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Beatriz Castex Flutuantes

Beatriz Castex

Flutuantes

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A viagem intercalava-se entre períodos de caminhada e de carona. Nos primeiros dias, Sinha Vitória, Fabiano e os meninos somente andavam. Ocasionalmente passava um carro ou outro que desacelerava para olhar novamente o que tinha passado no canto dos olhos: a visão de um grupo de viajantes composto por um vaqueiro, com olhar desconfiado, uma mulher igualmente cismada, e bem à frente, dois meninos que andavam com o passo sincronizado, olhando para o chão – todos estavam em silêncio, mas pareciam se comunicar através do pensamento.

A carona só se conseguia quando algum viajante era tomado pela curiosidade - ou pena -, o que o levava a oferecer transporte. Fabiano, com seu senso de independência – não por vontade própria, mas por necessidade – e mais suspeitoso do que nunca, nem sequer pensava em pedir ajuda. Mesmo assim, eventualmente, comovido pela exaustão das crianças, aceitava a oferta. O caminho, é claro, era feito em silêncio sepulcral. Tudo que havia de se processar sobre a mudança drástica pela qual toda a família passava era processado nos pensamentos próprios de cada um deles.

Chegando a São Paulo, inicialmente sentiram um certo frescor. Talvez, de fato, o clima fosse mais fresco, mas Fabiano e Sinha Vitória tinham vivido tempo o suficiente para que a sensação de estar prestes a viver algo novo caísse em seu esquecimento. O motivo da mudança não era positivo, claro. Mas era preciso ter algum otimismo, alguma esperança. Fabiano lembrou-se do seu tempo de recém-casado, algo como a sensação de se sentir novo e inexperiente em algo. Isso trazia-lhe algum conforto – permitia-se reconhecer, às vezes.

Sinha Vitória conseguiu um trabalho antes de Fabiano. Era mesmo boa de conversa. Além disso, por motivos que já conhecia, notava menos desconfiança em sua direção, em comparação a Fabiano – era mulher. Trabalhava em uma lanchonete do bairro. Às vezes, reconhecia-se desestimulada. No sítio, mesmo cercada pelas dívidas de Fabiano, ao menos tinha cálculos para fazer, e sentia-se no mínimo lisonjeada pela curiosidade dos meninos em relação ao que fazia quando contava. Lembrava-se de Sinha Terta.

Depois de algum tempo de procura incansável – possivelmente afetada por sua insegurança, que inevitavelmente traduzia-se em seu rosto como antipatia –, Fabiano conseguiu um trabalho como vigia de uma casa no Paraíso do Morumbi. Estavam morando em Paraisópolis. A mesma proximidade entre os dois lugares, que era estranha a Fabiano, por serem tão distintos, ao mesmo tempo era-lhe

conveniente, por facilitar o caminho diário para a morada do casal para quem trabalhava.

Os meninos estudavam em uma escola municipal a algumas quadras de casa. Lentamente se adaptavam à rotina escolar, com dificuldade. Depois da escola, os meninos ficavam na rua. Por terem liberdade para ficar sem os pais e longe de casa no sítio, não haviam aprendido a desconfiar do ambiente à sua volta quando estavam sozinhos. Fabiano e Sinha Vitória, por serem adultos, já tinham este senso melhor desenvolvido – mas os meninos, especialmente o mais novo, eram ingênuos. Após alguns dias indo à escola, encontraram uma cachorra sem dono, na rua. Tentavam atraí-la para casa todos os dias quando decidiam voltar, mas a cachorra desconfiava deles – não era possível atraí-la e nem pegá-la à força.

Eventualmente, durante o trabalho, Fabiano se deparava com situações que lhe tiravam a constante expressão apática do rosto. Como vigia, tinha como função impedir a entrada de quem quer que julgasse não convidado na casa. Uma vez, deparara-se com um pedinte. O homem, pobremente vestido, numa noite de inverno, viera pedir dinheiro para Fabiano. Era madrugada, e com a pouca experiência que havia adquirido no seu tempo trabalhando como vigia, havia aprendido a evitar o distúrbio do sono de seus patrões. Fabiano, inicialmente, só pediulhe para se afastar. O homem, depois de algumas tentativas falhas de conseguir o que queria, começou a chacoalhar os portões da casa e a gritar, indignado. Fabiano, como reflexo, imediatamente foi fisicamente tirar o homem de perto da casa e, quase acidentalmente, deu-lhe um soco no rosto. O pedinte se retirou, assustado, como um cachorro com o rabo entre as pernas.

Fabiano surpreendeu-se consigo mesmo, e entrou em estado de ansiedade. A mistura de seu cansaço físico com a adrenalina, deixou uma expressão assustada em seu rosto. Tentava recuperar o fôlego. Quando se tratava de defender sua família e agir como homem, agia desconfiado e covarde. Se preocupava com o olhar dos outros para si, mas não com os olhares perversos da cidade direcionados à sua mulher e seus filhos, que notava muito bem. Não demonstrava o amor que sentia por eles – mas quando se tratava de impedir um pedinte de acordar um casal de jovens ricos que não levantavam um dedo para ajudar-lhes, mostrava garras e dentes sem pensar duas vezes.

– Você é covarde, Fabiano.

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