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AGOSTO 2020
Entre Nós ENTREVISTA | TONY CASSANELLI
A arte da desconstrução A
pele. Um olhar mais superficial dirá que é o maior órgão do corpo humano. Mas nesta entrevista os olhares são mais subtis e, simultaneamente, mais profundos. E, por isso, vamos falar através da pele, ou melhor, vamos tentar falar do que está para lá daquilo que mostramos à primeira vista. Nós fazemo-lo, essencialmente, com palavras. Ele, Tony Cassanelli, fá-lo através das cores e formas do seu universo artístico, que pode ver na exposição “Através da Pele”, patente na Galeria Municipal do Montijo. Iniciamos pelo mais óbvio para, depois, imergir em planos mais escondidos e, provavelmente, mais reveladores. Tony Cassanelli é italiano, de perto de Bari. Tem 40 anos. É artista plástico, focado na pintura, na escultura e na videoarte. Depois de percorrer o mundo, em 2015 fixou-se em Portugal e, agora, está a construir a sua casa e estúdio no Montijo, cidade que diz ter sido “uma descoberta maravilhosa. Aqui há um processo de crescimento, mas ainda se mantém a identidade de um lugar verdadeiro e com grande abertura aos outros”, afirma. Desde criança (e no final já falamos desta criança) que desenhar e estudar a natureza humana foi o seu único grande interesse. Hoje é a principal inspiração da sua obra: “tenho uma profunda atração pelo ser humano. O meu trabalho é feito numa perspetiva muito antropológica, de desconstrução cultural de cada um de nós, para tentar redescobrir a nossa parte mais natural, mais verdadeira. Muitas vezes, em nós próprios, há um grande conflito entre o que achamos ser o bem e o mal, o justo e o errado, o que somos e aquilo que nos ensinaram a ser”. Esta dicotomia entre aparência e essência, um dos fios condutores da sua arte, foi experimentada na própria pele, “na minha própria carne e pessoa. Fiz esta experiência de desconstrução e descobri que muitas das coisas que me ensinaram são extremamente fascinantes, mas são caixas onde não me consigo encaixar. Descobri que o dia a dia é a melhor maneira de viver a vida e as relações com o outro. A destruição das expetativas é um princípio de felicidade e de liberdade”. Uma auto-desconstrução das barreiras sociais e culturais impulsionada pelas inúmeras viagens pelo mundo que o levam a assumir as “diferenças culturais, sociais e étnicas como a maior riqueza para nos entendermos a nós próprios. A diferença é o princípio do meu conhecimento”. Trata-se, assim, de desconstruir para descobrir. Despir (não no sentido literal, obviamente) as várias peles que a sociedade nos impõe para tentar entender a semântica do ser humano. A arte como “espelho deste processo vital de descoberta. Não é
apenas o interesse no que vês. É, sobretudo, o interesse no que te faz sentir aquilo que vês. Não é o que vejo em cima da tua pele, é o que vejo através da tua pele”, explica. Um processo artístico que é intimista, ligado à substância, mas igualmente de abertura e relação direta com o outro, até porque “o artista tem de voltar a criar um processo comunicativo de traba-
elitismo e facilite o processo educativo do público”. O mesmo público que pode contemplar, com o devido silêncio e introspeção, a sua arte e talento na Galeria Municipal do Montijo. Pela primeira vez, Tony realiza uma exposição em Portugal e mostra “12 pinturas e desenhos, feitos ao longo destes cinco anos em Lisboa e que resultam de encontros que senti realmente. São retratos de pessoas, todas
lho para reconstruir a ponte perdida com o público. Na arte visual, entregou-se o poder de decisão ao sistema, em vez de estar nas mãos do público. Ninguém vai ao cinema ver um filme que não vai entender, mas as pessoas entram numa galeria de arte já a pensar que não vão perceber”, defende. E neste objetivo de estreitar a relação comunicativa com o público, na época da tecnologia e da globalização, Tony Cassanelli encontra nas redes sociais uma forma de “aproximar os artistas dos clientes e dos amantes da arte, de criar uma entourage cultural. Uma rede social, bem gerida, pode fazer com que comunicar a tua arte ultrapasse esse
de origens diferentes, que parei na rua porque me senti atraído por elas. Esta exposição é o estrato desses encontros, do meu encontro com a multietnicidade sagrada de Portugal, que é das coisas mais bonitas deste país”. Nesta viagem de investigação através da pele de Tony Cassanelli terminamos com um pequeno detalhe – a tal criança que falámos uns parágrafos acima. A criança que corria pelas ruas de Bisceglie (pequena cidade da província de Bari)e que sempre soube que ia correr o mundo. A tal criança a quem agradece porque “tudo o que faço e sou é respeitar o desejo dela”.