COMPANHIA NACIONAL DE BAILADO
IMAGINAR QUE A DOR É PARTE DA HISTÓRIA — SORAIA MARQUES E ALEXANDRA ROCHA
A MINHA COMPANHIA
COMPANHIA NACIONAL
FICHA TÉCNICA
OUTRAS DANÇAS
Direção Artística
Coordenação
Outra Danças é uma
DE BAILADO
Sofia Campos
A MINHA
COMPANHIA
EDITORIAL
Pedro Mascarenhas Textos
Tiago Bartolomeu Costa
A Minha Companhia é um
Edição
Nacional de Bailado para
Pedro Mascarenhas
projeto da Companhia
Joana Ferreira
a temporada 20/21 que
Sofia Campos
visa dar a conhecer a
sua equipa e desvendar
os bastidores do Teatro Camões, a casa da CNB.
Fotografias
Hugo David Design gráfico
Uma centena de
Estúdio João Campos
uma equipa de profissionais
Impressão
colaboradores constitui
que produzem e contribuem
ACD Print
dos espetáculos, como de
Tiragem
para a realização, tanto
todas as outras atividades inseridas na programação da Companhia.
Descubra-os aqui.
1600 exemplares
coleção digital da CNB, que reúne diferentes
séries com testemunhos
sobre obras apresentadas
pela Companhia, criadores e bailarinos.
Lançada em 2018, Outras Danças é inspirada no título da obra Other
Dances (1976) de Jerome
Robbins (1918–1998), sendo esta uma homenagem da CNB ao coreógrafo por ocasião do centenário do seu nascimento.
Descubra Outras
Danças nas nossas páginas do Facebook, Youtube e www.cnb.pt.
necessários para assegurar que nada falha, mesmo que tudo possa estar a breves momentos de uma rotura.
Soraia Marques, 31 anos, há quatro na CNB como osteopata, e Alexandra Rocha, 25 anos, chegada em janeiro e desde então fisioterapeuta, são dois dos rostos desconhecidos mas tão fundamentais numa máquina que, para estar oleada, precisa destas quatro mãos, às vezes só de um toque, para poder funcionar. E, indo para lá da dor que a adrenalina anestesia, são os braços onde tantos caem e encontram, por entre lágrimas, o conforto que os músculos precisam.
Às vezes, cuidar do tornozelo é prepararem-se para o que possa surgir no dia seguinte. Às vezes, o corpo experimentado, engana.
O dia a dia destas duas técnicas de saúde é feito da previsão desejada e do acompanhamento possível. Para quem o corpo é o instrumento de trabalho, sabem bem como olhar por ele, quando eles e elas, bailarinos e bailarinas, abandonados pela força das suas personagens e interpretações, ou precisamente para estarem à altura do que para elas imaginaram não podem ou se esquecem do tanto que há para fazer. Correm, dizem a rir, atrás do prejuízo. E a última decisão que gostam de tomar é a que possa levar ao impedimento de um intérprete subir a palco. Num dos corredores do Teatro Camões, ou no camarim de um teatro em digressão, são o espaço e o tempo
São relações de confiança, não podia ser de outra forma, afirmam. Conhecem-lhes os corpos e as manhas, as vontades e as forças, sabem exatamente como é que lhes vão dizer que ainda são capazes, que está tudo bem, que é só uma dor de fim-de-semana, de um eventual mal jeito que deram, que todos damos... Mas às vezes, não.
Um corpo experiente sabe quando a dor surge do cansaço ou quando precisa de um outro acompanhamento. Uma dor de costas pode tratar-se através de um acompanhamento específico na anca, outras vezes é o contrário. Às vezes, é só stress. Muitas vezes é mais do que isso. Mas não dizem que o espetáculo continua? Se tudo corresse bem, não precisavam de estar tão nervosas, seja estreia ou nem isso. Um dia de espetáculo é um dia de espetáculo, seja ele um ensaio pré-geral, um geral, dia de estreia ou uma matinée. Ou um dia de ensaio, em que se afadigam entre a marquesa e os bastidores, para melhor perceberem porque é que tantos se queixam da mesma dor, no mesmo sítio, mesmo que, nessa arquitetura de compensações, para cada um possa, e deva, haver um tratamento diferente. Observam muito. Como lhes explicam o que sentem, como se sentem depois, como reagem ao trabalho de mãos que propõem, como conseguem chegar,
IMAGINAR QUE A DOR É PARTE DA HISTÓRIA — SORAIA MARQUES E ALEXANDRA ROCHA
É preciso procurar com cuidado, por entre a escuridão dos bastidores, ou no fundo da sala, por entre os espetadores, para as encontrar. Mas, mesmo não se vendo, estão lá. No movimento de cada um dos bailarinos, como eles, nervosas, atentas, suspensas por um movimento, curvando-se quando eles se curvam, erguendo-se quando elas se erguem, antecipando as consequências de um movimento mal executado, respirando de alívio quando um outro deixou de se apresentar um problema.
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IMAGINAR QUE A DOR É PARTE DA HISTÓRIA SORAIA MARQUES, OSTEOPATA, E ALEXANDRA ROCHA, FISIOTERAPEUTA POR TIAGO BARTOLOMEU COSTA
Soraia Marques, osteopata.
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E aquilo que asseguram resume-se a confiança. Entre elas e os bailarinos, entre eles e o seu corpo, entre o corpo e os tratamentos. Com poucas palavras, escutando, sobretudo, para disfarçar esse prejuízo de que correm atrás, dizem que o que fazem é uma procura diária, constante, continuada, de uma harmonia a nível corporal. E dizem ainda que é um trabalho de complementaridade, que não o podem fazer sozinhas. E que o muito que falta fazer, e onde o seu contributo é só uma porta que se entreabre, é psicológico. Por isso, observam, escutam, aconselham e também aprendem a reconhecer no corpo de cada um dos intérpretes, dos seus bailarinos, as fraquezas e as forças que asseguram que tudo possa parecer bem, mesmo que o fim seja feito atrás da cortina, na marquesa do exíguo gabinete, nas laterais do palco, de rompante e de urgência. Um único objetivo: conseguir que andem bem. O exercício é, aqui, usado como forma de prevenção. E o trabalho destas duas profissionais, o de adaptar e introduzir o reforço muscular e o alongamento face à impossibilidade de prevenir lesões. Numa altura em que, depois de tantos meses parados, por força da pandemia, os corpos dos bailarinos perderam massa muscular e flexibilidade, por força da ausência de aulas, de prática regular dos exercícios e, mesmo com o regresso aos estúdios, os corpos reagem de forma distinta.
E o que possa ser a ambição de estabelecimento de um trabalho específico com e para cada um dos bailarinos, pode ser contrariado pelo simples facto de que os corpos podem reagir, de formas distintas a um mesmo movimento, dentro de um programa, seja ele clássico ou contemporâneo. E depois há as bruscas mudanças entre estilos, quando, no avançar da temporada, os ensaios de uma coreografia são partilhados com outros ensaios para outras tantas coreografias, seja para um mesmo programa, seja para os meses que se seguem. Um corpo é um corpo. À partida, reagiria da mesma maneira, se acreditarmos que tem memória. Mas memória de quê, exatamente? Às vezes da própria dor, que regressa porque o tempo não permitiu terminar o tratamento que, para qualquer um de nós que se visse na mesma situação, só se encerraria quando nos sentíssemos, novamente, inteiros. Ali, não há tempo. Ali, no dia a dia destes profissionais, atua-se sobre a lesão, através de manipulações e estímulos dos sistemas nervoso, visceral ou craniano. O corpo, afinal, visto como um todo, onde uma dor no pé pode ser tratada na anca, porque decorre de posições que se assumem e se repercutem noutra articulação. É por isso que, mais do que prevenir, a sua missão é tratar. Todos os dias há uma situação diferente, dependente do trabalho que cada professor faz em aula, do programa que está a ser ensaiado, e mesmo do modo como cada bailarino “gere” as suas dores. Um dia pode ser o tornozelo, no dia seguinte pode ser nas costas que seja mais
IMAGINAR QUE A DOR É PARTE DA HISTÓRIA — SORAIA MARQUES E ALEXANDRA ROCHA
através do mais simples toque, à mais profunda e invisível, mas tão sentida, das dores.
grave, às vezes podem ser cinco com dores no mesmo sítio... E as dores também têm nomes e não só nomes com preceitos médicos. Às vezes, as dores carregam os nomes de professores, ou de coreógrafos, daqueles com quem os bailarinos passam os dias, em exercícios que fazem do corpo um material de trabalho de tal forma específico que precisa ser cuidado como o mais delicado dos materiais.
uma atenção ao que de mais frágil um bailarino pode mostrar: que também é igual a nós. Por isso, quando a sala explode num aplauso após um movimento arriscado, é também o trabalho delas que estão a aplaudir. Quanto menos se vir, melhor. Quanto mais depressa puderem sorrir, aliviadas, mais completo será o espetáculo.
Esperando que nunca seja o último desejo, querendo que seja sempre possível dançar, de forma mais completa e mais cuidada, o que Soraia Marques e Alexandra Rocha podem fazer é parte integrante de
Alexandra Rocha, fiseoterapeuta.
Ou, um ensaio que foi mais exigente, ou um bailado mais curto, pede trabalho cardiovascular, em oposição a um outro, de noite inteira, que pede maior resistência, por vezes um gesto mais brusco, demasiado confiante, um movimento mais intenso, mais estranho, menos orgânico no que de inorgânico possam já ser tudo o que assumem como natural, e o corpo cede. Ou, resiste até ceder. Ou finge-se não ser um esforço, por orgulho, por desmedido desejo de cumprir um sonho, por não querer fazer o que de mais natural existe em nós, assumir que não se consegue. Mas cede, o corpo cede sempre. Independentemente da idade, da experiência, da genética. Cede sempre e cede muito e, por isso, este trabalho invisível é tão importante: às vezes o bailarino não tem noção do mal que vai fazer a si próprio. Agora porque me dói o pé, não vou dançar, parece perguntar. Quando se conhece tão bem o corpo, sabe-se como enganá-lo, não é? Por vezes, sim. Outras vezes, esse desejo foi um desejo a mais.
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IMAGINAR QUE A DOR É PARTE DA HISTÓRIA — SORAIA MARQUES E ALEXANDRA ROCHA
Mecenas Principal CNB:
T.02-E.01-OUT.2020