae somnio somnium sive peregrinatione coelesti do teólogo Libert de Froidmont (1587-1653), exemplo de resistência e contestação às ideias de Galileu, publicado em Lovaina em 1616; ou outro sonho, mais interessante, Somnium seu de astronomia lunari, de Johannes Kepler (1571-1630), escrito em 1609 mas publicado postumamente, após a morte do seu autor, em Frankfurt, no ano de 1634. O Sonho de Kepler, mais conhecido e lido que o referido anteriormente, é considerado uma das pérolas literárias da história da ciência e da história do livro, pelo contributo significativo que traz para o estudo da 3

Da vasta bibliografia sobre este texto do Arpinate, sua importância e influência cfr. Pereira, 2010. 4 Respectivamente sobre Virgílio e sobre Lucrécio: Somnium sive Paralipomena Virgili: res inferae a poeta relictae e Somnium alterum, in liber II Lucreti praefatio.

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astronomia, geografia lunar e física em geral. Parte fantasia, parte tratado científico, neste texto testemunhamos o lançamento de um foguete, que deixa a Islândia com destino à lua, permitindo a possibilidade de Kepler defender, em simultâneo, a doutrina de Copérnico sobre o movimento da terra. Os testemunhos revistos inscrevem-se na tradição ficcional dos somnia humanísticos (e da viagem onírica por excelência) e constituem um pequeno exemplo da vasta produção literária neolatina pós 1400 (Ijsewijn & Sacré, 1998) cuja matriz literária não radica especificamente no Sonho de Cipião de Cícero. Um exemplo de influência directa da narrativa do Arpinate é, sem dúvida, a obra de Juan Luis Vives Somnium et Vigilia in Somnium Scipionis editada em Antuérpia em 1520. Na primeira parte, Somnium, como veremos em pormenor, o autor irá incluir-se como personagem e viajar para o reino dos sonhos descrevendo mirabolantes peripécias. Trata-se, pois, de uma narrativa jocosa, satírica, em clara oposição à segunda peça do livro, Vigilia in Somnium, de tom mais sério, em que o Valenciano discute as implicações filosóficas da obra ciceroniana5 . Luis Vives nasceu em Valência, em 1492 (ou 1493), onde estudou e viveu os primeiros 16 ou 17 anos da sua vida. Pertenceu à minoria de judeus conversos, cristãos novos ou "marranos", grupo que tradicionalmente gozava de boas relações económicas e sociais com a nobreza local, mas que foi perseguido e dizimado com a chegada da Inquisição em 1484. A família do futuro humanista não foi poupada e o Valenciano decidiu procurar refúgio no exílio; nunca mais regressaria a Espanha. As vicissitudes por que passou, fruto das perseguições inquisitoriais, seriam semelhantes às sofridas por um conjunto alargado de letrados que deixaram a acossada Península Ibérica e procuraram uma Europa mais tolerante. Viveu em vários países, aceitando o imperativo da mobilidade como parte da sua vida, à semelhança de outros humanistas seus conterrâneos: esteve na França (em Paris), na Inglaterra (em Oxford e Londres) e na Flandres (em Lovaina e Bruges) onde morreu em 1540. Comumente considerado uma das figuras cimeiras da res publica litterarum, 5

Duarte de Resende, fidalgo letrado parente de João de Barros (Déc. III, liv. V, cap. X), deixou-nos uma tradução em língua vulgar do Sonho de Cipião de Cícero que saiu dos prelos do mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, em 1531, passados onze anos da publicação do Somnium de Vives, numa altura em que a obra do valenciano estava bem representada nos meios cultos portugueses.

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em conjunto com nomes como Budé, More e Erasmo. Vives foi, na verdade, depois de Erasmo, o humanista mais lido do século XVI, alcançando o interesse de leitores em toda a Europa e até mesmo nas possessões europeias da Ásia e América (González González, 2008: 20 ss)6 . Vives estudou na sua cidade natal e, mais tarde, na Universidade de Paris, entre 1509 e 1512, onde sabemos, pela correspondência trocada com Erasmo, que terá conhecido o letrado eborense, o eclesiástico Martinho de Portugal (Bataillon, 1952: 62). Mais tarde o Valenciano obterá o lugar de professor de humanidades na Universidade de Lovaina, onde terá permanecido entre 1515, pensa-se, e 1523 (se bem que, a partir de 1512, o seu segundo lugar de residência tenha sido Bruges, onde tinha familiares e amigos). Neste período, em particular entre 1519 e 1522, Luis Vives publicou uma série de obras onde podemos encontrar exemplos teóricos e sugestões mais concretas das suas ideias para a educação e para a preservação da tradição clássica. O Somnium, de Março de 1520 – que acompanha o comentário (ou Vigilia) sobre o Sonho de Cipião, como já referimos – é uma destas experiências literárias. Ficção, a que Edward George apelida viagem fantasiosa ou imaginária (George, 1991: 335), que consiste numa excursão nocturna ao reino do deus Sono, onde ocorrem vários acontecimentos que podem ser relacionados, de forma mais ou menos directa, com as expectativas do Valenciano relativamente a uma reforma na educação; nesta perspectiva, estes acontecimentos podem ser lidos, igualmente, como uma procura de abertura de novos caminhos, uma lufada de ar fresco, num sistema educacional que o humanista considerava parado, anquilosado. Devemos notar que, um ano antes em 1519, já em Lovaina, Vives escrevera um texto de maior folgo que granjeou, igualmente, elogios de More e Erasmo: o tratado Contra os pseudodialécticos (In pseudodialecticos). Sem entrarmos em considerações sobre a famosa polémica entre escolásticos e humanistas (González González, 1998: 13-40), podemos afirmar, sumariamente, que a obra é um ataque acutilante contra o obscurantismo e o repúdio do palavreado então em uso nas escolas dialéticas parisienses. Aí se analisa a necessidade de purificar a língua latina, eliminando barbarismos lógicos e procurando estabelecer currículos académicos mais clássicos e adequados à 6

O estudioso jesuíta André Schott (Andreas Schottus), na sua Hispaniae Bibliotheca (Frankfurt, 1608) considera-o uma das três figuras cimeiras da res publica litterarum, em conjunto com Budé e Erasmo.

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realidade do que aqueles que eram à época habitualmente seguidos. Assim, não é inusitado que o Somnium Vivis, publicado um ano depois, espelhe as reflexões e as aspirações do seu autor por uma reforma na educação e um regresso ao que considera os seus princípios fundamentais. Atentemos então em pormenor no Sonho de Vives e, a começar, no contexto que sustenta a sua redação. Corria o ano de 1520 quando Luis Vives, numa tentativa de captar a atenção dos alunos para a novidade dos seus cursos na Universidade de Lovaina, decide dar algumas palestras sobre textos clássicos. Decide-se pela explicação do Sonho de Cipião e submete pedido ao Senado. A resposta será favorável pelo que poderá ensinar na Faculdade das Artes, mas não sem que o seu pedido tenha gerado um episódio caricato na Academia, uma vez que o órgão académico consultado desconhecia a obra ciceroniana em questão e, portanto, não sabia “a que faculdade pertencia a explicação dos sonhos” (sic) (Paquot, 1765: 117). A solicitação de Vives, no entanto, não era novidade na Universidade de Lovaina. Alguns anos antes o colega e amigo Martin van Dorp, que lecionava Teologia, tinha experimentado colocar em cena, nas suas aulas de latim, peças de teatro de Plauto e um diálogo dramático sobre Hércules escrito pela sua mão. Por outro lado, ao redigir um texto introdutório do mesmo tipo do que irá explicar em aula, o Valenciano segue na esteira de Ângelo Policiano (1454-1494). Sabe-se na verdade que este professor e poeta da Renascença florentina começava os seus cursos sobre Virgílio, recitando um poema da sua autoria que versava o mesmo assunto. Ora Vives conhecia bem este recurso, pois na sua própria Praelectio ao curso que proferiu sobre as Geórgicas de Virgílio referiu-o explicitamente e citou quinze versos do poema Rusticus de Policiano7 . Vives inicia, pois, a sua série de palestras com um sonho “sonhado” por si próprio. O sonho literário principia quando o autor, que se encontrava a preparar a sua apresentação, é surpreendido pela entidade Sono que, de forma repentina e abrupta, o transporta para o reino da Noite. Vives troca o mundo real pelo da ficção, assume o papel de personagem na narrativa procurando, com o artifício, trazer graça e a verosimilhança possível ao texto. Simultaneamente aproveita o ensejo – como duas décadas e meia mais tarde Petrus 7

Nas quatro lições inaugurais em hexâmetros latinos a que intitulou Silvae, Policiano trata da obra virgiliana (Manto), da obra homérica (Ambra), do género geórgica (Rusticus) e, mais largamente, da poética e dos poetas (Nutricia). São quatro poemas didácticos. (GALLANDHALLYN & HALLYN, 2001: 134-135).

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Nannius, no Somnium já referido –, para ridicularizar os estudantes da Universidade de Lovaina. Neste caso, não pelo seu gosto pela bebida, pelo jogo dos dados, ou pelos encantos do amor, mas sobretudo pelo laxismo e proverbial distração. E diz: Ontem à noite, meus jovens estudantes, enquanto preparava para vós a exposição sobre o Sonho de Cipião, eis que o Sono de repente me trouxe à sua casa e me mostrou o próprio Cipião que dormia, e mandou-me pedir-lhe uma explicação de todo esse celebrado sonho, que provocou estas noites sem dormir. A minha tarefa seria pôr-vos a par de tudo desde o começo e descrevervos o templo dessa divindade, em honra de quem tantas vezes e de tão bom grado fizestes votos, de modo a que não desconheceis esse lugar onde, de espírito leal e prazenteiro, tantas vezes aparecestes para vos envolverdes em ritos sagrados8 .

Após esta irónica invectiva inicial, o escritor descreve detalhadamente a sua viagem: a arquitectura do lugar, os seus habitantes, os deuses presentes e sua genealogia, animais e hábitos de dormir, as plantas do jardim e suas propriedades medicinais. Este reino é dominado pela Noite, a mais antiga das rainhas que o reserva para si e onde mora, compartilhando o governo com seu filho o Sono. É aqui que ele construiu o seu palácio de ébano, pois nenhuma cor lhe agrada a si e à sua mãe, a não ser o negro (I, 5). O porteiro e o mordomo do palácio do Sono são o Repouso (Quies) e o Silêncio (Silentium) que estão encarregues de afastar todo e qualquer ruído. Guardam a casa de cochichos, murmúrios, sussurros e de todos os barulhos e vozes. Vives descreve os arredores do palácio como a terra dos cimérios, de onde estão ausentes sons humanos e animais e onde eram unicamente audíveis o suave murmúrio das águas do rio Letes, num irresistível convite ao sono (I, 7), e o zumbido dos mosquitos que surgiam após os lautos banquetes e pairavam sobre o leito da divindade (I, 8). Aqui vive o Sono com sua mulher Tranqui8 Nas citações, seguiremos o texto latino da edição de Edward George (Vives, 1989). Hesterna nocte, studiosi iuvenes, cum de enarrando vobis Scipionis somnio cogitarem, Somnus me suam in aedem repente induxit ipsumque somniantem ostendit Scipionem, ex quo me iussit percontari totius illius lucubrati et vigilati somnii enarrationem. Operae pretium fuerit singula a capite ipso cognoscere et describere vobis templum illius dei, cui vos tam crebro tam libenter sacra facitis, ne ignoretis eum locum in quem piis {et condulcoratis} animis operaturi saepe convenitis.(I, 1) Sobre este passo, cfr. também George, 1991: 337-338.

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lidade (Securitate) e as suas filhas Ociosidade (Ignavia), Apatia (Inertia), Torpor (Torpor), Esquecimento (Oblivio), Preguiça (Desidia) e a tutora Letargia (Veternus) (I, 8-9) – a lembrar as companheiras de Mória que desfilam na obra homónima de Erasmo , cuja primeira versão foi composta nove anos antes (Erasmo, 2012: 157), que certamenteVives conheceria. Após uma descrição do poder irresistível do Sono sobre os deuses e os mortais, o deus apresenta-nos os seus satélites, i.e. os sonhos que o acompanham. Depois, enquanto sonhador, o Valenciano participa num debate no Senado romano (II), espaço onde se passará a acção do já referido Sonho da autoria de Lípsio publicado cerca de 60 anos mais tarde. Pitagóricos, platónicos e estóicos intervêm na discussão. Todos defendem qualidades proféticas para os sonhos, argumentando que os erros que possam surgir se devem à fragilidade e à errónea percepção humana. Em seguida (III) assistimos ao despertar do próprio Sono, devido ao barulho provocado pelos “sofistas”, ou seja os escolásticos. O deus repreende severamente Repouso e Silêncio “por terem introduzido no palácio tal ralé” (quod tam garrulum genus hominum intromiserint III, 39). Repouso e Silêncio, prostrando-se junto à cama do seu senhor, pedem-lhe perdão pelo lapso e argumentam, em sua defesa, que: Alguns sofistas de Paris os tinham enganado infamemente, porque, como não falavam grego ou latim, ou qualquer língua que eles conhecessem (e eles conheciam todas as línguas humanas e só ignoravam a divina), julgaram que eles seriam, certamente, super-homens ou deuses uma vez que sua fala era de tal género que não podiam fazer mais nada a não ser votar-lhes respeito e reverência, introduzindo-os não na sala do trono do Sono, mas no quarto dos sonhos, onde eles [os sofistas] procuravam entrar9 .

A justificação não satisfaz o deus que ordena a expulsão e exílio dos escolásticos; esta decisão acarreta a revolta da maioria dos sonhos que se lhes querem juntar na demanda. O Sono insiste então que um número suficiente de sonhos deve permanecer, para realizar as tarefas que forem necessária, e dá 9

Narrant sophistas esse illos Lutetianos, a quibus sibi esset infeliciter impositum, quippe cum nec graece loquerentur nec latine nec lingua aliqua quam ipsi nossent (noverant autem humanas omnes), divinam vero solam ignorarent, putarunt istos plus esse quam homines, deos plane quosdam, qui sic loquerentur; non potuisse aliter facere quin et reverendissime eos non ad ipsius quidem Somni, sed ad somniorum cubiculum, quo pervenire magnis conatibus contendebant, introducerent. (III, 39).

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aos restantes a liberdade de partirem para onde entenderem. À semelhança do episódio inicial, onde Vives critica os seus alunos de Lovaina, aqui é o deus Sono que achincalha os “sofistas” de Paris, descrevendo como são obrigados a abandonar o seu palácio, onde causaram grande pandemónio, e de onde se recusaram a sair sem a companhia dos seus amigos, os sonhos (III, 40). Lê-se, na verdade, nova crítica mordaz à Academia, desta feita à parisiense e seus Doutores, tal como sucede na obra In psudodialecticos (Fantazzi, 2008: 101-102), cuja inabilidade e incapacidade para provarem as suas proposições através de palavras comuns e normais, os levava a torcer a língua e a inventar significados de palavras contrários ao costume e convenções em uso, para simular terem vencido nos debates, quando não eram compreendidos. Esta descrição do funcionamento do mundo cimério e das várias figuras mitológicas envolvidas que encontramos no Somnium Vivis remetem-nos, por um lado, para o catálogo de topoi clássicos sobre a noite, a morte, o sono e os sonhos, por outro, a excursão noturna de Vives e os vários eventos que ocorrem devem, igualmente, ser lidos à luz das suas expectativas de uma reforma educativa coeva, como já referimos. Não obstante, na viagem onírica de que é o protagonista, Vives é uma entidade praticamente inexistente (George, 1991: 341) até a visita já estar bastante adiantada, mais precisamente até ao momento em que Insomnium (a Insónia), uma das seguidoras do Sono, o reconhece: Insónia, depois de ter olhado atentamente para mim, reconheceu-me como um colega. – Olá – disse-me – Tu és Vives a quem eu muitas vezes convenci em amistosos debates, agora com Cícero, depois, com Quintiliano, em Paris ou em Valência? – Esse mesmo Vives – disse eu. Mas por favor vamos ter com Cipião e depressa.10

O Valenciano pede, então, a Insónia para o levar a Cipião, epígono das virtudes civis e militares da República Romana. O humanista quer saber o significado do sonho. É então conduzido a uma sala onde o seu guia descreve 10 (...) Insomnium, et cum attentius perspexisset, agnovit congerronem. "Papae! tu es Vives,"inquit, "cui ego soleo saepe persuadere eum modo cum Cicerone modo cum Quintilian, tum Parisiis tum Valentiae (...) versari et suavissime disputari?Ipsissimus,"inquam; sed ad Scipionem, quaeso te, celerius"(IV, 46)

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uma série de habitantes conhecidos do reino do Sono. Entre eles encontramse alguns dos mais famosos dialéticos e lexicógrafos do final da Idade Média e início do Renascimento, como Ockham, Paulo de Veneza e especialmente Juan Duns Escoto. O encontro com Cipião, porém, não corre nada bem. Cipião parece não ter paciência para atender o pedido do Valenciano: “Vai-te embora o mais rápido possível, – disse ele –, porque já não sei neste momento o que sonhei, nem quero agora prestar atenção a sonhos (Abi, inquit, quam primum, nam nec satis scio quae somniare, nec vacat mihi in praesentia ut somniis animum intendam (IV, 48). Só depois de alguma insistência Cipião Emiliano aponta para um homem que o sonhador reconhece como Cícero. Gera-se maior confusão e acentua-se o registo cómico. Cícero confunde Vives com um cidadão romano e envolve-se num litígio (sobre a reabilitação dos Estudos Clássicos) entre duas fações, uma que está a favor de Cloto e a outra de Átropos, pretendendo ambas ganhar a simpatia da terceira moira, Láquesis (V, 54 sgs.). Cloto, que representa o presente, tenta persuadir Láquises, que retrata o futuro, das vantagens em se manter a situação actual. Os amigos de Cloto, que são homens comuns sem posição ou prestígio, argumentam que não há necessidade de mudança, pois não se deve abandonar o antigo em benefício do novo (non oportere aliquid mutari, non esse vetera propter nova relinquenda. V, 56). Os seguidores de Átropos – que representa o passado –, pelo contrário, pertencem ao escol da sociedade, ao grupo dos melhores e mais nobres homens e incluem nas suas fileiras escritores cristãos, como S. Paulo, Jerónimo, Ambrósio e Agostinho, e também alguns notáveis pagãos, ??como Aristóteles, Platão, Virgílio, Séneca e . . . Cícero. Estes usam argumentos mais elaborados e sistematizados e contratam os serviços do Arpinate para os apresentar perante a assembleia. Cícero, numa exposição muito curta e persuasiva, defende Átropos, denuncia os seus opositores e termina a sua exposição pedindo a Átropos que continue a envidar esforços para restaurar o passado. Láquesis, por fim, prepara uma disposição promulgando a reabilitação da tradição clássica na educação. Há um consenso e aprovação entre os contendores, tal como no céu, onde Cícero e Vives são, desta feita, admitidos. Os deuses prometem limpar a terra, e o novo acordo é considerado como uma espécie de restauração da Idade de Ouro. Neste ponto do enredo, Vives usa o Orador para atacar novamente os escolásticos. O sofisma pueril que Cícero identifica entre os seguidores de www.lusosofia.net

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Cloto, juntamente com o declínio acentuado no estudo de línguas antigas, da filosofia e das artes que o escritor e estadista romano destaca cruamente, é o mesmo que o Valenciano atribui aos dialécticosi.e.aos escolásticos seus contemporâneos. Contudo Luis Vives continua ainda, neste último estádio do seu sonho, interessado em saber o significado do Sonho de Cipião, o significado do sonho do homem que tão profundamente reverencia. “Não irei ignorar o teu pedido” (Quare nec tibi id me roganti deero ..., VI, 64). – responde-lhe Cícero. No entanto, em vez da esperada explicação sobre o significado do Sonho, a única informação que o Valenciano consegue recolher de Cícero é um breve resumo do Somnium Scipionis, e com este resumo a narrativa é abruptamente interrompida. “Sinto-me mais relaxado agora, pois neste momento deixei de sonhar e de estar acordado [estar com insónias]” (Solutior iam sum aliquanto: hac enim ipsa hora et somniare desii et vigilare) desabafará Vives na carta (Epistula 7) que escreve ao seu amigo Frans van Cranevelt, o futuro Chanceler de Mechelen, imediatamente após ter enviado a sua obra para o editor. Terminaremos também a nossa apresentação, defendendo sinteticamente que as ideias éticas e práticas da Antiguidade, uma parte essencial da herança clássica que estão presentes no texto do Arpinate, são perfeitamente adequadas à utilitas que Vives considera o objetivo de toda a educação. O entusiasmo que revela pela narrativa ciceroniana – que entende como a mais elegante e erudita de tudo quanto o Orador escreveu; um pequeno treino para doutrina e instrução do príncipe perfeito11 – é manifestamente evidente desde o início da sua ficção. No entanto a seriedade que encontramos no texto de Cícero não tem paralelo no Somnium de Vives, nesta viagem fantasista, onde o delirante ambiente circundante, a atenção festiva que atribui ao deus Sono, a confusão persistente sobre o significado dos sonhos, os debates eternamente indecisos, mergulhados num contínuo tom humorístico, são propícios a que tudo convirja para conceder um esteio brincalhão à totalidade da narrativa, que irá influenciar, de forma inegável, o corpus posterior da sátira humanista.

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quo libello, perfectus et absolutus in re publica princeps instituitur atque formatur. Nullumque est in tota philosophia praestabilius opus atque divinius. (Pref. Epist. 5) - “a obra em que o príncipe é ensinado e formado em perfeição completa nos assuntos do Estado; pois não existe obra mais distinta ou divina em todo o corpus filosófico”. Cfr. também Vives, 1946: 604, 630.

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Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto Elisama Soraia Sousa de Oliveira Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto

Resumo: “Peregrinação: o ideário humanista de Fernão Mendes Pinto” é o título que enforma este artigo. Este texto deflui das reflexões e indagações doutrinárias relativas, entre outras problemáticas, à alocação periodológica da Peregrinação. Postergada pela história literária, a Peregrinação viveu na penumbra durante trinta e um anos, embora, em bom rigor, esses trinta e um anos se tenham perpetuado, de tal forma que atualmente a atenção dedicada ao seu estudo é ainda diminuta. Mais do que dar conta das controvérsias a propósito da obra de Fernão Mendes Pinto, pretende-se esboçar um exíguo estudo centrado nas sempre difíceis questões de afetação periodológica e, consequentemente, estético-literárias. Palavras-chave: Fernão Mendes Pinto; Peregrinação; História Literária; Maneirismo; Barroco.

CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS Convocando as palavras de Gabriel Garcia Márquez, “Aquele que não tem memória arranja uma de papel” e Fernão Mendes Pinto (FMP) assim o fez. Não que fosse falho de memória, mas, efetuando um curto exercício de exegese,

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podemos aduzir que esta memória de papel não é mais do que o ideário onde o autor coloca as suas experiências e saberes humanistas1 . Resta dizer que se encontram diluídos no corpo deste trabalho os tópicos orientadores utilizados na sua redação, a saber: dados biográficos de FMP; a Peregrinação nas Histórias da Literatura Portuguesa; contributos para uma análise crítica da Peregrinação e sua alocação periodológica. Por fim, reservase um espaço para as considerações finais, onde serão apresentadas ponderações de natureza retrospetiva e prospetiva, aprazando as vicissitudes que ensombraram a Peregrinação. Importa salientar que, dada a amplitude temática que abrange, este trabalho carece de lavra de maior aprofundamento.

FERNÃO MENDES PINTO: DO HOMEM QUE SOBREVIVEU COMO PERSONAGEM Ironicamente Fernão Mendes Pinto ao talhar a personagem homónima subjacente ao texto da Peregrinação estava a construir-se a si mesmo enquanto personagem. É, pois, como personagem da sua própria história que FMP tem permanecido vivo, rindo da morte. Ora Mendes Pinto apresenta um desafio para qualquer biógrafo: do autor pouco se sabe, o que se pensa conhecer é, não raro, dúbio e baseia-se maioritariamente na sua única obra. Há, porém, documentos escritos que servem de suporte a algumas informações sobre FMP, mas ainda assim escassos2 . Aníbal Pinto de Castro (2001) e Catz (1981) situam o nascimento de FMP entre 1509 e 1511, em Montemor-o-Velho, facto que se justifica através do texto da Peregrinação, em que o autor afirma que tinha dez ou doze anos quando D. Manuel I morreu (1521) (Pinto, 1983: 14). 1

Humanistas no sentido de mundividência utilizado por Aguiar e Silva. O valor humanitário e axiológico espelhado na Peregrinação é também salientado por Aníbal Pinto de Castro (1984) na sua introdução à Peregrinação. 2 Tratam-se das cartas de Fernão Mendes Pinto e dos padres Belchior de Nunes e Diogo Mirão, que, não isentas de controvérsia (Freitas, 1929: 53-65: “Certamente por já não pertencer à Companhia o seu autor, esta carta (a de 5 de Dezembro) foi totalmente eliminada”), fornecem alguns dados biográficos importantes, como observa Adolfo Casais Monteiro na “Nota prévia às cartas”, que acompanhou a edição de 1952, da Peregrinação. Catz (1981) adianta que existem três cartas escritas por FMP, uma das quais inédita (à data de 1981), com conteúdos essenciais para perceber o período de 1551 a 1557.

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Proveniente de família pobre, contudo, suspeita-se (Catz, 1981), de origens abastadas – o que justificaria a sua vinda para Lisboa, embora seja uma hipótese rejeitada por vários estudiosos, como Pinto de Castro (1999, 2001). Assim, para fugir à “miséria e estreiteza da pobre casa” (Pinto, 1983: 14) é levado, em 1521, por um tio para Lisboa, onde serviu uma “senhora de geração assaz nobre” (idem, ibidem: 14). Pouco tempo depois, sucedeu-lhe um caso que lhe “pôs a vida em tanto risco, que para a poder salvar” foi obrigado a sair “naquela mesma ora de casa” (idem, ibidem: 14). Após este episódio, que FMP não explica razoavelmente, embarcou numa caravela com destino a Setúbal. No trajeto até lá, a sua embarcação foi assaltada por corsários franceses e, durante treze dias, ficou cativo destes piratas (Castro, 2001, 1999 e Catz, 1981). Começam, desta forma, os trabalhos e fortuitas aventuras de FMP. Finda esta desventura, é acolhido em Setúbal por um fidalgo de nome Francisco de Faria que, grato pelos serviços prestados por Pinto, o recomenda a D. Jorge de Lencastre, filho bastardo de D. João II. Todavia, volvidos quatro anos, e com o incentivo do mau ordenado que auferia, FMP decide embarcar para a Índia, em busca de melhores condições de vida. Após este incipit narrativo, parte para a Índia, em 1537, de onde só regressaria em 1558, não sem antes ser soldado, escravo, negociante, embaixador, médico, missionário, entre outros cargos que por necessidade, mais do que por vocação ou preparação, exerceu (Castro, 2001). Em 1537, chega a Diu, local onde inicia a primeira etapa da sua jornada pelo oriente, que o levou depois a Meca, China, Japão, Malaca, Pegu, Samatra e Java. Durante vinte e um anos, FMP peregrinou pelo Oriente, das intempéries que povoam a sua história salienta-se a breve passagem pela Companhia de Jesus em 1556, ainda envolta em mistério e alvo de débeis atentados hermenêuticos (Castro, 1999, 2001). Quando, em 1558, regressa a Portugal, no reinado de D. Catarina, tenta, sem sucesso imediato, adquirir uma tença por serviços prestados à coroa. Desiludido retira-se para a quinta do Pragal, em Almada, onde casou com Maria Correia de Brito. A tença, essa, viria a receber meses antes de falecer, em janeiro de 1583, pela mão de Filipe II, de Portugal (idem, ibidem). Entre 1569 e 1579, dedicou-se à escrita das façanhas e provações passadas no Oriente. A publicação do escrito foi sustida em vida do autor, vindo a lume trinta e um anos após a sua morte, em 1614. FMP legara a Peregrinação à Casa Pia dos Penitentes de Lisboa (Castro, 1999 e Catz, 1981). www.lusosofia.net

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Pinto de Castro (1999) salienta, ainda, o facto de a Peregrinação constituir um precioso recetáculo histórico já na altura em que era escrita, uma vez que vários historiadores, biografistas e cronistas, entre os quais João de Barros e um florentino (Bernardo Neri, possivelmente), pediram a FMP pormenores acerca do que viu e viveu nos reinos orientais. Atualmente a importância desta obra literária enquanto património que avulta a nossa identidade nacional ecoa nas palavras de Luís Filipe Barreto: “série documental que nos finais do séc. XVI problematiza o oriente em termos essencialmente prosaicos, buscando respostas para a condição portuguesa, para o ser e sentido de Portugal e dos portugueses no mundo” (Barreto, 1986: 102).

FERNÃO MENDES PINTO E A HISTÓRIA LITERÁRIA Se Eduardo Lourenço (1989) percebeu em FMP uma personalidade que, embora anacronicamente, poderia ter palmilhado a mesma senda que Montesquieu ou Voltaire, tendo-lhe atribuído o epíteto de “aventureiro-penitente” e assinalando a sua “inocência prodigiosa” (idem, ibidem: 1053-1062), o que escapou ao olhar da história literária que tem insistido em perpetuar o esquecimento deste autor? De facto não são muitas as obras de história da literatura portuguesa que dedicam algum espaço a FMP e as que o fazem pouco relevo lhe atribuem. Não obstante, o enquadramento de uma obra eclética e hibridamente materializada, como a Peregrinação, ao qual se alia a míngua de estudos (verdadeiramente) a ela dedicados – e não às questões de verdade, ou não verdade, historiográfica, que, malgrado o motivo, têm conseguido manter FPM em cena – torna esta labuta uma conquista de difícil alcance. De acordo com o compromisso sumariado no início da exposição, neste ponto dar-se-á lugar à concetualização da Peregrinação em algumas histórias e manuais de literatura portuguesa. Na apresentação e apreciação das histórias da literatura será utilizado o critério da ordem cronológica de cada edição. Assim sendo, a primeira história da literatura portuguesa alvo de análise será a do professor J. Simões Dias, de 1897. Simões Dias faz, na sua História da Literatura Portuguesa, uma singela referência de cariz biográfico à figura de FMP, incluindo-o nos “Géneros diversos” (Dias, 1897: 193) da secção destinada às narrativas de viagem. www.clepul.eu

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Dias faz ainda referência à obra como “historia tragico-maritima” (idem, ibidem: 193) que compara a outras narrativas coevas de índole semelhante: Itinerario, de António Tenreiro; Verdadeira informação das terras do Preste João, do Padre Francisco Alvares; e Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuitica pela Bahia, Ilheos, Porto Seguro, Pernambuco, Espirito Santo, etc., de Fernão Cardim, entre outras. Na esteira do quadro apresentado por Simões Dias, também Teófilo Braga (1914) inclui a Peregrinação no volume consignado à Renascença, que o autor designa por Segunda época. Em Historia da Litteratura Portugueza (Recapitulação), Teófilo insere FMP no capítulo quarto destinado aos “Historiadores, Viajantes, Moralistas” (Braga, 1914: 694), dedicando-lhe as primeiras quatro páginas da entrada “Viajantes” (idem, ibidem: 658-661). Também aí se confluem e debatem mais questões que têm que ver com a possível autobiografia e veracidade das aventuras narradas na Peregrinação, do que propriamente em exegeses à obra3 . Subsequentemente surge a História da Literatura Portuguesa Ilustrada (1929), cuja direção ficou a cargo de Albino Sampaio, autor que posteriormente alargou este projeto ao editar, com Agostinho Fortes, História da Literatura Portuguesa: Manual escolar profusamente ilustrado. Dos volumes desta edição dedicados ao século XVI, já se encontram algumas considerações acerca da análise da obra de FMP. Como se desvela no título, uma das novidades desta história da literatura, e motivo pelo qual adquiriu notoriedade, é o facto de fazer acompanhar as informações históricas com documentos coevos. Um exemplo fecundo dessa união é a gravura do biombo japonês, do século XVI, que retrata a chegada de FMP e Duarte da Gama a Funai (Bungo), em 15514 . Pese embora os profícuos contributos desta edição ilustrada, há algumas incoerências a apontar no que diz respeito à adequação das gravuras, e outros documentos, aos verbetes a que se destinam. No que diz respeito à sua consulta e manuseamento, esta não se afigura funcional, como seria desejável, uma vez que não apresenta índice e as referências a FMP aparecem, inusitadamente, em dois volumes. 3

Noutro plano de análise, a atenção que Teófilo coloca na “eliminação capciosa do nome de Fernão Mendes Pinto” (idem, ibidem: 660) parece vaticinar a quase elação da Peregrinação do panorama histórico-literário moderno. 4 Gravura cujo pormenor se encontra também reproduzido na revista Colóquio de Letras, o n. 74, p. 22.

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Joaquim Ferreira publica, em 1939, a História da Literatura Portuguesa, sob a chancela de Domingos Barreira. À semelhança dos seus antecessores, Ferreira coloca a Peregrinação nas “Narrativas de Viagens”, “Capítulo VI”, da “Época Clássica (Primeiro Período)” (Ferreira, 1939: 1000-1001). Facto curioso a destacar, que serviu de apanágio a outros estudiosos, é a referência feita à Peregrinação como “obra prima da literatura exótica do séc. XVI” (idem, ibidem: 473). António José Saraiva e Óscar Lopes (1996) na sua obra, homóloga às demais que aqui se têm apresentado, colocam FMP na secção da literatura de viagens ultramarinas5 . Apesar do interesse de Saraiva pela Peregrinação6 , esta história da literatura apresenta parcas informações quanto à obra de FMP. A última história da literatura a analisar será a História Crítica da Literatura Portuguesa. Vol. II: Humanismo e Renascimento. Nesta história crítica é possível encontrar avultadas referências a FMP e à Peregrinação (Bernardes, 1999: 291302, 350- 356, 361-367). Neste volume da autoria de José Cardoso Bernardes, FMP localiza-se no capítulo quinto, “A viagem no renascimento português: experiência, história e criação literária” (idem, ibidem: 291). Porém, é interessante verificar que num dos textos críticos, o de Maria Alzira Seixo7 , se aproxima a Peregrinação dos códigos maneiristas e barrocos, embora FMP seja colocado no vol. II, correspondente ao Humanismo e Renascimento, e no vol. III, do Maneirismo e Barroco (Pires & Carvalho, 2001), não se vislumbrem referências a FMP. Noutro plano de análise, o dos manuais de literatura portuguesa, seguindo a ordem cronológica de edição, podem-se encontrar, no Manual de História da Literatura Portuguesa, de Mota e Aguilar (1909), referências a FMP no Capítulo V, na entrada Literatura de Viagens. A novidade deste manual consiste em colocar FMP no século XVII, do qual data a primeira publicação da Peregrinação. Esta opção, a não ser que manifeste uma sensibilidade maneiristabarroquizante atribuída à obra de FMP, não parece muito acertada. Em 1918, surge a História da Literatura Portuguesa – Manual Escolar, de Fidelino Figueiredo. Este manual apresenta apenas uma translúcida referência de uma página a FMP. 5

Capítulo VIII, da 3.a Época: o Renascimento. Veja-se, p. ex., o artigo de António J. S. (1980), “Fernão Mendes Pinto ou a sátira picaresca da ideologia senhorial”. 7 M.a Alzira Seixo (1998) “Maneirismo e Barroco na Literatura de Viagens”. 6

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Albino Forjaz de Sampaio, autor que já demonstrara alguma propensão para o diálogo literatura-ilustração, edita juntamente com Agostinho Fortes, em 1936, a História da Literatura Portuguesa: Manual escolar profusamente ilustrado. À parte as considerações acerca da pertinência do advérbio no título da obra, descobre-se, relativamente a FMP, apenas uma entrada de cariz biográfico. Menção honrosa, para finalizar esta etapa, merecem Aquilino Ribeiro, pela sua adaptação da peregrinação – A peregrinação de Fernão Mendes Pinto (1989) –, e a equipa que deu vida ao domínio da Educação Literária, nas revigoradas Metas Curriculares de Português para o Ensino Básico (2013), por colocar a Peregrinação de Aquilino na lista de obras obrigatórias. Em jeito de síntese, ao longo do percurso efetuado constatou-se que, na generalidade, pesem embora algumas flutuações, FMP tem sido situado no período Renascentista, na literatura de viagens.

CONTRIBUTOS PARA UMA ANÁLISE CRÍTICA: PARTICULARIDADES EXPRESSIVAS E ALUCAÇÃO PERIODOLÓGICA D’ A PEREGRINAÇÃO A memória é sem dúvida a grande fonte de inspiração de FMP para a sua obra. Ao dirigi-la aos filhos como “carta de A, B, C para aprenderem a ler por seus trabalhos” (Pinto, 1983: 301), pretende que “tomem os homens motivo de se não desanimarem cos trabalhos da vida para deixarem de fazer o que devem, porque não há nenhuns, por grandes que sejam, com que não possa a natureza humana, ajudada do favor divino” (idem, ibidem: 13). E logo nesta passagem FMP nos deixa expressa a intenção moralizante, edificante, até, que inculcou na Peregrinação. Enaltece, de certa forma, a capacidade humana de superação de obstáculos, não sem antes reconhecer a força salvadora que torna possível essa redenção, da qual ele mesmo beneficiou (“dar graças ao Senhor omnipotente por usar comigo da sua infinita misericórdia, apesar dos meus pecados, porque eu entendo e confesso que deles me nasceram todos os males que por mim passaram”, pp. 13-14). FMP adverte, assim, o leitor de que a obra que escreveu é um recetáculo onde depositou o seu ideário, os seus valores, as suas aprendizagens e ensinamentos (Castro, 1984 e Lourenço, 1989). www.lusosofia.net

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Em 1614, sai das oficinas de Pedro Craesbeek a primeira edição da Peregrinação. Contudo, uma vez que é uma obra póstuma, a questão da fixação do texto interpõe-se. Como indaga Aníbal Pinto de Castro: “Que alterações terá sofrido o original até à sua impressão, durante os quais foi, aliás, manuseado por bom número de historiadores, biógrafos e curiosos?” (Castro, 1984: XXX). Efetivamente, pouco se sabe sobre a fixação do texto, o tipo e alcance das alterações introduzidas. O mesmo estudioso aponta que o manuscrito da Peregrinação não estava ainda dividido em capítulos e que as referências à Companhia de Jesus tinham sido apagadas (idem, ibidem). Talvez germinada pela ironia do trocadilho “Fernão, mentes? Minto!”, que traduz a ambiguidade instaurada pela obra entre a estória e história, a Peregrinação teve, nos anos subsequentes à sua primeira publicação, sucesso além-fronteiras. Esta obra foi traduzida para castelhano (1620), francês (1628), neerlandês (1652), inglês (1653) e para alemão (1671) (Saraiva, s/d). Com respeito ao paratexto, nomeadamente ao título do livro de FMP, não há certezas de que tenha saído, também ele, da pena do seu autor. Contudo, era um título em muito semelhante a outros da época e destinava-se a cativar os leitores, bem como os próprios editores (idem, ibidem). Várias têm sido as conjeturas levantadas a propósito do substantivo Peregrinação. A este vocábulo atribui-se maioritariamente uma conotação religiosa, que embora não excluída da obra, pelas sucessivas e sempre constantes alusões e evocações divinas (“como o antigo Salomão recebeu a nossa Rainha de Sabaa”, p. 22; “Deus, Nosso Senhor”, p. 139; “ó Bendito sejais meu Senhor Jesus Cristo”, p. 142; “onde chegou quase às Ave Marias”, p. 166), não será a única hipótese de leitura. Conforme Arnaldo Saraiva (s/d), o vocábulo poderá estar ainda associado, não só à composição escrita da narração, que para FMP, não acostumado a estas lides, seria uma peregrinação, mas também, logicamente, às aventuras narradas. Este narrador autodiegético, que narra a história num tempo ulterior, utiliza no decurso da narrativa estratégias de economia do tempo da diegese, como por exemplo a prolepse (“prouve a nosso senhor, (. . . ) trazer-nos milagrosamente o remédio, com que assim nus e despidos como estavamos nos salvamos, como logo direi” p. 149), a elipse (“mais outras particularidades curiosas de ouvir, que não escrevo por me temer que poderei ser prolixo”, p. 258) e os sucessivos sumários em início de capítulo. O narrador da Peregrinação adquire, por vezes, um certo estatuto polifówww.clepul.eu

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nico, pois afasta-se da qualidade de narrador principal, para dar lugar a outras vozes, por isso Eduardo Prado Coelho referia a “quase total diluição do sujeito da enunciação no sujeito enunciado” (Coelho apud Saraiva, s/d: 134). Nestes casos, o leitor depara-se com o mecanismo das “vozes interpostas” (Bernardes, 1999: 299)8 . Facto atestado pela narração do sequestro da noiva chinesa (v. Cap. XXXXVIII), precedido pela carta ao seu amado (v. Cap. XXXXVII), no qual o narrador descreve com pormenor a violência dos atos dos portugueses, por oposição à pacificidade da mulher. Ou no episódio em que um menino cativo se recusa a acreditar em António Faria, quando este lhe garante que fará dele seu filho (v. Cap. LV). Consequentemente é evidente, como descrevem Bernardes (1999) e Lourenço (1989), que o autor se socorre de mecanismos técnico-compositivos para dar corpo a uma “Crítica cultural indireta” (Lourenço, 1989)9 . Ainda no plano do narrador, a preocupação com a prolixidade, tão característica da época renascentista e do respeito pelos códigos clássicos (Margarido, 1983), revela a consciência que este possui sobre os possíveis efeitos da obra no leitor. Nesta linha de pensamento, percebem-se exemplos dessa preocupação tanto nos sucessivos sumários em início de capítulo, como no cruzamento de episódios bélico-trágicos, com episódios onde abunda a pausa narrativa e, mesmo, a temática amorosa (v. Cap. CXXXXVIII). Embora, sublinhe-se, nunca sem um objetivo preciso em mente, ou seja, não apenas para que o leitor se recreie, pois, como ficou expresso na abertura da obra, FMP pretende que esta sirva de aprendizagem e produza frutos na alma de quem lê. No plano discursivo abundam na obra de FMP a hipérbole (“arremeteram a eles com uma grita tão espantosa que se ajuntava o céu com a terra”, p. 340; “e na terra o retumbar dos ecos pelas concavidades dos vales e outeiros que as carnes tremiam de medo”, p. 167); a perífrase (“estando nós a um dia do nascimento de Nossa Senhora”, p. 139); a metonímia (“as carnes tremiam 8 “eu peço-te muito, muito, muito por amor do teu Deus que me deixes botar a nado a essa triste terra, onde fica quem me gerou (. . . ) disse chorando, bendita seja Senhor a tua paciência, que sofre haver na terra gente que fale tão bem de ti e use tão pouco da tua lei como estes miseráveis e cegos, que cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer como aos príncipes tiranos que reinam na terra” (Pinto, 1983: 154). 9 Exemplos: “dá claramente a entender que deve haver entre eles muita cobiça e pouca justiça” (Rei Tártaro referindo-se aos Portugueses).

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de medo”, p. 167; “soando-nos isto bem nas orelhas”, p. 291) e a enumeração assindética (“o tempo muito frio, o mar muito grosso, o vento muito rijo, as águas cruzadas, o escarceo muito alto, e a força da tempestade muito terrível”, p. 148). Os recursos destacados, as próprias metáforas, bem como o recurso a expressões tipicamente populares (como por exemplo: “Mas como é costume de Deus nosso Senhor de grandes males tirar grandes bens”, p. 139; “perguntando nós aos chins”, p. 323; “fazendo-me (como se diz) das tripas coração”, p. 404), marcam o tom oralizante que o narrador imprime ao seu discurso. Para concluir, resta tratar a questão das leituras que a obra tem suscitado e que permitem o seu enquadramento periodológico no Renascimento. Enquadramento, esse, que não é evidente, dado o caráter híbrido da obra. Contudo, classificar a Peregrinação como uma narrativa de viagens parece inequívoco para todos os autores estudados. Outras interpretações têm sido erigidas que incluem a Peregrinação nos moldes literários da novela de cavalaria e picaresca. Conforme Bernardes (1999), no caso da novela de cavalaria, seria a Peregrinação uma subversão deste subgénero, uma vez que o seu herói se desqualifica constantemente, pelo que pode não ser uma hipótese plausível. No que diz respeito à novela picaresca, a similitude de códigos entre uma e outra revela-se mais credível, uma vez que ambas apresentam os seguintes denominadores comuns: constroem-se através de narrativas, maioritariamente, autobiográficas; gravitam em torno de viagens; o seu protagonista é servo de vários senhores e consegue salvar-se em todas as situações através de artimanhas (Bernardes, 1999). O ponto fundamental da questão, e o mais sensível, prende-se com a periodização atribuída, na história literária, a FMP. Ora, Pinto de Castro escreve, a dado passo, na sua Introdução à Peregrinação (1984: XXXV), que, no quadro cultural “em que se moveu Fernão Mendes Pinto, (. . . ) não se rastreia o mínimo indício de autores clássicos ou renascentistas”. Por outro lado, Jorge de Sena (apud Pires & Carvalho, 2001: 41) escreve que “os “maneiristas” são toda a gente que nasce entre 1525 e 1580 e que por volta de 1620, já morreu toda. Os barroquizantes nascem nos oitenta anos seguintes”. Embora se perceba, relativamente a Pinto de Castro, que o autor apontava, de forma implícita, para outras fontes de influência em FMP, não é possível deixar de notar a confluência de códigos humanisto-renascentistas na Peregrinação: desde logo o tópoi da viagem e conquista; a fusão de valores ora www.clepul.eu

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excessivamente moralistas, ora desviando-se da moral; o decoro; a mesura e o “crédito nas capacidades transformativas e cognitivas do homem” (Bernardes, 1999). Porém, como salienta caricaturalmente Jorge de Sena, o período dos maneiristas coincide com o de FMP. E foi esse um período marcado pelos descobrimentos, que enalteceram as qualidades heroicas do homem, mas que também desnudaram as suas insuficiências e perversidades. Todos estes aspetos são retratados na Peregrinação. À semelhança d’Os Lusíadas (semelhança no plano ideotemático), na obra de FMP percebem-se igualmente conflitos e tensões que permitem aproximá-la dos códigos estéticos do Maneirismo: a oposição dia /noite; o objetivo de provocar, em quem lê, reflexão; a busca da amenidade; a isorropia; a hipérbole; o uso do locus horrendus em determinadas descrições; as antíteses; os paradoxos; as reiterações e equívocos, entre outros (Pires & Carvalho, 2001). Por fim, embora seja o Barroco um estilo de época ulterior a FMP, podemos encontrar, delidos na sua obra, alguns dos temas que iriam povoar esta categoria periodológica, tais como: a profusão sensorial, ligada ao exotismo; a sátira; o engenho, no deslindar das provações do herói; a imaginação e a intenção pedagógica, da qual a arte do barroco não se deixou afastar (Pires & Carvalho, 2001). Por tudo o que ficou dito, pode afigurar-se pertinente (re)pensar o lugar de FMP na história literária, porquanto parece evidente que a sua obra participa dos códigos propagados no Maneirismo, sem esquecer, apesar de tudo, certas ligações ao período posterior: o Barroco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS “Enquanto não alcançares a verdade, não poderás corrigi-la. Porém, se não a corrigires, não a alcançarás. Entretanto, não te resignes.” José Saramago10

Na epígrafe utilizada em jeito de conclusão deste artigo adivinha-se o paradoxo que irá presidir ao desenrolar da diegese de A história do Cerco de Lisboa: a relação da historiografia com a verdade. Até que ponto a verdade a que 10

Epígrafe da obra A História do Cerco de Lisboa (1989, 6.a edição), de José Saramago.

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temos acesso sobre um acontecimento é a única verdade? Raimundo Silva escolheu o caminho do “não” e alterou a história. Porém, como retrata o criador de Blimunda, a busca pela verdade é um ciclo vicioso – reflexão que vem muito a propósito do caso da Peregrinação. Tem-se dedicado mais tempo e esforço na procura de verdade, ou da ausência dela, quando estes deveriam ser investidos no estudo do conteúdo literário, do potencial imagético, axiológico e pedagógico da obra de FMP. Se todos os que se dedicaram a estudar a polifacetada Peregrinação aclamam a sua utilidade no panorama educativo e, sobretudo, literário, por que continua a obra de FMP apenas como texto ao estilo de Marginália na esfera literária portuguesa? Convém afinar agulhas, arrepiar caminho, eliminar despudorados artifícios, sofismas não – ou mal – esclarecidos, excessos biografistas e fantasistas, quezílias historiográfico-literárias e revigorar a verdadeira memória de Fernão Mendes Pinto: a Peregrinação. Porque o que importa, mais do que saber a verdade, é ler a verdade que FMP legou à posteridade. Creio que será um dos caminhos válidos, nesta encruzilhada, para que o verdadeiro potencial literário desta obra seja devidamente apreciado e valorizado. Enquanto não o alcançarmos, não nos devemos resignar.

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BIBLIOGRAFIA Bibliografia Passiva BARRETO, Luís Filipe (1986). “Introdução à Peregrinação de Fernão Mendes Pinto”. In : DOMINGUES, Francisco e BARRETO, Luís Filipe (org.). A Abertura do Mundo (Estudos da História dos Descobrimentos Europeus – em Homenagem a Luís de Albuquerque), vol. I. Lisboa: Editorial Presença. CASTRO, Aníbal Pinto (1984). Introdução a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. Porto: Lello & Irmão. CASTRO, Aníbal Pinto (2001). “Pinto (Fernão Mendes)”. In Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. IV. Lisboa: Verbo, pp.184-191. CATZ, Rebeca (1981). Fernão Mendes Pinto: Sátira e Anti-Cruzada na Peregrinação. Lisboa: Biblioteca Breve. LOURENÇO, Eduardo (1989). “Peregrinação e Crítica Cultural Indirecta”. In :MENÉRES, Ma Alberta (org.). Fernão Mendes Pinto, Peregrinação e Cartas. Comentários Críticos, 2.o vol. Lisboa: Edições Afrodite, pp. 1053-1062.

Literatura Portuguesa (Histórias e Manuais) BRAGA, Teófilo (1914). História da Literatura Portuguesa – Renascença. Porto: Chardon. BERNARDES, José Augusto Cardoso (1999). História Crítica da Literatura Portuguesa. Vol. II: Humanismo e Renascimento. Lisboa: Verbo. DIAS, José Simões (1897). História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Imprensa Lucas. FERREIRA, Joaquim (1939). História da Literatura Portuguesa. Porto: Domingos Barreira. FIGUEIREDO, Fidelino (1918). História da Literatura Portuguesa – Manual Escolar. Lisboa: Livraria Clássica. FORTES, Agostinho & SAMPAIO, Albino Forjaz (1936). História da Literatura Portuguesa: Manual escolar profusamente ilustrado. Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco. MOTTA, Virginia; GÓIS, Augusto & AGUILAR, Irondino (1909). Manual de História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Livraria Popular de Francisco Franco.

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PIRES, Ma Lucília & CARVALHO, José Adriano (2001). História Crítica da Literatura Portuguesa. Vol. III: Maneirismo e Barroco. Lisboa: Verbo. SAMPAIO, Albino (dir.) (1929). História da Literatura Portuguesa Ilustrada, vols. I e II. Paris-Lisboa: Aillaud e Bertrand. SARAIVA, António José & LOPES, Óscar (1996). História da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora.

Documentos eletrónicos MARGARIDO, Alfredo (1983). “Fernão Mendes Pinto um herói do quotidiano?”. In: Colóquio de Letras, n.o 74, pp. 23-28, <http://coloquio.gulbenkian.pt>, consultado em 04-01-2014. SARAIVA, Arnaldo (s/d). “A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto Revisitada”. In: Cultura, Espaço & Memória, n.o 1, pp. 129-142, <http://ler.letras.up.pt>, consultado em 01-02-2014.

0.9.1

Bibliografia ativa

PINTO, Fernão Mendes (1983). Peregrinação. Fernão Mendes Pinto. Transcr. de Adolfo Casais Monteiro. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda.

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: entre utopia realizada e utopia realizável Stéphanie De Jésus Université Bordeaux Montaigne

Resumo: A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto relata um momento fatídico da História da humanidade que fez entrar o mundo numa perspetiva global e foi propício ao aparecimento do género literário da utopia. A Peregrinação não é uma utopia literária no sentido da Utopia de Thomas More, mas ela apresenta aspetos utópicos. O Oriente afigura-se na obra de Fernão Mendes Pinto como o sítio do ecúmeno onde as utopias se tornam ora realizadas no caso da China, ora realizavéis no caso do Japão. O que pretendemos nesta comunicação é mostrar como se manifestou o pensamento utópico de um dos mais ilustres viajantes portugueses ao Oriente. Iremos também questionar as correlações entre a perenidade da literatura de viagem quinhentista e as suas ligações com o género da utopia partindo do pressuposto que a literatura de viagem trabalha com imagens e símbolos de caráter universal que podem, segundo nós, explicar este fenómeno. Palavras-chave: Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, China, Japão, utopia

A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é sem dúvida o testemunho mais notável do encontro direto entre Ocidente e Oriente que ocorreu no final do século XV. A obra relata um momento fatídico da História da humanidade que fez entrar o mundo numa perspetiva global e foi propício ao aparecimento do género literário da utopia. Os Descobrimentos portugueses ao dar novos mundos ao mundo deram também novos horizontes aos sonhos europeus e permitiram que a utopia se fizesse literatura. Mas antes deste género

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ganhar nome, o pensamento utópico já existia. Tal como o pensamento mítico, o pensamento utópico é consubstancial ao ser humano. Jean-Jacques Wunenburger considera-o como sendo uma “ forma da imaginação”.1 Quer seja mais ou menos desenvolvida, já que depende da sensibilidade de cada um, é inerente à mente humana esta capacidade de imaginar alternativas compensatórias às infelicidades ou dificuldades pelas quais o Homem pode por vezes passar. Esta capacidade de adaptação a um presente insatisfatório e que utiliza um misto de esperança e de imaginação para criar alternativas imaginárias não só permite ao Homem suportar o presente, como também imaginar trilhos novos que o poderão levar à tão desejada felicidade. Os recentes estudos sobre o imaginário permitem uma melhor compreensão deste fenómeno psíquico. Wunenburger considera a utopia como “ uma condensação de arquétipos imaginários universais ”, entre os quais o arquétipo do habitat de sonho. O que mudou com os Descobrimentos não foram os mecanismos do pensamento utópico em si mas os modos de expressão deste pensamento. Os mitos do passado que tentavam explicar o mundo dando, segundo a expressão de Hélder Godinho2 , uma geometria ao mundo, já não bastavam e inventou-se o que Vitorino Magalhães Godinho chamou de mito-projeto3 . A função do mito, sobretudo do mito das origens, é de dar, segundo Hélder Godinho “ uma ordem e um sentido ao mundo e à relação dos homens com ele ”, enquanto que o mito-projeto concetualizado por Vitorino Magalhães Godinho, trata de imaginar novas geometrias possíveis, isto é, de imaginar um mundo outro que poderia vir a ser no futuro. Por oposição ao mito que é uma produção coletiva cujo objetivo é de ajudar o homem a orientar-se no mundo, a utopia constitui uma produção individual destinada a dar orientações à sociedade. É a construção de uma sociedade outra, diferente, mais justa e benevolente que se pretende alcançar pela imaginação. A Utopia [1516] de Thomas More nasceu neste contexto singular que proporcionou ao Europeu um alargamento significativo do seu horizonte onírico, se1

Cf., Jean-Jacques Wunenburger, L’utopie ou la crise de l’imaginaire, J.-P. Delage, Paris, 1979,

p 20. 2

Cf., Hélder Godinho, “ O mito como ordenação do mundo ”, in Actas do Colóquio MythosMito, Literatura, Arte - Mitos Clássicos no Portugal Quinhentista, Centro de Estudos Clássicos, Lisboa, 2007, pp. 77-81. 3 Cf., Vitorino Magalhães Godinho, “ Entre mito e utopia : os Descobrimentos, construção do espaço e invenção da humanidade nos séculos XV e XVI ”, in Revista de História Económica e Social, (Julho-Dezembro de 1983).

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: entre utopia realizada e utopia realizável 113 gundo a expressão de Jacques Le Goff4 . De facto, as novas novidades trazidas do Oriente ou do Novo Mundo na época dos Descobrimentos constituiam uma matéria inesgotável para as imaginações fecundas e as sensibilidades utópicas de homens fora do comum e influenciados pelos ideais humanistas que emergiam naquela época. Graças à obra de More, a literatura ganhou uma nova vertente cujo intuito era de dar a ver que mundos melhores eram possíveis. Por meio da ficção tratava-se de inventar novas realidades possíveis pretendendo que estas existissem algures no ecúmeno. A alternativa que propunha More não era apresentada como fictícia, mas antes como real. Ao enganar o leitor, este tornava-se mais facilmente apto a acreditar que uma sociedade diferente fosse possível. Não são conhecidas narrativas de viagens portuguesas que saíram do prelo na época dos descobrimentos que tivessem por finalidade criar uma narrativa utópica à semelhança da Utopia de More. A Peregrinação não é uma utopia em si. Fernão Mendes Pinto queria dar a conhecer o Oriente, partilhar as suas aventuras, os seus infortúnios, mas também o seu deslumbramento pelos países que ali tinha vivenciado. Queria também dar a ver o lado menos glorioso da presença dos Portugueses na Ásia. O seu objetivo principal era, por conseguinte, transmitir os saberes que ele tinha adquirido pela experiência e não inventar de raiz uma sociedade perfeita como More o tinha feito cerca de seis décadas mais cedo. Mas não é por não poder ser considerada como uma utopia literária que a Peregrinação deixa de apresentar aspetos utópicos. Com efeito, o pensamento utópico do autor subjaz nas entrelinhas desta narrativa de viagem, nomeadamente na maneira como Mendes Pinto descreve a China e o Japão. Neste relato o espírito utópico do autor fixou-se em sociedades bem reais, posto que a partir destas sociedades que foram claramente vistas, retomando a expressão de Ana Paula Laborinho5 , ele construiu um discurso sobre elas em que elas são apresentadas como a materialização de um ideal, no caso da China e como o sítio ideal para a concretização da utopia cristã medieval, no caso do Japão. A dimensão utópica do discurso elaborado por Fernão Mendes Pinto reside na idealização pelo autor das sociedades chinesa e nipónica e na exem4

Cf., “ L’Océan médiéval et l’Océan Indien : un horizon onirique ”, in Jacques Le Goff, Un autre Moyen-âge, Quarto Gallimard, Paris, 1999, pp.269-286. 5 Ana Paula Laborinho, O rosto de Jano, Universos ficcionais da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto, Lisboa, FLUL, 2006, p 46.

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plaridade que resulta desta idealização. Toda a idealização, implica um distanciamento com o real e abre uma margem para a ficção. Partindo de aspetos da realidade escolhidos, aos quais o seu imaginário vai dar uma polaridade claramente positiva, Fernão Mendes Pinto propõe em alguns capítulos da Peregrinação uma única leitura possível. De facto, o leitor dificilmente poderá deixar de partilhar a admiração do autor por estas sociedades apresentadas como ideais e exemplares. Tanto o seu discurso sobre a China como o seu discurso sobre o Japão pretendem orientar o leitor, converti-lo à imagem que o autor escolheu dar. Mas no caso da China, o objetivo não se limita a uma vontade de impingir uma determinada imagem. Dando-lhe a conhecer uma sociedade exemplar, Mendes Pinto propõe ao leitor um exemplo a seguir. Esta exemplaridade participa por conseguinte da dimensão utópica destas descrições porque, tal como os utopistas, o autor propõe uma prospetiva de uma realidade que poderia vir a existir no futuro. A China que nos apresenta Fernão Mendes Pinto não é uma construção totalmente imaginária, como é o caso da Utopia de More, mas ambas perspetivas partilham uma vontade subjacente de aperfeiçoar as sociedades em que os autores se inserem. Por estes motivos, consideramos que a China de Fernão Mendes Pinto é de uma certa forma utópica. Ela aparece na Peregrinação como uma utopia que já está a ser praticada, por outras palavras, a China é para o autor uma utopia realizada. No episódio que decorre no Japão, o objetivo de Mendes Pinto difere significativamente. O autor não quis mostrar um exemplo a seguir, mas a sua representação do Japão não deixa de ser utópica pois é apresentado como o derradeiro sítio onde o velho sonho de reunificação entre cristãos do Oriente e do Ocidente se poderia realizar. Os conceitos de utopia realizada e realizável poderão parecer antinómicos, daí a importância de sublinhar que quando falamos em utopia realizada ou realizável, usamos em ambos os casos o termo utopia no seu sentido nobre de plano de governação imaginário em que tudo está perfeitamente organizado para a felicidade de cada cidadão e não no sentido que hoje lhe é associado de quimera irrealizável. Não é de estranhar que Fernão Mendes Pinto tenha pintado um retrato tão laudatório da China. A China de Mendes Pinto segue a linha imaginária que Marco Polo já tinha começado a traçar. Pois no Livro de Marco Polo, que via nela um exemplo de sociedade justa e solidária, já existia uma tendência notável em idealizar a China. Fernão Mendes Pinto viu sensivelmente a www.clepul.eu

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: entre utopia realizada e utopia realizável 115 mesma China que Polo. A solidariedade e a justiça são aliás os dois pilares da sua representação da China. O autor explicita-o na citação seguinte : “ (...) não deixarei de dizer algumas outras coisas particulares e dignas de se notarem, que vimos, de que a primeira será dizer com a maior brevidade que puder, alguma coisa das casas e do estado de el-rei da China, e do Governo da sua República, e dos ministros da Justiça, da Fazenda e da Corte, para que se saiba a maneira com que este gentio governa o seu povo, e a providência que tem em todas as coisas dele. ” 6

Aqui fica bem claro, o seu objetivo de mostrar o avanço da república chinesa em relação à realidade portuguesa. A providência do rei da China que nem sequer cristão é, não tem igual. A maneira como ele governa o seu país é digna de se notar e por conseguinte deve ser considerada como um exemplo a seguir. No capítulo intitulado “Do provimento que se tem com todos os aleijados e gente desemparada”, Fernão Mendes Pinto mostra-nos o quanto a solidariedade está institucionalizada na China : “ Nesta cidade [de Pequim], (...) há umas casa a que eles chamam Laginampur, que quer dizer "ensino de pobres", nas quais por ordem da Câmara se ensina a todos os moços ociosos a que se não sabe pai, assim a doutrina como o ler e o escrever e todos os ofícios mecânicos (...). ” 7

Os Laginampur são apresentados como instituições irrepreensíveis, onde tudo está previsto para o amparo das camadas mais vulneráveis da sociedade. Graças a estas casas, que são muitas – “ duzentas e quiça de quinhentas ”8 – as crianças abandonadas e os deficientes têm um lugar decente na sociedade chinesa. Mas esta solidariedade anda de mãos dadas com a justiça. Ela é enquadrada pela lei que castiga gravemente os que a desrespeitam indo de encontro à moral que ela preconiza : “ (...) porém antes que estes se aceitem nestas casas, faz a justiça sobre isso grandes exames, e se se vem a saber qual foi o pai ou a mãe do enjeitado, os castigam gravemente e os degredam para certos lugares que eles têm por mais estéreis e doentios.”9 6

Cit. in, Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Relógio d’Água, Lisboa, 2001, vol. I, p 358. Ibid., p 359. 8 Id. 9 Id. 7

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Na China de Fernão Mendes Pinto, tudo parece estar organizado de modo a garantir a cada um, um lugar adequado na sociedade. Ninguém pode ser excluído. Os aleijados estão integrados nesta sociedade. Remédios de vida são proporcionados aos que pouca sorte têm, cada deficiência sendo tomada em conta. Para além daquilo que está previsto para os aleijados dos pés, os aleijados das mãos, há também prerrogativas para os aleijados dos pés e das mãos, para os mudos, ou até para as mulheres públicas que na velhice vieram a adoecer. As prerrogativas acordadas às mulheres públicas dizem-nos muito sobre a organização mutualista que está em vigor na sociedade chinesa e é definitivamente um dos aspetos que Fernão Mendes Pinto quer realçar : “ Para as mulheres públicas que vieram a adoecer de algumas doenças incuráveis, há também outras casas da mesma maneira, em que são curadas e providas muito abastadamente à custa das outras mulheres públicas do mesmo ofício, para a qual obra cada uma destas paga de foro um tanto cada mês, porque também cada uma destas pode vir depois a cair na enfermidade e então as outras que forem são, pagarão para ela o que ela agora em sã paga para as outras doentes. ”10

Estamos perante uma sociedade bem organizada, na qual parece não haver nenhum excluído. A solidariedade está institucionalizada, o mutualismo está na base da organização da sociedade. Além disso, a solidariedade está enquadrada pela justiça pois existe uma correspondência entre a lei que castiga os que cometem infrações e a lei que ajuda os desfavorecidos. Por exemplo, as mulheres que são acusadas pelos seus maridos de adultério são condenadas a tomar conta de uma orfã para compensar a imoralidade da falta que cometeram, e para que “ se castiguem umas e se amparem outras. ”11 Vemos aqui mais uma vez, que a lei está muito ligada à moral. A justiça é o guardião da moral e prevê para cada infrator uma maneira de se arrepender. Mas ela é também implacável e temida : “ É assim que ninguém sai do limite e da ordem que lhe é posta pelos conchalis do governo, [...], sob pena de serem logo por isso gravemente punidos, porque é nesta terra o rei tão venerado e a justiça tão temida que não há pessoa nenhuma por grande que seja, que ouse boquejar nem levantar os olhos para nenhum ministro de justiça, [...].”12 10

Id. Ibid., p 361. 12 Ibid., p 307. 11

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: entre utopia realizada e utopia realizável 117 A sua experiência de cativeiro na China permitiu a Fernão Mendes Pinto descrever-nos pormenorizadamente o funcionamento da justiça. Numa magnífica descrição, ele pinta-nos um verdadeiro quadro do cenário do tribunal onde foi julgado pelo chaém.13 Os dois moços presentes no cenário simbolizam ora a misericórdia, ora a justiça e o seu poder de castigo. Por meio desta encenação Fernão Mendes Pinto mostra, dando o exemplo da China, que a justiça ideal tem de ser misericordiosa e severa. Ao apontar a perfeição da China, que funciona como um espelho invertido, o autor incentiva a sociedade portuguesa a questionar o funcionamento da sua própria justiça propondo-lhe uma alternativa a seguir. Além da justiça e da solidariedade, aos quais Marco Polo já tinha aludido, Fernão Mendes Pinto introduz o topoi prezado pelos utopistas, da ordem. A estrutura da sociedade chinesa é, segundo a descrição de Mendes Pinto, regida pela ordem. Ele diz explicitamente que “ (...) em tudo se governa esta gente com ordem. ”14 Esta necessidade de ordem explica-se, segundo o autor, pelo facto da China ser um país extremamente povoado : “ E muitos chins nos afirmaram que neste império da China tanta era a gente que vivia pelos rios como a que habitava nas cidades e nas vilas, e que se não fosse a grande ordem e o governo que se tem no prover da gente mecânica e no trato e ofícios com que os constrangem a buscarem vida, que sem dúvida se comeria uma a outra. ” 15

O governo tem um papel crucial, ele garante a paz social ao impor ordem graças à sua justiça implacável que não hesita em castigar severamente, como o prova a própria experiência de Fernão Mendes Pinto que foi condenado a que ele e os seus companheiros fossem “ (...) açoitados nas nádegas (...) e também [lhes] cortassem os dedos polegares das mãos. ”16 A solidariedade, a justiça penal mas também social e a ordem são aspetos da sociedade chinesa que marcaram profundamente o autor e que fazem da China uma sociedade exemplar aos seus olhos. Passemos agora para o Japão de Fernão Mendes Pinto. O Japão foi uma das últimas regiões do Oriente a ser conhecida pelo Ocidente. Sendo desco13

Cf., ibid., pp.325-326. Id. 15 Ibid., p 304. 16 Ibid., p 265. 14

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nhecido e beneficiando da imagem de terra mirífica, que possuia riquezas inigualáveis, dada por Marco Polo no seu Livro, o Japão tornou-se, como refere Ana Paula Laborinho : “ um espaço propício à projeção do desejo de realização utópica característico do período dos Descobrimentos”17 . A utopia cristã medieval que motivou a busca do reino do Preste João das Índias pelos cristãos do Ocidente e que constituiu uma das motivações da procura de um caminho marítimo para a Índia pelos Portugueses, parece ter vivido o último suspiro na Peregrinação. O episódio do Japão parece ser uma tentativa de convencer o leitor que os Japoneses tinham uma prediposição para receber a mensagem de Cristo. O autor dá a imagem de um povo honrado pela chegada dos chenchicogins. A chegada dos Portugueses na ilha de Tanixumá é retratada por Fernão Mendes Pinto como uma chegada profética. Usando o discurso direto, o nautaquim desta ilha refere-se à sua chegada nestes termos : “ Que me matem, se não são estes os chenchicogins de que está escrito em nossos volumes que voando por cima das águas, têm senhoriado ao longo delas os habitadores das terras onde Deus criou as riquezas do mundo, pelo que nos cairá em boa sorte se eles vierem a esta nossa com título de boa vontade. ” 18

Os Portugueses são aqui descritos como super-heróis que voaram por cima das águas para chegar até ao Japão como o profetizara escritos japoneses. Além de os receber com grande agrado, demonstraram uma avidez em conhecê-los. Diz o autor : “ Nestas práticas se gastou connosco um grande espaço, mostrando em todas as suas perguntas ser homem curioso e inclinado a coisas novas [. . . ]. ”19 Esta inclinação à novidade, esta curiosidade sem limites também transparecem quando diz : “ [. . . ] o nautaquim tornou de novo a praticar connosco e a perguntar-nos por muitas coisas miudamente (...). ” 20 Segundo Fernão Mendes Pinto, o interesse pelos Portugueses era geral : “ o necodá nos rogou que quiséssemos ficar aquela noite com ele em terra porque se não fartava de nos perguntar muitas coisas do mundo, a que era 17

Cit., Ana Paula Laborinho, “ O imaginário do Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ”, in Mare Liberum, No s 11-12 (Janeiro-Dezembro), CNCDP, Lisboa, 1996, pp.39-52. 18 Cit. in, Fernão Mendes Pinto, op.cit., p 428. 19 Cit. in, ibid., p 429. 20 Cit. in, ibid., p 430.

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: entre utopia realizada e utopia realizável 119 muito inclinado, [. . . ] ” 21 O autor até faz desta inclinação uma característica dos Japoneses : “ [. . . ] porque toda gente do Japão é naturalmente muito bem inclinada e conversadora. ” 22 . A insistência nesta particularidade da relação ao outro dos Japoneses tende a dar ao Japão de Mendes Pinto uma dimensão utópica. Com efeito, o Japão está representado como um país aberto à novidade e disposto a receber a palavra de Cristo tornando-se assim o país ideal para a projeção dos desejos utópicos da Cristandade e dos seus missionários. Além da abertura dos “japões”, o fascínio destes últimos por aspetos culturais portugueses, nomeadamente o seu uso de armas de fogo, também é apresentada por Fernão Mendes Pinto como um símbolo da provável subalternização japonesa à cultura portuguesa. A personagem do nautaquim de Tanixumá é a prova do fascínio dos Japoneses pelas armas portuguesas e por extensão pela cultura portuguesa. Já que, segundo o autor, o nautaquim venerava o português Diogo Zeimoto que lhe oferecera a espingarda, e terá constrangido os seus súbditos a fazerem o mesmo. Eis as palavras que o nautaquim terá proferido : “ O nautaquim, príncipe desta ilha de Tanixumá e senhor de nossas cabeças, manda e quer que todos vós outros, e assim os mais que habitam a terra de entre ambos os mares, honrem e venerem este chenchicogim do cabo do mundo, porque de hoje por diante o faz seu parente, assim como os facharões que se sentam junto de sua pessoa, sob pena de perder a cabeça o que isto não fizer de boa vontade. ”23

Ao mostrar que os Japões veneravam certos aspetos da cultura portuguesa, Fernão Mendes Pinto queria que o seu leitor acreditasse que esta veneração poderia ser uma alavanca para que os Japoneses adotassem a religião cristã. No episódio em que o rei do Bungo convida os Portugueses a virem conhecer a sua província, usando mais uma vez o discurso direto, o autor continua com a sua tentativa de mostrar que os Japoneses estavam muito recetivos às novidades trazidas pelos Portugueses. Estes são descritos como homens providenciais muito esperados pelo rei : “ (...) em dias passados me certificaram homens que vieram dessa terra, que tínheis nessa vossa cidade uns três chenchicogins do cabo do mundo, 21

Id. Cit. in, ibid., p 431. 23 Cit. in, ibid., p 432.

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Stéphanie De Jésus gente muito apropriada aos japões e que vestem seda e cingem espadas, não como mercadores que fazem fazenda, senão como homens amigos de honra, e que pretendem por ela dourar seus nomes, e que de todas as coisas do mundo que lá vão por fora, vos têm dado grandes informações, nas quais afirmam em sua verdade que há outra terra muito maior que esta nossa, e de gentes pretas e baças, coisas incríveis ao nosso juízo, pelo que vos peço muito como a filho igual aos meus (...) ”24

O uso do discurso direto permite dar um efeito de real a esta carta que ele afirma ter sido escrita pelo rei do Bungo em pessoa. Nesta carta o rei não considera os Portugueses apenas como mercadores, mas também como um povo digno da consideração dos Japoneses e detentor de grandes riquezas, entre as quais, o seu grande conhecimento do mundo. As revelações que estes fizeram aos Japoneses sobre a existência de África são saberes de grande relevância para ele, ao ponto de o rei considerar que a chegada de Fernão Mendes Pinto à terra de que ele é senhor é-lhe tão agradável como : “ a chuva do céu no meio do campo dos nossos arrozes.”25 . O Japão é pois apresentado na Peregrinação como um país aberto à novidade e à religião cristã. A sua curiosidade em relação aos Portugueses e às inovações trazidas por eles é instrumentalizada no discurso de Fernão Mendes Pinto no intuito de provar que o Japão é o sítio ideal para a concretização da utopia cristã medieval. Para concluir, na Peregrinação sobressai uma vontade clara do autor de orientar o imaginário do leitor para direções que o próprio escolheu. Fernão Mendes Pinto usa, para isso, técnicas literárias como o estilo direto que tendem a convencer o leitor de que tudo o que relata é verdade e digno de confiança. A China é descrita como uma verdadeira utopia realizada provando assim aos seus leitores que uma outra sociedade mais justa e solidária é possível. Quanto aos Japoneses, eles são descritos como os potenciais aliados dos cristãos no Oriente. Ambos os países são pois idealizados pelo autor que projetou as suas aspirações utópicas neles. Esta teia utópica explica, na nossa opinião, a perenidade desta obra que festeja neste ano de 2014 os seus 400 anos de publicação. Tal como a mente do autor, a mente do leitor está orientada por arquétipos universais, os mesmos que deram vida ao mito do paraíso 24 25

Cit. in, ibid., p 435. Cit. in, ibid., p 437.

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A China e o Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto: entre utopia realizada e utopia realizável 121 perdido. Como o autor precisou, o leitor continua a precisar pois, de acreditar em sítios ideais, em habitats de sonho. Estas crenças funcionam como fontes de esperanças e de forças para o homem enfrentar a fatalidade do seu destino. Por isso é que este relato continua a fascinar os seus leitores apesar desta obra não ter sido escrita para o leitor do século XXI. A verdade é que estes arquétipos não só são universais como também atemporais. Tal como o leitor do século XVI precisamos de continuar a acreditar que existem à surperficie do globo terrestre sítios onde a mítica perfeição edénica se mantém, sítios onde a vida é mais suave e que permitem ao homem libertar-se do medo da morte. Ao ler esta obra o leitor continua a sentir a esperança e a liberdade que devem ter sentido os seus primeiros leitores. A obra tende a mostrar que existe algures num mundo um sítio ideal, se este não for na China será no Japão, se não for no Japão será noutro sítio qualquer, desde que este seja alcançável pela imaginação.

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Bibliografia GODINHO, Hélder, (2007). “ O mito como ordenação do mundo ”. In: PENA, Abel N.(coord), Actas do Colóquio Mythos - Mito, Literatura, Arte - Mitos Clássicos no Portugal Quinhentista, Lisboa : Centro de Estudos Clássicos, pp. 77-81. GODINHO, Vitorino Magalhães (1983), “ Entre mito e utopia : os Descobrimentos, construção do espaço e invenção da humanidade nos séculos XV e XVI ”. In: Revista de História Económica e Social, Julho-Dezembro de 1983. LABORINHO, Ana Paula (2006). O rosto de Jano, Universos ficcionais da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto. FLUL, Lisboa. LABORINHO, Ana Paula (1996). “ O imaginário do Japão na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto ”, in Mare Liberum, No s 11-12 (Janeiro-Dezembro). Lisboa : CNCDP, pp 39-52. LE GOFF, Jacques (1999). Un autre Moyen-âge. Paris : Quarto Gallimard. MENDES PINTO, Fernão (2001). Peregrinação. Lisboa : Relógio d’Água. WUNENBURGER, Jean-Jacques (1979). L’utopie ou la crise de l’imaginaire. Paris : J.-P. Delage.

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A Trad[I]Ção do Cronista Viajante: uma Viagem por Outros Mares Semânticos Thaís do Socorro Pereira Pompeu Universidade Federal Rural da Amazônia

Resumo: O objetivo central deste texto é demonstrar a inversão do viajante europeu pela veia crítica pretendida por Haroldo Maranhão em sua obra O Tetraneto Del- Rei. Vários são os elementos que contribuem para essa noção, o comportamento covarde e o caráter erótico do personagem. Muitas são as bases textuais que influenciam positivamente para a sua escrita inovadora. Entre tais textos está A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto(1614). Tais obram satirizam as narrativas e os feitos portugueses em suas viagens marítimas. A noção de texto literário como reinvenção e trapaça é um ponto de semelhança entre tais obras. Através de suas caravelas discursivas Haroldo Maranhão reproduz um viajante ao contrário resignificando esse caro agente de nossa colonização, que tem na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto uma de suas bases. Palavras-chave: Literatura Brasileira, Haroldo Maranhão, Literatura dos Viajantes, Reescrita, Antropofagia.

HAROLDO MARANHÃO UM ESCRITOR PREMIADO E QUASE DESCONHECIDO Haroldo Maranhão nasceu em Belém do Pará, cidade localizada no norte do Brasil, no dia 7 de agosto de 1927, filho de João Maranhão e Carmem Lima

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Maranhão, teve uma infância diferenciada das outras crianças de sua faixa etária. Morador do último andar do edifício onde se situava o jornal Folha do Norte, que tinha o avô Paulo Maranhão como proprietário, que empreendia duros artigos em seu periódico contra o então governador Magalhães Barata. Esse fato obrigou a ele e seus familiares a ficarem reclusos nas dependências do suntuoso prédio que abrigava a redação do jornal, assim cresceu junto ao irmão Ivan em um contexto de criatividade, imaginação e muita leitura. Assim, a leitura e o ato da escrita sempre foram de suma importância na vida do escritor. O universo jornalístico era tão relevante em sua vida que aos 13 anos, menino em calças curtas, como ele mesmo afirmava, já exercia a função de repórter policial da Folha do Norte. Em meados da década de 40, criou e dirigiu o caderno intitulado “Arte e Literatura” no mesmo jornal, sendo este de intensa relevância para a vida intelectual do estado e da região. Em 1948, com os amigos Benedito Nunes e Mário Faustino, também fundou e dirigiu a revista Encontro, que tinha como um de seus objetivos fulcrais a circulação de textos literários brasileiros. No início da década de 50 forma-se em direito e por vezes tentou advogar, no entanto, a afinidade pela literatura o fez abrir no final da mesma década a livraria Dom Quixote, que com o passar do tempo tornou-se um ponto de encontro entre os intelectuais paraenses. Em 1961 deixa o estado do Pará, fato que segundo ele tem grande relação com a sua trajetória de escritor. Desde a saída de Belém residiu em vários lugares como na cidade do Rio de Janeiro, região centro-sul do Brasil, por mais de vinte anos, onde atuava como procurador da Caixa Econômica Federal, até se aposentar. Residiu também em Brasília e Juiz de Fora. Faleceu em 15 de julho de 2004 em Piabetá, interior do estado do Rio de Janeiro. A escrita para Haroldo era perseguida com muito rigor e entendida como um trabalho, como ele mesmo afirma em entrevista para o jornal o globo: “Eu fui jornalista, advogado, funcionário da Caixa Econômica Federal. Sempre escrevi. Mas só me realizei mesmo quando larguei tudo e passei a me dedicar unicamente à literatura” (O LIBERAL, 1982). Haroldo Maranhão é um escritor muito premiado, no entanto pouco conhecido do grande público, em sua carreira ganhou prêmios de destaque como o Guimarães Rosa, o Lins do Rego e o Vértice em Portugal. Seu reconhecimento se dá em parte pela divulgação em meio acadêmico de suas obras em artigos científicos, trabalhos de conclusão de curso de graduação, dissertawww.clepul.eu

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ções e teses. Haroldo Maranhão foi um escritor muito fértil e produziu nos mais variados gêneros como o conto, a novela, o romance, a poesia, além de obras infanto-juvenis. Em cada gênero Haroldo teve um estilo muito característico e peculiar. Como o objeto de análise deste texto é o romance O Tetraneto Del-Rei a ênfase será a de compreender a técnica de composição da obra e algumas vezes a devida referência de outras obras que possuem perfil semelhante.

O ENIGMÁTICO O TETRANETO DEL-REI DE HAROLDO MARANHÃO O romance Tetraneto Del-Rei do escritor paraense Haroldo Maranhão, prêmio Guimarães Rosa de 1980, inserido em um contexto pós década de 50, se constrói a partir de um processo de escrita complexo. Nele transitam outras escrituras literárias, sobretudo, no tocante à colonização do Brasil, as narrativas dos viajantes e o processo de “descobrimento das terras brasileiras”. Nessa perspectiva, Benedito Nunes, na orelha do livro, nos demonstra a relevância da obra: Pode-se dizer que este livro de Haroldo Maranhão é a suma satírica dos primórdios da colonização do Brasil. Mas conduzida como invenção, a paródia extrai da tradição desconstruída, enquanto depósito histórico inerme, um espaço literário autônomo, referenciado às duas literaturas, a portuguesa e a brasileira (BENEDITO et al apud Maranhão, 1982: [s/d]).

O romance conta as aventuras tortuosas do fidalgo português Jerônimo de Albuquerque Maranhão, que veio ao Brasil no período da colonização. Ele cunhado do donatário Duarte Coelho, que era gestor na capitania de Pernambuco, estado localizado no nordeste Brasileiro, foi figura ilustre e muito cara ao imaginário deste estado. Mitos rondam a vivência desta personalidade, por exemplo, o fato de ser chamado de Adão Pernambucano, por ter gerado extensa prole. Na ficção do romance estudado Jeronimo de Albuquerque é pintado como um homem covarde, que ao contrário do perfil esperado de explorador. Não ambiciona riquezas, feitos e acúmulo de fama e capital. www.lusosofia.net

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O fino fidalgo português Dom Jerônimo de Albuquerque, vulgo Torto, foi enviado ao Brasil por envolvimento com assuntos galantes na corte. Suas primeiras experiências vivenciadas na nova terra foram o temor frente aos nativos, o involuntário combate armado e a posterior captura pelos silvícolas. No entanto, esse foge da punição pelo casamento com a índia Muira-Ubi filha do cacique Arco- Verde e com ela origina extensa prole. É ponto fora de discussão que a obra reconta e reescreve pela ironia traiçoeira os primórdios de nossa colonização. Nesse sentido, encontramos no Torto a representação do colonizador português invertido. Assim, após um olhar atento sobre o referido personagem uma indagação apresenta-se oportuna: não seria Jerônimo de Albuquerque um viajante e cronista europeu? No entanto, essa afirmação se choca com o tom satírico e irônico da obra. A partir da evidente contradição encontra-se a gênese de um estudo de tese: Jerônimo de Albuquerque um viajante europeu às avessas. Nesse sentido, podemos afirmar que Jerônimo de Albuquerque é um viajante invertido construído por Haroldo com um objetivo: desconstruir o imaginário sobre a colonização brasileira através da inversão de um de seus ícones mais representativos: o cronista viajante. Como deixar de notar a criticidade do romance? Construído sob os moldes de uma abordagem histórica, crítica, porém satírica, irônica e desconstrutiva do imaginário português sobre a nossa colonização? A obra de Haroldo Maranhão traz em si o verniz crítico que enaltece as vozes abafadas pelo discurso histórico tradicional. Colabora com isso para uma visão descentralizante dos agentes que compõem o povo brasileiro e valoriza um de seus constituintes, o indígena que ganha notoriedade e humanidade na narrativa haroldiana. É possível perceber no decorrer da leitura uma nítida tentativa do autor em reescrever a história dos primeiros anos de descobrimento do Brasil pela veia da ironia, da comicidade e da inversão. Nesse sentido, a ficção haroldiana se insinua como traição, blefe e trapaça (Barthes, 2004: 17), pois coloca certos dados e informações oficiais sob suspeita. O tom da ironia apresenta um objetivo aparente de convencimento das mentes para um novo olhar sobre a história oficial. Nas palavras de Santiago (2000: 23) ocorre “amor e respeito pelo já escrito e necessidade de produzir o novo que o afronte e negue”. A obra de Haroldo Maranhão vista como suma satírica, consiste em uma síntese bem humorada dos primeiro anos da colonização do Brasil e reescreve a própria história dessa ex-colônia como também é a reescrita de antigas narwww.clepul.eu

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rativas dos viajantes. Dentre tais narrativas podemos destacar a intertextualidade e aproximação com a obra A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto. A obra de Haroldo Maranhão tem uma grande importância no contexto de nossa literatura, já que dialoga com as transformações do romance moderno brasileiro e “reconstrói”, a partir da ficção, o olhar sobre a colonização no Brasil a partir de suas ocorrências ventrais, assim a escritura do romance parodia a visão criada pelos exploradores portugueses e espanhóis, seja pela linguagem quinhentista apropriada, seja pela inversão do sentido das cartas ou pela ressignificação da imagem do desbravador europeu, fatores que serão esmiuçados a seguir. Outro fator que não pode ser esquecido é o contexto em que a obra foi escrita: 1980. Período de grande efervescência política e reabertura da censura permissível ao discurso mais libertário em sua linguagem e em seus temas. A obra é desafiadora e instigante ainda para o leitor atual, pois sua escrita é uma replica perfeita da linguagem quinhentista e fruto de um trabalho arqueológico de Haroldo com a Língua Portuguesa. Dois aspectos devem ficar bem esclarecidos quanto ao trabalho com a linguagem em O Tetraneto Del-Rei. O primeiro de buscar expressões caídas em desuso. O segundo diz respeito às múltiplas interpretações a que se pode chegar. A escolha por expressões arcaicas condiz com a intenção de garantir maior vivacidade à trama, pois se a narrativa acontece em um período em que assim se falava não teria lógica de se escrever em português atual. Como a intenção central é descrever a colonização por um viés diferenciado, onde os vencidos terão voz, não seria inteiramente original, escrever com o português agora corrente, para dar um status de verdade, assim como nos textos quinhentistas. Essa é uma das razões pelas quais o Tetraneto Del Rei obteve o parecer da Comissão Julgadora do Prêmio Guimarães Rosa, em 1980, como sendo uma obra que atende perfeitamente o diálogo entre escritor e público. Ao fazer ecoar questões embrionárias e silenciosas de nossa história oficial, a escritura do romance conduz a uma relativa conformação sobre o papel dos agentes indígenas em nossa colonização. Somente com um texto que suplementa o passado e com o jogo que a escritura elabora chega-se a esse olhar ampliado. Escritura e jogo mantêm uma relação de proximidade. Entendemos por jogo as articulações de Haroldo Maranhão com a linguagem, ele apropria-se de signos anteriores e redefine em uma nova atribuição de sentidos. O jogo refere-se a uma postura crítica do escritor perante o já www.lusosofia.net

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escrito e que se insere em nova escritura. Este é O Tetraneto- Del Rei de Haroldo Maranhão uma obra ricamente escrita, pensada com muito cuidado e fruto do esforço de um escritor apaixonado pela língua portuguesa e pela literatura. Uma obra que por reescrever uma tradição muito cara dialoga com outras obras semelhantes em sua temática. E nesse contexto, percebemos o contato, o diálogo aberto entre o romance e a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.

A PEREGRINAÇÃO DE FERNÃO MENDES PINTO E O TETRANETO DEL-REI DIÁLOGOS ABERTOS A PEREGRINAÇÃO DE FERNÃO MENDES PINTO E O TETRANETO DEL-REI DIÁLOGOS ABERTOS Antes de tudo é incontestável o diálogo intertextual entre as duas obras, pois ambas consistem em relato de viagens. No entanto a Peregrinação é constituída ora por relatos reais e/ou por ficção, uma vez que o seu autor foi duramente criticado por construir uma obra fora do plano da realidade. Discussão esta que não consiste em foco deste trabalho, a Peregrinação é vista como uma rica narrativa história e literária, muito cara ao poro português e à literatura universal. Podemos afirmar assim, que pelo valor da obra as peregrinações consistem em matriz primária e fonte de leitura e inspiração para a escrita posterior de O Tetraneto Del-Rei. Narrar feitos e viagens é algo muito caro para o povo português e também para os brasileiros, pois é a partir de uma carta, a carta de Pero Vaz de Caminha, que se tem o primeiro relato e descrição do território brasileiro e é considerada a certidão de nascimento da nação. Mesmo distante no tempo 1614 a peregrinação consiste em uma fonte fértil sobre narrativa dos viajantes e está na tradição desse tipo de narrativa e no acervo conhecido e resignificado por Haroldo Maranhão. A peregrinação faz o relato interessantíssimo sobre a viagem de Fernão Mendes Pinto ao oriente, lugar insólito e desconhecido das nações ocidentais. O relato transmite um vasto quadro deste ambiente, seus povos, sua cultura, sua língua e costumes. Da mesma maneira a obra do escritor paraense relata a descoberta do desconhecido território recém-descoberto, os hábitos do povo, sua cultura, valores e em especial o ritual da antropofagia muito caro as nações indígenas. O estranhamento, a admiração, o medo e a www.clepul.eu

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angustia são presentes em ambas as narrativas. Outro ponto que fere a atenção é o fato dos protagonistas terem sido mantidos cativos por outros povos. Tais obras são em suma narrativas de viagens, tendo O Tetraneto Del- Rei a inclusão de doze cartas à moda das grandes epistolas de viagens. Aproxima ainda das duas narrativas o relato autobiográfico de seus protagonistas. Alguns críticos defendem a tese de que as peregrinações são a sátira sobre o modo que o povo português se relacionava com as grandes navegações e a alteridade para com os povos orientais. No mesmo movimento O Tetraneto Del-Rei é a sátira pelo viés da ficção do processo de descobrimento do Brasil. Nas peregrinações a sátira de dá de forma velada e implícita, já e em O Tetraneto Del-Rei consiste na técnica de escritura escolhida por Haroldo Maranhão. A linguagem próxima à oralidade é outro ponto de convergência nas duas obras. Em alguns momentos parece que os personagens estão a conversar corriqueiramente com o leitor. Distantes no tempo e em atitude, pois Fernão Mendes Pinto teve como pressuposto principal a paródia e desconstrução das aventuras e conquistas portuguesas. Em um espaço temporal distante O Tetraneto Del-Rei também parodia as façanhas portuguesas, mas com outro objetivo recontar de outra forma a história da colonização brasileira. Outros mares semânticos são as caravelas que conduzem a escritura de O Tetraneto Del-Rei, no entanto apoiado em uma tradição conhecida a obra se ampara em matrizes importantes da literatura universal como a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.

A NATUREZA ANTROPOFÁGICA DE O TETRANETO DEL-REI Já na orelha do livro o escritor Haroldo Maranhão nos dá pistas sobre a forma como construiu o seu romance e afirma com todas as letras que: No texto, há enxertos de versos e passagens de Fr. Amador Arrais, Pero Vaz de Caminha, Camões, Bocage, Gregório de Matos, Fr. Francisco de Mont’ Alverne, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça de Queiros, Machado de Assis, Francisco Otaviano, Olavo Bilac, Fernando Pessoa, João Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Mario Faustino e Lêdo Ivo. (Maranhão, 1982: orelha do livro) www.lusosofia.net

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Assim existe a denuncia por parte do autor que confessa ao seu leitor que ele copiou, e quem servia de base e matriz de sua escritura. O texto haroldiano é semelhante a uma colcha de retalhos de discursos de outras obras e autores. É uma viagem pela literatura portuguesa e brasileira. Sobre a técnica empregada por Haroldo na composição do romance é de sua importância o comentário de Jackson (1990: 11-19): Assim como os mundos históricos e ficcionais do Brasil colonial se entrelaçam, o texto como comédia adquire níveis adicionais de significação, como a epopeia, o mito, a lenda, ou a crítica social. Apesar da sua ironia penetrante, o romance é justaposto e substitui todas as prévias explorações coloniais, e seu discurso auto-consciente se torna uma ferramenta para minar a ideologia e a mentalidade da "descoberta". Os níveis do discurso atravessam o espaço e o tempo, dando ao romance a universalidade como um paradigma tanto da escrita luso-brasileira quanto dos valores operantes em sua civilização. O texto baseia-se na necessidade e compulsão de escrever como um cantar de identidade, reforçando em terras estranhas a língua como um código cultural dominante, no qual, paradoxalmente, o escritor da colônia exerce seus talentos picarescos de decepção e disfarce através da manipulação e da deformação da retórica Real. A técnica parodística de Haroldo é advinda de três momentos: a pesquisa, a leitura a escritura (reescritura). Para uma compreensão mais concreta da construção do romance será realizado a partir de agora uma definição conceitual da técnica utilizada por Haroldo. Antes de qualquer explicação fechamos o conceito e em seguida as devidas explicações serão dadas. Nesse sentido, a técnica utilizada é a de antropofagia literária e que técnica seria essa? Conceitualmente o conceito de antropofagia utiliza a imagem violenta do canibal. Antropofagia como é sabido consiste no ritual muito presente nas sociedades indígenas de devoração do semelhante. O canibal é aquele que alimenta-se do outro como forma de enriquecimento corporal e espiritual. Mas o que há de relação desse ritual com a escrita de um autor? Diríamos que total relação, pois amparado pelos princípios do canibalismo que está na gênese do modernismo brasileiro e no Manifesto Antropófago de 1928 de Oswald de Andrade. Em data posterior 1980 a obra do escritor revisita o conceito de antropofagia literária por possuir uma visão e objetivo comum: ...com a ‘Antropofagia’ de Oswald de Andrade, nos anos 20 (retomada www.clepul.eu

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depois, em termos de cosmovisão filosófico-existencial, nos anos 50, na tese A Crise da Filosofia Messiânica), tivemos um sentido agudo da necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialético com o universal.(...) Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação: melhor ainda uma ‘transvaloração’: uma visão crítica da história como função negativa (no sentido de Nietzche), capaz tanto de uma de apropriação como de desapropriação, desierarquização, desconstrução (Campos, 1983).

Visando uma desconstrução do lugar de enunciação, a partir de um pensamento suplementar sobre o nacional Haroldo Maranhão joga-se ao deleite traidor da técnica antropofágica da escritura. Assim, ele se apropria de obras anteriormente lidas, as citações chamm a sua atenção cabe a ele com tesoura de suas leituras reconduzir os pedaços de textos com a finalidade nova que nutre seu projeto de escrita. Jerônimo de Albuquerque é o viajante invertido construído por Haroldo com um objetivo: desconstruir o imaginário sobre a colonização brasileira através da inversão de um de seus ícones mais representativos: o cronista viajante. Como deixar de notar a criticidade do romance? Construído sob os moldes de uma abordagem histórica, crítica, porém satírica, irônica e desconstrutiva do imaginário português sobre a nossa colonização? A obra de Haroldo Maranhão traz em si o verniz crítico que enaltece as vozes abafadas pelo discurso histórico tradicional. Colabora com isso para uma visão descentralizante dos agentes que compõem o povo brasileiro e valoriza um de seus constituintes, o indígena que ganha notoriedade e humanidade na narrativa. Uma analise literária pautada no conceito de antropofagia precisa estar amparada em três perguntas básicas: o que escreve? por que escreve? de onde escreve? Assim, cabe a partir de agora respondê-las Haroldo Maranhão escreve um romance que satiriza os anos iniciais de nossa colonização, ampardo pela reescrita e apropriação de outro autores e obras. Qual a razão desse esforço de escrita? Duas razões sejam possíveis para responder tal pergunta: a) para contar uma história conhecida de outra maneira em que todos os agentes da colonização tenham a mesma medida ou para ser uma espécie de homenagens a literatura brasileira e portuguesa. De onde escreve esse autor? De um pais latino-americano em que frequentemente ao debate sobre identidade é www.lusosofia.net

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pensado e repensado. Escrever uma obra como O Tetraneto Del Rei é antes de tudo um esforço critico sobre o próprio meio e a identidade em que se está. È de criticar através da literatura um passado histórico e de produção escrita. O debate sobre a antropofagia, presente em O Tetraneto Del-Rei, aproximase ao conceito de metaficção historiográfica nos termos de Linda Hutcheon(1988).Pois suas linhas partem da devoração resignificada de uma história muito conhecida: a chegada de Duarte Coelho e seus familiares, entre eles Jerônimo de Albuquerque, na capitania de Pernambuco no ano de 1535. Poderíamos dizer que uma das características determinantes para textos desse tipo seria a inversão satírica, que garante pela desconfiança corrente um olhar crítico sobre as versões oficiais de nossa história. A metaficção historiográfica é um tipo de texto ficcional comprometido com o repasse de informações inclusivas sobre a realidade. Nesse tipo de texto as fronteiras entre o romance e a história são de uma fluidez instigante, por inserir as grandes narrativas na atmosfera da suspeita e da dúvida que também está presente na Peregrinação de Fernaão Mendes Pinto. Obras construídas nesse molde apresentam uma autorreflexividade intensa sobre alguns personagens históricos, no caso da obra a ser estudada o viajante europeu. A negação de alguns sentidos existentes na história oficial só são possíveis pelas artimanhas da linguagem, é através do texto que se fazem presentes, uma prova disso são as cartas invertidas escritas pelo Torto ou a linguagem quinhentista reeditada. As metaficções historiográficas são abordagens radicalmente críticas e falsificadoras da história e das narrativas cristalizadas. Com a voraz prática de leitura, Haroldo Maranhão empreendeu o recolhimento de um vasto material histórico bibliográfico do personagem Jerônimo de Albuquerque, integrante da História Oficial do Brasil, considerado por muitos como o Adão do Nordeste por ter gerado numerosa descendência na região. Os elementos históricos são recriados pelo viés da ficção, essa reescrita elaborada minuciosamente é um trabalho solitário e silencioso. Ressaltase que a ficção literária é o lugar de onde a escritura de uma nova versão para os fatos da colonização adquire uma credibilidade ou mesmo onde o véu literário encobre uma possível pretensiosa intenção da escrita haroldiana em se fazer verdadeira. Sozinho e tendo em mente o que pretende enfocar com seus escritos, o autor-leitor e também pesquisador colhe e filtra informações indispensáveis para a construção de seus personagens. Trabalho arqueolówww.clepul.eu

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gico que culmina com personagens como “O Torto”. Uma vez compreendido o ambiente literário que instiga Haroldo Maranhão a escrever sua obra O Tetraneto Del-Rei, apresentamos a proposta principal desta investigação, que se reveste em elencar a traição estabelecida pela figura do viajante por ele idealizado. Viajar por outros mares semânticos, repisar marcas de outras obras e enriquecer a história e a literatura é um dos principios norteadores da obra de Haroldo Maranhão, que apresente total diálogo com A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto no ano de seu aniversário de 400 anos.

A ÚLTIMA CARAVELA... Concluimos que A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é uma obra cara, revisitada e constantemente procurada ,como referênciano rol da literatura dos viajantes, ou como matriz, molde e norte para obras posteriores. Nessa obra, cara à literatura universal, Haroldo Maranhão bebe em muitos pontos para a construção de seu romance O Tetraneto Del-Rei, no que tange o estilo, a história e as peripecias de persongens tão interessantes e apaixonantes.

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REFERÊNCIAS ALVES, Sérgio Afonso Gonçalves. Fios da memória, jogo textual e ficcional de Haroldo Maranhão. Belo Horizonte: UFMG, 2006. BARTHES, Roland. Aula.Trad.LeylaPerrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2004. CAMPOS, Haroldo de 1983 “Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira”. Boletim bibliográfico - Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, v.44, jan./dez. MARANHÃO, Haroldo. Um fecundo autor inédito: premiado e quase desconhecido. O Liberal. Belém, 19 de fevereiro de 1982. JACKSON, Kenneth David. The parody of “letters” in Haroldo Maranhão’s O Tetraneto Del-rei. Luso-Brazilian Review, Madison, v. 27, n. 1, p. 11-19, Summer 1990. MARANHÃO, Haroldo.O Tetraneto Del-Rei (O Torto: suas idas e venidas). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982. NUNES, Benedito et al. O prazer do texto num texto de prazer: parecer da comissão julgadora do VI Prêmio Guimarães Rosa/1980. In: MARANHÃO, Haroldo. O Tetraneto Del-Rei: o Torto, suas idas e venidas. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982. Orelha do livro. (grifo dos autores) SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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0.12 Miguel Torga e Agustina: viagens, memória e espírito do lugar Álvaro Manuel Machado Prof. Catedrático jubilado Universidade Nova de Lisboa

O célebre verso do poema da obra ortónima de Fernando Pessoa Viajar! Perder países, magnificamente enigmático, levanta sobretudo uma questão fulcral: em que medida a viagem (e aqui refiro-me apenas à viagem ao estrangeiro, longe ou perto, numa perspectiva estritamente comparatista) é, antes de mais, uma fuga – fuga de si próprio e também (citando ainda o poema de Pessoa) fuga para “Ser outro constantemente”, perder as “raizes” da alma, “viver de ver somente”1 ? Sublinhe-se: “viver de ver somente”. Dir-seia que Fernando Pessoa, em 1933, data deste poema, estava a prever o horror que é o nosso actual turismo de massa, baseado numa espécie de ávido e boçal voyeurisme, que despreza todo e qualquer conhecimento minimamente aprofundado, bem como qualquer reflexão íntima, no encontro com o “Outro”, o estrangeiro. Ora, os dois escritores que escolhi para abordar o complexo e inesgotável tema da viagem (de que não sou especialista, note-se, apesar de este tema 1

Fernando Pessoa, Obra poética e em prosa. Introdução, organização, biobiliografia e notas de António Quadros e Dalila Pereira da Costa, Porto, Lello & Irmão – Editores, vol. I – Poesia, p. 370.

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se situar no centro de toda a investigação comparatista relacionada com a chamada “imagem do estrangeiro”), esses dois escritores, Torga e Agustina, nada têm de meros espectadores “sem alma” (como dizia Pessoa), frívolos espectadores de passagem. Pelo contrário, ambos se entregam à viagem como elemento iniciático, quer quanto ao conhecimento do Outro quer quanto ao aprofundamento do conhecimento deles próprios, cultivando igualmente a memória e o espírito do lugar. Todavia, a níveis diferentes de iniciação, de descoberta do outro e da própria aprendizagem de vida, como veremos. A níveis diferentes também do conceito de cosmopolitismo, o qual engloba, obviamente, toda a vigem ao estrangeiro.

Torga e a viagem como aprendizagem de vida Comecemos, então, antes de abordar a obra de ambos relacionada com a literatura de viagens, pela própria noção de cosmopolitismo derivada da viagem. Paul Morand, escritor, diplomata e viajante francês de entre as duas grandes guerras, injustamente esquecido, ávido de espaços estrangeiros, de Londres ao Cairo, de Nova Iorque às Caraíbas, define assim, num texto fragmentário de 1935, o cosmopolitismo que a febre da viagem alimenta : “Le cosmopolitisme est le voltige sur une corde raide: l’on ne saurait s’y maintenir longtemps [...].” E acrescenta : “La plus grande de toutes les noblesses n’est-elle pas celle de l’homme libre qui part pour apprendre, qui revient et qui rend compte?”2 Aparentemente, nada aproxima o diplomata raffiné, o viajante elegantíssimo e mundano, verdadeiro gentleman, íntimo de Proust, que é Paul Morand, do granítico e inconsútil transmontano Miguel Torga. E, no entanto, num passo de “O Quarto Dia da Criação” de A Criação do Mundo, curiosamente escrito quase no mesmo ano, Torga também reconhece, embora com outro fervor telúrico, que a viagem e a curiosidade cosmopolita não podem durar muito tempo e que, na sua própria função de aprendizagem, de descoberta do Outro, só ganham sentido no regresso, quando on rend compte, ou seja, quando o acto da escrita, na sequência do acto de leitura que acompanha a 2

Paul Morand, Voyages, Paris, Robert Laffont, 2001, p. 896.

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viagem ou a precedera, lhe dá corpo. Trata-se do diálogo em Paris com um amigo, numa Europa à beira da Segunda Guerra Mundial : Ando de fronteira em fronteira a ver coisas. Mas sei de ciência certa que só quando voltar é que lhes vou descobrir a verdadeira significação. Chega a ser engraçado : o universal, que num país estrangeiro sinto infinitamente longe de mim, das fragas nativas parece-me ao alcance da mão. . . [. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ] Feliz ou infelizmente, conheço os meus limites, que este passeio pela Europa ajudou curiosamente a precisar. Seria capaz de viver longe da pátria na situação de emigrante que ganha o seu pão. Já o fui, de resto. Mas nunca poderia viver fora dela como escritor. Faltava-me o dicionário da terra, a gramática da paisagem, o Espírito Santo do povo.3

Consequentemente, podemos, desde já, constatar o seguinte : para Torga, a viagem, implicando embora um espírito cosmopolita indispensável a toda a atitude de livre abertura ao Outro, ao estrangeiro, implica também, à partida, um enraizamento social, histórico e cultural profundo, que determina o próprio acto de escrita, no regresso. Por outro lado, a descoberta de um autor e da leitura desse autor, paralelas à viagem, só se tornam plenas para Torga quando há também descoberta do lugar a que esse autor esteve ou está intimamente ligado. O exemplo talvez mais paradigmático é o do escritor Amiel e da sua Suíça natal. Como se sabe, Torga escolheu uma citação de Amiel (“Chaque jour nous laissons une partie de nous-même en chemin”) para figurar como epígrafe, ou melhor, como pórtico em todos os volumes do seu Diário. É uma citação evidentemente oportuna, aludindo simultaneamente ao tempo e ao espaço. Todavia, o que poderá Amiel, esse herdeiro do Rousseau das Confessions, esse apagado escritor suíço do mal du siècle da segunda metade do século XIX, autor de Fragments d’un journal intime (edição póstuma, 1883), significar de facto para Miguel Torga? A resposta estará, creio, não no Diário, mas sim no “Quarto Dia” de A Criação do Mundo, quando Torga evoca a descoberta de uma Suíça coberta de neve que é “imagem colectiva da moderação”4 . O encontro, num pequeno hotel de Martigny, perto de Genebra, com Mademoiselle Marguerite e a sua 3 4

Miguel Torga, A Criação do Mundo, 1a edição conjunta, Coimbra, 1991, p. 295. Id., p. 273.

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“aberta e calma serenidade”5 , leva-o à descoberta de Amiel e da sua obra no seu próprio mundo : No fim do jantar, quando ia a sair, fui dar com Marguerite, que nos servira à mesa, refugiada nas páginas de uma biografia de Amiel. Aproximou-nos, além da mocidade, do instinto e da centrípta pressão do exterior, essa fascinação da letra redonda [...]. Acrescia ainda que Amiel era um dos meus homens, secretamente admirado pela minha própria timidez que, apesar de compensada, se doía também nos recessos do meu ser. Reencontrá-lo na sua terra, naquele dia e nas mãos duma mulher, parecia-me simbólico. Tornava-se-me transparente o seu drama, todo de gelo circundante, de íntima solidão, e de feminina solicitude.6

Note-se a expressão “reencontrá-lo na sua terra”, o que, para além da importância dada ao espírito do lugar, significa que Torga já o lera antes e que até, provavelmente, já o tinha escolhido para epígrafe do seu Diário. Mas o factor decisivo, a nível do próprio imaginário, foi o de ter descoberto plenamente Amiel ali, na Suíça, na terra natal do escritor, com neve e tudo, dando corpo e alma ao “silêncio dos livros” (como diria George Steiner) e, além disso, através da experiência do encontro com uma mulher que, maternal, encarna o próprio espírito do escritor e também do lugar. Assim, a referência-chave a Amiel tem uma conotação autobiográfica evidente, que não é só produto duma leitura empática, mas, paralelamente, do acto de viajar e da “verificação” dessa leitura durante a viagem, transposta para um caso vivido. Ela é, portanto, devida a uma experiência vital importante, ainda que breve, como se pode constatar logo adiante, ligando, no mesmo percurso, as leituras de Amiel e de Rousseau e provocando a interrogação sobre a sinceridade do escritor quando transfigura a vida em arte: A partida foi daí a dias. [...] Marguerite chorava silenciosamente na sala deserta do hotel. Cá fora nevava outra vez. Ironicamente, a mão invisível do acaso pusera-se a caiar aquela hora, que dentro de nós tinha a negrura dum adeus sem esperança. [...] Já em Genève, a meu pedido, o carro parou diante do monumento a Rousseau [...]. Pobre 5 6

Id., ibid. Id., pp. 273/74.

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Marguerite! [...] A única atenuante que talvez pudesse alegar em minha defesa, é que sofria. Sofria como um cão, por ser como era. Que o dissessem as páginas íntimas que escrevia diariamente, mesmo se, no puro plano da sinceridade, muito houvesse a objectar-lhes, como às de Amiel, que me abrira as portas daquela terra, e às de Rousseau, que as fechava.7

Num outro registo autobiográfico e também estético, assinale-se, no “Terceiro Dia” de A Criação do Mundo, a viagem, depois da dura experiência da emigração e já “futuro doutor de Coimbra”, de regresso a Portugal e a paralela referência à leitura de Machado de Assis. Torga descreve a emoção “imprevista, perturbante e confusa” de ver “lançar à água, pela calada da noite, o cadáver do sr. Porfírio, um patrício retalhista, que a meio da travessia morreu tísico.” E acrescenta: Afastei o pesadelo daquela agonia sem esperança de repouso a ler Machado de Assis. Na Antologia Werneck do Ginásio figuravam apenas extractos dos seus livros. Mas eu comprara o Quincas Borba, e tinha agora diante de mim Rubião a sonhar. Podia, finalmente, fartar os olhos de letra redonda, e, graças à gazua literária, penetrar no íntimo das pessoas e das coisas. Os quadris carnudos de uma inglesinha enjoativa, a fleuma do criado John e a melancolia do cançonetista da orquestra, horas a fio debruçado na amurada, tornavam-se mais compreensíveis à luz de experiências emprestadas. Em qualquer novela havia que aprender. 8

Aliás, não é só a leitura de Machado de Assis que acompanha Torga na viagem de volta a Portugal, é também a memória de leituras feitas na primeira viagem de barco, a de ida, ainda com treze anos, leituras essas obviamente mais simples, de autores mais populares, como as de Júlio Verne, Perez Escrich e Zevaco. Leituras que já então o levam a procurar a “vraie vie”, como dizia Proust, no “silêncio dos livros”, sem, no entanto, deixar de a experimentar, de a confrontar com a realidade dos factos : Devorava a Escuna Perdida de Júlio Verne, e era rememorar o espectáculo da tempestade seguida de nevoeiro que na primeira viagem trouxera a confusão ao navio. Colete de salvação vestido, a sirene a apitar 7 8

Id., pp. 275/76. Id., p. 127.

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Álvaro Manuel Machado aflitivamente, a marinhagem a postos, lágrimas e rezas. . . – Tome cuidado com tanta leitura... Não exagere! – Tanto lê, que treslê. . . À observação razoável do meu tio, acrescentava a minha tia a costumada acidez. Mal sabia ela que no último romance que desencantara na biblioteca de bordo a surpreendera retratada. Nas antigas histórias de Perez Escrich e de Zevaco fora empolgado apenas pelos lances do enredo [...]. Mas ia pouco a pouco descobrindo que os autores procuravam criar, através das personagens que punham em movimento, símbolos perenes de realidades quotidianas. A encarnação do mal, de que minha tia era o exemplo vivo, tinha uma representação ideal que se chamava Megera...9

Em suma : o “silêncio dos livros” acompanha Torga desde o início, em diferentes viagens, relacionando-se intimamente não só com a descoberta do Outro, no espaço e no tempo, mas também com a por vezes dura aprendizagem da vida, inclusive da vida familiar. Essa aprendizagem vai implicando cada vez mais, à medida em que o escritor se afirma na plenitude do seu acto criativo, regressos cíclicos a lugares e, paralelamente, a certos autores que o fazem descobrir-se a si próprio. Assim, no oitavo volume do Diário (1a edição de 1959), Torga expõe muito claramente o significado dos regressos a determinados lugares, ou antes, das revisitações ritualísticas de certos espaços privilegiados (e aqui limito-me, como referi no início, a espaços estrangeiros, dado o enfoque predominantemente comparatista desta minha comunicação, que evoca apenas leituras estrangeiras), revisitações essas acompanhadas de releituras. Diz Torga : Mais para verificar a minha capacidade de reacção do que comprovar a força impressiva que as anima, gosto de rever certas terras e reler certas obras. Ao mesmo tempo que recapitulo nelas toda uma aprendizagem dos valores, vou avaliando o grau de intensidade emotiva que me resta.10

Constatamos esse processo de autognose, através de viagens que são revisitações e de releituras ritualísticas, sobretudo no que diz respeito a determinadas cidades da Europa : Paris, antes de mais, mas também Madrid, Sala9 10

Id., pp. 127/28. Miguel Torga, Diário VIII, 2a ed. integral, Lisboa, Dom Quixote, 1999, p. 878.

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manca (aqui as releituras de Unamumo são uma constante), Bruxelas, Roma, Florença, Veneza. Vou cingir-me, para terminar a abordagem dos textos de viagem de Torga, à análise breve de viagens e revisitações a Paris e à literatura francesa, fazendo notar de imediato que há frequentemente em Torga, como já referi no ensaio O “francesismo” na literatura portuguesa, um “anti-francesismo” ambíguo, derivado sobretudo da “defesa obsessiva de uma originalidade ibérica que muito cedo se manifesta na sua obra”11 . Tomemos primeiro como exemplo bem significativo algumas passagens de A Criação do Mundo, onde, como já vimos, da infância à velhice, se desenrola o espectáculo do mundo e do eu no mundo, partindo do microcosmo de origem, a aldeia transmontana de São Martinho de Anta. Centro-me no quarto volume, O Quarto Dia, de que já citei outras passagens anteriormente. Torga percorre uma Espanha ainda dilacerada pela guerra civil e já tiranizada brutalmente por Franco, atravessa, como já referi, uma Europa à beira da Segunda Guerra Mundial. Ao entrar em França, sente o “egoísmo gaulês” quando os donos duma pensão em Baiona, católicos, exaltam Franco e consideram “une autre affaire” a luta pela liberdade em Verdun contra o imperialismo prussiano : “Convencidos de que a França era a única realidade significativa do mundo, só as suas epopeias tinham grandeza e dignidade.”12 Todavia, quando chega a Paris, Torga sente que a chamada “cidade-luz” é o centro cultural de toda a Europa e mesmo de todo o mundo civilizado : Paris! A capital do presente, como a desejara ver, de regresso das capitais do passado...[...] Primeiro Roma, Florença, Veneza – a serenidade das aventuras cumpridas. Depois, que viesse o grande coração da Europa actual, com as palpitações e os anseios dum coração moderno. Era de noite que eu finalmente penetrava nele, através de largas e compridas artérias que o prolongavam em todas as direcções, como se quisessem levar o seu calor aos quatro cantos da terra.13

No dia seguinte, ao acordar, instalado nas águas furtadas dum velho hotel, Torga chega à janela e vê “Montaigne a sorrir-me do outro lado da rua.”14 11 Álvaro Manuel Machado, O “francesismo” na literatura portuguesa, Lisboa, ICALP, col. Biblioteca Breve, 1984, p. 108. 12 Miguel Torga, A Criação do Mundo, ed. cit., p. 245. 13 Id., pp. 277/78. 14 Id., p. 278.

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Depois, medita, sentado à mesa dum café do Quartier Latin cheio de algazarra existencialista e onde se discute o último livro de Malraux : [...] às tantas, dei comigo a contrapor à natureza discreta e diurna dos Essais, a condição desgarrada e agónica de Villon. O penitente de Le grand testament, sim, é que era afinal o verdadeiro patrono daquele Paris de estufas de asfixia criadoras, versões presentes das tabernas do passado. A torre de marfim do outro, onde a reflexão serena tivera a sua hora feliz, fora substituída pelos porões promíscuos do desespero existencial.15

Assim, o elemento iniciático da viagem transfere-se para a literatura, através da mitologia intelectual parisiense. No entanto, note-se que Torga mantém sempre a distância no próprio acto de conhecimento e de fascínio pela França. Já vimos, aliás, que nessa mesma viagem Torga teve consciência dos seus “limites”, ou seja, de que seria incapaz de viver fora de Portugal como escritor, no que, aliás, se aproxima de Agustina. Cinquenta e um anos depois, no penúltimo volume do seu Diário, o XV, publicado em 1990, Torga evoca de novo uma das suas viagens a Paris, a derradeira. Aí, já perto do final da vida, as referências literárias (haveria, evidentemente, muitas outras a fazer, se o tempo o permitisse) dão lugar à reafirmação da sua condição essencial de português, através da própria deambulação incansável pelo estrangeiro e das leituras e releituras que vai fazendo: Uma noite em claro a ouvir ressonar este monstro urbano e a pensar nas caminhadas que incansavelmente faço pelo mundo a cabo. [...] E, a sentir já saudades da pacatez do lar, aí venho eu, como agora, desafiar a auto-suficiência francesa ou qualquer outro estigma igualmente alheio e incómodo, na crispação, confessada ou inconfessada, em que estamos sempre diante daqueles que mal reparam em nós, ou então nos julgam e condenam duma penada. Mas gosto de me ver em terra alheia. É uma das maneiras de perspectivar a minha, a que medularmente me importa. O que eu tenho aprendido de Portugal longe das suas fronteiras!16 15 16

Id., p. 284. Miguel Torga, Diário, vol. XV, Coimbra, 1990, pp. 19-20.

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2. Agustina: viagem iniciática e memória Vejamos agora o caso de Agustina. Vou limitar-me aqui a duas obras da escritora, uma recentemente reeditada, com textos inéditos, Breviário do Brasil e outros textos, e outra inédita e também recentemente publicada, Kafkiana, que evoca viagens a Praga. Mas permitam-me, antes de comentar estas duas obras, chamar a atenção para aquilo que, já em 1979, no meu livro Agustina Bessa-Luís integrado na coleção “Vida e Obra” da extinta Editora Arcádia (depois retomado, revisto e aumentado, em Agustina Bessa-Luís – o Imaginário Total, Lisboa, Dom Quixote, 1983) observava, no capítulo “Espírito do lugar, paixão, história”, sobre o primeiro livro de crónicas de viagem de Agustina, Embaixada a Calígula, publicado em 1961: [...] Embaixada a Calígula, do mesmo ano que O Manto (1961) e entre este romance e O Sermão do Fogo (1963), prenuncia o novo ciclo, anunciando já a tetralogia As Relações Humanas. De facto, é nele que o espírito do lugar, bem como, em grau menor, a paixão individual ou colectiva e o peso da História, longamente se manifestam. Mas isto não por ser um livro de viagens propriamente dito, antes por ser um livro em que a viagem é pretexto, elemento desencadeador de efabulação e de reflexão de cariz filosófico. Aliás, logo no início, Agustina Bessa-Luís diz-nos que, embora se viaje muito e com maior facilidade na nossa época, a verdadeira viagem, a viagem iniciática, [...] torna-se extremamente rara.17

É precisamente neste sentido de “viagem iniciática” que estes dois livros, para lá das diferenças óbvias, me parecem ter significativos elementos em comum. Perguntar-se-á: iniciação a quê? Àquilo que marca indelevelmente toda a obra de Agustina: uma constante e multímoda procura do espírito do lugar, entre a memória de um Douro e de um Minho da infância ou da adolescência e uma curiosidade cosmopolita insaciável, marcada frequentemente pelo distanciamento irónico e efabulativo. Comecemos, então, pelas fragmentárias reflexões de Agustina sobre o Brasil, em Breviário do Brasil e outros textos. Trata-se de uma colectânea que inclui o volume Breviário do Brasil, publicado em primeira edição em 1991, incluindo agora um texto inédito que terá 17

Álvaro Manuel Machado, Agustina Bessa-Luís –A Vida e a Obra, Lisboa, Arcádia, 1979, p. 52.

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servido de apresentação pública da obra pela autora, e de uma série de textos publicados no JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias em 1982; e ainda outros textos breves e dispersos, alguns inéditos, que datam de entre 1984 e 2004, este último, “Discurso do Brasil”, lido por Agustina na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, durante a cerimónia de entrega do Prémio Camões. Observe-se, desde o primeiro texto, a função autobiográfica das notas de viagem, quando, no Rio de Janeiro, Agustina evoca o pai, recriando-o como um personagem de romance, através de pequenos pormenores extremamente significativos, desvendados pela memória: O meu pai foi para o Rio tinha doze anos. Nesse tempo era a cidade de Machado de Assis, os homens usavam fatos de seda crua e frequentavam os casinos. Meu pai viveu com aparato e grandeza, tinha punhos de oiro, ratinhos de oiro pousados num brilhante. Também tinha um alfinete de gravata que era um homenzinho aleijado e a corcunda dele era outro brilhante. Era um homem valente, com ar de boa pessoa. Ninguém diria como ele era destemido e sem medo de nada neste mundo. Mas acreditava no candomblé, não falava muito nisso.18

Indo ao encontro desse “pensamento como sono de criança que o Brasil inteiro nos oferece”19 , Agustina, como Torga, descobre um espírito do lugar que está frequentemente ligado à vida e à obra de escritores. É o caso da evocação de Machado de Assis, que já observámos a propósito desse Rio mítico do tempo do seu pai e que reaparece constantemente, mas também, por exemplo, a de Manuel Bandeira quanto ao Recife: [...] quem diz tudo de Recife é Manuel Bandeira. Quem sabia tudo o que lá se passava, como quem vai para Pasárgada a vau do Capibaribe, era Manuel Bandeira. Nós, os da geração de 50, amávamos o poeta, como anfitrião do Brasil. Ainda hoje eu vou a Recife pela mão dele, e visiono os arcos que já não existem e chamo “cambrone” à retrete, que é como se dizia em Recife. Era um poeta iluminado pelas réstias de sol de Caxangá; tem um tom pessoano nos versos, que parecem vento empurrando folhas [...].20 18

Agustina Bessa-Luís, Breviário do Brasil e outros textos, Lisboa, Guimarães/Babel, 2012, p. 12-13. 19 Id., p. 17. 20 Id., p. 23.

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Ainda no Recife, Agustina reúne pela memória, no mesmo lugar, Vitorino Nemésio e Clarice Lispector : “Quando fui ao Recife pela primeira vez, fui à feira de que fala Vitorino Nemésio e, ao pensar nisso, ocorre-me Clarice Lispector : “A minha alma tem o peso duma lembrança.””21 . E em São Salvador da Bahia, Agustina evoca Raduan Nassar paralelamente a Jorge Amado, recorrendo novamente à memória ligada ao espírito do lugar: [...] socorro-me de memórias passadas de quando aqui cheguei sozinha e tive uma receção sumptuosa, à maneira baiana, oferecendo o coração num copo de simpatia. Lembro-me da novela de Raduan Nassar, que continua a ser um dos meus escritores preferidos do Brasil. Chama-se Um Copo de Cólera. [...] Jorge Amado descreve a Bahia como uma mulher e esta tem o sentido de metáfora adormecida, ou esquecida, aquela que perdeu o contacto com a ideia primitiva que ela exprimia. Quando é despertada, a metáfora adormecida tem uma força persuasiva superior. Em Gabriela há uma metáfora adormecida: a terra baiana, que permanece e que não muda através da sua fantasia.22

Frequentemente, Agustina reflecte sobre a destruição que a grande metrópole, como São Paulo, provoca no espírito do lugar: “As cidades estão em risco de expulsarem o espírito do lugar ao tornarem-se grandes demais. [...] O passado só é venerável se o espírito do lugar o representa.”23 . A memória ligada ao espírito do lugar infiltra-se, assim, a cada instante de viagem, na escrita do viajante, como diz Agustina, resumindo o seu percurso pelo Brasil, numa breve nota final, texto inédito, datado de 1992, a propósito de Breviário do Brasil: Os livros que se escrevem são uma forma de “canção de cisne feita em hora extrema”, como diz o Camões. Pois tudo o que vemos nos parece oferta à memória e é louvor da morte em que andamos ao colher da memória o sustento. [...] Este livro não é um diário. É uma conversa feita de amores e desamores repentinos e com a arte de os deixar ao lado, antes que nos agradem ou desagradem de mais. [...] O livro prolonga o que ao esquecimento se deve. 24 21

Id., p. 65. Id., p. 69-75. 23 Id., p. 94-95. 24 Id., p. 165.

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Ao contrário de Breviário do Brasil, com mais de 250 páginas, Kafkiana é um pequeno volume constituído por quatro textos breves, datadas de entre 1983 e 2005, que são outras tantas reflexões fragmentárias sobre Kafka, a sua obra e a sua vida, numa Praga mítica, revisitada. Ainda aqui, a viagem é um pretexto para accionar a memória e desencadear as mais diversas e insólitas divagações de cariz ficcional, predominantemente aforísticas, relacionadas com o espírito do lugar. Assim, no seu “encontro com Kafka”, escritor de quem é “leitora impaciente”, Agustina revela, logo no primeiro texto, a sua escolha de um imaginário que caracteriza a sua própria obra: Não sou uma ardente admiradora de Kafka, pois prefiro o estilo maravilhoso ao pedagógico. Mas reconheço que a estranheza que ele nos comunica é uma fonte de mais puras reflexões do que a tendência para as soluções eufóricas e de lírico compromisso.25

Centrando as suas observações deambulatórias na relação entre a vida e a obra de Kafka em Praga, aureolada de privilegiado espírito do lugar, Agustina releva a “marginalidade cultural dos judeus de Praga”26 e, ao considerá-lo mais um “filho enjeitado dos românticos, percorrendo eternamente as muralhas dos paraísos interditos” 27 do que um escritor expressionista, insiste nessa marca de culpabilização tipicamente judaica que atravessa toda a obra kafkiana: Provavelmente porque se trata de um judeu, Kafka não atinge a desculpabilização. O nevoeiro de que ele fala e para o qual o homem estende os braços não é mais do que a densa culpa em que ele tem de perder-se. É um homem vencido pelo escrúpulo da divindidade. 28

Paralelamente, regressando a Praga e fazendo dessas viagens de regresso uma espécie de subtil peregrinação literária, Agustina acentua com extrema acuidade o carácter obsessivamente citadino da obra de Kafka relacionado com a sua origem judaica, no último dos textos da coletânea, intitulado “Kafkiana, opus ensemble” : 25

Agustina Bessa-Luís, Kafkiana, Lisboa, Guimarães/Babel Ed., 2012, p. 16-17. Id., p. 19. 27 Id., p. 27-28. 28 Id., p. 48. 26

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[Kafka] é, mais do que nenhum outro escritor, uma presença urbana, descontente com a sua obra, descontente com a crepuscular elegância do Castelo que ele não habita mas que escolhe como morada. Os livros de Kafka são um ato de paciência, mais do que uma prova de talento. [...] Em todo o judeu há um processo de grandeza que não conhece solução. Esta é a definição do Processo de Kafka. [...] Para lá dos muros do cemitério judeu há ainda um sopro paciente, que resiste e que a neve não consegue sepultar. [...] O Castelo, que se impõe a toda a cidade do cimo da sua colina branqueada pela neve, é um lugar mítico [...].29

Conclusão Concluindo, podemos dizer que, a níveis diferentes do imaginário e da escrita, Torga e Agustina têm em comum sobretudo o sentido profundamente iniciático da viagem, derivando daí o processo complexo da memória e, por outro lado, da leitura de escritores e de obras ligados ao espírito do lugar. Assim, para Torga há uma relação vital entre a viagem, sobretudo a viagem ao estrangeiro, e a leitura como conhecimento e re-conhecimento do espírito do lugar. Todavia, ele não poderia dizer como Sartre (para referirmos mais um autor francês, este frequentemente criticado por Torga) diz em Les mots que fugia das pessoas para ir “rejoindre la vie, la folie des livres”30 Pelo contrário, para Torga a viagem é ir ao encontro das pessoas, do Outro, estando a leitura no centro desse encontro vital, ficando para sempre. Ou seja : em Torga, a realidade do “silêncio dos livros”, a sua aura, enconchada no mais íntimo do ser, não é incompatível com a realidade quente e imediata da vida, antes a acompanha - e acompanha-a na própria sagração do espaço que o imaginário da viagem proporciona e laboriosamente constrói. Por seu turno, Agustina, mais distanciada, utilizando frequentemente o estilete da ironia, viaja através das metamorfoses de um mesmo imaginário recorrente, obsessivo: o do espírito do lugar, entre a presença e a ausência, a memória, o testemunho e o voo ficcional, predominando em todos esses textos, acrescente-se, a magia desse “momento musical do pensamento”, como diz George Steiner31 , que é o aforismo. 29

Id., p. 79-81. Sartre, Les mots, Paris, Gallimard, col. Folio, 1975, p. 47. 31 George Steiner, George Steiner em The New Yorker, Lisboa, Gradiva, 2010, p. 310.

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0.13 A Escrita e as “Oralidades” na Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto (breves notas de leitura)

João David Pinto Correia Professor Associado aposentado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Em memória da colega e amiga Prof. Doutora Teresa Gamito

Neste 4o Centenário da primeira edição de Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto (1614), creio que a melhor decisão será propormo-nos relê-la não só nos seus aspectos histórico-literário-culturais, mas principalmente estudá-la nas suas componentes literárias, de estrutura, de conteúdo, de elementos e agentes narrativos e da sua expressão linguístico-literária. Relê-la de vários ângulos, centrando-nos por vezes naquilo que pode ser menos evidente ou à primeira vista pouco relevante, ou que se nos tivesse aflorado à nossa sensibilidade de receptores da obra, pelo menos por momentos e que, então, nos tivesse parecido como não muito pertinente ou quanto muito talvez a adiar estudar para momentos de maior aprofundamento. É

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essa a minha tarefa com esta modesta tentativa a ser completada ou mais aprofundada noutra ocasião. Da leitura de Peregrinaçam, a uns leitores mais interessados na acção ou na aventura impor-se-á ora a passagem rápida e a densidade dos episódios, a outros a expressão solidamente arquitectada do ponto de vista sintáctico, ora rica na adequação do léxico a acções e respectivos agentes relativamente aos novos locais e gentes, e à preocupação pela enumeração e colorido nas descrições. No meu caso de leitor, é claro que sabia e sei que, na obra de Mendes Pinto, a escrita domina com fluência e, ao mesmo tempo, complexidade. No entanto, cada vez mais se foi impondo, e se impõe, outra característica que é a proximidade vinda do envolvente fascínio a que não é estranha uma muito trabalhada ocorrência de oralidade ou mesmo de oralidades. Não me refiro, naturalmente, a uma contínua torrente, a um contínuo registo do discurso oral que, procurando transcrever directamente relatos de carácter mais prático (nas partes respeitantes aos relatos de naufrágios ou a aspectos de carácter mais técnico-prático), mas a uma exposição narrativa e descritiva que muito deve a um registo ou à recriação cuidados e estéticos da oralidade, que se aproveita de recursos e estratégias plurais baseados nos vários modos das possíveis oralidades que se revelam emergentes, porém logo dominadas ou transfiguradas pela tonalidade ora mais intimista e pessoal, ora valorizadora das potencialidades que a voz autobiográfica ou de base intimista, não só possibilitada pela 1a pessoa do Narrador-Personagem nas suas observações mais sentidas e incisivas, como também da transposição das oralidades decorrentes da “actuação” linguística dos seus testemunhos registadores das falas dos seus outros companheiros ou inimigos, desde a pequena intervenção destacada de uma situação de ocorrência dialógica aos discursos mais ou menos longos, às suas observações e considerações por vozes transcritas das línguas indígenas que são traduzidas ou parafraseadas ou em português. A escrita no total da obra beneficia da sua natureza de funcionar como testemunho pessoal da experiência deambulatória e quase confessional e memorial que atravessa a Peregrinação: um “eu”- narrador e personagem que garante a presença quase permanente da 1a pessoa testemunhal de vivência ou observadora que se dirige, como herança, aos “filhos” (na realidade, eram filhas) e a todos os seus leitores e a todos os portugueses. www.clepul.eu

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O conhecimento de todo o texto de Peregrinaçam permite-nos, na verdade, considerar que todo ele, pela sua configuração altamente autobiográfica, funciona para o receptor / leitor como uma escrita genialmente elaborada de um testemunho narrativo, descritivo, expositivo, comentarista, dramático. E tal testemunho chega-nos carregado de uma oralidade ou, mais correctamente, de oralidades de diferente natureza que merecem ser comentadas, senão mesmo analisadas. É como se Fernão Mendes Pinto nos confiasse uma longa narrativa com a duração de vivência de vinte e um anos, em que um “eu” fala para um “tu” ou “vós”, um receptor. E o que nos fascina quase sempre é essa tonalidade de íntima aproximação do “pobre de mim”, como ele se qualifica, em relação aos destinatários (esse “tu” ou “vós”, que, na realidade, somos “nós”), destinatários que somos da mensagem literária. A extensão do texto, a minudência das quantidades e enumerações, as rápidas mudanças de episódios, os apontamentos pormenorizados de gentes, de cenários e factos em grande parte “exóticos”, a própria extensão da obra em duzentos e vinte e seis capítulos, etc., não afastam ou amedrontam, antes cativam o leitor, dado que todo esse enorme número de elementos segue uma isotopia de aventura e alguma quantidade de sensacionalismo, tuteladas numa expressão rigorosa, mas versátil e colorida.

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Assimilando discursos diversos, desde o do apontamento lírico ao relato trágico-marítimo, ao da confissão moral ou de laivos filosóficos, ao da descrição (quer paisagem, quer retrato, seja monumento, seja costume), a Peregrinaçam constitui, por outro lado, um maciço e bem estruturado texto que chega aos seus leitores como uma única confissão escrita mas espessa de oralidades – um texto, mas também um todo de diferentes presenças de modalidades de voz. Deste modo, adianto, em jeito de primeira tentativa de comentário, que, para o estudo das oralidades na escrita da Peregrinaçam, podem ser considerados os seguintes estratos – registos de oralidades: 1 – o próprio discurso do Narrador-Personagem principal de tendência oralizante muito adaptado a um muito atraente encanto derivado de uma escrita de cariz confessional, quase intimista e autobiográfico, que muitos de nós estimam atingir estatuto de quase solilóquio; 2 – a oralidade colectiva substantivada ou qualificada pelo Narrador-Personagem por registo de termos muito sonoros e coloridos; 3 – o fragmento transcrito do diálogo ou seja um pseudo-monólogo, mas sempre em “situação de diálogo”, que é da responsabilidade de uma personagem (por vezes, duas ou, excepcionalmente três), que pode vir a retomar as falas, enquanto todas as que pertenceriam a outras personagens ficam apenas registadas em discursos reportados, resumidos ou mais parafraseados, ocupando a maior parte da escrita do capítulo ou capítulos, se estes se encontram em sequência de cena ou de episódio; 4 – o diálogo e a intervenção apenas reportados ou transcritos em discurso indirecto. por iniciativa do narrador (portanto, distintos da primeira pessoa do Narrador-Personagem, quanto muito a Personagem em 1a pessoa, aliada a “companheiros” ou “nós”), podendo ser interrompidos por uma ou algumas, normalmente poucas, falas de um ou de alguns dos agentes presentes na situação narrativa ou dramática, não necessariamente personagens principais dos episódios, mas mais significativas do ponto de vista da sua modesta ou colorida presença no universo da comunidade; www.clepul.eu

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5 – a intervenção-oralidade, com características retóricas, argumentativas e muitas vezes de expressão poética, de mais alargada extensão (espécie de discurso, pequeno excurso, exercício exótico-poético), produzida por uma personagem de alta posição social (função hierárquica religiosa, social, política) dirigida a outra personagem ou a um público mais alargado; 6 – o diálogo propriamente “dito”, com as falas a serem registadas em interacção de uma personagem ou agente com outra ou outras personagens; neste caso, haverá uma tentativa mas cuidada do que podemos estimar verdadeira troca de falas, como costumamos entendê-la na narrativa / dramática, registada, portanto, explicitamente como componente dramática, embora nem sempre dispensando a modalidade das intervenções orais reportadas ou em discurso indirecto, mas em menor grau. Desenvolvendo não muito largamente estes seis tópicos principais, referirei os aspectos e alguns passos dos mais significativos da Peregrinaçam, lembrando que esta comunicação se propõe constituir tão-só “breves notas de leitura”: Tópico 1 – Em relação ao primeiro tópico, temos em consideração que a obra começa com uma Introdução (não de forma explícita, mas constituída por uma primeira parte do Capítulo I) que muito contém de discurso-oralizante próprio de solilóquio memoralista, ou seja aquele início denso e esmeradamente cuidado do ponto de vista sintáctico-rítmico: “Quando às vezes ponho diante dos olhos os muitos e grandes trabalhos e infortúnios que por mim passaram, começados no princípio da minha primeira idade e continuados pela maior parte e milhor tempo da minha vida, acho que com muita razão me posso queixar da Ventura, que parece que tomou por particular tenção e empresa sua perseguir-me e maltratar-me, como se isso lhe houvera de ser matéria de grande nome e de grande glória.” Nesta mesma Introdução, inicia-se, o “princípio da (minha) peregrinação” que tem, como conteúdo resumido, os tempos que o narrador-personagem passou de “miséria e estreiteza da pobre casa” do pai em Montemor-o-Velho, da chegada a Lisboa e respectivas primeiras privações e das primeiras tentativas de viagem. Também o mesmo discurso oralizante com laivos de solilóquio marcará www.lusosofia.net

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outros passos da obra, principalmente a segunda parte do capítulo CXXVI, com os queixumes e o reconhecimento de que tudo o que o Narrador-Personagem sofreu mereceu a pena, sentindo-se, apesar dos “trabalhos”, bem recompensado, mesmo que não tenha obtido quaisquer benefícios oficiais. Ao longo dos capítulos da obra, reiteram-se estas notas autobiográficas ao longo do percurso peregrinatório com o registo de emoções, entusiasmo, sofrimento, espanto, deslumbramento, horror, sempre em apontamentos mais ou menos longos, por vezes apenas observações: frequentemente, convocase o inefável, com a confissão de que não há palavras que possam contar ou dizer o que vê e sofre, ou pelo que ele e os companheiros passam. Também se regista indirectamente, com palavras do Nautoquim, quando este justifica a escolha de Mendes Pinto e não Cristóvão Borralho: “Este que é mais alegre e menos sisudo, por que agrade mais nos japões e desmelancolize o enfermo. . . ” (cap. CXXXV). Outras vezes confessa que é melhor evitar a dificuldade de se referir condignamente às situações: ”por evitar prolixidade, e não me deter em particularidades deste caso, que seriam muito largas de contar. . . ” (cap. V). Também pode escrever sobre o seu ofício de Narrador, expondo procedimentos da arte de como organizar a mensagem: “Agora me cumpre deixar a armada e tratar um pouco neste lugar do que passou em Malaca. . . ”, para, depois de um largo excurso, retomar o que estava a escrever no capítulo anterior: “Tornando ao padre mestre Francisco continuando ele sempre, como atrás disse, em pedir no fim de todos os sermões, um pater-noster e uma ave-maria pela vitória dos nossos que dali eram partidos. . . (início e meio do cap. CCVII), para terminar esse mesmo capítulo com a observação: “E outras maravilhas fez Nosso Senhor por este bem-aventurado padre, de que eu vi algumas, e outras ouvi, de que agora não faço menção porque ao diante espero de tratar de algumas delas.” Mas pode igualmente manifestar o repúdio por crenças, costumes ou cenas com que os Portugueses se deparam, ou, então, regista velada ou bem contundente crítica ao comportamento dos Portugueses (por exemplo, o desentendimento sobre os Fonsecas e Madureiras, cap. CXV). E frequentemente afirma o seu repúdio pela “maldita seita” e pelos seus seguidores, referindo-se aos “mouros”. Tópico 2 – É no capítulo II que o Narrador-Personagem trata da partida www.clepul.eu

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para a Índia num quase relato condensado do que, depois, aconteceu na viagem até a chegada a Diu. O contacto com uma embarcação que depois se veio a verificar que não era de amigos vem revelar a ruidosa recepção (“davam muitas gritas e apupadas”, cap. III). “Gritas”, “apupadas” são as primeiras das recorrentes referências às oralidades colectivas, isto é, os vários modos como estas se nomeiam ou são qualificadas. Em diferentes partes da Peregrinaçam, o narrador-personagem regista os ruídos, os gritos, as reacções de grupos de pessoas, ou das multidões: “todo o rumor que fazia a gente que estava de fora” (cap. CXCVI), “com um espantoso tumulto de vozes” (ib.), referências repetidas “à characina” (expressão para demonstração exterior de regozijo e saudação) ou “sumbaia / xumbaia” (saudação reverencial), “uma briga tão áspera e acesa” (cap. VI), “deram uma grande grita” (cap. XXXVI), “vozearia e matinada deles” (cap. XLVII), “gritos e lágrimas” (cap. LIII), “com as gritas” (LIV), “a vozearia que faziam” na corte do rei do Bungo (cap. CXXXVII), “gritas e estrondos de muitos tangeres”(cap. CXXXVIII), entre outras passagens, para já não referir o “pregão” do Achém pela morte do rei do Aaru (cap. XXVII) ou ainda os “grandes debates” (cap. CXXXIX) e nos capítulos respeitantes às discussões entre Francisco Xavier e os bonzos. Tópico 3 – As primeiras falas “explícitas” (digamos transcritas a partir da comunicação oral) da Peregrinaçam são proferidas pela Princesa de Tigremahon, mãe do Preste, em Fumbau: trata-se da recepção amigável por parte de uma soberana favorável à chegada dos cristãos. Estas falas, neste capítulo e em muitos outros, consistem em pequenos monólogos, mas sempre situadas em cenas ou episódios com outras personagens, cujas intervenções ficam resumidas ou parafraseadas no discurso narrativo. A mãe do Preste dirige-se aos portugueses acabados de chegar: “- A vinda de vós outros, verdadeiros cristãos, é ante mim agora tão agradável, e foi sempre tão desejada, e o é todas as horas, destes meus olhos que tenho no rosto, como o fresco jardim deseja o borrifo da noite! Venhais embora! E seja em tão boa hora a vossa estada nesta minha casa, como a da rainha Helena na terra santa de Jerusalém.”

De notar a contaminação do discurso com a imagem lírica do “borrifo da noite” (diga-se que “borrifo” será uma das metáforas preferidas de Mendes Pinto, ao longo da obra, a par de outras, como “bocejo”), Após nove dias, www.lusosofia.net

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os portugueses, “nos fomos despedir dela”, e a Princesa, que dará aos quatro portugueses, entre os quais se encontrava o Narrador-Personagem, “vinte orqueás de ouro”, logo esclarecidos no seu valor (“duzentos e quarenta cruzados”), novamente se dirige com poucas, mas comovidas palavras: “- Certo que me pesa de vos irdes tão cedo, mas já que é forçado ser assi, ide-vos muito embora, e seja em tão boa hora a vossa tornada à Índia que quando lá chegarem vos recebam os vossos como o antigo Salamão recebeo a nossa rainha Sabaa, na casa admirável da sua grandeza.”

Em muitos outros capítulos, o mesmo processo será seguido: enquanto há intervenções de agentes, secundários ou principais, que são reportadas (do género: “X disse. . . “, “Y respondeu. . . ”), reserva-se, para falas de uma personagem (como a da Princesa), mesmo que aparentes monólogos, as ocorrências mais importantes, como referimos de seguida. Tópico 4 – Na maior parte dos capítulos, encontram-se, de facto, exemplos de oralidade reportada, em discurso indirecto. Este parece mesmo constituir o processo preferido na extensa narrativa de Mendes Pinto: há ao longo do texto a manifesta opção pelo discurso reportado, resumo ou paráfrase do discurso directo das falas. Podemos considerar, como exemplo, o que sucede quanto a este aspecto num dos primeiros capítulos, o VI. Não há senão uma fala; o resto é o relato do que se requereu, do que se disse, do que se replicou: embora seja uma citação longa, terá a vantagem de nos acompanhar nesta abordagem, sendo pertinente que se assinalem com itálico algumas passagens: “Ao outro dia à tarde os sete que ficámos vivos fomos postos em leilão em uma praça, onde todo o povo da cidade estava junto, e o primeiro que o porteiro tomou pela mão para fazer seu ofício, foi o pobre de mim. E começando a dar o primeiro pregão, ao caciz moulana, que já era chegado com mais outros dez ou doze seus inferiores, também cacizes da maldita seita, requereo ao Heredim Sofo, capitão da cidade, que nos mandasse de esmola à casa de Meca, para onde ele estava de caminho, para que em nome daquele povo, fizesse aquela romaria, porque não era razão, nem tão pouco honra do mesmo capitão, mandar visitar o corpo do Profeta Noby, com as mãos vazias e sem levar cousa em que o rajá Dato, moulana maior da cidade de Medina, pudesse pôr os olhos (. . . ) A que o Capitão respondeo que não tinha poder naquela pressa para www.clepul.eu

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dispensar nela tão largo como lhe ele pedia, mas que falasse ele ao Soleymão Dragut seu genro, porque ele o faria de muito boa vontade. // O Caciz lhe replicou dizendo que as cousas de Deos e das esmolas pedidas em seu nome, não haviam de ser joeiradas por tantas mãos como ele dizia, senão somente pelas daqueles a quem se pedissem. E que pois ele só era capitão daquela cidade e daquele povo que ali estava junto, que a ele só pertencia condecender em peditório tão justo e tão santo e tão agradável ao Profeta Noby Mafamede, pois Ele só fora o que dera a vitória daquela pressa a seu genro, e não o esforço dos seus soldados como ele dizia. // O que ouvindo um janíçaro de uma das três galeotas, homem honrado e de muito ser e valia entre eles, por nome Coja Geinal, lhe respondeo quase merencorico do que lhe tinha ouvido em desprezo seu e dos mais que foram na nossa tomada: - Mas quanto milhor vos fora para salvação da vossa alma partirdes c’os pobres soldados do vosso que vos sobeja, que com palavras de hipocrisia quererdes-lhe roubar o seu, como tendes por ofício fazer continuamente, etc., etc.”

De notar o contraste da abundância da oralidade “reportada” e a economia da “fala”, e, como acontece muitas vezes, atribuída a um “outro” (personagem principal ou secundária). E continua o Narrador: “De maneira que por evitar prolixidade, e não me deter em particularidades deste caso, que seriam muito largas de contar, desta união se veio a travar entre eles uma briga tão áspera e tão acesa que veio a parar em mais de seiscentos mortos de ambas as partes, e em ser saqueada mais de meia cidade, e roubada a casa do moulana, e ele feito em quartos e lançado ao mar com sete mulheres suas e nove filhos e toda a mais gente da sua família que os soldados tomaram naquele fragante, sem a nenhum quererem dar a vida.” (cap. VI)

Também exemplar do funcionamento da oralidade em Peregrinaçam é todo o capítulo XXXVII – “Do que passámos os três companheiros despois que nos metemos pelo mato dentro”. Em cena temos dois portugueses, Cristóvão Borralho e o Narrador-Personagem – já que o outro companheiro, Bastião Anriquez, tinha morrido; em grande sofrimento – que pedem socorro a quem vinha numa “barcaça carregada de sal”: “pedimos de joelhos aos remeiros que nos quisessem tomar”. Ambos, “gritando em altas vozes”, tornam a pedir “com muitas lágrimas”. E acrescenta-se: “Ao tom destes nossos brados saiu de debaixo do toldo uma mulher já de dias” que, depois, será qualificada de “honrada mulher” e “honrada dona”. Esta mulher não recebe nome, www.lusosofia.net

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mas com a autoridade de quem comandava o grupo dos “remeiros”, anuiu a auxiliar os dois portugueses. Ajuda-os a limparem-se, dá-lhes de comer, e interessa-se em saber as razões da sua tão miserável situação e também lhes comunica que o responsável da acção inimiga contra os dois deve ser / é um “mouro guzarate por nome Coja Acém”. Não há lugar para a fala registada de qualquer dos portugueses. É “a mulher já de dias” que, para além de tudo fazer para que os portugueses ficassem limpos e bem tratados, faz três intervenções directas: em primeiro lugar, “Comei vós outros, pobres estrangeiros, e não vos desconsoleis por vos verdes dessa maneira, porque aqui estou eu”, pedindo-lhes que lhe dissessem os motivos de tão grande infortúnio. “A isto lhe respondemos nós que por pecados nossos”. Voltando a falar, a “honrada dona” considera: “Bom é sempre em vossas adversidades os toques da mão do Senhor. . . ”. Depois, perguntou-lhes “pela causa de (tal) desaventura”. Eles contaram-lhe “então tudo o como passara, mas que não conhecêramos que gente era a que nos fizera aquilo, nem sabíamos a razão por que no-lo fizera”. Informaram, então, em registo reportado, os que acompanhavam a mulher que devia tratar-se de Coja Acém. E a “honrada mulher”, “batendo então nos peitos por sinal de grande espanto”, intervém pela terceira vez, acrescentando que esse “era um mouro que queria mal aos homens de Malaca” e que se gabava de ter matado muitos deles e que continuaria a fazê-lo. E acrescenta o Narrador-Personagem: “Nós, espantados de uma cousa tão nova, lhe respondemos que lhe pedíamos que nos dissesse que homem era aquele”. E finaliza o capítulo com a observação: “E por todo o caminho nos foi contando outras muitas particularidades do grande ódio que nos tinha aquele mouro e do que em nosso vitupério contava de nós”. E, como sabemos, este mouro, o Coja Acém será depois perseguido e morto por António de Faria, em capítulo posterior.

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Passagem importante quanto a este aspecto do discurso reportado é a seguinte: “E, repreendendo eles (bonzos) o povo por isto, lhe disseram que não dissessem aquilo que era grande pecado, nem houvessem medo, porque eles lhes prometiam de pedirem todos ao Quiai Tiguarém, deus da noite, que mandasse à terra que não fizesse mais do que tinha feito, porque lhe não davam esmolas. . . ” (cap. XCVI).

Esta é, na verdade, a mais notória estratégia discursiva para a oralidade em Peregrinaçam: grande parte do que é dito, pedido, respondido, quer pelos Portugueses, quer pelos representantes do Outro, personagens individuais ou colectivas, é registada num discurso de realização indirecta, reportada. Para o papel da intervenção directa, em oralidade directa transcrita como fala, opta-se quase sempre por uma personagem (ou por muito poucas) que se impõe(m) num capítulo inteiro, senão obrigatoriamente pelo seu estatuto social, muitas vezes pela sua pertinência enquanto elemento estrutural narrativo. Podemos encontrar o processo, mesmo em capítulos com agentes principais, como, por exemplo, António de Faria, que se define como aquele “que faz”, mais do que aquele “que diz” ou “que fala”, ou ainda como Francisco Xavier, cujas falas se evidenciam em relação às outras personagens, portuguesas ou não portuguesas. Tópico 5 – O mesmo acontece com as sequências dos contactos de António de Faria com o ermitão da ilha de Calemplui, o qual é escolhido para longas exposições, pequenas práticas ou breves “sermões”, em tom contundente nas críticas e que constituem trechos de natureza poética. Tais falas geralmente extensas representam marcas do exotismo imagético oriental e salientam outra faceta do registo escrito de uma oralidade eloquente, com muito de ritualista. O cenário onde se passa o encontro de Faria com o ermitão é a paradisíaca ilha de Calemplui, que, no plano da descrição, nos surpreende pela sua caracterização pormenorizada, quer na primeira visão por ocasião da chegada, quando os Portugueses a avistam e contemplam como paisagem fechada, cercada de altas muralhas, com evidente intertexto de proveniência medieval (o hortus da harmonia, da beleza e da paz, confirmado pelo jardim www.lusosofia.net

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de laranjeiras onde se encontram as ermidas). O contraste acentua-se entre lugar e personagens que os Portugueses encontram e as sabidas intenções de roubo por parte de António de Faria. As intervenções de oralidade do chefe português são curtas, incisivas, hipócritas, ou então muito resumidamente reportadas. As do ermitão caracterizamse por ser longas e aparentemente de tom calmo, mas muito marcadas pela expressão imagética, com recurso a comparações e metáforas inesperadas, porque assentes num mundo lírico que não se identifica com o imaginário dos ocidentais, mas com o reflexo e a ilustração de um todo complexo e exótico que é expressão suprema de uma sensibilidade emergente da voz de um venerável representante da hierarquia religiosa oriental. Perante o confronto das duas maneiras de ver e sentir o mundo, há vários tons que vão da comunicação inocente do religioso que confia nas boas intenções do estrangeiro a uma reacção muito acerba à conduta que o visitante vem a demonstrar pelos sucessivos actos do seu reprovável comportamento. Estes trechos exemplificam a outra maneira da adopção da oralidade. Vale a pena apreciá-la na prática de registo dessas falas, verdadeiramente geniais na economia da escrita de Mendes Pinto que já tinham sido ensaiadas em passagens anteriores da obra, e de certo modo recorrentes nas que se seguem a esta parte fundamental da obra, do ponto de vista do estudo da oralidade na Peregrinaçam. Antecipadamente, diremos que vamos encontrá-las na muito celebrada “fala do Menino” e, já num registo diferente (escrito, claro, mas que se pode considerar transcrição do que o agente sente e quer dizer ou que quereria com certeza transmitir oralmente), a “carta da noiva”. Mas o melhor será relembrar, mesmo com trechos desses significativos e bem impressionantes exercícios que o Narrador nos disponibiliza. Primeiro, através de passos da fala, que constituem momentos de registo, senão transcritos como nas crónicas, mas tão intensos e poeticamente poderosos que nos impressionam, hoje em dia (no que se tem considerado a “crítica indirecta”, isto é, talvez da iniciativa do Narrador, tomando o que seria intenção do Sujeito de Enunciação, o próprio Mendes Pinto, a voz crítica sobre os exageros dos Portugueses chegava à narrativa através dos contributos dos representantes do Outro). Exemplifique-se: a primeira “prática” do ermitão de seu nome Hiticou, após uma pequena observação cuja autoria não é conhecida, decorre muito crítica, a seguir a uma intervenção de António de Faria, a que não temos www.clepul.eu

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acesso senão indirectamente ou até mesmo pela própria réplica do religioso, situa-se no Cap. LXXVI: “Muito bem tenho ouvido o que disseste, e também tenho entendida a tua danada tenção em que o fusco de tua cegueira, como piloto do inferno, te traz a ti e a essoutros à Côncava Funda do Lago de Noite, porque em vez de dares graças a Deus por tamanha mercê como confessas que te fez, o vens roubar. Pois pregunto: se assi o fizeres, que esperas que faça de ti a divina justiça no derradeiro bocejo da vida? Muda esse teu propósito, e não consintas que em teu pensamento entre imaginação de tamanho pecado, e Deos mudará de ti o castigo. E fia-te de mim que te falo verdade, assi me ela valha enquanto viver.”

São três práticas maiores, entre as quais há algumas observações. As duas primeiras são reacções a António de Faria e a última já, em resposta a Nuno Coelho. De ressaltar que, para os portugueses, seja para um, seja para outro, não há transcrição das respectivas intervenções. E após uma muito táctica atitude de Faria, o ermitão exclama: “- Bendito sejas, Senhor, que sofres haver na terra homens que tomem por remédio de vida ofensas tuas, e não por certeza de glória servir-te um só dia!” Seguem-se as duas outras grandes falas do Hiticou. Depois do saque a que os portugueses submetem o tesouro do espaço sagrado da ilha, o ermitão dirige palavras de censura a António de Faria. Trata-se de uma lição sobre a necessidade da boa conduta, sem pecado: “Quero-te declarar, como a homem que me pareces discreto, o em que consiste o perdão do pecado, em que tantas vezes me apontaste, para que não pereças para sempre sem fim no derradeiro bocejo da tua boca. Já que me dizes que a necessidade te obrigou a cometeres delito tão grave, e que tens propósito de restituir o que tomares antes que morras, se a possibilidade te der lugar para isso, farás três cousas que te agora direi: a primeira é restituíres o que tomares antes que morras, por que se não impida de tua parte a clemência do alto Senhor; a segunda, pedires-lhe com lágrimas perdão do que fizeste, pois é tão feio diante da sua presença, e castigares por isso a carne continuamente, de dia e de noite; e a terceira partires c’os seus pobres tão literalmente como contigo, e abrires as tuas mãos com discrição e prudência, por que o Servo da Noite não tenha que te arguir no dia da conta. E por este conselho te peço que mandes a essa tua gente que torne a recolher os ossos dos santos, por que não fiquem desprezados na terra.” www.lusosofia.net

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Como já foi referido, o mesmo acontecerá com a tão conhecida intervenção de queixume e crítica contundente do “menino” (cap. LV): após ter narrado, numa primeira fala, o modo como o pai tinha sido morto, do que resultou ter ficado órfão, na segunda o “menino” vai responder à proposta de António de Faria de que “o trataria como filho”: “Não cuides de mim, inda que me vejas minino, que sou tão parvo que possa cuidar de ti que roubando-me meu pai me hajas a mim de tratar como filho. E se és esse que dizes, eu te peço muito, muito, muito, por amor do teu Deus, que me deixes botar a nado a essa triste terra onde fica quem me gerou, porque esse é o meu pai verdadeiro, com o qual quero antes morrer ali naquele mato, onde o vejo estar-me chorando, que viver entre gente tão má como vós outros sois”

E, após repreensão da parte dos que perto se encontravam, continuou o jovem: “ – Sabeis porque vo-lo digo? Porque vos vi louvar a Deos despois de fartos, com as mãos alevantadas e c’os beiços untados, como homens que lhes parece que basta arreganhar os dentes ao Céo, sem satisfazer o que têm roubado. Pois entendei que o Senhor da mão poderosa não nos obriga a tanto a bulir c’os beiços quanto nos defende tomar o alheio, quanto mais roubar e matar, que são dous pecados tão graves quanto depois de mortos conhecereis no rigoroso castigo de sua divina justiça.”

Ao ser questionado por António de Faria se queria ser cristão, ele responde: “ - Não entendo isso que dizes, nem sei que cousa é essa que me cometes. Declara-mo primeiro, e então te responderei a propósito.” Perante a explicação do interlocutor, o menino “pondo os olhos no céo, com as mãos alevantadas disse chorando: - Bendito seja, Senhor, a tua paciência, que sofre haver na terra gente que fale tão bem de Ti, e use tão pouco da tua lei, como estes miseráveis e cegos, que cuidam que furtar e pregar te pode satisfazer como os príncipes tiranos que reinam na terra.”

Quanto à “carta da Noiva” (Caps. XLVII), ela pode ser tida por um dos momentos mais emocionantes da componente lírica na narrativa transposta www.clepul.eu

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para “carta”. a lamentar a não presença do “noivo”, que havia de vir esperála num barco para a cerimónia do casamento. A noiva que chega mais cedo ao lugar combinado envia, então, uma carta ao futuro marido que julgava encontrar-se no junco onde estava António de Faria e os seus companheiros. Assim que a lanteá onde vinha o tio da noiva chega com a dita carta, os portugueses matam-no de modo bárbaro e a todos quantos o acompanham. A “carta” dirigida ao noivo chegou ao junco; ela tornou-se até hoje memorável, não só pelo seu real valor testemunhal, mas igualmente pela sua execução estrutural e estilística, servida por uma original torrente de sentimento, bem forte, de fio lírico de texto epistolar com base oralizante, marcadamente confessional e poético pela sensibilidade de forte e imagética expressão. É de relembrá-la nesta parte, porquanto se torna evidente que, como acontece com este género epistolar, é também muitas vezes uma pertinente maneira de recolher (meio aqui talvez utilizado para fixar de modo sofisticado), uma comunicação que pela sua originalidade na construção discursiva consegue a cabal proposta de um texto que exemplifica o que se pode designar a vertente poética exótico-oriental. E ela reza assim: “Se a fraca e mulheril natureza me dera licença para daqui onde fico ir ver a tua face, sem com isso pôr nódoa no meu honesto viver, crê que assi voaria meu corpo a ir beijar esses teus péis, como o esfaimado açor no primeiro ímpeto de sua soltura. Mas já, senhor meu, que eu de casa de meu pai atéqui te vim buscar, vem tu daí donde estás a esta embarcação onde eu já não estou, porque só em te ver me posso eu ver, mas com me não veres na escuridão desta noite, não sei se na brancura da manhã me poderás enxergar entre os vivos. Meu tio Licorpinau te dirá o que meu coração em si cala, assi porque já não tenho boca para falar, como porque a minha alma me não sofre estar tão órfã de tua vista quanto a tua estéril condição o consente. Pelo qual te peço que venhas ou me dês licença que vá, e não me negues este amor que te mereço pelo que sempre te tive, por que Deos por sua justiça, em castigo de tal ingratidão, te não tire o muito que herdaste de teus antigos parentes neste princípio de minha mocidade, em que agora por matrimónio me hás-de senhorear até à morte. A qual ele, como Deos e Senhor, por quem é afaste de ti por tantos milhares de anos quantas voltas o sol e a lua têm dadas ao mundo desde o princípio do teu nascimento.”

Algumas outras cartas são utilizadas na Peregrinaçam: cada uma delas segue o registo adaptado à função que serve, adaptando sempre a sua expreswww.lusosofia.net

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são mais ou menos oralizante ou, pelo contrário, de exigente intencionalidade literarizante, esta muito próxima da que, na oralidade, seria adoptada nas práticas de etiqueta. São registos representantivos de oralidades diferentes. Refiram-se, a título de pertinentes exemplos: a carta enviada pelo rei do Bungo ao Nautoquim de Tanixumá (cap. CXXXV), um dos mais comovidos e cuidados textos da obra (“Olho direito do meu rosto, assentado igual de mim como cada um dos meus amados. . . ”); a carta muito extensa remetida pelas mulheres à rainha, mãe do rei léquio (“Pérola santa congelada da ostra maior do mais fundo das águas, estrela esmaltada de raios de fogo, madeixa de cabelos dourados. . . ”(cap. CXLI); e ainda a carta, que, assinada por cem mulheres, é dirigida pela filha do mandarim Comandau (ilha de Banchá) à rainha, mãe do mandarim Comanilau, da ilha de Banchá (cap. CXLII); outra carta, de muito interesse porque consiste numa mensagem ardilosa, é a que consta do cap. CCVII, endereçada pelo rei de Jantana ao capitão da embarcação onde seguia Francisco Xavier: “Esforçado senhor capitão estando eu na crescença da lua em Andraguiré, com esta armada prestes para a mandar sobre el-rei de Patane. . . ”, prometendo ir auxiliar os portugueses. Podemos encontrar recursos idênticos noutros capítulos, com registos mais curtos, mas bem sugestivos: as intervenções do Xemindó ou, ainda ao longo das muitas páginas dedicadas (caps. CL a CXC) ao Rei do Bramá, a cujo serviço Mendes Pinto diz ter estado por terras de Sião e da Birmânia. Nos capítulos dedicados a Francisco Xavier, vamos surpreender também discursos relativamente longos, mas de natureza diferente (mais doutrinários e apologéticos), com a intervenção por falas e diálogo do próprio Santo, mas igualmente com mais participação dos seus companheiros pelas terras de Malaca e do Japão (sobretudo na corte do rei de Bungo, como também na companhia do Padre Belchior, na sua peregrinação pelo reino de Bungo e pelos mares da China, até ao regresso a Goa). Estamos em crer que estas agora referidas, como as que também se encontram, e paralelamente ao que fica dito no Tópico 4, nalguns capítulos respeitantes a António de Faria, devem ser apontadas no tópico seguinte (Tópico 6), porque exemplificam uma oralidade directa mais próxima do diálogo propriamente dito, ou, melhor, com o que pensamos ser a autêntica realização sequencial da vertente dramática de um texto. Tópico 6 – Apesar de não serem muito frequentes, os diálogos propriwww.clepul.eu

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amente ditos com intervenções seguidas, e da responsabilidade de dois ou mais interlocutores, longos, apesar de, como foi dito, o Narrador preferir o processo da pequena transcrição de um monólogo ou a citação do que, no meio de um diálogo, se escolheu, extraído de um discurso reportado (resumo ou paráfrase do que foi dito), numa espécie de ligação entre essas seleccionadas intervenções, quase sempre da responsabilidade de uma só personagem que se privilegia, tal como se exemplificou com a intervenção da Princesa, mãe do Preste João, e com as sequências apontadas para a “discussão” de António de Faria e o ermitão, ou as falas do Menino, encontram-se, no entanto, em partes muito significativas da narrativa, e assinalamos sobretudo as que noutros capítulos são consagrados ao mesmo António de Faria e que correspondem aos vários contactos que essa personagem mantém com agentes importantes do ponto de vista social e político ou mesmo com portugueses, entre os quais se encontra o Narrador-Personagem. Encontram-se também nas partes em que surgem contactos do Rei do Bramá, também com o próprio Narrador-Personagem. Ou ainda, de forma mais frequente e de estilo admirável, nos apelos de Missionário, ao longo dos capítulos dedicados a Francisco Xavier, nos incitamentos à prossecução da luta contra os Infiéis (cap. CCIII), na interacção com a tripulação das embarcações (por exemplo, com a constante preocupação de acalmar os ânimos dos Portugueses nos momentos de aflição durante a tempestade, como no cap. CCXIV), ou também, com maior presença, na estrutura e na séria argumentação durante as discussões de Xavier com os bonzos (caps, CCXI a CCXIII). De citar outros passos da obra, que poderão ser mais aprofundados, em maior ou menor escala, como entre os protagonistas portugueses, ou entre estes e personagens representantes do Outro (sequências respeitantes ao Xemindó). São falas de notícias, narrações e descrições de lugares e gentes que os naturais transmitem à curiosidade dos Portugueses ou ainda referentes aos contactos do Narrador-Personagem e seus companheiros com as populações locais, ou nas pacíficas trocas de palavras com representantes principais, adversários ou aliados, entre os quais com o Rei do Bungo ou as cenas de amena conversa ou de afronta, como acontece com o Xemindó. Antes de concluir, há que referir um aspecto que se relaciona com o principal assunto desta comunicação. Pode reconhecer-se como mesmo indispensável o seu estudo aprofundado. E esse aspecto é a importância concedida www.lusosofia.net

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na Peregrinaçam ao registo de palavras e expressões das línguas orientais com que os Portugueses vão contactando: algumas são apenas transcritas (Lah, hilah, hilah, lah Muhamed roçol halah, no cap. LIX) ou citadas e, logo, traduzidas para português (Xe outrinfau nicor pintau “que quer dizer “Bafo do Criador de todas as cousas”, no cap. LVIIIVI; ou Suqui hamidau nivanquao lapapoa dagatur, e sua tradução “não nos mates sem razão, que te demandará Deos nosso sangue, porque somos pobres”, no cap. LXIX); “Ó Otinão cor Valirate, prechau com panó das forças da terra, o bafo do alto Deus” (cap. CXXX); “A que todo o povo com espantosa grita, respondia: ‘Xaputey danacó fanaragy paleu’, que quer dizer “Confessamos, Senhor, nossos erros diante de ti” (cap. CCXXII). e outras. Essas citações registadas a partir das práticas orais indígenas procuram mostrar, por estratégias “adequadas” a serem estudadas por especialistas de línguas orientais, que havia a preocupação de arquivar e dar a conhecer a oralidade das línguas com que os Portugueses contactavam, demonstrando a sua importância, não já tão-somente da verdade da interacção em línguas bem diferentes, como também conferir autenticidade de que elas eram utilizadas, para o que tinham sido fundamentais os contributos dos “línguas”, que eram os tradutores. Não são, com certeza, só processo de maior certificação da veracidade histórica, mas ainda o recurso ao que se revelava diferente, como igualmente ao registo do exótico (ou, como queria Le Gentil, o pré-exótico).

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Conclusão O que fica nesta comunicação, como resultado de algumas horas e poucas notas de leitura ou releitura, pretende ser contributo a desenvolver e a aprofundar no futuro. Dir-se-á que constitui primeira abordagem de uma vertente que se impõe como fundadora da Peregrinaçam - enquanto estrutura de conteúdos, discurso e expressão. Tendo sempre em linha de conta que, ao mesmo tempo que demonstra a procura conseguida de um nível evidente de literariedade, a obra de Fernão Mendes Pinto propõe recorrentemente modalidades tácticas de oralidade ou de oralidades resultantes de uma variedade de processos que emergem a partir do registo de narrações, descrições, cenas e até confissões cuidadosamente “alinhadas” (para aproveitar um termo hoje muito usado nos planeamentos e nas programações), com suas propostas de convocação convenientes às diferentes necessidades de adequação às muitas exigências na sucessão dos discursos em ordem a servir cada unidade sequencial ou as várias sequências com as mais seguras estratégias discursivas de oralidade. Para tal, recorre como base às escolhas mais acertadas dos vários modos de registo adequados à presença mais directa ou indirecta das oralidades trabalhadas de modo a sustentar o enunciado textual: a ocorrência transversal da voz individual no testemunho em primeira pessoa, da responsabilidade do “próprio Narrador – Personagem”; a voz colectiva em “gritas” e “apupadas”; a fala ou as falas que, com poucas intervenções, é ou são atribuídas a uma só voz, numa construção em que indirectamente, de modo reportado, outros se fazem ouvir; as sequências, por vezes com recurso a “discursos” e / ou “cartas”, os quais se tornam elementos de maior extensão; e, finalmente, os “diálogos” propriamente ditos que garantem a oralidade alargada de vários intervenientes em interacção. Foi com esse propósito que se deixaram algumas sugestões através da explanação dos vários tópicos sintetizados neste texto.

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Nota – A natureza desta comunicação não justifica que seja apresentada uma bibliografia exaustiva, mas tão-só as obras de referência para este trabalho, principalmente a edição de base da Peregrinaçam (numa versão mais moderna e completa) e a indicação de outras reflexões pertinentes sobre o texto. Assim: - a opção quanto ao texto tido em conta foi para a edição completa da Peregrinação (na exposição, preferiu-se a adopção do título tal como na 1a edição e a indicação em números romanos dos capítulos), em dois volumes, da Planeta Agostini, publicada na colecção dirigida por Vasco da Graça Moura, Lisboa,[2002]. - no entanto, e à falta de maior informação bibliográfica (quer sobre as principais edições da obra de Mendes Pinto, quer sobre estudos e antologias sobre o Autor e a Obra), remete-se o leitor para o seguinte estudo e antologia do mesmo autor da comunicação: João David Pinto Correia, Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, Edições Duarte Reis, Lisboa, 2002.

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Viagens e peregrinações da língua portuguesa Manuel Célio Conceição FCHS / Universidade do Algarve CLUNL / Universidade Nova de Lisboa

Resumo: A língua portuguesa é uma língua pluricêntrica em consequência da história e da geografia das viagens e das peregrinações que fez com os seus falantes. A sua presença no mundo nem sempre é valorizada, ainda que reúna as condições para uma internacionalização consolidada. Palavras-chave: português, diversidade linguística, lusofonia.

Nascida algures a noroeste da península e miscigenada na sua conquista do sul do território que hoje é Portugal, a língua portuguesa é uma das mais faladas no mundo e das mais presentes no mundo virtual. Não se podendo marcar o nascimento, aceitamos que tenha cerca de oito séculos e, ainda que bem longe da visão romântica que associa inequivocamente um país a uma língua, sabemos que a mesma foi elemento constitutivo sine qua non da formação de um dos mais antigos países/nações da Europa. Por determinação da lei fundamental, Portugal é um país oficialmente monolingue1 , sendo, ainda assim, óbvio que no seu território sempre coexistiram e coexistem várias línguas, que contribuíram e contribuem para o que é o português atual. Foram línguas pré-indo-europeias autóctones, línguas indo-europeias e não só, que 1

No número 3 do artigo 11o da Constituição da República Portuguesa (VII revisão constituição constitucional) [2005] é dito que “A língua oficial é o Português.” Disponível em [http://www.parlamento.pt/Legislacao/Documents/constpt2005.pdf]

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cá chegaram com povos invasores provenientes do este e do sul, línguas de proveniências longínquas de África, Ásia e Américas trazidas por navegadores, escravos e mercadores, línguas associadas a outras literaturas e culturas mais ou menos supostamente desenvolvidas, trazidas por estrangeirados e viajantes; são línguas de migrações e mobilidades diversas e em vários sentidos e línguas resultantes da globalização atual. A partir da travessia do mediterrâneo com a conquista de Ceuta, o português foi levado a todas as partes do mundo, o que faz dele uma língua planetária e pluricêntrica. O português ou as diferentes línguas em português, como dizia Saramago, fez-se de viagens e de peregrinações (considerando as diferentes aceções destas duas palavras). A língua portuguesa é peregrina, tomando a peregrinação no sentido de viagens feitas por devoção profissional mas também afetiva. A relação de dependência entre língua e território tem sido vista como inquestionável. É esta relação que permite explicar a geografia da língua portuguesa, considerando os territórios em que é falada, sobretudo como língua oficial ou língua de comunidades emigradas. A oficialização foi instituída com a decisão de D. Dinis, no final do século XIII, ao impor esta língua vulgar como língua dos documentos oficiais do reino. Ao longo da história vários são os documentos que estabelecem a ligação ao território ainda que o mesmo deixe de ser Portugal e se estenda pelo mundo2 . Mutatis mutandis, poderíamos seguir o que escreveu Nebrija nas primeiras linhas do prólogo da sua gramática da língua castelhana3 , “siempre la lengua fue compañera del imperio” Loas lhe foram feitas para a enaltecer ao mesmo tempo que se enaltecem Portugal e os portugueses. Lembremos o Diálogo em louvor da nossa linguagem de João de Barros, em que se diz que até o príncipe se dedicava em aprendêla, ou o que escreveu Camões n’Os Lusíadas: “na língua, na qual, quando imagina / Com pouca corrupção crê que é a Latina” (canto I, estrofe 33)4 . Um dos elogios mais conhecidos à língua portuguesa é, provavelmente, o que lhe fez 2

Fernão de Oliveira, na gramática publicada em 1536, afirma, na introdução (p. 2), que “a língua de tão nobre gente e terra como é Portugal viverá contente e folgará de se estender polo mundo” (p. 47 da edição de J. E. Franco e J. P. Silvestre Oliveira, publicada pela F. C. Gulbenkian em 2012) 3 Publicada em 1492, em Salamanca. 4 Citamos a edição de E. Paulo Ramos, publicada pela Porto Editora, em 1982.

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Francisco Rodrigues Lobo, no primeiro diálogo (p.69) da Corte da aldeia5 : branda para deleitar, grave para engrandecer, eficaz para mover, doce para pronunciar, breve para resolver, acomodada às matérias mais importantes da prática da escritura. Par afalar é engraçada, com um modo senhoril; para cantar é suave, com um sentimento que favorece a música; para pregar é substanciosa, com uma gravidade que autoriza as razões e as sentenças; para escrever cartas nem tem infinita cópia que dane, nem brevidade estéril que a limite; para histórias nem é tão florida que derrame, nem tão seca que busque o favor das alheias... e, para que diga tudo, só um mal tem, e é que, pelo pouco que lhe querem seus naturais, a trazem mais remendada que capa de pedinte.

Perceções subjetivas postas de lado mas com o intuito de reforço de soberania, testemunho de que a língua é também entendida como meio de ação sobre o território, no texto da Lei do diretório (conhecido como diretório dos índios), publicado em 1757 (3 de maio) revela-se a tomada de consciência da proeminência da expansão da língua para a nação portuguesa. Esta lei é também a primeira a tratar explicitamente da língua portuguesa no Brasil (Oliveira, 2010). Pouco mais de uma dezena de anos depois, ainda sob o Marquês de Pombal, é publicado do Alvará que institui o ensino da língua portuguesa antes da língua latina e que o mesmo se deve fazer pela Arte da Gramática de António Reis Lobato. O caráter instrumental da língua é assumido não pela ligação à territorialidade mas para realçar a sua institucionalização como saber escolar, como distinção social e é salientada a sua importância para acesso a cargos públicos. As breves notas históricas acima referidas pretenderam, sem qualquer intenção de exaustividade, vincular a defesa da língua portuguesa, pelo seu elogio, e vincular o seu valor agregador da territorialidade, sem o qual dificilmente se concebem viagens e peregrinações que construíram um património comum. Como afirmou Cristóvão (2008: 109), a língua assume uma realidade de tipo ecuménico, cuja unidade se desdobra e se propaga na sua diversidade. Viagens e peregrinações permitiram a projeção da língua portuguesa, que foi mudando, após apropriações e trocas com outras línguas e fizeram com que os povos com quem esteve em maior contacto a reconheçam como sua. Nos territórios que conquistou mediante relacionamentos mais ou menos 5

Citamos a edição de J. A. Freitas Carvalho, publicada pela Editorial Presença, em 1992.

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pacíficos com outras, mais do que língua de colonização, também se assumiu como mediadora e aglutinadora. Ainda que possa continuar a assumir esses estatutos de mediação e agregação de falantes de outras línguas, a facilidade da comunicação que potencia viagens e peregrinações que não implicam deslocação, dado o seu recente uso virtual, abriu as portas à desterritorialização. A desvinculação territorial em que as dimensões de espaço e de tempo se podem confundir e em que mais que estudar a representatividade da língua pelo número de falantes é, hoje, aparentemente, relevante estudá-la pela presença na internet e nas redes sociais. Segundo a Internet World Stats6 , em 2013, a língua portuguesa era a quinta mais presente na internet (cerca de 122 milhões de utilizadores), depois do inglês, do mandarim, do espanhol e do árabe. Segundo a mesma fonte, entre 2000 e 2013, a presença do português na internet registou o quarto maior crescimento, cresceu cerca de 1500 %, ficando apenas atrás do árabe, do russo e do mandarim. A virtualização, que quase aniquilou a questão da territorialização da língua, é também um potenciador da pluricentricidade. Usamos o conceito de pluricentricidade com o correspondente significado atribuído por Clyne, isto é, “a language with different interactive centres, each providing a national variety with at least some of its own (codified) norms” (1992: 1). Reconhecendo esta característica da língua portuguesa, Cristóvão (2008: 31), citando Elia (1989), lembra que este último substitui o termo România por Lusitânia e apresenta cinco faces desta Lusitânia. As faces são: i) Lusitânia Antiga, que compreende Portugal, Madeira e Açores; ii) a Lusitânia Nova, que corresponde ao Brasil; iii) a Lusitânia Novíssima, que são os países africanos de língua oficial portuguesa, isto é Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe; iv) a Lusitânia Perdida, que são as regiões da Ásia ou da Oceânia, nas quais já não há esperança da sobrevivência da língua portuguesa e, por último, v) a Lusitânia Dispersa que são as comunidades de fala portuguesa espalhadas pelo mundo não lusófono.

A pluricentricidade da língua portuguesa, que assenta na sua dimensão transcontinental é traço identitário e diferenciador que se assume também como potenciador de novas viagens e de novas peregrinações. A mesma não 6

Cf. http://www.internetworldstats.com/stats7.htm

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é, no entanto, geralmente assumida pelos falantes que, por preconceito ou por desconhecimento, não têm tirado o devido partido da variação e desta diversidade que se institui como riqueza. O fundo cultural comum, a que se refere Cristóvão (2008: 61) vinculativo da pertença a esta grande comunidade e que faz da língua portuguesa uma língua de património e uma língua de herança que assume categorias diferenciadas em função dos contextos geoculturais em que é usada e da ligação construída com os territórios e as comunidades. O português – língua de herança tem diferentes estatutos7 em Angola, no Brasil, na Venezuela em França ou em Goa, por exemplo, e esses estatutos condicionaram e condicionam a sua manutenção, a sua evolução e o seu ensino. As referidas dimensões transcontinental e supraterritorial dão ainda à língua portuguesa uma representatividade global e um peso não despiciendo na economia linguística dos tempos presentes. No quadro da economia do conhecimento em que as línguas e as culturas são marcos estruturantes (Williams, 2010), a língua portuguesa, no entanto, carece de estudos de natureza terminológica e comunicativa para que se afirme inequivocamente como língua de ciência (Conceição, 2012). Os seus utilizadores neste domínio (a todos os níveis, desde a especialização à vulgarização/banalização) são também impelidos a não acatar ditames da globalização monolingue numa supostamente universal variedade do inglês. Requer-se, pois, uma abordagem ecológica do uso da língua em que a mesma se adapta às necessidades comunicativas sem, ainda assim, que seja objeto e alvo de mercantilização. O interesse que a nossa língua desperta como língua de negócios desencadeia, em particular nos nossos tempos, um significativo aumento da procura da sua aprendizagem em vários pontos do globo, pois as anteriormente referidas transcontinentalidade e pluricentricidade permitem, num tempo em que as fronteiras se reconfiguram e as línguas são cada vez as barreiras que se levantam, a potenciação da livre circulação de pessoas e de bens (em particular na Europa). A desterritorialização, a pluricentricidade e a virtualização dos contactos entre falantes, se bem que possa que aumentar alguma anarquia e acentuar 7

De forma genérica, mas em que se pode enquadrar a língua portuguesa, os diferentes estatutos e as diferentes categorias das línguas de herança, assim como as respetivas especificidades sociopolíticas e as implicações pedagógicas estão explicitadas em Van Deusen-Scholl (2003).

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as variedades e as variações, o que legitima medidas de uniformização, devem, por isso, ser concebidas como fatores positivos de afirmação da língua e da sua universalidade no presente contexto de diversidade e de multilinguismo. A pretensa uniformização que conduz à estandardização, numa lógica de produto, pressupõe uma conceção da língua como neutra e/ou transparente, o que é inadequado, pois é pela diversidade, numa lógica da razão e do processo, que se mantém a inovação, a criatividade, isto é, a capacidade evolução da língua e novas viagens e peregrinações. O uso da língua e a sua indissociabilidade da mensagem e de todo o universo/o contexto do ato comunicativo é a forma de atestar as viagens que faz no tempo e no espaço. As representações que os falantes (se) fazem da língua condicionam a gestão da das mesmas, o desenho e a aplicação de hipotéticas medidas de politicas linguísticas, enaltecendo, por vezes, o monolinguismo ou uma espécie de alinguismo de base inglesa ao invés de desenvolverem, por exemplo, a inovação lexical e o multilinguismo. No que respeita ao português e às relações que os portugueses estabelecem com a sua língua identitária, oscila-se entre a indiferença e a posse obsessiva8 e que se associa a falta de consciencialização do valor da língua portuguesa enquanto capital simbólico e ontológico de expressão da essência. Sendo em determinadas estruturas sociais inquestionável o valor patrimonial da língua portuguesa, e ainda que se as dimensões histórica e identitária estejam sobejamente enraizadas, a consciencialização do valor patrimonial, na sua dimensão constitutiva da comunidade, não está desenvolvida de forma universal. A viagem pelo ensino do português, às vezes peregrinação mais ou menos penosa, como prova Vieira (2011), deve considerar conceções diferentes consoante os contextos e a respetiva situação linguística. O ensino do português deve então ser pensado especificamente para a promoção da literacia (alfabetização em casos excecionais), da circulação no espaço de língua portuguesa e, sobretudo, como língua segunda ou língua estrangeira para a inclusão. Pelo ensino, no quadro de viagens e peregrinações por heterogeneidades discursivas e diversidades de variedades, perceber-se-á a possibilidade transformativa. Por exemplo, em algumas comunidades, a aprendizagem do português e do português língua de escolarização é vista como ascensão so8

O poema “lamento para a língua portuguesa” de Vasco Graça Moura (2002) atesta essa dicotomia.

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cial por se aceder a uma língua transnacional e por se aprender pela exposição e prática do registo formal do professor. A relação com outras línguas e o contacto com as mesmas valida a diversidade e a mudança linguística, que também foi fonte de crioulização, e que, no âmbito da representação que alguns falantes fazem do prestígio das suas variedades pode ser transformada, por hipercorreção, em descrioulização. As viagens da nossa língua são, também, o resultado das ações para a sua promoção ou da falta delas. Se há países em que a procura e a aprendizagem do português está a aumentar (caso do Senegal ou da China), outros há em que se verifica o contrário, tendo recentemente fechado departamentos de língua portuguesa (ou estruturas afins) em universidades europeias (exemplo: Holanda ou França). É sabido ainda que a quantidade de aprendentes de português (língua estrangeira, particularmente) vai descendo à media de sobe o nível/o grau de ensino. Seja como for, de um ponto de vista teórico, o crescimento da língua portuguesa parece cumprir os critérios que explicita Graddol (2010) e que são: a) critério orgânico – é lento e não depende de políticas de língua; b) ensino como língua segunda /língua estrangeira - é lento e depende da procura; c) ensino como língua estrangeira – depende de medidas de política de língua e de políticas educativas. O aumento do interesse pela aprendizagem do português, explicado em grande parte por causas essencialmente económicas e laborais é garante sustentabilidade e deve ser associado a expressões culturais, artísticas e científicas que o promovam na sua plenitude e complexidade. Neste último caso (em ciência), pela voragem da internacionalização e da suposta excelência, nem sempre têm os seus utilizadores a consciência de que a língua influencia, de facto, o conteúdo e, por muito que nos queiram convencer do contrário, em qualquer ato de interação comunicativa a língua não é externa ao conteúdo da mensagem nem independente do mesmo. Negar a possibilidade de o português ser uma língua da ciência seria aniquilar séculos desta língua e da respetiva autonomia identitária. Embora em determinados contextos a língua portuguesa possa ser meramente a língua veicular, nas comunidades científicas, em particular, é-lhe devido também o estatuto de língua vernacular. O português é a terceira língua mais usada no Twitter, depois do inglês e do japonês (Rehm e Uszkoreit,2012: 14), e terá igual presença no Facebook, ao mesmo tempo que, em África, por exemplo, ainda é a língua que permite o acesso ao conhecimento tradicional. Um outro aspeto muito relevante para www.lusosofia.net

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a observação de viagens e peregrinações da língua portuguesa e para o aumento da procura é o facto de se dever disseminar a perspetiva da intercompreensão e as respetivas metodologias e estratégias no ensino / aprendizagem de línguas mais próximas (da mesma família). O domínio de técnicas de intercompreensão permite, por exemplo, a um falante de português aceder a informações em qualquer outra língua românica. O futuro da língua portuguesa, das suas viagens e peregrinações, face aos dados demográficos e económicos conhecidos, deverá levar a um descentramento em relação à Europa, tornando-se no que Teyssier (1990) denominou “língua do sul”. Segundo este autor “a língua portuguesa pode mais legitimamente do que qualquer das suas irmãs e reivindicar o título de língua do “Sul” (Teyssier, 1990: 263). Uma das justificações para esta de atração meridional é o facto de 52% das reservas de petróleo e gás mundiais, descobertas desde 2006, estarem nas águas de Brasil, de Moçambique e de Angola. Esta questão tem vindo a ser noticiada9 mas não teve, até hoje, eco significativo na opinião pública, nem nas representações da língua portuguesa ou na determinação de politicas linguísticas subsequentes. O valor económico da língua portuguesa e o seu potencial, como demonstra Reto (2014), é, sem dúvida um dos aspetos da sua sustentabilidade e deve ser intimamente relacionado com a sua capacidade de expressão e de difusão/transmissão de saberes local e socialmente robustos e estruturantes das identidades, das culturas e dos modos de vida dos seus falantes. Não se trata de qualquer visão saudosista ou neocolonialista que aprisione a língua à história, ao passado, mas de uma representação que não nega nem uma nem outro e que facilita o seu desenvolvimento e a sua afirmação no quadro da relação de poderes com as outras com as quais coexiste. A apropriação da língua portuguesa pelos seus falantes, sem complexos de menoridade ou de incapacidade de verbalização das culturas, da ciência da contemporaneidade, a não subserviência linguística e comunicativa e o consequente reforço do sentimento de pertença são condições de garantia da continuação viagens e peregrinações desta língua. Independentemente da sua (des)territorialização e da virtualização dos seus usos (que devem ser encarados como fatores positivos, facilitadores de novas mobilidades e de 9

Exemplos: a 22/11/2013 o Expresso diário publicou um notícia com o título “A era do petróleo em português”; a 5/3/2014 o Público noticiou “Petróleo posiciona a língua portuguesa na geopolítica mundial”.

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maior exposição global da/à língua), o português não pode ceder ao movimento de descapitalização dos saberes que verbaliza em prol de qualquer outra língua que a substitua sob falso e enganador pretexto de maior divulgação e de graus mais elevados de “excelência” ou de “cientificidade”. Por altura da comemoração dos oitos séculos da língua portuguesa, cientes dos nossos tempos e das mobilidades que os caracterizam, mantenhamos a sua vernaculidade, assegurando-lhe novas viagens, novas peregrinações, lembrando os versos que um dos seus defensores, António Ferreira, escreveu na Carta III a Pero d’Andrade Caminha, publicada na obra Poemas Lusitanos10 , em 1598: “Floresça, fale, cante, ouça-se e viva A Portuguesa língua, e já onde for. Senhora vá de si, soberba e altiva. Se téqui esteve baixa e sem louvor, Cullpa é dos que a mal exercitaram, Esquecimento nosso e desamor.”

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Disponível em http://purl.pt/12117/6/res-200-v_PDF/res-200-v_PDF_24-C-R0150/res-200-v_0000_capa-capa_t24-C-R0150.pd

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Referências CLYNE, Michael. (ed.), (1992), Pluricentric languages: Differing norms in different nations. Berlin: Mouton de Gruyter CONCEIÇÃO, Manuel. (2012), “Comunicação da ciência em português: políticas linguísticas e opções terminológicas”, in PETROV, Petar et al. (ed.), Avanços em Ciências da Linguagem, Santiago de Compostela: Através Editora, pp. 199-208 CRISTOìVAÞO, Fernando. (2008), Da Lusitanidade aÌ Lusofonia, Coimbra: Almedina. GRAÇA MOURA, Vasco. (2012), Antologia dos sessenta anos, Lisboa: Asa GRADDOL, David. (2010), English next, London: British Council OLIVEIRA, Luiz. (Org.), (2010), A legislação pombalina sobre o ensino de línguas: suas implicações na educação brasileira, Maceió: UFAL REHM, Georg e Hans USZKOREIT. (eds.) (2012), A língua portuguesa na era digital, coleção livros Brancos, Springer, disponível em http://www.meta-net.eu/whitepapers/e-book/portu RETO, Luís. (coord), (2012), Potencial económico da língua portuguesa, Lisboa: Texto TEYSSIER, Paul. (1990), Études de littérature portugaise, Paris: Gulbenkian Van DEUSEN-SCHOLL, Nelleke. (2003). “Towards a definition of heritage language: sociopolitical and pedagogical considerations”, in Journal of language, Indentity and education, 2-3, pp. 211-230 VIEIRA, Maria do Carmo. (2011), O ensino do português, Lisboa: FFMS WILLIAMS, Glyn. (2010), The knowledge economy, language and culture, Bristol: Multilingual Matters

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