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BIOLOGICES SALÁRIO, A HERANÇA DA ALFORRECA

Jorge Ara Jo

A vida nasceu no mar, no mar salgado. O sal foi sempre o ambiente em que as células se formaram, se desenvolveram, se diversificaram, se agregaram em colónias e, mais tarde, constituíram organismos pluricelulares Não será de estranhar que as alforrecas, cujas espécies existem há cerca de 500 milhões de anos, exibam um meio interior tão salgado quanto o mar: é que as células, embora tenham perdido a antiga independência de viverem livres, conservam a fisiologia condicionada à concentração de sais, nomeadamente do cloreto de sódio da água do mar

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Claro que, nestes 500 milhões de anos que nos separam da alforreca, muita coisa se passou, nomeadamente a saída do mar e conquista das terras emersas Contudo, nós conservamos os nossos fluidos internos, o plasma sanguíneo, a linfa, os líquidos intersticiais das células, salgados; não tanto quanto os da alforreca, mas, ainda assim, numa concentração de cerca de 9 g /l Esse sal é-nos absolutamente essencial; sem ele, não aconteceria a contração dos músculos, a transmissão do influxo nervoso, a digestão, a assimilação intestinal, enfim o funcionamento de todas as células, de todos os órgãos Contudo, tal como a alforreca está condicionada à estabilidade salina da água do mar, também o nosso organismo atua de modo a manter constante a composição do meio interior

Habituamo-nos cedo ao gosto do sal. Ainda em estado de feto, banhamos em água salgada (líquido amniótico), que ingerimos, fazendo com que os rins eliminem o excesso de sal. Por isso, quando nascemos, o gosto do sal é-nos familiar e acompanhar-nos-á ao longo da vida Não somos muito exigentes; uma pitada de 5 g de sal é suficiente para satisfazer as nossas necessidades quotidianas Contudo, em geral, tendemos a ingerir mais do que necessário, talvez para evitar um eventual défice porque os mecanismos de regulação são mais lestos a eliminar o sal em caso de excesso do que explícitos a avisar a sua falta É o apetite provisional Mas... como o gastamos ou, como o perdemos? Bom desde logo, pela urina, que é o grande mecanismo de excreção Os mais chorões, também perdem o cloreto de sódio pelas lágrimas (as lágrimas são tão salgadas quanto o plasma sanguíneo) Mas uma parte considerável do sal é perdida pelo suor

A razão é simples: o controlo da temperatura corporal implica que possamos aquecer ou arrefecer o corpo O aquecimento provém do metabolismo, nomeadamente do trabalho dos músculos O arrefecimento opera-se por dissipação do calor para o meio ambiente, através da pele. Contudo, quando há necessidade de acelerar o arrefecimento, o organismo recorre à sudação, isto é, as glândulas sudoríparas (não todas; as écrinas) libertam suor sobre a pele Pela evaporação da água, as calorias excedentárias são dissipadas, e o sal fica depositado sobre o corpo.

Poder-se-ia perguntar por que razão o organismo perde sal pelo suor quando o sistema de arrefecimento apenas necessita de água? Uma resposta plausível é a de que a dessalinização do plasma seria uma operação energeticamente dispendiosa (que o digam os promotores de centrais de dessalinização da água do mar) Em boa verdade, não seria despiciendo dessalinizar o suor já que o cloreto de sódio, sendo higroscópico, tende a reter as molécu- las de água e a dificultar a evaporação. As lágrimas, sabemos bem, não secam facilmente porque são mais salgadas

Diga-se, em abono da verdade, que as glândulas sudoríparas "pensaram nisso" e reabsorvem uma parte do sódio antes do suor ser libertado sobre a pele Por essa razão o suor é menos salgado do que o plasma ou as lágrimas. A maior parte do sal que consumimos cada dia provém dos vegetais, do leite e dos alimentos processados (pão, queijo, enchidos, etc.). A carne pouco contribui já que a maior parte do seu sal se perde na cozedura ou no grelhado Para satisfazer as nossas necessidades diárias, teremos de adicionar umas pitadas de sal aos alimentos

O que se disse focando a atenção no Homem, poder-se-á dizer para os animais, mais precisamente, para os ruminantes que nos acompanham Aqueles que pastoreiam livremente podem encontrar o sal na natureza, à superfície das rochas, por exemplo Contudo, verifica-se ser necessário complementar as rações com suplementos de sal A necessidade de sal, pelos organismos, situa-se dentro de limites rigorosos Um excesso de sal é prejudicial à vida, razão pela qual se salgam os alimentos para os preservar, combatendo a vida dos microrganismos que neles se instalam Assim, para além da sua presença obrigatória na alimentação humana e animal, o sal foi durante muito tempo, tal como a fumagem, um dos raros meios de conservação dos alimentos, em particular da carne e do peixe. Sem esse precioso produto, as grandes navegações que “deram mundos ao mundo”, não teriam podido realizar-se O sal foi, por conseguinte, desde o princípio da civilização, objeto de um comércio intenso entre regiões produtoras de sal e aquelas que o não tinham E assim se manteve, reconheçamo-lo, até ao advento do frigorífico Mas a salga do peixe mantém-se atual em muitas regiões lembremo-nos do bacalhau!

Sendo o sal um fator limitante da nossa própria existência e tão central na nossa vida, onde o poderemos encontrar? Esta é a questão que o Homem se colocou desde sempre e, em boa verdade, pela qual se estabeleceram rotas comerciais, se originaram migrações, se ergueram cidades, se acumularam fortunas e se fizeram guerras

Os povos das beiras-mar baixas e planas, não tiveram de se preocupar, pois, bastou-lhe deixarem evaporar a água em tanques para colherem o sal

As salinas portuguesas perpetuam uma atividade cuja origem se perde na noite dos tempos e que constitui sempre uma cobiçável fonte de rendimento. No interior dos continentes, porém, foram descobertas minas de sal, de sal-gema, resultantes de grandes superfícies marinhas de baixa profundidade que secaram na sequência de alterações climáticas e que, posteriormente, foram aprisionadas no subsolo em consequência de movimentos tectónicos

Na Europa, terão sido os Celtas os primeiros a descobrirem e a explorarem minas de sal-gema, na região da cidade austríaca de Salzburgo, já lá vão cerca de 3 000 anos Atualmente, o preço do sal é irrisório, pois são inesgotáveis as fontes e globalizado o comércio Mas nem sempre foi assim; quem detinha as fontes de sal, detinha riqueza e poder Em França, Alemanha, Áustria e Polónia encontram-se inú- meras minas que contribuíram para a riqueza de diversas cidades e regiões Munique e Salzburgo são dois exemplos de cidades ribeirinhas que enriqueceram à conta do comércio do sal e da portagem cobrada aos barcos transportadores de sal que atravessavam os seus territórios

Os imperadores romanos foram os primeiros a transformar a exploração do sal em monopólio de Estado Nos primeiros tempos da república romana, os centuriões e os funcionários recebiam uma parte das suas remunerações em sal chamavam-lhe o "salarium" https://www.facebook.com/jorge.araujo.71271

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