NĂşmero 7 | Ano 7 | Dezembro 2018
MemĂłria e Cultura
ÍNDICE 4 Vila Secundino: o que restou da história
6 Sacrifício cultural: história confronta expansão 8 O outro lado da liberdade 10 Alimento que vem do campo
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12 Bar Moreira’s: 35 anos de história 16 Nos olhos do Carcará 18 Refugiados: O drama dos venezuelanos no Brasil 22 Contando a história da Luve 24 Peter Henry Rolfs: uma vida intensa
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Refazendo os caminhos Coordenação e Edição Geral do Projeto Prof. Ricardo Duarte Gomes (MTB-DRT 3123) Revisão Geral Ricardo Duarte Gomes Luana Palhares Mateus Lima Foto de Capa Arquivo da Família Rolfs Edição de Texto Ricardo Duarte Gomes Design Gráfico Diogo Rodrigues Redatores Brenda Scota, Emanuel Vargas, Maria Gabriela Matos, Renoir Oliveira, André Gomes, Marcelo Zinato, Jaqueline de Holanda, Leonardo Lopes, Vinicius Zagoto, Bárbara Pinheiro, Beatriz Valente, Suellen Gonçalves, Alexandre Augusto, Júlio Cleber, João Vitor, Marco Vieira, Matheus Motta, Francielle Barros, Daniel Reis, Gustavo Pires e Ernane Rabelo Pré-Impressão Mauro Jacob Chefe da Divisão Gráfica José Paulo de Freitas Tiragem: 500 exemplares Distribuição Gratuita Endereço Prédio Fábio Ribeiro Gomes 2º andar - Campus Universitário Viçosa–MG. CEP: 36570-900 Telefone: 3899-4502 www.com.ufv.br
Quem é o personagem da capa desta edição? Peter Henry Rolfs quando jovem. A história de como esta foto foi parar na capa de nossa revista é bem longa e interessante: parte dela é contada na página 24 pelo professor Ernane Rabelo, do Departamento de Comunicação Social da UFV. Ele se encontrou com descendentes de P. H. Rolfs em uma viagem que fez à Flórida, EUA, e trouxe na bagagem inúmeros relatos e documentos de grande valor histórico, sobretudo para a Universidade Federal de Viçosa. Isso porque o proeminente agrônomo norte-americano Peter Henry Rolfs, homenageado nesta edição desta revista que leva o seu nome, deixou a direção da Escola de Agricultura da Universidade da Flórida, em Gainesville, para dirigir a ESAV de Minas Gerais – que se tornaria, posteriormente, a UFV. Peter Henry Rolfs participou da Comissão que selecionou o local de instalação da ESAV, orientou seu planejamento e construção. Ele trouxe à Escola a filosofia dos “Land Grand Colleges”, com os eixos da “Ciência e Prática” e do “Aprender Fazendo”. Como esta edição da PH Rolfs traz o título “Memória e Cultura”, ainda trouxemos reportagens produzidas pelos alunos sobre as vilas dos operários que também ajudaram a construir a história da UFV. Você sabia que já houve sete conjuntos residenciais no campus, erguidos nas primeiras décadas de implantação da Universidade? Saiba mais curiosidades na matéria sobre essas vilas, nas páginas 4 e 5. Dando continuidade à temática desta edição, também constam reportagens sobre o patrimônio público da cidade de Viçosa e sobre a história da Liga Universitária Viçosense (Luve). Outras narrativas falam das feiras livres da cidade (parte do nosso patrimônio imaterial), do cineclubismo carcarense dos estudantes aficionados por Cinema, bem como a história do saudoso “Moreira’s Bar”, conhecido ponto de encontro para várias gerações de estudantes e “nativos”. Também fomos brindados nesta edição com o trabalho de um aluno que viajou para Roraima, onde conversou com imigrantes venezuelanos. Boa leitura! Ricardo Duarte Gomes da Silva Editor
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Vila Secundino: o que por Brenda Scota, Emanuel Vargas e Maria Gabriela Matos
A maior comunidade de moradores da UFV foi essencial para a construção do campus principal, mas hoje busca encontrar novos caminhos
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vila Doutor Antônio Secundino de São José teve este nome em homenagem ao antigo diretor da Escola Superior de Agricultura de Viçosa (ESAV). As casas começaram a ser construídas por volta de 1920, juntamente com outras cinco vilas - Vila Sete Casas, Vila Maria Chiquinha, Vila Araújo, Vila Chaves e Vila Matoso, todas edificadas dentro do território da UFV. Todas possuíam o mesmo objetivo: alojar os operários que trabalhavam na construção do campus principal. Mais tarde, em 1948, foi erguida a vila Giannetti, que teve uma finalidade diferente: alojar os professores. A “Vila Secundino” era a maior de todas. Chegou a ter 22 casas. Mas junto com a edificação das casas também se desenvolveu uma cultura entre os moradores. Foi nela que surgiram as primeiras escolas de samba e de onde saiu o primeiro time de futebol feminino de Viçosa, por volta da década de 1940. A vila também era conhecida pelos moradores da cidade, já que muitos iam até lá para participar de várias festas. Conhecida como Dona Iraci, a senhora de 81 anos lembra daquela época: “A Vila era a coisa mais gostosa que tinha nesse mundo. Tinha futebol, tinha peteca, tinha muita criança, muito menino aqui afora. Tinha casa de lá embai-
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xo até cá em cima”. Dona Iraci mora na vila desde 1966, quando se casou com o Senhor Itair. Ele diz: “Tinha escola de samba, tinha festa junina. Muita festa gostosa. Hoje não tem nada, não”. E, de fato, quando nossa reportagem chegou na “Vila Secundino” para conversar com os moradores, encontrou um cenário diferente
do relato ouvido pelas pessoas, que destoa de um lugar que guarda tantas memórias. “Nesse mundo, tudo se acaba. O tempo destrói tudo, acaba com tudo”, declarou Dona Iraci. Em conversa com alguns moradores que nasceram na vila e que hoje moram no centro da cidade, há uma preocupação com os parentes mais idosos que ainda residem no local. O abandono é visível para qualquer pessoa que visita a Vila Secundino
restou da história Esses moradores disseram para nossa reportagem que, com o passar do tempo, a Universidade cuidou pouco das casas. E se antigamente o contato com as pessoas de outros lugares era positivo, isso hoje parece ter mudado. Atualmente pessoas más intencionadas se aproveitam de locais mais afastados dos olhos da vigilância para cometerem crimes, como tráfico de drogas. Entramos em contato com o Setor de Vigilância da UFV e o vigilante Sebastião Lopes Reis informou não existir muitas ocorrências propriamente na vila, mas existem nas regiões ao redor. A Vigilância também informou que é feito patrulha-
mento rotineiro na vila, assim como no resto da Universidade. Segundo o último balanço feito em fevereiro de 2018 pela a Pró-Reitoria de Administração (PAD), restam apenas seis casas ocupadas. Foram estabelecidos acordos entre os moradores e a universidade, que define uma taxa de ocupação (que sofre reajustes com o tempo) e o pagamento das contas de água e energia pelos moradores, enquanto a UFV se responsabiliza pela infraestrutura externa das casas. Sendo as vilas de “interesse institucional”, na prática os moradores deveriam desocupar a casa quando deixassem de trabalhar
para a universidade, inclusive ao se aposentarem. O auxiliar administrativo da Pró-Reitoria de Administração, Vitor Gomide, diz que na prática não é exatamente assim. Primeiro que alguns não trabalham mais na UFV, como antigamente, mas todos os moradores pagam uma taxa de ocupação. Contudo, afirmou Gomide, nem todos os moradores possuem um contrato que regulamente esta condição. Leva-se em conta, nesse caso, o “aspecto social”, pois muitos ali não possuem condições para desocuparem a casa. Por essa razão, alguns continuam morando mesmo sem prestarem serviços para a instituição. Ainda assim, observando as condições físicas das casas, a imagem de abandono é visível. Pode ser visto também nas outras casas que já foram demolidas e em algumas desocupadas, à mercê do desgaste do tempo. Tentando resgatar antigas tradições da vila, os moradores organizaram, em dezembro de 2017, a 2ª edição da “Festa do Samba na Vila Secundino”, com o objetivo de celebrar a cultura do samba em Viçosa e a importância da história da vila para a cidade. De acordo com a Universidade, essas vilas estão destinadas para servirem como espaço para Pesquisa e Extensão. Algumas solicitações de ocupação dessas casas são de moradores que já residem há mais de 50 anos no mesmo imóvel. A Universidade está avaliando uma solução que atenda todas as solicitações dos moradores de maneira conjunta.
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Sacrifício cultural: histó por Renoir Oliveira, André Gomes e Marcelo Zinato
Patrimônio e mercado imobiliário competem por espaços centrais da cidade A tranquilidade de Viçosa começou a ser substituída pelo ritmo acelerado na década de 20, já que a criação da Escola Superior de Agricultura e Veterinária (ESAV), depois
cas, de grande valor cultural, tornando-se alvos do jogo imobiliário. Esse conflito pelos terrenos já dura algum tempo. No fim dos anos 80, o Cine Brasil viveu um processo de decadência do lazer da cidade. Profissionais da época apontaram a competição com a TV e a falta de fornecimento de filmes novos como Na Av. Bueno Brandão, casarões centenários contrastam com os enormes edifícios
transformada em UFV, mudou gradativamente o município. A onda populacional que migrou para a cidade criou novas culturas, marcando desde o comportamento até os conjuntos arquitetônicos. Esse processo atraiu cada vez mais gente e capital ao longo dos anos, visto que a universidade passou a oferecer mais cursos. O número de habitantes dobrou da década de 1980 para 2010, de acordo com o IBGE, saltando de 35.680 para 72.244 pessoas na área urbana. Muitas regiões estratégicas e centrais de Viçosa abrigam estruturas históri-
rédio em nde hoje hortifruti
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causas do fechamento do cinema. Grupos do meio cultural resistiram, tentando criar um teatro municipal ali, projeto frustrado por não ter recebido apoio financeiro da Prefeitura. No local, funcionou uma boate e, atualmente, o hortifruti Sacolão Center. O arquiteto e professor da UFV, Ítalo Stephan, acredita que o prédio deveria ter sido preservado devido ao seu estilo Art Déco.
Seria diferente caso ocorresse o tombamento do imóvel. A iniciativa poderia partir tanto do proprietário quanto das esferas governamentais. Se aprovado, o bem tem seu valor histórico reconhecido e passa a ser um patrimônio oficial público, que entra em regime especial de propriedade, podendo receber recursos públicos para sua manutenção. A Casa Arthur Bernardes e o antigo Colégio de Viçosa passaram pelo processo e foram amparados por leis e programas como o ICMS Cultural, que repassa recursos destinados à preservação de patrimônio através de políticas públicas. Viçosa possui 300 mil reais atualmente para realizar restaurações nesse sentido, informou a Secretaria de Cultura. Outro preceito é a decisão de intervir em bens acautelados - protegidos para evitar que sofram danos - definida pelo Conselho Municipal de Cultura e do Patrimônio Cultural e Ambiental de Viçosa (CMCPCAV). Até mesmo a herança histórica resguardada por lei é passível de sofrer modificações, exigindo discussões sobre a viabilidade dos projetos de construções em seus terrenos. Debates do CMCPCAV são balanceados por representantes
ória confronta expansão de diferentes setores interessados no planejamento justo da cidade. Lotes possuem custo alto na cidade. A Avenida Bueno Brandão têm conjuntos arquitetônicos protegidos, como a Casa Cora Bolivar, cujo entorno foi ocupado por novas edificações através da Lei de Transferência de Potencial Construtivo. Há restrições sobre o número de andares permitidos em cada prédio numa zona urbana, mas essa lei favorece o proprietário que não atingiu a cota máxima, autorizando a venda do seu potencial restante para outros construtores. Essas transformações correspondem às necessidades decorrentes do aumento da população. Tais ações exigem espaço para progredir. Em 2010, o Balaústre corria o risco de ser destombado perderia a guarda do Estado - para que fosse criada uma via em forma de rampa em seu lugar, solucionando problemas de trânsito. Paralelamente, o Instituto de Planejamento e Meio Ambiente do Município (Iplam) recebeu 409 pedidos de concessão para construção em 2011, período de alta procura. Em outras palavras, alguns bens relevantes culturalmente viraram alvos do forte mercado imobi-
liário, já que ocupam zonas estratégicas na cidade. Em 2015 e 2016, do total de 518 alvarás para construções destinados ao Iplam, 91, correspondentes a 17,6%, visavam o centro da cidade, onde estão concentrados os bens históricos: 11 dos 14 imóveis tombados e 87 dos 115 inventariados. Além disso, nesse período de dois anos, foram feitos 59 requerimentos
ti, por exemplo. Sendo assim, Viçosa passa a decidir rotineiramente entre sua cultura histórica e o processo de verticalização. Optar por conservar ou expandir é responsabilidade dos governantes, mas o povo pode fazer pressão e ter suas reivindicações levadas em conta, tendo igual responsabilidade. O chefe do Departamento de Patri-
Antigo Cine Brasil, prédio em estilo Art Déco, onde hoje funciona um mercado hortifruti
para regularizar obras iniciadas ou acabadas, o que permite inferir que, na realidade, há mais construções do que registros. Segundo o Iplam, produzir inventários - dossiês contendo documentos com características e peculiaridades de um bem e fotos para registro - não impede que demolições sejam aprovadas, às quais estão sujeitos o Cine Brasil e a Vila Giannet-
mônio Histórico da Prefeitura, José Mário Rangel, diz ter buscado não atravancar o progresso e, ao mesmo tempo, zelar pelos bens culturais. “A busca é sempre pela conciliação dos interesses, promovendo a discussão, que prevê o bem comum durável”, ele diz. A queda da demanda imobiliária nos últimos anos, somada às ações do município, permite esperar uma diminuição do risco que a identidade histórica de Viçosa corre. Entender que crescimento e patrimônio são importantes, sabendo por qual vale a pena lutar, é dever de todos.
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O outro lado da liberdade por Jaqueline de Holanda, Leonardo Lopes e Vinicius Zagoto
Fomos conhecer a história de vida de algumas mulheres privadas de liberdade no presídio feminino de Viçosa. As entrevistadas na reportagem pediram para não terem seus nomes revelados Foi pelo rádio que Berenice* (nome fictício), 18 anos, ficou sabendo da morte do namorado. Uma paixão jovem a fez sair de casa aos 14 anos para morar com o companheiro no município de Cajuri-MG. Ela recorda que, já no início do namoro, certa vez o rapaz apareceu com tiros no corpo, causados por desentendimentos na comunidade de São José do Triunfo (Fundão).
Berenice é da cidade de Teixeiras e caçula de cinco irmãos. Ela diz ter tido uma vida difícil, pois era a responsável por realizar todas as atividades de casa. Quando decidiu ir embora foi alertada por sua mãe, que a pediu para escolher entre a família e o rapaz. Ela preferiu viver com o namorado. A renda e os bens do casal começaram a chegar pelo crime. E os dois viviam entre brigas e separações. Estavam separados quando Berenice, ouvindo rádio, soube do assassinato do seu ex-parceiro. Ela conta que, naquele momento, uma parte da sua vida foi embora e, a partir dali, ela teria que seguir a vida sozinha. Foi o estopim para ela entrar de vez no tráfico. Gozando da sua juventu-
Os bastidores da reportagem “Depois de obter autorização por escrito para visitar o presídio de Viçosa, fomos ao local para a realização das entrevistas. Pensávamos que a direção do presídio já tinha feito o convite prévio para as mulheres e separado aquelas que gostariam de conversar conosco. Nada disso. Fomos até a frente da cela explicar para elas o teor da entrevista e ainda tentar convencer alguém a contar suas histórias. Fizemos o convite para todas e, por sorte, duas se interessaram. “Mas por quê só duas?” Não sabíamos a
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causa do desinteresse das outras, mas talvez desconfiança em dar um depoimento gravado sobre sua vida. Ficamos sem foto. Isso porque nosso material ficou retido em uma sala com os policiais, logo na entrada. Chaves, celulares, câmeras... entramos só com papel, caneta e gravador, único s equipamentos autorizados. Queríamos fotografar pelo menos as mãos das restritas de liberdade. A ideia permaneceu, só que simulamos fotos em um ambiente mais escuro, com foco as mãos de um dos repórterers. Apesar da sorte de tudo ter fluído
de, Berenice dizia para a mãe que não seria presa, pois era menor de idade. Em uma abordagem policial, foi flagrada com drogas e uma balança de precisão, segundo ela, deixadas em suas mãos por alguns amigos minutos antes de a polícia chegar. No momento do flagrante, ela tinha acabado de completar 18 anos. Condenada por tráfico de drogas e restrita de liberdade desde agosto de 2017, Berenice entrou em um novo namoro dentro do presídio. O casal vive lado a lado, isso porque na penitenciária de Viçosa a cela das mulheres é ao lado da cela dos homens, não existindo uma ala exclusivamente feminina. “A cela feminina foi adaptada para as mulheres. São disponibilizados pelo Estado absorventes e maquiagens. Temos o concurso de Miss Prisional, projeto com o intuito de abordar questões da mulher dentro dos presídios, e são feitas campanhas preventivas da saúde da mulher”, conta o diretor do Presídio, Vinicius Roque Coutinho.
bem, ficamos realmente com medo da experiência. Nunca tínhamos ido em um presídio e não tínhamos a menor ideia do que poderia acontecer lá dentro. Preparamos perguntas prévias e pesquisamos antes sobre o assunto, para tentar criar uma certa segurança, mas a experiência de contato era incerta. As horas foram passando e sem percebermos já estávamos descendo as ruas do bairro Bom Jesus, trocando ideias sobre o que tinha acontecido, ainda extasiados com todas aquelas narrativas de vida que ouvimos. Foi uma experiência não só de repórter, mas também de vida”.
A história dessa garota se soma às de outras nove mulheres que estão no presídio feminino. No Brasil, são mais de 42 mil restritas de liberdade. Dados do Sistema Integrado de Penitenciárias (Infopen), de dezembro de 2017, apontam que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. “Em Viçosa é oferecida uma escola, trabalhos artesanais e atendimento psicológico. A cela não está abarrotada de gente, então não é caótica. Mas, dentro desse espaço restrito, a pessoa pode desenvolver um adoecimento psíquico, dependendo da estrutura do espaço. No presídio daqui, o contato entre as mulheres e homens é mais próximo, eles podem conversar, mas isso, pelo lado psicoterapêutico, não se mostra como um problema”, explica a psicoterapeuta Stefannia Sena Sant’Anna, que trabalha como voluntária na penitenciária. Na mesma cela onde fica Berenice,
está também Paula* (nome fictício), 29 anos. Foi por causa de um celular dado de presente pelo marido que Paula foi parar na prisão em setembro de 2017. Mãe de quatro crianças, ela dormia quando foi abordada pelos policiais, que chegaram em sua casa com um mandado de prisão. A doceira diz que só entendeu o que ocorria quando se deparou com outras 18 pessoas na delegacia, acusadas de formação de quadrilha. O telefone dado de presente tinha o contato delas. O alvará de soltura foi dado para a acusação de receptação do aparelho, mas a atribuição de associação ao tráfico continua. No momento da prisão, Paula estava com a filha de cinco meses no colo. As outras três crianças foram acordadas com a movimentação policial. Na cadeia, ela ainda mantém o casamento com o marido, preso na mesma operação. O casal se reúne em dias de visita, junto das famílias. Os filhos dela não costumam
O presídio de Viçosa está localizado no alto do Bairro Bom Jesus
ir à penitenciária. Devido à distância, a filha caçula estranha sua presença e chora quando a mãe a pega no colo. Em fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu Habeas Corpus coletivo a mulheres grávidas ou mães de crianças de até 12 anos que estejam cumprindo prisão preventiva, ou seja, que estejam à espera de julgamento - não valendo para condenadas. A medida permite que a prisão cautelar seja cumprida em regime domiciliar. “No caso da Paula, ela não é atendida, pois a lei não vale para mães que foram condenadas. A lei da primeira infância também não vale para ela, pois esse caso envolve uma quadrilha muito forte e perigosa no município, com muito assassinato e, dessa forma, o juiz acaba não autorizando.” explica o diretor Coutinho.
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Alimento que vem do campo por Bárbara Pinheiro, Beatriz Valente e Suellen Gonçalves
O aumento das feiras livres está dando condições para o pequeno agricultor permanecer no campo. Este ano, durante a greve dos caminhoneiros, a agricultura familiar de Viçosa e região foi fundamental para o abastecimento da cidade Sempre com um sorriso no rosto, Dona Noemy, 57 anos, diz ser agradecida a Deus pelo que tem. Feirante há oito anos e moradora da Paula, comunidade localizada na zona rural de Viçosa, seu foco é a produção de frutas - especialmente goiaba, manga e banana. Mantendo uma relação de troca com a terra, ela e o marido plantam sem o uso de agrotóxicos e pesticidas no intuito de não prejudicar o solo de forma alguma, fazendo compostagem com minerais, adubo natural e descansando o solo a cada sete anos. “Já trabalhei com um monte de coisa e não quis [continuar], eu gosto é disso, é minha paixão”, diz Noemy. Mas um dos maiores desafios para ela e outras dezenas de pequenos produtores rurais está no preço dos produtos e a atuação dos atravessadores, que revendem insumos para mercados e hortifrutis. Noemy, assim como tantos outros, participou do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), mas o custo para transportar suas mercadorias está
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cada vez mais prejudicando o lucro. O PNAE legisla sobre a compra de alimentos para as escolas públicas e assegura, através do artigo 14 da Lei 11.947, que 30% da verba seja destinada à aquisição dos produtos de agricultores familiares. Em Viçosa, esse número chega a 70% nas escolas municipais, segundo o secretário de Agricultura do município, Marcos Fialho. Apesar dos problemas do aumento do custos, outras iniciativas federais procuram assegurar as exigências mínimas para a continuidade da produção familiar durante os próximos anos. Uma delas é o Plano Safra da Agricultura Familiar 2017/2020, que
busca apresentar ao produtor um crédito mais barato. Na região, o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA) e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-MG), através da assistência técnica aos produtores, procuram aprimorar e diversificar as produções,
Noemy é feirante há oito anos e a agricultura é sua paixão. Ela e outros produtores vendem seus produtos nas feiras livres
fortalecendo a autonomia dos pequenos agricultores, dando perspectiva de alcançar novos mercados e complementar a renda. Durante a greve dos caminhoneiros, em maio, Viçosa teve um aumento do fluxo de pessoas nas feiras livres da cidade, que ajudaram a abastecer
as famílias. Contudo, apesar desse suporte, Viçosa é o município dentre as cidades próximas com o menor número de agricultores familiares. Ainda assim, os pequenos produtores compõem 85% da atividade agrícola da cidade, segundo o engenheiro agrônomo Eugênio Ferrari, profes-
sor de Licenciatura em Educação do Campo na UFV. Essas feiras livres aumentaram na cidade nos últimos anos, devido a uma necessidade de escoamento da produção por parte dos agricultores, de acordo com o secretário municipal de Agricultura. Assim surgiu a “Feira da Estaçãozinha” em 2016, exclusiva para produtores de Viçosa, que ocorre todas as quartas a partir das 15h na praça Maestro Hervé Cordovil. E também o “Quintal Solidário”, todas as quartas a partir das 17h na casa 52 da Vila Giannetti – além da já conhecida “Feira do Colégio”, todos os sábados pela manhã. Essas feiras estão dando condição ao pequeno agricultor permanecer no campo, já que aumentou a demanda, bem como a regularidade das visitas semanais da assistência técnica da Prefeitura aos produtores. Participante da feira do sábado, a agricultora Eliane Pereira trabalha na venda de quitandas. Há seis anos, a moradora de Macena, comunidade da zona rural, transforma sua própria colheita - como mandioca, banana e abóbora - em pães, bolos e roscas com a ajuda do marido e das filhas. Seu sustento não depende apenas das feiras, pois ela também conta com o “dinheiro certo” do PNAE, visto que entrega seus produtos uma vez por semana nas escolas municipais. Eliane diz que se tivesse a oportunidade ainda trabalharia com criação de galinhas. E completa: “Não saberia viver na cidade”.
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BATE-PAPO COM O ROLFS
Bar Moreira’s:
Legenda desta foto à direita sobre o bar moreira’s jk jk jk jkjkjfdf
35 anos de história Por Alexandre Augusto, Júlio Cleber, João Vitor e Marco Vieira
Quem já morou em Viçosa entre as últimas três décadas, ou simplesmente gosta da boemia e passou pela cidade, em algum momento foi apresentado ao Bar Moreira’s, antigamente localizado no centro da cidade, próximo ao Balaústre. Mais do que um ponto comercial, o ambiente descontraído também já foi ponto de encontro de professores, técnicos e estudantes da UFV e de momentos que se guardam na memória da cidade e individual de cada um. No “Bate-papo com o Rolfs” descobrimos que o proprietário do bar, o piranguense José Geraldo Osório, o “Moreira”, criado em Porto Firme, chegou a Viçosa em 1983, depois de muitos anos morando em São Paulo. Na entrevista, ele conta histórias sobre as dificuldades e as alegrias ao longo desses 35 anos do estabelecimento. Depois de se instalar no bairro João Braz, o Bar Moreira’s fechou suas portas este ano, deixando muitas saudades. Rolfs: Por que abrir um bar em Viçosa naquela época? Moreira: Não era um intuito de abrir um bar. Eu tinha que montar alguma coisa, porque não tinha emprego. Eu trabalhava com telefonia e não tinha como trabalhar com telefonia aqui. Pensei em uma loja ou lanchonete, mas aí apareceu um bar que estava à venda e aí resolvi encarar. No início muita gente falava que eu não ia durar um mês, por que eu não tinha conhecimento de bar, mas em 1963 eu trabalhei num barzinho ali no Calçadão, então tinha alguma noção de comércio. Fiquei mais ou menos um ano e meio tentando conquistar a clientela. Em bar pequeno os clientes são muito voltados para os amigos do dono, então eles se sentiam os donos do local. E quem chegava não se sentia
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à vontade e aquilo me dificultava em achar outros clientes. Em 1984 fui buscar uma clientela nova, sem tirar os antigos clientes. Passei pro meu funcionário que todas as vezes que chegasse um freguês novo me avisasse para que eu pessoalmente fosse atendê-lo. Assim fiz essa busca pelos novos clientes. Chegava uma pessoa, conversava, eu perguntava de onde era, de onde estava vindo e assim fui conquistando aos poucos, até que nos anos de 1985 eu já estava com uma clientela formada. Aqueles que se achavam dono do local se afastaram, apareciam uma vez ou outra. Quando o bar Moreira’s se tornou ponto conhecido? Entre 1985/86 começou a faltar mercadoria. Você pagava mais que o preço de tabela e, se não quisesse comprar, ficava sem cerveja. Por
isso começou a faltar nos restaurantes, nos bares. Aí peguei o carro e fui procurar caixa de cerveja pelas cidades. Sem bebida os restaurantes fechavam após o almoço e só eu tinha. Foi aí que o Moreira’s começou a ser conhecido. Cerveja não dava lucro, então trabalhamos em cima dos tira gostos. A propaganda boca
José Geraldo Osório, o “Moreira”, comandou um dos bares mais famosos e frequentados de Viçosa
a boca ajudou e em 1987 eu já não dava mais conta da clientela para um bar pequeno. Aí os clientes pegavam as cadeiras e colocavam na praça. Comprei mais mesas e comecei a servir na praça e o negócio expandiu. Como é a realidade do negócio de um bar? No passado era lucrativo. Hoje
trabalho sempre com o receio de um déficit no caixa no final do mês. A margem de lucro caiu muito. Isso faz com que você tenha que vender mais, trabalhar mais para fechar no azul. Muitas vezes você vira a noite. Mas me traz muita satisfação, porque ao longo desse tempo eu fiz muitos amigos, alguns que deixam
saudades. O lado ruim é o lucro pequeno, o bom é essa amizade. Já vou fazer 35 anos de bar e isso é muito gostoso, saber que as pessoas que passaram aqui, deixaram alguma recordação. O que aconteceu para se retirar do centro? O imóvel já tinha uns 50 anos, e houve a passagem de uma adutora do Saae [Serviço Autônomo de Água e Esgoto] para coletar esgoto. Essa tubulação foi feita por uma máquina, um tatuzinho por baixo do imóvel, e por conta disso começaram a aparecer algumas trincas, nas paredes, banheiro e na cozinha. Passados uns três meses houve o rompimento de uma das adutoras, do outro lado da praça. Essa água vazou a noite toda, mas não veio à superfície da terra. Isso fez com que as trincas ficassem cada vez maiores, ao ponto de algumas paredes terem rachaduras com mais de 20, 30 centímetros. Então a gente foi tocando, sabendo que o risco de desabamento era muito pequeno, pois consultamos um engenheiro. Alguém que frequentava o bar denunciou e aí a Defesa Civil fez a interdição, mas não pediu a desocupação. Não sei se houve uma outra denúncia, mas aí veio o Corpo de Bombeiros de Ubá e fez a interdição e a desocupação do imóvel. Como estão os negócios após as mudanças? Na verdade eu já queria sair de lá. Mas eu queria sair de forma programada. Não da forma que eu saí. Cheguei lá em uma segunda-
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Interior do Moreira’s quando funcionava na Praça Mário Del Giudice, centro da cidade
-feira, dia 22 de setembro de 2014, e já estava o Corpo de Bombeiros, a Polícia, a Defesa Civil e quando me apresentei eles me deram 10 minutos para sair. Então foi um choque. Nessa saída eu perdi muita mercadoria, eu tinha um estoque razoável.
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O que eu consegui vender, foi vendido abaixo do custo, depois eu fiquei 6 meses parado, até encontrar esse novo ponto. Aí nesse tempo que eu fiquei parado as pessoas tinham saudades do Bar Moreira’s e queriam conhecer o novo bar do Moreira. Entre 2015/16 foi maravilhoso, mas aí veio a crise e não está mais vantajoso estar aqui. Eu não tenho mais uma venda que eu
possa dizer que está maravilhosa. E hoje quando eu pergunto alguns antigos fregueses por que passam tanto tempo sem vir, uns reclamam da distância, outros reclamam da blitz [da Lei Seca], outros reclamam da insegurança. Então são vários fatores que fazem com que os fregueses habituais meus, lá do centro, deixem de vir aqui hoje. O senhor disse que já tinha em mente sair de lá. Para onde pretendia ir? Veja bem, eu estava cansado. Como ainda estou, aliás muito mais. Mas eu queria montar alguma coisa menor, para fugir do trabalho noturno, talvez alguma coisa diurna. Então eu não estava pensando em continuar trabalhando a noite. Como o senhor lida com a concorrência dos bares? Bom, no centro, lógico que há muitos bares, restaurantes, que já tem suas clientelas, mas eu nunca tive problema com a concorrência.
Sempre que abria um bar por perto os outros falavam “é, agora você vai quebrar”, mas eu tinha uma clientela fixa, cativa. Às vezes falhava uma ou duas semanas, iam lá ver o que o outro bar tinha pra oferecer, depois voltavam. É uma coisa normal, abre um bar do lado e o cara vai lá ver se tem alguma coisa diferente, como é o ambiente, ver que tira gosto tem de novidade, mas minha clientela era muito fiel. Tenho vários clientes que, todas as vezes me encontram pela cidade, param para conversar, perguntam se estou bem, o que é uma satisfação muito grande pra mim. Isso fez com que essa clientela não se afastasse do bar em hipótese nenhuma, mesmo porque todos sabiam da qualidade que eu tento passar para o freguês. Então isso me deu uma segurança muito grande. Aqui no bairro João Braz, quando eu cheguei, já tinha o outro bar ali, que provavelmente tem mais de vinte anos, e tem a freguesia dele.
Também não vim com nenhum intuito de roubar seus clientes, mas de formar uma clientela para mim e atender aos meus clientes que vieram lá do centro. Nesses 35 anos de bar e clientes qual é a história mais interessante que já te aconteceu? Se eu tivesse anotado ao longo desse tempo tinha muita coisa para contar. Já teve traição vísivel dentro do bar, já choraram ao contar desse tipo de situação para mim, mas a que mais me marcou foi a de dois professores da UFV que brigaram no bar. Hoje já devem ter se aposentado. Era época de eleição de reitor, no final dos anos 1980 e início dos anos de 1990. Eu sei que os dois começaram a falar de política da universidade, um se ofendeu, pediu para o outro parar e ele não parava, aí o primeiro falou assim “você para, senão vou te bater” e o segundo continuou. O primeiro voltou a falar : “tira o óculos que eu vou te bater” e
o segundo continuou falando, então o primeiro professor deu um murro nele, e o segundo tirou o óculos, pegou um guardanapo e limpou, houve um sangramento. Ficou aquilo ali. Aí eu saí do bar e pedi a meu funcionário que tirasse as garrafas de cima do balcão, para evitar de ter alguns ferimentos mais graves. Mas aí o professor que levou o soco não reagiu e eu voltei pra dentro do balcão. Passados já uns dez minutos, o que apanhou resolveu dar uma porrada no outro... [risos]. Não foi uma reação imediata, foi pensada! A partir daí começaram a brigar. Lá no bar tinha dois estudantes sentados, já era final de noite, e os dois tiveram que separar os professores. Daí um deles saiu um para um lado e o outro para outro, ficou por isso mesmo. Na primeira sede, os clientes desfrutavam de bebidas e tira-gostos sentados em mesas colocadas na praça
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Nos olhos do Carcará Por Matheus Motta e Francielle Barros
Com quase meio século de existência, cineclubismo em Viçosa ainda resiste Em uma sexta-feira à tarde, o corredor principal do chamado “Porão” do Centro de Vivência, que por vezes se torna o refúgio do movimento estudantil da UFV, está quase vazio. Apenas alguns alunos estão por ali
cartazes das mostras realizadas pelo Cine Carcará desde a sua reativação. Acolhidos pelo histórico cineclube, um público de cerca de 25 pessoas assiste inquieto a mais uma obra de arte do cinema mundial. O Carcará tem quase 50 anos e já circulou por diversos espaços da universidade, mas encontrou no Porão seu abrigo, desde o período da ditadura militar. E lá Cineclube Carcará foi criado e é mantido por alunos da Universidade
fazendo cópias de textos e exercícios para o final de semana. De longe, um som diferente atrai alguns estudantes para a curva do corredor e, pouco à frente, atrás das cortinas verdes, é exibido um filme. As paredes da sala de cinema expõem com orgulho os
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realiza mostras quinzenalmente em uma sala de cinema cedida pela Divisão de Assuntos Culturais da UFV. Segundo o ex-membro do cineclube, Cássio Lopes, o Carcará é um espaço de importância histórica na divulgação do cinema e da cultura
na cidade. “Não conheço nenhum outro movimento cultural em Viçosa que tenha sido tão frequente e duradouro quanto o Carcará”. As mostras do cineclube são realizadas em dois horários, à tarde e à noite, para que alunos de diferentes turnos consigam assistir. Normalmente são exibidos de três a cinco filmes ao longo de uma semana. A curadoria dos filmes exibidos é feita por todos os membros do cineclube, que conta com uma equipe de cerca de 20 pessoas. Segundo a mestranda em Artes na UFMG, Hellen Gonçalves, que foi membro do Carcará entre 2014 e 2016, atingir o grande público nunca foi o foco. “Durante o tempo que eu participei, se tivesse 30 pessoas na
provoca essa discussão e isso gera um debate frutífero”, comenta o estudante Warley Davidson, do curso de Ciências Sociais da UFV. Para Cássio, o Carcará sempre teve públicos fiéis e específicos para cada tipo de mostra e seus temas sempre se relacionaram com os grandes festivais de cinema e com o gosto específico de cada membro do projeto naquele período. O cineclube também explora mostras que desvirtuam ou contestam o sentido de determinado tema. Por exemplo, no mês das mães, temáticas podem discutir sobre a maternidade, trazendo pro-
duções que apontam para uma visão diferente ao esperado sobre o assunto. A divulgação do cineclube é feita principalmente nas redes sociais do projeto e por meio de cartazes fixados pelo campus e nas ruas da cidade. Essa divulgação tem se mostrado efetiva com o aumento do número de assinaturas e cursos registrados na lista de presença das mostras. Assistimos a uma dessas sessões do Carcará. E ao final do filme “Estrada dos Sonhos” (Mulholland Drive, 2001) ouvimos alguém comentar que não conseguiu entender nada. Percebemos que ela deixou a sala um pouco desapontada. Mas a maioria do público ficou para uma discussão acalorada sobre a obra e outros filmes do premiado diretor David Lynch.
A falta de apoio ao cineclubismo sala (durante as sessões), estava cheia. Normalmente eram mostras com cinco ou 10 pessoas, mas se tivesse 15 já estava ótimo. Se você passar um filme e tiver uma pessoa ali para debater depois contigo alguma questão do filme, é melhor que você exibir um filme qualquer para encher a sala e todo mundo sair dali ‘descansado’, como um entretenimento puro”. O foco do cineclubismo na UFV seria trazer, a partir do audiovisual, o acesso à cultura e as questões que estão fora do mercado, por meio de filmes que, geralmente, “buscam trazer uma discussão importante, algum outro ponto de vista que, não intencionalmente,
DA EDITORIA: Pesquisa de 2015 da
tes e rodovias.
Secretaria do Audiovisual do Ministé-
O reconhecimento do cineclubis-
rio da Cultura, em parceria com o site
mo por parte dos gestores e realiza-
G1, apresentou 701 cidades com ci-
dores passa por iniciativas que te-
neclubes no Brasil. O Plano Nacional
nham continuidade, colaborando em
de Cultura estima alcançar 37% das
termos de equipamentos, acervos,
cidades com cineclubes até 2020.
eventos e informações, dando visibi-
Mas o Conselho Nacional de Ci-
lidade aos cineclubes.
neclubes não acredita que a meta
Um cineclube tem por objetivo
será alcançada. Falta apoio dos go-
ser um espaço sem fins lucrativos
vernos para legitimar o cineclubis-
para a exibição de filmes brasileiros
mo, ausência que interfere na ope-
e estrangeiros; lugar de promoção
ração regular de alguns cineclubes
de palestras, que estimule o debate
no Brasil. Chegar a essa meta tam-
sobre a linguagem de cada filme, tra-
bém depende das emendas parla-
tando o Cinema como ferramenta de
mentares que, em geral, beneficiam
educação. Minas Gerais conta hoje
com mais frequência estradas, pon-
com 44 cineclubes.
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Refugiados: O drama dos venezuelanos no Brasil O repórter Daniel Reis foi até Boa Vista, Roraima, para contar as histórias dos refugiados venezuelanos que tentam recomeçar a vida em terras brasileiras
S
ão duas horas da tarde do primeiro dia de agosto de 2018. Venezuelano refugiado em Boa Vista-RR, José Duran conversa com mais seis imigrantes em frente à Paróquia Nossa Senhora da Consolata, após o almoço. Naquele mesmo dia, com ajuda de voluntários brasileiros, outros 1.300 refugiados conseguiram se alimentar no local. Quatro meses antes, José se despedia dos seus três filhos e da sua esposa, embarcava em um ônibus na cidade de Puerto La Cruz (VEN) e percorria cerca de 1.200 km até chegar na capital roraimense. Assim como ele, aproximadamente 85 mil venezuelanos encontraram exílio no Brasil após deixarem o seu país diante da gravíssima crise enfrentada pelo governo totalitarista de Nicolás Maduro. Ao todo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) cerca de 2,3 milhões de venezuelanos deixaram o país entre 2015 e novembro de 2018. O país vive, desde o início de 2016, uma situação de emergência econômica decretada pelo atual presidente. Porém, a crise começou a
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surgir a partir de 2013, após a morte do então presidente Hugo Chávez. O principal fator, segundo especialistas, foi a queda no preço do barril de petróleo, que variou de US$117,2 em março de 2012, para US$37,34 no mesmo mês de 2016. Atualmente, o preço está em US$58,80 (novembro de 2018). Um duro golpe para a economia venezuelana, que depende das atividades petroleiras. A principal consequência da crise econômica foi a crise social. Um reflexo da hiperinflação, desemprego, fome e a falta de itens básicos de higiene e remédios. José, agora no Brasil, procura um emprego para reestruturar a sua vida e tirar a família da Venezuela. Ele é padeiro, mas durante esses quatro meses morando em Boa Vista, o único trabalho que conseguiu foi de capinador. A sua esperança é ser interiorizado para outro estado do país, como São Paulo, Goiás, Minas Gerais ou Amazonas, pois acredita que os empregos na capital roraimense “estão zerados”. Mesmo sabendo que o processo de interiorização é difícil, as expectativas de José crescem ao saber que o seu amigo Pedro Rafael (27), também padeiro, conseguiu um emprego em São Paulo. Pedro agora pretende juntar dinheiro para trazer os seus sete irmãos e a sua mãe para o Brasil. Ele, que trabalhará como ajudante de cozinha, conta que chegou a passar
fome morando na Venezuela e relata: “Se você comprasse arroz não conseguia comprar pão, se comprasse pão não conseguia comprar arroz. Passei fome, estava muito magro”. A estratégia de interiorização é, inclusive, tida como a única solução para o governo local. Com uma população de 300 mil habitantes e 30 mil refugiados, Boa Vista encontra-se em uma situação também complicada. A cidade não possui infraestrutura para receber mais imigrantes. Mesmo assim, atualmente, quase 500 venezuelanos atravessam a fronteira de Roraima diariamente. Os números da Polícia Federal indicam que, em julho de 2018, 128 mil venezuelanos já haviam atravessado a fronteira para o Brasil. Desses, apenas 46% ainda estavam no país. Em um estudo mais recente, publicado em novembro, a ACNUR, Agência da ONU para Refugiados, afirmou que cerca de 85 mil venezuelanos residiam no país. A prefeita de Boa Vista, Teresa Surita, chegou a falar, em uma entrevista, que “Se continuar assim, até fim do ano perdemos o controle da cidade”. Surita tenta pressionar o governo federal, que, segundo ela, não repassa verba suficiente para o município lidar com o problema. A falta de emprego em Boa Vista também é uma realidade. A cidade não tem indústrias que possam empregar os imigrantes ou um for-
HĂĄ quatro meses, JosĂŠ Duran procura por uma oportunidade de emprego no Brasil. Ao fundo, refugiados improvisam barracos
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Grupo de refugiados cozinha nas ruas de Boa Vista, Roraima
te comércio. Mesmo assim, o casal de venezuelanos Irene López (32) e Daniel Barroso (30) conseguiram trabalho na cidade e pretendem se fixar e reestruturar a vida. Ela lava pratos em um restaurante luxuoso, já ele é segurança no mesmo estabelecimento. O emprego não é o dos sonhos para a contadora e o operador de máquinas pesadas. Mas, diante da realidade da maioria dos imigrantes, essa é a nova chance que eles precisavam. Uma chance para recomeçar. Eles, que chegaram a morar em uma praça de Boa Vista e ficaram um tempo em abrigos, agora residem em um apartamento alugado na cidade. “Não estamos totalmente estáveis, mas estamos em situação melhor. Temos um lugar para viver
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e ainda podemos ajudar o resto da nossa família que está na Venezuela, porque a situação lá está cada vez pior.”, conta Irene. Mas a realidade é que o recomeço está distante para a maioria dos venezuelanos. Um dos fatores que dificulta esse processo é a xenofobia. Nas proximidades da Igreja da Consolata, local onde existem inúmeros barracos improvisados dos refugiados, é comum ver carros buzinando excessivamente e ameaçando atropelar as pessoas que andam pelas ruas, que em sua maioria são venezuelanos. O ápice da intolerância por parte dos brasileiros aconteceu no dia 18 de agosto, quando manifestantes forçaram centenas de refugiados a
atravessar a fronteira de volta. “Fora, fora, volte para a Venezuela”, gritavam os brasileiros, que ainda queimaram documentos e pertences dos que tentavam recomeçar uma nova vida. O fato aconteceu após quatro venezuelanos esfaquearem um comerciante em um assalto. José, mesmo antes desse fato acontecer, afirmava que “os brasileiros pensam que nós [venezuelanos] somos todos iguais. Por causa de um, pagam todos os venezuelanos”. Naquele dia 18, a imagem de um pai sendo expulso do Brasil com o seu filho no colo aos gritos poderia retratar o que José falava. Aquele pai, provavelmente, precisou adiar o recomeço da vida da sua família. Por outro lado, a esperança do re-
Ao lado da família, venezuelano exibe placa à procura de emprego
começo é visível no sorriso de Oswal Rodriguez (38) e Martha de Rodriguez (32). Eles e os seus cinco filhos eram com certeza os mais felizes do Aeroporto de Congonhas (SP), no dia 5 de agosto. Naquele dia, a família enfrentou mais de 24 horas de viagem para chegar ao destino final, Córdoba, na Argentina. Oswal e Martha conseguiram refúgio com um amigo argentino, que ofereceu abrigo para a família até o casal conseguir se fixar no novo país. Os dois venderam tudo que tinham na Venezuela (uma grande casa e um carro Chevrolet do ano de 2004). Porém, diante da inflação e do baixo valor do Bolívar, moeda que era comercializada na época, conseguiram apenas US$2.500 (aproximadamente R$10.000), dinheiro suficiente para comprar as passagens. A família estava faminta, tinham comido pela última vez em Boa Vista, 14 horas antes, e não possuíam dinheiro para comprar alimentos no aeroporto. Mesmo assim, o sorriso
no rosto estava presente. Os filhos brincavam, enquanto os pais, em um misto de ansiedade e alegria, conversavam com alguns brasileiros. Já na fila de embarque, uma mulher entregou um saco com pães de queijo e refrigerante para a família. A mulher pegaria outro voo e acenou para a família, se despedin-
do. As crianças e o casal retribuíram com sorrisos e um adeus. Aquela cena era exatamente o contrário da que se viu em Pacaraima, com o pai atravessando a fronteira para Venezuela com o filho nos braços. De um lado, xenofobia, intolerância e violência; do outro, solidariedade, ajuda e amparo. O sorriso daquelas crianças em pleno Aeroporto de Congonhas é almejado diariamente por milhares de venezuelanos. Pessoas como José, Pedro, Daniel, Irene, Oswal, Martha e outros que sonham e procuram no Brasil a oportunidade de começar uma nova vida. No Aeroporto de Congonhas, a família Rodríguez aguarda voo para Foz do Iguaçu. A viagem terminaria em Córdoba, Argentina
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Contando a história da Luve O formando Gustavo Pires, aluno do Curso de Comunicação Social/Jornalismo, escreveu um livro-reportagem a partir da história oral de ex-presidentes e participantes da Liga Universitária Viçosense (Luve). Para a PHRolfs ele conta os bastidores desta pesquisa
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criação da Luve, em 5 de abril de 1962, foi um importante marco para o esporte local. Com 56 anos de existência, é referência até hoje. Com a estruturação que foi ganhando ao longo dos anos, as participações em amistosos, torneios e campeonatos foram se expandindo por todo o estado. E em pouco tempo o órgão esportivo que representa a UFV já havia disputado partidas em todas as regiões do país e até no exterior Contar 56 anos de tantas histórias torna-se um desafio digno de um livro-reportagem que preparei como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Comunicação Social-Jornalismo da UFV. E essa tarefa gera outros fatos interessantes para relatar. Entrevistei ex-atletas, treinadores, diretores, presidentes e professores. Todos se lembram de diversas histórias marcantes com um sentimento de muita felicidade, inclusive os que já possuem mais de 50 anos de formatura, como é o caso do primeiro presidente, Francisco Junger, ou Chicão, como prefere ser chamado. Mesmo
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com uma vida repleta de acontecimentos, até hoje Chicão se refere à Luve como “uma filha abstrata que eu sinto, só não consigo tocar, mas eu sinto permanentemente dentro de mim”. Essa forte ligação emocional se repete em diversos depoimentos. Nem em um livro-reportagem seria possível falar de todas as conversas com os entrevistados, nem da própria dificuldade em encontrá-los. Dos cerca de 40 entrevistados quase todos foram de difícil acesso: apesar de alguns ainda estarem em Viçosa, outros residem em outros estados e países – e alguns, infelizmente, já faleceram. Um caso interessante em meio a essas pesquisas foi tentar encontrar o ex-presidente da Luve do distante ano de 1972. A primeira pista foi uma notícia encontrada na Gazeta Universitária, jornal feito por estudantes da UFV, que estava guardado no Arquivo Central e Histórico da universidade. Nela havia o nome “Ricardo Altafin”. Para encontrar mais informações foi necessário ir até a Associação dos Ex-Alunos (AEA), na Vila Giannetti, onde descobri que, na verdade, o nome completo dele era “Antônio Vasco Ricardo Altafin”. O senhor Altafin ingressou na época em dois cursos, mas não chegou a concluir nenhum deles, o que explicava não ter conseguido localizar o nome dele no banco de dados dos formados na UFV. Depois de encontrar o nome completo do senhor Altafin, a busca passou para a internet, onde foi locali-
Vista do Departamento de Educação Física (DES) da UFV em 1976
zada uma descrição no Facebook do dono de um imóvel em Botucatu-SP, na qual ele aparecia como antigo inquilino. E foi só o que encontrei. Era a única pista disponível. Então foi a vez de pesquisar o nome do proprietário do imóvel lá de São Paulo. Localizei, então, seu contato e telefonei para ele. Na conversa, o homem explicou que realmente Altafin havia sido seu inquilino há muitos anos, mas que seu comércio havia falido e ele se mudou. Ao término da ligação informou que, infelizmente, ele já havia falecido. Se algumas histórias chamam atenção pela dificuldade de informação, outras são interessantes pela grandeza dos seus feitos. Foi o que descobri com Carlos Cardoso Machado, atual professor do Departamento de Engenharia Florestal da UFV, que na época de estudante, lá pelos anos 1970, foi corredor de alto nível, chegando a disputar São Silves-
tre representando a Luve/UFV, que auxiliou em sua ida e até lhe comprou um par de sapatilhas próprias para corrida, algo que ele nunca havia utilizado. Carlos Machado conquistou, em 1972, uma colocação melhor do que representantes de países como Suécia, Argentina e Paraguai. Isso tudo sem treinamento profissional e dividindo as atenções entre esporte e formação acadêmica. Outra história muito interessante foi contada por Júlio Silva - o primeiro presidente após o período de dois anos (1980 a 1981) em que a Luve ficou parada por problemas jurídicos e administrativos (essa foi a única pausa da Liga em 56 anos) - , Denelísio Leite e Deraldo Barreto, também ex-presidentes. Os dois primeiros eram atletas de voleibol, enquanto Deraldo era do xadrez. Eles contam que em 1986 foram convidados para representar o Brasil em um torneio em Israel. Como não possuíam verba suficiente, começaram a angariar dinheiro com empresas, patrocínios, colaboradores, ex-membros, etc. A
equipe de voleibol ficou em terceiro lugar e tanto Júlio quanto Denelísio brincam que deveriam ter disputado a final, mas perderam um jogo tranquilo na semi. Já Deraldo conta que o vice-campeonato conquistado pelo xadrez foi extremamente comemorado. Na cidade em que a imagem da viçosense Maria Elizabete Jorge, conhecida como Bete do Peso, é muito conhecida por ter sido a primeira mulher representante do levantamento de peso feminino na história do Brasil em Jogos Olímpicos (Sidney, 2000), outro grande expoente da modalidade acaba esquecido. Falo de José Henriques da Silva Filho, estudante inicialmente da Escola Estadual Dr. Raimundo Alves Torres (Esedrat), onde começou a disputar e vencer os primeiros torneios de levantamento de peso na cidade. Com 16 anos, em 1978, ele quebrou três recordes nacionais da categoria juvenil no Campeonato Mineiro de Estreantes de Levantamento de Peso, em Belo Horizonte. No mesmo ano, participou e quebrou três recor-
des brasileiros da época, na categoria dos 100kg aos 110kg, no Campeonato Brasileiro de Levantamento de Peso, que ocorreu em Viçosa e que foi classificatório para o Campeonato Sul-Americano de Levantamento de Peso Juvenil, realizado em Santiago, no Chile, onde também venceu e quebrou mais dois recordes, que já pertenciam a ele próprio. Em 1979, estudando no Colégio de Aplicação da UFV, (Coluni) e com 17 anos, José participou do Torneio de Avaliação promovido pela Confederação Brasileira de Desportos (CBD), em São Paulo, em que os pré-selecionados para o Mundial Juvenil de Levantamento de Peso e os Jogos Pan-Americanos, em Porto Rico, foram convidados. Lá, ele não apenas garantiu sua vaga para o Mundial, como também quebrou o recorde sul-americano de sua categoria. Com 18 anos recém-completos, ainda competiu no Campeonato Sul-Americano adulto, mesmo sendo juvenil, conquistando o 2º lugar geral, perdendo apenas para o venezuelano Douglas Urribari. Mais uma vez José conquistara o recorde juvenil de sua categoria. Já como estudante do curso de Engenharia Florestal na UFV, o atleta viajou até a Cidade do México integrando a seleção brasileira para disputa da IV Copa México de Levantamento de Peso. Com a dificuldade de conciliar treinamentos e estudos, preferiu seguir a área acadêmica. Essas são algumas das várias histórias que consegui coletar junto a esses atletas heróis que ajudaram a construir a história de conquistas da Luve nestes 56 anos. Tanto os antigos quanto os atletas da atualidade são guerreiros que, com ou sem medalha, já são vencedores.
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Peter Henry Rolfs: uma vida intensa por Ernane Rabelo
Ele aceitou a tarefa de coordenar a criação da ESAV (hoje UFV), mas, embora a história dessa Escola seja bastante conhecida, pouco é divulgado sobre a vida deste fundador. Saiba mais a respeito da trajetória de P. H. Rolfs Em 1901, Peter Henry Rolfs tinha pouco mais de 40 anos de idade e vivia com sua esposa e duas filhas em Miami (Flórida-EUA). Aos finais de semana a família gostava de pedalar até Lemon City, uma pequena cidade próxima onde os Rolfs tinham uma chácara e cultivavam abacate, abacaxi e manga, entre outras frutas tropicais.
Rolfs ocupava o cargo de chefe do Laboratório de Plantas do Ministério da Agricultura dos Estados Unidos, quando recebeu convite para dirigir a Escola de Agricultura da Universidade da Flórida, que estava sendo criada por um ato do governador do Estado. Sua primeira missão seria justamente transferir toda a estrutura física possível do Colégio de Agricultura da cidade de Lake City para Gainesville, 50 milhas ao Sul, onde seria erguida a futura Universidade. Rolfs já conhecia Lake City, pois ali começara sua carreira acadêmica como professor logo depois de se formar em Iowa (região Centro-Oeste dos EUA) e casar-se com Effie Rolfs. O que provavelmente ele não esperava era o clima extremamente hostil. As duas cidades se engalfinharam. Lake City era uma pequena mas tradicional cidade, cujo maior orgulho era justamente seu Colégio de Agricultura. Era como se a UFV fosse hoje transferida de Viçosa para outra cidade, de menor porte, menos relevante e rival. Esse foi provavelmente o primeiro grande desafio de Rolfs. O povo permaneceu alguns dias nas calçadas. Espantados ou temerosos, assistiam inertes o movimento contínuo de trabalhadores carregando dezenas de carroças com carteiras PH Rolfs e sua exposa, Effie, que dá nome à Escola Estadual presente no Campus da UFV
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escolares, livros, armários e todos os equipamentos de ensino. A mudança durou alguns dias e conta-se que os proprietários de mulas de Lake City não quiseram alugá-las para Rolfs. Juntos, estudantes e funcionários da Escola também se despediram pesarosos da adorável cidade, que nunca recuperou sua importância. As lideranças de Lake City ensaiaram resistência mas capitulam resignadamente frente à determinação do professor Rolfs, apoiado pelo governo do Estado da Flórida. Reconheceram como “culpado” pela tragédia aquele professor de pele muito branca, quase 1,90 metro de altura, de pouco riso, olhos azuis, resoluto. Embora fosse um “estrangeiro”, a população lhe devotava respeito e reconhecia sua estatura. Rolfs tinha participado, por exemplo, de uma atividade inusitada. Como era comum aos cientistas de seu tempo, ele se ocupava em disseminar o conhecimento proporcionado pelas pesquisas. E se dedicava à extensão. Há fotografias, por exemplo, que registram Rolfs ministrando aulas no “trem-escola”: vagões adaptados em sala de aula e que fazia paradas ao longo da ferrovia. Em Lake City, antes de se mudar para Miami, fundou em 1891 o Museum’s Herbarium, que chegou a 5 mil plantas. Hoje elas fazem parte do “Peter Rolfs Collection”, mantido em sua homenagem pelo Museu de
Professor Ernane Rabelo junto da família Rolfs
História Natural da Flórida. Para se ter uma ideia da estatura acadêmica de Rolfs, ele descobriu e foi o primeiro a descrever um patógeno comum às plantas, o Sclerotium rolfsii. Popularmente conhecido como “mofo cinzento” a doença ataca dezenas de legumes, grãos e hortaliças, como alface, batata, cebola, feijão, soja, pimentão, tomate e até flores. Por sua descoberta, seu nome ficou eternizado. Um de seus livros, a respeito de produção do abacate, continua sendo reimpresso até os dias atuais. O desafio seguinte era erguer a Universidade da Flórida e Rolfs era um dos mais experientes e renomados professores, com bastante prestígio também como pesquisador e extensionista. A UF foi construída a partir da junção de outras escolas e Rolfs esteve presente desde o iní-
cio, assim como faria no futuro com a ESAV. Dono de currículo admirável, membro das principais sociedades cientificas e sua área, e diretor da principal escola da então prematura Universidade da Flórida, provavelmente Rolfs foi cotado a presidi-la. Isso não aconteceu e nem nas sucessões seguintes. Talvez por isso ou em busca por novos desafios, alguns anos depois ele aceitou o convite para criar uma universidade na América do Sul. Quando o presidente Arthur Bernardes decidiu criar no Brasil uma escola nos moldes da Land Grand College, solicitou ao embaixador brasileiro em Washington, um antigo colega de faculdade e filho do escritor José de Alencar, para que lhe ajudasse a encontrar algum professor norte-americano. Se possível, experiente. Rolfs aceitou o convite do governo brasileiro depois de outros dois o recusarem. Ele deixou o o cargo de diretor da Escola de Agricultura da Uni-
versidade e da Estação Experimental de Agricultura da Flórida. Nascido em 1865 em Le Claire (Iowa-EUA), tinha 58 anos de idade quando iniciou a empreitada brasileira. A família Rolfs tinha apenas duas filhas, algo raro na época, e as criou para estudarem e exercerem alguma profissão. A mais nova, também chamada Effie, como a mãe, deixou um “pretendente” quando embarcaram rumo ao desconhecido Brasil em janeiro de 1921 no “Munson Steamship Line”. Dois anos depois, a filha retornou sozinha para Nova York, onde morava uma parente, e em seu apartamento realizaram seu casamento com o engenheiro Robert Hargreaves. Algo incomum à época, foi uma cerimônia civil bastante simples e com a presença de poucas testemunhas. Eram assim os Rolfs. Rolfs gostava de conhecer outras vegetações e solos, coletando plantas. Visitou o México, Cuba e outros países em uma época difícil para longas
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viagens. Em 1929, por exemplo, ele e sua filha Clarissa saíram de Viçosa rumo aos Estados Unidos, mas dando a volta pelo Paraguai, Argentina e Uruguai. Depois retornaram pelo litoral brasileiro, subindo até o Norte do Brasil, depois tomaram avião das Guianas até o Caribe e de lá para os Estados Unidos. Um percurso de automóvel, ônibus, navio, trem de ferro e avião, levando nove meses. Os quatro filhos do casal, como se acontece, suprimiram o sobrenome “Rolfs” e nenhum deles (nem os bisnetos) construíram carreira profissional na Universidade da Flórida. A outra filha, Clarissa, nunca se casou ou teve filhos. Ela decidiu morar no Brasil, trabalhou em São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Rolfs faleceu em 1944, aos 79 anos de idade. Todos estes fatos reunidos fizeram com que o sobrenome ficasse limitado a uma simples placa em frente ao antigo prédio do Colégio de Agricultura da Universidade da Flórida. Foi com surpresa que escutei
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várias autoridades da UF responderem negativamente quando indagava se conheciam aquele antigo professor e o que ele fizera no Brasil. Há muitas questões em aberto concernentes à família de Peter Rolfs, a carreira profissional, inclusive sua passagem com Consultor da Secretaria de Agricultura do Estado de Minas Gerais. Escrevi um artigo no jornal local que teve grande repercussão, alguns descendentes me procuraram e parte destas informações me foram contadas por suas netas e bisnetas. Este artigo iniciava-se com uma carta escrita por João Carlos Bello Lisboa, que sucedeu Rolfs na direção da ESAV: “E eu fui para o meu quartinho da sala a matutar comigo mesmo. Que gente forte! Estes americanos, dois notáveis cientistas, passaram pela pior esfrega da vida deles sem um lamento, sem uma praga, sem se lastimarem. Que bom exemplo. Que prova de fogo da fortidão duma raça! Fiquei admirado e estou convencido que cinco moços não teriam
Peter, Effie e crianças da família durante visita a uma lavoura no Brasil
vencido os mortais obstáculos com a mesma galhardia com que eles o venceram. Eta gente”. Esse relato foi feito em 28 de fevereiro de 1924 por um jovem engenheiro brasileiro e conta a história de uma horrível e perigosa viagem a cavalo entre as pequenas cidades de Viçosa e Araponga, no interior de Minas Gerais. Era fevereiro, verão, chovia pesadamente naquela região extremamente montanhosa e as estradas e trilhas se tornaram uma lama. O grupo consistia em oito pessoas, cinco norte-americanos e três brasileiros, que passavam a noite tateando rastros, ensopados, roupas completamente enlameadas, sem comida. A situação piorou ainda mais quando um dos burros escorregou na lama, derrubou e chutou as pernas do cientista americano Peter Rolfs.
Acima, o bilhete do navio de uma viagem de P. H. Rolfs ao Brasil À direita, o professor já com mais de 60 anos Abaixo, ao lado de sua exposa, monitorando uma plantação
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JORNALISMO | UFV
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Peter Henry Rolfs