A MINHA COMPANHIA :: Aprender a ver a música a dançar - Humberto Ruaz

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COMPANHIA NACIONAL DE BAILADO

APRENDER A VER A MÚSICA A DANÇAR — HUMBERTO RUAZ

A MINHA COMPANHIA


COMPANHIA NACIONAL

FICHA TÉCNICA

OUTRAS DANÇAS

Direção Artística

Coordenação

Outra Danças é uma

DE BAILADO

Sofia Campos

A MINHA

COMPANHIA

EDITORIAL

Pedro Mascarenhas Textos

Tiago Bartolomeu Costa

A Minha Companhia é um

Edição

Nacional de Bailado para

Pedro Mascarenhas

projeto da Companhia

Joana Ferreira

a temporada 20/21 que

Sofia Campos

visa dar a conhecer a

sua equipa e desvendar

os bastidores do Teatro Camões, a casa da CNB.

Fotografias

Hugo David Design gráfico

Uma centena de

Estúdio João Campos

uma equipa de profissionais

Impressão

colaboradores constitui

que produzem e contribuem

ACD Print

dos espetáculos, como de

Tiragem

para a realização, tanto

todas as outras atividades inseridas na programação da Companhia.

Descubra-os aqui.

1000 exemplares

coleção digital da CNB, que reúne diferentes

séries com testemunhos

sobre obras apresentadas

pela Companhia, criadores e bailarinos.

Lançada em 2018, Outras Danças é inspirada no título da obra Other

Dances (1976) de Jerome

Robbins (1918–1998), sendo esta uma homenagem da CNB ao coreógrafo por ocasião do centenário do seu nascimento.

Descubra Outras

Danças nas nossas páginas do Facebook, Youtube e www.cnb.pt.


Chama-se répétiteur aquele que tem por missão acompanhar, preferencialmente ao piano, as aulas de preparação para um dia de trabalho de um bailarino. Em português diz-se pianista-acompanhador, mas a expressão fica menos ambiciosa do que o termo francês, mais presente e, por isso, guardemo-lo para os propósitos deste texto. Há mais do que um acompanhamento, há um diálogo e há, sobretudo, muita liberdade para pensar a relação entre a música e a dança. Depois de anos na Companhia Nacional de Bailado, onde chegou pela mão de Armando Jorge, e à qual agora regressa como professor convidado duas vezes por semana, e de uma longa passagem pelo Ballet Gulbenkian, onde esteve a partir do final da década de 1980 até à sua extinção, em 2005, Humberto Ruaz construiu uma vida que é mais do que um acompanhamento em contexto de aula. É uma vida dedicada a aprender a escutar e a dar a ouvir, disciplinando a música aos bailarinos, e estes ao que a música lhes possa dar, tanto quanto fez sua, a missão de formar aqueles que tocam as partituras que servem os exercícios dos professores. A sua profissão não existe, não está regulamentada nem é ensinada

nas escolas e, no entanto, o que se pede é que, quem se senta atrás do piano, compreenda e antecipe qual a pulsação musical adequada de cada professor, que é como quem diz, um tempo mais rápido ou mais lento. Não é fácil tocar para dançar e há poucos bons acompanhadores. Porquê? Porque é necessário adequar o universo da música àquilo que o exercício pede. Por isso, a aprendizagem de quem toca não é só técnica, é também sensível e culta. Um noturno de Chopin pode servir um exercício de pliés? Pode, mas esse noturno pode não ser adequado se se tratar de um exercício de saltos. Arranjos, espartilhos e adequações tornam-se a base de trabalho de um professor-acompanhador. Se se exige a um professor de dança que esteja aberto a ouvir o que o pianista lhe vai oferecer, sabendo responder porque pretende um staccato ou um legatto, ao professor-acompanhador cabe assegurar um vasto naipe de partituras que melhor possam servir os objetivos dos exercícios. Vive-se do conhecimento, da atenção aos detalhes e aos interiores de uma partitura, capaz de desaparecer para que o movimento surja, capaz de sublinhar quando o movimento pede, recuando quando a execução, pelo bailarino, está a ser manifestamente pressionada por uma partitura menos adequada, marcando o ritmo de uma aula, cheia de regras e objetivos, com uma missão específica, independentemente daquele que possa ser o restante dia de trabalho de uma companhia. Um répétiteur acompanha as aulas da companhia conforme os exercícios indicados pelo professor e, quando é necessário, alguns ensaios de produções. É um trabalho minucioso e detalhado que acompanha

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Observar o impacto que a música pode ter no movimento, não é algo de imaterial, é visível e percetível. Que o diga Humberto Ruaz, 62 anos, com uma longa história que se confunde com o ensino, e com a prática da música para dança, seja clássica ou contemporânea. Mas o seu lugar, aquele que aqui nos importa, é um de observação, atenta, cúmplice, silenciosa apenas no que a música possa contrariar a missão de um bailarino no contexto de uma aula.

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APRENDER A VER A MÚSICA A DANÇAR HUMBERTO RUAZ POR TIAGO BARTOLOMEU COSTA



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Em aula, o diálogo entre o bailarino e o répétiteur é o resultado de duas ações, sustentada no processo de escuta e de atenção. Ao bailarino é requerido que atenda ao que o professor pede em termos de exercício coreográfico, focando-se no tempo e na pulsação desse movimento e, simultaneamente, ajustando-o ao que está a ouvir, sob pena de que, ao ignorar a música, esta possa transformar-se numa paisagem que o distraia. Ao pianista, cabe oferecer um naipe variado de música que sirva aquele movimento, criando uma relação com o bailarino que é, ela própria, uma leitura de acompanhamento. O importante é saber o que o movimento requer. Quando se fala da especificidade para bailado, está a falar-se de um tempo específico (estrutura musical em quadratura, ou não). Um plié é feito, por exemplo, por um período de tempo composto por 16 ou 32 compassos de 3/4 ou 4/4 e depois, acabado esse exercício, os bailarinos repetem-no para o outro lado. A aula é um trabalho de aquecimento de um bailarino, que o prepara para o dia, distinto do que possa ser pedido em palco, mesmo que o exercício possa ser o mesmo.

Em aula, a música acompanha um movimento que começa na barra, para dar ao bailarino um certo equilíbrio, depois segue para o centro, onde os bailarinos procuram o seu próprio equilíbrio, e, no final, deverá ter assegurado que estão preparados para o que acontecerá em todos os diferentes registos que possam constituir o quotidiano de uma companhia que apresenta, de igual peso, bailados clássicos, modernos e contemporâneos. As escolas de ensino — a russa, a francesa, a norte-americana... —, trabalham esta base, mesmo que de maneira diferente mas ao répétiteur cabe encontrar um espaço para que a música possa existir. Humberto Ruaz gosta de experimentar, aceita discos pedidos e há quem já saiba que, quando é ele quem está ao piano, essas aulas vão ter direito a um chorinho. Às vezes, ousa, improvisa, foge do piano e experimenta a percussão ou as marimbas, sendo que flautas, guitarras e voz podem servir para os exercícios, nomeadamente em aulas de técnica contemporânea. O que o levou a ficar, e a ir ficando ao fim de tantos anos numa função que parece invisível, foi o espanto de perceber o quão, afinal é visível aquilo que se quer esconder. Por isso, mais do que a partitura, ou ao mesmo tempo que se olha para ela, aconselha que se olhe para os bailarinos. Quando um bailarino salta, é ele quem está a dar a pulsação da própria música. A função de um e a missão de outro, se quisermos, já que os tempos de um movimento devem entrar em diálogo com a partitura, mas não têm de ser imagens vivas do que se está a ouvir, guardam um único segredo: escutar. Pode acontecer que, em paralelo com a aprendizagem

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a respiração natural de uma montagem, estando presente para as secções que requeiram um trabalho mais aprofundado, ou demorado, com solistas ou bailarinos do corpo de baile, ocupando provisoriamente o lugar da orquestra. Mas uma aula não é um ensaio e é nesse espaço que tudo se joga, inclusive a firmeza de um répétiteur que saiba onde começa a sua margem de improviso e se funda a linha vermelha que impede que essa missão se transforme num concerto logo às dez da manhã.


do movimento, exista um trabalho interior de permanente ativação da relação entre música e movimento, mesmo que não seja síncrono. Pode pedir-se um tempo forte para sublinhar a pulsação musical, mas o movimento existir em assumido contraste com esta. O tempo de um movimento pode não ser o tempo de uma nota e, ainda assim, o que vemos, e do que fazem, ter uma correspondência se não interdependente, certamente em diálogo. Há quem diga, estava fora da música, ele reage: “Mas o que é isso? Fora da pulsação, do ritmo, do fraseamento, da dinâmica, das articulações, das acentuações?”. Se a um professor de dança não é exigido um conhecimento musical apurado, para quem é coreógrafo ou bailarino, quanto mais conhecimentos musicais tiver, melhor estará inscrito o movimento, já que a terminologia balética vai buscar muita da sua fundamentação à terminologia musical, ela própria muito específica. Humberto Ruaz, também compositor, tem trabalhado música para aulas, explorando as características do exercício nas suas mais diversas vertentes: “Posso usar um mesmo exercício e tocá-lo num compasso simples, um 2/4, 3/4 ou um 4/4, ou fazê-lo num compasso composto, 6/8 ou 12/8”. No que isto possa parecer uma linguagem demasiado técnica, imagine-se o seguinte: qualquer música dá para bailado, é preciso é que o acompanhador saiba o que é necessário para uma aula de dança por forma a enquadrar todos os elementos. Se eles — os bailarinos — estão a fazer um movimento lento e ele — o répétiteur — está a tocar semicolcheias e fusas, pode existir alguma desadequação naquilo que é pretendido.

As contagens dos tempos de um movimento não são, necessariamente, e até pelo contrário, as contagens musicais. A contagem em dança tem o único propósito de servir o movimento, explica. Em contexto de aula, cabe ao répétiteur oferecer um leque variado de opções e de janelas, que possam promover a qualidade auditiva do bailarino e, protegendo-os, perceber, antecipando, o que, se não for pedido em aula, pode vir a ser pedido para uma coreografia. Por isso, a par de todo o trabalho de professor, de pianista e de compositor, Humberto Ruaz dedica-se, há muitos anos, a formar professores-acompanhadores. O seu trabalho é o da aprendizagem balética, oferecendo ao aluno as ferramentas que permitam compreender a relação que deve ser estabelecida entre música e interpretação. A formação passa por entender o que é necessário para uma aula de dança, conhecendo um pouco da sua estrutura e percebendo, aos poucos, as ferramentas a oferecer ao aluno as que lhe permitam compreender a relação que deve ser estabelecida entre música e interpretação. O importante é saber quais os estímulos, elementos musicais que se devem trabalhar na disciplina de música, para a formação musical e auditiva de um bailarino, que é diferente daquela que alguém que quer ser músico, deve seguir. A felicidade vem de poder brincar com tudo de forma consciente, ao qual se junta a certeza de uma cumplicidade que se refletirá no resto do dia. Quando alguma coisa corre mal, a culpa é do pianista. E porque insistimos no francês, lembremo-nos do que pediu o realizador François Truffaut: Ne tirez pas sur le pianiste. Não só fez o que pode, como só quer ser feliz.


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Mecenas Principal CNB:

T.02-E.02B-DEZ.2020


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