NOS 150 ANOS DE ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE EM PORTUGAL Escola de Direito da Universidade do Minho DH-CII (Direitos Humanos - Centro de Investigação Interdisciplinar) JusGov (Centro de Investigação em Justiça e Governação)
2018
Nos 150 Anos de Abolição da Pena de Morte em Portugal
Atas da Conferência Comemorativa do Dia Internacional dos Direitos Humanos de 2017
Coordenação Científica Mário Ferreira Monte Edição EDUM Escola de Direito da Universidade do Minho
2018
FICHA TÉCNICA
TÍTULO Nos 150 Anos de Abolição da Pena de Morte em Portugal (Atas da Conferência Comemorativa do Dia Internacional dos Direitos Humanos de 2017) LOCAL E DATA Braga, Dezembro 2018 COORDENAÇÃO CIENTÍFICA Mário Ferreira Monte AUTORES Andréa De Boni Nottingham | Douglas Ribeiro Weber | Fernando Conde Monteiro Flávia Noversa Loureiro | José Carlos Lopes de Miranda | Manuel Monteiro Guedes Valente Margarida Santos | Nestor Eduardo Araruna Santiago | Pedro Miguel Freitas | Rafael Marcílio Xerez EDIÇÃO DH-CII Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar APOIO EDUM Escola de Direito da Universidade do Minho JUSGOV Centro de Investigação em Justiça e Governação JUSGRIM Grupo de Investigação em Justiça Penal e Criminologia FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia PAGINAÇÃO E DESIGN DE CAPA Pedro Rito FOTO DE CAPA Cordas de enforcamento dos séculos XIX e XX © Museum of London ISBN 978-989-54032-7-1
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ÍNDICE
NOS 150 ANOS DE ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE EM PORTUGAL: O CAMINHO AINDA NÃO TERMINOU... IN THE 150 YEARS OF THE ABOLITION OF THE DEATH PENALTY IN PORTUGAL: THE PATH IS NOT OVER... Mário Ferreira Monte 1 AS RAZÕES EPISTEMOLÓGICAS PARA INADMISSIBILIDADE DA PENA DE MORTE: UM ENSAIO A PARTIR DO FILME “A VIDA DE DAVID GALE” THE EPISTEMOLOGICAL REASONS TO DEATH PENALTY’S INADMISSIBILITY: AN ESSAY FROM THE MOVIE “THE LIFE OF DAVID GALE” Andréa De Boni Nottingham, Rafael Marcílio Xerez, Nestor Eduardo Araruna Santiago 11 A CONDENAÇÃO À PENA DE MORTE COMO UMA TÁTICA CONTRA O TERRORISMO DEATH PENALTY CONVICTION AS A TACTIC AGAINST TERRORISM Douglas Ribeiro Weber 31 A PENA DE MORTE: REFLEXÕES SISTÉMICAS E AXIOLÓGICAS THE DEATH PENALTY: SYSTEMIC AND AXIOLOGICAL REFLECTIONS Fernando Conde Monteiro 47 AS FINALIDADES DAS PENAS, A CRIMINALIDADE CONTEMPORÂNEA E A ALEGADA NECESSIDADE DE AJUSTAMENTO DA REAÇÃO CRIMINAL: O CASO DA PRISÃO PERPÉTUA THE PURPOSE OF PENALTIES, CONTEMPORARY CRIMINALITY AND THE ALLEGED NEED TO ADJUST THE CRIMINAL REACTION: THE CASE OF LIFE IMPRISONMENT Flávia Noversa Loureiro 65 DA PENA DE MORTE AO DIREITO À PENA. UMA FUNDAMENTAÇÃO DA INDISPONIBILIDADE DA VIDA HUMANA FROM DEATH PENALTY TO THE RIGHT TO A PENALTY. THE REASONING BEHIND THE UNAVAILABILITY OF HUMAN LIFE José Carlos Lopes de Miranda 77
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PRINCÍPIO POLÍTICO-CRIMINAL DA HUMANIDADE COMO PEDRA ANGULAR DO PODER DE PUNIR POLITICAL-CRIMINAL PRINCIPLE OF HUMANITY AS AN ANGULAR STONE OF THE POWER TO PUNISH Manuel Monteiro Guedes Valente 95 A FUNÇÃO GARANTÍSTICA DO DIREITO PENAL (REFLEXÕES A PARTIR DA CELEBRAÇÃO DOS 150 ANOS DA ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE EM PORTUGAL: 1867-2017) THE GUARANTEE FUNCTION OF CRIMINAL LAW (REFLECTIONS FROM THE CELEBRATION OF THE 150TH ANNIVERSARY OF THE ABOLITION OF THE DEATH PENALTY IN PORTUGAL: 1867-2017) Margarida Santos 105 A ECONOMETRIA NA PENA DE MORTE: QUANTO VALE UMA VIDA HUMANA? ECONOMETRICS OF CAPITAL PUNISHMENT: HOW MUCH IS A HUMAN LIFE WORTH? Pedro Miguel Freitas 127
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Em jeito de apresentação
NOS 150 ANOS DE ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE EM PORTUGAL: O CAMINHO AINDA NÃO TERMINOU... In the 150 years of the abolition of the death penalty in Portugal: the path is not over...
Mário Ferreira Monte
A extinção da pena capital, em Portugal, ocorreu através da Carta de Lei da Abolição da Pena de Morte, em 1867. É curioso notar que a este documento foi concedida a Marca do Património Europeu1. Se o referimos não é por acaso. É que esta publicação comemorativa daquela efeméride ocorre um ano depois dos 150 anos passados, que é o ano em que se comemora o 70.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem e o 40.º aniversário da adesão da República Portuguesa à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Como se fosse pouco, o ensejo deste livro e a sua publicação sucedem no Dia Internacional dos Direitos Humanos. Um conjunto de coincidências que melhor ajudam a compreender a importância da abolição da pena de morte. Falar desta efeméride, hoje, à distância de um século e meio, pode parecer apenas uma revisitação do passado: por um lado, resulta dos principais instrumentos internacionais a inequívoca ilegitimidade da pena de morte; por outro lado, o sistema português, além de não permitir esta pena, tem um sistema penal 1
Cfr. http://antt.dglab.gov.pt/exposicoes-virtuais-2/carta-de-lei-da-abolicao-da-pena-de-morte-1867-marca-do-patrimonio-europeu/, consultado no dia 10 de dezembro de 2018.
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Nos 150 Anos de Abolição da Pena de Morte em Portugal: O caminho ainda não terminou Mário Ferreira Monte
humanista no que se refere às consequências jurídico-criminais. Mas não é bem assim. O caminho que se iniciou em 1867 não terminou. É preciso não descansar sobre os méritos da Carta de Lei pela qual D. Luís sancionou o Decreto das Cortes Gerais de 26 de Junho de 1867 que aprovou a reforma penal e das prisões, com abolição da pena de morte. Se se deu um passo gigante na humanização do sistema penal, não pode dizer-se que, na prática, hoje, este sistema se mostre tão humanista quanto aquela Carta faria supor 150 anos depois; e, se o sistema não é tão criticável quando olhamos para a sua dimensão normativa interna, o mesmo não podemos dizer quando desviamos o olhar além-fronteiras. Começando pela vertente internacional, o panorama não é sequer tranquilizador: ademais de continuar a aplicar-se a pena de morte em alguns países, surpreende que na Europa, em instituições de que Portugal faz parte, só tão tardiamente se tivesse abolido a pena de morte. Para já não falar da persistência da prisão perpétua – às vezes definitiva – ou de fenómenos generalizados de sobrelotação de prisões com todas as suas implicações negativas. Se não, vejamos. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 3.º, determina-se que “[t]odo indivíduo tem direito à vida (...)”. E, como o artigo 5.º determina que “[n]inguém será submetido a (...) penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, sendo a pena de morte uma pena cruel, desumana e degradante, na medida em que contraria o direito à vida, enquanto direito humano, pode dizer-se que, à luz da DUDH, a pena de morte é sempre ilegítima. Surpreende, no entanto – embora saibamos das dificuldades de conceber um texto internacional, em 1948, consensual e em torno dos direitos humanos –, que se persista com uma ausência de abolição formal da pena capital. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, no artigo 2.º, também proclama que “[o] direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei”. Lamentavelmente, o artigo 2.º não é claro na declaração inequívoca da ilegitimidade da pena de morte. Afirma que “[n]inguém poderá ser intencionalmente privado da vida”, mas exceciona a hipótese de uma “execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei”. Só por isto já poderia dizer-se que há um longo caminho a percorrer... Mas, felizmente, esse caminho, para os países do Conselho da Europa, já foi feito. O Protocolo n.º 13 à Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, Relativo à Abolição da Pena de Morte em Quaisquer Circunstâncias, de 3 de maio de 2002 (Protocolo de Vilnius), começa por afirmar no Preâmbulo que “o direito à vida é um valor fundamental numa sociedade democrática e que a abolição da pena de morte é essencial à proteção deste direito e ao pleno reconhecimento da dignidade inerente a todos os seres humanos” e, depois, no artigo 1.º, determina que “[é] abolida a pena de morte. Ninguém será condenado a tal pena, nem executado”. Portanto, está claro que os países do Conselho da Europa aboliram a pena de morte. Pode dizer-se que, deste modo, a 2
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Convenção Europeia dos Direitos do Homem acaba por consolidar-se como texto humanista e de salvaguarda das liberdades fundamentais com este Protocolo 13, uma vez que ele se dirige à proteção do direito humano mais relevante para qualquer pessoa e para a sociedade que é o direito à vida. Tardou, mas acabou por se conseguir aquilo que deveria ter sido pronunciado desde o início. Seria bom, como é evidente, que o texto do artigo 2.º da CEDH fosse alterado. Não pode deixar-se este resquício, não vá servir de inspiração ou de fundamentação aos que pretendam legitimar a pena de morte, olhando para a Convenção e ignorando os seus protocolos. Tudo isto porque a inviolabilidade da vida humana, o direito à vida, implicam necessariamente que não assiste ao Estado o direito de aplicar a pena de supressão da vida. Nem mesmo por razões de justiça, porque a “pena de morte não é justiça”2. O Estado não pode invocar razões de justiça, muito menos retributiva. A concepção ético-retributiva – a perspetiva mais moderna das posições absolutas da pena – vê a pena como uma compensação do crime, proporcional à gravidade do facto, assente sobretudo na culpa. Ora, por muito grave que tenha sido o crime, nunca a culpa será proporcional a uma pena que tenha como resultado a própria anulação da pessoa, a sua destruição. E mesmo que alguém assim entendesse, o Estado estaria a adoptar para o condenado a mesma atitude que este tivera para a vítima. Logo, estaria a pagar um mal com outro mal. Ao infligir um mal (a destruição da pessoa humana) para anular outro mal (o crime), o Estado assume que essa via, de realizar um mal, é uma boa via para sanar o mal, perpetuando assim o desvalor de ação e de resultado, banalizando o próprio mal3. De algum modo o Estado estaria a comportar-se de modo idêntico ao do delinquente. Poder-se-ia contrapor, afirmando que esse mal estaria justificado, seria um “mal necessário”: o Estado atuaria, em nome de todos, em legítima defesa. Só que a legítima defesa implica uma ação defensiva perante um ataque ilegítimo. Ora, não pode invocar-se esta causa de exclusão perante um ataque que já se produziu. Nesse caso, já não é de legítima defesa que se trata, mas de consequência jurídica, de pena. Por isso, a pena, como tal, deve obedecer às finalidades gerais previstas no ordenamento jurídico. Estando afastada a finalidade ético-retributiva, como já vimos, restar-nos-ia experimentar uma fundamentação assente nas teorias utilitaristas, de tipo relativo. 2 Nos paços do Conselho da Europa existe um cartaz que diz: “L’Europe contre la peine de mort”; e em seguida: “Peine de mort n’est pas justice”. 3 Como talvez dissesse Hannah Arendt, se o podemos inferir a partir do seu famoso Eichmann em Jerusalém – uma Reportagem Sobre a Banalidade do Mal.
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Nos 150 Anos de Abolição da Pena de Morte em Portugal: O caminho ainda não terminou Mário Ferreira Monte
Podia a pena capital servir finalidades preventivas? Ela não poderia servir finalidades preventivas gerais, ou seja, não pode dirigir-se à tutela de bens jurídicos ou sequer das normas que promovem os bens jurídicos. Desde logo porque o desvalor da pena não estará justificado pela exigência de prevenção geral. O bem jurídico mais relevante que existe na sociedade é a vida humana. Proteger a vida com a destruição de outra vida humana constitui sempre um sacrifício ilegítimo, porque a aplicação da pena é um ato refletido e fundado em valores que não pode confundir-se com uma espécie de castigo ou entrar no jogo da proporcionalidade do mal. Ora, não pode esperar-se que à proteção de cada bem jurídico corresponda a violação de um bem jurídico igual. Não é isso que se passa relativamente aos restantes bens jurídicos. Isso seria resvalar para a retribuição, com os inconvenientes que já vimos. Muito menos poderia admitir-se a prevenção geral negativa como finalidade a prosseguir com a pena de morte: do que se trataria seria de usar a pessoa humana como instrumento de dissuasão, para intimidar os outros. Utilizar-se a vida de uma pessoa para ameaçar outras, tratando aquela pessoa como um instrumento, é negar-lhe qualquer dignidade. E também é evidente que a pena capital não serve finalidades preventivas especiais, porque, ao invés de se reintegrar o delinquente, aniquila-se a pessoa; ao contrário de se contribuir para que a pessoa não volte a cometer aquele crime, no pressuposto de que a pessoa continue a viver e a poder realizar-se como pessoa, o que se faz simplesmente é destrui-la. Naturalmente que falar de prevenção especial, seja positiva, seja negativa, nestes termos, seria um eufemismo. A pena de morte é, portanto e simplesmente, a mais cruel e desumana consequência jurídica que se pode aplicar a uma pessoa pela prática de um facto criminoso, por mais grave e igualmente desumano que seja o crime. Expressão deste repúdio em casos de extrema gravidade e relevância contra a humanidade pode ser confirmada no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (ETPI). Este instrumento internacional, previsto para crimes de uma forte gravidade e de importância internacional, não prevê a pena de morte. Note-se que para o Estatuto é claro que nem crimes como os de genocídio, através do qual um número indeterminado de pessoas pode ser destruído, ou crimes contra humanidade, de uma gravidade acentuada, ou quaisquer outros sempre graves e repudiantes, serão passíveis de pena de morte. Causa, por isso, estranheza que na Europa ainda exista algum país (ainda que não pertencente ao Conselho da Europa) que teime em manter a pena de morte como sanção possível e legal e que, fora do continente europeu, essa possibilidade se apresente em um número considerável de países. É tão estranha esta realidade, em pleno século XXI, quanto é certo que os países que permitem a aplicação desta pena não apresentam benefícios dessa possibilidade; bem
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pelo contrário, em alguns desses países os índices de criminalidade são altos, incluindo naqueles crimes que admitem tal pena. Há ainda um longo caminho a percorrer para que a pena de morte seja erradicada. Mas o caminho a percorrer não se impõe apenas porque esta pena não está totalmente abolida. Mesmo para os países em que não está prevista a pena capital, não estão superadas outras penas igualmente desumanas, cruéis, degradantes e infundadas. É o caso daqueles países que teimam na aplicação das penas definitivas, como a pena de prisão perpétua. E aqui não podemos deixar de mencionar novamente o Estatuto do Tribunal Penal Internacional. É evidente que esta possibilidade está prevista no Estatuto de Roma, o que, só por si, não é uma boa notícia. Ainda assim, convém dizer que o ETPI prevê a sua aplicação, mas aceita-a em condições excecionais e sujeita a reexame, após 25 anos de cumprimento (artigos 77.º e 110.º ETPI). Pode suceder que desse reexame resulte a possibilidade de o recluso ser sujeito a um regime de liberdade condicional. O facto de se admitir que a pena de prisão não é uma pena definitiva tranquiliza-nos. A condição dos 25 anos é discutível. Não é aqui o lugar para aprofundar, mas se o fundamento da revisão é a possibilidade de uma reintegração social, então essa reabilitação poderia ser admitida antes dos 25 anos se razões existissem para crer que essa seria a melhor solução. Aceita-se que a prevenção geral de integração deve ser preservada. Mas não esqueçamos que isso já sucede com a (simples) previsão da pena de prisão perpétua para certos crimes. Logo, o efeito comunicativo do tipo, incluindo a pena, já cumpre essa função de proteção subsidiária de bens jurídicos, ou, para quem veja no ETPI outros fundamentos e outras funções (nomeadamente, a função protetora da norma jurídica ou da prevenção do dano possível), seguramente que também já as cumpre. Naturalmente que a impossibilidade de revisão mereceria a nossa discordância; e a possibilidade de essa revisão ocorrer apenas quando transcorridos 25 anos seguramente que merece alguma reflexão. Sabemos que o ETPI é o resultado de negociações de vários Estados com experiências e visões diferentes, pelo que o facto de se ter alcançado um acordo quanto à possibilidade de, à uma, não haver pena de morte e, à outra, a pena de prisão perpétua poder ser revista após 25 anos, é seguramente mais positivo do que seria se nem uma nem outra tivessem sido alcançadas. Entre ter uma percentagem significativa de 100 ou nada de 100%, é melhor a primeira. Mas não podemos dizer o mesmo se estivéssemos a tratar de uma realidade sem relevância internacional ou exclusivamente dependente de decisão nacional. Os crimes do ETPI só o são quando forem “crimes de maior gravidade que afectem a comunidade internacional no seu conjunto”, tal como está previsto
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Nos 150 Anos de Abolição da Pena de Morte em Portugal: O caminho ainda não terminou Mário Ferreira Monte
no artigo 5.º do ETPI. Foi esta dupla condição – maior gravidade e afetação da comunidade internacional no seu conjunto – que presidiu à seleção dos crimes previstos no ETPI, pelo que só são punidos como tal os crimes de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão. O que, em todo o caso, não pode vincular cada Estado a prever no seu ordenamento a prisão perpétua para estes crimes. Sobretudo porque cada Estado não está sujeito a uma negociação internacional sobre os propósitos do seu ordenamento jurídico, e porque estes propósitos fundam-se na Constituição democrática nacional, não há qualquer razão para sustentar a pena de prisão perpétua, e muito menos para a sustentar ainda que possa ser revista. O próprio ETPI não o imporia. Ainda assim, quando ela exista, naturalmente que não deve ser definitiva. Vistos alguns problemas e assinalados alguns progressos na ordem internacional, aparentemente poderíamos ficar por aqui. Mas não. Há ainda um longo caminho a percorrer se quisermos ostentar, como devemos, a bandeira do humanismo no sistema penitenciário. Basta reter um ponto: as penas de prisão, tal como são correntemente cumpridas, além de roçar a ilegalidade, são, não raras vezes, desumanas. As palavras, aqui, podem parecer duras, mas são-no pela realidade. E assim entramos na vertente prática, tanto nacional quanto internacional, do sistema penal, aquela que nos parece ser a mais problemática. Tomemos como exemplo o sistema português – que, no entanto, não está só. No artigo 40.º do Código Penal prevê-se que as finalidades das penas são preventivas (de tipo positivo), gerais e especiais. No Código de Execução das Penas e Medidas de Privação da Liberdade (CEPMPL) também se prevê, no artigo 2.º, que “[a] execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes (...)", e, no artigo 3.º, alusivo aos princípios orientadores da execução da pena, apela-se ao respeito pelo princípio da dignidade da pessoa humana, pela personalidade do recluso e os seus direitos e interesses não afetados na sentença, à não discriminação, à especialização e individualização do tratamento do recluso, a evitar as consequências nocivas da privação da liberdade, à promoção do sentido da responsabilidade do recluso e à cooperação com a comunidade. Isto, para além de outros princípios orientadores especiais, sempre no sentido de um respeito pela pessoa e pela dignidade do recluso. Pois, será que a realidade por vezes não contraria tudo isto, e não hoje, mas sempre? Salvo reconhecidas exceções, nem sempre as finalidades especiais são realizadas, como, ainda por cima, a pena de prisão é, não poucas vezes, cumprida em condições que acarretam outros efeitos não previstos na lei, como, por exemplo, maus tratos, ofensas à integridade física e moral, ofensas de tipo sexual, 6
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discriminação, enfim, atentados vários contra a dignidade da pessoa humana. Costuma argumentar-se com a sobrelotação das prisões e falta de meios, como se fosse legítimo justificar o resultado com a causa e como se a causa não fosse superável. Para quem tenha uma ideia da pena de prisão como instrumento expiatório, punitivo, do tipo “quanto pior, melhor”, obviamente que acaba por ser indiferente o modo como é cumprida. Mas para quem tenha uma visão humanista, independentemente das finalidades que se asseste à pena de prisão, então a sua execução nunca poderia ser indigna. Até mesmo para quem veja na pena de prisão uma finalidade retributiva, a retribuição esgotar-se-ia na privação da liberdade, não havendo espaço a outros efeitos negativos decorrentes daquela privação. E o mesmo se diga para quem entenda que serão necessidades de prevenção que presidem à sua aplicação. Ora, tudo isto é tanto mais certo quanto se reconheça que a pena de prisão deve potenciar a reintegração social, como está previsto no Código Penal e no Código de Execução de Penas Privativas de Liberdade, em Portugal. É evidente que, em muitos casos, o que a pena de prisão potencia no momento da execução é uma indesmentível dessocialização. Pelo que, na verdade, nesses casos, ela pode ser ilegal, violando quer o direito português, quer normas internacionais, entre as quais destacaremos o artigo 3.º do CEDH que proíbe a aplicação de penas ou tratamentos desumanos ou degradantes. Esta situação não pode deixar-nos indiferentes, como se os estabelecimentos prisionais fossem uma espécie de submundo onde tudo é permitido, porque se assim é, é um submundo do Estado de Direito. Não há lugar a submundos num Estado de Direito democrático e humanista. Não há, nem pode haver. Por isso, pese embora o esforço que aqui e acolá se vai fazendo, o caminho ainda não terminou. O que aqui dizemos não pode ser interpretado como uma análise casuística e dirigida à situação atual. Se assim fosse, seguramente que não seria tão preocupante; tratar-se-ia de um epifenómeno... Mas não. Trata-se de um fenómeno muito antigo, que tem percorrido o tempo, que já estava diagnosticado em 1867 – como facilmente resulta do texto da Carta de Lei da Abolição da Pena de Morte – , e que não é exclusivamente português. Da sua ocorrência em outros países e das suas implicações negativas nos dá conta Hans-Jörg Albrecht num brilhante trabalho publicado pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrecht, em 20124, sobre a sobrelotação das prisões, de inadiável leitura. De algum modo, quando se assume o intento de refletir sobre a abolição da pena de morte, se nos decidimos a publicar o resultado dessas reflexões, ainda 4 Hans-Jörg Albrecht, Prision Overcrowding. Finding Effetive Solutions. Trategies and Best Practices against Overcrowding in Correctional Facilities, Freiburg: Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Strafrecht, 2012.
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Nos 150 Anos de Abolição da Pena de Morte em Portugal: O caminho ainda não terminou Mário Ferreira Monte
que a cada um assista o direito de livre pensamento e livre expressão, assume-se o propósito de se apelar à necessidade de rever o modo como o sistema penal se realiza. E, neste propósito, sem dúvida que temos razões para comemorar os 150 anos de abolição da pena de morte, como motivos temos para comemorar o facto de não existir em Portugal pena de prisão perpétua, mas não podemos encarar isso como se a tarefa estivesse terminada, apenas porque não se vê, não se sente ou não se experimenta. A realidade obriga-nos a exortar no sentido de continuarmos a refletir sobre os propósitos do sistema penal. Faz sentido que a proteção de bens jurídicos continue a ser a primeira função do direito penal, a partir da qual se determinam os tipos e as sanções a aplicar, se na verdade muitos crimes poderiam conhecer soluções diferentes e mais ajustadas às necessidades tanto dos arguidos como das vítimas? É possível manter-se a reintegração social como uma finalidade legal das penas, sem que, em grande parte, ela seja cumprida pelo Estado (que as prevê, as impõe, as aplica e as executa) e sem que daí advenha qualquer consequência? Vale a pena privilegiar a prevenção geral positiva (a proteção de bens jurídicos) como função e finalidade penais, se se descura a ressocialização dos agentes do crime? Podemos descansar enquanto não for cumprida a tolerância zero para a pena de morte e para as penas definitivas? São apenas algumas das muitas questões que, neste momento e nesta efeméride, podemos colocar e que aqui, nesta publicação, encontram motivos de maior reflexão. § Este Livro é o resultado escrito, científico e interdisciplinar das reflexões realizadas pelos Autores que aqui colaboram, apresentadas no dia 11 de dezembro de 2017, no dia internacional dos direitos humanos, na Conferência Comemorativa dos 150 anos de Abolição da Pena de Morte, organizada pelo DH-CII (Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar), agora também parte do JusGov (Centro de Justiça e Governação), pela mão do JusCrim (Grupo de Investigação em Justiça Criminal e Criminologia), e pela ELSA-Uminho (The European Law Students’ Association da Universidade do Minho), apoiada pela FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia) e pela Escola de Direito da Universidade do Minho. O evento contou, na organização, com a participação das Senhoras Professoras Patrícia Jerónimo Vink e Teresa Moreira, a quem, agora e publicamente, se agradece a ajuda. Pode dizer-se que nesta Obra encontra o Leitor contributos diversos das ciências sociais, com particular relevância no domínio do direito e da filosofia. São reflexões livres, como só pode ser o pensamento científico. Por isso, a 8
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responsabilidade das ideias vertidas em cada artigo é do respetivo autor. Também foi dada total liberdade quanto à forma, pelo que a obra não seguiu quaisquer guidelines formais nem foi harmonizada. Ao leitor menos atento pode parecer uma pequena gota, ao menos de cor diferente, no imenso mar do ruído, do mediatismo e das luzes dos holofotes. Mas não podemos esquecer que as grandes revoluções da história da humanidade não se fizeram com a força, mas com as ideias, e nem com o uso das armas, mas das palavras. Por isso, este pequeno contributo, na verdade, é um contributo sereno mas necessário para a consolidação daquilo que deve ser uma sociedade moderna e justa: de direito, democrática e assente no respeito dos direitos humanos – exatamente como deve ser cada Estado. Aos Autores – os que participaram no Seminário em 2017 e os que agora publicam os seus textos – cabe assim uma palavra de agradecimento, não só pela qualidade dos seus escritos, mas também pelo facto de o terem feito em tempo assinalavelmente curto após a reunião das condições para a publicação. Agradecimento também se deve ao Sr. Dr. Pedro Rito pela paginação em tempo tão breve que em nada diminuiu na qualidade, bem pelo contrário; como devidas são palavras de gratidão à Dra. Célia Rocha pelo apoio administrativo. Por fim, mas não em último, os nossos agradecimentos à Presidência da Escola de Direito e à Fundação de Ciência e Tecnologia, pelo apoio na organização do Seminário e na publicação deste Livro. Braga, 10 de dezembro de 2018 (Dia Internacional dos Direitos Humanos) Mário Ferreira Monte Professor Catedrático Diretor do DH-CII Coordenador do Grupo JusCrim (JusGov)
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AS RAZÕES EPISTEMOLÓGICAS PARA INADMISSIBILIDADE DA PENA DE MORTE: UM ENSAIO A PARTIR DO FILME “A VIDA DE DAVID GALE” The epistemological reasons to death penalty’s inadmissibility: an essay from the movie “The life of David Gale”
Andréa De Boni Nottingham1 Rafael Marcílio Xerez2 Nestor Eduardo Araruna Santiago3
1 Mestranda em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (PPGD-UNIFOR). 2 Doutor em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Direito Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Juiz da 2a Vara do Trabalho de Fortaleza-CE. 3 Pós-Doutor pela Escola de Direito da Universidade do Minho. Doutor em Direito Tributário, Mestre e Especialista em Ciências Penais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza (UNIFOR – Mestrado e Doutorado). Líder do Grupo de Pesquisa “Tutela penal e processual penal dos direitos e garantias fundamentais” (UNIFOR), vinculado ao Laboratório de Ciências Criminais (LACRIM-UNIFOR). Membro do IBRASPP – Instituto Brasileiro de Processo Penal, sendo Coordenador Regional do Estado do Ceará. Advogado Criminalista.
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As razões epistemológicas para inadmissibilidade da pena de morte: um ensaio a partir do filme “A vida de David Gale” Andréa De Boni Nottingham / Rafael Marcílio Xerez / Nestor Eduardo Araruna Santiago
Resumo: O presente artigo tem como escopo discutir as razões epistemológicas para a inadmissibilidade da pena de morte em qualquer condição, ainda que em casos de guerra declarada, como prevista na Constituição Federal de 1988. A pena de morte é um debate sempre corrente no âmbito da sociedade, sobretudo devido aos altos índices de criminalidade, que aumentam a sensação de insegurança e faz emergir a crença na impunidade. Diante disso, surgem, vez por outra, vozes defensoras da pena capital, que se utilizam de um discurso comparativo com o sistema norte-americano, onde, dependendo do ente federativo, tal modalidade de sanção ainda é aplicada. Destarte, o argumento mais recorrente para afastar a possibilidade de admissão de pena de morte no Brasil é a violação latente aos direitos humanos. Porém, no presente trabalho busca-se analisar a temática sob uma ótica diversa: a Teoria do Conhecimento. Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo geral analisar a partir da Epistemologia, a possibilidade ou não de aceitação da pena de morte, tendo como instrumento ilustrativo o filme “A vida de David Gale”. Para alcançar tal intento, utiliza-se de pesquisa bibliográfica e documental do tipo pura, baseada em estudos de artigos de periódicos, livros de doutrina, Constituição Federal, bem como do filme mencionado, tudo com o intuito de ampliar o conhecimento sobre a matéria e fomentar o debate sobre o assunto. Quanto à abordagem a pesquisa é qualitativa e quanto aos objetivos, exploratória, explicativa e descritiva. Como conclusão, a partir de um estudo epistemológico, entende-se ser impossível a concretização do conhecimento pleno da realidade e do alcance absoluto de uma verdade. Assim, nada justificaria a admissibilidade da aplicação da pena capital ao indivíduo: seja porque não se terá certeza absoluta, por meio do processo, acerca das condutas criminosas realizadas, seja porque todo homem é em sua essência falho e inacabado, o que o torna, ao mesmo tempo, passível de erros e de reparações, sendo que a pena de morte retira a possibilidade de recuperação do indivíduo tornando-o um ser eternamente culpado. Palavras-chave: Razões epistemológicas; Pena de morte; “A vida de David Gale”. Abstract: The scope of this article is to discuss the epistemological reasons for the inadmissibility of the death penalty in any circumstance, even in cases of declared war, as foreseen in the 1988 Federal Constitution. The death penalty is an ongoing debate within society, mainly due to high levels of crime, which increase the sense of insecurity and give rise to a belief in impunity.Thus, there are voices that defend the death punishment, that use a discourse that is comparative with the American system, where, depending on the federal entity, this modality of sanction is still applied. The most recurrent argument to exclude the possibility of admission of the death penalty in Brazil is the potential violation of human rights. However, the 12
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present work seeks to analyse the theme from a different perspective: the Theory of Knowledge. In this way, the general objective of this article is to analyse, from the epistemology, the possibility or not of accepting the death penalty, having as an illustrative instrument the film “The Life of David Gale”. In order to achieve this purpose, bibliographic and documentary research of the pure type, based on studies of periodicals, doctrine books, Federal Constitution, as well as the mentioned film, is used in order to broaden the knowledge about the subject and the debate on the subject. To achieve this purpose, the paper uses the literature and documents of pure type research, based on studies of journal articles, books, the Constitution, as well as the aforementioned film, all in order to increase knowledge of the matter and to improve the debate about the theme. As for the approach the research is qualitative and relative to the objectives, it is exploratory, explanatory and descriptive. In conclusion, from an epistemological study, it is understood that it is impossible to realize the full knowledge of reality and the absolute reach of a truth. So, nothing would justify the admissibility of the application of capital punishment to the individual: either because we will not have absolute certainty, through the process, of the criminal conduct carried out, or because every man is in its essence flawed and unfinished, at the same time, susceptible of errors and reparations. In this sense, the death penalty removes the possibility of recovery of the individual making him an eternally guilty being. Keywords: Epistemological reasons; Death penalty; “The life of David Gale”.
Sumário: 1. Introdução; 2. Uma breve resenha do filme “A vida de David Gale”; 3. A epistemologia contemporânea acerca da apreensão dos fatos; 4. Pena de morte: há possibilidade de aceitação a partir do campo epistemológico?; 5. Conclusão e Referências.
Introdução A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CF/88), prevê, dentro do rol de direitos e garantias fundamentais por ela positivados, a impossibilidade de aplicação da pena de morte no âmbito nacional, salvo em caso de 4 guerra declarada . Não obstante essa proibição que, à primeira vista, poderia representar uma pacificação sobre o tema no país, vez por outra surgem discussões a respeito da instituição da pena capital, levando em consideração, principalmente, o alto nível de criminalidade e a insuficiência do sistema prisional. 4 Assim dispõe o art. 5º, inciso XLVII, alínea “a”, da CF/88: “não haverá penas: de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX [...]”
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Atos caracterizados por tamanha crueldade, como homicídios dolosos, estupro, atentados terroristas, dentre outros, fazem ascender discursos vulgares e científicos acerca desse tipo de sanção, sobretudo porque em vários países estrangeiros a pena de morte continua sendo aplicada, como por exemplo, nos Estados Unidos da América, na Indonésia, Irã, Paquistão, Arábia Saudita, China e outros. Apesar da evolução histórica já alcançada em relação à humanização das penas, que nos primórdios tinham um caráter eminentemente de vingança, percebe-se que a humanidade não se devolveu suficientemente para retirar por completo a possibilidade de aplicação da pena capital. Prova disso pode ser encontrada no Relatório Anual da Organização de Anistia Internacional, publicado no ano de 2016, que mostra um aumento de mais de 50% do número de 5 execuções no mundo durante o ano de 2015 em relação ao ano anterior (LONDRES, 2016, p. 5). Por outro lado, apesar desse aumento na quantidade de penas de mortes executadas entre 2014 e 2015, diminuiu, nesse mesmo período, o número de países que ainda adotam esse tipo de sanção, ou seja, em 2015 passou-se a 102 (cento e dois) o número de Estados Soberanos que aboliram por completo a aplicação de pena de morte para qualquer tipo de delito, o que corresponde a mais da metade dos países do mundo (LONDRES, 2016, p. 11). Esse paradoxo comprova a relevância do debate sempre latente acerca do tema. A questão, no entanto, não diz respeito apenas à violação dos direitos humanos ou à dignidade da pessoa humana, mas também à legitimidade para a decisão que determina a aplicação dessa pena. No Brasil, por exemplo, para se chegar à sanção penal, é necessário o deslinde de todo um processo que obedeça aos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, dentre outros, tudo para tentar ao máximo afastar o cometimento de injustiças e legitimar a sentença. No entanto, na concepção contemporânea de Direito já se sabe que, mesmo obedecendo a todas essas garantias, ainda não há imunidade quanto ao cometimento de erros e equívocos, tampouco há como se assegurar uma decisão final neutra e objetiva. Isso porque o Direito é uma ciência e, como toda ciência é inacabada, sempre sujeita a críticas, à reinterpretação e à reestruturação. Ciência é, tradicionalmente, conceituada como um tipo de conhecimento, cujos resultados consistem em enunciados ou constatações, passíveis de serem generalizados e capazes de transmitirem informações seguras e verdadeiras, 5 O Relatório Anual sobre sentenças e execuções de pena de morte do ano de 2015, elaborado pela Organização Anistia Internacional (Amnesty International) pode ser acessado por meio do seguinte link: <https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2016/04/ACT5034872016ENGLISH. pdf>.
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vez que alcançadas por meio de um processo sistematizado e organizado, ao qual denomina-se método (FERRAZ JÚNIOR, 1995, p. 10). É exatamente o aspecto metodológico que diferencia a ciência do senso comum, ou do conhecimento vulgar, à medida em que este significa um tipo de conhecimento não submetido à verificação (REALE, 1999, p. 54). No entanto, diante da complexidade dos fenômenos sociais da atualidade, surgiram novas ideias sobre o que de fato caracteriza a ciência, para além daquilo que a vincula a uma certeza sobre a verdade ou a pureza e a neutralidade axiológica, principalmente, no que diz respeito a ciências sociais, humanas ou jurídicas, cujo objeto de estudo é influenciado diretamente pela realidade prática e toda a problemática que lhe cerca. Assim, a Ciência do Direito, que aqui será discutida para tratar sobre a admissibilidade ou não da pena de morte, não será aquela de cunho tradicionalmente dogmático, apegada ao rigor e a segurança do positivismo, mas a ciência que nasce da própria ignorância do homem (POPPER, 2004, p. 13), submetida à criticidade e às reformulações, a ciência que reconhece a sua provisoriedade, mas que, ainda assim, segue uma metodologia de argumentação racional para não se reduzir a arbitrariedades solipsistas. Nesse aspecto, o Direito não pode mais ser visto como uma ciência isolada de todas as outras, mas, pelo contrário, deve se inserir numa realidade multidisciplinar. Os aspectos sociais que interessam à Ciência do Direito podem ser observados de diferentes perspectivas científicas, pois esses mesmos fatos sociais também são objeto de estudo da Sociologia, da Antropologia, da História, da Psicologia, do Cinema. A comunicação entre todas essas áreas do conhecimento enriquece a experiência humana. Logo, exatamente pelos motivos acima expostos, escolheu-se para ilustrar a temática do presente artigo o filme “A vida de David Gale”, que retrata a luta de dois ativistas de direitos humanos para provar a falibilidade da pena de morte nos Estados Unidos da América, baseados, principalmente, na relevância da percepção dos fatos, que não se dá com isenção de possibilidades de erros e equívocos sobre a formação da materialidade e autoria do crime, cujas consequências levam a instituição da pena capital, de caráter irreversível. Isto posto, parte-se do seguinte questionamento de pesquisa: há possibilidade de aceitação da pena de morte a partir do campo epistemológico? Dentro desse contexto, levando em consideração problema acima exposto, o presente artigo tem como objetivo geral analisar, a partir da teoria do conhecimento, a possibilidade ou não de aceitação da pena de morte, tendo como instrumento ilustrativo a obra cinematográfica já mencionada. Para tanto, tem como objetivos específicos expor uma breve resenha acerca do filme; verificar as
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teorias epistemológicas acerca da apreensão dos fatos; e avaliar a pena de morte sob a perspectiva da epistemologia jurídica. Para alcançar tal intento, utiliza-se de pesquisa bibliográfica e documental do tipo pura, baseada em estudos de artigos de periódicos, livros de doutrina, notícias de jornal, Relatórios Internacionais, Constituição Federal da República Federativa do Brasil, bem como do filme referido, tudo com o intuito de ampliar o conhecimento sobre a matéria e fomentar o debate sobre o assunto. Quanto à abordagem, a pesquisa é qualitativa, à medida que parte de reflexões sobre ações humanas e fatos sociais. Quanto aos objetivos exploratória, explicativa e descritiva, vez que busca conhecer o fenômeno investigado, explica-lo dentro do ponto de vista adotado como referencial e descrevê-lo, a fim de facilitar o entendimento sobre o assunto, sem, contudo, esgotá-lo. Assim, o desenvolvimento do presente artigo se dará em três tópicos: no primeiro apresenta-se uma breve resenha do filme “A vida de David de Gale”, com destaque para os pontos de convergência com o Direito e a Epistemologia. No segundo, aborda-se teorias epistemológicas contemporâneas sobre a apreensão dos fatos. Por fim, no último tópico, utilizando-se do referencial teórico explorado nas sessões anteriores, discute-se a possibilidade ou não de aceitação da pena de morte, seja em qualquer condição ou em qualquer sistema jurídico.
1. Uma breve resenha do filme “A vida de David Gale”: a falibilidade na apuração da “verdade” “A vida de David Gale” (originariamente The life of David Gale) é uma obra cinematográfica norte-americana, que estreou no ano de 2003, cujo roteiro é de Charles Randolph, dirigido por Allan Parker, que também é o produtor do filme junto com Nicolas Cage. O elenco é formado por Kevin Spacey, no papel de David Gale; Kate Winslet, como a repórter Elizabeth Bloom; Laura Linney, como a ativista Constance Harraway; entre outros. A película conta a história de David Gale, um renomado professor de Filosofia da Universidade de Austin, no Texas, sentenciado a pena de morte por ter “supostamente” assassinado sua amiga, Constance. O paradoxo apresenta-se porque Gale e Constance lutavam juntos para provar a falibilidade do processo criminal no sistema norte-americano e a consequente ilegitimidade da aplicação da pena capital. O filme começa com a notícia de que o recurso da defesa do professor foi inadmitido pelo Tribunal Superior, provavelmente influenciado pelo fato de Gale ser um crítico ferrenho do sistema. Durante todo o processo que apurou a responsabilidade criminal do docente, ele preservou-se da mídia e não concedeu uma entrevista sequer, mas, restando apenas três dias para concretização da
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sentença, resolveu conceder uma entrevista com exclusividade para a repórter Elizabeth Bloom. A escolha pela referida jornalista não foi à toa. Bitsey, como era chamada, ficou presa durante sete dias por desacato à autoridade, uma vez que teria se recusado a fornecer informações sobre as fontes utilizadas para realizar determinada reportagem. Tal fato fez construir em torno da repórter a ideia de alguém confiável, que não revelaria nada que não lhe fosse permitido revelar e que era capaz de se sacrificar por aquilo que acreditava. A história que envolve o assassinato, cujo resultado da apuração se deu com a aplicação da pena capital, é narrada por Gale para Bitsey dentro do presídio, durante quase toda a duração do filme. O objetivo é construir todo o contexto para colocar o espectador em dúvida acerca do que realmente ocorreu e de quem de fato foi o responsável pelo crime, ou seja, paira a dúvida, não obstante a condenação do “suposto” assassino, sobre a materialidade, a autoria ou, até mesmo, em relação ao elemento subjetivo do tipo: culpa ou dolo. A narrativa, dentre vários aspectos, enfatiza a vida pregressa do professor. Gale já havia sido preso por estupro de uma de suas alunas, Berlin. De fato, eles tiveram relação sexual, porém, de forma consentida. Mas, Berlin, por motivos de vingança pessoal, vez que fora expulsa da Universidade pelo mal desempenho acadêmico, acabou denunciando Gale por um crime que ele não cometeu. A partir desse episódio, a vida de Gale foi de mal a pior. Divorciou-se da esposa, que se mudou para a Europa com o filho do casal. Foi afastado da Universidade. Entrou em depressão e virou alcoólatra. Chegou a procurar tratamento, mas teve algumas recaídas, sobretudo, quando descobriu que tinha sido afastado da organização dos ativistas contra a pena de morte, da qual fazia parte junto com Constance. O homicídio pelo qual Gale foi acusado e sentenciado com a pena de morte ocorreu na casa da vítima. Esta foi encontrada no chão da cozinha, com um saco plástico amarrado na cabeça, algemada e nua. Durante as investigações, descobriu-se que o sêmen de Gale estava no seu corpo. As chaves da algema foram encontradas em seu estômago e havia digitais do professor espalhadas pela casa. A morte foi filmada, mas as fitas nunca foram encontradas. Durante toda a entrevista que o professor concede à repórter, ele dá pistas de quem, além dele, poderia ter cometido o crime e onde novas provas poderiam ser encontradas. Bitsey, que de início custou a acreditar em Gale, começou a se interessar pela história e passou a investigar as informações que lhes foram dadas, principalmente quando recebeu, no quarto do hotel em que estava hospedada, um vídeo com as imagens de Constance nos seus últimos minutos de vida, sufocando na cozinha de casa.
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Bitsey, depois de assistir o vídeo algumas vezes, juntar as informações passadas pelo professor e recriar a cena do crime, acabou constatando que, na verdade, Constance cometeu suicídio. Para conseguir provar isso, teve que correr atrás do vídeo completo que fora gravado no dia do “suposto” assassinato. Quando teve acesso às imagens percebeu que a morte da ativista, na verdade, foi a forma que ela, Gale e outros participantes da organização que lutava contra a pena de morte, encontraram para provar a falibilidade do sistema. Gale e Constance morreram pela causa que defendiam. A inocência do professor só foi comprovada após a sua morte, mas, ainda assim, colocou a política criminal norte-americana, de aplicação de pena capital, em discussão. Mais que isso, comprovou que a realidade pode ser deturpada, seja pelas diferentes perspectivas de quem tem acesso a ela, seja pelas pré-compreensões e pré-conceitos de quem a julga. A própria Bitsey, mesmo sem ter tido acesso ao processo, acreditava na culpa de Gale. Sua perspectiva só foi mudando à medida que ela foi obtendo informações do professor e as verificando. Da mesma forma, as pessoas da cidade, quando entrevistadas, apoiavam a execução do assassino e, ainda que não conhecessem o professor, tinham certeza de que ele era o responsável pelo crime e por isso deveria ser morto. Nesse aspecto, há que se destacar o papel da imprensa na formação da culpa dos acusados no processo penal. Nesse ponto, pode-se inclusive ressaltar que, sobre um mesmo fato, surgem, no mínimo, três diferentes versões: o da acusação, o da defesa e o da imprensa (CINECLUBE Unifor 41, 2009). A nenhum dos três pode-se atribuir a certeza sobre a verdade, ou seja, sobre a correspondência perfeita com a realidade, mas, ao mesmo tempo, não se pode retirá-la, pois para a acusação a sua versão é a verdadeira; enquanto para a defesa é a versão dela, defesa, a verdadeira; e para a imprensa a versão, montada a partir dos poucos fragmentos a que tem acesso, é a verdadeira. A tese que Gale e Constance defendiam em vida era a de que a pena de morte, pela falibilidade do sistema, acabava gerando a execução de pessoas inocentes. Muitos eram defendidos por advogados incompetentes, que chegavam a dormir durante o julgamento. Quando o próprio Gale foi acusado pela morte de Constance, ele contratou um advogado conhecido por sua incompetência. Todos sabiam, inclusive a promotoria, que seu advogado era motivo de “piada”. Mas, o que ninguém sabia era que Gale estava disposto a se sacrificar pela causa que defendia e que acreditava ser a correta. Portanto, o que o filme “A vida de David Gale” busca demonstrar é, justamente, a possibilidade de um mesmo fato poder ser visto de diferentes perspectivas, de modo que não existe sobre ele uma única verdade, mas vários pontos de vista, e que a impossibilidade de se alcançar uma verdade absoluta, gera a
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impossibilidade de se aplicar uma sanção absoluta. Isso é suficiente para levar à reflexão sobre a aplicação de uma pena capital, que tem caráter irreversível. É nessa discussão sobre certezas, verdades, objetividades, perspectivas, pontos de vista, que a Epistemologia contemporânea construiu as suas bases, por meio de questionamentos que colocam em cheque os métodos e as metodologias utilizadas para justificar o que é e o que não é Ciência, e o que pode e o que não pode ser alcançado por ela. Os limites do conhecimento científico são os limites do próprio ser que conhece. O processo penal é uma forma de conhecimento sobre fatos e por isso passa por essas mesmas indagações, como melhor se verá adiante.
2. A epistemologia contemporânea acerca da apreensão dos fatos Primeiramente, se faz necessário explicitar o que é Epistemologia e porque ela é importante para o presente estudo. A Epistemologia é a ciência da ciência, ou seja, é a ciência responsável pelo estudo crítico das condições de 6 conhecimento de cada esfera científica em particular . É, portanto, a ciência do conhecimento científico. Nesse aspecto, a Epistemologia encontra-se inserida numa Teoria maior do Conhecimento, a Ontognoseologia (REALE, 2002, p. 30). A Ontognoseologia preocupa-se com duas esferas de condições do conhecimento: a empírico-positivo e a transcendental. No primeiro ponto recebe a denominação de Lógica formal, que representa o estudo das estruturas formais do conhecimento, dos signos e expressões, sem se importar com o conteúdo; e de Metodologia, que estuda os processos que disciplinam a busca pelo real (REALE, 2002, p. 29). O segundo ponto, o da esfera transcendental, subdivide-se em Gnoseologia, que se refere às condições do conhecimento a partir do ponto de vista daquele que conhece, ou seja, do sujeito cognoscente; e Ontologia em sentido estrito, que se refere às condições do conhecimento do ponto de vista do ser enquanto objeto de conhecimento, enquanto objeto cognoscível (REALE, 2002, p. 29). Apesar dessa explicação transmitir a ideia de que a relação entre sujeito e objeto é uma relação estática, não é isso que se entende, pelo menos não mais nos dias atuais ou dentro do referencial adotado para o presente artigo. Ao 6 Cabe ressaltar que Epistemologia também é utilizada como Teoria do Conhecimento, no entanto, adotou-se no presente artigo a ideia desenvolvida por Miguel Reale, para quem a Teoria do Conhecimento, na sua forma mais ampla, designa-se como Ontognoseologia, enquanto reserve para a Epistemologia uma Teoria do Conhecimento voltada à esfera particular de cada ciência.
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contrário disso, sujeito e objeto se confundem no processo de conhecimento e se conectam de forma dialética. Não há uma separação estanque entre aquele que conhece e aquilo que é conhecido, há uma interação recíproca entre os dois. O filósofo que talvez melhor tenha demonstrado essa ideia, inclusive primando pelo desaparecimento dessa dicotomia entre sujeito e objeto, foi Hans 7 Georg Gadamer ao inaugurar uma nova fase da hermenêutica, a filosófica (PALMER, 1969, p. 170-171). Na sua obra, Verdade e Método, Gadamer faz profundas críticas à metodologia formalista, pois entendia que esta se baseava numa busca de verdade que nela já estava inserida. Dessa forma, a verdade não poderia ser alcançada pelo método, mas pela dialética, de modo que o fenômeno investigado se revela no próprio ser (GADAMER, 2004, p. 453-472). À vista disso, sujeito e objeto transmudam-se, o sujeito é, ao mesmo tempo, conhecedor e conhecido. O que se quer dizer é que resta superada, a partir da nova filosofia de Gadamer, o entendimento de que o ser cria processos seguros e objetivos para descobrir a verdade de um objeto estático. Pelo contrário, o objeto do conhecimento se revela para o sujeito dentro do próprio ser, sem que 8 seja possível desconsiderar o subjetivismo deste . O conhecimento acerca de algo não ocorre fora da esfera do ser cognoscente. Portanto, o fenômeno a ser conhecido é diretamente influenciado por aquele que conhece que, em contrapartida, também sofre os reflexos daquilo que busca conhecer. Por esse motivo, diz-se que sujeito e objeto confundem-se, pois o ser, ao mesmo tempo que conhece, é conhecido e o o que é conhecido acaba sendo criado por aquele que conhece, por meio do reflexo de seus valores, pré-compreensões e experiência de vida. O resultado desse processo de conhecimento acaba sendo a projeção daquilo que se conhece, como uma imagem, na cabeça do ser cognoscente. Essa imagem nunca se forma por completo e de maneira acabada, está sempre sujeita a um novo processo e, a partir deste, a transformações. Fica claro, portanto, perceber que a verdade do objeto - aproximação daquilo que é representado no pensamento àquilo que existe na realidade - é sempre provisória, pois a cada novo exame, novas características podem ser percebidas, novos erros podem ser identificados (MACHADO SEGUNDO, 2008, p. 161).
7 Que será referido no presente artigo apenas como Gadamer: filósofo alemão, discípulo de Heidegger, que revolucionou o pensamento de sua época ao desenvolver uma nova hermenêutica filosófica. (PALMER, 1969, p. 167) 8 Não obstante o entendimento aqui adotado acerca da inexistência da polaridade sujeito-objeto, ainda assim, a terminologia continuará sendo utilizada como forma de melhor transmitir as ideias do texto, mas, sempre tendo como referência que ambos, sujeito-objeto, ocupam ao mesmo tempo, os dois polos da relação no processo de conhecimento.
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Não existe somente uma forma de conhecimento, mas várias. A epistemologia, como dito, é o estudo de uma dessas formas, o conhecimento científico. Mas, para além da ciência, existe ainda o chamado conhecimento comum, caracterizado pelo fato de não ser verificável e por ser legitimado pelo consenso, pela opinião popular convergente acerca de algo. Trata-se de um conhecimento que não se autoquestiona, diferenciando-se, nesse ponto, do conhecimento científico, que se submete, constantemente, a testes de falibilidade, cujo objetivo é buscar a eliminação do erro (MOURA, 2015, p. 2 e 5). É importante ressaltar que, na linha aqui adotada a respeito das características atuais da ciência, conhecimento comum e conhecimento científico não são antagônicos, mas são complementares, de modo que o passo inicial para o processo que conduz a uma descoberta científica pode estar no senso comum, numa inquietação que surja do cotidiano, que ainda não tenha sido submetido ao questionamento. Da mesma forma, o senso comum pode ser resultado de um conhecimento científico (MOURA, 2015, p. 7). Apesar dessa interação necessária entre esses dois tipos de conhecimento, afastada a ideia de hierarquia ou superioridade entre eles, é importante destacar que o conhecimento científico, pela característica própria de estar sempre sendo criticado, verificado, reconstruído, tem o condão de afastar erros, que podem estar presentes tanto nas afirmações científicas, quanto nas afirmações do senso comum. É de responsabilidade do cientista corrigir equívocos e mostrar essas correções de forma racional e argumentativa, de modo a contribuir diretamente para o aprimoramento da realidade. Esse processo de correção, contudo, não está imune a novos questionamentos ou novos erros, mas deve estar sempre sendo colocado em cheque e submetido a críticas. Nesse ponto, abre-se o link de conexão entre a temática da epistemologia e a discussão nacional e internacional acerca da pena capital, sobretudo quando fortalecida pelo senso comum de que se é permitida em outros países, também poderia sê-lo no Brasil, por exemplo. Porém, conforme será demonstrada no tópico seguinte, a aplicação desse tipo de sanção só se justificaria como resultado de um processo infalível de conhecimento sobre fatos. A busca pela verdade é própria do conhecimento científico. Mas, como já mencionado, essa verdade, na concepção de ciência mais atual, é provisória e depende da perspectiva daquele que conhece sobre aquilo que é conhecido. O conhecimento, ainda que seja científico, é inacabado e está sempre sujeito a substituições, sendo elementar a característica da contiguidade. O cognoscível é mais abrangente que a capacidade humana de conhecer, nesse ponto, não há
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como pregar a possibilidade de se dominar determinado fenômeno em todos os 9 seus aspectos . (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 68-69) O seguro, o absoluto e o certo não cabem mais na concepção de ciência, porque não são características do ser que conhece. Para melhor explicar essa ideia, Nietzsche utiliza-se da metáfora aos deuses Apolo e Dionísio. Apolo é a representação da segurança, da certeza e da verdade absoluta. Dionísio, por outro lado, é a embriaguez, é o risco da incerteza, é o desafio da dúvida. É do equilíbrio entre Apolo e Dionísio que deve ser guiada a existência humana, inclusive no processo de conhecimento do mundo (NIETZSCHE, 2006, p. 34-41). Na contemporaneidade, a ciência apresenta-se para a Epistemologia como algo provisório, passível de refutações, de erros, equívocos e críticas. O que 10 não suporta críticas e o que não é falível , não pode ser considerado conhecimento científico. A verdade só existe até o momento em que não for contrariada. Afastam-se, dessa forma, as características da objetividade, neutralidade, clareza e certeza do processo de conhecimento (MACHADO SEGUNDO, 2008, p. 160). 9 Nesse sentido, afirma-se, inclusive, a insuficiência dos conceitos para significar o cognoscível, diante da amplitude deste: “O conhecimento aparece como um sistema de substituições em que uma impressão anuncia outras sem nunca dar razão delas, em que palavras levam a esperar sensações, assim como a tarde leva a esperar a noite. A significação do percebido é apenas uma constelação de imagens que começam a reaparecer sem razão. As imagens ou as sensações mais simples são, em última análise, tudo o que existe para se compreender nas palavras, os conceitos são uma maneira complicada de designá-las, e, como elas mesmas são impressões indizíveis, compreender é uma impostura ou uma ilusão, o conhecimento nunca tem domínio sobre seus objetos, que se ocasionam um ao outro, e o espírito funciona como uma máquina de calcular que não sabe por que seus resultados são verdadeiros. A sensação não admite outra filosofia senão o nominalismo, quer dizer, a redução do sentido ao contra-senso da semelhança confusa, ou ao não-senso da associação por contigüidade”. (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 38). Assim como a insuficiência do intelectualismo para o conhecimento de mundo: “Em relação a essa vida perceptiva, o intelectualismo é insuficiente ou por carência ou por excesso: ele evoca, a título de limite, as qualidades múltiplas que são apenas o invólucro do objeto, e dali passa a uma consciência do objeto que possuiria sua lei ou seu segredo, e que por isso retiraria do desenvolvimento da experiência a sua contingência, e do objeto o seu estilo perceptivo. Esta passagem da tese ã antítese, esta mudança do pró ao contra que é o procedimento constante do intelectualismo deixam subsistir sem alteração o ponto de partida da análise; partia-se de um mundo em si que agia sobre nossos olhos para fazer-se ver por nós, tem-se agora uma consciência ou um pensamento do mundo, mas a própria natureza deste mundo não mudou: ele é sempre definido pela exterioridade absoluta das partes e apenas duplicado em toda a sua extensão por um pensamento que o constrói” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 68-69). Destaca-se que Merleau-Ponty defende a corrente da fenomenologia da percepção, por meio da qual entende que o processo de conhecimento tem início a partir da percepção pelo ser das coisas do mundo, porém, essas não se esgotam no ato da compreensão, vão além, por isso a ideia de insuficiência dos conceitos e do intelectualismo. 10 Quem defende a falseabilidade como característica da ciência é Karl Popper: “Todo teste genuíno de uma teoria é uma tentativa de refutá-la. A possibilidade de testar uma teoria implica igual possibilidade de demonstrar que é falsa. Há, porém, diferentes graus na capacidade de se testar uma teoria: algumas são mais testáveis, mais expostas à refutação do que outras; correm, por assim dizer, maiores riscos”. (POPPER, 1980, p. 4-5).
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Todo esse entendimento coloca em cheque a pureza da ciência, de seu absolutismo e universalismo. Daí porque deve-se entender Epistemologia como a ciência que questiona as próprias condições da ciência. No Direito, por exemplo, resta vencida, por essa ótica, a concepção de Ciência do Direito como Dogmática Jurídica, ou seja, composta de enunciados prontos e inquestionáveis, que, pelo simples fato de estarem previstos, já são obrigatórios (REALE, 2002, p. 156-158). O desafio do Direito passou a ser lidar com essa nova realidade científica, sem perder de vista a sua função primordial de regular as relações sociais, para garantir convívio harmônico e pacífico em sociedade. O Direito é naturalmente limitador das ações humanas, mas também é garantidor delas, existe para assegurar a tutela dos bens jurídicos necessários à existência dos indivíduos. Dessa forma, sua realização está sempre permeada pelo equilíbrio que deve existir entre justiça e segurança, que poderiam ser personalizados em Apolo e Dionísio. Os problemas da ciência do Direito são de natureza prática, ou seja, refletem diretamente na realidade concreta dos sujeitos das relações jurídicas, o que gera um desafio a mais para os cientistas dessa área. Diante de tudo que já fora exposto, fica claro a impossibilidade de pureza e objetividade da ciência, mas não se pode, por isso, perder de vista a necessidade de segurança dos seus resultados. Do outro lado está a “justiça”, valor que, em regra, deve representar a finalidade buscada pelo cientista jurídico. Como valor, implica um juízo axiológico que, como tal, é subjetivo. Atribuir ou mensurar um valor, necessariamente, implica reflexos das particularidades daquele que atribui. A medida do valor será sempre influenciada pela história, pela experiência, pelas pré-compreensões e de mundo daquele que vai valorar. A norma jurídica, pela qual o Direito se expressa, está, portanto, eivada de valores. Compreendê-la é, justamente, descobrir e mensurar o valor que nela se impõe. Para aplicar o Direito, é imprescindível a utilização de juízos axiológicos, que contém, naturalmente em si, certa dose de discricionariedade, de modo que os enunciados jurídicos, certas vezes não têm como serem verificáveis, mas nem por isso, deixam de ser passíveis de críticas e refutações, características suficientes para serem classificados como resultado de uma ciência (LARENZ, 1997, p. 298-299 e 335-226). Diante disto, surge a dúvida que permeia todos aqueles que estudam o Direito: como proceder o equilíbrio? Qual a melhor forma de respeitar a segurança, mesmo sabendo da impossibilidade de se atingir certezas e verdades absolutas, sem deixar de se considerar a justiça, que deve sempre ser realizada no caso concreto e que implica necessariamente um juízo axiológico? A melhor proposta é a utilização de uma argumentação racional para apresentar e expor aos interessados os motivos que levaram a interpretação dos fatos de determinada forma e a consequente escolha da respectiva consequência.
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Somente por meio dessa motivação, é possível a realização das críticas, a submissão aos testes, a procura dos erros e equívocos, elementos esses, como visto, 11 imprescindíveis à contiguidade característica de todo conhecimento científico . Portanto, a ciência do Direito, assim como todas as outras, não é inacabada e deve ser capaz de reconhecer seus erros, assumi-los para melhor lidar com eles. Não pode ter pretensão de ser definitiva e irreparável. O reconhecimento de que o processo cognoscível é falho e insuficiente diante da realidade do mundo deve refletir diretamente nas escolhas feitas no Direito. A consciência sobre essa falibilidade deve levar a reflexão a respeito daquilo que é irreversível, como por exemplo, a execução de uma pena de morte.
3. Pena de morte: há possibilidade de aceitação a partir do campo epistemológico? Vencido o sustentáculo epistemológico da construção do presente artigo, cabe agora analisar se, a partir do que já foi discutido, haveria como aceitar a possibilidade de instituição de uma pena capital, ou mesmo a manutenção de sua previsão, ainda que somente em casos de guerra declarada, nos tempos atuais, seja no Brasil ou no mundo, vez que, o que foi dito na sessão anterior, vale para ciência em geral, que tem as mesmas características em qualquer lugar do planeta. Destaca-se que o processo penal se guia, em regra, pela busca da verdade processual. A epistemologia, enquanto ciência da ciência, apresenta-se de forma crítica a essas condições e, nesse ponto, vem a sua importância para análise da inadmissibilidade da pena de morte, para questionar as condições da ciência do Direito que justificariam tal imposição, trazendo argumentos que são necessa-riamente de cunho valorativo, vez que todo ato de conhecer implica o problema do valor daquilo que se conhece (REALE, 2002, p. 36). Essa busca pela “verdade” é herança de um sistema inquisitorial, que marcou o processo penal durante a Idade Média. É justamente característica essencial deste sistema a obsessão pela verdade, de modo que todo ato (como tortura e crueldades) justificava-se desde que fosse para alcançar esse objetivo. Nessa
11 A ideia de uma justificação adequada para expor o juízo axiológico inerente a aplicação das normas jurídicas foi bem destacada por Rafael Xerez ao tratar da reaproximação entre a Teoria dos valores e a Ciência do Direito, deixada de lado durante todo o tempo em que imperou o positivismo: “A justificação de um juízo axiológico, portanto, não se dá mediante demonstração construída com base em lógica formal, mas por meio de argumentação, na qual o intérprete/aplicador expõe as razões que o conduziram à decisão proferida e pelas quais, esta decisão encontra-se em consonância com a pauta valorativa estabelecida pelas normas jurídicas, e constitui solução adequada ao caso concreto.” (XEREZ, 2014, p. 192).
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época, a responsável pela Inquisição era a Igreja Católica, tradicionalmente pautada em dogmas e princípios absolutos (KHALED JÚNIOR, 2013, p. 41-46 e 49). Com o fim do período inquisitorial e a evolução do Direito, a busca pela 12 verdade real no processo penal passou a ser um mito necessário para manter o processo dentro de uma linha imprescindível a um resultado eficiente. Tal mito serve para, de alguma forma, justificar a infalibilidade do juiz, ou seja, se o processo penal se guia pela busca da verdade real e a sentença é o resultado dessa busca, não há como ser eivada de erro (KHALED JUNIOR, 2013, p. 482). Assim, se o juiz não falha e se a sua decisão traduz uma verdade absoluta, então, a aplicação de qualquer sanção criminal estaria legitimada. Era exatamente dessa forma que ocorria no já mencionado período medieval. Esse pensamento serviu para fundamentar diversas atrocidades cometidas pelo Estado contra os indivíduos considerados “culpados”. A pena era sinônimo de castigo e servia como instrumento de vingança e, ao mesmo tempo, para amedrontar o 13 restante da população, por isso, era aplicada em praça pública . O processo penal não deixa de ser um processo de conhecimento sobre fatos. Ocorrido o crime, por meio da investigação e da instrução criminais tenta-se reconstituir os fatos. Para essa reconstrução existem as provas e os indícios, que representam o material apurado relacionado ao ocorrido, que servirá de base para formação da convicção do juiz acerca da materialidade e autoria do ilícito. Ou seja, após a produção de todas as provas, montada a cronologia e a dinâmica do crime, ao juiz caberá analisá-las e interpretá-las para formar seu convencimento. Como visto no tópico anterior, a realidade é muito mais abrangente que a capacidade sensível e intelectual para dominá-la. Portanto, mesmo com todo esse aporte probatório, o que ocorre no processo é a representação da realidade e 12 Khaled Júnior, utilizando-se da explicação de Eliade Mircea, caracteriza mito da seguinte forma: “mitos sempre são narrativas que têm função exemplar e pedagógica, regra da qual o mito da busca da verdade não é uma exceção. Mitos determinam modelos de comportamento e oferecem uma legitimação para o poder de determinado grupo social, como é o caso, por exemplo, do mito da infalibilidade do juiz enquanto encarregado de revelar a verdade sobre o evento que pertence a um tempo já escoado” (KHALED JÚNIOR, 2013, p. 482). 13 Foucault narra, logo na abertura de seu livro, “Vigiar e Punir”, uma espécie de suplício aplicado a um acusado de parricídio: “[Damiens fora a condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na Praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quadro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzido as cinzas e suas cinzas lançadas ao vento”. (FOUCAULT, 2010, p. 9)
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não a sua reconstrução. Sem contar que, no momento de formação da convicção do juiz sobre os fatos, sempre há interferências externas ao processo. Reflexos da pré-compreensão, dos valores, da experiência de vida, dos conhecimentos prévios que o juiz possui, até mesmo em relação ao acusado. No caso do filme “A vida de David Gale”, por exemplo, o fato de o professor Gale ter sido denunciado anos antes pelo estupro de uma de suas alunas, ainda que posteriormente a queixa tenha sido retirada, já forma sobre ele a ideia de alguém que não é íntegro, que tem desvio de caráter. Esse entendimento contagia de uma forma ou de outra o processo que ensejou na sua condenação à pena capital. Além disso, outro exemplo é a forma como a morte de Constance se deu: ela engoliu a chave das algemas, amarrou um saco na cabeça e trancou as algemas nos pulsos, tudo para levar a crer que alguém, que não ela, a tivesse matado. A cena do crime, o material e todas as provas colhidas, davam a entender que o seu assassino teria sido Gale. Porém, como se viu, a própria Constance praticou todas as condutas. Portanto, não há como garantir, mesmo com todo o aporte probatório, que os fatos serão remontados conforme ocorrido na realidade. Haverá, como dito, apenas uma representação, uma tentativa de aproximação da verdade, que é sempre relativizada, à medida que pode ser testada, verificada e refutada. A verdade é provisória e só existe até o momento que for contrariada. O vídeo gravado no dia da morte de Constance, na obra cinematográfica aqui utilizada como ilustração, demonstra essa possibilidade. Assim, diante dessas incertezas que pairam o processo de conhecimento humano acerca dos fatos, não há como instituir, no processo penal, uma sanção que tenha caráter de irreversibilidade, por total falta de legitimidade. Se a verdade absoluta não pode ser alcançada e está sempre passível de ser refutada, é necessário deixar margem para que erros e equívocos possam ser consertados. Nos dias atuais, a pena capital apenas se justificaria por um sentimento de vingança. Esse sentimento pode ser identificado em dois momentos diferentes do filme e, em ambos, geram consequências sobre algo que, na realidade, não havia ocorrido. O primeiro caso foi a acusação de estupro que a aluna de Gale fez contra ele para se vingar pelo fato de ter sido reprovada. O segundo é a aplicação da pena capital, sem que o professor tenha sido propriamente o assino de sua amiga. No primeiro momento, a vingança é pessoal. No segundo, é um sentimento de vingança coletivo que leva a população da cidade a aceitar a execução de Gale pelo Estado. Este sentimento fica evidente nas entrevistas feitas com os moradores do Texas horas antes da concretização da pena. Muitas pessoas enten-
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dem ser necessário matar o acusado como retribuição ao que ele “supostamente” fez. Nesse momento, merece destaque também, o papel da mídia na percepção sobre o ocorrido. Nenhum dos cidadãos do Texas, certamente, tiveram acesso aos autos do processo ou as provas do crime, mas apenas acompanharam o caso por meio dos noticiários televisivos, que, por sua vez, devem ter recebido as informações divulgadas por outras fontes que não os diretamente envolvidos. Ainda assim, todos estavam convictos de que Gale era um homicida. A ideia de pena como vingança, como retribuição, é retrograda. Já não mais deve imperar em tempos de humanização. Fez parte da época do absolutismo, em que o poder pertencia ao Estado, a quem o povo deveria se subjugar sem questionar. Na contemporaneidade, a função da sanção criminal é outra, é de reestabelecer valores violados, por meio de um ideal sócio pedagógico (BITENCOURT, 2016, p. 134, 148-149 e 152). No momento em que um crime é cometido, uma norma jurídica que designa um valor essencial à comunidade é violada e, por isso, seu violador deve ser penalizado, para que não volte a delinquir e para que os demais indivíduos, ao terem ciência daquela punição, eximam-se de praticar atos ilícitos, evitando que venham a ser também punidos. Além disso, busca-se, através da pena, a reeducação do indivíduo em específico, para que possa ser reinserido na sociedade sem que venha a reincidir. A pena de morte retira a possibilidade de recuperação daquele que atuou com desvio de conduta. Mas, para além disso, como dito, a pena capital, como resultado de um processo penal só seria admissível diante da certeza de inexistência de erros ou equívocos, ou seja, a partir da adoção de dogmas que não permitem questionamentos ou refutações, mas que uma vez impostos devem ser cumpridos, como era entendido durante a Idade Média e o período absolutista. Porém, conforme se viu, não há processo de conhecimento que não seja provisório e que não esteja sujeito falseabilidade. Utilizar pena capital nesse contexto é incoerente, pela irreversibilidade inerente a sua execução. O processo penal, como processo cognoscível, deve ser capaz de ser revisto em caso de erros graves e, portanto, seu resultado deve ser sempre reversível. Do contrário, estar-se-ia legitimando um processo que não se coaduna com a epistemologia contemporânea, baseada no criticismo e na refutabilidade. A consciência da possibilidade de errar deve refletir diretamente nas escolhas das sanções criminais, por isso, não há como se aceitar a imposição de uma pena capital, irreparável por natureza.
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Conclusão Diante do exposto, infere-se que a pena de morte no Brasil não só não pode ser aceita diante de um viés legalista, pois a CF/88 prevê como cláusula pétrea a proibição de sua instituição, como também do ponto axiológico, do qual, como já se discutiu, o Direito não está imune. Sem deixar de mencionar que a constatação que se tem, a partir da epistemologia, é de que o conhecimento humano não é capaz de atingir verdades absolutas, seja pela sua inexistência, seja pelas limitações inerentes ao ser e, por isso, não permite a aplicação de uma pena de caráter irreversível. O filme, “A vida de David Gale”, apesar de todas as críticas que recebeu quando foi divulgado, é capaz de gerar essa reflexão sobre a possibilidade de haver falhas na apuração da culpa, e sobre a possibilidade de, por isso, acabar-se executando inocentes naqueles sistemas em que, conforme o norte-americano, a pena capital ainda é aplicada. Os erros e equívocos, como se viu, são próprios da ciência da contemporaneidade. Não há mais a crença no absoluto, no neutro, no puro e no objetivo. O homem, à medida que evoluiu, percebeu as limitações de seu intelecto, de sua capacidade de conhecer a realidade em todos os seus aspectos e condições. Percebeu que é naturalmente reflexo de sua história, de suas experiências e de seus valores, e que, tudo isso, estão presentes no momento em que se submete a um processo de conhecimento. O processo penal, por sua vez, é uma forma de processo de conhecimento, conhecimento sobre fatos que ocorreram na realidade, em determinado contexto e em determinado tempo. Os responsáveis pela apuração dos crimes são seres humanos e, como tais, passíveis de erros. O juiz que julga pode errar, assim como aquele que comete o ilícito também errou. Porém, ambos devem ter o direito de submeterem-se a testes de verificação, para que possam corrigir seus erros. À vista disso, a partir de um estudo epistemológico, conclui-se não ser possível a concretização do conhecimento pleno da realidade e do alcance absoluto de uma verdade. Assim, nada justificaria a admissibilidade da aplicação da pena capital ao indivíduo: seja porque não se terá certeza absoluta, por meio do processo, acerca das condutas criminosas realizadas, seja porque todo homem é em essência falho e inacabado, o que o torna, ao mesmo tempo, passível de erros e de reparações. A pena de morte retira a possibilidade de recuperação do indivíduo tornando-o um ser eternamente culpado por algo que praticou, “supostamente” de determinada forma e segundo determinada motivação, impossíveis de serem aferidas ou reconstruídas, limitadas apenas a representação em face da apuração processual.
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A CONDENAÇÃO À PENA DE MORTE COMO UMA TÁTICA CONTRA O TERRORISMO Death penalty conviction as a tactic against terrorism
Douglas Ribeiro Weber
Resumo: Busca-se a partir do presente artigo analisar a condenação à pena de morte e sua constante utilização como uma tática antiterrorista por mais de 20 países. A proteção da vida humana, sua inviolabilidade e sua característica de bem jurídico encontram discussão e amparo na doutrina moderna com distintas ênfases e encaminhamentos dentro do ordenamento jurídico. A abolição da pena de morte trouxe consigo efetivamente a proteção da vida humana, que pode ser assim ser conceituada como uma das primeiras características modernas de proteção dos direitos humanos. Contudo, questionamo-nos se, efetivamente, a vida é mesmo protegida como buscada a partir da abolição de pena de morte, eis que nos deparamos com um aumento das condenações no mundo inteiro como uma tentativa de pôr fim aos ataques terroristas e como forma de garantir justiça às vítimas atingidas. A partir do que vem sendo divulgado pela mídia, pelos observatórios de direitos humanos e organizações humanitárias, resta comprovado que há de facto um aumento gradativo nas ações estatais referente a utilização da pena de morte em casos de condenação a terroristas. As pesquisas indicam como uma das formas de condenação mais realizadas nos últimos tempos em todo o mundo e defendida pela opinião popular como um meio eficiente na resolução desses casos. A pena capital vem tomando um espaço pelos governantes como uma prática justificável, correta e consequência válida ao terrorismo, ainda que seja uma prática que viola todos os princípios humanitários e de que, apesar dos
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A condenação à pena de morte como uma tática contra o terrorismo Douglas Ribeiro Weber
atos cometidos, o criminoso ainda é um ser humano e assim deve ser tratado. A metodologia utilizada no presente trabalho encontra guarida na pesquisa bibliográfica e nos recentes estudos realizados pela Amnistia Internacional. Ao final, reiterando as pesquisas trazidas pela Amnistia, conclui-se que a condenação à pena de morte nos casos de crimes e ações decorrentes de atentados terroristas não alcança o resultado pretendido pelos Estados que a utilizam, sendo uma tática equivocada e desumana de combate ao terrorismo. Palavras-chave: Pena de Morte; Terrorismo; Tática; Condenação. Abstract: The aim of the present paper is to analyze the use of the death penalty as an anti-terrorist tactic by more than 20 countries. The protection of human life, its inviolability and its characterization as a legal value are topics that raise profound discussion and strong points of view in modern different scholarship.The abolition of the death penalty has promoted the protection of human life, which can be regarded as one of the first modern characteristics of human rights protection. However, we question whether life is actually protected, especially when we are faced with an increase of death penalty convictions around the world as an attempt to put an end to terrorist attacks and as a way of ensuring justice for victims. From what has been reported in the media, human right observatories and humanitarian organizations, it is clear that there is a gradual increase of death penalty convictions in terrorism cases. Additionally, popular opinion sees it as an efficient mean of resolving such cases. Governments see capital punishment as a justifiable practice and valid consequence to terrorism, even though it violates all humanitarian principles and ignores the fact that the criminal is still a human being and should be treated as such. The methodology used in this paper is based on bibliographical research and in recent studies by Amnesty International. We conclude that the death penalty conviction in terrorism does not achieve the desired results by the states that use it, being a mistaken and inhumane tactic to end terrorism. Keywords: Death Penalty; Terrorism; Tactic; Conviction.
1. Introdução Em Portugal, foi no ano de 1867 e durante o reinado de Dom Luís que fora publicada a Carta de Lei que abolia de forma definitiva a pena de morte para todos os crimes civis, avançada pelo então Ministro da Justiça, Dr. Manuel Baptista. Portugal, que já não mais condenava à morte desde 1846, assumiu de forma pioneira a abolição da pena de morte no continente europeu, alinhando-se aos 32
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grandes debates históricos, filosóficos, sociológicos e jurídicos acerca da condenação do indivíduo a pena mais grave e severa que já existiu. As ideias abolicionistas de pôr fim à condenação pela pena de morte tiveram sustento pelos juristas criminalistas a partir da obra “Dos Delitos e Das Penas”, de Cesare Becaria, precursora em trazer suas proposições políticas, penais, sociais e, como base ao direito penal que restou caracterizada, esculpiu em seu bojo a ideia de preservação de direitos fundamentais, até então pouco discutidos na esfera penal1. Além disso, passou-se a discutir a possibilidade de que a execução do criminoso pela morte era um crime muito mais pesado e violento do que teria ele cometido, sendo reconhecido que este tratamento dado aos criminosos era totalmente equivocado e desumano, eis que, apesar de seus atos, ainda eram seres humanos e deviam assim ser tratados independentemente do que haviam feito. Para dar início ao tema, trago para consideração o texto utilizado no relatório de proposta de lei para a abolição da pena de morte em Portugal, em que o então Ministro da Justiça relata, dentre outras características, a mudança da sociedade e a necessidade de adequação e revisão das penas ao tempo presente, afirmando: Com o desenvolvimento da civilização dilata-se a força dos governos, armam-se de nossas faculdades os poderes públicos, derrama-se a moralidade, difunde-se a instrução, alarga-se a publicidade, e por tal arte cresce e se levanta o poder da sociedade, que parecia estranha fraqueza declinar para a jurisdição do algoz a decisão do conflito travado entre a inocência e o crime. Que a sociedade se defensa, razão é; mas que podendo defender-se sem imolar à sua conservação a vida dos delinquentes imponha desnecessariamente a pena de morte, não o explica facilmente a ciência penal dos nossos dias2.
O século XIX restou caracterizado pelas discussões acerca da necessidade de preservação e proteção dos indivíduos em todas as esferas civis e criminais. Conscientizavam-se em torno de ideias trazidas com as revoluções, em especial com a revolução francesa e traziam para a Europa os conceitos mais modernos de direitos fundamentais, como a proteção da vida, a busca pela felicidade, o ideal de julgamento justo e igualitário, dentre tantas outras incursões necessárias ao andamento social da época e da sensibilidade humana. Entretanto, mais de 150 anos após a abolição da pena de morte em Portugal e em outros tantos países no mundo, um importante facto tem se destacado: a 1 Cf. C. Beccaria, Dos Delitos e Das Penas, tradução e notas de Alexis Augusto Couto de Brito, São Paulo, Quartier Latin,2005; A. Júnior, A. Ribas de Paulo, A. de Castro, A., R. Sontag, Iluminismo e Direito Penal, Florianópolis, Editora Fundação Boiteux, 2009. 2 Cf. Ricardo Fernandes, A pena de morte de Portugal, Lisboa, Ordem dos Advogados Portugueses, 1971, página 20.
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crescente utilização da pena de morte como uma tática contra o terrorismo. Este trabalho tem como objetivo especial lançar uma análise sobre a efetividade das condenações, a possibilidade de êxito ou não em seu uso como um meio contra o terrorismo, as justificativas utilizadas pelos entes estatais e a busca pela melhor resolução desses conflitos. Busca-se com o presente estudo encontrar as justificativas para o uso das condenações e quais os meios e resultados destacados pelos órgãos humanitários, pelos juristas e por aqueles que mais defendem a pena de morte em crimes relacionados ao terrorismo.
2. As atuais percepções abolicionistas e contrárias à pena capital Ainda tida como um dos maiores acontecimentos jurídicos e sociais da história, a abolição da pena de morte deixou também como legado a possibilidade de reabilitação do apenado, anteriormente não observado justamente por não existir qualquer preocupação com o indivíduo, das razões que o levaram a agir e muito menos a consciência de que a morte dele seria uma continuação da barbárie que teria ele iniciado. Assim, após o surgimento de um cuidado protecional efetivo, a legislação e a doutrina reafirmam o princípio abolicionista de forma a garantir uma ativa recuperação do indivíduo condenado e na recuperação dos criminosos. Neste sentido, o advogado português Ricardo Fernandes assim defendeu sobre a recuperação do criminoso e a reforma trazida pela lei abolicionista da pena de morte: Combate-se agora a criminalidade, sem desprezar a pessoa humana do delinquente, o seu sentido de ser responsável. Tem-se em vista, na pena de prisão, o efeito de readaptação social. Segue-se a corrente moderna penologia, cujo objectivo principal é «castigar o homem e, ao mesmo tempo, em vez de o perder, ganha-lo de novo para a sociedade»3.
A recuperação dos criminosos, quando efetivamente ocorrida, além da preservação da vida humana, tornou-se de fato uma das maiores riquezas trazidas pelo fim da pena de morte como consequência dos lentos passos que o ordenamento jurídico penal estava a passar. Contudo, como dito, dentre as consequências há de atentar para o fato de que a consciência criada de que a vida humana deveria ser preservada e de que era duvidosa e ilegítima a crueldade da condenação executada através da morte, foi sem dúvida a maior a vitória da corrente abolicionista. Neste caminhar, percebemos que o tratamento dado à vida humana na época das abolições se coaduna, ainda que ausente de discussão há 3 Cf. Ricardo Fernandes, A pena de morte de Portugal, op. cit., página 34.
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150 anos, com o conceito atualmente dado à vida humana como sendo um bem jurídico e que por esta razão necessita da ação do estado para garantir sua inviolabilidade, inalienabilidade e proteção, bem como em relação ao penado, que ainda deve tornar-se sociável perante a sociedade e regenerado, o que inexiste quando há uma condenação fatal. A proteção da vida humana, sua inviolabilidade e sua característica de bem jurídico encontra discussão e amparo na doutrina moderna com distintas ênfases e encaminhamentos dentro do ordenamento jurídico. A abolição da pena de morte trouxe consigo efetivamente essa proteção da vida humana, que pode ser assim ser conceituada como uma das primeiras características modernas de proteção dos direitos humanos. Assim, ao discutirmos sobre a proteção e preservação da vida nos dias de hoje e da forma em que isso teria sido edificado precisamos atentar ao fato de que há uma construção longa de um caminho muito severo, por vezes lento e demasiado custoso para uma sociedade em constante evolução e mudança, nem sempre tão generosas como esperado. Neste sentido, para fins de percepção e elucidação ao tema aqui proposto, importante lição nos traz o jurista Diogo Leite de Campos sobre o desenrolar dos conceitos de vida e morte recebidos na modernidade, descrevendo como sendo parte de um fenómeno cultural e assim afirmando: Nem a vida nem a morte são “naturais”. São completamente “problemas” cuja solução sempre incompleta e transitória só se adquire por experiência e reflexão, de onde decorre a impossibilidade de normas para si mesmo e para os outros. A morte nunca foi um fenómeno meramente biológico, mas sim um fenómeno cultural do âmbito da existência moral4.
Outrossim, partindo-se do pressuposto que o conceito de vida evoluiu e com ele surgiu a necessidade de proteção, imperioso colacionar neste passo, o entendimento que é dado pelo jurista alemão Kay H. Schumann sobre a proteção da vida humana pelo direito penal e seu efetivo objetivo: Se percebermos o direito – e em especial o direito penal – como sistema supra-individual de um equilíbrio de interesses no âmbito de uma comunidade social, torna-se manifesta a daí resultante absolutividade da proteção da vida. A tarefa do direito é a de resolver conflitos de interesses, reconhecer os conflitos, dirigir
4 Cf. Diogo Leite de Campos, “O Estatuto Jurídico da Pessoa Depois da Morte”, in Diogo Leite de Campos e Silmara Juny de Abreu Chinellato (coords.), Pessoa Humana e Direito, Coimbra, Almedina, 2009, página 56.
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normas de comportamento à sociedade para evitar conflitos e prever reações para o caso da falha do recurso.5
Outras fontes também apontam para o tema protecionista, da qual destaco com ênfase e preferência a Constituição da República Portuguesa6 que prevê em seu texto a inviolabilidade da vida humana, prevendo em seu artigo 24º sobre a proteção à vida, além da inaplicabilidade da pena de morte e o direito à inviolabilidade da vida humana. Assim também descreve a jurista Inês Fernandes Godinho que coaduna com o mesmo posicionamento e afirma que “o ordenamento jurídico, o direito, encara a protecção da vida como uma das suas funções axiais. Ilustrativa é a circunstância de, entre nós, a Lei Fundamental indicar como direito fundamental primeiro que “a vida humana é inviolável”7. Em outra passagem de seu texto, ultrapassando ainda a necessidade de proteção penal da vida humana pelo direito penal, traz a previsão constitucional do direito à vida e sua proteção como um dos papeis e obrigações do Estado: O direito constitucional à vida é, por isso, não só protecção da «existência vivente, físico-biológica», mas também um direito que se «impõe contra todos, perante o Estado e perante os outros indivíduos».8
Contudo, questionamo-nos se, efetivamente, a vida é mesmo protegida como buscada a partir da abolição de pena de morte? Há ainda um longo caminho para ser percorrido em termos de proteção da vida humana, recuperação de prisioneiros e de atuação dos entes estatais como órgãos compromissados com o respeito e a aplicação de direitos humanos. E neste aspecto, nos deparamos com o fato de que tantos países ainda não exterminaram a pena de morte de suas leis penais e constitucionais e que mesmo após tantos avanços sociais, políticos e jurídicos em busca da proteção integral dos direitos humanos e da vida, mantendo a condenação mais pesada que já existiu e utilizando-a como uma necessidade ou um meio acertado para o combate de determinados crimes. Ou pior, podemo-nos questionar o fato de existir ainda uma opinião popular 5 Cf. Kay H. Schumann, “A Reflexão Binding/Hoche – Simultaneamente Uma Breve Reflexão Sobre A Protecção Da Vida Em Direito Penal”, in José de Faria Costa e Kindhauser (Coords.), O Sentido e o Conteúdo do Bem Jurídico Vida Humana, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, página 53. 6 Constituição da República Portuguesa disponível em http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. [28.10.17]. 7 Cf. Inês Fernandes Godinho, “Autoderteminação e Morte Assistida na Relação Médico-Paciente”, José de Faria Costa e Kindhauser (Coords.), O Sentido e o Conteúdo do Bem Jurídico Vida Humana, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, página 57. 8 Cf. Inês Fernandes Godinho, “Autoderteminação e Morte Assistida na Relação Médico-Paciente”, Op. Cit., página 59.
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contrária a abolição, mesmo após tantos anos do fim da condenação em pena de morte. Há de ser ressaltado que países como o Brasil, por exemplo, ainda possuem uma previsão constitucional da pena de morte em casos de guerra declarada, como prevê a Constituição Federal9 Brasileira em seu artigo 5º, inciso XLVII, alínea “a”10. Os países abolicionistas buscavam como consequência da abolição a possibilidade de reabilitação do criminoso e sua entrega à sociedade diferente de como entrou no sistema prisional. Contudo, caminho diferente seguem os Estados que usam e defende de forma aberta a condenação à pena capital como uma forma de combate ao terrorismo. E efetivamente neste ponto, como resposta antiterrorista, que o maior número de execuções pela condenação à pena de morte no panorama atual da sociedade em relação as execuções e condenações são encontradas no mundo inteiro. Analisando as questões atuais em que esta condenação se encaixa, vislumbra-se a crescente execução de supostos terroristas e criminosos envoltos em casos deflagrados como possíveis ataques terroristas, contrariando todos os conceitos acima trazidos como o de proteção da dignidade da vida humana e sua inviolabilidade, a necessidade de proteção pelo Estado da vida como um dos seus papeis mais importantes perante a sociedade e de como foi demasiado longo o caminho percorrido até a abolição.
3. O terrorismo como uma nova motivação para a utilização da pena de morte As práticas terroristas ocupam um lugar cada vez maior nos acontecimentos trágicos envolvendo a criminalidade organizada. Um fenómeno crescente, antigo, com diversas fases e ondas de desenvolvimento e que tem atingido a Europa e os Estados Unidos com maior frequência nos últimos anos, acarretando a necessária análise e estudo pelos entes estatais de utilização de meios eficazes contrários ao terrorismo. Se “o terrorismo é a ameaça mais alarmante para a segurança global do século XXI11”, grande também é a atuação dos Estados e de seus governantes ao buscar formas de combatê-lo.
9 Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado Federal, 1988, disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, [28.10.2017]. 10 Constituição da República Federativa do Brasil - Artigo 5º, XLVII - não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX” disponível em http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm, [28.10.2017]. 11 Cf. Ricardo Manuel Costa Vasconcelos, “Criminalidade organizada em Portugal: um estudo exploratório”, Universidade do Minho, Braga, 2013, página 28.
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Alguns pesquisadores e acadêmicos acreditam que o terrorismo é uma violência política e social, outros percebem no terrorismo uma revolução baseada na violência e no sofrimento. Por defender que o terrorismo é acima de tudo uma violência política, alguns estudiosos afirmam que o modus operandi dos terroristas consiste na disseminação aleatória do medo e da insegurança, objetivando “efetivar a agenda política que os move”: O terrorismo é indiscutivelmente considerado uma forma de violência política. Assim, os mais reacionários preferem defini-lo enquanto violência revolucionária, convenientemente omitindo o facto de que foram os defensores da ordem e do status quo os pioneiros da estratégia, característica de estados totalitários governados por déspotas cujo instrumento de eleição é a repressão, aniquilando a mera possibilidade de oposição de forma a preservar a ordem e o seu lugar no poder. [...] Inversamente, o terrorismo dos movimentos, ou revolucionário, tem como principal objetivo pressionar os governos a atenderam aos seus pedidos e reivindicações de forma a operar mudanças no status quo.12”
A doutrina atual entende que são duas as principais categorias de resposta ao terrorismo: a primeira, mais firme e que se inutiliza de compromissos ou negociações, recorre a medidas militares para efetivar sua atuação; e uma segunda, mais flexível e diplomática, baseia-se em operações secretas não violentas e trazem em seu escopo muitas medidas de segurança e sanções económicas. Àquela, baseia-se no uso da força, é caracterizada nos ataques punitivos e preventivos, tendo como prática as operações secretas e, em minha percepção, aceitam a pena de morte como uma resposta comum e natural ao terrorismo, partindo da forma em que ela é consolidada em vários países que fazem uso dessa condenação. Como dito, atualmente nos deparamos com um aumento das condenações à pena de morte no mundo inteiro como uma tentativa de pôr fim aos ataques terroristas e como forma de garantir justiça às vítimas atingidas. Percebemos a partir do que vem sendo divulgado pela mídia, observatórios de direitos humanos e organizações humanitárias que há um aumento gradativo nas ações estatais referente a utilização da pena de morte em casos de condenação a criminosos tidos como terroristas. De acordo com o divulgado pela Amnistia Internacional, mesmo em países em que a pena de morte já estava abolida de suas legislações, há referência política e sociológica para as condenações à pena capital como forma justa de resposta ao terror: The rise of the armed group calling itself Islamic State, which has sought to internationalise its activities across multiple regions and continents, has attracted par12 Cf. Sara Vieira Cruz, “Revisitando a Teoria da Guerra Justa: uma análise das propostas de Michael Walzer e Jeff McMahan”, Universidade do Minho, Braga, 2015, páginas 66 e 67.
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ticular global attention, giving rise to calls in many countries for an intensified confrontation with such groups and those involved in them. In countries which have abolished the death penalty, some politicians and lawyers have argued for the reinstatement of the death penalty. Attacks on the general population cause terrible suffering to the immediate victims and their families. They can also create a climate of fear in which communities live in terror. Such attacks can never be justified13.
De fato, percebe-se que quando a ameaça consiste na segurança nacional, pouco importa aos governantes se há ataque ou ofensa aos direitos humanos. Em todos os estudos que as organizações humanitárias realizam, podem ser identificadas diversas violações de direitos fundamentais, que vão da justificativa ao uso da tortura e às violações de direito internacional. Como exemplo, destaca-se o que vem ocorrido nos centros de detenção dos Estados Unidos no Afeganistão e a opinião aberta, clara e firme do atual Presidente de Estados Unidos da América, Sr. Donald Trump, pela condenação à morte dos investigados e presos por ataques terroristas naquele país, como recentemente declarou para a grande mídia através de seus canais de comunicação14. Os estudos feitos pelas ONG´S e centros de estudos voltados ao direito humanitário indicam como sendo a pena de morte uma das formas de condenação mais realizadas nos últimos tempos em todo o mundo e defendido pela opinião popular como um meio acertado na resolução desses casos. O inevitável é que a condenação à pena capital vem tomando um espaço pelos governantes como sendo uma prática justificável, acertada e uma consequência válida ao terrorismo, mesmo sendo a execução do criminoso pela morte um crime pior do que teria sido por ele cometido, afrontando os princípios humanitários. Apesar dos atos cometidos, o criminoso ainda é um ser humano e assim deve ser tratado. Entretanto, quando os representantes dos povos, eleitos por eles, instigam determinas violências e ofensas aos direitos já adquiridos, estamos diante de um dos maiores problemas atuais: o retrocesso de direitos protetivos à vida humana e a preservação de da ausência de limites para o alcance e atuação dos direitos humanos. Estudos recentes divulgados pela Amnistia Internacional identificam que 140 (cento e quarenta) países no mundo inteiro são já abolicionistas e com mudanças refletidas na legislação de cada país ou na ausência de condenações à pena fatal. Desses 140 países, 103 já aboliram a pena de morte para todos os crimes, 13 Disponível em: https://www.amnistia.pt/pelo-menos-20-paises-estao-a-usar-a-pena-de-mortenuma-tatica-errada-de-combate-ao-terrorismo/, [25.10.2017]. 14 Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/01/internacional/1509566514_440373. html, [28.10.2017].
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incluindo os oriundos de ataques terroristas. Em contrapartida, a abolição total parece um avanço longe de ser alcançado em outros 25 países que realizaram execuções no ano de 2015 e outros para 58 (cinquenta e oito) países que mantêm a pena em seus ordenamentos jurídicos e nas suas legislações penais. A pesquisa relata ainda que “os cinco países que mais pessoas executaram em 2015 foram: China, Irão, Paquistão, Arábia Saudita e Estados Unidos – por esta ordem15”. A Amnistia identificou no ano de 2016 que em pelo menos 20 países, pessoas foram condenadas à pena de morte como forma de condenação por crimes e ações relacionadas ao terrorismo: “Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Camarões, Chade, China, Egito, Emirados Árabes Unidos, Estados Unidos, Índia, Irão, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbano, Paquistão, República Democrática do Congo, Somália, Sudão e Tunísia”.16 Dados relevantes também divulgados pela organização não-governamental, órgão que intensificou os estudos sobre o uso da pena de morte como uma resposta contra o terrorismo, informam que mesmo nos casos de crimes cometidos em grande escala, a condenação à morte foi descartada, sendo o caso de países como a Alemanha, a Bósnia, Camboja e África do Sul, por exemplo. A comunidade internacional descartou tal pena como uma opção válida de sentença em tribunais internacionais para crimes que envolvam o genocídio, crimes oriundos de guerra e crimes contra a humanidade. Isto porque, não há respaldo de que a condenação à pena capital possa surtir algum efeito destrutivo ao terrorismo e este é outro ponto que merece destaque, pois caracteriza uma justificativa falsa de quem a aplica dessa forma: There is no evidence that the death penalty deters violent crime more effectively than alternative punishments. It does not tackle the root causes of violent armed attacks. By highlighting terrorism-related offences on the World Day Against the Death Penalty, Amnesty International appeals to policy-makers around the world not to allow state policies to be driven by the strong reactions that understandably emerge in the aftermath of violent attacks and to take all steps within their power to confine the use of the ultimate cruel, inhuman and degrading punishment to history.
O que pode ser observado dos países que condenam a pena de morte nos casos de crimes e ações decorrentes de atentados terroristas é o fato de entenderem que tal condenação funciona como uma tática eficaz de combate e de 15 Cf. Amnistia Internacional, “Pelo Menos 20 Países Estão A Usar A Pena De Morde Numa Tática Errada De Combate Ao Terrorismo”, disponível em: https://www.amnistia.pt/pelo-menos-20-paises-estao-a-usar-a-pena-de-morte-numa-tatica-errada-de-combate-ao-terrorismo/[26.10.2017]. 16 Países que condenam à pena de morte em crimes relacionados ao terrorismo conforme pesquisa da Amnistia Internacional. Disponível em https://www.amnistia.pt/pelo-menos-20-paises-estao-a-usar-a-pena-de-morte-numa-tatica-errada-de-combate-ao-terrorismo/[26.10.2017].
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diminuição dos atentados terroristas. Todavia, tal prática mostra-se ano após ano como equivocada e distante do fim pretendido. Pelo contrário, como a utilização da condenação à pena fatal estamos dando continuidade a uma prática desumana, desonrosa, violadora e impulsionadora de um novo clico de violência sem fim. Enquanto leis são criadas e/ou modificadas e diversas comissões ao longo do mundo estudam os fatores que levam às práticas terroristas e objetivam efetivamente levar ao fim e ao cabo suas ocorrências, a condenação em pena de morte não é nem de longe o caminho correto a ser adotado pelos Estados. Em outubro de 2016 quando comemorado o 14º aniversário de celebração da abolição da pena de morte na maior parte do mundo, o foco principal dado pela Amnistia Internacional foi relacionado aos ataques terroristas e ao crescente aumento das condenações à pena de morte. De acordo com o artigo apresentado pelo órgão abolicionista e defensor dos direitos humanos, desde os ataques terroristas o aumento das condenações à pena capital também retomou um crescimento exponencial, sendo inclusive debatido e novamente defendido por juristas e políticos: The rise of the armed group calling itself Islamic State, which has sought to internationalise its activities across multiple regions and continents, has attracted particular global attention, giving rise to calls in many countries for an intensified confrontation with such groups and those involved in them. In countries which have abolished the death penalty, some politicians and lawyers have argued for the reinstatement of the death penalty17.
Ao ser utilizada como uma tática antiterrorista pelos governos, a resposta dada à sociedade é de que a punição tende a resolver o problema, servindo de dissuasão aos ataques terroristas. Entretanto, em nenhum dos casos já ocorridos nos países atacados e que os agressores foram presos, podem ser encontradas provas reais de que a pena de morte possui um resultado mais poderoso do que qualquer outra punição quando usada na luta contra o terrorismo: A series of authoritative studies conducted for the United Nations in regions around the world have repeatedly found that the death penalty does not have a greater deterrent effect on crime than a term of imprisonment. The most comprehensive survey of research findings carried out by the UN on the relationship between the death penalty and homicide rates concluded: “...research has failed to provide scientific proof that executions have a greater deterrent effect than life imprisonment. Such proof is unlikely to be forthcoming.
17 Cf. Amnistia Internacional, disponível em http://www.amnistia.pt/wp-content/uploads/2017/06/ AIbriefing_2016_World_Day_Against_the_Death_Penalty.pdf, [26.10.2017].
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Outrossim, destaco como principal razão pela falência do argumento utilizado pelos Estados e Governos, de acordo com o que também é defendido pela ONU e pela Amnistia Internacional, o fato de que os terroristas são treinados a atingir sua finalidade independente do que ocorra com suas próprias vidas. Ainda que seja doloroso afirmar tal posicionamento, os registros históricos relatam que os terroristas são motivados por uma ideologia extremista e estão preparados inclusive para morte para atingir seus objetivos, o que também ficou evidenciado nos últimos ataques e na última onda terrorista. Logo, uma condenação à pena de morte não possui o condão de desencorajar o ato ou de dissuadir o criminoso. Ao contrário, pode até mesmo ser percebido como um resultado esperado e isso não é capaz de identificar qualquer progresso ou justificativa na condenação à pena de morte como uma forma contrária ao terrorismo. Em outros casos, a pena de morte novamente se mostra como desarrazoada e equivocada em virtude do meio judicial e político em que ela é realizada e julgada. No Paquistão, por exemplo, há indícios de corrupção e julgamentos injustos incapazes de promover qualquer manutenção da paz ou de ser sinônima de justiça. Em 2015, Sultana Noon, escritora paquistanesa e pesquisadora da Amnistia Internacional divulgou em um tabloide paquistanês o estudo feito enquanto visitava uma prisão onde encontravam-se os presos condenados por terrorismo e que aguardavam a execução através da morte. De acordo com pesquisadora, muitos são os fatores que justificam a abolição da pena, principalmente nos casos analisados com o enfoque do terrorismo: What makes the use of the death penalty in Pakistan particularly troubling is the many violations of fair trial rights. The judicial system is riddled with flaws — defendants often lack adequate access to legal counsel, ‘evidence’ extracted through torture is used as a basis for convictions, corruption is rife, and groups protected under international law, such as juveniles or persons with mental or intellectual disabilities, are often sentenced to death18.
De outro lado, há quem entenda que a política contra terrorista utilizada pelos estados e pelas agências estatais como o Departamento de Estado Americano ou a CIA (Central Intelligence Agency) não pode ser considerado também um ato terrorista ou uma continuidade do ataque terrorista sofrido. Interessante as palavras do Professor Robert Goodin ao analisar o quão conveniente pode ser a atuação do referido departamento ou da CIA nesses casos, as quais entendo como cabíveis neste raciocínio: 18 Cf. Sultana Noon, “Death Penalty: the human tragedy behind the numbers”, 2015, disponível em: https://tribune.com.pk/story/929979/death-penalty-the-human-tragedy-behind-the-numbers/ [23.10.17]
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[...] sob ela, não importa o que façam, tais agências nunca estão a cometer atos terroristas. Podem prestar todo o apoio, seja aberta ou clandestinamente, a grupos de insurgentes que o praticam de forma sistemática contra os seus compatriotas na tentativa de derrubar o governo. Mas o departamento de estado ou a CIA não estariam a cometer terrorismo eles mesmos, nem pode dizer-se que são cúmplices do terrorismo de outros. Conveniente: muito conveniente19.
Percebo que, ao serem utilizadas as repostas brutais e firmes ao terrorismo, inclusive com a utilização da condenação à pena de morte, há uma continuidade ao terrorismo iniciado. Isto é, há a formação de um ciclo de violência, efetivado a partir da execução e da tortura. Compartilhando o resultado apontado pelo estudo técnico publicado pela Amnistia “where governments present the death penalty as a solution to armed and other violent attacks they are not basing this on any solid evidence”20. Ao ser efetivada tal condenação, estamos diante de vingar a morte com a morte e presenciamos não uma forma de buscar a origem do terrorismo e dê pô-lo fim a partir de um efetivo e concreto estudo, mas sim uma prática ineficaz e desumana.
4. Conclusão Se “o ser humano é pessoa, valor fundamental do direito. E por ser pessoa é ser titular de direitos e deveres”21, a proteção da vida é direito intrínseco, inviolável e inalienável. Sendo assim, quando a vida de alguém passa a ser discutida em razão de suas atitudes e desafiada pelos chefes executivos, há de ser questionado se aqueles motivos ensejadores da abolição como se deu em Portugal há 150 anos, por exemplo, perderam-se no tempo e na atuação de cada ente governamental. Sendo o direito à vida o início do campo de atuação dos direitos fundamentais dentro de um ordenamento jurídico, “o respeito à pessoa humana é, assim, o marco jurídico, o suporte inicial que justifica a existência e admite a especificação dos demais direitos, garantida a igualdade de todos perante a lei, como expresso no preâmbulo da Constituição22.” O caminho esperado para a resolução dos conflitos e a condenação dos criminosos envoltos nos ataques terroristas tido como válido e correto vem sendo também defendido pela Anistia Internacional e tantos outros órgãos aboli19 Cf. Robert E. Goodin, “What’ s wrong with terrorism?”, UK, Polity Press, 2006, página 54. 20 Cf. Amnistia Internacional, disponível em: http://www.amnistia.pt/wp-content/uploads/2017/06/ AIbriefing_2016_World_Day_Against_the_Death_Penalty.pdf, [10.11.2017], página 8. 21 Cf. Francisco Amaral, “O Dano à Pessoa no Direito Civil Brasileiro”, in Diogo Leite de Campos e Silmara Juny de Abreu Chinellato (Coords.), Pessoa Humana e Direito, Almedina, 2009, página 123. 22 Cf. Francisco Amaral, “O Dano à Pessoa no Direito Civil Brasileiro”, op. Cit., página 127.
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cionistas e ele é contrário ao uso da pena de morte. Como visto acima, não há qualquer indício de que as condenações resultaram na diminuição dos casos, quiçá do combate. Também não há provas concretas de que a pena de morte causa algum efeito diferente do que outras penas, como a de prisão, por exemplo. O papel esperado de qualquer governante é o de que julgue, busque os motivos, investigue a situação, respeite os pactos e tratados do direito internacional, mas que não dê continuidade ao ciclo de terror e violência causados pelos ataques terroristas. A busca por informações e o entendimento dos casos em concreto ainda são as melhores formas de resolução de conflitos, razão pela qual a pena de morte está longe de ser tida como uma prática antiterrorista, como assim também defendem os órgãos abolicionistas: […] when security threats are involved, governments too often respond in ways which undermine human rights. In recent years, Amnesty International has documented a wide range of practices that are inconsistent with human rights, including attempts to justify the use of torture […]. In other contexts, state responses to concerns over security have intensified existing patterns of human rights violations or have sought to justify new abusive practices carried out in the name of security. The death penalty is the ultimate sanction that a state can impose; it is a cruel, inhumane and degrading punishment, denying people the human right to life that governments often resort to in times of perceived national crisis, to demonstrate their “strength” in dealing with threats23.
Neste sentido, a partir dos estudos realizados e dos casos concretos que a Amnistia Internacional teve acesso, mesmo a pena de morte sendo uma das condenações mais graves impostas aos indivíduos, a atuação dos governos tem descartados os direitos humanos e realizado na prática o que há tanto tempo vem sido rechaçado, como um retrocesso sem limites e fatal não só para quem o sofre, mas para a sociedade que este condenado pertence. A condenação à pena de morte remete-nos ao total descumprimento dos ideais que culminaram em sua abolição em diversos lugares no mundo, visto que não há que se falar em ressocialização do apenado ou em regeneração do homem. É afrontar os ideais de Baccaria e de tantos outros juristas e cientistas políticos e sociais que deram razão à abolição há mais de 150 anos. Além disso, condenar alguém à pena mais grave que já existiu é violar o princípio da dignidade da pessoa humana e tudo o que ele representa e protege. Em um contexto mundial temos como decrescente as condenações à pena de morte, sendo que mais da metade dos países do globo aboliram esta 23
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Cf. Amnistia Internacional, disponível em: em http://www.amnistia.pt/wp-content/ uploads/2017/06/AIbriefing_2016_World_Day_Against_the_Death_Penalty.pdf, 2016, página 5, [22.10.2017].
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sanção. Contudo, o notável crescimento da utilização dessa penalidade nos casos contra o terrorismo torna a comemoração do fator descrente impossível de ser realizada, retornando as discussões aos séculos passados, retrocedendo em garantias fundamentais, avanços, consciência politizada e social. Existindo uma resposta conciliatória cuja principal característica é a diplomacia aliada a reformas sociais e concessões, além da existência de uma resposta legal ao terrorismo baseada na investigação criminal e no cumprimento da lei, estas, de longe, podem ser tidas como corretas, eis que respeitam o direito internacional e a cooperação internacional. Sendo tais medidas as mais protetivas e adequadas à consolidação e respeito aos direitos humanos. Por fim, compartilho o desejo humanitário de que haja um julgamento efetivamente justo para todos os casos, seja em atentados terroristas ou em crimes que não resultem na ruptura da vida humana. Que os responsáveis sejam encaminhados ao judiciário a partir de processos e de condenações que atendam aos padrões internacionais de proteção à vida e respeito aos direitos humanos. Como dito, espera-se dos Estados um encaminhamento da resolução dos conflitos terroristas consubstanciado na firmeza de um julgamento justo e capaz de responsabilizar o agressor, dar justiça às vítimas e pôr fim ao ciclo de violência presente no terror dos ataques. Mesmo que a condenação à pena capital fosse considerada uma importante e exitosa tática contra o terrorismo, ainda seria uma prática violadora de direitos humanos e da dignidade da pessoa humana, ainda seria uma pena cruel, degradante, violenta e, portanto, inaceitável também como forma de combate ao terrorismo.
Referências AMARAL, Francisco, “O Dano à Pessoa no Direito Civil Brasileiro”, in Diogo Leite de Campos e Silmara Juny de Abreu Chinellato (coords.), Pessoa Humana e Direito, Coimbra, Almedina, 2009. BECCARIA, C., “Dos Delitos e Das Penas”, tradução e notas de Alexis Augusto Couto de Brito, São Paulo, Quartier Latin, 2005. CAMPOS, Diogo Leite de, “O Estatuto Jurídico da Pessoa Depois da Morte”, in Diogo Leite de Campos e Silmara Juny de Abreu Chinellato (coords.), Pessoa Humana e Direito, Coimbra, Almedina, 2009. CRUZ, Sara Vieira, “Revisitando a Teoria da Guerra Justa: uma análise das propostas de Michael Walzer e Jeff McMahan”, Universidade do Minho, Braga, 2015.
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FERNANDES, Ricardo, “A pena de morte de Portugal”, Lisboa, Ordem dos Advogados Portugueses, 1971; GODINHO, Inês Fernandes, “Autoderteminação e Morte Assistida na Relação Médico-Paciente”, José de Faria Costa e Kindhauser (Coords.), O Sentido e o Conteúdo do Bem Jurídico Vida Humana, Coimbra, Coimbra Editora, 2013. GOODIN, Robert E., “What’ s wrong with terrorism?”, UK, Polity Press, 2006. JÚNIOR, A., Ribas de Paulo, A., de Castro, A., Sontag, R. “Iluminismo e Direito Penal”. Florianópolis: Editora Fundação Boiteux, 2009; NOON, Sultana Noon, “Death Penalty: the human tragedy behind the numbers”, 2015, Disponível em: https://tribune.com.pk/story/929979/death-penalty-the-human-tragedy-behind-the-numbers/[23.10.17]. SCHUMANN, Kay H, “A Reflexão Binding/Hoche – Simultaneamente Uma Breve Reflexão Sobre A Protecção Da Vida Em Direito Penal”, in José de Faria Costa e Kindhauser (Coords.), O Sentido e o Conteúdo do Bem Jurídico Vida Humana, Coimbra, Coimbra Editora, 2013. VASCONCELOS, Ricardo Manuel Costa, “Criminalidade organizada em Portugal : um estudo exploratório”, Universidade do Minho, Braga, 2013.
Legislação consultada BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 28 de outubro de 2017; PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Disponível em http:// www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa. aspx. Acesso em 28 de outubro de 2017.
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A PENA DE MORTE: REFLEXÕES SISTÉMICAS E AXIOLÓGICAS The death penalty: systemic and axiological reflections
Fernando Conde Monteiro1
Resumo: O Autor reflete sobre a legitimidade da existência da pena de morte no contexto mais vasto de uma reflexão epistemológica sobre a ciência jurídico-penal. Chega à conclusão de que tal reação pode ou não ter lugar, dependendo de um ato de vontade do legislador, naturalmente condicionado por pressupostos histórico-culturais e neste plano assumindo uma inequívoca dimensão de relatividade. Palavras-chave: Epistemologia; Ciência jurídico-penal; Reações criminais; Relativismo axiológico; Pena de morte. Abstract: The author reflects on the legitimacy of the existence of the death penalty in the broader context of an epistemological reflection on criminal-legal science. It 1 O texto em causa foi pensado para a comemoração dos 150 anos da abolição da pena de morte para crimes civis em Portugal (Pena de Morte: reflexões epistemológicas sobre o sentido ou ausência de sentido da punibilidade no âmbito jurídico-penal, Anuário de Direitos Humanos n.º 0, Diretora, Gonçalves, Anabela de Sousa, Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos, Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2017, pp. 69-86) e filia-se numa reflexão de longa data por parte do Autor sobre este tema (“A pena de morte no âmbito do sistema jurídico-penal – reflexões críticas”, in Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, Vol. III, Almedina, 2013, Orgs. Eduardo Paz Ferreira et al., pp. 243- 257). Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho .
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A pena de morte: reflexões sistémicas e axiológicas Fernando Conde Monteiro
comes to the conclusion that such a reaction may or may not take place, depending on an act of will of the legislator, naturally conditioned by historical-cultural presuppositions and on this plane assuming an unequivocal dimension of relativity. Keywords: Epistemology; Legal-penal science; Criminal reactions; Axiological relativism; Death penalty.
I. Introdução A pena de morte sempre esteve presente ao longo de milénios nos diferentes ordenamentos jurídicos.2 A sua aceitação, contudo, viria a ser fortemente questionada com o movimento iluminista de cariz democrático que teve lugar no ocidente e que foi responsável pelo surgimento do novo direito penal imanente ao estado democrático e liberal.3 A partir daí desenvolveu-se um movimento abolicionista da pena de morte que ainda hoje tem lugar, expressando-se cada vez mais com uma energia redobrada. Passando-se entre nós mais do que cento e cinquenta anos da abolição da pena de morte para crimes civis,4 iremos debruçar-nos sobre algumas das questões epistemológicas e axiológicas inerentes a esta consequência jurídico-penal no seio mais vasto da designada ciência jurídico-penal.
II. A pena de morte no âmbito da designada ciência jurídico-penal 1. A ciência jurídico-penal 1.1 Ponto de partida: o indivíduo e o coletivo na sua historicidade e particularidade Todos nós, enquanto entes individuais, exprimimos opiniões diariamente sobre uma multidão de temas, que vão de assuntos puramente individuais até questões transcendentais. Dependendo do teor das matérias e principalmente da 2 Para uma curta perspetiva histórica, FERNANDO CONDE MONTEIRO, «A pena de morte no âmbito do sistema jurídico-penal – reflexões críticas», Estudos de Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, Vol. III, Coimbra, Almedina, 2013, p. 249. 3 Sobre este movimento, FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE, Criminologia, O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pp. 7-9. 4 Sobre o trajeto histórico da abolição da pena de morte, FERNANDO CONDE MONTEIRO, cit., pp. 249-250.
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presença ou ausência de critérios de validação das proposições a proferir ou proferidas, assim como do grau de conhecimento das mesmas e colocando de parte artifícios de linguagem, que possam camuflar finalidades do nosso discurso, sempre as nossas proposições poderão ser caracterizadas como exprimindo mais ou menos conteúdos subjetivos, maior ou menor objetividade e portanto expressando o erro em mais ou menos situações, assim como conteúdos de verdade.5 Se compararmos as nossas afirmações ou negações com outros seres individuais, facilmente detetamos pontos de convergência e igualmente de divergência, por múltiplos motivos: erros de perceção, generalizações abusivas, lugares-comuns, matérias indecidíveis no plano da sua resolução epistemológica, etc.6 Se assim se passam as coisas no âmbito individual, também no domínio coletivo a realidade não se configura radicalmente diferente. Igualmente neste plano podemos encontrar de tudo, desde juízos objetivos e coincidentes com o mundo fenomenal até expressões do puro domínio da superstição, passando igualmente por lugares-comuns, preconceitos, conceções ideológicas, etc. De tudo isto resulta sem mais que, enquanto indivíduos, nos caracterizamos por uma complexa trama de juízos de diferente e oposta natureza, desde puros juízos de racionalidade até à irracionalidade tout court, desde expressões de certeza até há mais pura expressão de aleatoriedade, enfim, toda a pessoa humana é um poço infinito de contradições.7 Portanto, o ser humano, enquanto tal, não se constitui um perfeito arauto de cientificidade, é um ser por inerência limitado, contraditório, sujeito necessariamente ao mal, ainda que imbuído igualmente de racionalidade, evoluindo em diferentes matérias, aberto também ao bem.8 Deste modo, a existência dos seres humanos, neste plano individual, 5 De notar que há matérias relativamente às quais, em princípio, ignoramos sequer se as proposições que sobre elas poderemos fazer poderão estar certas ou erradas, v.g., metafísica. Neste sentido, LUDWIG WITTGENSTEIN, no final do seu Tractus Logico-Philosophicus, afirma perentoriamente, numa fórmula tantas vezes citadas, que “O que se não pode falar, deve-se calar”. 6 Sobre o conceito de personalidade como compreendendo propriedades complexas e confusas, DEAN BURNETT, O cérebro idiota, uma viagem através dos mistérios do nosso cérebro, (trad.) Lisboa, Presença, 2017, pp. 170 – 199. 7 De notar que uma grande parte destas contradições assenta na dupla natureza do ser humano, a meio-termo entre uma imensa mole de sentimentos e emoções (lembremos o pioneirismo neste campo de Freud até às modernas abordagens da neurologia, passando, por exemplo, pela etologia) e uma racionalidade encontrando-se em conflito permanente, sobre tudo isto, FERNANDO CONDE MONTEIRO, «Algumas reflexões sobre o direito penal a partir da psicanálise», Revista Jurídica da Universidade Portucalense, n.º 15, 2012, p. 69 e segs. 8 De referir, que as noções de bem e mal são por nós entendidas em sentido amplo, como expressões que se movimentam a partir de uma norma-padrão cujo conteúdo abrange desde aspetos lógicos e empíricos até questões axiológicas e metafísicas; neste sentido, FERNANDO CONDE MONTEIRO, “O mal e o direito penal: Algumas reflexões sobre o mal e a sua relação com o direito penal”, Estudos Comemorativos dos 20 Anos da FDUP, Vol. I, 2017, pp. 418-419.
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é marcada, como anteriormente referimos, pela intensa subjetividade, aleatoriedade, historicidade, exprimindo também a objetividade no plano físico, psicológico, etc., mas sem nunca ser dominada por uma cientificidade, de facto inexistente. Por outro lado, num âmbito coletivo, a historicidade e a culturalidade são por demais evidentes. Racionalidade e irracionalidade convivem lado a lado, gerando inevitáveis contraditoriedades e onde o mal e o bem convivem de forma mais ou menos assimétrica. Nenhuma sociedade pode ser considerada como um espelho de virtudes ou expressão do supremo bem, todas elas em maior ou menor grau expressam tensões, conflitualidade, ruturas, enfim, processos de existência onde o aleatório está inevitavelmente presente.9 Pura racionalidade ou cientificidade são-lhe características alheias num plano ôntico, gnosiológico e axiológico, nomeadamente.
1.2 A ciência como expressão de juízos de objetividade 1.2.1 A ciência matemática: curtas reflexões epistemológicas As ciências matemáticas, enquanto ciências de padrões,10 caracterizam-se pela extrema logicidade das suas proposições. De qualquer maneira, apresentam questões epistemológicas não resolvidas. Efetivamente o projeto de David Hilbert no sentido da sua total axiomatização ainda não foi levado a cabo. Desde logo, pela presença de questões indecidíveis. Portanto, mesmo no domínio da pura logicidade encontramos obstáculos intransponíveis.11
1.2.2 As ciências empíricas Da aplicação da ciência matemática (logicidade) aos factos da natureza nasceram as ciências da natureza ou ciências empíricas. Tratou-se assim de estabelecer relações determinísticas entre fenómenos, empiricamente observáveis, sob a forma de leis ou teorias gerais (v.g., teoria da gravidade, lei de Coulomb, 9 Sobre o problema da aleatoriedade e o direito como reflexo mais vasto da realidade tout court, FERNANDO CONDE MONTEIRO, «O direito penal como expressão de jogos de lotaria ou uma reflexão epistemológica sobre aleatoriedade neste ramo jurídico», Manuel Costa Andrade et al (orgs.), Direito Penal, Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais, Homenagem ao Prof. Doutor Peter Hünerfeld, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pp. 589-611; «Aleatoriedade e Direito», PATRÍCIA JERÓNIMO (org.), Temas de investigação em Direitos Humanos para o Século XXI, Braga, Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar, Escola de Direito da Universidade do Minho, 2016, pp. 49-58. 10 Neste sentido, KEITH DEVLIN, Matemática, A Ciência dos Padrões, A Procura de uma Ordem na Vida, na Mente e no Universo, (trad.), Porto, Porto Editora, 2002, pp. 9-10. 11 Sobre as proposições indecidíveis no âmbito da matemática, PAUL J. COHEN, Set theory and the continuum hypothesis, New York, W. A. Benjamin, 1996.
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etc.). Fundamental neste âmbito foi o facto de os fenómenos em causa serem observáveis, testáveis, quantificáveis, de as proposições poderem ser refutáveis. Os modelos da física clássica ou da química podem, por exemplo, reconduzirem-se a este paradigma.12 Deste modo, a universalidade e a objetividade das suas afirmações foram alcançáveis, possibilitando-se num segundo momento a sua aplicação prática com fins utilitários, nomeadamente (tecnologia). De qualquer maneira, um modelo deste teor não ficou imune a críticas de cariz epistemológico. Por um lado, a sua aplicação não pode ter lugar à totalidade dos fenómenos, desde logo da física (v.g., impossibilidade de conhecer na prática a posição de todas as moléculas de um gás, previsão atmosférica, etc.). Depois, a sua provisoriedade implicou (implica) a suscetibilidade de se colocar em causa as suas asserções.13 Para além do seu determinismo poder ser também colocado em causa e isto independentemente do facto de as nossas categorias de perceção e de entendimento do real serem naturalmente limitadas14 e ainda de igualmente os conceitos utilizados serem categorias necessariamente relativizadas, isto é, carregados de teorias (pense-se em questões como energia, massa, espaço, tempo da física clássica comparativamente com a teoria da relatividade, por exemplo).15
1.2.3 A física quântica: alguns quebra-cabeças face aos paradigmas anteriores Para além desta física do infinitamente pequeno trazer novos conceitos de categorias anteriores (energia, espaço-tempo, etc.), o facto de ter quebrado 12 Sobre isto, FERNANDO CONDE MONTEIRO, «Algumas reflexões epistemológicas sobre o direito penal», Manuel da Costa Andrade, Maria João Antunes, Susana Aires de Sousa (orgs.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, p. 758. 13 Sobre a ideia popperiana de considerar a falsificabilidade como elemento de demarcação entre conhecimentos científicos e não científicos, KARL POPPER, Conjectures and Refutations, Londres, Routledge and Keagan Paul, 1963, pp. 33-39. 14 Lembremos desde logo a contribuição humeniana, passando pelo criticismo kantiano, para desembocar na psicologia gestaltista e nos limites do conhecimento humano expressos pelas ciências neurológicas, de que de resto a própria evolução científica disto mesmo deu testemunho (v.g, relativismo do espaço-tempo, paradoxos imanentes à física quântica, princípio do indeterminismo, etc.). Sobre o agnosticismo no âmbito destas ciências (físicas), L. LAUDAN, in Progress and its problems, Berkley, University of California Press, 1977, pp. 125-127, afirma:” ninguém foi capaz de dizer sequer o que deve entender-se por “mais perto da verdade”, para já não falarmos da apresentação de critérios determinando como se poderia medir essa proximidade.” 15 Fundamental neste âmbito, N. R. HANSON, Patrones de descubrimento. Observación y explicación, trad., Madrid, Alianza, 1977, p. 151.
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em definitivo com os pressupostos deterministas (ou pseudodeterministas), tornando-se probabilista,16 independentemente de prosseguir com a observação e experimentação, muitas vezes reduzidas ao plano dos resultados somente, implicou novos desafios epistemológicos em que a indeterminação, incompletude e um certo caos se instalaram, deixando-nos num óbvio espaço de incerteza sobre o real efetivamente inatingível em si mesmo.17
1.3 A complexidade do real enquanto obstáculo ao conhecimento humano: 1.3.1 As denominadas ciências humanas À medida que avançamos a partir dos aspetos físicos para os domínios de maior complexidade do ser humano, como sejam o caso da biologia, psicologia, sociologia, cultura, etc., encontramo-nos progressivamente perante verdadeiras paredes que nos impedem de conhecer efetivamente estes tipos de fenomenologia. A impossibilidade de, desde logo em algumas destas áreas, podermos decompor a realidade nos seus elementos mais básicos (atomismo lógico) para a partir daí realizar experiências18 implica naturalmente que as asserções a realizar neste plano sejam mais ou menos arbitrárias, sujeitas em maior ou menor grau ao erro e portanto este terreno seja muito fértil na produção de correntes mais ou menos genéricas (teorias) não fundadas epistemologicamente e assim se tornando pseudoteorias, ou se quisermos, sem rodeios, acabarem por se tornar em meras ideologias. Efetivamente, nestes domínios, particularmente nas designadas ciências sociais, os seus cultores nunca levam a sério a ideia do silêncio em face do que em definitivo se desconhece e ao invés, por puro desconhecimento epistemológico ou por outro tipo de razões,19 enveredam por um sem número de teorizações que epistemologicamente quase sempre não são mais do que meras
16 Lembremos o princípio da indeterminação de Heisenberg, sobre as suas implicações, PINHO de ALMEIDA, A Essência da Matéria e o Sentido, 1067, pp. 58-67. 17 Tenhamos em conta o debate nunca concluído e provavelmente eterno entre Bohr e Einstein sobre a natureza determinística ou probabilística do real, sobre tudo isto, ÁLVARO BALSAS, Realismo e Localidade em Mecânica Quântica, São Paulo e Campina Grande, Livraria da Física e EDUEPB, 2014. 18 FERNANDO CONDE MONTEIRO, «As finalidades das penas no âmbito do artigo 40.º do Código Penal», Estudos em Homenagem a Joaquim M. da Silva Cunha, Porto, Fundação da Universidade Portucalense,1999, p. 326. 19 Lembremos desde logo que as universidades são largamente o palco deste tipo de ciências e onde se exigem, neste âmbito, dos seus elementos participativos (docentes e investigadores) abundantes produções científicas como expressão de um conhecimento medido em larga medida num plano quantitativo e por índices, donde a prudência e a cautela neste palno são frequentemente confundidas com graves faltas deontológicas geradoras de em último caso despedimentos dos mesmos.
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hipóteses de trabalho (ideologização da ciência),20 quando muito apoiadas em alguns dados empíricos.21
1.4 A ética: problemas epistemológicos Reconhecida que seja que a interação humana na sua complexidade, antes de mais provinda da rede de relacionamentos humanos, que vai desde o simples inter-relacionamento entre indivíduos, entre estes e entes coletivos, destes últimos entre si e abrangendo uma multiplicidade de matérias do mais simples (relações de mera cortesia, por exemplo) até ao mais complexo (por exemplo, pense-se em questões como o ambiente, relações económicas entre estados e grupos de estados, etc.), necessita imperiosamente de regras de conduta,22 então, terá que haver algo que se ocupe disto mesmo, chamemos-lhe ética, axiologia, moral ou outra qualquer coisa.23 O problema aqui em causa será naturalmente o de definir critérios de validação de quaisquer proposições que neste âmbito se possam proferir. Critérios estes que terão que naturalmente ser fundados num plano de uma adequabilidade epistemologicamente significativa, o mesmo é dizer que se deverão traduzir em proposições dotadas de universalidade, validade objetiva, consistência lógica, só deste modo se expressando num plano cientificamente ancorado. Uma tarefa deste teor nunca foi efetivada. Desde o senso comum de Aristóteles até à cientificação levada a cabo por Kant, todo o esforço feito tem sido debalde. Pouco ou nada evoluímos e algumas das críticas humenianas neste domínio continuam de pé. Efetivamente o grande problema aqui a considerar é bem simples de enunciar. De facto, ao contrário das ciências empíricas em que as asserções mais ou menos gerais (teorias ou leis), para serem validadas têm de ser corroboradas pela observação ou experiência, que funciona como crivo das mesmas, portanto, num plano de exterioridade ao sujeito e assim funcionando independentemente da sua vontade, crenças ou convicções pessoais ou sociais, 20 Sobre isto, FERNANDO CONDE MONTEIRO, «Algumas reflexões epistemológicas sobre o direito penal», Manuel da Costa Andrade, Maria João Antunes, Susana Aires de Sousa (orgs.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 759-760. 21 De notar, contudo, que a heterogeneidade dos objetos em causa e os propósitos da investigação implicam uma diversidade de conteúdos epistemológicos, que poderão ir do puro determinismo à completa aleatoriedade. Portanto, o que acima se refere tem mais que ver com as teorizações globais dos fenómenos ou a complexidade de objetos mais restritos. 22 Neste sentido, idem, pp. 764-765. 23 Sobre a utilização do conceito de ética em sentido lato, FERNANDO CONDE MONTEIRO, «Ética e Direito Penal», Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho, Tomo II, Ano de 2013, Ética e Direito, Braga, Escola de Direito da Universidade do Minho, Departamento de Ciências Jurídicas Públicas, pp. 45-48.
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no plano da ética aqui perspetivada, nada disso tem lugar. Trata-se em oposição de manifestações de opiniões, crenças, convicções pessoais, de grupos, mais ou menos influenciadas por culturas específicas, subordinadas em maior ou menor medida também pela própria historicidade do ser humano. Se há algo de exterior à realidade humana ou um sentido universal e objetivo no seio humano, tal permanece por demonstrar (lembremos, por exemplo a metafísica). Por tudo isto é este um domínio marcado pela contingência, contradições, variabilidade de opiniões e poucas áreas de consenso.24
1.5 A ciência jurídico-penal: considerações epistemológicas: o estatuto epistemológico de referência A ciência jurídico-penal é antes de mais uma ciência (ou pretende ser) normativa. Tal significa que visa estabelecer normas, na base de princípios axiomáticos, de valores tendo como objeto o inter-relacionamento humano na sua complexidade própria, como acima deixámos dito. De qualquer maneira é esta igualmente uma função inerente à ética e à ciência jurídica (e independentemente do sentido que esta última expressão possa ter). Efetivamente o que antes demais particulariza a ciência jurídico-penal é o seu particular objeto, ou seja, os factos criminais ou crime. Não que este objeto não possa também ser subordinado, quer à ética, quer ao direito. É-o de facto. Em verdade, por via de se tratar de crimes é que a realidade jurídico-penal surge (princípio da especificidade). E tal tem lugar a partir de uma intencionalidade muito óbvia. O objetivo fundamental de uma intervenção jurídico-penal é o de assegurar o controlo do crime, procurando, em princípio, a sua irradicação.25 Este desiderato, por seu turno, não se reduz à mera normatividade de considerar os factos criminais como proibidos em geral e em certos casos exigir comportamentos para os evitar (criminalização da omissão). A ser assim estaríamos perante uma mera ética, jurídico-penal.26 Procura-se para além do mais uma intervenção empiricamente orientada, ou seja, visa-se ser eficaz no tratamento desta questão. No entanto, este seu lado empírico requere igualmente a intervenção da ética (jurídico-penal). O crime como 24 Cf. FERNANDO CONDE MONTEIRO, «Algumas reflexões epistemológicas sobre o direito penal», Manuel da Costa Andrade, Maria João Antunes, Susana Aires de Sousa (orgs.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, p.781. 25 De referir que, independentemente do caráter utópico desta asserção (assim, JEAN de MAILLARD, Crimes e Leis, (trad.), Lisboa, Instituto Piaget, 1995, pp. 7-8), não se pode obliterar toda a literatura sobre os efeitos positivos do crime, neste sentido, FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE, Criminologia, O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, pp. 259-268. 26 Neste sentido, FERNANDO CONDE MONTEIRO, «Ética e Direito Penal», Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho, Tomo II, Ano de 2013, Ética e Direito, Braga, Escola de Direito da Universidade do Minho, Departamento de Ciências Jurídicas Públicas, pp. 46-48.
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facto humano a ser objeto de sustação não pode nunca abandonar uma dimensão valorativa. Combater o crime não é o mesmo que combater uma praga de mosquitos. Deste modo, princípios de intervenção baseados numa ideia de necessidade e proporcionalidade são-lhe obviamente conaturais. Noutros termos, poderemos definir uma adequada intervenção jurídico-penal em termos de uma máxima eficácia com mínimos custos axiológicos, antes demais, e também, já agora, se possível, com mínimos custos económicos.27
1.6 Breves críticas e contextualização da pena de morte no plano das consequências jurídico-penais Uma conceção como a acima descrita levanta duas importantes questões. A um lado, fica por conhecer o âmbito normativo da intervenção jurídico-penal. Segundo que critérios e até aonde se poderá ir ou não ir na definição de condutas de natureza criminal a serem objeto de uma intervenção com vista ao seu controlo. A outro, a definição igualmente dos critérios de legitimação empírica e axiológica dos instrumentos de controlo do crime. Algo, que só por si justificaria este texto em toda a sua integralidade.28 Deste modo, iremos circunscrevermo-nos à questão da pena de morte, ainda que não abdicando do problema epistemológico em causa.
1.6.1 Reações criminais ao longo da história Se olharmos rapidamente para os grandes tipos de intervenções jurídico-penais o que encontramos? A mais usada até aos nossos dias foi inquestionavelmente a punitiva. Desde a simples censura até à pena de morte, passando por diferentes torturas, infâmias, perdas monetárias, de bens, restrições à capacidade jurídica, etc., tudo praticamente já teve lugar.29 Por outro lado, também com larga tradição ligada à fenomenologia criminal, encontramos processos negociais de múltipla natureza: entre a vítima e ofensor ou quem os represente, entre representantes da coletividade ou do estado e o ofensor ou seu representante. De resto, estes processos negociais apresentaram/apresentam conteúdos díspares entre si. Desde o simples pedido de desculpa entre vítima e ofensor até à negocia27 FERNANDO CONDE MONTEIRO, «Crime e Democracia: algumas Reflexões Epistemológicas sobre o Papel do Direito Penal na Defesa dos Valores do Estado de Direito Democrático e Social da Constituição da República Portuguesa», Política e Filosofia I: A Democracia em Questão = Politics and Philosophy I/Ed. Álvaro Balsas, SJ. In: Revista Portuguesa de Filosofia, Braga, Volume 72, 2016, pp. 1081-1086. 28 Cf., no entanto, idem, pp. 1084-1086. 29 Para uma reflexão, entre outras, também sobre esta diversidade, M.D. DUBBER; L. FARMER (Orgs.), Modern histories of crime and punishment. Critical perspectives on crime and law. Stanford: Stanford University Press, 2007.
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ção de penas entre representantes da coletividade e ofensor ou seu representante, passando por negociações de reparações de danos, frequência de atividades, etc., tudo também aqui tem sido usado e é usado. Questão essencial a considerar é a de saber se um mero processo negocial do qual resulte um simples pedido de desculpa ou uma reparação de danos em termos puramente civilísticos, por exemplo, ainda constitui algo jurídico-penal. Pelo menos perante uma perspetiva comparatística com outras ordens jurídicas, máxime o direito civil, a resposta deve ser negativa. Algo que também é corroborado quando olhamos para o domínio das resoluções meramente informais, ao nível familiar, de vizinhos, etc. Portanto processos negociais apenas poderão ter características penais se incidirem sobre aspetos punitivos e adquirirem aqui efetiva relevância (v.g., plea bargaining, processos que combinam a informalidade com sanções penais, etc.).30 Finalmente, fruto do positivismo inerente ao séc. XIX, encontramos ligado ao crime a aplicação de meios terapêuticos. O desenvolvimento destes deu origem a uma nova realidade no âmbito dos sistemas de direito penal positivos, a saber, o surgimento das medidas de segurança, aplicáveis a inimputáveis perigosos e subordinadas a critérios distintos das penas criminais. De resto, a consideração ainda deste novo plano implicou o surgimento da ideia de socialização implicando uma maior ou menor profusão de medidas de caráter terapêutico, educacional, formativo visando mais tratar do que punir o delinquente. É também questionável saber até que ponto este novo paradigma se pode assumir como algo com características efetivamente penais. A sua intrínseca natureza repousa na psiquiatria, psicologia, assistência social, nomeadamente, e não propriamente em mecanismos punitivos. No entanto, a sua pertença positivamente (e mesmo consensualmente) ao direito penal é simplesmente um dado de facto (e de direito).31
1.7 Conclusão O direito penal ao longo da sua história e até aos nossos dias configurou-se em termos positivísticos como uma realidade heterogénea abarcando nos seus instrumentos de intervenção não apenas penas (de resto, extremamente heterogéneas), mas igualmente meios socializadores, que vão de instrumentos 30 Sobre tudo isto, MARIA LEONOR ASSUNÇÃO, «A participação central-constitutiva da vítima no processo restaurativo – uma ameaça aos fundamentos do processo penal estadual?», Mário Monte (dir.), Maria Calheiros/Conde Monteiro/ Flávia Loureiro (coords.), Que Futuro para o Direito Processual Penal, Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, pp. 341-357. 31 Sobre isto, FERNANDO CONDE MONTEIRO, Direito Penal I, Braga, ELSA-UMINHO, pp. 2530; p. 38 -51, passim.
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puramente terapêuticos a simples apoios sociais, para além de processos negociais atinentes ao fenómeno punitivo.
III. A pena de morte: sentidos normativos e empírico-axiológicos 1. O problema axiológico-normativo em conexão com a intervenção empírico-axiológica: prolegómenos É sabido que o conteúdo normativo dos diferentes sistemas jurídicos existentes vai do mero ato irrelevante (v.g., rasgar uma vulgar folha de papel de alguém) até condutas que colocam em causa a humanidade no seu todo (v.g., genocídios). Uma tal heterogeneidade de comportamentos naturalmente que implica respostas empíricas também elas necessariamente dotadas de grande heterogeneidade (princípio da necessidade). De qualquer maneira, a consideração destes itens não se configura simples. Bem pelo contrário existem aqui problemas insolúveis. Efetivamente, e antes de mais, a questão em causa diz respeito a dois aspetos heterogéneos entre si, mas que necessariamente devem coexistir, a saber, as aludidas dimensões empíricas e axiológicas. Algo que nos remete inexoravelmente para os sentidos da intervenção jurídico-penal.
1.1 Sentidos da intervenção jurídico-penal 1.1.1 Questão prévia: um não sentido de intervenção Problema antes de mais neste âmbito diz respeito à questão de uma não intervenção jurídico-penal como forma de reação querida do sistema penal em face da criminalidade. Algo que se expressa, quer na existência de crimes particulares lato sensu,32 quer na discricionariedade jurídica ou de facto exercida pelas instâncias de controlo.33 Trata-se de uma atividade negativa em termos reativos, que pode naturalmente fundar-se em múltiplos planos assaz díspares: desde situações de quase adequação social (v.g., determinadas formas de jogo ilícito ou certas práticas de contrabando) até uma ação pura e simplesmente criminógena. Algo que, de qualquer maneira, merecia, uma reflexão mais detalhada neste contexto, mas que aqui não iremos asbordar. 32 Relativamente a estes, FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Texto Policopiado (coligido por Maria João Antunes), Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-9, pp. 89-92. 33 Sobre estas, FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE, Criminologia, O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 443 e segs.
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1.1.2 Um sentido ou vários sentidos das intervenções jurídico-penais Em face do quadro acentuadamente diferenciado de intervenções jurídico-penais, é possível obter sentidos comuns a estas mesmas intervenções? Noutros termos, o que haverá de comum entre um simples acordo entre ofensor e ofendido em face de um crime nem sequer denunciado, uma aplicação de medida de segurança a um inimputável perigoso ou a condenação em pena de prisão?
2. O problema conflitual e as suas possíveis respostas 2.1 Os participantes no conflito Uma perspetiva de olhar a questão criminal pode ser obtida através da ideia de conflitualidade. Assim, pode-se partir da ideia básica que modernamente o direito penal procura dar uma resposta ao conflito gerado pela prática de uma infração penal (pressupondo que se trate de um direito penal do facto). Esta conflitualidade terá dois polos extremos. A um lado, o delinquente, a outro a coletividade. No meio, a maior parte das vezes, teremos a vítima. Nos casos em que a vítima pode desencadear ou colocar fim à conflitualidade, dir-se-á que o coletivo terá uma intervenção secundária, de caráter complementar. Nas outras situações, terá um papel dominante.
2.2 O interesse coletivo e a sua repercussão nas reações criminais Em se tratando da defesa de interesses coletivos em primeira ordem, usualmente as consequências jurídico-penais tenderão a refletir tal significado. Tratar-se-á assim de penas mais ou menos graves em função antes de mais da gravidade dos ilícitos em causa (princípio da proporcionalidade). Em regra, a negociação deverá estar aí excluída.34 Os meios terapêuticos deverão assumir um caráter secundário, a intervir em casos de manifesta inaptidão das penas ou a coexistir com estas em termos complementares.35
3. Os sentidos das reações punitivas: aspetos empíricos Se o interesse da coletividade é o interesse fundamental em que assentam as reações criminais, então, o sentido último das mesmas há de ser a mesma coletividade, como é óbvio. Sendo assim como é que este sentido se há de exprimir? 34 Para uma crítica desta, FERNANDO CONDE MONTEIRO, Direito Penal I, Braga, ELSA-UMINHO, pp. 37-38. 35 Sobre estes, idem, pp. 25-30.
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Naturalmente que se trata da defesa da própria sociedade. Punir só poderá deste modo ter o significado último de defender a coletividade. Assim sendo, como é que num direito penal do facto se pode defender o social, quando o crime já se consumou? (paradoxo da defesa frustrada).36 Obviamente que a resposta a dar neste âmbito só poderá ser perspetivada num plano prospetivo. Se quisermos dar alguma utilidade às penas, estas como mal que são só poderão ter o sentido de prevenir de futuro a prática de crimes, a partir do exemplo acontecido (pena exemplar).37 Deste modo, a punição do delinquente é naturalmente um exemplo para os demais membros da coletividade a não ser seguido, porque o mal da pena ultrapassa ou deve ultrapassar o mal do crime.38 Mal em causa que não se circunscreve à própria pena em si, mas igualmente à sua maior ou menor repercussão social (estigmatização pela sociedade).39 Nestes termos, torna-se virtualmente impossível negar um efeito de prevenção geral negativo daqui derivado, senão como realidade psicológica mais ou menos sentida por todos, ao menos como pretensão da coletividade incorporada no sistema jurídico-penal. Que igualmente se veja este processo como uma reafirmação da consistência do direito penal, apesar da violação dos seus preceitos, parece ser algo igualmente afirmável, assim como a devolução da paz jurídica colocada em crise com o crime, menos a reafirmação da continuidade da validade das normas (valores) jurídico-penais.40 Se os sentidos de caráter geral parecem óbvios neste domínio, também não poderemos obliterar o facto, igualmente óbvio, de que as penas se aplicam a um concreto delinquente, ator de um tipo legal de crime. Este não pode ser apenas considerado como um simples instrumento de interesses gerais. 36 Efetivamente a reação criminal é a maior parte das vezes algo que sucede em termos de resposta a um comportamento que quebrou as resistências do sistema de proteção social (um remédio para uma doença consumada). 37 De notar que muitas vezes se usa esta expressão com um sentido pejorativo, em termos de justificar a law and order, o que não é o nosso caso. 38 Lembremos antes de mais BECCARIA, De Los Delitos y De Las Penas, Introducción, notas y traducción de Tomas y Valiente, Aguilar, p. 112; também FEUERBACH, Lehrbuch der gemein in Deutschland gültig Peinlichen Rechts, 1847, §13 (sobre este último, HAFFKE, Tiefenphychologie und Generalprävention Eine Srtafrechtstheoretische Untersuchung, 1976, pp. 62 e segs.; TAIPA de CARVALHO, «Condicionalidade sócio-cultural do Direito Penal», BFDUC, vol. LVIII, pp. 1088-1089); por último, pense-se em BENTHAM, Principles of Morals and Legislation, Harrison, 1948, p. 189 (Sobre este, LOUISE WESTMARLAND, Classicism, in The Sage Dictionary of Criminology, Compiled and edited by Eugene Mclaughlin and John Muncie, London, Thousand Oaks, New Delhi, Sage Publications, 2001). 39 Sobre isto no âmbito do interacionismo, FIGUEIREDO DIAS/COSTA ANDRADE, Criminologia, O homem delinquente e a sociedade criminógena, Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 342 e segs. 40 Sobre a prevenção geral positiva, FERNANDO CONDE MONTEIRO, Direito Penal I, Braga, ELSA-UMINHO, pp. 33-35.
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Constitui um ente a ser objeto de considerações empíricas. Tratar-se-á deste modo de pretender que de futuro não cometa mais crimes. E porque se trata da aplicação de um mal, a ideia antes demais aqui presente será naturalmente a de o inibir ou pretender ao menos esta mesma inibição (prevenção especial de intimidação). Se a simples intimidação pretendida não for considerada suficiente ou for considerada excessiva pelos riscos que comporta, fica aberta a porta à ideia da socialização ou não dessocialização. Deste modo, procurar-se-á ou evitar a aplicação de consequências jurídico-penais geradoras de riscos de reincidência (socialização em sentido negativo) ou minorar estes riscos através de medidas a este fim adstritas (socialização em sentido positivo).41
4. Os sentidos das reações punitivas: aspetos axiológicos A história do direito penal e mesmo o direito comparado revelam-nos que o mal das penas praticamente nunca teve limites. Desde a pena de morte até a uma simples admoestação, houve, há toda uma panóplia de reações criminais extremamente severas, como já deixámos dito. Este estado de coisas foi colocado em crise na europa ocidental com o movimento iluminista de cariz democrático, como também já referimos. A suavização do direito penal entretanto operada introduziu limitações às espécies e duração abstrata das penas. Por outro lado, igualmente se introduziram alterações na aplicação concreta das penas, evitando aplicar-se penas demasiado severas, máxime a de prisão, e substituindo-as por outras mais suaves, ao mesmo tempo que se colocou a culpa como axioma fundamental na concreta aplicação de qualquer pena (nulla poena sine culpa).
5. A pena de morte: aspetos empíricos 5.1 O sentido político-criminal geral 5.1.1 Intimidação geral Em geral os sistemas jurídico-penais assentam em escalas punitivas que variam em função da importância atribuída aos valores protegidos e ao modo de os colocar em risco ou postergar. Por outro lado, não existem critérios dotados de suficiente cientificidade que possam determinar as espécies e duração em ge-ral das consequências jurídico-penais. Este é patentemente um campo de grande discricionariedade por parte de qualquer legislador. Os limites aqui a ter lugar podem apenas ter como proveniência tomadas de posição axiológicas vertidas 41 Sobre tudo isto, idem, pp. 28 – 31.
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em textos jurídicos (constituições, convenções internacionais, nomeadamente). Portanto nada há na natureza das coisas que impeça qualquer legislador de punir com a pena de morte crimes que considere especialmente desvaliosos (v.g., serial killers, genocídio, homicídios especialmente graves, etc.). Se as necessidades de intimidação geral podem aqui ser contestadas, igualmente o podem ser em todos os casos em que as penas têm lugar. A crítica de que mais do que a gravidade da punição o que conta é a sua probabilidade de execução vale para tudo, não apenas em relação à pena de morte ou às consequências mais graves. Se, por outro lado, com consequências menos graves poderemos obter os mesmos resultados neste âmbito é algo sem uma concreta resposta epistemologicamente significativa. O legislador move-se aqui com inteira discricionariedade.42
5.1.2 Prevenção geral positiva O que acima se referiu relativamente à prevenção geral negativa pode igualmente ser usado sobre as correntes de prevenção geral positiva. Quer a reafirmação contrafáctica das normas ou valores violados, da consistência do sistema jurídico-penal ou por último a invocação da paz jurídica são naturalmente compatíveis com a presença da pena de morte, assim como com a sua ausência.43 Trata-se, portanto, de aspetos idiossincráticos e como tais derivados de condicionantes históricos e culturais.
5.1.3 Prevenção especial O único dado óbvio e inquestionável da pena de morte é o facto de com ela cessar qualquer fenómeno de reincidência por parte do condenado. Problema que obviamente também se coloca é o de saber se tal desiderato não será possível de realizar de modos menos drásticos. Algo que pode colocar-se em termos abstratos, quer em termos concretos. No primeiro plano, não será difícil excogitar várias formas de o fazer: operações cirúrgicas, isolamento celular, etc. No segundo plano, mais hipóteses poderão naturalmente ter lugar (v.g., o delinquente ficou tetraplégico impossibilitando-o de constitui qualquer crime, por exemplo, sexual, por si ou por intermédio de outrem). Portanto, neste plano podermos perfeitamente afirmar que em geral a pena de morte afigura-se excessiva, porque desnecessária.
42 Sobre este fenómeno, FERNANDO CONDE MONTEIRO, «A democracia atual: reflexões sobre a restrição máxima aos direitos e interesses jurídicos como forma de assegurar a sua máxima proteção no quadro jurídico português», Pensar a Democracia, GUILHERME GODOY, MARIA JOÃO INÁCIO, STEVEN S. GOUVEIA (eds. e orgs.), Charleston, USA, 2017, pp. 25-33. 43 Relativamente à prevenção geral positiva, supra n. 39.
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6. Os problemas axiológicos Se o problema empírico da necessidade de o direito penal ir ao encontro da coletividade (prevenção geral) não tem uma resposta definitiva no plano epistemológico, então, tal prejudica necessariamente o problema axiológico. A afirmação sem mais dos custos humanos da pena de morte pode colidir com a ideia de uma defesa da ordem jurídica atrás referida. Outra questão em causa pode-se prender com a justeza desta reação a partir da ideia de liberdade ou não do ser humano. Como esta nunca foi provada, permanecendo assim como uma crença,44 pode-se por esta via rejeitar igualmente a perda de vida do condenado, por este a não merecer. Algo que implicaria simplesmente o fim de todas as reações penais e a sua substituição por acordos entre ofensor e vítima ou/ e a introdução de modelos socializadores de pendor mais ou menos terapêutico. Um modelo, de resto, rejeitado em geral, por via dos múltiplos e graves inconvenientes que acarreta.45
7. O problema da prova e das condenações por erro Desde há muito que se tem criticado a pena de morte pelo facto de o erro poder ser responsável pela condenação de um inocente e deste modo nunca se podendo emendar o mesmo, pela morte do condenado, ao contrário das hipóteses em que tal não tem lugar. Sobre isto, deve-se afirmar que há muitas situações de erro na aplicação das normas jurídico-penais com danos irreversíveis para os respetivos condenados e que continuarão a ter lugar no futuro. Por outro lado, enquanto não executada, sempre haverá possibilidade de eventualmente evitar a sua concretização. De resto, há também mortes derivadas da execução de outro tipo de penas (v.g., prisão), como consequência destas.
44 Para um enquadramento epistemológico deste tipo de questões, FERNANDO CONDE MONTEIRO, «Reflexões epistemológicas sobre a liberdade enquanto possível pressuposto do agir humano e sua (ir) relevância para a construção do jurídico», Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho, Tomo I, 2012 – Responsabilidade e Cidadania, Braga, Escola de Direito da Universidade do Minho, Departamento de Ciências Jurídicas Públicas, 2012, pp. 46-68. 45 Sobre isto, FERNANDO CONDE MONTEIRO, Direito Penal I, Braga, ELSA-UMINHO, pp.2528.
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IV. Conclusão A pena de morte no âmbito epistemológico revela-se uma questão sem solução. Pode-se adotá-la ou rejeitá-la. É um espaço de liberdade do legislador e como tal dele em primeira e última instância depende e sem que tal oblitere a consideração das condições socioculturais que necessariamente condicionam qualquer decisão neste domínio.
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AS FINALIDADES DAS PENAS, A CRIMINALIDADE CONTEMPORÂNEA E A ALEGADA NECESSIDADE DE AJUSTAMENTO DA REAÇÃO CRIMINAL: O CASO DA PRISÃO PERPÉTUA The purpose of penalties, contemporary criminality and the alleged need to adjust the criminal reaction: the case of life imprisonment
Flávia Noversa Loureiro1
Resumo: Num tempo em que se volta a questionar o agravamento das reações criminais, não pode deixar de interrogar-nos o facto de um número muito grande de Estados que recusa a pena de morte continuar a aceitar a pena de prisão perpétua. A discussão do problema há de passar necessariamente pela matéria das finalidades das penas, sobretudo face à desafiante criminalidade contemporânea. Palavras-chave: Pena de morte; Prisão perpétua; Finalidades das penas; Criminalidade contemporânea. 1 Professora Auxiliar da Escola de Direito da Universidade do Minho. Investigadora do JusGov.
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As finalidades das penas, a criminalidade contemporânea e a alegada necessidade de ajustamento da reação criminal: o caso da prisão perpétua Flávia Noversa Loureiro
Abstract: At a time when the question of the aggravation of criminal reactions is again being questioned, one can not help questioning the fact that a very large number of states refusing the death penalty continue to accept life imprisonment. The discussion of the problem must necessarily pass through the matter of the purposes of penalties, especially in the face of defiant contemporary criminality. Keywords: Death penalty; life imprisonment; Purpose of penalties; Contemporary criminality.
I. Introdução Quando em 1981 (!!) se discutia em França a abolição da pena de morte, Michel Foucault salientava “[l]a véritable ligne de partage, parmi les systèmes pénaux, ne passe pas entre ceux incluant la peine de mort et les autres; elle passe entre ceux qui admettent les peines définitives et ceux qui les excluent”2. Efetivamente, muito embora seja comum determo-nos a discutir a atrocidade dos sistemas que prevêem ainda a pena de morte – quer porque esta constitua uma pena absoluta e definitiva e, nessa medida, impossível de compaginar com a possibilidade de erro e eventual condenação de um inocente, numa visão operativa e eficientista, quer porque, de fundo, não possa entender-se legitimado o poder punitivo de um Estado (ou outra forma de organização política) que entende ser-lhe possível dispor da vida de um dos seus membros –, a verdade é que também a nós nos parece que essa discussão é, hoje, (felizmente) menor e se deslocou, na verdade, para um degrau abaixo na escala das «penas inaceitáveis». Não só porque a pena de morte tem atualmente uma existência muito mais reduzida (mas mesmo assim incompreensível), como sobretudo porque muitos países que aboliram a pena de morte ao longo da sua história, em momento mais recuado ou mais recente, continuaram, todavia, a manter a pena de prisão perpétua. Veja-se que, ao contrário do que sucede com a pena de morte, a prisão perpétua existe num conjunto muito alargado de países, sendo, na verdade, reduzido o número daqueles que a aboliram tout court, em todas as hipóteses e
2 Foucault, Michel, “Contre les peines de substitution”, Liberátion, 18 de setembro de 1891: http:// www.liberation.fr/societe/2011/09/24/contre-les-peines-de-substitution_763320
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situações3. Anote-se, em particular, que dentro do espaço europeu, a generalidade dos Estados mantém a pena prisão perpétua4, o que não pode deixar de causar-nos interrogações e mesmo perplexidades, muito embora em quase todos eles – deve dizer-se em abono da verdade – uma tal pena possa ser comutada ou conheça possibilidades de liberdade condicional ao fim de um determinado número de anos. Por que razão, na verdade, naquela que se considera a pátria dos direitos humanos5, continua a existir tanta necessidade de punir alguém com uma pena que, por definição, afasta o cidadão da comunidade a que pertence para sempre ou que, mesmo nos casos em que admite comutação ou libertação, impõe-lhe o cumprimento de várias dezenas de anos de encarceramento? Que motivos podem existir, afinal, para que se haja abolido a pena de morte em tantos Estados e se tenha, internacionalmente, uma atitude tão condenatória dela6, mas se aceite de modo quase pacífico a existência de penas para a vida?
II. As finalidades das penas e a prisão perpétua Naturalmente, a resposta a tais perguntas tem de passar, necessariamente, por aquela que é a problemática central de todo o direito penal, em qualquer tempo ou lugar: a questão dos fins das penas. De facto, discutir as finalidades 3 Havendo sempre alguma discussão em torno deste levantamento, não poderá deixar de sublinhar-se, todavia, que uma grande parte dos países que aboliram a prisão perpétua sofreram grande influência cultural, política e jurídica por parte de Portugal e Espanha (sobretudo através da colonização). Veja-se que, além de Portugal (sobre o caso específico do Reino de Espanha falaremos ao longo deste texto), não conhecem a possibilidade de prisão para a vida – fora do continente europeu – a Bolívia, o Brasil, Cabo Verde, a Colômbia, Costa Rica, a República Dominicana, o Equador, El Salvador, a Guatemala, as Honduras, Macau, o México, Moçambique, a Nicarágua, o Panamá, o Paraguai, a República do Congo, São Tomé e Príncipe, o Suriname, Timor-Leste, Uruguai e Venezuela. 4 Dentro do continente europeu, além de Portugal, apenas Andorra, a Bósnia Herzegovina, a Croácia, o Kosovo, Montenegro, a Sérvia e a Cidade do Vaticano aboliram completamente a pena de prisão perpétua. A Noruega, por seu turno, muito embora tenha abolido a pena de prisão perpétua, mantém outras penas indefinidas ou sem termo previsto. 5 Afirmação que, em boa verdade, suscita cada vez mais dúvidas, face às opções que têm vindo a ser tomadas nos últimos anos no continente europeu, quer a nível estadual, quer mesmo a nível da União Europeia. Não especificamente sobre a prisão perpétua, mas dando conta deste fenómeno de endurecimento da reação criminal e dos seus perigos, ver o que dissemos em Loureiro, Flávia Noversa, “A (i)mutabilidade do paradigma processual penal respeitante aos direitos fundamentais em pleno século XXI”, Que Futuro para o Direito Prcessual Penal? Simpósio em Homenagem a jorge de Figueiredo Dias por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 269 e ss., e “A segurança e o direito penal: os modelos de intervenção penal entre a mudança e a rutura’’, Estudos em Homenagem ao Professor Heinrich Ewald Hörster, Coimbra: Almedina, 2012, p. 1241 e ss. 6 No continente europeu, apenas a Bielorrússia mantém ainda a pena de morte.
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das sanções criminais, compreender qual é o objetivo que se pretende cumprir no momento em que se aplica a alguém uma determinada pena, vai muito para além de uma qualquer dimensão funcionalista ou utilitarista, e implica, antes, todo o debate em torno da legitimação da intervenção penal do Estado. Saber para que serve o direito penal, que finalidades cumpre, permite-nos compreender o que é e qual a razão por que existe. Ora, mais do que reproduzir aqui a perene discussão em torno das teorias absolutas ou relativas dos fins das penas, entre retribucionistas e preventivistas7, interessa-nos sobretudo refletir sobre que argumentos podem existir, de um lado ou de outro, para continuar a sustentar a existência da prisão perpétua, ao ponto de assistirmos mesmo, hoje, a um recrudescimento desta pena e da sua aceitação junto das nossas comunidades. De facto, e esse é um outro aspeto a que pretendemos atender em particular, a prisão perpétua não só não tem sido abandonada como tem mesmo voltado à discussão social e jurídico-penal, sobretudo face a alguma criminalidade que ameaça hoje as sociedades de todo o mundo. Veja-se, para não irmos mais longe, o que sucedeu na vizinha Espanha, que, depois de ter abandonado a prisão perpétua com o Código Penal de 1928 (sanção que se vinha aplicando com frequência desde 1822, sobretudo como substituição da pena de morte), a retomou muito recentemente, através da Ley de Seguridad Ciudadana de 20158, sob a forma de prisão permanente com possi-
7 A este propósito, cf., por todos, Dias, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I: Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 43 e ss. 8 Na verdade, a prisión permanente revisable foi introduzida no Código Penal espanhol através da Ley Orgánica 1/2015, de 30 de março, que modificou o art. 33.º daquele diploma, prevendo agora a possibilidade de aplicação desta pena na alínea a) do respetivo n.º 2. Esta alteração, contudo, fez parte de um pacote legislativo mais vasto, que ficaria conhecido pelo nome da Ley Orgánica 4/2015, também de 30 de março, Ley de protección de la seguridad ciudadana, que entrou em vigor em 1 de julho de 2015, substituindo a anterior Ley Orgánica sobre protección de la seguridad ciudadana, de 1992.
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bilidade de revisão9. Mas pense-se igualmente, para não julgarmos que este é um caso isolado, no que se passou na Noruega em 2011, após o atentado de Anders Breivik em Oslo e na ilha de Utoya, em que se iniciou uma discussão pública (um pouco por todo o mundo) em torno da pouca severidade do sistema penal norueguês e da sua inadequação para lidar com comportamentos criminosos que exigiriam penas mais duras, nomeadamente a prisão perpétua ou a pena de 9 A possibilidade de revisão, que pretende justificar o nome do instituto e, bem assim, o seu afastamento enquanto pena definitiva, está prevista no art. 92.º do Código Penal espanhol: “1. El tribunal acordará la suspensión de la ejecución de la pena de prisión permanente revisable cuando se cumplan los siguientes requisitos: a) Que el penado haya cumplido veinticinco años de su condena, sin perjuicio de lo dispuesto en el artículo 78 bis para los casos regulados en el mismo. b) Que se encuentre clasificado en tercer grado. c) Que el tribunal, a la vista de la personalidad del penado, sus antecedentes, las circunstancias del delito cometido, la relevancia de los bienes jurídicos que podrían verse afectados por una reiteración en el delito, su conducta durante el cumplimiento de la pena, sus circunstancias familiares y sociales, y los efectos que quepa esperar de la propia suspensión de la ejecución y del cumplimiento de las medidas que fueren impuestas, pueda fundar, previa valoración de los informes de evolución remitidos por el centro penitenciario y por aquellos especialistas que el propio tribunal determine, la existencia de un pronóstico favorable de reinserción social. En el caso de que el penado lo hubiera sido por varios delitos, el examen de los requisitos a que se refiere la letra c) se realizará valorando en su conjunto todos los delitos cometidos. El tribunal resolverá sobre la suspensión de la pena de prisión permanente revisable tras un procedimiento oral contradictorio en el que intervendrán el Ministerio Fiscal y el penado, asistido por su abogado. 2. Si se tratase de delitos referentes a organizaciones y grupos terroristas y delitos de terrorismo del Capítulo VII del Título XXII del Libro II de este Código, será además necesario que el penado muestre signos inequívocos de haber abandonado los fines y los medios de la actividad terrorista y haya colaborado activamente con las autoridades, bien para impedir la producción de otros delitos por parte de la organización o grupo terrorista, bien para atenuar los efectos de su delito, bien para la identificación, captura y procesamiento de responsables de delitos terroristas, para obtener pruebas o para impedir la actuación o el desarrollo de las organizaciones o asociaciones a las que haya pertenecido o con las que haya colaborado, lo que podrá acreditarse mediante una declaración expresa de repudio de sus actividades delictivas y de abandono de la violencia y una petición expresa de perdón a las víctimas de su delito, así como por los informes técnicos que acrediten que el preso está realmente desvinculado de la organización terrorista y del entorno y actividades de asociaciones y colectivos ilegales que la rodean y su colaboración con las autoridades. 3. La suspensión de la ejecución tendrá una duración de cinco a diez años. El plazo de suspensión y libertad condicional se computará desde la fecha de puesta en libertad del penado. Son aplicables las normas contenidas en el párrafo segundo del apartado 1 del artículo 80 y en los artículos 83, 86, 87 y 91. El juez o tribunal, a la vista de la posible modificación de las circunstancias valoradas, podrá modificar la decisión que anteriormente hubiera adoptado conforme al artículo 83, y acordar la imposición de nuevas prohibiciones, deberes o prestaciones, la modificación de las que ya hubieran sido acordadas, o el alzamiento de las mismas. Asimismo, el juez de vigilancia penitenciaria revocará la suspensión de la ejecución del resto de la pena y la libertad condicional concedida cuando se ponga de manifiesto un cambio de las circunstancias que hubieran dado lugar a la suspensión que no permita mantener ya el pronóstico de falta de peligrosidad en que se fundaba la decisión adoptada. 4. Extinguida la parte de la condena a que se refiere la letra a) del apartado 1 de este artículo o, en su caso, en el artículo 78 bis, el tribunal deberá verificar, al menos cada dos años, el cumplimiento del resto de requisitos de la libertad condicional. El tribunal resolverá también las peticiones de concesión de la libertad condicional del penado, pero podrá fijar un plazo de hasta un año dentro del cual, tras haber sido rechazada una petición, no se dará curso a sus nuevas solicitudes”.
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morte. Ou ainda, para não escapar àquele que é porventura o caso mais discutido, o que sucede com o Tribunal Penal Internacional, a cujo Estatuto Portugal aderiu10. Em primeiro lugar, portanto, parece-nos que devem ser ponderadas as razões pelas quais os mesmos países que se horrorizam hoje (muito vezes apenas com cariz fictício) perante a pena de morte continuam a aceitar de modo inquestionável a prisão perpétua (para não entrarmos na discussão de outras penas particularmente graves, longas ou de duração indefinida)11. E essa é uma questão, na verdade, que nos reconduz à afirmação inicial de Michel Fou10 Como bem se sabe, uma das maiores discussões que o Estatuto de Roma suscitou e continua a suscitar foi exatamente a de se prever aí como consequência jurídico-penal para os factos descritos a pena de prisão perpétua – de acordo com o fixado no art. 77.º: “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 110.º, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5.º do presente Estatuto uma das seguintes penas: a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau da ilicitude do facto e as condições pessoais do condenado o justificarem. 2 - Além da pena de prisão, o Tribunal poderá aplicar: a) Uma multa, de acordo com os critérios previstos no Regulamento Processual; b) A perda de produtos, bens e haveres provenientes, directa ou indirectamente, do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa fé”. Cf., a este propósito, de entre as muitas referências que poderiam ser feitas, Moreira, Vital, "O Tribunal Penal Internacional e a Constituição", O Tribunal Penal Internacional e a Ordem Jurídica Portuguesa, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 13 e ss.; Rodrigues, Anabela Miranda, “O Tribunal Penal Internacional e a Prisão Perpétua”, Direito e Justiça, 15, 2001, p. 11 e ss.; Caeiro, Pedro, “Alguns aspectos do Estatuto de Roma e os reflexos da sua ratificação na proibição constitucional de extraditar em caso de prisão perpétua”, Direito e Cidadania, V, 18, 2003, p. 41 e ss., e "O procedimento de entrega previsto no Estatuto de Roma e a sua incorporação no Direito Português’’, O Tribunal Penal Internacional e a Ordem Jurídica Portuguesa, Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p. 69 e ss. 11 Não será irrelevante notar que a própria adesão ao Conselho da Europa e à respetiva Convenção Europeia dos Direitos do Homem só pode fazer-se se o Estado em causa não previr no seu ordenamento jurídico a pena de morte. Já não é assim, todavia, em relação à prisão perpétua, ainda existente e em aplicação na maior parte dos Estados europeus. Aliás, a posição do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a propósito da prisão perpétua tem sido tudo menos pacífica, dando mesmo azo a que, por exemplo, Espanha a tenha utilizado como argumento para adotar a referida prisión permanente revisable. Veja-se, a este propósito, o que é dito no preâmbulo da Ley Orgánica 1/2015: “[l]a pena de prisión permanente revisable no constituye, por ello, una suerte de «pena definitiva» en la que el Estado se desentiende del penado. Al contrario, se trata de una institución que compatibiliza la existencia de una respuesta penal ajustada a la gravedad de la culpabilidad, con la finalidad de reeducación a la que debe ser orientada la ejecución de las penas de prisión. Se trata, en realidad, de un modelo extendido en el Derecho comparado europeo que el Tribunal Europeo de Derechos Humanos ha considerado ajustado a la Convención Europea de Derechos Humanos, pues ha declarado que cuando la ley nacional ofrece la posibilidad de revisión de la condena de duración indeterminada con vistas a su conmutación, remisión, terminación o libertad condicional del penado, esto es suficiente para dar satisfacción al artículo 3 del Convenio (cfr. SSTEDH 12-2-2008, caso Kafkaris vs. Chipre; 3-11-2009, caso Meixner vs. Alemania; 13-11-2014, caso Bodein vs. Francia; 3-2-2015, caso Hutchinson vs. Reino Unido). El Consejo de Estado ha tenido también oportunidad de pronunciarse sobre la constitucionalidad de las penas de duración indeterminada –pero revisables–, al informar con relación a la ratificación por España del Estatuto de la Corte Penal Internacional, en el que está prevista la posible imposición de una pena de prisión permanente”.
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cault, pois que, segundo cremos, entronca aí parte da incompreensão que rodeia o tema. De facto, os modelos penais não devem contrapor-se conforme aceitem ou não a pena de morte (ou a de prisão perpétua, já agora), mas de acordo com aquela que seja a sua compreensão do homem, e, nessa exata medida, do homem que comete crimes, e das funções que a pena que se lhe aplique deva cumprir. Ou seja, um Estado de Direito democrático, assente na dignidade da pessoa humana, no reconhecimento a essa pessoa, enquanto tal, de um conjunto de direitos, liberdades e garantias, não pode senão entender que o direito penal e as suas sanções específicas cumprem uma função muito determinada, qual seja a de zelar pela manutenção da segurança comunitária necessária para permitir o desenvolvimento tão pleno quanto possível das potencialidades de todos os seus cidadãos. Nesse sentido, a intervenção do Estado enquanto detentor do ius puniendi – detentor secundário, por delegação, se se quiser, pois que o poder originário reside sempre nos seres humanos que o compõem – não pode nunca esquecer os seus dois limites fundamentais12: por um lado, a noção de que uma tal ingerência só é admissível para proteger os bens essenciais eleitos pela comunidade, pois que apenas esses podem legitimar as restrições individuais a impor; por outro, a compreensão de que as sanções a aplicar não podem nunca anular o ser humano que lhes deu corpo, não só porque isso implicaria uma negação absoluta daqueles bens comunitários, como porque redundaria na invalidação do contrato social que aquele individuo concreto estabeleceu com o Estado e através do qual este adquiriu o seu direito de punir13. Nesta medida, não só a pena de morte tem de ser totalmente recusada, porque rejeita a dignidade do ser humano e torna a sua própria existência relativizável em função de outros bens (necessariamente inferiores ou, no máximo, iguais àquele que se põe em causa), como a própria prisão perpétua há de ser enjeitada, quer porque nega em absoluto o valor que deu causa ao referido con12 Na verdade, falar do direito penal é, necessariamente, falar da legitimação do Estado para intervir, de forma gravíssima, sobre a vida dos seus cidadãos. Nessa exata medida, como bem se diz, a grande tarefa deste ramo do direito é a de limitar aquele poder de intervenção, fazendo-o funcionar apenas quando estejamos perante bens jurídicos essenciais da comunidade, cuja proteção seja necessária. Como bem nos diz Dias, Jorge de Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I: Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p.78, “[o] direito penal e o seu exercício pelo Estado fundamentam-se na necessidade estatal (hoc sensu, contratualista social) de subtrair à disponibilidade (e à “autonomia”) de cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensável ao funcionamento, tanto quanto possível sem entraves, da sociedade, à preservação dos seus bens jurídicos essenciais; e a permitir por aqui, em último termo, a realização mais livre possível da personalidade de cada um enquanto indivíduo e enquanto membro da comunidade”. 13 Seja esta ou outra a compreensão do instituto que está na base da atribuição ao Estado do poder de punir, a verdade é que para todos aqueles que o vejam como uma forma mediatizada de exercício de um direito, que, de forma primeira e intrínseca, pertence aos indivíduos, não pode senão entender-se que uma tal entrega de poder não pode nunca conduzir à sua própria destruição.
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trato social (a liberdade do indivíduo), quer porque desacredita do ser humano, na medida em que aceita que ele não volte a viver em comunidade, quer porque, nessa exata medida, aniquila a razão pela qual os indivíduos de uma comunidade concederam essa faculdade ao Estado, ao assumir que este não consegue garantir a vida social equilibrada dos membros daquela sociedade. De um ponto de vista jurídico-dogmático, agora, que necessariamente traduz esta axiologia que vimos de tentar explicar, apenas teorias absolutas, ligadas ainda às doutrinas da retribuição e da expiação, podem sustentar a aplicação de uma pena de prisão perpétua. Se nos centrarmos – como faz o nosso ordenamento jurídico14 – em finalidades de cariz preventivo, seja geral, seja especial, não se nos afigura que a pena de prisão perpétua possa jamais estar legitimada, seja porque a proteção de uns bens jurídicos não pode chegar ao ponto de aniquilar completamente outros, seja porque, de uma perspetiva individual, assenta na premissa de que há delinquentes incorrigíveis, em relação aos quais não há reinserção possível. O que, naturalmente, é o oposto exato daquilo que se pretende com uma conceção preventivista.
III. A criminalidade contemporânea e a necessidade de reajustamento da reação criminal Mais preocupante ainda, todavia, como começámos por dizer, do que o facto de diversos Estados não terem ainda abolido a pena de prisão perpétua – sobretudo quando estamos a falar da generalidade dos países europeus, vinculados a um acervo principiológico e a um conjunto de tratados e convenções internacionais que pareceriam impor uma outra construção para o direito penal – é o facto de estarmos a assistir, nos anos mais recentes, a um recrudescimento da discussão em redor da defesa da pena de prisão perpétua, sobretudo para fazer face a (supostamente) novas e gravíssimas formas de criminalidade. De facto, se cada momento histórico tem uma criminalidade própria que o carateriza, que ajuda a compreender as suas qualidades idiossincráticas e a localizá-lo, até, num período histórico mais largo, o nosso tempo será seguramente conhecido por aquele em que se instalou um discurso do risco, em que se vulgarizou o atentado terrorista, em que se normalizou, por força disso – um pouco por todo o mundo, mas, em especial, no Velho Continente, onde era menos habitual – um discurso eivado de necessidades de endurecimento da reação criminal, de «luta» aguerrida contra a criminalidade organizada, sobretudo de matriz 14 Desde logo, no art. 40.º do Código Penal, em conformidade com os nossos preceitos constitucionais (nomeadamente o art. 18.º). Mas não só. Vejam-se, igualmente, os arts. 70.º e 71.º do mesmo CP, bem como os arts. 2.º, 3.º e 4.º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade.
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jihadista, de restrição de direitos fundamentais como único modo possível – e inquestionável – de garantir a segurança dos cidadãos15. Dentro deste quadro circunstancial – verdadeiro ou exacerbado – não tardou, naturalmente, a que as atenções se virassem para as consequências jurídico-penais. A insuficiência das penas existentes, a premência de agravar a reação criminal, a necessidade de detetar, impedir e afastar estes indivíduos criminosos da comunidade, se necessário através da total inocuização, tornaram-se rapidamente em frases comuns, a justificar por parte dos decisores políticos – incapazes de responder de modo adequado a esta nova realidade – o recurso a mais e mais duro direito penal. Os exemplos são de todos os dias e dispensam maior enunciação. Repercutem-se no direito penal e no direito processual penal por via de uma política criminal reativa e pouco ponderada, conducente ao tratamento do criminoso como o «outro», sempre tendente à diminuição de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos como única forma possível de evitar este tipo de criminalidade e os seus efeitos nefastos e disseminados. Na perspetiva da pena, que agora nos ocupa, rapidamente se apodaram as penas existentes de muito leves, insuficientes para fazer face à gravidade das ameaças atuais, insuscetíveis de responder às demandas quotidianas, recompensadoras, até, para os criminosos, quando colocados em ponderação o sofrimento das vítimas, por um lado, e o dos agentes do crime, por outro. Esta propalada necessidade de ajustamento da reação criminal não só se nos afigura indemonstrada como, ainda que se verifique, não pode justificar um agravamento das consequências jurídicas como tem vindo a defender-se. Por um lado, na verdade, muito embora as populações devam naturalmente preocupar-se com a criminalidade que as assola e atuar no sentido de a prevenir e reprimir, não podemos agir todos como se estivéssemos perante atos criminosos nunca antes vistos ou como se as taxas de criminalidade tivessem disparado nos nossos dias. Nenhuma das premissas corresponde à realidade. Não só os atos criminosos a que assistimos (independentemente de estarem bem ou mal catalogados) não são novos, mas antes bastante comuns até, só que próprios de outros lugares (pense-se, por exemplo, em alguns países de África, como a Somália, onde atos semelhantes aos que se têm passado na Europa são comuns há várias dezenas de anos), como eles não correspondem a um aumento generalizado da criminalidade ou da sua incidência, ao menos estatisticamente sustentada.
15 Já noutros momentos chamámos a atenção para estes fenómenos. Cf., desde logo, o que dissemos em Loureiro, Flávia Noversa, ‘’A pós-verdade e a reconfiguração da tensão dialética do direito processual penal’’, O Alcance dos Direitos Humanos nos Estados Lusófonos, Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2017, pp. 203-220.
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As finalidades das penas, a criminalidade contemporânea e a alegada necessidade de ajustamento da reação criminal: o caso da prisão perpétua Flávia Noversa Loureiro
Por outro, é preciso não esquecer que estes atos têm, de há muito, ressonância na generalidade dos sistemas legais, que preveem para eles um conjunto de consequências jurídicas (bem como de medidas processuais, que hoje não nos importam em particular), já ponderadas em função da gravidade dos factos, da eventual dosimetria da culpa dos agentes e das seguramente grandes necessidades de prevenção geral e especial. Mas tais sanções foram previstas – tal como impõe o quadro constitucional de cada Estado e, bem assim, as respetivas diretrizes de política criminal – dentro das molduras legais vigentes, de acordo com os padrões comuns àquela comunidade e tendo em conta a escala de valores que lhe é intrínseca. Ainda assim, contudo, há muito quem tenha vindo a sustentar esta alegada necessidade de endurecimento da reação penal. Em Espanha, como referimos já, foi aprovada a Ley Orgánica 1/201516, de 30 de março, que, fazendo parte de um pacote mais amplo de reformas levadas a cabo no âmbito do chamado «pacto anti-jihadista» (o «Acuerdo para afianzar la unidad en defensa de las libertades y en la lucha contra el terrorismo» foi um pacto celebrado entre o presidente do Governo de Espanha e líder do Partido Popular, Mariano Rajoy, e o secretário geral do Partido Socialista Obrero Español –PSOE –, Pedro Sánchez, após os atentados terroristas islamistas de janeiro de 2015, em França), reintroduziu a prisão perpétua no ordenamento jurídico espanhol. Uma tal agravação do sistema sancionatório fez-se acompanhar, como tipicamente acontece, por um conjunto de outras medidas, como aquelas que constam da Ley Orgánica 4/201517, da mesma data – a Ley de Seguridad Ciudadana –, também conhecida por «Lei Mordaça»18, em razão das limitações que impõe, desde logo mas não só, às liberdades de expressão, associação e manifestação. Em França, não esqueçamos – não precisará já de ilustrações –, o estado de emergência manteve-se por dois anos e quando finalmente foi decretado o
Ver https://www.boe.es/eli/es/lo/2015/03/30/1/con.
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Disponível em https://www.boe.es/buscar/pdf/2015/BOE-A-2015-3442-consolidado.pdf.
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18 De entre as razões que justificaram este epíteto, está a possibilidade de as forças de segurança mandarem dissolver as concentrações de pessoas ou veículos, pondo fim a reuniões e manifestações, sempre que entendam que estas colocam em causa a segurança cidadã (cf. art. 23.º do diploma em causa), ou a proibição de captação de imagens de agentes da polícia (cf. art 36.º, n.º 23, ainda assim alterado em relação à sua versão inicial), entre muitas outras. Atente-se, por exemplo, no que vai dito no n.º 4 do art. 37.º, considerando infração leve (alvo de sanção administrativa, portanto, de acordo com o ordenamento jurídico espanhol) “[l]as faltas de respeto y consideración cuyo destinatario sea un miembro de las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad en el ejercicio de sus funciones de protección de la seguridad, cuando estas conductas no sean constitutivas de infracción penal”.
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seu fim foi aprovada uma lei antiterrorismo19 que transforma em regra aquilo que até aí era apenas exceção. A nova lei de segurança, como os seus detratores imediatamente alertaram, compromete de modo muito sério as liberdades civis, trata todos os cidadãos como suspeitos ou criminosos e atribui às forças de segurança poderes muito alargados20. E, não esqueçamos, também aqui temos prisão perpétua... E se usamos aqui estes países como exemplo, a verdade é que em todos os outros Estados europeus, de modo generalizado se bem que com nuances distintas, um conjunto muito diversificado de medidas têm, efetivamente, vindo a ser adotadas em razão da necessidade de melhor corresponder às demandas colocadas por esta nova criminalidade. Será assim? Fará sentido sustentar essa necessidade de reajustamento da resposta criminal ao ponto de voltar a ser aceitável falarmos de uma pena de prisão perpétua quando esteja em causa determinado tipo de crimes (ainda que esses crimes sejam, efetivamente, atos terroristas que redundem na perda de um número alargado de vidas)? Esta pergunta, como bem se saberá e resulta de tudo quanto até aqui fomos apontando, só pode ser corretamente respondida se formos capazes de nos distanciar um pouco das atrocidades em causa, de nos lembrarmos que todos os seres humanos são iguais enquanto tal, mesmo o pior dos criminosos, e que o sistema penal nada pode fazer (quem dera...) quanto às vidas que já foram tiradas. Como sensatamente nos lembra Germano Marques da Silva a este propósito, “o combate à criminalidade grave não é tarefa, ou pelo menos não é missão principal do direito penal nem dos penalistas; é sobretudo função da política social e dos políticos. Política que, ajudada pela criminologia, assente na identi-
19 Em 18 de outubro de 2017, foi aprovada a Loi renforçant la sécurité intérieure et la lutte contre le terrorisme, que entrou em vigor no dia 2 de novembro de 2017: http://www2.assemblee-nationale. fr/documents/notice/15/ta/ta0025/(index)/ta. 20 De entre os seus múltiplos aspetos imediatamente criticados, sublinhemos apenas a possibilidade que é reconhecida aos prefeitos e a altos funcionários do governo em cada um dos departamentos ou regiões da França de designar áreas públicas e eventos desportivos ou culturais, incluindo concertos musicais, que estejam em risco de sofrerem ataques terroristas, como zonas de segurança, autorizando a polícia a revistar qualquer pessoa ou veículo que tente entrar nessas áreas ou nesses eventos (ver art. 1.º do diploma em causa, que altera o art. L. 226-1 do Code de la Sécurité Intérieure), ou aquela que é conferida ao Ministro do Interior de confinar islamistas suspeitos à cidade de domicílio, mesmo que estes não sejam acusados de terem cometido um determinado crime – caso haja “sérios motivos para se acreditar que a sua conduta constitui uma ameaça grave à segurança pública e à ordem pública”, poderá ser aplicada a prisão domiciliária, sem necessidade de autorização prévia de um juiz, por um período de três meses, renovável por períodos adicionais de três meses até o máximo de um ano (cf. art.3.º da referida lei, na parte em que altera o art. Art. L. 228-2 do Code de la Sécurité Intérieure).
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ficação das causas dessa criminalidade e lhes responda com medidas adequadas que as extirpem ou diminuam”21. Ao direito penal, na verdade, cabe uma tarefa de outra índole, mas não menos fundamental para a vida em sociedade: a proteção dos bens jurídicos, através da reafirmação da sua validade, obtida no limite da pena que seja necessária para reintegrar o agente na comunidade a que pertence, e à qual tem, por isso, o direito intrínseco de regressar. Ora, como julgamos ter demonstrado, nem a necessidade de proteção de bens jurídicos – seguramente muito significativa em alguns destes casos de nova criminalidade – pode alcandorar-se a fim único do direito penal de modo a aniquilar por completo o cidadão agente do crime (caso em que teríamos a aplicação única e inaceitável da finalidade de prevenção geral positiva, porventura cumulada com a negativa), que se tornaria em mero objeto da pena, nem a necessidade de reintegração do agente pode ser entendida em sentido tão exigente que ultrapasse quer as linhas geradas por aquela prevenção, quer o limite inultrapassável da culpa. Mas, mais do que isso, todos esses fatores, todas essas linhas, pesos e contrapesos, têm sempre de ser interpretados à luz dos princípios fundamentais, do modo de ser de um Estado de Direito democrático. E, nessa exata medida, o discurso de nós contra os outros, de cumpridores versus delinquentes, de cidadãos por oposição a inimigos, não é aceitável em nenhuma circunstância. E, de igual modo, não é compreensível que todos nós, enquanto comunidade, deixemos de perceber que a sociedade também gera crime (de há muito falam Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade em sociedade criminógena22...), que uma parte dele nos é assacável do ponto de vista das causas e das explicações – que não da responsabilização, naturalmente – e que, nessa medida, temos de voltar a cultivar a tolerância. Não a tolerância ao crime, ao desrespeito pelos valores essenciais da comunidade, mas a tolerância para com os nossos concidadãos, seres humanos intransponíveis e por isso portadores da imanente dignidade que resulta da nossa natureza enquanto tal. Porque, se o não fizermos, não negamos apenas aquela pessoa concreta a quem aplicamos uma pena para que desapareça para sempre das nossas vidas, negamo-nos, a todos, enquanto Humanidade. 21 Silva, Germano Marques, ‘’O Populismo Penal: a retribuição outra vez?’’, Liber Amicorum Manuel de Simas Santos, Lisboa: Rei dos Livros, 2016, p. 522. 22 Cf. Dias, Jorge de Figueiredo e Andrade, Manuel da Costa, Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena, Coimbra: Coimbra Editora, 1997 (2.ª reimpressão).Como já à altura diziam estes autores, “[i]ndependentemente das divergências que separam entre si as diferentes escolas da criminologia americana, todas partem, de forma mais ou menos explícita, dum postulado comum: o de que o crime representa uma forma normal de adaptação individual ou colectiva às coordenadas da estrutura social ou cultural”. Aqui assenta, na verdade, a “ideia da sociedade intrinsecamente criminógena”.
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DA PENA DE MORTE AO DIREITO À PENA. UMA FUNDAMENTAÇÃO DA INDISPONIBILIDADE DA VIDA HUMANA From death penalty to the right to a penalty. The reasoning behind the unavailability of human life
José Carlos Lopes de Miranda1
Resumo: O abolicionismo decorreu de uma percepção crescente da indisponibilidade da vida humana, não enquanto vida, simplesmente, mas enquanto humana. E isso depende intimamente de uma noção da transcendência do corpo humano vivo face ao mundo e da sua plena identificação com a personalidade. Palavras-chave: Ética; Pessoa; Direitos Humanos; Indisponibilidade da vida humana. Abstract: Abolitionism stems from a growing perception of the inalienability of human life, not as life simply, but as human. And this depends intimately on a notion
1 Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da UCP (Braga), jmiranda@braga.ucp.pt
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Da pena de morte ao direito à pena. Uma fundamentação da indisponibilidade da vida humana José Carlos Lopes de Miranda
of the transcendence of the living human body to the world and its full identification with the personality. Keywords: Ethics; Person; Human Rights; Inalienability of Human Life. No contexto comemorativo que serve de moldura a esta comunicação, o dos 150 anos da abolição da pena de morte em Portugal, não podemos deixar de notar que, na segunda metade dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os legisladores têm introduzido sempre novas, e nem sempre subtis, excepções à indisponibilidade da vida humana. Paralela ou concomitantemente, o abolicionismo estacionou. No Oriente não chega a ser questão. No Ocidente, e em inglês, a fundamentação ética da abolição da Pena de Morte tem beneficiado recentemente de sólidos contributos, de filosofia e de teologia moral.2 Na Europa, presume-se um abolicionismo demasiado implícito, na comunidade académica, e um silêncio embaraçado, na diplomática. A verdade é que o abolicionismo decorreu de uma percepção crescente da indisponibilidade da vida humana, não enquanto vida, simplesmente, mas enquanto humana e, enquanto tal, pessoal. E isso depende intimamente de uma noção da transcendência do corpo humano vivo face ao mundo e da sua identificação plena com a personalidade; mais precisamente, o carácter indisponível da vida humana assenta na co-extensibilidade entre Personalidade e Corpo Humano vivo pois, só por ser pessoa, é que a sua integridade constitui um limite às ordens normativas positivas, sejam elas jurídicas ou puramente consuetudinárias. No clima neognóstico que marcou a viragem do século, esse alicerce tem vindo a ser continuamente corroído.3 E os exemplos de excepções à indisponibilidade da vida humana vão-se multiplicando ao sabor de variadíssimos critérios. A vida do delinquente não será excepção; a menos que se lhe recupere, tal como a qualquer outra vida humana, o fundamento ético, antropológico e, em última análise, metafísico hoje sujeito a erosão. Procuraremos fazê-lo em três passos bastante desiguais: uma sumária e prévia definição de termos no debate sobre a legitimidade ética da pena de morte (1), uma fundamentação da indisponibilidade da vida humana na personalidade (2) e outra, mais breve, do carácter 2 Referimo-nos a autores ditos da new natural law approach, como German Griséz, John Finnis, Robert P. George, entre outros (podem ver-se os dados essenciais de tal abordagem em GEORGE, Robert P., Choque de Ortodoxias; Direito, Religião e Moral em Crise, Tenacitas, Coimbra, 2008). 3
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Por exorbitar das dimensões da presente comunicação, remetemos a análise desse clima neognóstico que tende a excluir a corporeidade, enquanto tal, da dignidade da Pessoa, para próxima comunicação: Nem mesmo em nome do Bem Comum, recuperando o fundamento antropológico da abolição da pena de morte, Congresso Internacional “Repensar Portugal, a Europa e a Globalização nos 100 anos do Padre Manuel Antunes”, Lisboa, 2 a 6 Novembro de 2018.
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natural dessa indisponibilidade e seus reflexos no poder político, em particular no legislador (3).
1. Pena de Morte intrinsece malum ou extrinsece malum? Convém à partida esclarecer dois usos ou acepções dos termos “pena de morte”, cuja indistinção inquina amiúde o debate abolicionista. De facto, em sentido próprio e restrito, trata-se de deliberar e causar directamente, por parte da autoridade pública e em nome do Bem Comum, a morte do delinquente a título de pena, isto é, em sentido puramente retributivo. A infracção de uma ordem normativa requer uma reposição da justiça mediante uma restituição do bem destruído ou mediante a sujeição do infractor a uma correspondente privação de bem. Em ambos os casos se fala de um “pagamento”, expressão esta originária, não do âmbito da economia, mas do âmbito jurídico-ritual romano, para designar o necessário equilíbrio de obrigações entre os homens e os deuses, de que resulta a pax, por extenso, pax deorum et hominum.4 Uma vez “paga” a dívida (i.e., da devida pena) contraída pela infracção, o infractor readquire a sua plena pertença e integração na ordem social. Inseparável, pois, desta dimensão retributiva, está no horizonte último que dá sentido à pena uma dimensão terapêutica de “re-textura” social. Sem embargo, à luz do princípio de proporcionalidade entre conduta e sanção que fundou a ordem normativa propriamente jurídica, entre os bens de cuja privação consta a pena, a autoridade pública recorreu de início, comummente, à integridade física e à vida. Este, o sentido restrito de “pena” de morte, isto é, o de usar positiva e intencionalmente a morte do delinquente como pena retributiva do seu delito, com perda e sacrifício evidentes – pelo menos no hic et nunc das realidades temporais a cujo horizonte se deveria limitar a justiça humana – da dimensão terapêutica da pena. Porém, quer na linguagem corrente, quer em textos técnicos, é comum falar-se em pena de morte num sentido mais lato e menos próprio, a saber, o da legitimidade que assiste à autoridade pública para causar indirectamente a morte do delinquente por absoluta falta de alternativa (“indirectamente” por não ser tal morte, em si, o efeito querido, mas tão só tolerado pela dita autoridade). Neste caso, o acto de a autoridade pública, em nome do bem comum, causar a morte do delinquente só seria “pena” em sentido análogo. Isto é, a modo da pena propriamente dita que, por falta circunstancial de condições, uma socie4 GERNIA, M. L., “Pax nella storia linguistica dell’Italia Antica”, in AA. VV. La pace nel Mondo Antico, Torino, 1990. Quanto ao substratcto originariamente religioso deste e de outros conceitos como “sanção” (de sanctus), ver SORDI, M., “Pax deorum e libertà religiosa nella Storia di Roma”, in AA.VV., La Pace nel Mondo Antico, Università Cattolica di Milano, 1985, pp. 146 - 154. Devedora deste substrato é ainda a conhecida definição agostiniana da “paz” como atributo de uma Ordem que pressupõe a justiça: pax tranquillitas ordinis.
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dade não estaria capaz de garantir, a autoridade causaria a morte do agressor em defesa do corpo social agredido. É neste sentido que a redacção originária da editio typica do Catecismo da Igreja Católica, promulgado pela Carta Apostólica Laetamur magnopere, de João Paulo II (1997), conhecido abolicionista, aceita a possibilidade da “pena de morte” como último recurso, “quando fosse a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor” (nº2267). Nesta acepção, falar da “pena” de morte como um “mal intrínseco” (intrinsece malum, isto é, sempre um mal independentemente de circunstâncias e intenções) equivaleria a excluir do agir propriamente humano todo e qualquer uso da violência, entre pessoas singulares e colectivas e, portanto, a abdicar do princípio de legítima defesa e de toda a força armada, vulgo, a uma simples opção pacifista e não-violenta. Ora esta, aceitável embora na peculiaridade de um percurso pessoal, não é de modo algum universalizável nem como norma ética natural nem como princípio conformador de um ordenamento jurídico, enquanto é incompatível com o dever – constitutivo da autoridade pública - de tutela do inocente. Nesta acepção lata, ainda, o recurso activo à morte do delinquente previsto pelos códigos penais seria um “mal extrínseco” (extrinsece malum) por serem hoje de facto muito “raras, praticamente inexistentes” (ibidem, citando a encíclica Evangelium Vitae) as circunstâncias que o legitimariam, circunstâncias tais – não é demais sublinhar – que não houvesse outro meio de pôr o agressor in statu non nocendi. Na prática, a confusão entre o desrespeito pela vida do nocente e o desrespeito pela vida do inocente (este, sim, sempre e intrinsecamente um mal) não tem beneficiado nem uma nem outra e é, no mínimo, um dos traços concomitantes ao período estacionário do abolicionismo no fórum internacional, desde os anos 70.5 É, sim, na acepção restrita, isto é, como morte intencional de um delinquente in statu non nocendi, a título retributivo, que se foi e poderá ser-se de novo eficazmente abolicionista. Uma vez salvaguardado o direito de legítima defesa, os cidadãos e os Estados terão menos óbices ao reconhecimento de que a dignidade humana do delinquente pressupõe a obrigatoriedade de recorrer a meios de contenção que não corram o risco do erro irreversível nem anulem a possibilidade da sua reintegração.
5 Para os concretos instrumentos jurídicos do direito internacional e dados estatísticos, pode ver-se MARCHESI, Antonio, La Pena di Morte, una questione di principio, Ed. Latterza, Bari, 2004, pp. 116 – 144.
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2. Prioridade da vida e igualdade de todos os humanos perante a vida Não é preciso entender “natureza humana” em nenhum especioso sentido técnico para se perceber que dela decorre algo óbvio e indiscutível, a saber, que somos animais, que ocupamos espaço e tempo e que, portanto, somos seres do mundo, somos seres cósmicos. Por isso, a condição elementar para que qualquer valor de ética social seja justo é que ele inclua e parta da integridade física. E é a integridade física o valor essencial do núcleo de intersecção entre uma ordem ética natural e a ordem jurídica positiva porque, sendo nós animais, a actualização de todas as nossas potencialidades pressupõe sempre o estarmos vivos. Tal significa que o corpo humano é uma fonte normativa natural, atribuindo ao conceito de “natural” a pura extensão de “anterior à consciência e à cultura”.6 Daí a importância ética da vida corporal. É que, na pessoa humana, a relação entre a mente e o corpo é de tipo essencial e não de tipo acidental. Desenvolveremos mais adiante estes conceitos. Baste por agora entender por eles que uma mente humana não “usa” um corpo humano à maneira de uma soma de informação “suportada” numa pendrive (se assim fosse, seria irrelevante que a informação fosse suportada por “este” ou “aquele” corpo). A mente humana, como complexo de potencialidades pertence por essência a este indivíduo animal que somos nós. É ela, a mente, que faz dele Pessoa mas é ele, animal vivo, a substância individual7 a “quem” cabe a designação de pessoa. É pois o corpo humano vivo que é pessoa. Assim, a irredutível dualidade humana é a dualidade não de substâncias ou seres em si, mas de dimensões adjectivas dessa una substância. De facto, o composto substancial humano realiza uma tal unidade que tudo o que se predica de uma dimensão se predica da outra. É assim, que, mesmo no caso de um mínimo, imperceptível, grau de actualização das faculdades mentais designamos pelo nome pessoal o corpo a “quem” pertencem essas faculdades não actuadas, sujeito e não objecto, e só por isso não se pode dispor dele.8 É-se pois pessoa já pelo corpo humano e, por esta suplência entre dimensões, pode a pessoa humana realizar-se como tal “corporeamente”, pela 6 Quando o sujeito recusa essa referência corporal às suas potências ou faculdades e erige a mente, enquanto se autoproduz, em critério de identidade (vide, por. ex. a gender theory), precisamente, cai numa “mentira” (isto é num juízo da mente desligado da sua função natural de adequação à verdade objectiva). A irrelevância do corpo humano na autopercepção do sujeito hiperliberal de certa cultura contemporânea é precisamente um dos filões neognósticos que minam a percepção da indisponibilidade de toda e qualquer vida corporal humana. 7 Segundo a primeira e nunca superada definição filosófico-teológica de Pessoa, rationalis naturae individua substancia, de Boécio. 8 Mesmo diante do cadáver, que é coisa, res, posto que sacra (enquanto remete ainda para a pessoa que foi), a linguagem corrente opera esta metonímia cheia de espessura antropológica: por isso se fala no “funeral de Fulano” e se diz que “Fulano está sepultado em certo sítio”.
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simples corporeidade, enquanto marcada pela presença da mente. Inversamente, mesmo no caso de grave limitação na actualização das potências corporais (tetraplegia, amputação, etc.) bem pode a pessoa, “mentalmente” realizar-se, isto é, pela simples “mentalidade”, marcada que é também pela referência ao corpo a que pertence.9 Em todo o caso, distinguindo entre os dois pontos de vista, na natureza humana de animal, percebemos uma dimensão imanente ao mundo e desta dimensão decorre o primeiro princípio de uma ordem normativa natural, o da prioridade da vida sobre qualquer outro valor: tutelar o ser humano é necessariamente e antes de mais tutelar a vida individual do seu corpo. Pois bem: na sua natureza de pessoa (rationalis naturae), perceberemos uma dimensão transcendente ao mundo da qual emana um segundo princípio complementar do primeiro, o de uma igualdade de todos os humanos perante a vida, igualdade tal que a torna, natural e normativamente indisponível a qualquer sujeito humano. Na cosmologia aristotélica, com a sua analogia dos seres, o ser humano representa o sumo grau de participação no ser transcendente: é um ser “psíquico lógico”, em latim, um ser “animal racional”. Ora, em que é que consiste a sua anima racional? O conceito supõe os três predicados do ser transcendente: unidade, verdade e bondade. As operações próprias da alma humana enquanto humana, naquilo que a distingue das outras, são relações a estes predicados do ser absoluto. E a interacção delas é atribuída à alma humana, designada sob esse aspecto, por Mente (de memini, lembrar). São operações ou acções próprias da mente, captar a unidade (é o que chamamos “recordar”10), conhecer a verdade e querer o bem. Ora, todos estes actos são relações ao Ser e aos seres: querer uma coisa, é relacionar-se com ela enquanto boa, quando dotada de um valor.
9 Também nesta intercambiabilidade de propriedades se baseia a possibilidade de suprir outras dimensões naturais ou imanentes pelo seu correlato cultural ou transcendente. Ponhamos o caso da maternidade adoptiva. Trata-se de um constructo cultural operado pela mente que, na falta natural (i.e., não querida por si mesma nem positivamente procurada) do seu correlato natural, o pode plenamente suprir, por ser um vínculo tão autêntico como o seria se tivesse podido ser construído sobre a base da maternidade natural. Foi ainda com base na percepção desta unidade antropológica que o direito romano-cristão desligou a antiga validade do contrato matrimonial da havida procriação. Na falta natural (i.e, não querida por si mesma nem positivamente procurada) da dimensão procriativa ou imanente do matrimónio, a dimensão unitiva ou transcendente pode supri-la com plena eficácia. 10 A memória permite através dos conceitos abstractos que “armazena” perceber a unidade dos seres, desde a escassa unidade dos seres materiais, passando pela das espécies animais, até à da unicidade das pessoas. Mas é também outro nome da consciência porque eu, pela memória, consigo perceber a unidade subjacente à pluralidade de outro modo fragmentária dos acontecimentos, que até é anterior à minha unidade material. Por isso é que quando se perde a memória, se perde também a identidade. Não sabemos quem somos, isto é perdemos o exercício – logo, os actos - do “eu”, reduzido à sua essência de potência.
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Conhecer uma coisa é relacionar-se com ela enquanto racional. E tudo isto são potências ou faculdades (em grego, “dinamismos”). Ora, é a partir de “potências”, não de “actos”, que se clarifica que todos somos iguais porque são, de si, aquelas, e não estes, o que nos faz transcender o mundo. A personalidade identifica-se com esta capacidade de se conhecer a si mesmo pela memória, de conhecer e de querer o bem, pela inteligência e pela vontade. Por palavras mais correntes do senso comum - que supõem porém a mesma distinção metafísica - o que faz, dos seres humanos, pessoas não é aquilo que eles façam mas sim aquilo que podem fazer. Porque potência designa algo que pode ser (dynamis, em grego, virtus em latim) e poder ser não é mais do que a forma de ser própria dos seres contingentes. A personalidade humana é uma forma de ser assim. Um cientista não se torna “mais pessoa” por fazer uma descoberta; simplesmente, exercita nesse acto a faculdade da inteligência. O herói é-o por um acto extraordinário de virtude; mas, por extraordinário que seja, tal acto não é senão um exercício da vontade de uma pessoa, que antes dele, e independentemente dele, já o era pela faculdade da vontade. Nenhum deles, com tais actos, se torna “mais” pessoa. Porque é que estas potências se dão no ser humano? Qual é a diferença entre um embrião animal suíno e um embrião animal humano, materialmente tão semelhantes, senão a personalidade do segundo, constitutivamente ausente no primeiro? Um deles é pessoa porque lhe pertence o poder fazer actos de pessoa, isto é, o poder ser sujeito real dos seus actos e responder por eles. Não seria possível que um ser animal-não-pessoa viesse a tornar-se uma pessoa que o não fosse desde o início. É certo que podemos pensar em algum factor externo que, num dado momento, permitisse a manifestação de traços essenciais antes não perceptíveis. Há, de facto, na actualização da personalidade um factor externo imprescindível, que é o Outro humano implicado no despertar da consciência do eu; mas, por pouco que se distinga de outras “crias” nesta ou naquela fase do seu desenvolvimento, só à humana pertence essa potencialidade. A diferença entre as fases sucessivas - os 3 e os 30 anos, por exemplo – não é senão de grau no exercício e actualização das potências. Aos 30 anos actualiza notoriamente mais as faculdades (i.e., passa-as de potências a actos). Mas não se actualiza uma potência inexistente. Esta é uma primeira resposta à questão “porque é que
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somos todos iguais”. Somos iguais, enquanto pessoas, porque aquilo que faz de nós pessoas é o que podemos fazer e não o que fazemos.11 Isto explica não só porque é que um indivíduo humano, às três semanas, ou aos três meses ou aos três anos tem a mesma dignidade que tem aos trinta anos, ou porque é que ele tem a mesma dignidade quando dorme ou está vigilante, como explica também porque é que ele não vai perdendo dignidade à medida que envelhece, apesar de o envelhecimento consistir numa diminuição gradual do exercício das potências e, finalmente, explica porque é que, após os actos morais mais destruidores por parte do nocente, as potências próprias da pessoa continuam a garantir ao seu corpo vivo a mesma dignidade que faz da sua vida um bem indisponível. Tal indisponibilidade é, de si, independente da maior ou menor disposição, por parte do nocente condenado, para assumir a dimensão terapêutica da pena, porque decorre da dignidade intrínseca da pessoa humana. Suponhamos o caso da total recusa dessa dimensão ou até da própria pena mediante atentado suicídio. Ainda aí (e mesmo prescindindo dos dados da psiquiatria que permitem hoje presumir quase sempre a inimputabilidade moral de tal acto), não é vã a tutela da vida do nocente.12 Ainda que fosse possível 11 Fica por responder o outro aspecto da pergunta, a saber, porque é que tal fenómeno se dá neste ser em particular e não noutro organismo qualquer igualmente dotado de sistema nervoso central ou até de maior capacidade encefálica… Constatado o facto, a resposta não é relevante para o nosso inquérito. Em todo o caso a pergunta dificilmente terá resposta, provavelmente por ser uma pergunta impertinente, mal colocada desde o princípio. Com efeito, ela parte do pressuposto de que sem as funções “psíquicas” inferiores (respiração e metabolismo) não se dão as outras, ditas noéticas ou da mente, as cognitivas e volitivas, que hoje diríamos propriamente pessoais. Presume-se ainda hoje numa terminologia médica como a designação de “estado vegetativo”, em plena continuidade com esta cosmologia antiga, que sem a máxima actualização da potência vegetativa (o metabolismo) não há actualização mínima da potência da sensação, sem a desta não há a do intelecto nem da vontade nem da consciência. Ora, as funções noéticas ou da mente, provavelmente, como os neoplatónicos intuíram, não são da mesma ordem e talvez possam da-ser graus diferentes de actualização de umas sem a de outras. De qualquer das formas, para eles era claro que as funções chamadas superiores da mente não eram propriamente superiores mas sim transcendentes, isto é, de outra ordem, e por isso poderiam dar-se umas sem as outras; uma possibilidade que hoje está aí em casos raros mas clamorosos de coma profundo afinal reversível com recordação e consciência de factos objectivos e verificáveis. O espanto do vulgo, igual ao do neurocientista, resulta da suposição de que não há raciocínio sem actividade neuro-condutora, o que é provavelmente um facto, mas o raciocínio é mais do que a neuro-condução e o espanto parte da redução de um à outra e da desconsideração da respectiva desproporcionalidade. 12 Referimo-nos, é bem de ver, a um ordenamento jurídico justo, isto é, conforme ao bem objectivo. Caso contrário, por exemplo, num ordenamento que instituísse a disponibilidade jurídica da vida a certos sujeitos interessados, com base em critérios subjectivos como “sofrimento intolerável”, seria insustentável a tutela efectiva dessa vida nocente. Com efeito o legislador teria que facultar a morte assistida como alternativa subjectivamente preferível à pena de privação da liberdade ou, arbitrariamente, em nome dessa privação de liberdade, instituir e cominar contra o delinquente uma “Pena de Vida”. Como se, por absurdo, o bem substantivo pressuposto e incomensurável de todos os bens fosse a liberdade e não a vida; e como se, portanto, para se ser livre não fosse, neste mundo, necessário estar vivo.
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saber da sua irremissibilidade definitiva e que nunca mais determinado nocente viria a cumprir um único acto bom, em nada isso afectaria a indisponibilidade da sua vida. Porque essa não é proporcional a nenhum mérito. Antes, é, como vimos no caso da infância anterior à idade da razão, independente de qualquer mérito. Podemos portanto recorrer a analogia com outros casos de certeza – não responsável - acerca da impossibilidade de actualização, nem boa nem má, por isso, das potências mentais. Pensemos num ancião afecto de demência por uma patologia degenerativa ou numa criança ferida de paralisia cerebral severa. Sabemos que nenhum deles vai ser efectivamente capaz de actos pessoais, de intelecção nem de liberdade, nenhum actualizará minimamente as potências que fazem dele pessoa. Haverá aqui uma diferença de dignidade tal que estas vidas sejam disponíveis? Somos todos iguais, mas há alguns de quem se espera um grau de actualização e há outros de quem não se espera grau algum de actualização. A igualdade requer aqui uma nova distinção. A primeira foi entre Acto e Potência, isto é, sem esta distinção não se percebe que o que faz de nós pessoas são as potências e não são os actos; e, sem isso, vae victis, “ai dos vencidos”, podendo ler-se, em “vencidos”, os mais débeis, os mais vulneráveis e rejeitados dos humanos, quer porque se acham privados do exercício das suas potências (ainda ou já ou sempre, é irrelevante), quer porque identificados como uma ameaça para a sociedade ou omitidos como recordação inconveniente e votados ao esquecimento dos seus.13 Para percebermos a razão e inamissibilidade da igualdade natural de todos os seres humanos é preciso recorrer a outra distinção metafísica, a de Essência e Acidente. Não podemos deixar de alertar aqui para a profunda relevância ética do apregoado fim da metafísica e da redução do ser ao devir e à historicidade pois, sem esta distinção, não é possível provar que uma criança paralítica cerebral - ou qualquer ser humano que, ao longo do seu percurso de vida pode ver definitivamente comprometido, parcial ou totalmente, o exercício das suas potências - tem a mesma dignidade que qualquer outra pessoa. Pelo que a tutela das vidas “sem esperança” ou “sem qualidade”, face ao óbvio interesse do mais forte, ficaria entregue tão só à pura sensibilidade subjectiva de épocas e culturas, traduzida depois em ordenamentos jurídicos (também no aspecto penal) tendentes a reflectir o puro (des)equilíbrio entre as duas forças.
13 O sentido de rejeição da sociedade, sobretudo se subsidiariamente manifestado no âmbito das relações pessoais mais íntimas, mas também estendido às solidariedades entre pares – locais, profissionais, etc. – e até à própria sociedade geralmente considerada, pode ser o aspecto mais “penoso” da pena de reclusão ainda antes e independentemente da privação de liberdade. Não será de todo descabido referir no presente contexto (quanto mais não seja invocando o ponto de vista do observador participante) esta viva percepção colhida no âmbito da experiência pessoal de voluntariado em estabelecimento prisional.
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Ora, porque é que devemos continuar a dar valor à pessoa que vê comprometido (às vezes irremediavelmente) o exercício das potências? Porque é que que isso não afecta objectivamente o valor da pessoa? Simplesmente, porque sabemos que o exercício das potências é acidental; e que as potências, em si mesmas, é que são essenciais. A essência de um ser é aquilo que faz com que ele seja o que é; é um conjunto de notas objectivas que fazem com que um ser seja o que é. Perdendo uma nota dessas, já não é ele. É outra coisa qualquer, mas não é o mesmo ente. Essência distingue-se de acidente porque as essências não existem em estado puro num mundo que é composto de seres finitos. As essências realizam-se em acidentes mas não se confundem com eles nem a eles são reductíveis. Os acidentes são aquelas notas objetivas de um ser com as quais ou sem as quais um ser não deixa de ser o que é. Os acidentes constituem um determinado ser, sim, mas não são essenciais, pois não é por eles que um dado ser é o que é.14 Ora, o que é essencial no ser humano? É um ser animal que pode querer, um animal que pode conhecer, um animal que pode ter consciência de si mesmo; um animal, numa palavra, que é pessoa. Isto é o essencial. É porque “pode” tudo isso que é humano. A diferença entre dois animais afectos do mesmo acidente comprometedor das respectivas potencialidades – suponhamos um pássaro e uma criança humana, ambos em coma, sobreviventes de um qualquer cataclismo – é a diferença das potencialidades essenciais de cada um: num, comprometida, por exemplo, a locomoção (o vôo), noutro, comprometidas além da mesma locomoção (a marcha), também a intelecção, a linguagem, a consciência… Na suposição, ainda, da irreversibilidade dessas perdas, ambos estão incapazes de se alimentar sozinhos mas a obrigação de alimentar um ou outro só surge objectivamente numa pessoa e para com a outra pessoa, reconhecível, esta, no segundo, precisamente por essas potencialidades essenciais, posto que de exercício irremediavelmente comprometido. As potências fazem parte da essência, os actos são acidentais. Acontece que, na maior parte dos casos essa potência se actualiza, mas às vezes, por acidente (e não deixa de ser também, neste sentido, “acidente”, o genético, o vascular, rodoviário, etc…) fica a pessoa privada do exercício dessas potências. Sem embargo, se o exercício das potências é acidental, com ou sem exercício, a pessoa não deixa de ser “quem” é. E é só esta a razão por que está errada uma sociedade humana que não tenha algo de análogo a hospitais… como também algo de análogo a estabelecimentos prisionais. Sem a distinção entre acto e potência e essência e acidente, nunca conseguiremos provar que todos somos iguais perante a vida; e a óbvia precedência da vida face 14 Ponhamos um simples exemplo. Se uma porta é um segmento de espaço ou um objecto capaz de abrir e/ou fechar o acesso entre espaços distintos, abrir e fechar são as notas que perfazem a sua essência. O tamanho (ser grande ou pequena), a matéria de que é feita (madeira, vidro…), a cor (branca, verde…), apesar de necessariamente presentes, são acidentes, i.e., notas com as quais ou sem as quais um objecto é porta.
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à consciência acaba por não ter efeito no sentido da tutela da vida de todos os humanos, por igual. Mas então não haveria propriamente ética nem direito, no organismo social humano. Haveria simplesmente, como em qualquer organismo, uma gestão dos interesses do todo orgânico, invariavelmente identificado com a parte mais forte. Sem metafísica, vae victis, nocentes ou inocentes. Estamos agora em condições de concluir, sobre as consequências da personalidade do indivíduo humano, para o poder político e para o legislador em particular.
3. Carácter natural da indisponibilidade da vida e consequências para o legislador Sempre houve, é certo, sociedades que, consuetudinária ou juridicamente, discriminaram injustamente entre indivíduos quanto à tutela da vida humana com base em critérios móveis ou subjectivos, nomeadamente com base no grau de actualização das potências. A antiguidade romana recordava, posto que com algum horror, a Rocha Tarpeia do seu período arcaico, à diferença de certo indigenismo de hoje quando menciona idênticos infanticídios rituais. 15 Mas, para os humanos mais vulneráveis, pior que as sociedades que ainda não conhecem metafísica, podem ser, pelo acréscimo de força e eficácia, as sociedades que já não conhecem metafísica. As autoridades de saúde pública da Islândia congratularam-se recentemente com o facto de terem conseguido realizar o primeiro país downfree (i.e., um país em que não há pessoas afectas do síndrome de Down, vulgo, mongolismo). 16 Sabe-se de facto que o mongoloide tem à partida 15 O estado brasileiro de Roraima saltou para o primeiro lugar nas estatísticas de homicídio em virtude da contabilização, polémica, de homicídios deste tipo, amiúde acobertados por antropólogos indigenistas (http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/12/tradicao-indigena-faz-pais-tirarem-vida-de-crianca-com-deficiencia-fisica.html). (Acesso em 13.12.18). 16 Ver MIRANDA, M. Beatriz, A “erradicação” da deficiência através do aborto selectivo: eugenia ilegítima? In GOUVEIA, S.S., FIGUEIREDO SOL, A., (Eds), “Boética no Século XXI”, CreateSpace Independent Publishing, Charlestone, USA, 2018 (portuguese edition, pp.141-155). A acuradíssima análise ético-jurídica da questão assume que “a menor obrigação de respeito face à vida humana com deficiência não é postulada expressamente por autores fora da corrente utilitarista”, mas reconhece que “não é inédita entre os que seguem uma via utilitarista, como exemplificam as teses prenunciadoras de Peter Singer sustentando a não ilegitimidade do infanticídio de crianças com deficiência mental (Practical Ethics, Cambridge Univesity Press, Cambridge, 1979) ou as de Giubilini e Minerva”; e é de facto mais provável que se afirmem em crescendo intervenções, procedentes de ambientes de “ética médica”, como esta referida de GIUBILINI, A., & MINERVA, F., After-Birth Abortion, why should the baby live?, in “Law, Ethics and Medicine”, Melbourne, 2012, com a proposta de substituir em textos jurídicos o conceito de infanticídio pelo de “aborto pós-natal”, de modo a “beneficiar” em certos casos dos amplos prazos previstos por várias legislações em matéria de aborto (disponível em https://static.publico.pt/docs/sociedade/JMed%20Ethics-medethics100411.pdf), (acesso em 13.12.18).
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comprometido, em grau mais ou menos severo, o exercício das suas potências. Também é certo que uma doença pode ser erradicada mediante a supressão do doente e cabe evidentemente à sociedade humana gerir a saúde populacional das diversas espécies puramente animais, a começar pelas domésticas. Deverá a mesma sociedade agir assim com os humanos? Nada obsta, se se perder a distinção entre pessoas e demais seres (é esse o risco de uma grave questão ética e social contemporânea conhecida por “animalismo”). Tal como nas sociedades de simples indivíduos animais, a tutela da vida seria a tutela do todo orgânico social em detrimento da vida de indivíduos disfuncionais e, como tal, “menos dignos”. E a diferença entre as pessoas e o resto assenta nestas duas categorias ontológicas: acto e potência e essência e acidente.17 Com base num conceito de personalidade iluminado por estas categorias, é possível dizer que aqueles sobreditos costumes, aqueles institutos jurídicos, são injustos; ou, pela via afirmativa, é possível reconhecer uma origem natural (i.e., anterior à cultura e, por isso, universal) na peculiar relação invertida entre o todo e a parte nas sociedades humanas. Quando se descreve o “corpo social” humano, o seu “tecido social” e respectivas “células” e “órgãos”, recorremos a um antigo paradigma biológico que só não é falaz se tiver por pano de fundo o paradoxo daquela inversão. Num organismo, a parte existe em função do todo e é avaliada por essa função. Na sociedade humana, porém, não avaliamos a parte em função do todo mas, inversamente, avaliamos o todo pelas condições que cria para a realização da parte.18 Não poderia ser de outro modo quando as partes são pessoas. Cada vez que alguém, por exemplo, na Roma arcaica ou na Europa e na Amazónia do século XXI, se furtou mais ou menos abertamente ao seu “dever” cívico positivo eugenista, fê-lo e fá-lo a partir de um dado natural, isto é, anterior à cultura: o de que, pela sua natureza de animal-pessoa, aqueles que a sociedade humana vota à morte são iguais aos outros e de que qualquer norma positiva que os discrimine é injusta. É nos teóricos escolásticos jusnaturalistas que amadurece a ideia de direito natural e universal centrado no “valor absoluto da pessoa humana, cujo fim 17 Mérito não de somenos do sobredito artigo (MIRANDA, M. Beatriz, ibidem) é o de, na análise do conceito de pessoa, explorar a fundo, explicitamente, as categorias de acto e potência; e fazer outro tanto com as de essência e acidente mas sem as mencionar, ganhando notoriamente em comunicabilidade argumentativa pelo recurso ao termo mais corrente de “natureza de um ser vivo”, definida como como “o conjunto das suas possibilidades de ser”. 18 Poderá mesmo tratar-se de um dos traços da hominização. O antropólogo Richard Leakey (quem sabe inspirado pela condição pessoal de amputado na sequência de um acidente aéreo) identificou no Australopithecus Anamensis o hominídeo a partir do qual teria evoluído o primeiro Homo, entre outros motivos por poder hipotizar a partir de algumas vértebras um exemplar de uma vintena de anos de idade afecto de espinha bífida. A sobrevivência de um indivíduo sem locomoção implicaria uma conduta desconhecida em qualquer outra espécie (LEAKEY, R., The origin of Humankind, Ed. Basic Books, New York, 2008).
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é transcendente ao Estado”, em que “os indivíduos nunca podem perder, apesar de membros de um organismo, a sua dignidade moral nem podem abdicar das prerrogativas essenciais que sustentam a sua humanidade”. 19 Na tractação do tema da guerra, eles desenham perfeitamente as premissas da indisponibilidade incondicional da vida humana. Continuam porém a exceptuar sem hesitação, mesmo penalmente, a vida do nocente. Por um lado, o aspecto da legítima defesa da sociedade face ao agressor da ordem estabelecida sempre se entreteceu intimamente com o aspecto propriamente penal e retributivo, a ponto de tal excepção lhes parecer inelutável. Como inelutável se afigurava, em circunstâncias então aparentemente imutáveis, o instituto da escravatura ou servidão (servitudo), radicado, mesmo etimologicamente, na prioridade da vida sobre a liberdade. De facto, primeiro e fonte da maioria dos títulos de servidão é o de cativo em guerra justa (captus in bello justo), retributivamente merecedor da morte (interficiendus) mas, por consideração da sua humanidade servatus (i.e., salvo, pre-servado da morte, de onde servus e servitudo) 20 Será preciso levar ao paroxismo a sobrevalorização do sujeito racional, de seguida (e a que preço) mal-entendido como “indivíduo” e não como pessoa inserida na sua teia rela-
19 CALAFATE, P.,A Guerra Justa e a Igualdade Natural dos Povos: os debates ético-jurídicos sobre os Direitos da Pessoa Humana, in CALAFATE, P., (Dir.)., TARRÍO, A.M., e VENTURA, R., (Coord.), “Luís de Molina, Pedro Simões, António de São Domingos, Fernando Perez; A Escola Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora (século XVI), Vol. I, Ed. Almedina, Coimbra, 2015, p. 31. 20 Veja-se por exemplo António de São Domingos: …est duplex intentio naturae, alia primaria, id est, illa qua uult ea quae primario intendit et isto modo de intentione naturae est quod omnes homines liberi sint uel uellet quod nemo seruiret, sed omnes libertate gauderent quapropter ista intentione odit bella, quia autem uidet natura quod hoc fieri non debuisset imo uero futura bella, tunc ex secundaria intentione uoluit seruitutem, ne homines occiderentur, sed seruarentur multi, “tem a natureza duas intenções. Uma é a primária, isto é, aquela pela qual ela quer aquilo para que tende primeiramente e deste modo é intenção da natureza que todos os homens sejam livres, pois quisera ela que ninguém fosse escravo, mas todos gozassem de liberdade. Por esse motivo, segundo a primária, ela abomina as guerras, (pois bem vê a natureza que tal não deveria acontecer). O facto, porém, é que haverá guerras; e portanto, por intenção secundária, a natureza quis a servidão, para que os homens não se matassem e assim muitos con-servassem a vida, tr. nossa). De Restitutione, Quaestio LXII, Ms. 2864 BN, fl. 193 e ss.
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cional,21 para levar até às últimas e devidas consequências aqueles pressupostos. A que preço, dizíamos, porque tal paroxismo comportou, na Revolução, em nome de uma mal-entendida Liberdade desse indivíduo,22 a destruição violenta dos níveis intermédios de associação próprios de uma sociedade de sociedades, abrindo caminho – por acção ou por reacção – ao Estado dito, precisamente, “totalitário”, isto é, que pretende constituir ele mesmo “toda” a sociedade; para o que tende a dissolver, anti-subsidiariamente, qualquer outro nível de associação que não o do Todo. Desarticulados pelas revoluções liberais os múltiplos vínculos de solidariedades intermédias (regionais, religiosas, locais, profissionais, familiares), os indivíduos ficaram “livres”, isto é, “soltos” (e logo indefesos), perante o Estado. Estão hoje exaradas em “livros negros”23 as consequências sangrentas, quer dessa acção “libertadora” quer da simétrica e outro tanto totalitária re-acção socialista, seja ela nacionalista ou internacionalista; e é já da vulgata escolar a trágica Questão Social que foi a sua faceta económica, pela proibição das Corporações cruzada com a concomitante revolução industrial. Foi grande o preço pago para se poder aportar, pelo caminho da valorização do sujeito individual, à devida generalização, a todos, por igual, da indisponibilidade da vida humana, na abolição da pena de morte. Após o desmascaramento do verdadeiro projecto juspositivista, o preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, recorre explicitamente à “naturalidade” da “igualdade da família humana” e só não consigna explicitamente a abolição da pena de morte pela urgência de alcançar a universalidade do signatário.
21 É muito iluminador neste sentido a génese etimológica do conceito de “Pessoa”. O termo começou por ser a tradução do grego prósopon (= rosto, máscara para identificar as figuras que interagiam no drama). Como essa máscara também tinha funções de amplificar o som da sua voz, chamou-se em latim per-sona, que poderíamos traduzir por “amplificador do som”. Aplicada ao direito romano, de parte ou polo de uma relação dramática, passa a designar as partes de uma relação contratual, ambas sujeitos capazes de “responder” pelas obrigações contraídas (como ainda hoje na chamada “pessoa jurídica”). Só através da teologia cristã, para designar as relações internas à Trindade Divina (Pai, Filho e Espírito Santo), é que a noção de Pessoa, agora enriquecida das notas do conceito grego de Hypóstase (substantia), chegou ao domínio comum, com o significado, que hoje tem, de sujeito racional e portanto oposto a coisa ou a animal irracional. Isto, porém, sem perder o seu conteúdo originário especular de “polo relacional”, no aspecto de alguém responsável, isto é, que “responde” perante outrem, pelos seus actos. O personalismo do século XX viria a recuperar a dimensão relacional. Falando em indivíduo acerca do homem, o pensamento moderno ficara preso a uma abstração desligada das relações reais. Mas, pessoa, não se é sozinho. 22 Mal-entendida porque desligada do seu objecto, que é o Bem, e reduzida, negativamente, à ausência de limites à vontade de um sujeito individual que será, assim, tanto mais livre, quanto mais des-ligado das suas naturais associações, i.e., uma perversão da noção de Pessoa. 23 ESCANDE, R., (Dir.), Le livre noire de la Révolution, Ed. du Cerf, Paris, 2008 ; COURTOIS, S., (Dir.), Le livre noire du comunisme,Ed. R. Laffont, Paris, 1997, com a resposta comunista de PERRAULT, G., (Dir.) Le livre noire du capitalisme, Ed. Le Temps des Cerises, Pantin, 1998.
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Hoje, qualquer excepção legislativa à indisponibilidade da vida humana é um desperdício daquele alto preço. Com efeito, ou bem que o legislador reconhece os seus limites naturais (i.e., anteriores à cultura e demais construções sociais) na integridade física e na indisponibilidade de toda e qualquer vida humana ou não se verão de novo razões para exceptuar a vida nocente. A pressão sobre os sistemas prisionais não será inferior à pressão sobre os sistemas de saúde. Pelo contrário, só reconhecendo e assumindo aqueles princípios como dados naturais, prévios à norma positiva, poderá o poder político preservar-se do plano inclinado, próprio do Estado Antigo e do Moderno, que o leva a ser fim em si mesmo, em vez de meio de realização das pessoas em sociedade. Só dentro de tais limites naturais, o legislador se absterá de eliminar desnecessariamente o nocente em nome do Bem Comum, desmentindo com isso a natureza intrinsecamente inclusiva de uma sociedade de Pessoas. Só assim a morte será plenamente entendida como simples aspecto da própria vida e, portanto, tão natural como ela; e se a vida é indisponível, a única morte digna da pessoa humana (digna porque correspondente à sua realidade integral) é a morte natural, tão natural quanto o é a substância da vida de que ela não passa de um aspecto adjectivo. A esta luz, só poderia legitimamente causar a morte uma autoridade pública que, antes, tivesse podido causar a vida. Como facto natural que é, a vida não cai sob a alçada do direito positivo e a ficção da sua disponibilidade (disponibilidade a quem quer que seja) não passa de um abuso de poder. Uma vez consignada essa indisponibilidade nos ordenamentos jurídicos, desejavelmente ao nível constitucional, a pena recuperará plenamente a sua dimensão terapêutica; mas também só assim a dimensão retributiva sairá do ciclo vicioso da violência; primeiro porque a indisponibilidade da vida, ao salvaguardar-lhe o horizonte terapêutico, lhe fornece um fim para além de si mesma na “re-textura”, pela inserção do delinquente no tecido social (mesmo que, em caso extremo, tal inserção não vá além da reclusão perpétua); mas, sobretudo, porque a resgatará da incoerência de fundo de que o instituto da pena de morte a tem desde sempre refém. Senão, vejamos. Aceitos aqueles limites naturais pelo legislador, a reposição da ordem justa infracta pelo crime só será conseguida mediante a imposição, ao infractor, de alguma privação de bem ou de bens determinados. Ora a vida é um bem sui generis; não é um bem em continuum com os demais bens uma vez que não é separável do sujeito vivente. Ela é antes um bem pressuposto incomensurável e derivante, do qual deriva a fruição de todos os demais bens. Se o ser humano é necessariamente o seu corpo, para que a autoridade pública o possa privar de algum bem derivado, tem que conter-se diante do bem derivante que é a sua vida. Na esfera de competência da justiça humana, que é a das realidades temporais, a supressão do sujeito comporta a supressão do objecto. Ora a privação do bem da vida é, na realidade, a supressão do “penitente” sujeito da pena e, com ele, da própria pena em objecto.
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Finalmente, no quadro de um poder político e de um legislador limitados por uma ordem natural, a justiça retributiva requer que toda a pessoa desintegrada da plena pertença social pela infração da ordem justa tenha acesso a um meio de “pagamento” exequível. Mais. A menos que o Estado se comporte como fim para si mesmo (caso em que não perceberá motivo algum para não eliminar o infractor), tem que lho garantir, como direito fundamental entre outros direitos. Numa sociedade plenamente humana e para tal, plenamente inclusiva, autoridade pública justa é aquela que lhe garante eficazmente o exercício desse direito; e, isto, independentemente da disposição do respectivo sujeito; porque, a haver um Direito à Pena, à maneira dos demais direitos fundamentais, ele só pode ser inalienável.
Referências ANTÓNIO DE SÃO DOMINGOS, De Restitutione, Quaestio LXII, Ms. 2864 BN, fl. 193. CALAFATE, P.,A Guerra Justa e a Igualdade Natural dos Povos: os debates ético-jurídicos sobre os Direitos da Pessoa Humana, in CALAFATE, P., (Dir.)., TARRÍO, A.M., e VENTURA, R., (Coord.), “Luís de Molina, Pedro Simões, António de São Domingos, Fernando Perez; A Escola Ibérica da Paz nas Universidades de Coimbra e Évora (século XVI), Vol. I, Ed. Almedina, Coimbra, 2015 GEORGE, Robert P., Choque de Ortodoxias; Direito, Religião e Moral em Crise, Tenacitas, Coimbra, 2008. GERNIA, M. L., “Pax nella storia linguistica dell’Italia Antica”, in AA. VV. La pace nel Mondo Antico, Torino, 1990. GIUBILINI, A., & MINERVA, F., After-Birth Abortion, why should the baby live?, in “Law, Ethics and Medicine”, Melbourne, 2012 MARCHESI, Antonio, La Pena di Morte, una questione di principio, Ed. Latterza, Bari, 2004 MIRANDA, M. B., A “erradicação” da deficiência através do aborto selectivo: eugenia ilegítima? In GOUVEIA, S.S., FIGUEIREDO SOL, A., (Eds), “Boética no Século XXI”, CreateSpace Independent Publishing, Charlestone, USA, 2018 (portuguese edition, pp.141-155). LEAKEY, R., The origin of Humankind, Ed. Basic Books, New York, 2008 SINGER, P., Practical Ethics, Cambridge Univesity Press, Cambridge, 1979
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SORDI, M., “Pax deorum e libertà religiosa nella Storia di Roma”, in AA.VV., La Pace nel Mondo Antico, Università Cattolica di Milano, 1985 (http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/12/tradicao-indigena-faz-pais-tirarem-vida-de-crianca-com-deficiencia-fisica.html). (Acesso em 13.12.18).
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PRINCÍPIO POLÍTICO-CRIMINAL DA HUMANIDADE COMO PEDRA ANGULAR DO PODER DE PUNIR1 Political-criminal principle of humanity as an angular stone of the power to punish
Manuel Monteiro Guedes Valente2
Resumo: O artigo estuda a humanidade enquanto princípio político-criminal regente do sistema penal integral e detentor de força vinculativa do legislador, intérprete e aplicador da lei penal. Assume-se como um princípio que nega a vingança, a violência penal – v. g., penas cruéis e desumanas – e a coisificação do ser humano, impondo-se, assim, a todos os atores do sistema de justiça criminal. 1 Este artigo, que corresponde, em parte, à palestra proferida no âmbito da Conferência Comemorativa dos 150 Anos da Absolvição da Pena de Morte, que se realizou no dia 11 de dezembro de 2017, na cidade de Braga – Portugal, no quadro das atividades desenvolvidas pelo JusGov – Research Centre for Justice and Governance da Escola de Direito da Universidade do Minho, já foi publicado nos Estudos de Homenagem à Professora Doutora Ruth Gauer, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul: Fabrício Pozzebon, Augusto Jobim, Márcia Lopes e Fernanda Martins. Memória e Ciências Criminais. O que aprendi com Ruth Gauer. Florianópolis: Tiran lo Blanch, 2018, pp. 133-142. Apenas se acrescentaram dois §§ no final do texto. 2 Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa. Presidente do Instituto de Cooperação jurídica Inernacional. Professor Associado da Universidade Autónoma de Lisboa, Luís de Camões. Investigador Integrado do Ratio Legis – Centro de I&D da UAL. http://lattes.cnpq. br/4001544191185131; http://orcid.org/0000-0002-4991-8707
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Princípio político-criminal da humanidade como pedra angular do poder de punir Manuel Monteiro Guedes Valente
Palavras-chave: Humanidade; Pena; Política; Justiça; Violência. Abstract: The article studies humanity as a political-criminal principle that governs the integral criminal justice system, which has the binding force of the legislator, interpreter and enforcer of the criminal law. It is assumed to be a principle denying revenge, criminal violence - eg, cruel and inhuman penalties - and the humiliation of the human being, thus imposing on all actors in the criminal justice system. Keywords: Humanity; Penalty; Politics; Justice; Violence.
§1.º O princípio da humanidade como construção do constitucionalismo penal assente na ideia de justiça, de verdade não violenta, de penas não cruéis e desumanas, e da dignidade da pessoa humana. O princípio da humanidade como axioma contrário à ideia de vingança O princípio da humanidade3 é o fundamento da política criminal, pois a “imposição e execução das penas deve ter em conta a personalidade do acusado e, em sendo o caso, do condenado”4, e, dessa forma, assume-se como pedra angular do Direito penal intrínseco ao poder de punir. O poder de punir despido de humanidade é um carrasco por ser a mão do castigo, mas um poder de punir encrustado à e na humanidade é limitado e assumido como instrumento de reconciliação entre o agente do crime e os demais membros da sociedade, por ser entendido e aceite como justo. A humanização do Direito criminal é um desiderato jus constitucional desde 1822, passando pelas Bases da Constituição de 1821, como se retira do artigo 12.º das Bases da Constituição e dos artigos 10.º e 11.º da Constituição de 1822, ao se consagrar a submissão da lei criminal à necessidade de intervenção, à proporcionalidade entre o crime e as penas abstrata e concretamente aplicáveis, à pessoalidade e intransmissibilidade das penas, à proibição de penas degradantes, cruéis e da tortura. Esta construção jurídica constitucionalizada e de consagra3 Quanto a este assunto, Paulo Otero. Instituições Políticas e Constitucionais – Volume I. Coimbra: Almedina, 2007, p. 247. 4 Cfr. Hans-Heinrich Jeschek e Thomas Weigend. Tratado de Derecho Penal – Parte General. Tradução da 5.ª Edição alemã de Miguel Olmedo Cardente. Granada: Comares Editorial, 2002, p. 29 (e 30).
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ção jus internacional não se esgota no direito penal material, mas estende a sua textura dogmática a todo o sistema integral penal: ao direito processual penal e ao direito de execução de penas e medidas privativas da liberdade. O princípio da humanidade implica desde logo que a intervenção penal seja dirigida a reintegrar o bem jurídico lesado ou colocado em perigo de lesão e a responsabilizar sob a égide da legalidade e da culpabilidade o agente da conduta negativa com o intuito de o reinserir com responsabilidade na sociedade. O princípio da humanidade, regente ou orientador da política criminal, afasta de imediato e de mediato a ideia de vingança. O princípio da humanidade orienta a política criminal no sentido de realização de uma justiça, como bem essencial à vivência comunitária, que produza bem-estar, qualidade de vida, restabelecimento da confiança intersubjetiva: restabelecimento da paz jurídica comunitária alterada por conduta negativa humana5. Entenda-se a paz jurídica como a “consciência de seguridade do Direito, a confiança no poder protetor da ordem jurídica. Ela é ofendida, quando essa confiança é perturbada, embora transitoriamente, pelo receio de violência contrárias ao Direito; é comprometida, quando se dá a possibilidade imediata de ser essa confiança perturbada”6. Poder-se-á considerar a paz jurídica como a consciência de segurança adstrita ao Direito emergente da confiança da comunidade na validade e vigência da norma jurídica, que, sendo agredida por conduta humana, se impõe que seja restabelecida. É uma relação de confiança na segurança e na força normativa do Direito. Assume-se, assim, como dimensão da paz social adequada a promover a coesão social adstrita à função do Direito penal. O princípio da humanidade implica existência e vivência conjunta com o princípio da liberdade como valor supremo da justiça. Não admite a vingança, nem admite o recurso a todo o manancial de técnicas de investigação contrárias à ideia de democracia e de respeito da dignidade da pessoa humana. Afirmado em liberdade democrática, admite sacrificar a verdade em defesa de valores superiores. É este princípio da humanidade que rege a política criminal por nós sufragada e defendida: a que é pensada, elaborada e aplicada por pessoas para
5 Reescrevemos a expressão emblemática de Souto de Moura: “a felicidade do maior número exige paz. Que não há paz sem justiça e que esta reclama o tratamento igual do que é igual”. Cfr. José Souto de Moura. Direito ao Assunto. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 8. 6 Cfr. Franz von Liszt. Tratado de Direito Penal – Tomo II. Tradução de José Higino Duarte Pereira. Campinas/SP: Russel, 2003, p. 159.
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pessoas. O princípio da humanidade desta política criminal afasta quaisquer possibilidades mínimas de metamorfosear a pessoa em coisa7. O princípio da humanidade é o reflexo nuclear do princípio da dignidade da pessoa humana, cuja afetação se verifica, desde logo, na estatuição da pena a aplicar a cada tipo de crime; e implica que a pena a aplicar tem de derivar da “absoluta necessidade”, caso contrário “é tirânica” e desumana e violadora da dignidade da pessoa humana. Como ensina Beccaria, a “atrocidade das penas – se não imediatamente oposta ao bem público e ao próprio fim de impedir os delitos” – é inútil “não só àquelas virtudes benéficas que são o efeito de uma razão iluminada – que prefere dirigir homens felizes a um rebanho de escravos, onde circule perpetuamente tímida crueldade – mas também à justiça e à natureza do próprio contrato social”8. Do mesmo modo que se exige que o princípio da humanidade se deva verificar na tipificação legal das condutas negativas e das consequentes penas, se exige na aplicação e na execução daquelas. No primeiro caso, ao legislador penal não só se proíbe a opção pela pena de morte, pelas penas cruéis, degradantes e ofensivas da dignidade humana da pessoa recluso9, como também inculca o legislador a tipificar penas enraizadas na teleologia do Direito penal – equilíbrio entre a tutela de bens jurídicos lesados ou colocados em perigo de lesão e proteção do delinquente face ao ius puniendi – e adequadas às finalidades das penas – prevenção geral positiva e negativa e a prevenção especial positiva e negativa – e ao comando constitucional de respeito da dignidade da pessoa humana10, o que implica que o legislador penal não deve esgotar-se na tipificação da pena única de prisão, mas deve tipificar penas alternativas abstrata e concretamente exequíveis. No segundo se impõe ao legislador penal que recuse a opção pela prisão perpétua e pelas consequências jurídicas de tempo indeterminado ou degradantes e que limite as possibilidades fácticas de aplicação de 7
Nesta linha de pensamento e de defesa de uma política criminal que crie os padrões críticos jurídico-criminais de um Direito penal do ser humano, o nosso Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo. Reimpressão da 2.ª Edição – Versão Portuguesa. Coimbra: Coimbra Editora, 2018, pp. 65-78 e 109-130. Num pensar demolidor das incongruências das linhas de orientação política na prevenção (luta esquizofrénica) do crime, em que se coloca de lado o princípio da oportunidade com a afirmação do princípio da intolerância jurídica (da legalidade absoluta), com a diminuição das garantias processuais do arguido em busca da máxima eficácia e afirmação da inferioridade dos que praticam condutas negativas tipificadas como crime, José de Faria Costa. Direito Penal e Globalização. Reflexões não locais e pouco globais. Coimbra: Wolters Kluver Portugal/Coimbra Editora, 2010, pp. 58-66.
8 Quanto à tirania e à atrocidade das penas, Cesare Beccaria. Dos Delitos e das Penas. Tradução José de Faria Costa. 2.ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, pp. 64-67. 9 Cfr. artigo 30.º e artigo 1.º da CRP. 10 Cfr. artigo 1.º da CRP. Por isso deve vigorar o princípio de que, sempre que seja possível aplicar uma pena alternativa à pena de prisão e que a mesma cumpra o desiderato da pena e do Direito penal, não se aplique a pena de prisão.
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pena de prisão perpétua por meio da aplicação de pena de prisão temporal limitada: v. g., o legislador deve criar institutos que limitem a possibilidade de aplicação de uma pena de prisão máxima (25 anos de prisão) a pessoas com idade superior a 60 anos de idade, que, face à idade média de vida, se converte em efetiva pena de prisão perpétua e cruel11. O princípio da proscrição da crueldade punitiva do Estado – humanidade –, proíbe a tipificação de penas cruéis e o cumprimento desumano e cruel da pena ou medida privativa da liberdade, cuja consagração preceptiva constitucional se expressa no artigo 30.º, n.º 1 da CRP. Não basta ao legislador tipificar limitando o julgador ao catálogo idóneo e humanizante de consequências jurídicas do crime que dignifiquem o restabelecimento da paz jurídica e a reintegração do bem jurídico lesado ou colocado em perigo de lesão e a reinserção do condenado, impõe-se que o ideário do princípio da humanidade se desenhe na arquitetura e na edificação de prisões condignas de promover a auto responsabilização e a consciencialização de que a conduta negativa motivadora do encarceramento (assim como todas as condutas negativas típicas, antijurídicas, culposas e puníveis) a ser repetida não fica impune. Esta reinserção responsável na sociedade propagada pelo n.º 2 do artigo 14.º da LPC de 2009/2011, e que se afere [manteve] materialmente nas LPC de 2015/2017 e de 2017/2019, só é possível se forem verificados os citados pressupostos: ninguém se “regenera” no seio da indignidade e com a sua diminuição ou redução a coisa. O sistema penal integral não pode converter o condenado em mais um Romeiro: «Ninguém!»12.
11 Neste sentido Eugénio Raul Zaffaroni, Nilo Batista. Alejandro Alagia e Alejandro Slokar. Direito Penal Brasileiro – I, 3.ª Edição, Rio de Janeiro: Revan, 2006, pp. 233-234. 12 Referimo-nos ao personagem Romeiro de Frei Luís de Sousa de Almeida Garret que simboliza muitos seres humanos por todo o mundo, fenómeno ao qual o mundo jurídico não é alheio nem está isento de responsabilidades. Este sentimento de ser "ninguém" é sentido por reclusos(as). Há tempos uma presa preventivamente dizia-nos: "Doutor, aqui somos esquecidos pelo mundo, somos ninguém!".
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§2.º O princípio da humanidade como dimensão esférica de todo o sistema penal integral e força vinculativa do legislador, do hermeneuta, do exegeta e do aplicador da norma ao caso concreto. O princípio da humanidade avoca para o debate científico todos os atores do sistema judiciário criminal: Juiz, Ministério Público, Advogado, Polícia, Agente do Crime, Vítima (s), e todos agentes do sistema prisional O princípio da humanidade, que se impõe por força constitucional e supra constitucional13 ao legislador penal [material, processual e penitenciário], deve verificar-se a montante do julgamento, da condenação e da execução das penas e medidas privativas da liberdade. O princípio da proscrição da crueldade e de todos os atos desumanos deve ser materializado no decurso de todo o processo-crime: desde o início da ação penal, incluindo a investigação criminal, desde a aquisição isenta e objetiva da notícia do crime, o carreamento de prova através dos meios de obtenção de prova tipificados na lei processual penal e dentro dos limites impostos pelos princípios constitucionais de garantia do arguido – da lealdade, da democraticidade, da justiça, da celeridade, da presunção de inocência, da liberdade, do respeito da dignidade da pessoa humana14 –, independentemente do resultado final ser ou não a confirmação da existência de elementos probatórios indiciadores da prática do crime em investigação ou comprovativos de que o arguido cometeu o facto tipificado como crime15. A publicidade e a exposição da prisão de determinadas pessoas, que são mediáticas ou desempenharam cargos públicos ou políticos, com o intuito de dar ao Direito penal um teor de exemplo e simbolismo da punição de todos – de uma 13 Cfr. artigo 5.º da DUDH, artigo 7.º do PIDCP, artigo 3.º da CEDH e artigo 3.º da CDFUE e n.º 2 do artigo 25.º da CRP, assim como a Convenção da ONU contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes e a Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes. O princípio da humanidade encontra-se inscrito pela proibição da tortura e de penas ou tratamentos desumanos, cruéis e degradantes nos artigos 5.º da Carta Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e da Carta Africana dos Direitos Humanos. 14 Quanto aos princípios regedores do processo penal numa perspetiva humanista, o nosso (2009). Processo Penal – Tomo I. 2.ª Edição. Coimbra: Almedina, pp. 85-272. 15 Neste sentido e com desenvolvimento crítico da atuação da polícia criminal, o nosso (2006). Do Objecto do Processo: Da Importância dos Órgãos de Polícia Criminal na sua Identificação e Determinação. In: POLITEIA. Ano III, n.º 2, Coimbra: Almedina, pp. 115-139.
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igualdade penal [igualdade essa falsa], contrariam os ditames do princípio da humanidade da política criminal do ser humano. É voltarmos à montra da praça pública por onde todos passam e escarneiam e insultam dos tempos inquisitoriais, cuja sanção mais importante é a sanção da reprovação da sociedade [povo]. O princípio da humanidade impõe que o legislador produza os adequados instrumentos jurídico-criminais16 para que os operadores judiciários atuem materializando a dignidade da pessoa humana17 e que aqueles optem por uma conduta jurídico-operativa que respeite a pessoa como ser humano portador de defeitos e de virtudes18. Este princípio do Estado de direito democrático material e social inscreve como valor inegociável e inatacável o princípio da proibição de provas obtidas sob coação, sob tortura, sob ardil, sob consentimento inconsciente e, mesmo, sob consentimento consciente que ofenda a mais ténue sensação de dignidade da pessoa humana. O princípio da humanidade determina a proibição e a criminalização das condutas dos operadores judiciários que, em prol da descoberta da verdade material e de apresentar ao tribunal o agente da prática de um crime, sacrificam valores, direitos, liberdades e garantias fundamentais. A não coisificação da pessoa humana deve estar consagrada e a violação desse comando deve estar proibido e criminalizado19, sob pena da ordem, da tranquilidade e da segurança, e da paz jurídica comunitária, provocarem maior danosidade social do que o crime a perseguir. Como escreve Beccaria, a tortura é uma crueldade inútil e desnecessária na perseguição 16 Neste sentido se pode apontar os princípios da diversificação e/ou da oportunidade como manifestação do princípio da humanidade, como apontam as orientações da LQPC e da LPC, assim como da reparação do «dano» por parte do agente do crime – v. g., artigo 206.º do CP – que se pode ampliar da pequena e média criminalidade à criminalidade mais grave que lesione o bem jurídico património. Defensor desta linha de orientação político-criminal e na defesa da manutenção do Direito penal do futuro com a função de “garantia da paz, o sustento da existência e a defesa dos direitos dos cidadãos”, Claus Roxin (2008). Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. 2.ª Edição Revista. Rio de Janeiro/São Paulo/Recife: Renovar, pp. 14-17. 17 A preocupação com as vítimas como concretização da humanização do Direito penal está patente nos artigos 5.º e 6.º da LPC 2007/2009 (aprovada pela Lei n.º 51/2007, de 31 Agosto), que se manteve no artigo 5.º e na al. a) do n.º 1 do artigo 8.º da LPC 2009/2011), aprovada pela Lei n.º 38/2009, de 20 de Julho, que se manteve nos artigos 2.º, 6.º, 8.º da LPC 2015/2017, e se reforça nos artigos 2.º, 7.º e 8.º da LPC 2017/2019. 18 É neste sentido que podemos ler o Código Deontológico do Serviço Policial, aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 37/2002, de 7 de Fevereiro, publicado no DR, n.º 50, I S-B, de 2002/02/28, que inscreve os valores e princípios consagrados na Resolução n.º 690, da Assembleia do Conselho da Europa, de 8 de Maio de 1979, e na Resolução n.º 34/169, da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 17 de Dezembro de 1979. De entre os valores e princípios regedores da atividade policial, o valor da humanidade encontra-se consagrado como pilar do serviço policial: v. g., artigo 2.º, n.º 2, artigo 3.º, n.º 1, artigo 4.º, n.º 1 e artigo 6.º. 19 Neste sentido, Eugénio Raul Zaffaroni, Nilo Batista. Alejandro Alagia e Alejandro Slokar. Direito Penal Brasileiro – I, 3.ª Edição, p. 233.
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ou ação penal, porque “o delito ou é certo ou é incerto; se é certo, não lhe convém outra pena senão a estabelecida pela lei, e inúteis são as torturas, porque inútil é a confissão do réu; se é incerto, então não deve torturar-se um inocente, porque é inocente, segundo as leis, o homem cujos delitos não estão provados”20. Eugenio Raúl Zaffaroni considera que os instrumentos internacionais sobre a consagração da tutela e da afirmação dos direitos humanos são, em especial para a América latina, o reduto da crítica e da abolição das penas cruéis, desumanas e degradantes, assim como defende que o jus-humanismo pode fazer frente ao tratamento cruel e desumano levado a cabo pelas agências judiciais estatais. Encontra, no jus-humanismo, o restabelecimento da legitimação do sistema penal21. A respeito da legitimidade punitiva do Estado, como violência necessária e aceite pelo povo dentro do estrito respeito da Constituição e da lei, recordamos as expressões de Norberto Bobbio, quanto à tortura, que elucidam com clareza a supremacia do princípio da humanidade em detrimento de meios ditos eficazes de realização da justiça penal: “A tortura é terrível quando prevejo que fui predestinado para ela, mas é horrenda em si mesma pelo facto de existir, de ser praticada e de qualquer pessoa poder ser submetida a ela. Quero dizer que é qualquer coisa de horrendo independentemente do medo que a respeito dela posso sentir. Ter terror da escuridão significa temer que me aconteça um acidente ou uma desagradável aventura no momento em que atravesso a rua deserta. Ter horror da escuridão significa que a recuso, a rejeito e a afasto de mim como um malefício”22. A nossa conceção de humanidade enraíza-se no tópico kantiano do princípio da humanidade: esta afasta a ideia do ser humano como objeto ou meio da sociedade ou de outros seres humanos, pois o ser humano é em si mesmo um fim, é um sujeito de direito dotado de história, é a razão de ser de todas as coisas; e, consequentemente, o ser humano está auto vinculado a este desiderato que não pode alienar e de que não pode despojar-se e todos os seres humanos se encontram vinculados à ideia de que todo o ser humano é um sujeito dotado de dignidade23.
20 Cfr. Cesare Beccaria. Dos Delitos e das Penas, p. 93. A proibição da tortura e tratamentos degradantes tem consagração supraconstitucional: artigo 5.º da DUDH. 21 Cfr. Eugenio Raúl Zaffaroni. Em Busca das Penas perdidas. A Perda de Legitimidade do Sistema Penal. 5.ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001, pp. 147-153. 22 Cfr. Norberto Bobbio (1999). As Ideologias e o Poder em Crise. Tradução de João Ferreira. 4.ª Edição. Brasília: Editora UNB, p. 116. Itálico nosso. 23 Quanto a este assunto Paulo Otero. Instituições Políticas…, p. 209. Neste mesmo sentido e de afirmação da pessoa humana face ao poder punitivo – material e processual –, Jean Pradel. Traité de Droit Pénal et Science Criminelle Comparée. 12.ª Edição. Paris: Éditions Cujas, 1999, pp. 63-64.
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O Direito penal material, processual e penitenciário, emergente da política criminal, deve ser o depósito de um pensar e de um agir centrado no rosto da humanidade, no rosto do homem sujeito e responsável do seu próprio pensar e agir e, em regra, respeitador da humanidade dos outros seres humanos. Desta feita, se inculca uma consciência de que os destinatários do Direito penal e das penas e medidas privativas da liberdade, assim como das normas processuais penais, em especial as medidas cautelares e de polícia, dos meios de obtenção de provas e das medidas de coação, são seres humanos. Na violação dos valores da humanidade por meio de métodos ofensivos da dignidade da pessoa humana, a consequência processual deve passar pela proibição de valoração probatória e a consequência material penal passar pela ilicitude de produção de prova e respetiva responsabilidade penal24/25. O pensar humanista assume relevância quanto ao princípio da extraterritorialidade do Direito penal. Este princípio impôs ao legislador que colocasse como causa de suspensão temporária da entrega da pessoa visada com o mandado de detenção europeu sempre que existam motivos humanitários graves que coloquem em perigo a vida e a saúde e impeçam o enfrentar com dignidade o processo de detenção e de entrega às autoridades judiciárias de emissão26. Do mesmo modo prescreveu a não execução obrigatória do mandado de detenção europeu sempre que a «infracção for punível com pena de morte ou com outra pena de que resulte lesão irreversível da integridade», conforme al. d) do artigo 11.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto. Contudo esta causa de não execução do mandado de detenção desapareceu na alteração legislativa ocorrida em 2015. Mas, mesmo assim, impera o comando constitucional do artigo 30.º conjugado com o artigo 33.º da CRP. É um princípio intrínseco à materialidade do Direito que rege o legislador, o hermeneuta, o exegeta e o aplicador do Direito, vinculando, desta feita, os juízes desembargadores quando têm de decidir pela entrega de um cidadão visado com um mandado de detenção europeu, ou entrega ao Tribunal Penal Internacional, assim como com a extradição de um cidadão para outro Estado. O princípio da humanidade ou da proscrição de conduta cruel por parte dos operadores judiciários impõe que tratem com dignidade toda e qualquer víti-
24 Quanto ao discurso da licitude/ilicitude de produção de prova e à validade da utilização da prova produzida, Sax apud Manuel da Costa Andrade. Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal. Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 280. 25 Quanto à proibição de produção e à proibição de valoração probatória, W. Schünemann apud Manuel da Costa Andrade. Sobre as Proibições de Prova …, p. 279. 26 Quanto à cláusula humanitária de suspensão de entrega da pessoa a autoridade judiciária requerente de outro Estado-membro da UE, o nosso Do Mandado de Detenção Europeu. Coimbra: Almedina, 2006, pp. 327-329 e n.º 4 do artigo 29.º da Lei de implementação do mandado de detenção europeu: Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto.
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ma independentemente da sua condição social, do seu credo, da sua opção sexual, da sua tez, do seu odor, da sua origem, da sua raça, da sua ideologia política. O princípio da humanidade exige um tratamento igualitário para todos os seres humanos e o afastamento de todo e quaisquer preconceitos, estigmas e discriminações. A vítima de um crime violento – v. g., crime contra a liberdade de autodeterminação sexual –, independentemente da sua condição, tem direito a ser atendida com dignidade e fora do alcance dos olhares críticos ou penosos dos demais cidadãos27/28. A humanidade implica que todo o cidadão seja tratado com igualdade em dignidade por parte de todos os operadores de justiça criminal, desde logo pela Polícia – quer na sua ação jurídico-administrativo-policial, quer na de prevenção criminal stricto sensu –, pelo Ministério Público – na ação penal29 - pelo Juiz que decide da causa criminal e da liberdade de um ser humano, pelos integrantes do sistema de execução penal, denegando qualquer execução desumana e degradante, de modo que a humanidade se assuma como bem e valor superior, que cada vez mais se vê negado numa sociedade violenta e promotora da violência. É tempo de avocarmos a defesa e a garantia de uma sociedade de não-violência, porque nela reside sempre a dignidade da pessoa humana enquanto “barreira intransponível perante o exercício do poder”, porque ela é “uma realidade primeira perante o poder, autocrático ou democrático”. Só assim se pode afirmar que “todo o poder”, mesmo o exercido no espaço do sistema prisional, “está-lhe subordinado”30. Eis a dimensão da humanidade contra o regresso da pena de morte, da prisão perpétua e de penas degradantes e desumanas, caso contrário sairemos sempre vencidos pelo desejo de vingança.
27 Este procedimento que recai como dever ser da Polícia e do MP, e de todo o operador judiciário [como o Juiz], não é mais do que a materialização do princípio da dignidade da pessoa humana na dimensão do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar da vítima, consagrado no n.º 1 do artigo 26.º da CRP. Não se nos afigura necessária positivar este comando constitucional como obrigação operativa de atendimento da vítima por aqueles operadores judiciários. É um dever ser emergente de um direito de consagração jus constitucional e supraconstitucional: v. g., artigo 8.º da CEDH e artigo 12.º da DUDH. 28 A humanidade perante a vítima implica, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, favorecer a posição jurídica e humanizar o processo aos seus olhos através da informação, do acompanhamento, da proteção e de uma só inquirição. Cfr. Paulo Pinto Albuquerque. O que é a Política Criminal, porque precisamos dela e como a podemos construir? In: Revista Portuguesa de Ciências Criminais. Coimbra: Coimbra Editora, Ano 14, n.º 3, p. 449. 29 Neste sentido se pode ler Paulo Pinto Albuquerque. O que é a Política Criminal…. In: RPCC, Ano 14, n.º 3, p. 449. 30 Quanto a este assunto Maria da Glória Garcia. Como defender hoje a Dignidade Humana. Lisboa: UCE, 2016, p. 8.
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A FUNÇÃO GARANTÍSTICA DO DIREITO PENAL (REFLEXÕES A PARTIR DA CELEBRAÇÃO DOS 150 ANOS DA ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE EM PORTUGAL: 1867-2017) The guarantee function of criminal law (reflections from the celebration of the 150th anniversary of the Abolition of the Death Penalty in Portugal: 1867-2017)
Margarida Santos1
Resumo: Portugal assume um lugar de destaque no caminho da abolição da pena de morte celebrando-se, no ano de 2017, os 150 anos sobre a abolição da pena de morte. Nesta medida, o momento é oportuno para a realização de um balanço sobre o tema e, numa perspetiva mais ampla, que se adota no texto, para refletir sobre a difícil concretização das garantias que envolvem a intervenção penal, numa altura em que voluteiam, um pouco por toda a parte, discursos mais intolerantes, mais punitivos, mais voltados para a eficiência e menos va1 Doutora em Direito, na especialidade de Ciências Jurídicas Públicas, Professora na Escola de Direito da Universidade do Minho; Membro Integrado do Centro de Investigação de Justiça e Governação (Universidade do Minho) e da Unidade de Investigação em Criminologia e Ciências do Comportamento (ISMAI).
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A função garantística do direito penal (reflexões a partir da celebração dos 150 anos da Abolição da Pena de Morte em Portugal: 1867-2017) Margarida Santos
lorizadores dos Direitos Humanos. No presente texto reflete-se em torno função garantística do direito penal e do princípio da legalidade, no contexto das incertezas da pós-modernidade. Palavras-chave: Intervenção penal; Função garantística; Princípio da legalidade. Abstract: Portugal takes a leading role on the road to abolishing the death penalty, celebrating, in the year 2017, 150 years on the abolition of the death penalty. To this extent, the moment is opportune to carry out an assessment on the subject and, in a broader perspective, adopted in the text, to reflect on the difficult implementation of the guarantees that involve criminal intervention, at a time when there are, more or less everywhere, more intolerant, more punitive, more efficiency-oriented, and less valuable human rights discourses. This paper reflects on the guarantee function of criminal law and the principle of legality, in the context of the uncertainties of postmodernity. Keywords: Criminal intervention; guarantee function; principle of legality.
1. Considerações introdutórias Até ao século XIX, a pena máxima ocupou um lugar importante na Europa (e no mundo). Não obstante, importa realçar que se foram assistindo a mudanças estruturantes no contexto da fundamentação da pena capital, que se transformou de um instrumento de controlo político, perspetivado como essencial para alcançar a segurança, a um instrumento de política criminal, assente em finalidades relacionadas com o controlo do crime2. Neste contexto, “[a] pena de 2 Para um quadro abrangente da questão da pena de morte e para sublinhar a forma como o movimento abolicionista alcançou elevar a abolição da pena de morte a um estatuto de princípio internacional de Direitos Humanos, ver, por todos, David Garland, “Why the Death Penalty is Disappearing”, in Carta de Lei da abolição da pena de morte em Portugal - 1867–2017/ Charter of Law of abolition of the death penalty in Portugal, Edição Comemorativa/Commemorative Edition, Assembleia da República, em parceria com a Torre do Tombo, disponível em http://www.law.nyu.edu/sites/default/files/ECM_PRO_074425.pdf, pp. 164 e ss. (tal como o Autor refere o texto resulta de um Simposium em Oslo e baseia-se na obra do Autor: Peculiar Institution: America’s Death Penalty in an Age of Abolition, Cambridge, MA, Belknap Press of Harvard University Press, 2010 (ver também o artigo do Autor constante da obra: Lill Scerdin (ed.), Capital Punishment – A hazard to a sustainable criminal justice system? Nova Iorque, Routledge, 2014). Ver também, sobre o caminho que floresceu para a abolição da pena de morte, entre outra bibliografia, a síntese de Paulo Jorge de Sousa Pinto, “A pena de morte em Portugal e no mundo: debate na História, combate atual”, in Carta de Lei da abolição da pena de morte em Portugal 1867–2017/ Charter of Law of abolition of the death penalty in Portugal, Edição comemorativa/Commemorative Edition, Assembleia da República, em parceria com a Torre do Tombo, disponível em https://run.unl.pt/ bitstream/10362/29663/1/2017_Pena_de_Morte.pdf, pp. 193 e ss.
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morte passou a ser formatada como uma sanção penal e não como um espetáculo político”, deixando, nos tempos atuais, de ser “uma medida central do controle do crime e tornou-se cada vez mais rara e controversa” 3. Com efeito, o movimento pela abolição da pena de morte conheceu, sobretudo a partir do século XIX, um relevante avanço, embora com algumas paragens e recuos, com a difusão global da luta pelos Direitos Humanos. De facto, como sublinha David Garland, “[d]o século XVIII até o presente, os debates sobre a pena de morte foram enquadrados na linguagem da civilização e da humanidade”4. Portugal assume um lugar histórico de destaque no caminho da abolição da pena de morte, celebrando-se, no ano de 2017, os 150 anos sobre a abolição da pena de morte (através da Carta de Lei da Abolição da Pena de Morte – Lei de 1 de julho de 1867)5. Se este movimento abolicionista em geral é motivo de regozijo pelo que espelha para os Direitos Humanos, o certo é que importa ter 3 David Garland, “Why the Death Penalty is Disappearing”, in Carta de Lei da abolição da pena de morte em Portugal - 1867–2017/ Charter of Law of abolition of the death penalty in Portugal, Edição Comemorativa/Commemorative Edition, Assembleia da República, em parceria com a Torre do Tombo, disponível em http://www.law.nyu.edu/sites/default/files/ECM_PRO_074425.pdf, p. 5. 4 Idem, p. 24 (sublinhado do Autor). Como aponta o Autor (pp. 24/25): “[s]ensibilidades civilizadas podem ser melhor entendidas como uma estética de refinamento, delicadeza e autocontrole, combinadas com normas sociais destinadas a minimizar encontros desagradáveis com comportamentos vulgares e perturbadores. As sensibilidades humanitárias, em contraste, são sentimentos de simpatia humana e identificação compassiva com os outros, e os imperativos morais que fluem de tais identificação”. 5 Refira-se que a Carta de Lei de Abolição da Pena de Morte em Portugal recebeu, no dia 15 de abril de 2015, a distinção de Marca do Património Europeu (estabelecida por Decisão n.º 1194/2011/ UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16 de novembro de 2011 que cria uma ação da União Europeia relativa à marca do património Europeu. Pretende-se com esta atribuição contribuir para a promoção dos valores da Cidadania Europeia, assentes na edificação de uma identidade baseada nos valores da tolerância e respeito pela vida humana, tal como consagrados na Convenção Europeia dos Direitos Humanos e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Ver José Alves de Sousa, “Abolição da pena de morte – 150 anos (em memória… do grande passo da Civilização)”, Revista do CEJ, 2017-I. Para um panorama global da pena de morte no mundo, nomeadamente dando conta dos países que mantém a pena capital e as execuções realizadas no ano de 2017, ver o Relatório da pena de morte em 2017, da Amnistia Internacional (publicado em 2018), disponível em https://www.amnistia.pt/pena-de-morte/ (foram registadas 993 execuções em 23 países, excluindo a China, tendo as mesmas ocorrido sobretudo no Irão, Arábia Saudita, Iraque e Paquistão). Refira-se, ainda, que a Amnistia Internacional tem alertado para os desenvolvimentos recentes nos países que retomaram a prática de execuções, supostamente como resposta a ataques e atos de violência; para o aumento das violações das normas internacionais sobre julgamentos justos, como forma de combate ao terrorismo; para a utilização de tribunais militares para permitir a emissão de sentenças de morte e para o alargamento da abrangência da pena de morte e o seu uso para fins políticos – cf. Amnesty International, 2016 World Day Against the Death Penalty. Stop the cycle of violence: the use of the death penalty for terrorismo-related offences, Londres, 2016, disponível em https://www.amnesty.org/en/documents/act50/4945/2016/en/.
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consciência da importância desta luta constante. Como bem alerta David Garland, “[e]ste longo processo de transformação não deve ser tomado por progresso moral e político. O declínio da pena de morte não assinalou a diminuição do castigo ou o fim da violência por parte do Estado, mesmo nas democracias ocidentais…”6. O momento é, portanto, oportuno para a realização de um balanço sobre o tema e, numa perspetiva mais ampla, que é a que iremos nesta breve comunicação adotar, para refletir sobre a difícil concretização das garantias envoltas da intervenção penal, numa altura em que voluteiam, um pouco por toda a parte, discursos mais intolerantes, mais punitivos, mais voltados para a eficiência e menos valorizadores dos Direitos Humanos. Com efeito, assiste-se, nos tempos atuais, em algumas democracias, ao que vem sendo designado de “viragem punitiva” (“punitive turn”) e a uma “nova penologia”7. É precisamente em tempos de incerteza, a vários níveis, que importa reafirmar, valorizar, sublinhar os princípios que enformam um Estado de Direito e, em particular, a função garantística do direito penal lato sensu, nomeadamente realizada a partir do princípio da legalidade8. É, pois, este o principal desiderato do texto.
6 David Garland, “Modes of Capital Punishment: the Death Penalty in Historical Perspective”, in David Garland , Randall McGowen, Michael Meranze (ed.), America’s Death Penalty - Between Past and Present, New York University Press, 2011, p. 31. 7 Com muito interesse, ver, entre outros, Malcom Feeley, Jonathan Simon, “La nueva penologia: notas acerca de las estratégias emergentes en el sistema penal y sus implicaciones”, in “El control policial del riesgo” en Delito y Sociedad, Ano 16, n.º 24, 2008 e André Lamas Leite, “«Nova penologia», punitive turn e Direito Criminal: quo vadimus? Pelos caminhos da incerteza (pós-)moderna”, in Direito Penal - Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais - Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, pp.396 e ss. 8 Aproveitamos, por isso, o momento, para voltar a um tema por nós já analisado, mas que se revela pertinente, nomeadamente num contexto em que assume materialização o exercício transnacional da ação penal através da Procuradoria Europeia – ver o nosso, Para um (novo) modelo de intervenção penal na União Europeia: uma reflexão a partir do princípio da legalidade como limite material de atuação da Procuradoria Europeia, Lisboa, Rei dos Livros, 2016. Esta parte do texto recupera, em parte, com algumas alterações, esse texto já apresentado, pelo que para lá remetemos para maiores desenvolvimentos.
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2. As incertezas da pós-modernidade e as transformações dos modos de escrita da lei penal No paradigma atual, a que poderemos chamar de pós-moderno9, o legislador é chamado a compor a norma com outros poderes, cada vez mais diversos, quer no âmbito da tríade poder legislativo-executivo-judicial, quer no âmbito da “força” dos órgãos normativos supranacionais, infranacionais, ou mesmo advinda de atores privados10. Na verdade, “num mundo hoje caracterizado pela indeterminação e pela busca de sentido”, a norma jurídica parece menos propor um conteúdo preciso, do que “uma oferta de sentidos” que carecem de ser “complementados e negociados” pelos atores que estão no “jogo do debate judiciário”11. Este cenário é também, por outro lado, traçado por um outro fenómeno, transversal: a “aceleração dos tempos”. Deste quadro conjunto emergem dois fenómenos que afetam todos os ramos do direito e, de forma especial, o direito penal: “a inflação normativa” e a “internacionalização”, “europeização” do direito penal. Estes dois fenómenos constituem, pois, “importantes fatores de transformação dos modos de escrita da norma penal”12.
9 Sobre os designativos que se utiliza “para dar serventia de qualificação ao nosso tempo”, preferindo o termo “tardo-moderno” em detrimento de “pós-moderno”, v. José de Faria Costa, “O direito penal, a linguagem e o mundo globalizado”, in Direito Penal e Globalização – Reflexões não locais e pouco globais, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 23. 10 Assim Juliette Tricot, Étude critique de la contribution de l´Union Européenne au renouvellement de la théorie générale de la loi pénale de fond, thèse pour le Doctorat en Droit, pour obtenir le grade de Docteur de l´Université Paris 1, sous la direction de Mireille Delmas-Marty, Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne, inédito, 2009, p. 29. 11 Cf. Yves Cartuyvels, Dan Kaminski, “Bougés et flous du penal”, Politique, police, justice au bord du futur, Mélanges pour et avec Lode Van Outrive, Paris, L´Harmattan, 1998, p. 123. 12 Assim, Juliette Tricot, Étude critique de la contribution de l´Union Européenne au renouvellement de la théorie générale de la loi pénale de fond, thèse pour le Doctorat en Droit, pour obtenir le grade de Docteur de l´Université Paris 1, sous la direction de Mireille Delmas-Marty, Université Paris 1 - Panthéon-Sorbonne, inédito, 2009, p. 30. Para uma análise das alterações que atravessa o direito penal, v., inter alia, Y Cartuyvels, D. Kaminski, “Bougés et flous du penal”, Politique, police, justice au bord du futur, Mélanges pour et avec Lode Van Outrive, Paris, L´Harmattan, 1998, p. 119-129; Y Cartuyvels, “Proximus, ou la tentation du temps penal contemporain”, Revue de droit pénal et de criminologie, 1999, CHr, pp. 54-66; Y Cartuyvels, “Le droit pénal et l´État: des frontières naturelles en question”, in Marc Henzelin, Robert Roth, Le droit penal à l´épreuve de l´internationalisation, Bruxelles, Genève, Paris, Bruylant, LGDJ, 2002, pp. 3-28.
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Podemos refletir, neste quadro, sobre as contradições emergentes no seio do direito penal 13, neste mundo “barroco”14, que é o nosso. Neste modelo da pós-modernidade, os traços da sociedade revelam contradições. Se, por um lado, a sociedade pós-industrial vive num contexto de “bem-estar social” provocado pelos ímpares avanços tecnológicos e científicos a múltiplos níveis, por outro lado, estes inegáveis progressos da técnica encerram uma série de riscos, geradores de insegurança objetiva e subjetiva, a vários contextos. Fala-se na “sociedade do risco” e na “sociedade de insegurança”, quer em termos objetivos, quer em termos subjetivos, enquanto “sociedade da insegurança sentida” ou “sociedade do medo”. Na verdade, um dos traços mais evidentes da sociedade atual é “a sensação geral de insegurança, isto é, o aparecimento de uma forma particularmente aguda de viver o risco”15. De resto, como formula Silva Sánchez, acresce à existência destes “riscos” a própria diversidade e complexidade social – com uma pluralidade de opções, associada à presença de um excesso de informação e da falta de critérios para apurar o que é bom ou não – o que “é uma semente de dúvidas, incertezas, ansiedade e insegurança”16. Na verdade, o direito penal é cada vez mais solicitado, nas palavras de Delmas-Marty, para responder aos “problèmes d’une société qui n’a guère d’autre repère pour distinguer le bien du mal”17. (de la protección efectiva)”. Como enfatiza Silva Sánchez, “numa sociedade em que há uma falta de consenso sobre os valores positivos, parece que ao direito penal corresponde ‘malgré lui’ a missão fundamental de gerar consenso e reforçar a Comunidade” 18. Cabe, por isso, acentuar que o entendimento adequado do comportamento punível – deve ser perspetivado à luz da “doutrina da dignidade penal e da 13 V. Mireille Delmas- Marty, “Les contradictions du droit pénal”, Revue de science criminelle et de droit pénal comparé, 2000, n.º1, p. 3. A propósito do desenvolvimento do processo de internacionalizaçao do direito, Michel van de Kerchove refere-se à “l´image complexe et diversifiée de la recomposition actuelle”, referindo-se a um “monopole étatique éclaté”, a uma “légalité dilatée”, a uma “justiciabilité incertaine et diversifiée”, a uma “structure hiérarchique enchevêtrée” e a um “espace et un temps à géométrie variable” – cf. Michel van de Kerchove, “Éclatement et recomposition du droit pénal”, RSC, 2000, n.º 1, pp 5 e ss. 14 Sobre esta caracterização v. P. Martens, “Sur la libido Judicandi. Réflexions sur l’office du juge quand il juge d’office”, in Liber Amicorum Prof. E. M. Krings, Bruxelles, Story-Scientia, 1991, pp. 703-715. 15 Jesús-María Silva Sánchez, La expansión del Derecho Penal, Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, 2.ª ed., revista e aumentada, Civitas, Madrid, 2001, p.32. 16 Idem, ibidem. 17 Cf. Mireille Delmas- Marty, “Les contradictions du droit pénal”, Revue de science criminelle et de droit pénal comparé, 2000, n.º 1, p. 3. 18 Jesús-María Silva Sánchez, La expansión del Derecho Penal, Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, 2.ª ed., revista e aumentada, Civitas, Madrid, 2001, pp. 41 e 42.
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carência de tutela penal [que] veio trazer a indispensável consistência e operatividade dogmática”19. Estes princípios, além de encarnarem um papel orientador do “discurso da criminalização”, configuram “marcas ou qualificações específicas da ilicitude penal, distinguindo-a e extremando-a face às demais formas de antijuridicidade”20. Com efeito, estes princípios configuram uma série de implicações que o legislador ordinário terá de observar na elaboração das normas incriminadoras21. Nesta perspetiva, várias são as vozes que se manifestam contra a existência de características de normas penais “simbólicas”22. Neste cenário, é incontestável que a sociedade atual reclama intervenção por parte do direito penal, almejando que este ordenamento ora seja “expansivo”23, ora “criativo” nas suas abordagens, para que “molde” a sua intervenção nos qua19 Cf. Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, “Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado”, RPCC, n.º 4, 1994 (destacado do Autor), p. 341. 20 Idem, ibidem. Nesta medida, como descrevem os Autores, está completamente “vedado (...) o recurso ao direito e processos penais para garantir eficácia a representações de índole moralista – mesmo que se trate da moral que tem a seu favor a fidelidade e a obediência da maioria dos membros da sociedade”, bem como para “responder a manifestações de ilícito civil, administrativo ou disciplinar”. Para um maior desenvolvimento desta temática e dos princípios da dignidade penal e da carência de tutela penal, v. Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, “Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado”, cit. pp. 341 e ss.; Jorge de Figueiredo Dias, Lei Criminal e Controlo da Criminalidade, Lisboa, 1976; Costa Andrade, “A ‘dignidade penal’ e a ‘Carência de Tutela penal’ como referências de uma doutrina teleológico-racional do crime”, RPCC, pp. 173 e ss.; Jescheck, Tratado de Derecho Penal. Parte geral, Granada, Comares, 1993, pp. 43 e ss.; Günther, Strafrechtswidrigkeit und Strafrechtsausschluss, Studien zur Rechtswidrigkeit als Straftatmerkmal und zur Funktion der Rechtsfertigungsgründe im Strafrecht, Köln, Carl heymanns, 1983, pp. 43 e ss.; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 152. 21 Cf. Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, “Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado”, cit., pp. 342 e 343. Para maiores desenvolvimentos, v. pp. 343 e ss. 22 Para um aprofundamento do conceito de “direito penal simbólico” e seus problemas de legitimidade, v., inter alia, Hassemer, “Symbolisces Strafrecht und Rechtsgüterschutz”, NStZ, 1989, pp. 553 e ss. 23 Sobre o fenómeno da expansão do direito penal nas sociedades pós-industriais, v. novamente Jesús-María Silva Sánchez, La expansión del Derecho Penal, Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, 2.ª ed., revista e aumentada, Civitas, Madrid, 2001, especialmente pp. 121 e ss. Como encara o Autor, “[e]l conjunto de fenómenos sociales, jurídicos y políticos (...) está teniendo en el Derecho penal un cúmulo de efectos, que configuran lo que hemos dado en llamar ‘expansión’”. Neste sentido, “la combinación de la introducción de nuevos objetos de protección con la anticipación de las fronteras de la protección penal ha propiciado una transición rápida del modelo ‘delito de lesión de bienes individuales’ al modelo ‘delito de peligro (presunto) para bienes supraindividuales’, pasando por todas las modalidades intermedias”.
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dros da eficácia. Pede-se ao direito penal, como salienta Anabela Miranda Rodrigues, “[q]ue satisfaça, pois, ‘paradoxalmente’, duas exigências: que limite os poderes do Estado, em nome da protecção do direito das pessoas; e que amplie os poderes do Estado, também em nome do direito das pessoas”24. Numa palavra, urge “continuar a fazer a síntese do conflito garantia-eficácia nos quadros do Estado de Direito”25. Tendo como pano de fundo as liberdades prestadas aos cidadãos e a sua concretização e promoção, os sistemas de justiça penal deparam-se, pois, com delicados desafios na prevenção e repressão do crime e na adequada proteção dos direitos fundamentais. Neste panorama, o direito penal tem de atender às exigências da evolução social e económica e da inerente nova conceção da criminalidade e do delinquente. O “contexto social da pós-modernidade”, ou o “modelo social pós-industrial”, reclama que se repensem algumas estruturas em que o direito penal assenta, se se pretende que o direito penal possa adequar-se à evolução social. Os Estados revelam-se, pois, impotentes para prevenir e reprimir o crime, muito especialmente o que assume índole transnacional, sendo este um fator decisivo para que se repensem conceitos estruturantes da jurisdição penal, e.g., o princípio da legalidade penal, o princípio da territorialidade, o ius puniendi do Estado, detentor da soberania penal. Ora, de que forma é que o direito penal lato sensu poderá cumprir esta função “liberal”, “garantística”, “limitadora” de uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva, no mundo atual?
3. A função “liberal”, “garantística”, “limitadora” do direito penal e o princípio da legalidade: perspetivas Os princípios que enformam um Estado de Direito ganham especial destaque no contexto do ordenamento jurídico-penal, onde a aplicação de uma consequência jurídico-criminal pode implicar a perda da liberdade individual. O direito penal em sentido amplo é encarado como uma área do direito “sensível”, tendo, por vezes, a contraditória função “de espada” (através da re-
24 Anabela Miranda Rodrigues, “Globalização, Democracia e Crime”, in José de Faria Costa, Marco António Marques da Silva (Coord.), Direito Penal Especial, Processo Penal e Direitos Fundamentais – Visão Luso-Brasileira, São Paulo, Quartier Latin, 2006, pp. 301 e ss. 25 Idem, ibidem.
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pressão do fenómeno criminal e da punição do delinquente) e “de proteção, de garantia” (v.g., contra a arbitrariedade e abusos das autoridades repressivas)26. Sendo o direito penal lato sensu o campo prolífero da aplicação de consequências jurídicas privativas da liberdade e de medidas processuais restritivas da liberdade pessoal ou patrimonial com a finalidade de acautelar a eficácia do procedimento está envolto de um conjunto de garantias. O direito penal lato sensu encarna a intervenção mais profunda da esfera da liberdade pessoal27. Desde a modernidade que o direito penal em sentido amplo assume-se envolvido por uma “capa protetora” que determina as suas condições de legitimidade material e formal. Há, pois, um conjunto de concretizações normativas e principiológicas que fundamentam e limitam o ius puniendi, conferindo-lhe legitimidade. Nesta sede, estão em causa as tradições clássicas político-criminais dos países europeus baseadas nos princípios jurídicos liberais, v.g., a necessidade de uma finalidade de tutela legítima (proteção de bens jurídicos / harm principle); o princípio da última ratio do direito penal; o princípio da culpa; o princípio da legalidade. Convém, pois, realçar, que uma adequada abordagem do princípio do Estado de Direito conduz à análise de que a resposta ao problema do crime perscruta-se não apenas à luz de padrões de eficácia, mas também no quadro do respeito dos direitos, liberdade e garantias, inter alia, de certas garantias individuais advindas da modernidade, como, v.g., a legalidade, a igualdade, a segurança jurídica28. Como sublinha Figueiredo Dias, “…uma eficaz prevenção do crime (…) só pode pretender êxito se à intervenção estadual forem levantados limites estritos – em nome da defesa dos direitos, liberdade e garantias das pes-
26 Nas palavras certas de Herbert Wechsler, “The Challenge of a Model Penal Code”, Harvard Law Review, 65, 1952, p. 1097, “[w]hatever view one holds about the penal law, no one will question its importance in society. This is the law on which men place their ultimate reliance for the protection against all the deepest injuries that human conduct can inflict on individuals and institutions. By the same token, penal law governs the strongest force that we permit official agencies to bring to bear on individuals. Its promise as an instrument of safety is matched only by its power to destroy. If penal law is weak or ineffective, basic human interests are in jeopardy. If it is harsh or arbitrary in its impact, it works a gross injustice on those caught within its coils. The law that carries such responsabilities should surely be as rational and just as law can be. Nowhere in the entire legal field is more at stake for the community, for the individual”. 27 Cf. Hans-Heinrich Jesheck, Tratado de Derecho Penal, Parte general, 4ª ed., Granada, Editorial Comares, 1993, p. 112. giovanni grasso, Comunitá Europee e Diritto Penale, I rapporti tra l’ordinamento comunitário e il sistemi penali degli stati membri, Milano, Giuffré, 1989, p. 76. 28 V. António García-Pablos de Molina, Tratado de Criminología, 4.ª Ed. Actualizada, corregida y aumentada, Valencia, Tirant Lo Blanch, p. 225. V. também Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp.177 e ss.
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soas – perante a possibilidade de uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva”29. Como sintetiza García-Pablos de Molina, esta função “liberal”, “garantística”, “limitadora” do direito penal, ainda que para alguns possa parecer contraditório, “corresponde ao direito penal, porque apenas o direito penal pode cumpri-la”30. Ora, retomando a interrogação atrás deixada solta: de que forma é que o direito penal lato sensu poderá cumprir esta função “liberal”, “garantística”, “limitadora” de uma intervenção estadual arbitrária ou excessiva? A resposta passa, desde logo, por uma subordinação rigorosa da intervenção do ordenamento jurídico-penal ao princípio da legalidade31. Com efeito, a “função de proteção” do direito penal exterioriza-se no princípio da legalidade, que constitui um dos princípios estruturantes do Estado de Direito e do direito penal em particular32. Esta função de garantia da lei penal exprime-se, como descreve Sousa e Brito, “através da particular configuração do princípio da legalidade em direito penal, que é inseparável do princípio da necessidade das penas e das medidas jurídico-penais e do princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal” 33. Como reforça Castanheira Neves, está aqui em causa “uma função de garantia exigida pela ideia do Estado-de-Direito, contra o exercício já ilegítimo (politico juridicamente ilegítimo), já abusivo (persecutório e arbitrário), já incontrolável (subtraído à racionalidade jurídicodogmático e critico-metodológi-
29 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.177 e ss. 30 V. António García-Pablos de Molina, Tratado de Criminología, 4.ª Ed. Actualizada, corregida y aumentada, Valencia, Tirant Lo Blanch, p. 226. 31 Assim, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.177. 32 Aliás, como refere Faria Costa, o princípio da legalidade revela-se “um pensamento estruturante da nossa cultura e civilização jurídicas” – cf. Faria Costa, “Construção e interpretação do tipo legal de crime à luz do princípio da legalidade: duas questões ou um só problema”, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 134, Abr. 2002, p. 354. 33 Cf. José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição”, in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, Petrony, 1978, pp. 197 a 254, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jsb_ma_8368.doc, p. 4. Como sublinha o Autor, “[e]ssa configuração implica os seguintes desvios entre a teoria geral das fontes de direito - que tem fundamento constitucional - e a teoria da lei penal: o princípio nullum crimen sine lege; a proibição da interpretação extensiva; a retroactividade da lei penal mais favorável”.
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ca) do ius puniendi estadual”34. Na esteira do Autor, sem a afirmação do princípio da legalidade penal, é “sem dúvida… inconcebível um Estado de Direito”35. O princípio da legalidade da intervenção penal apresenta-se como um dos princípios essenciais do direito penal moderno, em decorrência dos princípios do Iluminismo Penal e da doutrina do “contrato social” associado às exigências de se subordinar o exercício de todos os poderes do Estado à lei36. Ou seja, a teleologia e a própria razão de ser do princípio da legalidade penal residem na proteção dos direitos fundamentais do cidadão face ao possível exercício arbitrário ou excessivo do poder estatal37. Numa palavra, o princípio da legalidade penal encerra uma finalidade garantística nos quadros do Estado de Direito.
3.1 Breve análise dos fundamentos do princípio da legalidade da intervenção penal O princípio da legalidade da intervenção penal encerra uma série de fundamentos, quer externos, relacionados sobretudo com a conceção fundamental do Estado, outros internos, de natureza especificamente jurídico-penal38. Dentro dos fundamentos externos, sobretudo que que diz respeito ao princípio da legalidade na sua vertente formal, associados à conceção fundamental do Estado, destacam-se, e.g., o princípio liberal, o princípio democrático e o princípio da separação de poderes. Na esteira do princípio liberal, a activi34 Cf. Castanheira Neves, “O Principio da Legalidade Criminal - O seu Problema Jurídico e o seu Critério Dogmático”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Vol. I, Coimbra, Boletim da Faculdade de direito da Universidade de Coimbra, 1984, p. 311. Esta função de garantia, segundo o Autor (p. 379-381), é a forma através da qual no ordenamento jurídico-penal se cumpre a função geral de objetivação e institucionalização formal da normatividade jurídica atuante de um poder repressivo. O princípio da legalidade consiste, por isso, na especificação criminal de uma dimensão essencial da juridicidade, sendo, nesta medida, a expressão, no direito criminal, da função protetora que compete ao Direito em geral. 35 Idem, p. 412. 36 Uma exposição detalhada sobre a história do princípio da legalidade no quadro da época das Luzes pode ver-se em José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição”, in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, Petrony, 1978, pp.197-254, disponível em www.fd.unl.pt/ docentes_docs/ma/jsb_ma_8368.doc., pp. 5 e ss. 37 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 183. 38 Seguem-se aqui, sobretudo, os ensinamentos de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp., p.179 e ss. Castanheira Neves, “O Principio da Legalidade Criminal - O seu Problema Jurídico e o seu Critério Dogmático”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Boletim da Faculdade de direito da Universidade de Coimbra, Vol. I, 1984, pp. 57 e ss., refere-se a um “fundamento político” e a um “fundamento dogmático-jurídico”. Sobre estas dimensões na ótica do Autor, v., em especial, pp. 57 a 94.
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dade estadual que afete os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos tem de assentar numa lei geral, abstracta e anterior (art. 18º, n. os 2 e 3 CRP). Segundo os princípios democrático e da separação dos poderes, a intervenção penal só se afigura legítima se provier de uma instância que represente o Povo como titular último do ius puniendi39. No quadro dos fundamentos internos de cariz especificamente jurídico-penal destacam-se, sobretudo, a ideia da prevenção geral e o princípio da culpa40. Como ensina Figueiredo Dias, “[n]ão pode esperar-se que a norma cumpra a sua função motivadora do comportamento da generalidade dos cidadãos (…) se aqueles não puderem saber, através de lei anterior, estrita e certa, por onde passa a fronteira que separa os comportamentos criminalmente puníveis dos não puníveis” 41. Só através do princípio da legalidade a norma penal poderá cumprir esta função de prevenção - seja na perspetiva de prevenção geral negativa, de intimidação, seja e, sobretudo, no prisma da prevenção geral positiva de “estabilização das expectativas comunitárias”42. O princípio da culpa é aqui chamado à função legitimadora, enquanto “exigência incondicional de defesa da dignidade da pessoa humana43 que ressalta dos arts. 1.º, 13.º-1 e 25.º-1 da CRP”44. Ou seja, para sublinhar, seguindo 39 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp.179 e ss. 40 Assim idem, ibidem. Em sentido diferente, subentendendo que o fundamento é a axiológica normatividade do próprio direito, v. Castanheira Neves, “O Principio da Legalidade Criminal - O seu Problema Jurídico e o seu Critério Dogmático”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Boletim da Faculdade de direito da Universidade de Coimbra, Vol. I, 1984, pp. 64 e ss. 41 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.180. 42 V., para um desenvolvimento das exigências de prevenção, entre outros, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p.180 e especialmente, sobretudo direcionado para as consequências jurídico-penais, pp. 43 e ss. Na esteira de Figueiredo Dias (p. 180), ao contrário do que tem sido defendido pela generalidade da doutrina, a este entendimento deverá acrescentar-se que “também a própria função de prevenção especial positiva ou de ressocialização, no seu entendimento actual, confirma a exigência do princípio da legalidade: o comportamento que indicia a perigosidade não é (não pode ser) apenas sintoma ou índice da carência de socialização e ensejo para que esta intervenha, mas tem de ser co-fundamento e limite da intervenção criminal; nesta medida ressurgindo a exigência de legalidade estrita daquela”. 43 Enquanto “salvaguarda da qual se constitui todo o direito (hominum causa omne ius constitutum est), e da qual decorrem os direitos do homem” – cf. José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição”, in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, Petrony, 1978, pp.197254, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jsb_ma_8368.doc, p. 16. 44 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 2.ª Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p.180
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exatamente a linha de Figueiredo Dias quanto à culpa, que “a culpa jurídico-penal se encontra inevitavelmente funcionalizada ao sistema, na medida em que quer cumprir uma função político-criminal primária de limitação do intervencionismo estatal em nome de uma defesa consistente da eminente dignidade da pessoa…”45. Numa palavra, o princípio da culpa, assim delimitado, expressa o “valor de garantia e da função limitadora ínsitos no apelo à dignidade da pessoa” 46. Nesta perspetiva, como refere Figueiredo Dias quando ao princípio da culpa enquanto fundamento do princípio da legalidade, também “não seria legítimo dirigir a alguém a censura por ter actuado de certa maneira se uma lei com aquelas características não considerasse o comportamento respectivo como crime” 47. Associado intrinsecamente a estes fundamentos internos, podemos acrescentar um outro que, sendo transversal a todos os ramos do direito, e, nessa medida, exterior ao ordenamento jurídico-penal, merece uma consideração autónoma, na medida em que assume uma particular importância no contexto da norma penal48: o da proteção da segurança jurídica dos cidadãos (em especial, a proteção das suas expectativas legítimas com base na “determinação de comportamentos ínsita nas normas materiais”). Na esteira de Sousa e Brito “[o] verdadeiro fundamento do princípio [da legalidade penal] é [mesmo] a segurança jurídica e, especialmente, a segurança do indivíduo frente ao Estado, que se traduz num Estado de direito, no direito do indivíduo de não ser afectado nos bens essenciais da sua vida, senão na medida exigida por lei à realização dos fins do Estado”49. 45 Idem, p.514. 46 Idem, p.514. 47 Idem, p.180. Refira-se que na esteira de Pedro Caeiro – embora tendo em mente, de certa forma, um contexto mais específico, o princípio da culpa não deveria relacionar-se com a exigência de cognoscibilidade da eficácia das normas. Segundo o Autor, esta exigência “opera como critério da existência do dever”; o princípio da culpa, “ao requerer para a punição um juízo sobre uma ‘personalidade ético-socialmente censurável documentada no facto’, supõe já a violação do dever, pelo que não pode sequer conceber-se, a este propósito, uma ofensa ao princípio da culpa, que opera num plano ‘intra-sistemático’ e supõe a prática de um ilícito-típico definido por normas aplicáveis (enquanto regras de conduta e / ou de valoração) e, portanto, válidas”. 48 Como refere Faria Costa, o designado direito à segurança jurídica constitui “[p]onto fulcral (…) de toda a ‘organização’ teórica e substancial do direito penal”- cf. José de Faria Costa, “Uma ponte entre o direito penal e a filosofia penal”, in Linhas de Direito Penal e de Filosofia: Alguns Cruzamentos Reflexivos, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 217. 49 Assim José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição”, in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, Petrony, 1978, pp.197-254, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jsb_ma_8368.doc, p. 16.
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Ora, na medida em que a proteção da segurança jurídica pressupõe o conhecimento e a apreensão da norma material, em especial, a proteção das suas expectativas legítimas - enquanto regra de conduta/ “determinação de comportamentos” (prevenção geral) e parâmetro à luz do qual os factos jurídico-penais devem ser previamente perscrutados – este desiderato cumpre-se através de uma rigorosa expressão do princípio da legalidade, sobretudo, como se sublinhará, na sua vertente da determinabilidade. Ou seja, estão aqui em causa as duas dimensões do princípio da segurança jurídica: (i) na perspetiva da garantia individual dos cidadãos e (ii) e na do interesse da administração da justiça penal, na medida em que, como apreende Pedro Caeiro, “melhorem a legibilidade do direito aplicável”50. Segundo cremos, a segurança jurídica dos cidadãos - “onde [sobretudo] se inclui a cognoscibilidade das normas cuja violação importa a restrição de liberdades fundamentais”51 - constitui fundamento essencialíssimo do princípio da legalidade52. Ainda que se entenda que o princípio da segurança jurídica não assuma este carácter de fundamento, revela-se indiscutível que o princípio da legalidade consubstancia “uma expressão específica do princípio geral da segurança jurídica”, como se sintetizou no Acórdão Intertanko e o. do Tribunal de Justiça53. Ou então, noutra formulação, podemos avançar que a segurança e a confiança jurídico-criminais “informam” o sentido do princípio da legalidade penal54. Como sintetiza Sousa e Brito, a “… história revela que a consagração formal do princípio da legalidade, mesmo quando ligado ao seu lógico fundamento na dignidade de pessoa humana, (…), não é eficaz senão for também o 50 Cf. Pedro Caeiro, Fundamento, conteúdo e limites da jurisdição penal do Estado – o caso português, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 444. 51 Este alcance da segurança jurídica dos cidadãos, com o qual concordamos, é de Pedro Caeiro, Fundamento, conteúdo e limites da jurisdição penal do Estado – o caso português, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, p. 235. Esclareça-se contudo que não parece o Autor encarar, como nos moldes indicados no texto, o princípio da segurança jurídica como fundamento do princípio da legalidade. Aliás, nas palavras do Autor, o princípio da segurança jurídica “é superior, (geneticamente) prévio ao princípio da legalidade e exterior ao sistema jurídico-penal”. 52 Assim, José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição”, in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, Petrony, 1978, pp.197-254, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jsb_ma_8368.doc, p. 16. 53 Cf. Acórdão do TJCE, de 3 de junho de 2008, The Queen, a pedido de International Association of Independent Tanker Owners (Intertanko) e outros contra Secretary of State for Transport, Proc. N.º C308/06, disponível em http://eur-lex.europa.eu/ (última consulta a 25-10-2014) (considerando n.° 70). 54 Cf. Castanheira Neves, “O Principio da Legalidade Criminal - O seu Problema Jurídico e o seu Critério Dogmático”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Vol. I, Coimbra, Boletim da Faculdade de direito da Universidade de Coimbra, 1984, p. 25.
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princípio democrático, incluindo a separação de poderes” 55. Como fundamenta o Autor, “[e]mbora possa haver variações históricas no reconhecimento e na eficácia dos vários princípios que integram o Estado de direito, não se trata de um conceito tipicamente graduável (…) mas tendencialmente indivisível: os vários princípios que o constituem estão entre si em relações de dependência lógica ou empírica” 56.
3.2 Considerações gerais acerca das exigências do princípio da legalidade da intervenção penal Como sublinhámos já, a “função de proteção” do direito penal manifesta-se, muito especialmente, através do princípio da legalidade da intervenção penal, que constitui um dos princípios estruturantes do Estado de Direito e do direito penal em particular. A finalidade deste princípio é a da proteção do cidadão, contra os eventuais excessos do poder estatal. Esta é pois a matriz do entendimento do conteúdo de sentido do princípio da legalidade em matéria penal. O princípio da legalidade criminal expande-se em vários planos, atendendo às várias implicações que acarreta57.
55 Assim José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição”, in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, Petrony, 1978, pp.197-254, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jsb_ma_8368.doc, p. 24. 56 Idem, ibidem. Cremos, ainda, que fará sentido acrescentar um outro fundamento ao princípio da legalidade: o da promoção da igualdade jurídica, nas duas dimensões: enquanto direito dos cidadãos, e enquanto dever do Estado na sua promoção, sobretudo num contexto de transnacionalidade. Para maiores desenvolvimentos, ver o nosso, Para um (novo) modelo de intervenção penal na União Europeia: uma reflexão a partir do princípio da legalidade como limite material de atuação da Procuradoria Europeia, Lisboa, Rei dos Livros, 2016. 57 V., inter alia, sobre estes vários planos, vertentes e dimensões, também com diversa apresentação, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 183 e ss.; José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição”, in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, Petrony, 1978, pp.197-254, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jsb_ma_8368.doc, pp. 17 e ss. V., também, e J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a 107.º, Vol. I, 4.ª Ed. Revista, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 494 e ss e, Jorge Miranda, Escritos vários sobre Direitos Fundamentais, Estoril, Princípia, 2006, pp. 235 e ss., [igualmente publicado, quanto ao tópico da legalidade penal, em Jorge Miranda, “Os princípios Constitucionais da Legalidade e da Aplicação da lei mais favorável em matéria criminal”, O Direito, Ano 121, IV, 1989, pp 685 e ss].
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Neste âmbito, o princípio da legalidade criminal tem efeitos em cinco planos: (i) quanto ao âmbito58; (ii) quanto à fonte; (iii) quanto à proibição da analogia; (iv) quanto à proibição de retroatividade e (v) quanto à determinabilidade59. Numa outra organização, poderemos sintetizar que o princípio da legalidade encerra três exigências: (i) a determinabilidade, (ii) a irretroatividade e aplicação da lei mais favorável e (iii) a necessidade de uma lei parlamentaria ou equivalente (nullum crimen, nulla poena sine lege scripta parlamentaria)60. É apenas sobre o plano da determinabilidade que focar-se-á a nossa análise. Nesta medida, sobretudo no âmbito da leitura jurídico-constitucional no ordenamento jurídico português e das perspetivas europeias, sobretudo levadas a cabo pela jurisprudência do TEDH e do Tribunal de Justiça da União Europeia.
3.3 A exigência de determinabilidade ínsita no princípio da legalidade da intervenção criminal e o seu cumprimento pelo legislador A “função de proteção” do direito penal exprime-se através da particular configuração do princípio da legalidade em direito penal61. De uma forma muito 58 No plano do âmbito de aplicação, cumpre referir que o melhor entendimento, é o de que o princípio da legalidade da intervenção penal qua tale não se deverá aplicar a “toda a matéria penal”, mas àquela que “se traduza em fundamentar ou agravar a responsabilidade do agente”, não se aplicando, v.g., às causas de justificação ou de exclusão da culpa – cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 183. Sendo que esta consideração vale para os diversos planos em que o princípio da legalidade produz efeitos. 59 Seguem-se aqui os ensinamentos de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp., p.183 e ss. 60 V. assim, e.g., Petter asp et. al., Manifiesto sobre la política criminal europea, 2009, disponível em http://www. crimpol.eu./wp-content/Spanisch_Manifest_gesetzt-korr.pdf, (última consulta a 10-10-2013). Num esquema mais próximo, também, Jorge Miranda, Escritos vários sobre Direitos Fundamentais, Estoril, Princípia, 2006, pp. 235 e ss., [igualmente publicado, quanto ao tópico da legalidade penal, em Jorge Miranda, “Os princípios Constitucionais da Legalidade e da Aplicação da lei mais favorável em matéria criminal”, O Direito, Ano 121, IV, 1989, pp 685 e ss]. Segundo o Autor (p. 235), o princípio da legalidade em matéria criminal estuda-se em três ideias, que “podendo embora dissociar-se conceitual e historicamente, formam uma unidade incindível no plano ético e valorativo: a legalidade qua tale, a não-retroactividade e a tipicidade”.
61 Assim José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição”, in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, II, Lisboa, Petrony, 1978, pp. 197 a 254, disponível em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jsb_ma_8368.doc, p. 4. Como refere o Autor, “[a] função de garantia da lei penal exprime-se através da particular configuração do princípio da legalidade em direito penal, que é inseparável do princípio da necessidade das penas e das medidas jurídico-penais e do princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal.. V. castanheira neves, “O Principio da Legalidade Criminal - O seu Problema Jurídico e o seu Critério Dogmático”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Boletim da Faculdade de direito da Universidade de Coimbra, Vol. I, 1984, pp. 379 e ss.
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particular, esta teleologia garantística do princípio da legalidade revela-se na vertente da determinabilidade da lei penal, expressa no brocardo nullum crimen nulla poena sine lege certa (lex certa), que é a manifestação de um princípio geral de certeza e segurança jurídicas, aplicáveis ao direito penal. Do princípio da legalidade da intervenção penal, na exigência material, decorre a ideia de que o cidadão tem de saber, previamente e de uma forma suficientemente concretizada, sobre que factos poderá ser perseguido criminalmente e que consequências jurídico-criminais poderão ser aplicadas a esses factos jurídico-penais. Poderemos acrescentar que este princípio tem como corolário o princípio da tipicidade, segundo o qual cabe à lei determinar quais os factos ou condutas puníveis e quais os pressupostos que implicam a aplicação de uma medida de segurança62. Parece-nos feliz, neste contexto a expressão “legalidade-tipicidade” 63 . A exigência de determinabilidade diz respeito ao “tipo legal” ou ao “tipo de garantia”64. A controvérsia prende-se sobretudo com os problemas fundamentais da tipicidade65. Nesta medida, e tocando no ponto essencial, “[t]udo estará, assim, em determinar, com a segurança reclamada pelo princípio de legalidade, a estrutura da factualidade típica dos crimes”66, o “desenho da conduta típica” 67. 62 Cf. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 4.ª Ed., Lisboa, Rei dos Livros, 2011, p. 20. 63 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade, “Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado”, RPCC, N.º 4, 1994, p. 347. 64 Assim Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp.185 e ss. V., Manuel Cavaleiro de Ferreira, A tipicidade na técnica do Direito penal, Lisboa, 1935, pp. 39 e ss. Como referem Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 4.ª Ed., Lisboa, Rei dos Livros, 2011, pp. 20 e ss., a lei procede à determinação através dos “modelos” ou “tipos”, que “servem de padrão de aferimento através dos quais se verifica se os comportamentos humanos se encaixam nesses desenhos arquitectados pelo legislador, e, se se encaixam, então estamos perante uma conduta abstractamente criminosa”. 65 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade, “Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado”, RPCC, N.º 4, 1994, p. 347. 66 Assim, a propósito da determinação da factualidade típica dos crimes de Fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado, previstos nos artos 36 e 37.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, cf. Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade, “Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado”, RPCC, N.º 4, 1994, p. 346. 67 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade, “Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado”, RPCC, N.º 4, 1994, p. 347.
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Por isso, esta exigência do princípio da legalidade tem como destinatários, em primeiro lugar, o legislador68. Nesta medida, devem ser cognoscíveis – e desta forma previsíveis - os elementos (i) objetivos e (ii) subjetivos da punibilidade, assim como (iii) as consequências jurídicas69. A formulação dos “tipos legais” não pode inviabilizar a “determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos” 70. Impõe-se para que exista cumprimento do princípio da legalidade que esta formulação do “tipo legal de crime” seja certa, precisa e determinada. Como encara Figueiredo Dias, “é mais aqui até do que no plano da proibição da analogia ou da retroactividade que reside o grande perigo para a consistência do princípio nullum crimen, que é neste ponto que reside o verdadeiro cerne do princípio da legalidade” 71. Numa palavra, o princípio da legalidade da intervenção penal postula a cognoscibilidade - através da subsunção formal - do comportamento no “tipo de garantia” ou “tipo legal de crime”. Esta consideração impõe que o texto legal seja suficientemente determinado e claro. Se aquela previsibilidade não for 68 Cf. Jorge Miranda, Miguel Pedrosa Machado, “Constitucionalidade da proteção penal dos direitos de Autor e da Propriedade industrial – normas penais em branco, tipos abertos, crimes formais e interpretação conforme à Constituição”, RPCC, 4, 1994, p. 476. Nesta medida, pretende-se com o princípio da tipicidade garantir que “quer a redacção, quer a posterior interpretação e aplicação de normas penais revistam características de certeza ou determinabilidade”. Esclareça-se, desde já, que não pretendemos descurar a tarefa do aplicador da lei. Nesta medida, em certa medida, concordamos com Mário Ferreira Monte, “Da realização integral do direito penal”, in Jorge de Figueiredo Dias, José Joaquim Gomes Canotilho, José de Faria Costa (org.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. III, Direito Público, Direito Penal e História do Direito, Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Stvdia Ivridica, Coimbra Editora, 2008, p. 740 quando refere que “… a prescrição legislativa, por mais orientada que esteja para decisões jurídicas, carece em absoluto de uma concretização normativa que se dá na judicativa decisão, o que o mesmo é dizer, numa decisão obtida validamente, significando isto num determinado processo para uma situação concreta”. Não obstante, parece-nos ser de sublinhar o papel do legislador nesta sede, sobretudo, como se destaca, para “preparar” a tarefa do aplicador, que, num determinado momento – o da apreensão do comportamento punível – há de ser através do silogismo jurídico. A jurisprudência nacional e europeia, v.g., a do TEDH e a do Tribunal de Justiça da União Europeia têm densificado estas exigências de determinabilidade, nomeadamente as de clareza, acessibilidade e previsibilidade da lei penal. Para maiores desenvolvimentos e com recurso à jurisprudência, ver o nosso, Para um (novo) modelo de intervenção penal na União Europeia: uma reflexão a partir do princípio da legalidade como limite material de atuação da Procuradoria Europeia, Lisboa, Rei dos Livros, 2016
69 Petter Asp et. al., Manifiesto sobre la política criminal europea, 2009, disponível em http://www. crimpol.eu./wp-content/Spanisch_Manifest_gesetzt-korr.pdf, (última consulta a 10-10-2013) pp. 728 e ss.. 70 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 186 (destacado do Autor). 71 Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 186.
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alcançada, então a norma penal - e o direito penal lato sensu - não cumpre a sua função. Questão difícil estará em perscrutar o limite da tarefa de interpretação e sobretudo de aplicação da lei penal suportável para o princípio da legalidade, princípio que encerra, como sublinhámos, uma garantia do cidadão face às (eventuais ou possíveis) arbitrariedades ou excessos do ius puniendi. Sobretudo, o punctum saliens consistirá em apurar os critérios de que se deverá socorrer o aplicador da lei, para dentro do “quadro de sentidos possíveis” delimitado, selecionar o sentido que deve considerar-se “jurídico-penalmente imposto”72, em especial, e no que nos interessa, para apurar o comportamento punível à luz dos sentidos textuais que o tipo “espelha”. Para que se cumpra a teleologia do conteúdo do princípio da legalidade, nesta matéria penal concreta – na cognoscibilidade do comportamento à luz do “tipo de garantia” ou “tipo legal de crime”, parece estar em causa, em certa medida, um exercício de mera subsunção formal por parte do aplicador do direito73. Na verdade, como traduz Figueiredo Dias, verifica-se “na dogmática jurídico-penal (…) um momento ‘inicial’ de mera subsunção formal, em que o princípio da legalidade (…) impõe que o texto da lei constitua um limite absoluto de toda a tarefa de aplicação”74. Como apreende o Autor, não obstante “[p] ara além deste momento (…)- correspondente à subsunção do comportamento no tipo de garantia ou tipo legal de crime que o princípio da legalidade jurídico-constitucionalmente postula -, a dogmática do direito penal não se encontra submetida a qualquer outra exigência formal-subsuntiva”75. Numa palavra, atribui-se ao texto legal, sc., ao “teor literal do tipo legal” a função limitadora
72 Idem, p. 189. 73 Idem, pp. 29 e ss. e 185 e ss. 74 Idem, p. 29. 75 Idem, ibidem. No mesmo sentido vai Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria, A Adequação social da conduta no direito penal – ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da lei penal, Porto, Publicações Universidade Católica, 2005, p. 1132 e ss. Como refere a Autora a propósito do alcance “[d]o sentido do tipo legal de crime”, “a partir daqui os problemas não são poucos, uma vez que se tem de discutir onde se vai buscar o parâmetro decisório material se ele não coincide a par e passo com o parâmetro legislativo formal” (destacado nosso). Como reflete a Autora (p. 1132), no quadro da fundamentação da ideia de que o que define o sentido material da norma é “o seu sentido social vigente” – destapa a ideia de que “onde a conduta revela um sentido manifestamente distinto do tipo a que formalmente se subsume, não é típica” (destacado da Autora). A Autora enfatiza a ideia de que, para o alcance daquele sentido social ínsito na norma, apenas se permite “a “busca do sentido material da conduta a partir da identificação formal do tipo legal que se pretende aplicar (o que apenas legitima falar-se a este nível de interpretação) ”.
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na tarefa de interpretação76, à luz do qual se enceta a subsunção. Como postula o Autor77, não deve esta função limitadora assinalada ao “teor literal da norma incriminadora” ser substituída pela ratio legis. A ideia de sentido e finalidade da lei só deverá “entrar em jogo” depois de a interpretação admissível “passar a ‘prova de fogo’ (…) da sua admissibilidade face ao teor literal da lei e aos significados comuns que ele comporta”78. Nesta medida será também o “tipo” que acaba por definir “o horizonte de ‘codeterminação dialéctica’ em que (…) cada prius vale simultaneamente como um “posterius interpretativo” 79. Nesta medida, cremos que a previsibilidade e cognoscibilidade do comportamento punível alcançam-se através do método formal-subsuntivo do “tipo de garantia” ou do “tipo legal de crime”. Daí que seja essencial que – tanto quanto possível - a norma legal descreva o comportamento punível precisamente, sc., “delimitá-lo e caracterizá-lo sem recurso a conceitos indeterminados ou a cláusulas gerais e incertas; especificá-lo de tal sorte que, depois, a tarefa do julgador seja apenas a de subsumir no tipo normativo a acção ou omissão
76
Assim, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 191. Sobre isto v. Costa Andrade, “O princípio constitucional ‘nullum crimen sine lege’ e a analogia no campo das causas de justificação, RLJ, N.º 134, 2001, p. 76.
77
Assim, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 191.
78 Assim, idem, ibidem. 79 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade, “Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado”, RPCC, N.º 4, 1994, p. 347, socorrendo-se das expressões de Castanheira Neves, “O Principio da Legalidade Criminal - O seu Problema Jurídico e o seu Critério Dogmático”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, Vol. I, Coimbra, Boletim da Faculdade de direito da Universidade de Coimbra, 1984, p. 115 e 118. Esclareça-se que a conformação normativa dos tipos legais que visam tutelar bens jurídicos tem, naturalmente, consequências no regime jurídico-penal. Nesta medida, um critério hermenêutico importante, como apreendem Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade reside na “compreensão e alcance a adscrever aos singulares elementos da factualidade típica hão-de estar em consonância com a densidade axiológica e teleológica [v.g., de acordo com os bens jurídicos a proteger e com as manifestações de danosidade social a prevenir] das pertinentes incriminações”. Esta será a linha retora da hermenêutica, atendendo aos critérios de um moderno pensamento hermenêutico, defendido especialmente por Hassmer, Tatbestand und Typus, Köln, Carl Heymanns, p.14, de acordo com o qual os elementos da factualidade ganham sentido normativo “só em função do tipo”. Ou seja, como salienta Hassemer, “não são apenas os elementos que constroem o tipo, pois também o tipo constrói os elementos. É ele que os converte em algo, que os conforma, e isto no verdadeiro sentido da palavra”. Numa palavra,, verifica-se uma relação metodológica entre o tipo e os elementos do tipo.
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em concreto objecto da acusação” 80. Daí que, nas palavras de Paula Ribeiro de Faria, “se recuse um tipo de interpretação operativa em que se inserem no sentido material do tipo condutas que formalmente não se lhe subsumem”81. Se assim não fosse, a teleologia do princípio da legalidade sairia “socavada”, “esfumada”, não se limitando o exercício do ius puniendi, nem se defendendo cabalmente os direitos fundamentais dos cidadãos82. Numa palavra, existiria uma “invencível afronta ao princípio da legalidade-tipicidade” 83. Se em teoria esta construção é aquela que assegura a teleologia garantística do princípio da legalidade, no quadro do Estado de Direito, temos consciência de que esta limpidez e coerência lógica será extremamente difícil de alcançar84, desde logo, atendendo ao uso – recorrente! – de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais e de fórmulas gerais de valor, proliferando, assim, descrições do “tipo legal” “duvidosas” sobre a ótica do princípio da legalidade85. Ainda assim, esta ideia clássica do iluminismo assente na subsunção como limite último - tem de ser mantida – para apurar e prever os comportamentos puníveis á luz do “tipo legal de crime”. Este é, segundo cremos, a forma através da qual se poderá preservar o núcleo intransponível da vertente material do princípio da legalidade da intervenção penal. No demais, embora a teleologia do conteúdo do princípio da legalidade tenha de estar presente, a “flexibi80
Assim Jorge Miranda, Escritos vários sobre Direitos Fundamentais, Estoril, Princípia, 2006, p. 236, [igualmente publicado, quanto ao tópico da legalidade penal, em Jorge Miranda, “Os princípios Constitucionais da Legalidade e da Aplicação da lei mais favorável em matéria criminal”, O Direito, Ano 121, IV, 1989, pp 685 e ss].
81 Cf. Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria, A Adequação social da conduta no direito penal – ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da lei penal, Porto, Publicações Universidade Católica, 2005, p. 1132 e ss. 82 Este é o entendimento de Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, especialmente p. 191. 83 A expressão é de Jorge de Figueiredo Dias, Manuel da Costa Andrade, “Sobre os crimes de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção e de desvio de subvenção, subsídio ou crédito bonificado”, RPCC, N.º 4, 1994, p. 347, a propósito da inclusão de determinadas “práticas” no “desvio de subsídio”. 84 Como expressa Maria Paula Bonifácio Ribeiro de Faria, A Adequação social da conduta no direito penal – ou o valor dos sentidos sociais na interpretação da lei penal, Porto, Publicações Universidade Católica, 2005, p. 1132 e ss., a propósito do alcance “[d]o sentido do tipo legal de crime”, “a partir daqui os problemas não são poucos, uma vez que se tem de discutir onde se vai buscar o parâmetro decisório material se ele não coincide a par e passo com o parâmetro legislativo formal”. 85 Como refere Figueiredo Dias, “[o]s exemplos de hipóteses duvidosas sob o prisma em consideração podem multiplicar-se quase ad nauseam, por mais perfeita e cuidadosa que seja a técnica legislativa” - Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, Questões Fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 186. Para alguns exemplos, v. o mesmo Autor (p. 186).
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lização” terá de ser a chave para a compreensão do entendimento deste princípio. Neste prisma, ultrapassada a “operação lógico-jurídica da incriminação”, a posterior aplicação da lei já não está submetida àquela exigência metodológica estritamente lógico-formal 86.
IV. Considerações finais O paradigma do direito penal lato sensu, desenvolvido à luz da teleologia garantística do princípio da legalidade - independentemente das mutações e alterações profundas a que se tem assistido nos tempos atuais - tem de permanecer. Se desvirtuarmos aquele núcleo garantístico expresso no direito penal e através dele, correr-se-ia o risco de se dissipar o que o caracteriza intrinsecamente. Poderia ficar comprometido a síntese da contraditória função “de espada” (através do combate do crime e da punição do delinquente) e “de garantia” (v.g., contra a arbitrariedade e abusos das autoridades repressivas) do direito penal. Os indivíduos não podem ser transformados, e utilizando o conceito de Hannah Arendt, em “supérfluos”, “para os quais a distinção entre facto e ficção (isto é, entre a realidade da experiência) e a diferença entre verdadeiro e falso (isto é, os critérios do pensamento) deixaram de existir”87. De facto, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Europeia dos Direitos Humanos espelham “a consciência história que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais…mas as tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre” 88. Importa, por isso, neste momento onde proliferam, em diferentes quadrantes da sociedade e do mundo jurídico, e do mundo jurídico-penal em particular, discursos punitivos, de endurecimento das consequências jurídico-penais, reforçar a necessidade de serem valorizados os Direitos Humanos, sobretudo num contexto de intervenção penal.
86 Assim idem, p. 190. 87 Hannah Arendt, The origins of Totalitarism, 1951, New Ed. With added Prefaces, San Diego, Harcourt, Brace & Company, 1979, p. 474. Sobre a condição humana, v. da mesma Autora, The Human Conditions, Chicago, The University of Chicago Press, 1958, em especial, pp. 175-176. 88 Acílio da Silva Estanqueiro Rocha, “Em torno da pessoa humana”, in Mário Ferreira Monte (coord.), Que Futuro para o Direito Processual Penal? – Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 69.
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A ECONOMETRIA NA PENA DE MORTE: QUANTO VALE UMA VIDA HUMANA? Econometrics of capital punishment: how much is a human life worth?
Pedro Miguel Freitas1/2
Resumo: A análise do valor da vida humana nas hipóteses de causas de justificação leva-nos a concluir que esta não assume uma natureza absoluta e completamente inviolável, desde que preenchidos apertados pressupostos. Discutimos assim se e em que medida será viável uma legitimação da pena de morte, tendo como pano de fundo a discussão em torno desta pena nos Estados Unidos da América. Palavras-chave: Econometria; Pena de morte; Dissuasão; Brutalização. 1 Doutor em Direito. Docente na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. 2 O presente texto serviu de base à comunicação apresentada na Conferência comemorativa dos 150 anos de abolição da pena de morte, que teve lugar na Escola de Direito da Universidade do Minho, no dia 11 de Dezembro de 2017. Na verdade, este texto mais não é do que uma recoleção sumária de algumas ideias e reflexões gizadas em torno da questão central da quantificação da vida humana. Atendendo à premência na publicação das atas da referida conferência, optei por manter o registo simples, despojado e objetivo que norteou a comunicação oral. Espero, contudo, poder voltar a este mesmo tema, tão breve quanto possível, de forma mais aprofundada e bibliograficamente mais sustentada.
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A econometria na pena de morte: quanto vale uma vida humana? Pedro Miguel Freitas
Abstract: The analysis of the value of human life in the hypotheses of defences leads us to conclude that life does not have an absolute and completely inviolable nature, as long as certain legal requirements are fulfilled. We discuss whether and to what extent death penalty is legitimate, especially by analyzing scholarly work on the death penalty in the United States of America. Keywords: Econometrics; Death penalty; Deterrence; Brutalization. Quero em primeiro lugar agradecer o convite que me foi endereçado para participar numa iniciativa tão nobre e oportuna. Trata-se não apenas de uma oportunidade de comemorar os 150 anos de abolição da pena de morte em Portugal, mas também de refletir sobre o caminho que desde então temos feito em matéria de consequências jurídicas do crime. O tema que me incumbe é o da econometria na pena de morte. Embora seja algo novo, pelo menos para a maioria dos juristas portugueses, pareceu-me perfeitamente enquadrável e relevante para o tema geral desta conferência. De facto, a questão da mensurabilidade da vida é tópico que tem ocupado os cultores da filosofia, do direito penal e, mais recentemente, engenheiros informáticos3, entre outros. No campo do direito penal, aquele que nos é mais próximo, a discussão em torno do valor da vida e a possibilidade da sua mensuração e comparação relativa é assunto que habitualmente se insere num temário mais lato, o das causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. Se é certo que nas hipóteses de legítima defesa e de conflito de deveres, a vida não assume uma natureza absolutamente inquebrantável e intransponível, sendo possível a licitude do comportamento que a lese, mais duvidoso, sobretudo para quem se depara pela primeira vez com o estudo desta matéria, é perceber se a justificação poderá igualmente ocorrer no direito de necessidade. Um dos pressupostos específicos do direito de necessidade, previsto no artigo 34.º, al. b), é o de cumprimento do princípio do interesse preponderante, que se concretiza no seguinte: a justificação de um comportamento praticado ao abrigo do direito de necessidade só se dá se, inter alia, o interesse a salvaguardar for sensivelmente superior ao interesse sacrificado. Ora, se em conflito estiver um interesse como a integridade física e outro como o património a aplicação do princípio do interesse preponderante é, em regra, simples e imediata, dado que o primeiro se sobrepõe (habitualmente) ao segundo. Menos simples, mas igual3 Com o advento dos veículos autónomos, com capacidade de circularem na estrada sem constante intervenção humana ou mesmo sem qualquer intervenção, são suscitadas questões como a de codificar princípios éticos para solucionar dilemas com as quais as máquinas poderão deparar-se, v. g., uma escolha entre poupar a vida de três transeuntes ou a vida de dois passageiros.
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mente seguro, será o exemplo da corrida de uma ambulância que, com o intuito de salvar um ferido grave, origine um perigo para vida de transeuntes completamente alheios à situação4. Apesar de o comportamento poder ser enquadrado no artigo 291.º, n.º 3, caso o perigo haja sido causado negligentemente, e de o simples confronto objetivo entre os interesses conflituantes sugerir a exclusão do artigo 34.º, nomeadamente quando se arrime no critério de ponderação das molduras penais associadas à violação dos bens jurídicos em causa, a intensidade do perigo do bem jurídico salvaguardado justificará a ação de salvamento. Mais complexa e de resposta mais titubeante será a hipótese de conflito de vida contra vida. Manter-se-á a justificação da ação salvadora de uma vida à custa de outra? A resposta dominante caminha no sentido da sua recusa. Partindo de uma conceção personalista ética, a doutrina portuguesa tende a excluir o direito de necessidade com base no princípio da imponderabilidade da vida para efeito de estado de necessidade justificante. Esta imponderabilidade impõe-se, em via de regra, diante de quaisquer critérios quantitativos ou qualitativos. Ou seja, quanto ao critério quantitativo, a recusa de mensuração da vida como fator de ponderação para efeitos da al. b) do art. 34.º deverá manter-se mesmo que, numa situação concreta, o número de vidas a proteger seja objetivamente superior ao número de vidas sacrificado. Por outro lado, idêntica conclusão é proposta quando se tente invocar especiais características ou diferenças qualitativas entre as vidas em confronto. Em suma, exacerbando e fazendo confluir critérios quantitativos e qualitativos, a vida de um idoso moribundo valerá o mesmo que dez vidas de crianças saudáveis. Para um sector da doutrina, o princípio da imponderabilidade da vida sofre limitações nos casos da comunidade de perigo, isto é, aquelas constelações de hipóteses em que existe um perigo comum para um conjunto de pessoas e se sacrifica uma ou mais para impedir a morte de todas5. Para Roxin, que segue a doutrina alemã dominante, a justificação nestes casos deve ser negada, esgrimindo uma razão de “princípio” e uma “pragmática”. Primeiramente, sustenta que ao provocar-se a morte de uma pessoa, mesmo que esta esteja definitivamente “marcada pelo destino”, origina-se um encurtamento arbitrário da sua vida. Consequentemente, acrescenta o Autor, “admitir esto, sería abandonar el principio de que incluso la vida del condenado a morir está bajo la protección del ordenamiento jurídico. En tal caso ya no sería explicable de modo plausible por qué no iba a ser lícito incluso fuera de los supuestos de comunidad de peligro matar p.ej. a un moribundo para poder mantener con vida 4 Jorge Figueiredo Dias, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Questões fundamentais, A doutrina geral do crime, 2.a ed., 2.a reimp. (Coimbra: Coimbra Editora, 2012), 448. 5 P. ex., caso dos montanhistas, da tabula unius capax, do piloto do ferry, do Mignonette e da eutanásia.
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a otras personas trasplantándoles los órganos de aquél. (...) Y por eso tampoco tiene sentido distinguir según la duración aún esperable de la vida destruida; el hecho de que la víctima aún hubiera podido vivir diez minutos, diez horas o diez días (...) no puede constituir una diferencia”6. De um ponto de vista pragmático, sobressai a incerteza sobre se e como a morte da pessoa sacrificada acabaria por acontecer. Nas palavras de Roxin, “Cotidianamente se da el supuesto, que constituye ya una frase hecha, de que una persona que aparentemente estaba irremisiblemente perdida se ha salvado “milagrosamente”. (...) la persona que se encuentre en peligro siempre propenderá a efectuar pronósticos que despúes serán difícilmente refutables y que le permitirían asegurar su vida a costa de otro que se encuentra igualmente a merced del destino”7. Na doutrina portuguesa, temos Autores como Figueiredo Dias que propugnam pela aplicação do direito de necessidade, desde que não haja uma escolha da vítima, esta esteja já destinada a morrer em consequência do perigo e a ação seja adequada a afastar o perigo que impede sobre as restantes pessoas integrantes da comunidade de perigo. Nestes casos, v.g., caso dos montanhistas, só «um inadmissível doutrinarismo (unilateral e por isso pretensamente "ético"), uma “santificação” do valor da vida humana que, já o vimos a vários títulos, é estranha ao direito penal e à sua função, às proposições político-criminais básicas e aos juízos de valor (...) legais, poderia conduzir à negação do direito de necessidade”8. Para este Autor, “não é o (des)valor da vida que se sacrifica que justifica o facto, mas o valor das vidas que se salvam à custa de uma já condenada pelo destino”9. Desenhados os lineamentos principais em torno da mensuração ou ponderação da vida humana no quadro dos pressupostos das causas de justificação, em particular o direito de necessidade, mudemos, pois, a agulheta para as consequências jurídico-penais e suas finalidades. A questão que se coloca é se a ponderação da vida humana poderá servir de critério para a introdução ou manutenção da pena de morte, tendo como fim não a realização da justiça, pelo menos não de forma exclusiva, mas almejando a concretização de finalidades preventivas. O debate em torno da pena de morte convoca, habitualmente, argumentos socioculturais, filosóficos, jurídicos, entre outros. O que hoje trazemos é um 6 Claus Roxin, Derecho Penal: Parte General, Tomo I, trad. Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo, e Javier de Vicente Remesal (Madrid: Civitas, 1997), 689. 7 Ibid., 690. 8 Dias, Direito Penal I, 454. 9 Ibid.
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de índole econométrica. Quando falamos de econometria estamos, no fundo, a buscar os ensinamentos da Estatística, Matemática e Economia, aqui aplicadas à eficácia da pena de morte enquanto instrumento político-criminal dissuasor de prática de crimes, tendo por destinatários, como veremos adiante, todos os membros da comunidade. Não surpreendentemente, o estudo de referência neste capítulo, intitulado “The Deterrent Effect of Capital Punishment: A Question of Life and Death”, é da autoria de, na altura, docente da Universidade de Chicago, Isaac Ehrlich. Publicado em 197510, este estudo teve como objeto o reexame teórico-prático do efeito dissuasor da pena de morte, deslocando-se o enfoque das tradicionais (e importantes) considerações éticas e desejabilidade social de uma pena deste género. Deslocou assim o debate para a mensuração empírica, através de teorias e modelos económicos, de efeitos sociais utilitários da pena de morte. Um dos primeiros tópicos aí abordados que nos chama a atenção é o da hierarquização das penas tendo em conta a sua severidade e o efeito dissuasor por elas produzido. Intuitivamente a resposta parece ser imediata, mesmo quando a alternativa é a pena de prisão perpétua: enquanto uma elimina a vida do condenado, a outra cerceia indefinidamente a sua liberdade. Daí a afirmar que a pena de morte tem um efeito dissuasor superior é um pequeno passo lógico. Isaac Ehrlich assinala que argumentos puramente lógicos não são suficientes para sustentar que a pena de morte carrega maior severidade do que a pena de prisão perpétua para o delinquente potencial comum11. Ainda assim concede que a legislação, quer de tempos mais recentes quer mais antigos, tem postulado exatamente essa hierarquização e a realidade tem mostrado que oferecendo ao condenado a hipótese de comutação da pena de morte por uma pena de prisão perpétua este quase que invariavelmente aceita-a. No que concerne ao efeito dissuasor, se partimos do pressuposto que a pena de morte é mais severa12 e, consequentemente, mais temida, então o seu efeito dissuasor é também ele superior ao de qualquer outra pena. À partida, assim será. No entanto, tal como nota Isaac Ehrlich, a previsão e ameaça de aplicação da pena de morte pode, de um lado, ter um efeito dissuasor e, de outro, gerar um incentivo para o cometimento de crimes. Parece paradoxal. É, contudo, um nó górdio simples de desatar. Nas palavras de Isaac Ehrlich, “o efeito dissuasor (...) da pena de morte no incentivo para cometer homicídios pode ser compensado pelo incentivo adicional criado naqueles que cometeram esses crimes 10 Isaac Ehrlich, «The Deterrent Effect of Capital Punishment: A Question of Life and Death», The American Economic Review 65, n. 3 (1965): 397–417. 11 Ibid., 397–98. 12 Em sentido contrário, Jacques Barzun, «In Favor of Capital Punishment», The American Scholar 31, n. 2 (1962): 189.
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para eliminar polícias e testemunhas que possam contribuir para sua detenção, condenação e execução”13. Indo ao cerne do estudo, estima Isaac Ehrlich que, nos Estados Unidos, no período de 1933 a 1967, a execução de um condenado terá salvo, em regra, oito pessoas14. Perante esta conclusão, o passo que se segue é o da caraterização do efeito dissuasor. Assumindo que, de facto, existe esta correlação entre a execução do condenado e a vida de outras pessoas, resta saber se ela é consequência de uma atuação preventiva sobre o delinquente através de uma verdadeira neutralização, impedindo qualquer hipótese de reincidência, ou se a prevenção geral joga aqui um papel relevante. Para Isaac Ehrlich “não pode ser rejeitada a hipótese de que a punição em geral, e execução em particular, exerce um efeito preventivo autónomo sobre potenciais homicidas”15. Aqui chegados, o que dizer deste estudo? Embora o enfoque economicista sobre o binómio crime e punição tivesse já despontado em estudos prévios como de Gary Becker16, foi com Ehrlich que a discussão pública e académica em torno do efeito dissuasor ou preventivo da pena de morte conheceu enorme fulgor. A importância deste estudo é atestada pelo facto de ainda hoje gerar debate quanto aos seus méritos, quer dos seus defensores quer de quem põe em causa a metodologia empregue e fiabilidade dos seus resultados. É preciso não olvidar o contexto sociocultural e jurídico em que o mesmo se insere: um país onde 30 de 50 estados preveem a pena de morte, com um número de execuções por ano normalmente superior a 20, mas com taxas de homicídios assinaláveis e uma opinião pública que cada vez menos concorda com a pena de morte. Num meta-estudo de 200817, Yang e Lester analisaram mais de 90 estudos empíricos sobre o efeito dissuasor da pena de morte no número de homicídios e chegaram à seguinte conclusão: enquanto 60 estudos indicaram um efeito dissuasor, 35 deram conta da existência de um efeito de brutalização. Explicando. De acordo com a doutrina, a execução de um indivíduo por força da pena de morte pode ocasionar um efeito dissuasor, designadamente na modalidade de
13 Ibid., 398. 14 Ibid. 15 Ibid., 413–14. 16 Gary Becker, «Crime and Punishment: An Economic Approach», Journal of Political Economy 78 (1968): 169–217. 17 Bijou Yang e David Lester, «The Deterrent Effect of Executions: A Meta-Analysis Thirty Years after Ehrlich», Journal of Criminal Justice 36, n. 5 (Setembro de 2008): 453–60, doi:10.1016/j. jcrimjus.2008.07.008.
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prevenção geral, dissuadindo potenciais delinquentes18, como pode levar a um efeito oposto de brutalização definido por Joanna Shepherd como a “criação de um clima de violência brutal”19 20. Com a pena de morte, o Estado dá um sinal de que é correto matar para vingar a morte, sinal esse que é recebido e mimetizado pelos membros da comunidade21. Há como que uma legitimação da vingança e depreciação do valor da vida humana22. O delinquente potencial é visto como alguém que, em regra, não toma uma decisão racional de cometer um crime de homicídio, não sendo por isso influenciável pela possível ameaça dissuasora da pena de morte, e identifica-se tendencialmente com o executante da pena de morte23. Decorre do estudo de Yang e Lester que, na maioria dos casos, observou-se um efeito dissuasor da pena de morte. E se, na verdade, a pena de morte dissuade potenciais criminosos de praticarem novos crimes? Será completamente descabido ao menos colocar-se a questão da sua utilidade enquanto meio de controlo social se, como vimos, o direito penal não ampara uma completa e absoluta santificação do valor da vida humana? Deve ser completamente excluído um argumento utilitarista segundo o qual a aplicação da pena de morte permite salvar a vida de oito ou mais pessoas à custa de uma (o condenado)? Deverá o Estado assumir o dever de sacrificar uma vida para salvar potenciais vítimas ou, por outras palavras, poderá o Estado destituir-se da tarefa de salvaguardar o maior número de vidas para preservar apenas uma? Como ponto de ordem sempre se poderá contra-argumentar, seguindo a doutrina portuguesa, que, no caso do direito de necessidade, se afasta a justificação quando alguém se arroga o direito a escolher quem deve morrer, ou seja, a 18 De acordo com Ernie Thomson, «Deterrence versus brutalization: the case of Arizona», Homicide Studies 1, n. 2 (Maio de 1997): 110–11., o efeito (ou argumento) da dissuasão radica essencialmente em duas assunções: 1) homicidas potenciais tomam uma decisão racional antes de cometer o crime, sopesando as vantagens e desvantagens do seu comportamento; 2) homicidas potenciais tendencialmente identificam-se com os condenados a uma pena de morte e por isso receiam-na. 19 Joanna Shepherd, «Deterrence versus Brutalization: Capital Punishment’s Differing Impacts among States», Michigan Law Review 104, n. 2 (2005): 206. 20 Para esta Autora, há um número de execuções a partir do qual se consegue potenciar o efeito dissuasor. Caso as execuções não sejam em número suficiente, a taxa de homicídio agravar-se-á ou não existirá nenhum efeito. Esse número de execuções, calculado em 9 para o período de referência do estudo, será o ponto a partir do qual o efeito dissuasor da pena de morte sobrepor-se-á ao efeito de brutalização. 21 Shepherd, «Deterrence versus Brutalization: Capital Punishment’s Differing Impacts among States», 206. 22 John K. Cochran, Mitchell B. Chamlin, e Mark Seth, «Deterrence or Brutalization?: An Impact Assessment of Oklahoma’s Return to Capital Punishment», Criminology 32, n. 1 (Fevereiro de 1994): 110. 23 Cf. nota 18.
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escolha do indivíduo a morrer não deixar de ser feita pelo destino: alguém “marcado pelo destino”24. Porém, também é igualmente verdade que o monopólio estatal do ius puniendi coloca nas mãos do Estado a escolha dos indivíduos a serem punidos, através de fenómenos de neocriminalização ou descriminalização, e da espécie e quantum da punição. Já na legítima defesa, comummente fundamentada pela necessidade da defesa da ordem jurídica e pela necessidade de proteção dos bens jurídicos ameaçados pela agressão, emerge a ideia de preservação do Direito na pessoa do agredido25. Vemos então que, através do agredido, a reafirmação do Direito face ao ilícito pode, mediante o preenchimento de certos circunstancialismos, ser de tal magnitude que legitime a conduta de provocação da morte do agressor, sem que este último se possa escudar numa legítima defesa para repelir a ação de defesa. Por ter materializado a agressão, é-lhe normativamente imposto um dever de suportar a ação de defesa, desde que preenchidos os pressupostos legais. Em suma, e reafirmando algumas das ideias inicialmente expostas, o valor da vida humana não é tomado pelo direito penal como um valor absoluto e intangível, colocando inclusive nas mãos de privados, nomeadamente em casos de autotutela, o “poder” de terminar a vida de outrem26. Por isso, podemos dizer que o direito à vida é um direito humano inviolável? A meu ver, o fundamento ético do valor da vida humana, o direito à vida como direito tendencialmente inviolável, aliados à inexistência de estudos demonstrativos, para além de qualquer dúvida, de efeitos dissuasores ou preventivos da pena de morte, tornam espinhoso advogar-se uma posição que não seja a de recusa absoluta da pena de morte. Mesmo que se demonstrasse a emergência de efeitos preventivos, sabemos que a justiça (humana) não é perfeita e por isso não é imune a erros. Erros judiciais esses que podem levar à execução de pessoas inocentes. Não é motivo de espanto que, com recurso a testes de ADN27, o Innocence Project tenha provado a inocência de 350 pessoas injustamente condenadas, 20 das quais estiveram no corredor da morte28. Não vemos como se pode aceitar levianamente este risco de condenação de pessoas inocentes a uma pena tão severa e irreversível. Mas há quem o faça. Para Ernest van den Haag, “Despite precautions, nearly all hu24 O mesmo argumento não encaixa, pelo menos com o mesmo grau de exatidão, nos casos de legítima defesa e de conflito de deveres. 25 Dias, Direito Penal I, 423. 26 Não se retire daqui uma defesa da pena de morte, nem se pense que se olvidou a circunstância de a morte provocada por legítima defesa ocorrer numa situação limite em que o agredido atua em modo de autopreservação. 27 Yang e Lester, «The Deterrent Effect of Executions», 459. 28 Cf. https://www.innocenceproject.org/dna-exonerations-in-the-united-states/.
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man activities, such as trucking, lighting, or construction, cost the lives of some innocent bystanders. We do not give up these activities, because the advantages, moral or material, outweigh the unintended losses. Analogously, for those who think the death penalty just, miscarriages of justice are offset by the moral benefits and the usefulness of doing justice. For those who think the death penalty unjust even when it does not miscarry, miscarriages can hardly be decisive”29. Será então uma questão de assumir uma “atividade” de risco que se justificará em virtude dos seus benefícios. Ainda que se compreenda o raciocínio, que não é completamente destituído de lógica, seria necessário comprovar-se a utilidade ou vantagem, designadamente preventiva, da pena de morte para que este argumento fosse minimamente apelativo30. Por fim, uma palavra para o princípio da mínima restrição possível dos direitos fundamentais que deve nortear a atuação do Direito. Tal como assinalámos em matéria de legítima defesa, o direito penal em sentido amplo atua numa lógica de crescendo. A atuação do direito penal deve acontecer quando seja necessária e na medida da sua necessidade, procurando desse modo evitar-se, sempre que tal seja possível, lançar mão dos instrumentos mais lesivos de direitos fundamentais se outros estiverem disponíveis e forem eficazes. Numa perspetiva de profilaxia criminal, a previsão da pena de morte nunca será legítima se os objetivos a que esta se propõe puderem ser alcançados por outros meios, jurídicos ou não jurídicos, que tenham um impacto positivo imediato ou mediato nas causas do comportamento criminoso e/ou efeitos das sanções jurídico-penais menos gravosas, v.g. controlo de uso e porte de armas ou políticas sociais de eliminação ou mitigação de pobreza31. Como o tempo vai longo, termino realçando uma evidência. A minha participação nesta conferência teve um propósito dolosamente problematizante e questionador de uma matéria que, no nosso país, parece definitivamente respondida: a da (i)legitimidade e (des)necessidade da pena de morte. Contudo, a nossa comunidade em geral e o meio académico em particular não devem distrair-se diante de ideias cristalizadas, postulados e dogmas inquestionáveis. A reflexão e debate, num assunto tão sensível quanto este, são imprescindíveis para um afirmar fundamentado de certezas sociais, culturais e jurídicas. Olhemos, pois, para outras latitudes e longitudes, examinemos o argumentário empregado para sustentar (ainda) a pena de morte e afirmemos a nossa posição, mesmo que esta se mantenha inalterada. Embora inalterada na sua conclusão, os fundamen-
29 Ernest van den Haag, «The Ultimate Punishment: A Defense», Harvard Law Review 99, n. 7 (Maio de 1986): 1665. 30 A não ser que se opte por uma postura simplesmente ético-retributiva. 31 Também Yang e Lester, «The Deterrent Effect of Executions», 459.
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A econometria na pena de morte: quanto vale uma vida humana? Pedro Miguel Freitas
tos sairão fortalecidos e irão certamente além da evocação oca e inconsequente de um marco jurídico concretizado há 150 anos.
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TÍTULO Nos 150 Anos de Abolição da Pena de Morte em Portugal (Atas da Conferência Comemorativa do Dia Internacional dos Direitos Humanos de 2017) LOCAL E DATA Braga, Dezembro 2018 COORDENAÇÃO CIENTÍFICA Mário Ferreira Monte AUTORES Andréa De Boni Nottingham | Douglas Ribeiro Weber | Fernando Conde Monteiro | Flávia Noversa Loureiro José Carlos Lopes de Miranda | Manuel Monteiro Guedes Valente | Margarida Santos | Nestor Eduardo Araruna Santiago Pedro Miguel Freitas | Rafael Marcílio Xerez EDIÇÃO DH-CII Direitos Humanos – Centro de Investigação Interdisciplinar APOIO EDUM Escola de Direito da Universidade do Minho JUSGOV Centro de Investigação em Justiça e Governação JUSGRIM Grupo de Investigação em Justiça Penal e Criminologia FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia ISBN 978-989-54032-7-1
Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da Fundação para a Ciência e Tecnologia no âmbito do Projeto UID/DIR/4036/2013.