Crianças no Centro

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PROGRAMA 20/2007/P

Crianças no centro Uma conversa com Jan-Willem Bult*

A

principal ideia dos meus

documentários para crianças em idade pré-escolar é simples: representá-las na televisão. Quando comecei na KRO, havia apenas dois tipos de programas para este público na televisão holandesa: os escolares, que mostravam situações de sala de aula, e “Vila Sésamo”. Nenhuma criança assistia ao primeiro tipo de programa por vontade própria. “Vila Sésamo” não tinha nenhuma criança e, quando tinha, ela estava sentada com o apresentador. Da mesma forma que os adultos, elas querem se ver na tela, mas isso não tem acontecido. Eu queria mudar esta situação e criar uma política de televisão com o lema “a criança no centro”. Ou seja, fazer uma televisão que chegasse aos corações das crianças com histórias que viessem delas próprias, ao invés de vir de adultos que as usam para contar as suas histórias. Cheguei à ideia destes documentários para crianças em idade pré-escolar porque tinha um orçamento bastante limitado e queria criar algo que durasse. Como não queria depender de uma única direção, desenvolvi um formato com dez regras claras (vide box).

As dez regras: 1. As crianças filmadas têm cinco anos de idade. 2. As crianças realizam as atividades elas mesmas. 3. Os pais/adultos são mostrados em um papel de apoio. 4. Deixar bem claro, desde o início, quem é o protagonista, o quê está fazendo e aonde. 5. Nenhum diálogo deve exceder duas frases; o tema de cada programa deve ficar claro pelas próprias imagens. 6. Não utilizar narração. 7. Não utilizar música. 8. Não utilizar palavras na tela. 9. Metade dos documentários devem ser filmados no campo. 10. O importante são as experiências e as atitudes das crianças, não o assunto ou a ação da filmagem.

mais especificamente fora do confortável ninho materno. Além disso, querem se ver na tela e já demonstram interesse por crianças um pouco mais velhas. Mostrar a personalidade A criança é a protagonista do programa e deve estar envolvida com alguma atividade que gosta de fazer, que é quando mostra parte de sua personalidade. Um dos princípios é manter contato visual com ela, colocar a câmera no nível dos seus olhos (para criar intimidade) e mostrá-los, sua expressão facial e corporal, mesmo que as pessoas vejam somente o perfil de seu rosto e alguns fios de cabelo, que é para onde nossos olhos se dirigem.

às crianças. Por que não mostrar os adultos? É muito mais interessante para uma criança em idade pré-escolar ver outra criança de sua idade. Inclusive, quando incluímos um pai ou uma mãe, por vezes, elas nem notam. Pelas pesquisas, sabemos que crianças em idade pré-escolar, quando vêem outras da mesma idade, dirigem suas atenções somente a elas. Se pendurássemos um pano de fundo branco e colocássemos, diante dele, uma criança em idade pré-escolar, ela assistiria o quadro sem se incomodar com o set vazio.

Vá direto ao ponto Desde a primeira tomada, queremos mostrar a criança e a situação. Desse Crianças de cinco anos e seus modo, temos mais tempo para amigos interagir. E ainda podemos criar o A ideia era mostrar o ponto de Sem adultos marco em que a criança possa ser vista de uma criança de cinco ela mesma. Queremos saber como anos. Em geral, esta é a idade em Se há adultos, eles devem ser as crianças fazem determinadas que as crianças saem dos seus mostrados em papéis de apoio coisas e o que elas já conhecem. seguros ambientes familiares, ©Internationales Zentralinstitut für das Jugend- und Bildungsfernsehen (IZI) 2007


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Em geral, os programas devem ter poucas palavras. Por exemplo: “Saia daqui!” ou “Posso fazer isso?”. Não há problema em falar, desde que a história possa ser compreendida sem as palavras. E sem música porque no momento em que você utiliza uma música, está trazendo uma interpretação. As crianças que estão assistindo devem ser capazes de decidir por elas mesmas se acham uma situação triste, interessante ou estimulante. Metade cidade, metade campo É preciso que haja um equilíbrio entre os contextos urbanos e os que não o são, de modo a conseguir contar histórias de diferentes partes do país, de diferentes crianças em diferentes situações. Mantenha o foco nas experiências, não nos processos

Reika faz sushi (http://www.youtube.com/kroyouth)

Sem diálogos, sem narração, sem música Ninguém explica sobre o assunto que trata a história, não há narração oral. O foco está na forma visual de contar histórias, evitando diálogos sincronizados. As crianças de cinco anos não falam sobre o mundo, elas se expressam fisicamente.

Como as crianças experimentam as coisas? O que acontece em seus universos interiores? Não desejo, por exemplo, mostrar em passos detalhados como se deve cavar um buraco na maneira pedagogicamente correta, porque as crianças já sabem fazer isso desde os cinco anos. É importante focar nosso olhar no modo como elas desfrutam do que fazem, e, assim, capturar este momento, que é quando geralmente elas dão um passo à frente em suas vidas. Dois minutos e 30 segundos Para mim, estabelecer um formato é importante. É por isso que tenho rigor na utilização do tempo em documentários para a idade

20/2007/P pré-escolar. Dois minutos e 30 segundos é a duração correta, exata e específica. Outros bons programas para crianças em idade pré-escolar podem ser mais curtos ou mais longos, como o “Piece of Cake: Peanut Butter”. Não se aflija! Como os orçamentos são bastante limitados, não é fácil permitir que as crianças atuem livremente durante as filmagens, porque ninguém sabe o que pode acontecer. Por outro lado, é muito mais fácil contar uma história desse jeito. A filmagem de um documentário para crianças em idade pré-escolar geralmente leva de uma hora a uma hora e meia. Se planejarmos com cuidado, podem-se gravar de três a quatro programas por dia. Além disso, se reunirá um material que pode ser exibido, oferecido ou trocado com outras emissoras. Estes materiais são construídos sob a forte crença na autonomia das crianças. Muitas culturas as vêem como tabulas rasas, que precisam ser preenchidas com conhecimentos e habilidades. Estou tentando mudar esta opinião quando digo: “Não. Elas já estão cheias de energia, de conhecimento e de habilidades, e depende de nós criar um quadro em que elas possam desenvolver tudo isso”. Um bom exemplo: A menina que faz sushi Um exemplo que uso frequentemente é o de um filme no qual uma menininha japonesa em Amsterdam quer fazer sushi. Ela põe um

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pedaço de salmão num prato de madeira, pega uma faca e o corta. Provavelmente, se trata da faca mais afiada que já foi posta na mão de uma criança em idade préescolar na história da televisão. Nós adultos nos focamos no perigo, pois não confiamos numa criança com esse instrumento. Uma criança em idade pré- escolar não vê o perigo, só enxerga o desafio, e pensa: “Ei, eu sou capaz de fazer sushi”. É totalmente seguro e bem feito do ponto de vista pedagógico, porque nenhuma criança pode fazer isso sem o apoio dos pais. Nós nunca mostramos crianças que não são capazes de fazer o que tentam. Nunca ninguém é exposto ao perigo e nem se machuca. Quando as pessoas me falam que eu deveria mostrar os pais das crianças ou dizer: “Não tentem isso em casa”, eu sempre digo: “Sim, tente isso em casa!”. Como no exemplo de Reika, a pequena garota japonesa, os adultos podem se colocar no lugar das crianças em idade pré-escolar: não pensar no perigo, mas ver a coisa como um grande desafio. Mas quando um pai reclama e diz: “Agora meus filhos querem fazer também”, então eu peço que não me culpem. As pessoas reclamam que suas crianças não saem do sofá e só assistem televisão... Isso só acontece porque elas são encorajadas e cativadas pela televisão. Este é o melhor elogio que eu posso receber. E é exatamente isso que eu quero.

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* Resumo de conversa da Dra. Maya Götz com Jan-Willem Bult, chefe da Children’s and Youth Programmes e diretor de criação da KRO (Katholieke Radio Omroep) em Hilversum, Holanda. Muitos de seus programas infantis foram premiados, entre eles três Prix Jeunesse International e três Prix Danube.

Tradução: Daniel Carmona Leite Revisão: Renata Bortoleto Diagramação: Thaís Ozzetti, segunda revisão, 15/01/2013.

©Internationales Zentralinstitut für das Jugend- und Bildungsfernsehen (IZI) 2007


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