Anuário de Direitos Humanos - Nº2

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ANUÁRIO DE DIREITOS HUMANOS

Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos Escola de Direito da Universidade do Minho

2019



Anuário de Direitos Humanos 2019

JUSGOV Centro de Investigação em Justiça e Governação EDUM Escola de Direito da Universidade do Minho

Junho 2020



FICHA TÉCNICA

TÍTULO

Anuário de Direitos Humanos - nº2

ORGANIZAÇÃO E EDIÇÃO

Centro de Investigação em Justiça e Governação Universidade do Minho Campus de Gualtar 4710-057 Braga (+351) 253 601 841 / (+351) 253 601 810

|

jusgov@direito.uminho.pt

DIRETORA

Anabela Susana de Sousa Gonçalves

INTERVENIENTES

Anabela Susana de Sousa Gonçalves | Maira de Souza Almeida | Marco Carvalho Gonçalves | Maria João Lourenço | Pedro Dias Venâncio | Teresa Coelho Moreira | Tiago Branco da Costa

LOCAL E DATA

Braga, junho de 2020

PAGINAÇÃO E DESIGN DE CAPA Pedro Rito

FOTO DE CAPA

Foto original da capa de Laurenz Kleinheider (Unsplash)

ISSN

2184-1853

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ÍNDICE

NOTA PRÉVIA vii INTRODUCTORY REMARKS ix Aplicação (extra)territorial do Regulamento Geral de Proteção de Dados Anabela Susana de Sousa Gonçalves

1 A dignidade da pessoa humana e a possibilidade de acesso aos dados genéticos do empregado na relação de trabalho Maira de Souza Almeida

21 Citação eletrónica no processo judicial e tutela jurisdicional efetiva Marco Carvalho Gonçalves

35 O recurso à neurociência como meio de prova da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica nos processos de natureza criminal: (des)mistificação dos seus contributos e repercussões nos direitos dos arguidos Maria João Lourenço

51 A interoperabilidade como garantia do direito fundamental à liberdade de acesso às redes informatizadas de uso público, previsto no artigo 35.º n.º 6 da C.R.P. Pedro Dias Venâncio

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Algorithms discrimination and Labour Law Teresa Coelho Moreira

89 O regime de proteção de dados pessoais de pessoas falecidas: a «sucessão informacional» Tiago Branco da Costa

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Nota Prévia É com enorme satisfação que anunciamos o segundo número do Anuário de Direitos Humanos. Tal como no volume anterior, este é um número temático, sendo esta edição do Anuário dedicada à problemática dos Direitos Humanos e das Novas Tecnologias. Com o auxílio a um rigoroso processo de double blind peer review que nos permite manter um elevado padrão científico, publicamos um conjunto de artigos inovadores, que certamente suscitarão grande interesse por parte dos nossos leitores. Deixamos, por isso, uma primeira palavra de agradecimento aos revisores que nos acompanharam nesta edição. O primeiro artigo deste segundo número versa sobre a aplicação (extra) territorial do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD). Este estudo parte do âmbito de aplicação extraterritorial da Diretiva sobre Proteção de Dados, que se traduzia na aplicação extraterritorial do entendimento europeu sobre o que deveria ser a proteção de dados e a extensão do direito fundamental à proteção de dados para fora do território da União, para a análise do RGPD. Pretende-se determinar se esta característica se mantém no atual Regulamento e qual a importância da mesma. Dentro da temática da proteção de dados, encontramos outro artigo sobre o regime de proteção de dados pessoais de pessoas falecidas. Esta é uma questão particularmente atual, uma vez que, apesar de o RGPD excluir do seu âmbito de aplicação material os dados pessoais de pessoas falecidas, permitiu que os Estados-Membros estabelecessem regras para o tratamento dos dados pessoais de pessoas falecidas. Assim fez Portugal, através da lei de execução interna do RGPD. É uma visão desta lei execução interna que encontramos neste estudo, analisando a sua repercussão no regime sucessório português. Ainda na temática da proteção de dados, mas numa vertente de Direito do Trabalho, apresentamos outro artigo que, utilizando o direito comparado, analisa a dignidade da pessoa humana e a possibilidade de acesso aos dados genéticos do empregado na relação de trabalho, na ordem jurídica portuguesa e brasileira. Relacionado ainda com o Direito do Trabalho, mas agora na perspetiva da inteligência artificial, surge um artigo sobre algoritmos discriminatórios e direito do trabalho, onde somos assustadoramente alertados para o facto de os algoritmos, nas classificações e avaliações que fazem, frequentemente refletirem vii


preconceitos que existem em programadores e clientes. Em seguida, temos outro grupo de estudos em que os Direitos Humanos e as Novas Tecnologias são cruzados com o Direito Processual. O primeiro estudo é sobre citação eletrónica no processo judicial e a tutela jurisdicional efetiva. Examina-se a compatibilidade da citação através de transmissão eletrónica de dados com a efetividade da tutela jurisdicional, de acordo com o direito a um processo justo e equitativo. O segundo estudo procura examinar o recurso à neurociência nos processos de natureza criminal como meio de prova da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica, contrapondo este recurso com as garantias processuais dos arguidos. Terminamos, apresentando um último estudo em que se discute se a tutela da interoperabilidade digital representa uma realização do direito fundamental de liberdade de acesso às redes informáticas de uso público. Desta forma, encerramos o segundo número temático do Anuário de Direitos Humanos, agradecendo aos autores o envio dos trabalhos que agora apresentamos. A investigação no âmbito dos Direitos Humanos tem tido uma longa tradição na Escola de Direito da Universidade do Minho, ao longo dos anos, e mantém a sua força na investigação do Jus-Gov, como demonstra a periodicidade deste Anuário. O cruzamento que o Anuário de Direitos Humanos tem vindo a promover nas últimas duas edições com outras áreas do Direito, através dos seus números temáticos, permite também mostrar a diversidade da investigação feita no Jus-Gov. É nosso desejo que o Anuário continue a trilhar este caminho, sedimentando-se, em cada edição, como um periódico de referência na área dos Direitos Humanos. A editora, Anabela Susana de Sousa Gonçalves

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Introductory Remarks It is with great satisfaction that is announced the second issue of the Human Rights Yearbook. As in the previous volume, this is a thematic issue, and this edition of the Yearbook is dedicated to Human Rights and New Technologies. With the assistance of a rigorous double blind peer review process that allows us to maintain a high scientific standard, a set of innovative articles are published, which will certainly produce great interest on the part of our readers. Thus, a first word of acknowledgement is given to the reviewers who accompanied this edition. The first article of this second issue deals with the (extra)territorial application of the General Data Protection Regulation (GDPR). This study departs from the extraterritorial scope of the Data Protection Directive, which translated into the extraterritorial application of the European understanding of what data protection should be and the extension of the fundamental right to data protection outside the territory of the Union, to the analysis of the GDPR. It is intended to determine whether this characteristic is maintained in the current Regulation and its importance. Within the thematic of data protection, one finds another article on the regime for the protection of personal data of deceased persons. This is a particularly current issue since, although the GDPR excludes personal data of deceased persons from its material scope, it allowed Member States to establish rules for the processing of personal data of deceased persons. Portugal took that option, through the GDPR national enforcement law. It is a view of Portuguese national execution law that is found in this study, analyzing its repercussion in the Portuguese succession regime. Still on the subject of data protection, but related to Labour Law, another article, resorting to comparative law, analyses the dignity of the human person and the possibility of access to the employee’s genetic data in the employment relationship, in the Portuguese and Brazilian legal order. Related to Labour Law, but now from the perspective of artificial intelligence, there is an article on discriminatory algorithms and Labour Law, where the reader is disturbingly warned that the algorithms, in the classifications and evaluations they do, often reflect programmers and customer’s prejudices. Next, another group of studies cross Human Rights and New Technologies with Procedural Law. The first study is about electronic service of documents in the judicial procedure and ix


effective judicial protection. The compatibility of the service of documents through electronic data transmission is examined with the effectiveness of the judicial protection, according to the right to a fair and equitable procedure. The second study seeks to examine the use of neuroscience in criminal proceedings as a means of proving non-accountability due to psychic anomaly, scrutinizing this resource with the procedural guarantees of the defendants. A final study closes this volume where it is discussed whether the protection of digital interoperability represents an achievement of the fundamental right of freedom of access to computer networks for public use. This is a brief description of the second thematic issue of the Human Rights Yearbook. A final word of acknowledgement to the authors that submitted the studies now presented. Research in the field of Human Rights has had a long tradition at the Law School of the University of Minho, over the years, and maintains its strength in the investigation of Jus-Gov, as shown in the periodicity of this Yearbook. The intersection that the Human Rights Yearbook with other areas of law has been promote in the last two editions through its thematic numbers and also shows the diversity of the research carried out at Jus-Gov. It is the editor´s wish that the Yearbook continues to follow this path, establishing itself, in each edition, as a reference journal in the area of ​​Human Rights. The editor, Anabela Susana de Sousa Gonçalves

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APLICAÇÃO (EXTRA)TERRITORIAL DO REGULAMENTO GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS Anabela Susana de Sousa Gonçalves

Professora Associada da Escola de Direito, Universidade do Minho Investigadora do JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação asgoncalves@direito.uminho.pt

Resumo: O âmbito de aplicação espacial do RGPD é definido na norma de conflitos do seu art. 3º, que corresponde ao anterior art. 4º da Diretiva sobre Proteção de Dados. O art. 4º da Diretiva sobre Proteção de Dados era acusado de conferir à política de proteção de dados da União Europeia uma aplicação extraterritorial. Esta ideia da aplicação extraterritorial da Diretiva implicava no fundo a aplicação extraterritorial do entendimento europeu sobre o que deveria ser a proteção de dados e a extensão do direito fundamental à proteção de dados para fora do território da União. A questão que agora se coloca, e que pretendemos responder com este estudo, é determinar se a aplicação extraterritorial ainda se mantém no RGPD e a importância desta característica. Palavras-chave: Proteção de dados; Regulamento Geral de Proteção de Dados; aplicação territorial

1. Proteção de dados A proteção de dados pessoais tem uma longa tradição na União, estando prevista como direito fundamental no art. 8º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A primeira regulamentação desta matéria pela União constava da Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito

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ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (Diretiva sobre Proteção de Dados). A Diretiva sobre Proteção de Dados tentou harmonizar o tratamento de dados pessoais na União Europeia, para garantir a proteção de dados pessoais como um direito fundamental, mas também para garantir a livre circulação de dados pessoais entre os Estados-Membros e o desenvolvimento do mercado interno (considerando 9). Segundo o considerando 10 da Diretiva, a aproximação das legislações dos Estados-Membros garantiria um nível mínimo de proteção de dados na União e a livre circulação desses dados seria mais simples. Para cumprir estes objetivos de livre circulação de dados e proteção efetiva dos mesmos, a Diretiva harmonizou o tratamento de dados pessoais na União com base nos princípios da transparência, das finalidades legítimas e da proporcionalidade1. Apesar desta tentativa de harmonização da legislação dos Estados-Membros através da Diretiva sobre Proteção de Dados, na realidade, entre estes existiam diferentes níveis de proteção de dados pessoais, na medida em que a Diretiva não regulava de maneira abrangente a proteção de dados pessoais e algumas questões eram deixadas para a legislação nacional dos Estados-Membros2. Um exemplo do impacto das diferenças entre as legislações nacionais e europeia relativamente à circulação transfronteiriça de dados pessoais foi dado pela Comissão Europeia numa comunicação ao Parlamento Europeu, em 2012, em que se pode ler que uma empresa multinacional com vários estabelecimentos na União elaborou um sistema de mapeamento on-line do território europeu, que recolhe imagens de prédios públicos e privados e tira fotos de pessoas que andam nas ruas. Nuns Estado-Membro foi considerado ilegal a inclusão de imagens não desfocadas de pessoas que não sabiam que estavam sendo fotografadas, enquanto noutros Estados-Membros não3. Esta diversidade de regulamentação levou à fragmentação da implementação da política de proteção de dados na União 1 Sobre o regime jurídico da Diretiva, v. C S Castro, Direito da Informática, Privacidade e Dados Pessoais (Almedina, 2005), 65-275. 2 Como pode ser concluído pela análise de alguns estudos em que esta questão é analisada. V., e.g., L A Bygrave, “Privacy in a Global Context – A Comparative Overview” (2004), Scandinavian Studies in Law 47, 320-348; L Kong, “Data Protection and Transborder Data Flow in the European Context” (2010), 2 European Journal of International Law 21, 441-456; C Kuner, “Regulation of Transborder Data Flows under Data Protection and Privacy Law: Past, Present and Future” (2011), OECD Digital Economy Papers 187, 1-39; D J B Svantesson, Extraterritoriality in Data Privacy Law (Ex Tuto Publishing, 2013), 39-45, explicando as diferentes perspetivas entre os países de influência civilística e os países de common law e entre a Europa, os Estados Unidos e a Ásia. 3 Comissão Europeia, “Safeguarding Privacy in a Connected World. A European Data Protection Framework for the 21st Century” (2012), Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the Regions COM 9 final, 7.

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Europeia, colocando em risco a livre circulação de dados pessoais, distorceu a concorrência e criou obstáculos à expansão das atividades económicas. Entretanto, o avanço da tecnologia gerou novos desafios à proteção dos dados pessoais, que gerou a necessidade de repensar a proteção dos mesmos no território europeu. Tornou-se óbvio que a proteção eficaz dos dados pessoais das pessoas singulares passaria por uma aplicação uniforme e consistente do regime legal de proteção de dados no território da União. Adicionalmente, era necessário prever um sistema de monitorização dessa aplicação uniforme e de garantia de conformidade com essas normas jurídicas, para remover obstáculos à livre circulação de dados pessoais na União. Para atingir esses objetivos, foi elaborado o Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (RGPD)4. Este Regulamento tenta responder aos novos desafios que o desenvolvimento da tecnologia traz para a proteção de dados, com um regime jurídico mais aperfeiçoado em comparação com a anterior Diretiva sobre Proteção de Dados. Os objetivos do RGPD estão estabelecidos no seu considerando 13, podendo-se pela sua leitura concluir que estes consubstanciam-se: na necessidade de proteção uniforme dos direitos das pessoas singulares na União quanto ao tratamento de dados; na eliminação de obstáculos à livre circulação de dados pessoais; no aumento da segurança jurídica e transparência para as entidades que operam no mercado interno; e no estabelecimento de um sistema de garantia de aplicação efetiva da legislação da União relativa à proteção de dados pessoais. De acordo com o art. 2º, n.º 1, o RGPD é aplicável ao tratamento de dados pessoais, total ou parcialmente por meios automatizados, e ao tratamento desses mesmos dados por meios não automatizados, que façam parte de um sistema de arquivamento ou se destinam a fazer parte de um sistema de arquivamento5. O RGPD é aplicável desde 25 de maio de 2018, de acordo com o seu art. 99º, n.º 2. A existência de um regulamento eliminou o problema de determinar qual a lei de que Estado-Membro se aplicaria ao tratamento de dados, já que o regulamento é de aplicação direta e imediata, sem necessidade de transposição, e a sua aplicação quer-se uniforme. Coloca-se, agora, a questão do alcance de aplicação do RGPD e, sobretudo no âmbito espacial, a sua aplicação extraterritorial ou não. Analisemos, então, o âmbito de aplicação territorial do RGPD.

4 Regulamento 2016/679 EC [2016], JO L119/1. 5 Para um maior desenvolvimento sobre o conceito de dados pessoais, v. A S S Gonçalves, “O tratamento de dados pessoais no Regulamento Geral de Proteção de Dados” (2019), Scientia Ivridica 350, 165-180.

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2. O âmbito de aplicação espacial O âmbito de aplicação espacial do RGPD é definido na norma de conflitos do seu art. 3, que corresponde ao anterior art. 4º da Diretiva sobre Proteção de Dados. Como a Diretiva precisava de leis de transposição nacionais dos Estados-Membros, e entre essas leis nacionais existiam várias divergências permitidas pela própria Diretiva, o art. 4º da Diretiva sobre Proteção de Dados permitia definir qual a lei do Estado-Membro aplicável a um tratamento de dados. Ora, o RGPD é de aplicação direta e imediata e uniforme em todos os Estados-Membros6, a norma de conflitos atual, que está prevista no art. 3º do RGPD, vem determinar a aplicação do Regulamento propriamente dito. Note-se, todavia, que para aqueles aspetos que o RGPD deixa à regulamentação da lei nacional dos Estados-Membros, o art. 3º continuará a permitir determinar a lei do Estado-Membro aplicável. O art. 3º é ainda relevante para determinar a distribuição de competências entre as autoridades nacionais de controlo sempre que estiver em causa um tratamento transfronteiriço de dados pessoais7, nos termos do art. 4º, n.º 23. O art. 4º da Diretiva sobre Proteção de Dados era acusado de conferir à política de proteção de dados da União Europeia uma aplicação extraterritorial8. Esta ideia da aplicação extraterritorial da Diretiva implicava no fundo a aplicação extraterritorial do entendimento europeu sobre o que deveria ser a proteção de dados e a extensão do direito fundamental à proteção de dados para fora do território da União. A questão que agora se coloca, e que pretendemos responder com este estudo, será determinar se a aplicação extraterritorial ainda se mantém no RGPD e a importância desta característica.

2.1. O art. 3º, n.º 1, do RGPD Nos termos do art. 4º, n.º 1, al. a), da Diretiva Proteção de Dados, a lei do Estado-Membro que transpusesse a Diretiva seria aplicável quando o tratamento de dados pessoais fosse realizado no contexto das atividades realizadas por um

6 Em decorrência do facto da sua natureza de regulamento nos termos do art. 288º do Tratado de Funcionamento da União Europeia. 7 Tratamento transfronteiriço de dados pessoais é definido no art. 4º, n.º 23 do RGPD como a situação em que o responsável pelo tratamento ou subcontratante tem estabelecimentos em mais do que um Estado-Membro e o tratamento ocorre no contexto das atividades desses estabelecimentos; ou o tratamento dos dados é feito apenas no contexto das atividades de um único estabelecimento do responsável pelo tratamento ou subcontratante, mas afeta ou potencialmente pode afetar substancialmente os direitos dos titulares dos dados em vários Estados-Membros. 8 V. neste sentido, infra 3.2.1

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estabelecimento do responsável pelo tratamento situado na UE. A lei aplicável seria a do Estado-Membro em que esse estabelecimento estaria localizado. O atual art. 3º, n.º 1, do RGPD não altera de forma considerável a norma de conflitos da Diretiva. De acordo com art. 3º, n.º 1, o Regulamento aplica-se sempre que o tratamento de dados pessoais, ocorrendo dentro ou fora da União, seja efetuado no contexto das atividades de um estabelecimento de um responsável pelo tratamento ou de um subcontratante situado no território da União. Como alterações face à redação anterior, podemos apontar que enquanto o art. 4º, n.º 1, al. a), da Diretiva Proteção de Dados, abrangia apenas as atividades realizadas por um estabelecimento do responsável pelo tratamento situado na UE, o art. 3º, n.º 1, do RGPD abrange o tratamento por um estabelecimento de um responsável pelo tratamento ou de um subcontratante situado no território da União, dando uma maior amplitude à norma. Para a aplicação o art. 3º, n.º 1, do RGPD deve ser dada especial atenção: à noção de responsável pelo tratamento; ao conceito de estabelecimento; à localização do estabelecimento de tratamento dos dados e; à natureza das suas atividades. Convém concretizar conceitos importantes para a aplicação da norma. O responsável pelo tratamento é a pessoa coletiva ou singular ou entidade que, sozinha ou com terceiros, decide quais as finalidades do tratamento de dados pessoais e os meios utilizados para esse efeito, nos termos do art. 4º, n.º 7. O subcontratante é a pessoa (singular ou coletiva) ou entidade que trate os dados pessoais por conta do responsável pelo tratamento (art. 4º, n.º 7). O considerando 47 da Diretiva clarificava o conceito de responsável pelo tratamento recorrendo a um exemplo: nas mensagens que contêm dados pessoais transmitidas por e-mail ou outra tecnologia de comunicação, cujo objetivo é a transmissão destas mensagens, o responsável pelo tratamento é a pessoa de quem provém a mensagem e não os prestadores dos serviços de transmissão, todavia, «(…) as pessoas que propõem esses serviços serão em regra consideradas responsáveis pelo tratamento dos dados pessoais suplementares necessários ao funcionamento do serviço». O conceito de estabelecimento também pode colocar algumas dúvidas especialmente em atividades que se processam online, em que pode ser difícil determinar a localização do estabelecimento relevante, na medida em que a atividade do responsável pelo tratamento na Internet possa estar espalhada por vários países. O conceito de estabelecimento previsto no RGPD, assim como anteriormente na Diretiva, ajuda a resolver estas dúvidas, pois é adotado um conceito amplo. De acordo com o considerando 22, estabelecimento é definido como uma instalação estável, através da qual é exercida uma atividade real e efetiva, independentemente da forma que assume, seja sucursal ou filial. Por conseguinte, apenas é necessário um estabelecimento estável localizado num Estado-Membro, para que seja aplicável o RGPD, mesmo que o estabelecimento principal 5


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esteja localizado num país terceiro. Nessas situações, o Regulamento é aplicável mesmo que essa atividade tenha uma dimensão extraeuropeia. Por conseguinte, tal como a anterior diretiva, o RGPD aplica-se extraterritorialmente. O caso Google Spain é um exemplo da amplitude do conceito de estabelecimento. A Google Inc. é uma empresa que controla o Google Group, tem sede nos Estados Unidos, e explora o motor de pesquisa Google Search. No caso, apurou-se que Google Inc. tinha uma subsidiária – a Google Spain, que tinha personalidade jurídica separada e sede em Espanha, e que se destinava a promover a venda do espaço publicitário gerado no site www.google.com. Uma vez que a atividade da Google Spain era promover, facilitar e conseguir a venda de produtos e serviços de publicidade online a terceiros, bem como a comercialização dessa publicidade, visando principalmente empresas com sede na Espanha, por meio de uma instalação estável em Espanha, que tinha personalidade jurídica própria, o TJUE considerou que a Google Spain era uma filial da Google Inc. e um estabelecimento na aceção do artigo 4, n.º 1, al. a) da Diretiva9. A Google Spain foi, portanto, considerada uma instalação estável, através da qual uma atividade efetiva e real era exercida e, portanto, um estabelecimento conforme definido na Diretiva. A interpretação ampla do conceito de estabelecimento é justificada pelo TJUE pela necessidade de proteger o titular dos dados10 11. Os outros dois elementos importantes para a aplicação do RGPD, de acordo com o art. 3º, n.º 1, é a localização do estabelecimento que trata os dados na União e que esse estabelecimento efetivamente processe dados pessoais no contexto de suas atividades. Para a aplicação desta norma, a localização dos titulares dos dados ou dados ou o lugar do tratamento dos dados não são relevantes12. Por exemplo, no caso de um responsável pelo tratamento com um estabelecimento na Áustria que, no contexto de sua atividade, processa dados pessoais por meio de seu site acessível a usuários em vários países, inclusive países terceiros, o RGPD aplica-se ao tratamento destes dados13. Um exemplo mais complicado é o de um responsável pelo tratamento estabelecido na Áustria que terceiriza o tratamento para um subcontratante num país terceiro. Como o tratamento dos 9 Caso C-131/12, Google Spain SL, Google Inc. contra Agencia Española de Protección de Datos (AEPD), Mario Costeja González [2014] ECLI:EU:C:2014:317, §49. 10 Google Spain SL, supra n 9, §49. 11 Note-se que de acordo com o Grupo de Trabalho do Artigo 29, um servidor ou computador geralmente não é visto como um estabelecimento, mas apenas como uma instalação ou instrumento técnico simples para o tratamento de informações: Article 29 Data Protection Working Party, Opinion 8/2010 on applicable law (0836-02/10/EN WP 179, 2010), 12. 12 Como sucedia também para efeitos da Diretiva: Article 29 Data Protection Working Party, Statement on electronic evidence (2017), 5. 13 Exemplo adaptado de Article 29 Data Protection Working Party, supra n 11, 13.

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dados num país terceiro ocorre no contexto das atividades de um responsável pelo tratamento na Áustria, isto significa que o tratamento é realizado para fins comerciais e sob as instruções dadas pelo estabelecimento austríaco, logo o Regulamento é aplicável ao tratamento realizado pelo subcontratante14. Como referido, um dos principais casos de aplicação do anterior art. 4º, n.º 1, al. a) (que corresponde ao atual art. 3º, n.º 1), é o caso do Google Spain. Nesse caso, o tratamento de dados pessoais pelo motor de busca Google Search era feito por uma empresa sediada num Estado terceiro, nos Estados-Unidos, que tinha um estabelecimento na Espanha. Considerou-se que o tratamento de dados pessoais era realizado no contexto das atividades do estabelecimento em Espanha «(…) é efetuado «(…) se este se destinar a assegurar, nesse Estado-Membro, a promoção e a venda dos espaços publicitários propostos por esse motor de busca, que servem para rentabilizar o serviço prestado por esse motor»15. Ou seja, o TJUE considerou que as atividades entre o motor de busca e o estabelecimento localizado na Espanha estavam indissociavelmente ligadas, o que significava que este último permitia rentabilizar o motor de busca e esse estabelecimento precisava do motor de busca para realizar suas atividades16. Como a exibição dos dados pessoais era acompanhada pela exibição de uma publicidade vinculada aos termos de pesquisa, o TJUE considerou que o processamento de dados pessoais era realizado no contexto das atividades do estabelecimento do responsável pelo tratamento em território de um Estado-Membro, «(…) quando o operador de um motor de busca cria num Estado-Membro uma sucursal ou uma filial destinada a assegurar a promoção e a venda dos espaços publicitários propostos por esse motor de busca, cuja atividade é dirigida aos habitantes desse Estado-Membro»17. A ligação indissociável entre as atividades de tratamento de dados pessoais realizadas pelo motor de busca operado por uma empresa localizada num país terceiro e as atividades do estabelecimento localizadas num Estado-Membro que direciona essas suas atividades para esse Estado-Membro foi o elemento-chave para o TJUE considerar que o tratamento de dados pessoais foi realizado no contexto das atividades do estabelecimento localizado em Espanha. Em conclusão podemos dizer que retiramos do caso Google Spain que os dois elementos principais para o conceito de tratamento de dados pessoais pelo estabelecimento no contexto de suas atividades são: o vínculo indissociável entre as atividades de tratamento de dados identificadas no caso e a atividade do estabelecimento situado num Estado-Membro; e direção das atividades do estabelecimento para um Estado-Membro. 14 Exemplo adaptado: Article 29 Data Protection Working Party, supra n 11, 13. 15 Google Spain SL, supra n 9, §55. 16 Google Spain SL, supra n 9, § 56. 17 Google Spain SL, supra n 9, § 60.

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Também no caso Google LLC c. CNIL, o TJUE considerou que a Google tem um estabelecimento em território francês que aí exerce atividades comerciais e publicitárias, e que efetua um tratamento de dados, já que: as suas atividades comerciais e publicitárias «(…) estão indissociavelmente ligadas ao tratamento de dados pessoais efetuado com vista às necessidades de funcionamento do motor de busca em causa e, por outro, que se deve considerar que esse motor de busca, tendo em conta, nomeadamente, a existência de passadeiras entre as suas diferentes versões nacionais, efetua um tratamento de dados pessoais único»18. Assim, foi considerado que o tratamento de dados em causa era efetuado no âmbito do estabelecimento da Google em França19 20. O local do tratamento dos dados não é relevante para aplicação do Regulamento, já que a parte final do art. 3º, n.º 1, estabelece que o tratamento dos dados pode ocorrer dentro ou fora da União. Este esclarecimento pode ser útil nas situações em que o tratamento ocorrer num terceiro Estado ou numa cloud onde não é possível localizar especificamente o lugar do tratamento dos dados.

2.2. O art. 3º, n.º 3, do RGPD O RGPD também se aplica àquelas situações em que, apesar do estabelecimento do responsável pelo tratamento não se localizar no território da União, está localizado num local em que se aplica direito de um Estado-Membro em 18 Caso C‑507/17, Google LLC, sucessora da Google Inc., contra Commission nationale de l’informatique et des libertés (CNIL), sendo intervenientes: Wikimedia Foundation Inc., Fondation pour la liberté de la presse, Microsoft Corp., Reporters Committee for Freedom of the Press e o., Article 19 e o., Internet Freedom Foundation e o., Défenseur des droits [2019], ECLI:EU:C:2019:772, § 52. 19 Sobre a competência das autoridades de controlo quando um responsável pelo tratamento tem vários estabelecimentos em diferentes Estados-Membros dispõe o art. 56º, n.º 1, que para o tratamento de dados transfronteiriços, a entidade de controlo competente é a do estabelecimento principal ou do estabelecimento único do responsável pelo tratamento ou do subcontratante. O considerando 36 do RGPD ajuda-nos a identificar o que se deve considerar um estabelecimento principal na União. Será o local onde se encontra a sua administração central, exceto se as decisões relativas às finalidades e meios de tratamento dos dados pessoais forem tomadas noutro estabelecimento. Ainda de acordo com o mesmo considerando, a determinação do estabelecimento principal «[d]everá ser determinado de acordo com critérios objetivos e deverá pressupor o exercício efetivo e real de atividades de gestão que determinem as decisões principais quanto às finalidades e aos meios de tratamento mediante instalações estáveis», não dependo do local onde é feito o tratamento dos dados. Caso a reclamação apresentada ou as violações em causa visarem apenas um estabelecimento situado num Estado-Membro ou afetar substancialmente os titulares de dados num Estado-Membro, a competência caberá à autoridade de controlo desse Estado-Membro (art. 56º, n.º 2). 20 O considerando 36 também estabelece o conceito de estabelecimento principal do subcontratante como o local da sua administração central na União, ou no caso de não existir, o local onde são exercidas as principais atividades de tratamento de dados no território da União Europeia.

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resultado do Direito Internacional Público (art. 3º, n.º 3, do RGPD). Esta norma corresponde sem alterações ao anterior art. 4º, n.º 1, al. b) da Diretiva sobre Proteção de Dados Pessoais. No caso identificado na norma, o responsável pelo tratamento não tem o estabelecimento que faz o tratamento dos dados localizado num Estado-Membro, portanto, não é possível aplicar o RGPD por força do art. 3º, n.º 1. A norma em causa tem um escopo muito limitado, cobrindo apenas os casos em que a lei de um Estado-Membro é aplicável num terceiro Estado em que o responsável pelo tratamento está estabelecido, por exigência do direito internacional público. Nestas situações, a legislação da UE em matéria de proteção de dados não tem uma aplicação verdadeiramente extraterritorial, uma vez que a aplicação da lei de um Estado-Membro num terceiro Estado resulta do direito internacional público e ocorre em casos circunscritos. Poderá ser o caso de navios ou aviões com pavilhão ou matrícula de Estado-Membro. Lê-se no considerando 25 que a norma poderá ainda aplicar-se a missões diplomáticas ou postos consulares de um Estado-Membro. O art. 41º, n.º 1, da Convenção sobre Relações Diplomáticas, celebrada em Viena em 18 de Abril de 1961 estabelece que «[s]em prejuízo de seus privilégios e imunidades, todas as pessoas que gozem desses privilégios e imunidades deverão respeitar as leis e os regulamentos do Estado acreditador». Há uma visão atual no Direito Internacional Público que missões diplomáticas ou postos consulares não são território estrangeiro21, todavia, a verdade é que gozam de um conjunto de direitos e imunidades e é admissível, até por acordo com o Estado acreditador (art. 41º, n.º 1, da referida Convenção), que o RGPD se aplique nesses casos, ainda que a conclusão inversa também seja possível por respeito pela lei do país acreditador.

2.3. O art. 3º, n.º 2, do RGPD É o art. 3º, n.º 2, do RGPD que apresenta alterações mais significativas em relação à versão anterior presente no art. 4º, n.º 1, al. c) da Diretiva. Convém, por isso, analisar esta alteração. Antes de avançar, todavia, é preciso esclarecer que o art. 3º, n.º 2, do RGPD, tal como o anterior art. 4º, n.º 1, al. c) da Diretiva, só é aplicável quando o art. 3º, n.º 1 não for. Por conseguinte, aquela disposição legal só será aplicável se o responsável pelo tratamento não tiver um estabelecimento localizado na União que seja relevante para as atividades de tratamento de dados em causa. Caso contrário, é aplicável o artigo 3º, n.º 1. O art. 3º, n.º 2, também é aplicável se o responsável pelo tratamento tiver um estabelecimento que é irre21 J d’Aspremont, “Diplomatic Premises in International Law”, in R Wolfrum (ed.), Max Planck Encyclopedia of International Law (Oxford University Press, 2009), 1-2. Disponível em SSRN https://ssrn.com/abstract=1448769, consultado em 20 de fevereiro de 2020.

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levante para a aplicação do n.º 1 da mesma disposição legal, na medida em que suas atividades não estejam relacionadas com o tratamento de dados pessoais ou com o tratamento dos dados pessoais especificamente em causa22.

2.3.1. A opção extraterritorial da Diretiva sobre Proteção de Dados O art. 4º, n.º 1, al. c) da Diretiva conferia claramente à política de proteção de dados da União um âmbito extraterritorial. De acordo com a norma, era aplicável a lei de um Estado-Membro quando o responsável pelo tratamento, não estando estabelecido no território da UE, usava meios, automatizados ou não, situados no território de um Estado-Membro para o tratamento de dados pessoais. A justificação desta norma encontrava-se no considerando 20 da Diretiva, onde se lia que «(…) considerando que o facto de o tratamento de dados ser da responsabilidade de uma pessoa estabelecida num país terceiro [tal facto] não deve constituir obstáculo à proteção das pessoas assegurada pela (…) diretiva». Desta norma resultava uma grande amplitude do âmbito de aplicação da Diretiva e da legislação nacional dos Estados-Membros sobre proteção de dados, porque estas disposições legais eram aplicáveis ​​em situações em que o tratamento de dados não era realizado no território europeu ou em que o responsável pelo tratamento estava estabelecido fora da UE. Por exemplo, no caso de indivíduos que enviam dados pessoais para uma rede social online operada a partir de um servidor fora da União23, a aplicação da Diretiva era possível de acordo com os termos do artigo 4, n.º 1, al. c), na medida em que, mesmo que o estabelecimento do responsável pelo tratamento estivesse situado num terceiro Estado, o tratamento dos dados pessoais era efetuado através de um meio situado num Estado-Membro. Através desta regra, a aplicação das regras de proteção de dados pessoais da UE era ampliada. O fator determinante de aplicação da norma era o uso de meio, cujo significado implicava dois fatores: um elemento objetivo, ou seja, a atividade de tratamento por parte do responsável pelo tratamento, que não exigia a propriedade ou controle total do equipamento para o tratamento; um elemento subjetivo, ou seja, a intenção clara do responsável pelo tratamento no tratamento dos dados pessoais24. O conceito amplo de meio utilizado para o tratamento de dados também ajudava a alargar a aplicação extraterritorial das normas europeias de proteção de dados. O conceito de meios utilizados para o tratamento de dados devia ser interpretado como qualquer meio de tratamento de dados, automatizado ou não, o 22 Article 29 Data Protection Working Party, supra n 11, 19. 23 C Kuner, supra n 2, 25. 24 C Kuner, supra n 2, 20.

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que levava a uma interpretação ampla do conceito como incluindo intermediários humanos e/ou técnicos, como em pesquisas ou inquéritos, de acordo com o Grupo de Trabalho para Proteção de Dados do Artigo 2925. Esta interpretação ampla do conceito de meio de tratamento, além da referida aplicação extraterritorial da Diretiva, levava à aplicação da legislação da União a atividades que tinham uma ligação fraca com o seu território. Por exemplo, a ampla interpretação indicada acarretava a aplicação da legislação da União a atividades realizadas por subcontratantes localizados no território de um Estado-Membro em nome de um responsável pelo tratamento estabelecido num terceiro Estado26. Do mesmo modo, a recolha de dados pessoais através dos computadores dos usuários, como por exemplo no caso de cookies ou banners de JavaScript, desencadeava a aplicação do artigo 4.º, n.º 1, alínea c) e, portanto, da Diretiva sobre Proteção de Dados aos prestadores de serviços estabelecidos em países terceiros27. Por fim, de acordo com essa interpretação ampla, um responsável pelo estabelecido num Estado terceiro e utilizando meios situados num Estado-Membro, embora tratasse dados de não-residentes na União, desencadeava a aplicação do art. 4º, n.º 1, al. c), devendo cumprir a legislação da UE sobre proteção de dados. Nestes casos de aplicação extraterritorial da legislação da União em matéria de proteção de dados, a questão que se colocava era se existia uma conexão suficiente entre essas atividades e a União e que legitimasse a aplicação da Diretiva. Estas situações de aplicação extraterritorial da legislação da UE suscitavam problemas de aplicação dos direitos protegidos pela Diretiva 95/46/CE. Para acautelar esta questão, o art. 4º, n.º 2, determinava que, nas circunstâncias do n.º 1 al. c), o responsável pelo tratamento devia designar um representante estabelecido no território desse Estado-Membro, independentemente das ações que pudessem ser intentadas contra o próprio responsável pelo tratamento. No entanto, se o responsável pelo tratamento estava localizado num terceiro Estado, não era claro como podiam ser intentadas ações contra aquele. 25 Article 29 Data Protection Working Party, supra n 11, 20. De acordo com o Grupo de Trabalho para Proteção de Dados do Artigo 29, essa exceção ao critério do equipamento devia ser interpretada de maneira restrita. No entanto, teria uma aplicação limitada, porque, como o Grupo aponta, atualmente os serviços de telecomunicações geralmente anexam serviços de trânsito e de valor agregado, como “serviços de filtragem de spam e outras manipulações de dados na ocasião de sua transmissão”, como o Grupo aponta: Article 29 Data Protection Working Party, supra n 11, 23. De acordo com o Grupo de Trabalho para Proteção de Dados do Artigo 29, essa exceção ao critério do equipamento devia ser interpretada de maneira restrita. No entanto, teria uma aplicação limitada, porque, como o Grupo apontava, atualmente os serviços de telecomunicações geralmente anexam serviços de trânsito e de valor agregado, como “serviços de filtragem de spam e outras manipulações de dados na ocasião de sua transmissão”: Article 29 Data Protection Working Party, supra n 11, 23. 26 Article 29 Data Protection Working Party, supra n 11, 23. 27 Article 29 Data Protection Working Party, supra n 11, 20.

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Esse problema de efetividade poderia ser atenuado se o representante pudesse ser responsabilizado e sancionado em nome do responsável pelo tratamento, mas isso dependeria da natureza do relacionamento entre o representante e o responsável pelo tratamento, aspeto que a Diretiva não esclarecia. Em resultado, em alguns Estados-Membros, o representante substituía o responsável pelo tratamento, também no que se refere à execução e sanções, enquanto em outros tal não sucedia. Alguns Estados-Membros, nas suas leis nacionais previam explicitamente multas aplicáveis ​​aos representantes, outros Estados-Membros não28. As diferenças na transposição da Diretiva conduziam à insegurança e à falta de uniformidade no que diz respeito às sanções que podiam resultar do incumprimento da lei de um Estado-Membro em consequência da aplicação do art. 4º, porque em certas situações em que os meios de tratamento estavam localizados num Estado-Membro a não conformidade com a legislação da União afetava o responsável pelo tratamento localizado num terceiro Estado e, em outros casos, não. Alguns autores, olhando para a Diretiva, acusam a União de legislar para o mundo quanto à proteção de dados29. De facto, olhando para o âmbito extraterritorial da Directiva, esta era uma afirmação verdadeira. Já para outros autores, as reivindicações jurisdicionais extraterritoriais eram razoáveis, porque se os Estados não estendessem sua proteção de dados à conduta de terceiros, não estrariam fornecendo proteção efetiva para seus cidadãos30. Tendo em consideração estes dados, analisemos, em seguida, a opção que o legislador da União fez no RGPD.

2.3.2. A opção do RGPD O texto do RGPD, no art. 3º, n.º 2, estabelece é aplicável ao tratamento de dados pessoais dos titulares de dados que estejam na União, realizado por um responsável pelo tratamento ou subcontratante não estabelecido na UE, desde que as atividades de tratamento estejam relacionadas: com a oferta de bens ou serviços a esses titulares de dados, independentemente de ser exigido um pagamento do titular; ou a monitorização do comportamento desses titulares de dados, na medida em que o comportamento tenha lugar na União.

28 Article 29 Data Protection Working Party, supra n 11, 23. 29 A Bygrave, supra n 2, 334; L A Bygrave, “Determining Applicable Law pursuant to European Data Protection Legislation” (2000), 16 Computer Law & Security Report 252, 257; P Ford, “Implementing the EC Directive on Data Protection – an outside perspective” (2003), 9 Privacy Law and Policy Reporter 141, 149. 30 D Svantesson, “Extraterritoriality in the Context of Data Privacy Regulation” (2012), 7(1) Masaryk Journal of Law and Technology 87, 95.

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Note-se que há uma divergência na redação desta norma do Regulamento, em função do idioma. A versão portuguesa estabelece que «[o] presente regulamento aplica-se ao tratamento de dados pessoais de titulares residentes no território da União (…)]. A versão espanhola segue a versão portuguesa: «[e]l presente Reglamento se aplica al tratamiento de datos personales de interesados que residan en la Unión». Em sentido diverso, temos a versão inglesa, a francesa, a italiana e a alemã. Passemos a comparar as referidas versões. A versão inglesa estabelece que: «[t]his Regulation applies to the processing of personal data of data subjects who are in the Union (…)». Na versão francesa lê-se: « [l]e présent règlement s’applique au traitement des données à caractère personnel relatives à des personnes concernées qui se trouvent sur le territoire de l’Union». A versão italiana determina que: «[i]l presente regolamento si applica al trattamento dei dati personali di interessati che si trovano nell’Unione». Na versão alemã lê-se que: «[d]iese Verordnung findet Anwendung auf die Verarbeitung personenbezogener Daten von betroffenen Personen, die sich in der Union befinden». Ora, é diferente o requisito de a pessoa residir na União ou estar na União, porque o segundo entendimento implica que ao tratamento de dados de um turista não residente na União, mas que esteja a viajar pela União, é aplicável o regime jurídico de proteção do RGPD, se preenchidos os restantes requisitos do art. 3º, n.º 2. Já o primeiro entendimento limita a aplicação do RGPD aos residentes na União Europeia. Tendo em consideração que a aplicação do RGPD deve ser uniforme em toda a União e tendo em conta os trabalhos preparatórios do Regulamento31, cremos que deve prevalecer o disposto na versão inglesa, francesa, italiana e alemã do RGPD. No art. 3º, n.º 2, do RGPD há uma cumulação de elementos de conexão para determinar a aplicação espacial do direito da União: os titulares dos dados estão na União; o responsável pelo tratamento ou subcontratante não têm es31 A versão tradução portuguesa corresponde à proposta da Comissão Europeia de 2012, em que se podia ler que o Regulamento aplicar-se-ia aos responsáveis pelo tratamento estabelecidos em Estados terceiros que processassem dados pessoais de indivíduos residentes na UE, desde que as atividades de processamento estivessem relacionadas com a oferta de bens ou serviços a esses indivíduos na União ou a monitorização do seu comportamento: European Commission, Proposal for a Regulation of the European Parliament and of the Council on the protection of individuals with regard to the processing of personal data and on the free movement of such data (General Data Protection Regulation) (COM 11 final, 2012), 1-118. Em 12 de março de 2014, o Parlamento Europeu adotou o relatório da Comissão das Liberdades Cívicas, da Justiça e dos Assuntos Internos, apresentado em 22 de novembro de 2013: texto disponível em http://www.europarl.europa.eu/ sides/getDoc.do?type=TA&reference=P7-TA-2014-0212&language=EN&ring=A7-2013-0402, consultado em 15 de junho de 2015. Este texto propôs algumas alterações significativas à proposta de Regulamento, tendo em relação à norma em questão eliminado a residência habitual do titular dos dados como elemento de conexão quando o responsável pelo tratamento não tem estabelecimento na UE.

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tabelecimento no território da União (se tiverem aplica-se o n.º 1, do art. 3º); a natureza das atividades de tratamento que implica que sejam dirigidas aos titulares de dados na UE nas circunstâncias descritas32. Os considerandos do RGPD ajudam-nos a concretizar alguns dos conceitos operativos que estão presentes no art. 3º, n.º 2. Desde logo para determinar o conceito de atividades de tratamento estejam relacionadas com a oferta de bens ou serviços a esses titulares de dados, de acordo com o considerando 23, há que determinar a existência de um elemento subjetivo da parte do responsável pelo tratamento ou subcontratante: se é clara a intenção de estes oferecerem serviços ou bens a titulares de dados em um ou mais Estados-Membros na União. Para o efeito deve-se recorrer a indícios que denunciem essa intenção, como por exemplo «(…) a utilização de uma língua ou de uma moeda de uso corrente num ou mais Estados-Membros, com a possibilidade de encomendar bens ou serviços nessa outra língua, ou a referência a clientes ou utilizadores que se encontrem na União, que podem ser reveladores de que o responsável pelo tratamento tem a intenção de oferecer bens ou serviços a titulares de dados na União» (considerando 23). Este mesmo considerando explica que não são relevantes fatores, como: o mero facto de um site ser acessível na União do responsável pelo tratamento ou subcontratante ou de um intermediário, um endereço eletrónico ou outro tipo de contactos, ou o uso de um idioma de utilização corrente no país terceiro em que o responsável está estabelecido. De acordo com o Grupo de Trabalho do Artigo 29, um exemplo será uma loja online japonesa, que vende produtos através do seu site, em inglês, em que os pagamentos são feitos em euros, tratando vários pedidos por dia de pessoas que estão nos Estados-Membros e enviando esses produtos para o território da União, estão sujeitos à aplicação do RGPD e devem respeitar as obrigações que dele resultam33. Note-se que a direção das atividades para um certo Estado-Membro é um critério que foi primeiramente ensaiado pelo TJUE para os contratos de consumo do comércio eletrónico. Neste tipo de contratos que ocorrem online, um dos critérios de aplicação das normas de jurisdição e de conflitos nesta matéria dependeria do requisito de o profissional dirigir as suas atividades para o país de residência habitual do consumidor, o que seria avaliado através de certos indí-

32 Esta ideia de dirigir as atividades de tratamento aos titulares de dados que estão na União já resulta da jurisprudência do TJUE, como por exemplo no caso Weltimmo, ainda que neste estivesse em causa a aplicação do art. 4º, n.º 1, al. a) da Diretiva: Caso C‑230/14, Weltimmo s. r. o. contra Nemzeti Adatvédelmi és Információszabadság Hatóság [2015] ECLI:EU:C:2015:639, § 66. 33 Article 29 Data Protection Working Party, EU General Data Protection Regulation, General Information Document (2017), 2. Disponível em file:///C:/Users/asdes/Downloads/20171023C2dii_APPA-GDPR_Document_Final19092017pdf.pdf, consultado em 20 de maio de 2018.

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cios do caso concreto que pudessem comprovar esta direção de atividade34. Este teste de indícios que permitem identificar o país alvo da atividade de oferta ou venda de bens e serviços do responsável pelo tratamento ou subcontratante é também adotado na aplicação do RGPD. Uma questão é quais serão esses indícios relevantes e se poderão ser transpostos, com as necessárias adaptações, dos já desenhados pelo TJUE para o contrato de consumo eletrónico. Outra dúvida prende-se com o facto de saber se se deve avaliar a atividade de dirigir objetivamente ou subjetivamente ou ambos. Do considerando 23 parece claro o elemento subjetivo (a intenção do responsável pelo tratamento ou subcontratante) oferecer serviços ou bens a titulares de dados em um ou mais Estados-Membros, por isso não podemos deixar de admitir que está em causa um critério misto.35 Para determinar o conceito de controlo do comportamento do titular dos dados, temos o auxílio do considerando 24, onde se estabelece que deve ser determinado se «(…) se essas pessoas são seguidas na Internet e a potencial utilização subsequente de técnicas de tratamento de dados pessoais que consistem em definir o perfil de uma pessoa singular, especialmente para tomar decisões relativas a essa pessoa ou analisar ou prever as suas preferências, o seu comportamento e as suas atitudes». Será o caso de cookies que permitem traçar perfis de comportamento e de consumo. Para tornar efetivo a aplicação do RGPD, nas situações do art. 3º, n.º 2, em que há uma menor ligação do responsável pelo tratamento ou subcontratante com o território da União, e em que pode existir um maior risco de aplicação extraterritorial do Regulamento, estabelece o art. 27º que o responsável pelo tratamento ou o subcontratante deve designar por escrito um representante na União36, que age em seu nome no que diz respeito às obrigações decorrentes do 34 O requisito da direção das atividades para um Estado está também presente no art. 6º do Regulamento n.º 593/2008, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) e o art. 17º, n.º 1, al. c) do Regulamento n.º 1215/2012, de 12 de dezembro de 2012, sobre competência internacional e reconhecimento de decisões em matéria civil e comercial (Bruxelas I bis), e tem sido aplicado pelo TJUE aos contratos de consumo internacionais celebrados no comércio eletrónico. Para mais desenvolvimentos, v. A S S Gonçalves, “The E-Commerce International Consumer Contract in the European Union” (2015), 9 (1) Masaryk University Journal of Law and Technology 5, 5-20. 35 Também para efeitos do contrato de consumo internacional no comércio eletrónico o TJUE construiu um critério misto, já que de acordo com a interpretação deste, para concretizar o conceito de dirigir atividade para um país é crucial a intenção do profissional (fator subjetivo) em contratar com consumidores domiciliados em outros Estados, o que é determinado através de indícios que reflitam objetivamente essa intenção, A S S Gonçalves, supra n 34, 5-20. 36 Esta obrigação é excluída no n.º 2, da norma: quando o tratamento seja ocasional, não inclua em larga escala, o tratamento de categorias especiais de dados sensíveis ou o tratamento de dados pessoais relacionados com condenações penais e infrações e não seja suscetível produzir riscos para os direitos e liberdades das pessoas singulares, tendo em conta a natureza, o contexto, o âmbito e finalidades do tratamento; ou às autoridades ou organismos públicos.

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presente regulamento. O representante é definido no art. 4º, n.º 17, como a pessoa singular ou coletiva que representa o responsável pelo tratamento ou o subcontratante no que diz respeito às obrigações que resultam para estes do RGPD. De acordo com o considerando 80, a designação do representante deve ser expressa, por escrito e deve permitir ao representante agir em nome do responsável pelo tratamento ou do subcontratante para efeitos das obrigações resultantes do RGPD. Por isso, o n.º 4, do art. 27º, estabelece que este representante é mandatado pelo responsável pelo tratamento ou subcontratante para ser contactado em complemento ou substituição destes, relativamente às questões relacionadas com o tratamento, pelas autoridades de controlo e titulares, com o objetivo de garantir a conformidade com o Regulamento. Agindo em nome do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, o representante deve realizar as suas funções de acordo com as instruções que recebeu daqueles, incluindo a cooperação com as autoridades de controlo competentes. Ainda de acordo com o art. 27º, n.º 3, este representante deve estar estabelecido num dos Estados-Membros onde estão os titulares dos dados, cujos dados pessoais são tratados no âmbito da oferta de bens ou serviços, ou cujo comportamento é monitorizado. Do art. 27º, n.º 5, retira-se que a designação do representante não prejudica as ações judiciais que possam ser propostas contra o responsável pelo tratamento ou subcontratante, não afetando a responsabilidade destes pela violação dos deveres impostos pelo RGPD. Todavia, o considerando 80 esclarece que «(…) o representante designado deverá estar sujeito a procedimentos de execução em caso de incumprimento pelo responsável pelo tratamento ou pelo subcontratante». Ora, é esta possibilidade de acionar indiretamente o responsável pelo tratamento que torna eficaz o regime do RGPD nas situações de aplicação extraterritorial que identificamos no art. 3º, n.º 2, pois, por esta via e indiretamente, o responsável pelo tratamento ou subcontratante com estabelecimento localizado num Estado terceiro poderão sofrer as repercussões do não cumprimento das obrigações impostas pelo RGPD. Note-se que a identidade e contactos do representante, juntamente com os referentes ao responsável pelo tratamento, deve ser facultado ao titular dos dados, nos termos do art. 13º, n.º 1, al. a) e do art. 14º, n.º 1, al. a). O representante, assim como o responsável pelo tratamento, devem manter um registo das atividades de tratamento sobre sua responsabilidade, nos termos do art. 30º, e deve cooperar com as autoridades de controlo, nos mesmos termos que o responsável pelo tratamento e o subcontratante, nos termos do art. 31º.

3. A lei de transposição portuguesa A lei de Lei n.º 58/2019, que assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (EU) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de

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abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (Lei de Execução do RGPD)37, não foi muito feliz quanto à definição do âmbito de aplicação dessa lei e, consequentemente, da competência autoridade nacional de controlo quando está em causa um tratamento transfronteiriço de dados pessoais. De acordo com o art. 2º, n.º 1, da Lei de Execução do RGPD, a lei aplica-se aos tratamentos de dados efetuados em território nacional. Ora, esta norma põe em causa a «(…) distribuição de competência entre as autoridades nacionais de controlo dos Estados-Membros, sempre que em causa esteja um tratamento transfronteiriços»38. De facto, tal é incompatível com o art. 56º, n.º 1, que estabelece que no tratamento transfronteiriço de dados, a autoridade de controlo principal será aquela onde se situe estabelecimento principal do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, independentemente do lugar onde se processe o tratamento dos dados. O art. 2º, n.º 1, al a) Lei de execução do RGPD determina ainda que a lei nacional se aplica, quando o tratamento de dados é realizado fora do território nacional e seja efetuado no âmbito da atividade de um estabelecimento situado no território nacional. Ora, é fácil de concluir que isto não coincide com o art. 3º, n.º 1, do RGPD, que estabelece a aplicação do Regulamento e, consequentemente da lei nacional de execução dos Estados-Membros, quando o tratamento seja efetuado no âmbito da atividade de um estabelecimento situado no território de um Estado-Membro, independentemente do tratamento ocorrer fora ou dentro da União. O art. 2º, n.º 1, al. b) da Lei de execução do RGPD também não coincide com o art. 3º, n.º 2, ao condicionar a aplicação da lei apenas ao tratamento de dados pessoais realizados fora da União, que, como foi referido supra, não é o que consta do RGPD. Por fim, o art. 2º, n.º 1, al. c) da Lei de execução do RGPD ao considerar a aplicação da lei ao tratamento de dados pessoais realizados fora do território português que afetem dados que estejam escritos nos postos consulares de que sejam titulares portugueses residentes no estrangeiro também parece limitar o âmbito do art. 3º, n.º 3. Assim é, porque esta norma manda aplicar o RGPD quando o tratamento é feito por um responsável pelo tratamento não estabelecido na União, mas num lugar em que por força do Direito Internacional Público se aplique o direito de um Estado-Membro, o que abarca consulados e embaixa-

37 Publicada no DR n.º 151, 1ª série, de 08.08.2019. 38 Comissão Nacional de Proteção de Dados, Deliberação 2019/494 (2019), 2. Disponível em https://www.cnpd.pt/home/decisoes/Delib/DEL_2019_494.pdf, consultado em 11de outubro de 2019.

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das portugueses, mas também embarcações e aeronaves sujeitas à soberania do Estado Português. Pelas razões apontadas, a Comissão Nacional de Proteção de Dados, na Deliberação 2019/494, aprovada em 3 de Setembro de 2019, decidiu pela não aplicação daquelas normas como forma de garantir o «primado do direito da União Europeia e a plena efetividade do RGPD»39.

4. Conclusões A análise do RGPD permite-nos concluir que este continua a potenciar a sua aplicação extraterritorial. Desde logo, ao manter no art. 3º, n.º 1, a interpretação ampla de estabelecimento do responsável pelo tratamento ou subcontratante localizado na União, gizada com o auxílio da jurisprudência do TJUE, ampliando o âmbito de aplicação da política de proteção de dados pessoais da União. Já nas situações em que responsável pelo tratamento ou subcontratante não tem estabelecimento localizado na União, o art. 3º, n.º 2, é reformulado, adotando um conjunto de conexões cumulativas que traduzem uma ligação do tratamento dos dados com a ordem jurídica da União, de acordo com o princípio de proximidade. Apresenta-se, assim, uma norma mais aperfeiçoada, mas que também permite uma aplicação extraterritorial do regime jurídico previsto no RGPD. Podemos continuar a afirmar que, através da aplicação extraterritorial do RGPD, a União ao legislar sobre proteção de dados continua a legislar para o mundo. Todavia, no RGPD fá-lo de forma mais eficaz em comparação com a Diretiva. Ainda assim, sobretudo através do n.º 2, do art. 3º, é possível que o regulamento tenha aplicação a situações com conexões mais fracas com a União, e nas quais a legitimidade de intervenção da União é menos reduzida40. Cremos que este é um risco que só poderá ser superado com um trabalho de concretização dos conceitos previstos no art. 3º que possam conduzir à aplicação extraterritorial do RGPD, sobretudo no art. 3º, n.º 2, o conceito de dirigir atividade, oferecer bens e serviços e monitorizar comportamentos. Nesta medida, é importante o papel interpretativo do TJUE. Todavia, não podemos deixar de concordar que num setor como a internet, em que o tratamento de dados pessoais tem um alcance mundial e as sedes principais dos grandes responsáveis pelo tratamento, como o Facebook, Google, Amazon, Apple, Microsoft, têm as suas sedes principais localizadas fora da União, a grande amplitude do âmbito de aplicação do RGPD garante o direito

39 Comissão Nacional de Proteção de Dados, supra n 38, 11. 40 D J Svantesson, “Article 3”, in C Kuner, L A Bygrave e C Docksey (eds.), Commentary on the EU General Data Protection Regulation (Oxford University Press, 2020), 14.

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fundamental de proteção de dados, que o Regulamento visa concretizar41. Estas empresas progressivamente expandem as suas atividades online conferindo-lhes um âmbito mundial, sendo expectável que cada vez mais surjam conflitos entre os interesses económicos destas empresas e as jurisdições nacionais que tentam assegurar a proteção real e efetiva dos titulares dos dados. Não existindo um consenso internacional em relação a um padrão de proteção mínimo dos dados pessoais, é natural que os Estados, e no caso a União Europeia, tente dar eficácia aos seus padrões legais de proteção de dados pessoais, tentando abarcar estas situações deslocalizadas e ampliando o âmbito de aplicação da sua lei.

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A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A POSSIBILIDADE DE ACESSO AOS DADOS GENÉTICOS DO EMPREGADO NA RELAÇÃO DE TRABALHO Maira de Souza Almeida Doutoranda em Direito pela Universidade de Santiago de Compostela Investigadora do JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação maiudia@hotmail.com

Resumo: É sabido que o aparecimento de novas tecnologias propiciaram grandes avanços sociais para o desenvolvimento da humanidade. Entretanto, há também um aspecto negativo neste cenário, na medida em que elas podem afetar alguns direitos e garantias fundamentais da pessoa humana como é o caso do direito à integridade física, do direito à intimidade, do direito ao tratamento igualitário, do direito à não discriminação, entre outros. No campo da ciência não há dúvidas que as descobertas genéticas foram fundamentais para o tratamento de doenças, bem como contribuíram para a solução de diversos crimes no mundo jurídico. Todavia, será que na área laboral onde existe uma desigualdade económica entre as partes envolvidas na relação laboral, as novas tecnologias podem prejudicar ou favorecer os trabalhadores? Mais especificamente, no contexto da relação de trabalho será permitido o acesso do empregador aos dados genéticos do empregado? Por outras palavras, poderia haver alguma discriminação ou a informação genética também traria progressos nesta área? Estas são algumas das perguntas a serem respondidas neste artigo académico através da legislação brasileira, portuguesa e internacional existente sobre a presente temática. Palavras-chave: Acesso à informação genética; Direito à intimidade; Direito à não discriminação; Relação de trabalho.

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A dignidade da pessoa humana e a possibilidade de acesso aos dados genéticos do empregado na relação de trabalho Maira de Souza Almeida

1. Notas Prévias Devido ao avanço da ciência na Era da Informação e às mudanças ocorridas nas relações sociais na sociedade globalizada, torna-se preciso uma maior tutela do Estado em relação às informações genéticas do indivíduo, a fim de resguardar a sua dignidade e outros direitos que a compõe, como é o caso do direito à privacidade, à intimidade e à integridade física. No campo das relações laborais, esta normatização necessita de ser ainda mais específica em razão da desigualdade económica existente entre os componentes da relação laboral, com o propósito de evitar o aviltamento da pessoa humana. Perante isto, este trabalho propõe-se aferir a proteção a dignidade da pessoa humana nas relações do trabalho, com o objetivo de analisar as informações que são acessíveis ao empregador no tocante aos dados genéticos do empregado. Explicitamente, verificar o direito à não discriminação por parte do trabalhador relativamente ao seu património genético no contexto laboral e, finalmente, sugerir uma alternativa jurídica, em face da inércia legislativa específica existente no Brasil atualmente, inclusivamente através do direito internacional e comparado português.

2. A Dignidade Humana: Breves Relatos Históricos e Análise à Luz do Texto Constitucional Preliminarmente, para o alcance desta pesquisa, revela-se necessário sedimentar a ideia de que os direitos do Homem advêm de um processo histórico devido às mudanças enfrentadas nos aspectos sociais, económicos e culturais da humanidade ao longo dos anos1. Por isso, diz-se que eles estão em constante construção, reconstrução e desenvolvimento nas sociedades, do mesmo modo que o próprio ser humano, à medida que, por exemplo, as sociedades, instituições e organizações se transformam no tempo e no espaço2. Mais detalhadamente, constata-se que os direitos do homem foram consolidados com a Declaração Universal dos Direitos Humanos do ano de 1948. Tal declaração foi estruturada, após as situações atentatórias realizadas contra o ser humano nos regimes nazistas e fascistas, extremamente positivistas, que

1 W G R de Almeida, A Relação entre Ações Coletivas e Ações Individuais no Processo De Trabalho (LTr, São Paulo, 2012). 2 I W Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais: Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional (Livraria do Advogado, Porto Alegre, 10.ª ed., 2009), 45.

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apregoavam a superioridade de uma raça em relação a outra e que culminou na Segunda Guerra Mundial3. Nota-se que a declaração de 1948 se propôs promover um ideal a ser atingido por todos os povos e por todas as nações, para que todas as pessoas fossem livres e iguais em direitos e dignidade (artigo I da Declaração). Nesse aspecto, é necessário considerar que a dignidade é uma qualidade intrínseca à condição humana e sob este parecer, fica a cargo do Estado, enquanto agente governamental, promover a sua proteção, inclusive, nas relações laborais, para que o ser humano não seja tratado como objeto, de maneira que o trabalho seja prestado em condições consideradas, no mínimo, dignas para o ser humano4. Desta forma, os direitos considerados de indisponibilidade absoluta, como é o caso da igualdade, da não discriminação e da integridade física e psíquica do ser humano, devem ser preservados pelo Poder Público por se tratarem de um “patamar civilizatório mínimo” a proteger a dignidade humana5. Convém esclarecer que a referida declaração em seu art. VII preceitua também que toda pessoa tem direito a igual proteção contra qualquer forma de discriminação. Como é sabido, o direito do trabalho é um direito humano fundamental e, historicamente, o seu aparecimento decorre da necessidade de um equilíbrio entre os sujeitos que compõe a relação de trabalho devido à desigualdade económica existente, de modo que a disciplina é responsável por trazer uma superioridade jurídica ao trabalhador por meio da fixação de direitos que não podem ser transacionados, como é o caso dos direitos citados acima6. Assim, existem limites nas relações privadas, como é o caso da relação laboral, devido a eficácia horizontal dos direitos fundamentais 7. Observa-se, portanto, que a dignidade humana está condicionada à conquista e afirmação do ser humano no contexto económico, social e cultural do qual ele faz parte como trabalhador. Sob essa perspectiva, portanto, não se pode esquecer que o princípio da dignidade da pessoa humana, em diversas situações, tem sido utilizado como 3 F Piovesan, Direitos Humanos e Justiça Internacional: Um Estudo Comparativo dos Sistemas Regionais Europeu, Interamericano e Africano (Saraiva, São Paulo, 2006), 8-9. 4 G N Delgado, Direito Fundamental ao Trabalho Digno (LTr, São Paulo, 2006). 5 Ibidem. 6 M G Delgado, Curso de Direito do Trabalho (LTr, São Paulo, 14.ª ed., 2015), 201-202 e 859864. 7 C H B Leite, Curso de Direito do Trabalho (Saraiva, São Paulo, 11.ª ed., 2019), 212-215.

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um limite à possibilidade de renúncia de direitos fundamentais constituídos nas esferas das relações privadas. A relação jurídica de trabalho insere-se neste contexto. Especificamente, no caso do direito brasileiro, a Constituição de 1988 prevê diversos direitos e garantias fundamentais laborais, mas que devem ser complementados pelos demais direitos que visem assegurar uma condição de trabalho digna, como é o caso de direitos previstos na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). A dignidade humana é, portanto, o centro do ordenamento jurídico brasileiro, sendo dever da sociedade e do Estado protege-la e promove-la8. Nesse sentido, o art. 7.º da Carta Magna estabelece a proibição de qualquer tipo de discriminação por motivos de sexo, idade, cor e estado civil, assim como em relação ao trabalhador portador de deficiência – XXX e XXXI -, este dispositivo é importante para tutelar o direito à igualdade, pese embora não trate especificamente da discriminação genética. Na Constituição de 1988 o art. 5.º também prevê o direito à igualdade e a proteção à integridade física e psíquica, o art. 3.º estabelece o direito à não discriminação de forma geral e o art. 1.º dispõe de uma maneira genérica acerca da proteção à dignidade humana. Sendo o ordenamento jurídico um todo integrado, esses dispositivos devem ser interpretados de forma sistemática. Todavia, não há no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma menção acerca da possibilidade ou não do empregador aceder ao património genético do empregado, por isso há que efetuar uma interpretação sistemática e harmoniosa dos dispositivos constitucionais, para que não haja qualquer tipo de distinção infundada e desproporcional, que acarrete discriminação em razão do património genético do trabalhador. Com base na premissa de que há eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações particulares, como é o caso da relação laboral, a fim de tutelar a dignidade humana, o próximo item indagará sobre a possibilidade de o empregador realizar testes genéticos no empregado com o intuito de aferir se existe ou não propensão para desencadear algum tipo de doença.

3. O Acesso aos Dados Genéticos no Contexto Laboral Hodiernamente, em razão do aprofundamento das pesquisas científicas, acentuou-se uma maior preocupação com a proteção da dignidade humana, conjugada com os avanços tecnológicos, para que seja respeitada a ética, a moral 8 C H B Leite, “Princípios Jurídicos Fundamentais do Novo Código do Processo Civil e seus Reflexos no Processo do Trabalho”, in E Miessa (org.), O Novo Código de Processo Civil e seus Reflexos no Processo do Trabalho (Editora JusPodivm, Salvador, 2015), 65-74.

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e a legalidade, uma vez que poderá haver “palco” propício para ocorrer discriminação genética do trabalhador em prol de interesses económicos9. Sob este prisma, o avanço científico e tecnológico acarretou novas formas de discriminações que apareceram na modernidade, como é o caso da discriminação genética, após o surgimento da biomedicina, na medida em que se tornou possível a partir do exame de DNA, antecipar a propensão do indivíduo para a aquisição de determinadas doenças. Tal assunto deve ser tratado com muita parcimónia, pois pode representar a preterição de certas pessoas do campo do trabalho10. No plano interno, como já afirmado, embora a Carta Constitucional11 brasileira assegure a igualdade de tratamento e a não discriminação, inclusivamente no campo do trabalho e, proíbe todo tipo de distinção infundada, não há no ordenamento jurídico nada específico a respeito do alcance do património genético do trabalhador e da sua possível discriminação genética. Entretanto, é sabido que a proteção da integridade física, da intimidade e da privacidade, são considerados como direitos da personalidade do indivíduo e, portanto, classificados como direitos humanos fundamentais e estes são tutelados pela Constituição Federal12. É importante reafirmar que a proteção desses direitos de personalidade do indivíduo irradia efeitos para as relações privadas, em face de eficácia horizontal/diagonal dos direitos fundamentais, como retratado na relação travada entre empregado e empregador. O problema insere-se no facto de que os testes genéticos podem ser utilizados para descobrir se há propensão ao desenvolvimento de determinadas doenças pelo indivíduo, por isso existe preocupação, por parte do Estado, com a proteção da informação genética do trabalhador13.

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A L Silva et al., “Discriminação Genética nas Relações de Trabalho e Responsabilidade Civil sob a Ótica do Código Civil Brasileiro”. Disponível em https://eduardocabette.jusbrasil.com.br/ artigos/139246157/discriminacao-genetica-nas-relacoes-de-trabalho-e-responsabilidade-civil-sob-a-otica-do-codigo-civil-brasileiro, consultado em 27de março de 2019.

10 E Mallet, “Igualdade, Discriminação e o Direito do Trabalho” (2010), Rev. TST 76 (3), 17-51. 11 Maiores esclarecimentos, vide arts. 5.º e 7.º, CRFB/88, conciliado com a lei infraconstitucional n.º 9.029/95. 12 Os direitos fundamentais estão previstos mais precisamente no art. 5.º da Constituição de 1988. 13 R Miziara e A V Piovesan, “O Acesso ao Patrimônio Genérico do Empregado: Limites à sua Utilização e Consequências no Âmbito Laboral”, in H Correia e E Miessa (orgs.), Temas Atuais de Direito e Processo do Trabalho (Editora Juspodium, Salvador, 1.ª ed., 2015), 121-148.

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Nesta situação, o património genético humano deve ser considerado como direito da personalidade do indivíduo na medida em que ele acaba por afetar o direito à intimidade do ser humano14. Pode-se dizer que é temerosa a questão em torno do património genético do indivíduo, pois o denominado “homem de cristal” é aquele a quem se “desmanta” quando se tem acesso aos seus dados genéticos, condições de saúde, habilidades, entre outras informações ditas “sensíveis”, e essa informação acabaria por trazer um determinismo genético na vida do cidadão, que poderia sofrer a limitação de ter que fazer aquilo que seus genes permitissem e não aquilo que ele escolheria realizar15. Ademais, é um campo propício ao surgimento de práticas discriminatórias no tocante ao empregado, em casos de óbice à promoção e de despedimento para minimizar e/ou evitar custos maiores para as empresas16. Por outro lado, há quem defenda o acesso aos dados genéticos do indivíduo uma vez que esses dados podem contribuir para o desenvolvimento de uma maior segurança no meio ambiente laboral, podendo inclusivamente proteger a saúde dos trabalhadores17. Sob este prisma desvela-se necessário definir a discriminação que é classificada como um critério injusto e desqualificante, na medida em que se nega ao indivíduo o direito ao tratamento compatível com o padrão jurídico estabelecido, para a situação por ele vivenciada, por exemplo, na empresa e/ou organização18. Nesta medida, é possível que o acesso aos dados genéticos da pessoa tenha como consequência a redução da sua condição humana através do determinismo genético, diminuindo a sua capacidade de autodeterminação19. Neste aspecto é importante ter em mente que a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da UNESCO preceitua que não se pode reduzir a identidade de uma pessoa a características genéticas, uma vez que ela é constituída pela intervenção de diversos fatores, tais como os educativos, os ambientais e os pessoais, bem como formada e afetada pelas suas relações afetivas, 14 Ibidem. 15 E N Nassif, “Genética e Discriminação no Trabalho: Uma Cogitação” (1999), Rev. Trib. Reg. Trab. 3ª Reg., 109-118. 16 R Miziara e A V Piovesan, supra n 13. 17 Ibdem. 18 M G Delgado, supra n 6. 19 C C Locateli e A C Pandolfo, “A Intimidade Genética: Direito à Intimidade e à Informação na Proteção dos Dados Genéticos” (2014), Revista do CEJUR/TJSC, Prestação Jurisdicional 1(2), 92 - 119.

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sociais, espirituais e culturais com outros indivíduos, e implica um elemento de liberdade (art. 3º). Nos contornos do contrato de trabalho o acesso à informação genética tem importância para os seguintes momentos: - no mapeamento genético para seleção de emprego e na verificação de mutações genéticas durante o contrato de trabalho. Infelizmente, é possível que em ambos os momentos haja discriminação pelo acesso a essa informação, seja para contratar trabalhadores mais aptos e/ou para excluir os geneticamente prejudicados20. Nesta trilha de raciocínio, é temeroso que se concretize a “máxima” de Taylor onde existirá um tipo de trabalho específico para cada pessoa ceifando, desta forma, a liberdade de escolha de cada um, ao marginalizar diversos trabalhadores do sistema laboral existente21. Nesse aspecto, o Direito tem um papel crucial na preservação da vida e da liberdade das pessoas perante os avanços da tecnologia, pois cabe-lhe garantir a intimidade dos indivíduos e sua identidade incluindo a biológica, limitando o aumento de um poder sem limites relativamente às pessoas e às relações constituídas a partir delas22. Por outro lado, há os que argumentam a favor da divulgação do património genético, no sentido de que ele será bom para o empregador e para o trabalhador. Para este, porque representa a prevenção de certas doenças futuras e, consequentemente, protege a sua saúde e, para o empregador, pelo facto de simbolizar a possibilidade de economizar custos derivados de doenças associados a acidentes de trabalho23. Argumentos contrários firmam-se pelo direito à intimidade e pela possível discriminação genética do trabalhador, uma vez que as pessoas podem ser excluídas da contratação ou do emprego por razões de dados genéticos ainda que no presente estejam, totalmente, aptas para o trabalho. Isto porque, ao mesmo tempo que a investigação genética permite que se verifique a probabilidade do desenvolvimento de certas doenças, o que teria como consequência a prevenção e até mesmo a cura, pode permitir, também, que haja segregação genética, por meio do determinismo genético, desconsiderando outros aspectos como os fatores educativos, os ambientais, os afetivos, os sociais,

20 R Miziara e A V Piovesan, supra n 13. 21 E N Nassif, supra n 15. 22 Ibidem. 23 R Miziara e A V Piovesan, supra n 13.

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os culturais, entre outros. Nessa circunstância, a empresa deixaria de contratar o candidato que houvesse registado um diagnóstico genético negativo24. Assim, não se pode perder de vista que é preciso resguardar o princípio da igualdade dos homens através da repulsa a desigualdade arbitrária e ilegítima, que tem como característica ceifar a justiça25. À face do sobredito, pode-se chegar ao entendimento de que apesar da ausência de regras jurídicas específicas acerca da discriminação genética no Brasil, as normas e os princípios presentes no corpo constitucional vedam quaisquer tipos de discriminações infundadas e, nessa medida, abarcam também a discriminação genética no contrato de trabalho. É importante esclarecer que, juntamente com o déficit legal existente no país, não há jurisprudência no Estado brasileiro acerca do presente assunto, o que revela necessária a análise do direito comparado e internacional, situação a ser discutida no próximo item.

4. A Omissão Legislativa Brasileira: Análise à Luz do Direito Internacional e do Direito Comparado Português Quando não há disposições legais internas, o art. 8.º da CLT disciplina que as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, decidirão pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. Sob este prisma, no plano internacional o Estado brasileiro, enquanto membro da OIT (Organização Internacional do Trabalho), tem como compromisso cumprir a Declaração de Direitos e Princípios da OIT que estabelece como uma de suas “core obligations” a eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação26. Por sua vez, a Convenção 111 da OIT da qual o Estado brasileiro é signatário, dispõe sobre Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação.

24 D Hammerschmidt, “Direito e Discriminação Genética” (2008), Revista do Direito Privado da UEL 1(2), 1-26. Disponível em www.uel.br/revistas/direitoprivado, consultado em 5 de abril de 2019. 25 E Mallet, “Igualdade, Discriminação e o Direito do Trabalho” (2008), Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo 103, 241- 267. 26 Informação disponível em http://www.ilo.org/public/english/standards/declaration/declaration_ portuguese.pdf, consultado em 8 de abril de 2019.

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Nesse tratado internacional o termo “discriminação” previsto no art. 1.º, compreende: a. toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão; b. qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão que poderá ser especificada pelo Membro interessado, depois de consultadas as organizações representativas de empregadores e trabalhadores, quando estas existam, e outros organismos adequados27. Nota-se que o Estado brasileiro firmou compromissos internacionais comprometendo-se a vedar quaisquer tipos de discriminação tangentes à relação de trabalho, nela incluída, portanto, a discriminação genética – interpretação sistemática. Por sua vez, existem declarações internacionais que proíbem expressamente a discriminação genética. A Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO, de 11 de novembro de 1997, explicita no seu art. 2.º os seguintes requisitos: a. Cada indivíduo tem direito ao respeito à sua dignidade e direitos, quaisquer que sejam suas características genéticas; b. Esta dignidade impõe que não se reduza os indivíduos às suas características genéticas e que se respeite seu caráter único e sua diversidade28. Esta declaração proíbe, ainda, a discriminação genética de forma expressa no seu art. 6.º, que preceitua que nenhum indivíduo deve ser submetido à discriminação com base em características genéticas, que vise violar ou que tenha como efeito a violação de direitos humanos, de liberdades fundamentais e da dignidade humana. No mesmo sentido, a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da UNESCO dispõe no seu art. 7.º, que dever-se-ia fazer tudo o possível para garantir que os dados genéticos humanos não sejam utilizados com fins de discriminar o ser humano, tendo como consequência a violação dos direitos humanos, das liberdades fundamentais ou da dignidade humana de uma pessoa – a evitar que provoquem a estigmatização de uma pessoa, de uma família, de um grupo ou de uma comunidade. 27 Norma jurídica disponível em http://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235325/lang--pt/ index.htm, consultado em 9 de abril de 2019. 28 Norma jurídica disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001229/122990por.pdf, consultado em 5 de maio de 2019.

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Também fica esclarecido pelo art. 14, que dados genéticos humanos, dados proteômicos humanos e as amostras biológicas associadas a uma pessoa identificável não deverão ser dados a conhecer, nem postos à disposição de terceiros, em particular de empregadores, companhias de seguros, estabelecimentos de ensino e familiares da pessoa em questão, salvo por uma razão importante de interesse público nos restritos casos previstos no direito interno e compatível com o direito internacional relativo aos direitos humanos, ou quando se tenha obtido o consentimento prévio, livre, informado e expresso dessa pessoa, sempre que este seja conforme o direito interno e o direito internacional relativo aos direitos humanos29. Constata-se, pela perspectiva desta declaração, que não cabe ao empregador conhecer dos dados genéticos do empregado como regra, salvo se se tratar de questões de ordem pública previstas em lei e quando haja consentimento da pessoa. Cabe ainda destacar que o Estado brasileiro - como membro da ONU (Organização das Nações Unidas) que possui como suas agências, a UNESCO e a OIT - tem que ter em atenção as normas expostas nesses instrumentos internacionais, uma vez que as referidas declarações, embora não sejam normas vinculativas, traçam diretrizes que os Estados-membros devem, moralmente, observar. No que diz respeito aos tratados internacionais, como é o caso da Convenção 111 da OIT, por ser matéria de direitos humanos possui status supralegal – está acima das leis ordinárias, porém abaixo da Constituição Federal - no ordenamento jurídico brasileiro, conforme já definido pelo Supremo Tribunal Federal (STF)30, sendo o seu conteúdo vinculativo e, portanto, de observância obrigatória pelo Estado brasileiro na interpretação de suas leis internas. No que se refere ao plano constitucional brasileiro, o art. 1.º preceitua que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, e o art. 3.º diz que tem por objetivo promover o bem de todos, sem preconceitos, de origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por sua vez, o art. 5.º dispõe que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas humanas. Observa-se, com segurança, que há um sistema constitucional de proteção contra discriminações que possui caráter abrangente e diversificado no ordenamento jurídico brasileiro, como existe também um parâmetro normativo geral contra discriminações previsto no art. 3.º, inciso IV que estabelece ser 29 Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos da UNESCO disponível em http:// unesdoc.unesco.org/images/0013/001361/136112porb.pdf, consultado em 10 de maio de 2019. 30 Decisão do STF no Recurso Extraordinário nº 466.343.

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objetivo do Estado brasileiro promover o bem de todos, sem preconceitos ou discriminações31. Ainda no plano interno, a lei ordinária n.º 9.099/95 específica que é proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, bem como para a sua manutenção. Resulta evidente que a existência da Lei n.º 9.029/95 no Brasil, que trata acerca da discriminação de modo generalizado, comporta uma interpretação extensiva para abranger a discriminação genética. Assim, pela análise das leis em destaque, é possível perceber que, embora o ordenamento jurídico interno seja omisso sobre a discriminação genética, as diretrizes traçadas no plano constitucional e internacional, irradiam efeitos na interpretação de todo o arcabouço jurídico regendo-se pelos princípios da não discriminação, da igualdade, da dignidade humana, razão pela qual é nessa perspectiva que deve ser interpretada a possibilidade de análise de dados genéticos do empregado pelo empregador na relação de trabalho. No que tange ao direito comparado, a situação abordada não é nova, pois já em 1989 a União Europeia elaborou a Resolução sobre problemas éticos e jurídicos da manipulação genética a qual explicita em seus preceitos 13 a 18 a proibição da seleção dos trabalhadores segundo os critérios genéticos e a proibição das investigações genéticas prévias à contratação dos trabalhadores32. Isto com o intuito de prevenir a discriminação. O artigo 11º da Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina relata que “[é] proibida toda a forma de discriminação contra uma pessoa em virtude do seu património genético33”. Nesta perspectiva, o dispositivo legal presente no art. 8.º, da CLT, autoriza os juízes brasileiros valerem-se das normas internacionais e do direito comparado, como é o caso da resolução acima mencionada e da legislação portuguesa, que se apresenta bastante desenvolvida neste teor. Com efeito, neste aspecto, o Código do Trabalho português, nos seus arts. 24º e 26º34, dispõe sobre o direito à igualdade e a proibição de discriminação em relação ao património genético do trabalhador. Há que salientar, também, que o art. 19.º, n.º 1, do Código do Trabalho, dispõe que o empregador não pode, para efeitos de admissão ou permanência 31 M G Delgado, supra n 6. 32 D Hammerschmidt, supra n 24. 33 Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina disponível em http://www. gddc.pt/siii/docs/oviedo.pdf, consultado em 11de junho de 2019. 34 O Código de Trabalho português encontra-se disponível em http://www.act.gov.pt/(pt-PT)/Legislacao/Codigodotrabalhoatualizado/Paginas/default.aspx, consultado em 12 de junho de 2019.

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A dignidade da pessoa humana e a possibilidade de acesso aos dados genéticos do empregado na relação de trabalho Maira de Souza Almeida

no emprego, exigir ao candidato a emprego ou ao trabalho a realização ou apresentação de testes ou exames médicos, de qualquer natureza, para comprovação das condições físicas ou psíquicas, salvo quando estes tenham por finalidade a proteção e segurança do trabalhador ou de terceiros, ou quando particularidades exigências inerentes à atividade o justifiquem. O art. 13 da Lei n.º 12/2005 de Portugal possui alguns critérios importantes sobre a informação genética, uma vez que estabelece que a contratação de novos trabalhadores não pode depender de resultados prévios de testes genéticos. Deste modo não se permite exigir dos trabalhadores, ainda que com o seu consentimento, a realização de testes genéticos, salvo se o ambiente de trabalho colocar riscos específicos para o trabalhador com uma dada doença ou implicar riscos graves para a segurança ou saúde pública. Nesta hipótese a informação genética é relevante para benefício do trabalhador, para proteção da sua saúde e da dos demais trabalhadores. Portanto, a regra geral estabelecida no Código Português é pela proibição de realizar a análise de dados genéticos do empregado, permitindo-a, no entanto, em determinadas situações específicas para a proteção da saúde do próprio trabalhador em razão da natureza da atividade empresarial, desde que previsto em lei e haja consentimento do trabalhador35. O tratamento das questões ligadas ao património genético do trabalhador evidencia que, enquanto ainda carece de disciplina legal específica, é preciso que a matéria seja analisada à luz dos tratados internacionais, dos quais o Estado brasileiro é signatário, assim, como de resoluções e declarações de agências dos quais ele é integrante e, também, assim, através dos princípios constitucionais e das normas infraconstitucionais ainda que não específicas. Entretanto, é por meio da análise mais pormenorizada do direito comparado, como é o caso do ordenamento jurídico português, que se traçará critérios mais seguros e razoáveis para definir como regra o não acesso aos dados genéticos do empregado, a fim de evitar-se quaisquer tipos de discriminação. A ressalva faz-se desde que haja a realização de testes genéticos em casos extremamente específicos como é a situação de risco de saúde do próprio empregado ou por motivo de ordem pública, e haja consentimento expresso e, em razão da hipossuficiência do trabalhador. Entende-se que é importante, também, a assistência sindical.

5. Considerações Finais Hodiernamente, devido ao desenvolvimento da tecnologia e com o surgimento da possibilidade da realização de testes genéticos ao empregado, é preciso 35 R Miziara e A V Piovesan, supra n 13.

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que esta matéria seja regulamentada o quanto antes no Brasil, para que haja proteção da dignidade humana do trabalhador através do impedimento de práticas discriminatórias na relação de trabalho. Entretanto, enquanto não é regulamentada pelo Estado brasileiro, à presente situação aplicam-se os princípios constitucionais de proteção da dignidade humana, assim como os tratados internacionais, as resoluções e as declarações que traçam diretrizes a serem observadas. É possível, também, utilizar-se o direito comparado, especificamente, no caso de Portugal, em que existe um grande avanço da legislação no tocante à discriminação genética, o que permite através do art. 8.º, da CLT apropriar-se dos critérios ali traçados para melhor elucidar esta questão. Assim, pautando-se nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, a regra é que, para evitar quaisquer tipos de discriminação genética no tocante ao contrato de trabalho, não se permita o acesso aos dados genéticos do trabalhador. Esta é uma medida que visa resguardar o direito à privacidade, à intimidade, à integridade física e outros direitos componentes da dignidade humana. Todavia, em situações extremamente específicas e, ainda assim, para proteger a saúde do empregado face à natureza da atividade a ser desenvolvida ou por motivos de ordem pública é permitido o acesso aos seus dados genéticos, desde que haja consentimento expresso dele e haja assistência sindical.

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CITAÇÃO ELETRÓNICA NO PROCESSO JUDICIAL E TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA Marco Carvalho Gonçalves Professor Auxiliar da Escola de Direito, Universidade do Minho Investigador do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação marcofcg@direito.uminho.pt

Resumo: À luz do direito a um processo justo e equitativo, todo aquele que seja demandado judicialmente deve ser chamado ao processo, a fim de nele ser ouvido e poder exercer a sua defesa com toda a amplitude legalmente admissível. Neste enquadramento, a citação constitui uma garantia fundamental desse direito. Simplesmente, a consagração da citação eletrónica, enquanto meio legalmente admissível de chamamento do demandado ao processo, coloca alguns problemas e dificuldades, particularmente no que concerne à garantia de que o demandado tomou efetivo conhecimento do ato processual que lhe foi dirigido e que, consequentemente, teve a possibilidade de se defender. Neste enquadramento, o presente texto procurará analisar a compatibilidade da citação através de transmissão eletrónica de dados com a efetividade da tutela jurisdicional, sob o prisma do direito a um processo justo e equitativo. Palavras-chave: Tutela jurisdicional efetiva; Citação; Comunicação eletrónica; Direito de defesa; Princípio do contraditório.

1. Introdução Uma das principais manifestações da tutela jurisdicional efetiva, enquanto garantia do direito a um processo justo e equitativo (fair trial), traduz-se no direito fundamental de o demandado ser informado de que foi proposta contra

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ele uma ação judicial e de ser chamado ao processo para se defender1, estando tal direito consagrado, entre outros diplomas legais, nos arts. 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa2. Na verdade, o direito a um processo justo e equitativo impede o tribunal de resolver o conflito de interesses, inerente ao processo judicial, sem que seja dada ao réu a possibilidade de, ao abrigo do princípio do contraditório, ser ouvido em juízo e apresentar a sua defesa3,4. Neste contexto, a citação traduz-se num ato fundamental do processo judicial, na medida em que garante que a sentença constitui o resultado de um processo dialético, no qual as partes tiveram a possibilidade de, com toda a amplitude legalmente admissível e em condições de igualdade, apresentarem e sustentarem as suas pretensões. Consequentemente, os meios processuais previstos para a realização da citação devem garantir que o demandado teve efetivo conhecimento da ação judicial que, contra ele, foi proposta e, bem assim, que lhe foi assegurado o direito de exercer, de forma plena, o seu contraditório5. 1 Ver, no mesmo sentido, J L Freitas, A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013 (Gestlegal, 4.ª ed., 2017), 75, L F Almeida, Direito Processual Civil (Almedina, vol. I, 1.ª ed., 2010), 248, F P Rodrigues, O Novo Processo Civil. Os Princípios Estruturantes (Almedina, 1.ª ed., 2013), 189, bem como A P Gaio Júnior, Direito Processual Civil (Del Rey Editora, vol. I, 2.ª ed., 2008), 179. Ver, na jurisprudência, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05 de março de 2013, proc. 5385/03.4TBSXL-A.L1-1. Disponível em http://www.dgsi. pt, consultado em 17 de fevereiro de 2020. 2 Veja-se, igualmente, o art. 103.º, n.º 1, da Constituição da República Federal da Alemanha, o qual estipula que qualquer pessoa tem o direito de ser ouvida em tribunal. Trata-se, por conseguinte, nas palavras de Othmar Jauernig, de um “direito fundamental processual” [O Jauernig, Direito Processual Civil (Almedina, 25.ª ed., 2002), 167]. 3 Ver, a este respeito, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04 de outubro de 2007, proc. 966/07-3. Disponível em http://www.dgsi.pt, consultado em 17 de fevereiro de 2020. Na doutrina, ver R Pinto, Código de Processo Civil Anotado (Almedina, vol. I, 1.ª ed., 2018), 39. 4 Sustentando que o princípio do contraditório compreende igualmente o direito de as partes participarem, de forma efetiva, no desenvolvimento do litígio e, consequentemente, de influenciarem a decisão, ver J L Freitas, Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais à luz do Novo Código (Gestlegal, 4.ª ed., 2017), 126 e 127, P R Faria e A L Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil (Almedina, vol. I, 2.ª ed., 2014), 31, bem como G Bachmann, Anspruch auf Verfahren und Entscheid (Stämpfli Verlag, 1.ª ed., 2019), 214. 5 Ver, no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28 de setembro de 2006, proc. 1083/05-2, bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de setembro de 2007, proc. 6291/2007-6. Disponíveis em http://www.dgsi.pt, consultados em 18 de fevereiro de 2020.

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Ocorre que, a pretexto da celeridade, da agilização e da simplificação dos atos processuais, o legislador tem vindo a implementar, de forma gradual e progressiva, o emprego de meios tecnológicos e eletrónicos no seio do processo judicial, particularmente nos domínios da tramitação do processo (arts. 132.º e 712.º6), da apresentação de peças processuais e documentos em juízo (art. 144.º), da elaboração dos atos da secretaria (art. 160.º), da consulta do processo (art. 163.º), da passagem de certidões (art. 170.º), da distribuição (arts. 204.º e 216.º), da citação e da notificação de atos processuais (arts. 219.º, 225.º, 246.º a 249.º, 252.º, 255.º e 256.º), da transmissão da informação relativa ao falecimento ou à extinção de alguma das partes, bem como ao falecimento ou ao impedimento do mandatário (arts. 270.º e 271.º), da comprovação do prévio pagamento da taxa de justiça e demais quantias devidas a título de custas, multas ou outras penalidades (arts. 145.º, n.º 5, 552.º, n.º 4, e 570.º, n.º 1), da assinatura da sentença judicial (art. 615.º, n.º 3), assim como da penhora de certos bens (arts. 755.º, 768.º e 780.º)7. Ora, apesar de se reconhecer as potencialidades que decorrem da utilização dos meios tecnológicos e eletrónicos ao serviço da justiça, designadamente no que concerne ao incremento da celeridade da tramitação dos processos, a verdade é que o emprego desses meios em áreas basilares e estruturais da tutela jurisdicional efetiva – de que o chamamento do réu à demanda constitui exemplo paradigmático – é suscetível de comprometer o direito fundamental a um processo justo e equitativo. De resto, tal como o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de reconhecer, “a celeridade processual, conquanto sendo um valor que deve presidir à administração da justiça, não poderá, claramente, ser erigida a um tal ponto que, em seu nome, vá sacrificar aqueles outros valores que, afinal, são componentes de direitos fundamentais, tais como os do acesso aos tribunais em condições de igualdade e de uma efectividade de defesa”8. Assim, partindo da análise do âmbito e das formalidades inerentes à citação do réu por meios eletrónicos, procuraremos verificar se essa modalidade de citação protege, de modo adequado e pleno, o exercício do direito de defesa.

2. Âmbito O art. 225.º, n.º 1, preceitua que a citação de pessoas singulares é pessoal ou edital, sendo que a citação pessoal pode ser realizada, designadamente, por 6 Pertencem ao Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, as disposições legais citadas sem indicação da respetiva fonte. 7 Ver, a este respeito, a Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto. 8 Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 678/98, in Diário da República, 2.ª série, de 04 de março de 1999.

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via eletrónica, nos termos a serem definidos pela portaria a que se refere o art. 132.º, n.º 29. Por seu turno, no que concerne à citação de pessoas coletivas, o art. 219.º, n.º 5, estabelece que estas entidades podem ser citadas por via eletrónica quando, tratando-se de entidade pública da Administração direta ou indireta do Estado, tal se encontre previsto em portaria dos membros do Governo responsáveis pela área da justiça e pela entidade pública em causa, ou quando, tratando-se de outras pessoas coletivas, tal se encontre previsto em protocolo celebrado entre a pessoa coletiva e o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P., e homologado pelo membro do Governo responsável pela área da justiça. Nesse caso, à luz do art. 219.º, n.º 6, a citação presume-se efetuada no terceiro dia posterior ao do seu envio para o sistema informático do citando. Paralelamente, no âmbito do processo executivo, o art. 786.º, n.º 2, estatui que o agente de execução deve citar a Fazenda Nacional e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P. exclusivamente por meios eletrónicos, tendo em vista o chamamento destas entidades ao processo, a fim de nele poderem reclamar o pagamento dos eventuais créditos que sejam titulares sobre o executado10. Já no que diz respeito às formalidades da citação pessoal por via eletrónica, maxime quanto aos elementos que devem ser transmitidos ao citando, importa referir que, apesar de o art. 219.º, n.º 3, estabelecer a regra segundo a qual a citação deve ser sempre acompanhada de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objeto11, a verdade é que o n.º 4 do citado preceito legal determina que, se a citação for realizada por via eletrónica, a mesma pode ser efetuada através do envio de informação estruturada respeitante à identificação do processo e da interoperabilidade entre o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais e o sistema de informação do citando ou notificando, podendo esses elementos e cópias constar de outro suporte eletrónico acessível ao citando. 9 Neste particular, o ordenamento jurídico português acompanha, quanto à possibilidade de realização da citação por via eletrónica, a solução adotada em diversos ordenamentos jurídicos europeus, tal como sucede, designadamente, com a França, a Bélgica, a Itália ou a Alemanha. 10 A citação eletrónica da Fazenda Nacional e do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I.P. encontra-se regulamentada na Portaria n.º 331-A/2009, de 30 de março, a qual disciplina o modo de realização da citação eletrónica, a data e o valor da citação, bem como o registo eletrónico da citação. 11 Ver, no âmbito do processo de execução fiscal, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 03 de novembro de 2016, proc. 01049/16, bem como o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 08 de novembro de 2017, proc. 01117/17, disponíveis em http://www.dgsi.pt, consultados em 17 de fevereiro de 2020, nos quais se decidiu que a citação eletrónica, na qual foram transmitidos ao citando os elementos necessários à organização da sua defesa, não enferma de nulidade, nem viola o direito a um processo justo e equitativo.

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Por outro lado, quanto à citação por via edital, determinada pela incerteza do lugar em que se encontre o citando, o art. 240.º preceitua que esta é efetuada através da afixação de um edital na porta da casa ou sede da última residência que o citando teve no país, seguida da publicação de um anúncio numa página informática de acesso público12.

3. Garantias da citação eletrónica 3.1. Citação pessoal

Sendo a citação um ato fundamental do processo judicial, na medida em que, como se salientou supra, assegura o chamamento do demandado ao processo, bem como o exercício do seu direito de defesa, o modelo ideal de citação assenta, naturalmente, num procedimento de contacto pessoal com o réu13. Na verdade, esse contacto direto com o citando – o qual pode ser materializado, nomeadamente, através de um oficial de justiça, de um solicitador ou de um mandatário judicial – permite assegurar, com o máximo grau certeza, que o citando tomou efetivo conhecimento do ato14, ficando, por conseguinte, plenamente ciente de que se considera citado no âmbito de um processo judicial, bem como na posse imediata de todos os elementos que o legislador reputa essenciais para o exercício do seu direito de defesa (art. 227.º)15. Consequentemente, neste

12 Nos termos do art. 24.º da Portaria n.º 280/2013, de 26 de agosto, o anúncio relativo à citação edital é publicado na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, acessível no endereço eletrónico https://tribunais.org.pt. 13 Ver, a este propósito, S Ménetrey, Procédure Civile Luxembourgeoise: Approche Comparative (Éditions Larcier, 1.ª ed., 2016), 48, F Sassano, Manuale Pratico delle Notificazioni (Maggioli Editore, 3.ª ed., 2014), 341, bem como A Tencati, Commentario al Codice di Procedura Civile: L’Informativa alla Controparte (Key Editore, 1.ª ed., 2020), 66. 14 V Carbone e A Batà, Le Notificazioni (Ipsoa, 5.ª ed., 2010), 51. Ver, no mesmo sentido, S M Chiari e M Marzio, Notificazioni e Termini nel Processo Civile (Giuffrè Editore, 1.ª ed., 2011), 67, bem como P G Demarchi e F Drago, Notificazioni e Termini. Percorsi Giurisprudenziali (Giuffrè Editore, 1.ª ed., 2009), 23. 15 É o que sucede com a entrega de uma cópia da petição inicial, com a advertência de que o réu fica citado por força desse ato e com a indicação do tribunal, juízo ou secção por onde corre o processo, do prazo dentro do qual o citando pode oferecer a sua defesa, da eventual necessidade de patrocínio judiciário e das cominações em que incorre no caso de não apresentar contestação.

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modelo de chamamento do réu à demanda, a citação por via postal só tem lugar na eventualidade de se frustrar o contacto pessoal com o citando16. Simplesmente, apesar de este constituir o modelo de citação perfeito e, consequentemente, desejável, o certo é o nosso sistema processual civil adotou a regra segundo a qual a citação é realizada por via postal, mediante o envio ao citando de uma carta registada com aviso de receção [arts. 225.º, n.º 1, al. b), e 228.º], razão pela qual a citação através de contacto pessoal reveste uma natureza nitidamente subsidiária (art. 231.º, n.º 1)17. Com efeito, a circunstância de a lei de processo civil privilegiar a citação por via postal, em detrimento da citação através de contacto pessoal, encontrará justificação no facto de a citação por via postal garantir uma tramitação mais célere do processo judicial18, sendo que o legislador, no confronto entre a celeridade e a segurança da citação, privilegiou claramente a via da celeridade19,20. Na verdade, a citação por via postal não garante, de forma plena, o conhecimento efetivo do conteúdo do ato pelo destinatário, já que pode suceder que a citação seja realizada em pessoa diversa do citando (art. 228.º, n.º 2) – situação em que, apesar de a citação revestir natureza “quase-pessoal”21, o réu, mesmo as16 Em sede de direito comparado, este modelo vigora, nomeadamente, nos ordenamentos jurídicos belga (arts. 32.º a 47.º do Code Judiciaire), francês (arts. 655.º e 656.º do Code de Procédure Civile) e grego (art. 127.º do Código de Processo Civil). No ordenamento jurídico italiano, a citação, em regra, é realizada através de contacto pessoal de um oficial de justiça, podendo, no entanto, ser igualmente efetuada através do serviço postal, desde que tal não seja expressamente proibido por lei (arts. 137.º e 149.º do Codice di Procedura Civile). Ver, a este respeito, B Sassani, Lineamenti del Processo Civile Italiano (Giuffrè Editore, 1.ª ed., 2010), 126 e 127. 17 Excecionalmente, o art. 231.º, n.ºs 8 e 9, a citação através de contacto pessoal por agente de execução ou por um oficial de justiça, sem se usar previamente o meio da citação por via postal, pode igualmente ter lugar quando o autor, na petição inicial, assim declarar pretender, mas, nesse caso, o autor fica obrigado a pagar os honorários ou a taxa de justiça que sejam devidos. 18 Em sede de direito comparado, os ordenamentos jurídicos brasileiro (arts. 246.º a 249.º do Código de Processo Civil), alemão (§ 168 da Zivilprozessordnung), austríaco (§ 88 da Zivilprozessordnung) e espanhol (arts, 152.º e 155.º da Ley de Enjuiciamiento Civil) seguem um regime análogo ao português, já que a citação, em regra, é realizada através do correio, sendo que, em caso de frustração da citação postal, a citação é feita por meio de contacto pessoal. 19 Ver, no mesmo sentido, J L Freitas, A Ação Declarativa Comum: À Luz do Código de Processo Civil de 2013 (Gestlegal, 4.ª ed., 2017), 75. 20 De todo o modo, como bem salienta José Lebre de Freitas, se a citação for realizada através de carta registada com aviso de receção e se o aviso for assinado pelo próprio citando, esta modalidade de citação garante, com o mesmo grau de segurança que aquele que decorre da citação através de contacto pessoal do agente de execução, do oficial de justiça ou de mandatário judicial, que o réu tomou conhecimento efetivo da citação que lhe foi dirigida [J L Freitas, Introdução ao Processo Civil: Conceito e Princípios Gerais à luz do Novo Código (Gestlegal, 4.ª ed., 2017), 110]. 21 M Andrade, Noções Elementares de Processo Civil (Coimbra Editora, vol. I, 2.ª ed., 1956), 117.

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sim, considera-se pessoalmente citado no dia em que se mostre assinado o aviso de receção, presumindo a lei que este teve oportuno conhecimento da citação (art. 225.º, nº 4)22 – ou através do simples depósito da carta de citação, nos casos em que exista uma convenção de domicílio, presumindo igualmente o legislador que o citando tomou efetivo conhecimento da citação que lhe foi remetida. Ora, se é um facto que a citação postal não permite certificar, de forma absoluta, que a comunicação judicial chegou realmente ao destinatário a quem era dirigida, afigura-se ainda mais problemática a opção de política legislativa, no sentido de se permitir que a citação seja executada através de meios eletrónicos, sendo certo que, atenta a hierarquização das diferentes modalidades de citação, constantes do art. 225.º, dúvidas inexistem quanto à preferência do legislador pela citação por via eletrónica23. Neste particular, importa ter presente que a adoção de um modelo de citação através de transmissão eletrónica de dados coloca diversos problemas e dificuldades, às quais o legislador deve responder de forma clara e inequívoca, de modo a garantir a proteção e a salvaguarda do direito de defesa do réu24,25. Em concreto, a realização da citação por via eletrónica implica que o legislador regule, entre outros aspetos, a forma de validação da entidade responsável pelo envio da citação eletrónica, a certificação da data e da hora em que a citação se considera remetida, a comprovação de que a citação foi acompanhada pelos elementos que, nos termos do art. 227.º, devem ser disponibilizados ao

22 De todo o modo, neste caso, o sistema processual civil procura garantir que o réu tomou efetivo conhecimento da citação que lhe foi dirigida, seja obrigando o distribuidor do serviço postal a advertir expressamente o terceiro do dever de entregar prontamente a carta ao citando (art. 228.º, n.º 4), seja qualificando como a prática de um crime de desobediência a conduta de quem, tendo recebido a citação, não entregue ao citando, logo que possível, os elementos deixados pelo funcionário que tiver procedido à realização da citação (art. 232.º, nº 5), seja ainda determinado o envio, pelo agente de execução ou pela secretaria, no prazo de dois dias úteis, de uma carta registada ao citando, comunicando-lhe a data e o modo pelo qual o ato se considera realizado, o prazo para o oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta, o destino dado ao duplicado e a identidade da pessoa em quem a citação foi realizada. 23 Veja-se, a título meramente exemplificativo, o regime da citação do Ministério Público, quando este seja chamado a atuar em defesa do ausente ou do incapaz, sendo que, nos termos do art. 21.º, n.º 1, a citação do Ministério Público é feita, preferencialmente, através da transmissão eletrónica de dados. 24 Ver, no mesmo sentido, J L Freitas e I Alexandre, Código de Processo Civil Anotado (Coimbra Editora, vol. I, 3.ª ed., 2014), 425 e 426. 25 Observe-se, a este respeito, que alguns ordenamentos jurídicos não admitem, pura e simplesmente, a possibilidade de a citação ser realizada através de meios eletrónicos. É o que sucede, por exemplo, com ordenamento jurídico irlandês.

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citando, a autenticidade do documento transmitido por via eletrónica26, a proteção da comunicação quanto ao acesso não autorizado por terceiros27, a aceitação, pelo citando, de que a citação seja realizada através de via eletrónica28, a certificação do endereço de correio eletrónico para onde a citação pode ser dirigida29, a eventual necessidade de utilização de um sistema de correio eletrónico seguro, que garanta a efetiva receção da comunicação eletrónica remetida pelo tribunal, o modo de confirmação de que o citando recebeu a citação e de que tomou efetivo conhecimento da mesma, bem como a comprovação da data em que a citação se considera realizada. De entre estes aspetos, aquele que nos parece mais relevante é o que diz respeito à capacidade e/ou possibilidade de o sistema informático de transmissão eletrónica de dados certificar que o citando tomou efetivo conhecimento da citação que lhe foi dirigida, enquanto garantia mínima do seu direito de defesa30. O mesmo é dizer que não se afigura viável a adoção de um regime de presunção de realização da citação, sem qualquer segurança de que o citando teve efetivo

26 Ver, nesse sentido, F Ballati e A Marino, Le Notificazioni e Le Comunicazioni del Processo (Maggioli Editore, 1.ª ed., 2012), 127. 27 M Sellner, Die Justiz im elektronischen Zeitalter: Elektronischer Rechtsverkehr und elektronische Akte in der Justiz (Tectum Verlag, 1.ª ed., 2012), 15. 28 Veja-se, a este propósito, o regime vigente no ordenamento jurídico francês (art. 662.º-1 do Code de Procédure Civile), segundo o qual a citação só pode ser realizada por via eletrónica desde que o demandado tenha prestado o seu consentimento expresso nesse sentido, devendo constar do próprio ato de citação a menção expressa desse consentimento. 29 Em sede de direito comparado, é curioso observar que, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, o art. 246.º do Código de Processo Civil determina, a respeito da citação por meio eletrónico que, “Com exceção das microempresas e das empresas de pequeno porte, as empresas públicas e privadas são obrigadas a manter cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações, as quais serão efetuadas preferencialmente por esse meio”, sendo que esse regime é igualmente aplicável “à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às entidades da administração indireta”. 30 Veja-se, a este respeito, o regime vigente no art. 122.º, n.º 5, do Código de Processo Civil grego, o qual preceitua que a citação eletrónica só se considera validamente realizada desde que seja enviado ao tribunal um comprovativo eletrónico de receção da citação, do qual conste a assinatura eletrónica do destinatário.

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conhecimento da mesma, já que daí resulta a violação do acesso ao Direito e aos Tribunais, bem como do direito a um processo justo e equitativo31,32. De facto, ainda que se aceitasse a opção do legislador, de privilegiar a celeridade em detrimento da segurança jurídica na comunicação dos atos processuais, ou de sancionar o citando que, de forma dolosa ou negligente, não proceda à consulta eletrónica da citação que lhe tenha sido oportunamente remetida33, a verdade é que a consagração de um sistema de citação através de transmissão eletrónica de dados, assente numa presunção de que o ato chegou ao conhecimento do destinatário, sem qualquer garantia adicional de que o citando teve efetivo conhecimento do ato que lhe foi dirigido, maxime através do envio de um comprovativo de receção e de leitura da comunicação eletrónica, não se afigura minimamente compatível com o direito fundamental, que a todos é reconhecido, de que a causa em que intervenham seja julgada de forma justa34. Paralelamente, o direito a um processo equitativo reclama que o sistema informático seja capaz de atestar que a citação foi efetivamente remetida para o endereço de correio eletrónico que consta das bases de dados oficiais e que

31 Ver, a este propósito, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de março de 2006, proc. 404/06, disponível em http://www.dgsi.pt, consultado em 17 de fevereiro de 2020, no qual se decidiu pela inconstitucionalidade da citação efetuada por via postal simples, atento o facto de esta modalidade de citação “não garant[ir] um eficaz chamamento do réu à demanda ou uma rigorosa observância do princípio do contraditório e da igualdade de armas”. 32 Daí que, salvo melhor opinião, nos pareça inconstitucional, por violação do direito fundamental a um processo justo e equitativo, o regime constante do n.º 4 do art. 10.º da Portaria n.º 331-A/2009, de 30 de março, segundo o qual, na citação da Fazenda Pública, do Instituto da Segurança Social, I. P. e do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, I. P., segundo o qual, se a consulta da citação não for efetuada nos primeiros quatro dias após a data da disponibilização da citação, esta presume-se efetuada na própria pessoa do citando no quinto dia posterior àquela data, bem como o regime previsto no art. 219º, n.º 6, o qual preceitua que, em caso de citação eletrónica de entidade pública da Administração direta ou indireta do Estado ou de outras pessoas coletivas, nos termos do art. 219.º, n.º 5, a citação presume-se efetuada no terceiro dia posterior ao do seu envio para o sistema informático do citando. 33 Veja-se, em sede de direito comparado, a solução adotada no ordenamento jurídico brasileiro, cujo art. 5.º da Lei n.º 11.419, de 19 de dezembro de 2006, consagra a regra segundo a qual a citação se considera realizada no dia em que o citando proceda à consulta eletrónica da citação, mas estabelece a obrigação de o citando proceder à consulta do portal eletrónico até dez dias após o envio da citação, sob pena de a citação se considerar automaticamente realizada aquando do termo desse prazo. 34 Basta pensar, por exemplo, na possibilidade de a caixa de correio eletrónico do destinatário se encontrar totalmente “cheia”, inviabilizando, por isso, a receção efetiva da comunicação eletrónica da citação. Nessa eventualidade, a efetividade da tutela jurisdicional impõe, necessariamente, que o demandado seja citado por uma outra via que assegure que este tomou efetivo conhecimento da comunicação judicial que lhe foi dirigida.

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foi confirmado pelo citando35 – o que pressupõe, desde logo, que este, de forma livre e esclarecida, tenha dado o seu consentimento no sentido de a citação ser realizada por via eletrónica36 –, bem como a natureza confidencial, pessoal e intransmissível da comunicação.

3.2. Citação edital

Os problemas e dificuldades a que supra se fez referência, a propósito da segurança e das garantias da citação pessoal por via eletrónica, colocam-se, de igual modo, com especial ênfase, o domínio da citação edital. Com efeito, à luz da lei de processo civil, a citação edital reveste natureza verdadeiramente excecional, na medida em que a mesma só pode ter lugar nas situações em que o citando se encontre ausente em parte incerta ou quando sejam incertas as pessoas a citar (art. 225.º, n.º 6). Acresce que o legislador parte de uma ficção jurídica, assente na suposição de que o citando tomou efetivo conhecimento da citação na data da publicação do anúncio (art. 242.º, n.º 1), inexistindo, por conseguinte, qualquer garantia ou certeza de que tal tenha efetivamente sucedido37. Na verdade, a citação edital, justificada pelo desconhecimento do paradeiro do demandado ou pela incerteza da pessoa a citar, encontra fundamento na necessidade de se garantir um equilíbrio adequado entre o direito de ação e o direito de defesa, já que o direito de defesa não pode ser entendido de forma absoluta, ao ponto de obstar ao prosseguimento da ação e, consequentemente, ao conhecimento do mérito da pretensão trazida a juízo, enquanto não se garantir que o citando, mesmo que sendo incerto ou estando ausente em parte incerta, teve efetivo conhecimento da pendência da ação. Dando, assim, como assente que a citação edital não permite certificar que o citando tomou efetivo conhecimento da comunicação judicial que lhe foi 35 Ver, no mesmo sentido, F A Genovese e C I Risolo, La Riforma del Processo Civile (Giuffrè Editore, 1.ª ed., 2010), 131. 36 Sustentando que esse consentimento tem de ser expresso, não sendo, por conseguinte, admissível um mero consentimento tácito ou implícito, decorrente, por exemplo, de uma eventual comunicação de uma pessoa com o tribunal por via eletrónica, ver U J Scherf, H P Schmieszek e W Viefhues, Elektronischer Rechtsverkehr: Kommentar und Handbuch (C.F. Müller Verlag, 1.ª ed., 2006), 32. 37 Nessa exata medida, como bem salienta Luiz Guilherme da Costa Wagner Júnior, a citação edital constitui, na verdade, uma forma de citação ficta – a qual se contrapõe à citação real – já que, devido à impossibilidade de se proceder à localização pessoal do réu, a lei presume, fictamente, que o réu se considera citado [L G Wagner Júnior, Processo Civil (Del Rey Editora, 2.ª ed., 2008), 223]. Por sua vez, Chiovenda assinala que, neste caso, o emprego da publicidade na citação do réu equivale à sua citação pessoal [J Chiovenda, Principios de Derecho Procesal Civil (Instituto Editorial Reus, tomo II, 3.ª ed., 1977), 83].

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dirigida, a questão que se coloca é, no entanto, a de saber se o emprego de meios eletrónicos na realização da citação edital é suscetível de mitigar a eventual ignorância, pelo citando, da comunicação judicial que lhe foi remetida, ou se, pelo contrário, poderá agravar ainda mais a probabilidade desse desconhecimento. Com efeito, retroagindo à solução constante do Código de Processo Civil revogado, estabelecia-se no seu art. 248.º que a citação edital, determinada pela incerteza do local em que o citando se encontrasse, era efetuada através da afixação de editais e da publicação de anúncios, sendo afixados três editais – um na porta do juízo onde corresse a ação, outro na porta da casa da última residência conhecida do citando no País, e um terceiro na porta da sede da respetiva junta de freguesia – e publicados anúncios em dois números seguidos de um dos jornais, de âmbito regional ou nacional, mais lidos na localidade em que se situasse a casa da última residência conhecida do citando. Simplesmente, na sequência da solução ensaiada no regime processual civil de natureza experimental, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de junho, o novo Código de Processo Civil, procurando agilizar e acelerar a tramitação da citação edital, reduziu o número de editais – passando a ser afixado um único edital na porta da casa da última residência ou sede que o citando teve no País – e deixou de prever a publicação de anúncios em dois números seguidos de um dos jornais, de âmbito regional ou nacional, mais lidos na localidade em que se situasse a casa da última residência conhecida do citando, estatuindo, ao invés, a regra segundo a qual é publicado um único anúncio em página informática de acesso público38. Ora, sendo a citação edital uma via processual muito precária de se garantir a efetividade da citação do demandado – já que raros serão os casos em que este terá real conhecimento da citação através da consulta dos editais ou dos anúncios –, não se pode, ainda assim, deixar de reconhecer que a probabilidade de o citando tomar, direta ou indiretamente, conhecimento da existência da citação através dos anúncios publicados nos jornais seria muito maior do que aquela que resulta da eventual consulta da página eletrónica, de acesso público, na qual se encontra publicado esse anúncio. De facto, ainda que não se ignore o desenvolvimento significativo do mercado digital dos meios de comunicação social, o certo é que, na realidade atual da sociedade portuguesa, a consulta dos jornais em suporte de papel continua a assumir especial relevância, particularmente nos meios onde o acesso às novas tecnologias da informação é mais difícil ou limitado. 38 Aplaudindo esta solução legislativa, por considerar que a mesma “é coerente com a desmaterialização do processo” e porque permitiu eliminar procedimentos que a prática revelou serem ineficazes, ver P R Faria, Regime Processual Civil Experimental Comentado (Almedina, 1.ª ed., 2010), 71.

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Ademais, por muito que o legislador queria impor a ideia contrária, não se pode negligenciar que o homem médio não tem certamente por hábito consultar periodicamente a página informática na qual se encontram publicados os anúncios de citação edital, a fim de verificar a eventual existência de alguma citação que lhe seja dirigida. Daí que, no que concerne à citação edital, afigura-se que, à luz do direito a um processo justo e equitativo, a introdução de meios eletrónicos – maxime a publicação de anúncio eletrónico em página informática – acabou por agravar substancialmente as garantias de defesa do demandado, na medida em que reduziu a probabilidade de este lograr tomar conhecimento efetivo da citação. Outrossim, é nossa firme convicção que o sistema judicial asseguraria mais adequadamente o direito fundamental a um processo justo e equitativo se os anúncios da citação edital continuassem a ser publicados em dois números seguidos de um dos jornais, de âmbito regional ou nacional, mais lidos na localidade em que se situasse a casa da última residência conhecida do citando, sem prejuízo da possibilidade de publicação simultânea do anúncio na página informática, de acesso público, regulada no art. 240.º39.

4. Citação eletrónica e prazo de defesa Questão igualmente problemática é a de saber se a citação eletrónica é compatível com a aplicação do regime dos prazos dilatórios, previsto no art. 245.º, e, consequentemente, se é suscetível de contender com o cômputo do prazo para a apresentação da defesa. Na verdade, como é consabido, os prazos dilatórios acrescem ao prazo perentório que o citando dispõe para praticar um ato em juízo, sendo que, no que em particular se refere ao exercício do direito de defesa, a aplicação de tais prazos depende do modo ou do lugar em que a citação foi realizada. Ora, sendo a citação eletrónica dirigida à própria pessoa do réu e não podendo ser efetuada em pessoa diversa – ficando, por isso, excluída a possibilidade de aplicação do regime previsto no art. 245.º, n.º 1, al. a) –, dir-se-ia que os prazos dilatórios poderiam ser aplicados à citação eletrónica nos casos em que o réu fosse citado fora da área da comarca sede do tribunal onde pende a ação,

39 Em sede de direito comparado, é curioso verificar que, no ordenamento jurídico brasileiro, apesar de o art. 257.º do Código de Processo Civil estabelecer a regra segundo a qual o edital é publicado na “rede mundial de computadores, no sítio do respectivo tribunal e na plataforma de editais do Conselho Nacional de Justiça, que deve ser certificada nos autos”, o certo é que esse preceito legal prevê a possibilidade de o juiz determinar que a publicação do edital seja igualmente feita “num jornal local de ampla circulação ou por outros meios, considerando as peculiaridades da comarca, da seção ou da subseção judiciárias”.

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no território das Regiões Autónomas ou no estrangeiro [art. 245.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3]. O certo, porém, é que o n.º 6 do art. 246.º – aditado pelo Decreto-Lei n.º 97/2019, de 26 de julho – estabelece expressamente que, sendo a citação de pessoas coletivas realizada através de via eletrónica, não é aplicável o regime das dilações constante do art. 245.º. Na verdade, semelhante opção legislativa encontrará justificação quer no facto de o legislador ter enveredado, quanto à citação por via eletrónica, pela adoção de um regime de presunção em relação à data em que a citação se considera realizada (art. 219.º, n.º 6), quer pela consideração de que a tramitação eletrónica do processo judicial, ao permitir que qualquer pessoa consulte eletronicamente o processo em que seja parte, independentemente do local onde se encontre situada (art. 163.º, n.º 2), dispensa a aplicação do regime dos prazos dilatórios, previsto no art. 245.º, n.ºs 1, al. b), 2 e 3, quando o réu, respetivamente, tenha sido citado fora da área da comarca sede do tribunal onde pende a ação, no território das Regiões Autónomas ou no continente, bem como no estrangeiro. Ora, ainda que se aceite que o regime dos prazos dilatórios previsto para os casos em que o réu é citado fora da área da comarca onde se encontra pendente a ação se encontra desatualizado, por força da possibilidade de consulta eletrónica dos processos judiciais – já que esses prazos dilatórios foram originalmente concebidos para obviar às eventuais dificuldades com o que o réu se visse confrontado, pelo facto de residir longe da secretaria judicial do tribunal onde o processo se encontrasse pendente e de pretender exercer o seu direito de consultar os autos –, a verdade é que, no que concerne ao prazo para a apresentação da defesa, o regime processual civil vigente trata de forma desigual as pessoas coletivas em função do modo como são citadas, porquanto as pessoas coletivas que não sejam citadas através de via eletrónica, poderão beneficiar, sendo caso disso, dos prazos dilatórios previstos no art. 245.º, o mesmo já não sucedendo, no entanto, com aquelas que sejam citadas por via eletrónica. Tal redunda, inevitavelmente, na constatação de que o regime processual em análise viola, de forma flagrante e ostensiva, o princípio da igualdade no acesso ao Direito e aos Tribunais, já que não existe qualquer razão válida ou atendível que justifique esse tratamento diferenciado entre as pessoas coletivas quanto ao cômputo e à duração do prazo para o oferecimento da contestação.

5. Conclusão A morosidade dos processos judiciais e a elevada pendência dos tribunais, associada ao rápido desenvolvimento das novas tecnologias, tem levado a legislador a reconfigurar, de forma progressiva, a matriz do processo judicial,

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mediante o emprego de meios tecnológicos e eletrónicos ao serviço da administração da justiça. Ora, apesar de se reconhecer a importância do desenvolvimento dos meios eletrónicos, bem como as suas potencialidades no que concerne à maior celeridade e eficiência na tramitação dos processos judiciais, a verdade é que, no domínio da citação do réu e da proteção do direito de defesa, a implementação de meios eletrónicos na comunicação de atos judiciais, sem a adoção paralela de regras mínimas que garantam a segurança e a efetividade dessa comunicação, é suscetível de colocar em crise o direito a um processo justo e equitativo. Em particular, no que diz respeito à citação pessoal através de meios eletrónicos, a garantia de que o citando tomou efetivo conhecimento da comunicação que lhe foi remetida reclama, entre outros aspetos, que o sistema de transmissão eletrónica de dados seja capaz de certificar a concretização dessa citação. O mesmo é dizer que não se afigura compatível com a Lei Fundamental a simples introdução de uma presunção legal de que a citação terá sido recebida pelo citando, sem qualquer garantia mínima de que este recebeu realmente a comunicação que lhe foi dirigida pelo tribunal, sob pena de nulidade, por falta de citação (art. 188.º). Por outro lado, no que diz respeito à citação edital, as assimetrias que se verificam no acesso às novas tecnologias de informação, conjugadas com a importância que os jornais em suporte de papel ainda assumem na nossa sociedade, impõem a repristinação das formalidades da citação edital que se encontravam previstas no Código de Processo Civil revogado, sem prejuízo da eventual conjugação dessas formalidades com a publicação de um anúncio eletrónico em página informática de acesso público. Por último, não se encontra razão válida ou atendível para que o legislador tenha instituído um tratamento diferenciado para as pessoas coletivas, quanto à aplicação do regime dos prazos dilatórios, em função da circunstância de a citação ter ou não sido realizada por via eletrónica, pelo que se afigura fundamental a harmonização da aplicação do regime dos prazos dilatórios no âmbito da citação das pessoas coletivas, tendo presente o direito fundamental a um processo justo e equitativo.

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O RECURSO À NEUROCIÊNCIA COMO MEIO DE PROVA DA INIMPUTABILIDADE EM RAZÃO DE ANOMALIA PSÍQUICA NOS PROCESSOS DE NATUREZA CRIMINAL: (DES)MISTIFICAÇÃO DOS SEUS CONTRIBUTOS E REPERCUSSÕES NOS DIREITOS DOS ARGUIDOS Maria João Lourenço Assistente Convidada na Escola de Direito, Universidade do Minho Investigadora do JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação mjlourenco@direito.uminho.pt

Resumo: os avanços da neurociência sobre o funcionamento do cérebro humano impulsionaram nos campos do Direito - e, em particular do Direito penal e processual penal - profundos debates sobre a existência de uma efetiva liberdade individual. Para lá das implicações daí resultantes na conceção tradicional da responsabilidade penal, já muito discutidas na doutrina, interessa-nos sobretudo analisar as manifestações da neurociência em matéria probatória, especificamente quando usada como meio de prova da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica nos processos dessa natureza. Isto porque muito embora os conhecimentos desenvolvidos nesta área científica possam potenciar uma maior aproximação à verdade por permitir - designadamente com recurso à Ressonância Magnética Funcional (fMRI) - proceder à análise de imagens do cérebro,

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O recurso à neurociência como meio de prova da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica nos processos de natureza criminal: (des)mistificação dos seus contributos e repercussões nos direitos dos arguidos Maria João Lourenço

certo é que a utilização das suas técnicas pode abalar alguns dos mais elementares direitos dos arguidos. O presente artigo, não descurando um apelo à interdisciplinaridade do conhecimento e à valoração dos elementos extrajurídicos para realização da justiça, procura promover uma reflexão sobre as implicações da abertura dos processos judicias à neurociência: não só (des)mistificando os seus contributos, como apelando a um maior cuidado na sua valoração e na proteção das garantias processuais dos arguidos. Palavras-chave: anomalia psíquica; inimputabilidade; interdisciplinaridade; neurociência; prova pericial.

1. Notas introdutórias O advento das descobertas da neurociência - em paralelo com o desenvolvimento da psiquiatria e em diálogo aberto com a psicologia - potenciou um diálogo interdisciplinar entre cientistas e juristas na procura de soluções para novos problemas enfrentados pelo Direito1. Acontece que muito embora essas descobertas tenham permitido aprofundar o conhecimento sobre o funcionamento do cérebro humano, certo é que abriram portas ao diálogo em torno da possível ausência da liberdade de vontade. Uma conclusão definitiva deste tipo retiraria qualquer sentido da destrinça entre comportamentos voluntários e involuntários e afastaria a existência do livre arbítrio, em que radica toda a conceção tradicional da responsabilidade penal. Tal afirmação poderia mesmo pôr em causa todos os conceitos fundamentais do Direito Penal, que teria que ser substituído por um neolombronsianismo ou determinismo biológico ou por um Direito penal de efeito ou de responsabilidade objetiva.

1 Para um aprofundamento sobre contribuições dos estudos da neociência na aplicação do Direito, podem ler-se M Taruffo, “Proceso y neurociencia. Aspectos generalres”, in M Taruffo e J Nieva Fenoll (dirs.), Neurociencia y proceso judicial (Marcial Pons, Madrid, 2013), 15-24; K A Kiehl, “Can neuroscience identify psychopaths?”, in M A Gazzaniga et al., A Judge’s Guide to Neuroscience: A Concise Introduction (Sage Center, UC Santa Barbara, 2010), 47-53; R Molina Galicia, “Neurociencia, neuroética, Derecho y proceso”, in M Taruffo e J Nieva Fenoll, supra, 145-167; D G Lagier, “¿La tercera humillación? (Sobre neurociencia, filosofía y libre albedrío)”, in M Taruffo e J Nieva Fenoll, supra, 55-66; U Fttinger et al., “Genetics, Cognition and Neurobiology of Schizotypal Personality: a review of the overlap with schizophrenia” (2014), Frontiers in Psychiatry 5, 1-16. Há autores que chegam mesmo a insinuar que, por força dos avanços da neurociência, deixará de ser uma quimera a quantificação dos danos morais para efeitos indemnizatórios, como evidencia J Nieva Fenoll, “Presentación”, in M Taruffo e J Nieva Fenoll, supra, 11-13,11.

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Tendo por ultrapassada esta questão, já muito debatida na doutrina2, ficarão excluídas do presente texto as discussões em torno do atual quadro de inimputabilidade e do termo de anomalia psíquica - que será apenas brevemente delineado - e a reflexão sobre a admissibilidade de prova pericial desta natureza nos processos judiciais, já que há muito não existem dúvidas do seu caráter técnico, científico e especializado3. Também não nos debateremos sobre as diversas técnicas desenvolvidas pela neurociência, devidamente detalhadas em textos da especialidade. O que procuramos é compreender em que medida uma das suas técnicas para recolha e análise de imagens do cérebro - Ressonância Magnética Funcional (fMRI) - pode contribuir para uma tomada de decisão mais consciente sobre o quadro de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica dos arguidos em processos judiciais. 2 Ainda que nos dias de hoje se mantenha aceso o debate sobre este tema, algumas objeções têm sido levantadas e afastado estas conclusões. As mais relevantes prendem-se com o facto de no cérebro não existir nenhuma “zona de responsabilidade” em que uma particular dinâmica das conexões neuronais determine um comportamento criminal e ainda com o que parece ser um erro concetual destas teorias e que consiste em fazer corresponder condutas que se consideram voluntárias com processos cerebrais quando as intenções não são processos cerebrais e a intencionalidade não se coloca numa zona do cérebro, nem se reduz a um estado cerebral. A acrescer, a ideia de que a atividade do cérebro é momentânea e não um estado mental, uma decisão ou uma intenção. Para um maior aprofundamento sobre estas críticas, leiam-se, a título exemplificativo B Beißer, “¿Refutan las ideas de la neurociencia el concepto de culpabilidad del § 20 del Código Penal?”, in M Taruffo e J Nieva Fenoll, supra n 1, 145-167 e D González Lagier, supra n 1, 24-42; J L Antunes, “As neurociências e o direito”, in F A Correia, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, v. 1 (Coimbra editora, Coimbra, 2012), 85-9; P R A Silva, “Culpabilidade e livre-arbítrio novamente. Os influxos da neurociência sobre o Direito Penal” (2009), Revista Jus Navigandi, 2193, 1; S H J Khaled, “O problema da indemonstrabilidade do livre-arbítrio: a culpabilidade jurídico-penal diante da nova concepção de homem da neurociência” (2010), Revista Sociologia Jurídica 10, 11-12. Claus Roxin procura diminuir a importância do livre-arbítrio como fundamento material da culpabilidade, partindo do princípio que as discussões sobre o tema pertencem ao campo da metafísica e da filosofia. O autor considera todo o indivíduo, a priori, dotado de liberdade de determinação e, portanto, quando preenchidos os requisitos de culpabilidade - como sejam condições psíquicas e biológicas - responsável pela prática de atos ilícitos. E nessa medida o Direito Penal prescinde da demonstração concreta da liberdade da vontade, trabalhando à luz de uma conceção jurídica - vide C Roxin, Derecho penal: parte general, tomo I (Civitas, Madrid, 1997), 800ss. Também para Figueiredo Dias, tendo o fundamento da culpabilidade raízes normativas e não meramente biológicas, as descobertas da neurociência não podem afetar estruturalmente a dogmática penal e afastar o próprio conceito de liberdade da vontade, embora devam ser reconhecidos os seus ensinamentos quanto à aferição da culpabilidade e da legitimação punitiva nos casos concretos, especialmente nos casos de anomalias psíquicas e demais perturbações mentais que possam privar o agente das suas normais condições de compreender e agir - J F Dias, Liberdade - Culpa - Direito Penal, (Coimbra Editora, Coimbra, 3.ª ed, 1995), 139-158. 3 Para uma discussão mais alargada, com referência aos critérios desenvolvidos pela jurisprudência estadunidense a propósito da admissibilidade de novas provas científicas, vide A Corda, “Neurociencias y Derecho Penal desde el prisma de la dimensión procesal”, in M Taruffo e J Nieva Fenoll, supra n 1, 114-128.

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O recurso à neurociência como meio de prova da inimputabilidade em razão de anomalia psíquica nos processos de natureza criminal: (des)mistificação dos seus contributos e repercussões nos direitos dos arguidos Maria João Lourenço

Tendo em vista os objetivos da investigação, o texto é composto por quatro partes. Numa primeira, procuramos tecer algumas pinceladas sobre o recorte jurídico da inimputabilidade, já que só após esclarecimento do seu complexo quadro serão compreensíveis as razões pelas quais se apela a um diálogo entre juristas, neurocientistas, psiquiatras e psicólogos. É precisamente este diálogo interdisciplinar na compreensão dessa mesma realidade que nos ocupa na parte seguinte, em que evidenciamos as limitações da ciência na descoberta da verdade. Após, centramos as atenções na produção de prova pericial neurocientífica nos processos judicias e analisamos as dificuldades na valoração deste tipo de prova científica. Por fim, refletimos se e em que medida os métodos utilizados pela neurociência para conhecer o cérebro humano podem afetar alguns dos direitos fundamentais e processuais dos arguidos.

2. O diálogo interdisciplinar Partimos para a análise do tema que nos propusemos trabalhar convictos de que para poucas temáticas as construções de outras áreas das ciências naturais se revelam tão pertinentes e decisivas como nas questões da inimitabilidade em razão de anomalia psíquica: não só pela complexidade da matéria, como pelas consequências jurídicas que estes saberes podem implicar. Igualmente estamos conscientes que a relação dialética que se estabeleceu entre as ciências do homem e este conceito de inimputabilidade tem sido pautada por algumas dificuldades que por vezes parecem conduzir a um “divórcio entre juristas e cientistas do homem”4, com inevitáveis consequências para a aplicação do Direito.

2.1. O complexo modelo de inimputabilidade: o paradigma compreensivo da imputabilidade O conceito de inimputabilidade é um conceito puramente jurídico, definido pelo Direito e com relevância exclusiva para o Direito, ainda que a sua compreensão exija a procura de conhecimentos de outras áreas do saber. Por isso, apesar de o conceito não ter expressão nem implicações nas demais áreas científicas, é certo que tem vindo a ganhar novos contornos com a evolução científica, resultando cada vez mais complexo e de difícil apreensão. A própria conceção de inimputabilidade que hoje vigora entre nós é reflexo de um longo caminho que foi sendo traçado de mãos dadas com os conhecimentos que as ciências do

4 Cf. J F Dias, “Sobre a inimputabilidade jurídico-penal em razão de anomalia psíquica: a caminho de um novo paradigma?”, in Separata de Estudios penales y criminológicos, XIII (Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, 1990), 130.

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homem foram capazes de fornecer aos juristas5. Sem nos debruçarmos sobre os modelos anteriormente vigentes - que assentaram inicialmente num paradigma biopsicológico e mais tarde num paradigma normativo - ocupar-nos-emos apenas daquele que vigora entre nós nos dias de hoje. No atual Estado de Direito Democrático, a função do Direito penal consiste na proteção de bens jurídicos e no desenvolvimento da personalidade individual, rejeitando as finalidades da pena como retaliação e encarando-as como forma de reintegração do indivíduo e proteção da estabilidade do ordenamento jurídico. A pena terá sempre como pressuposto a culpa do agente, partindo da conceção de que todos somos seres livres e todos teremos que responder pela personalidade ético-juridicamente censurável. Fruto de todo esse enquadramento, o art. 20.º do Código Penal dispõe sobre a inimputabilidade em razão de anomalia psíquica: 1 - É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação. 2 - Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída. Contrariamente ao que sucedida nos modelos anteriores, resulta do recorte exposto que o atual modelo de inimputabilidade e a repartição de competências não estão plenamente definidos e nem sempre a relação entre o Direito, neurociência, psicologia e psiquiatria é pacífica. Com efeito, de acordo com o paradigma vigente, entende-se que apenas a anomalia psíquica, sendo a única causa que pode impedir a compreensão pelo agente, justifica uma consideração de inimputabilidade, sendo esse diagnóstico de exclusiva competência de um perito. Simultaneamente, não se esquece o elemento normativo, cuja apreciação há-de recair na esfera de competências do juiz, a quem compete apurar e decidir se aquela anomalia é grave ao ponto de tornar impossível um juízo de compreensão acerca da ilicitude dos factos de que o arguido é acusado. Valerá isto por dizer que o modelo atual de inimputabilidade exige uma compreensão e colaboração entre diferentes profissionais, uma vez que a decisão do juiz sempre depende da avaliação médica, ligada ao elemento biopsicológico, que a precede. 5 Para uma exposição sobre os modelos anteriores, pode ser lido o nosso artigo intitulado “Entre Direito, Psiquiatria e Psicologia: interdisciplinaridade da inimputabilidade”, in M C Calheiros, Estudos de Direito, ciência e prova (EDUM, Braga, 2019), 49-77. Aí podem ser encontradas explicações mais desenvolvidas sobre o assunto e sobre as dificuldades sentidas no diálogo entre Direito, psicologia e psiquiatria, precisamente na determinação de situações de inimputabilidade por anomalia psíquica.

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Por isso, olhando para o plano normativo da inimputabilidade, à luz de um paradigma compreensivo da inimputabilidade, rapidamente se conclui que só um diálogo entre juristas e especialistas das áreas da saúde poderá traçar a linha da inimputabilidade. É precisamente nesta relação de cooperação e colaboração entre os profissionais que surgem os problemas que nos ocuparão nas próximas páginas.

2.2. Contributos da neurociência no diagnóstico da anomalia psíquica Nos últimos anos a neurociência desenvolveu uma série de métodos cada vez mais sofisticados de investigação para analisar a estrutura e o funcionamento do cérebro. Da extensa bibliografia publicada sobre o tema pode concluir-se que tais métodos assentam numa sólida base científica e que, portanto, poderão ser admissíveis como instrumento de conhecimento no âmbito de qualquer tipo de processo judicial. A questão que se poderá colocar é a de saber se tais métodos se mostram relevantes para a tomada de decisão e em que condições poderão ser utilizados como prova em juízo6. Sem o fito de apresentar pormenores sobre as técnicas usadas pela neurociência, procuraremos responder de uma forma que, pese embora simplista, possa servir aos objetivos deste texto. De entre as várias ferramentas desenvolvidas pela neurociência para conhecer o funcionamento do cérebro, aquela que melhor permite satisfazer as necessidades de compreensão do quadro mental dos arguidos é a neuroimagem, obtida por via da fMRI. Esta técnica permite a reprodução de uma imagem tridimensional com alto grau de detalhe do cérebro por meio da medição da atividade cerebral localizada através do fluxo sanguíneo e da troca de oxigénio. As informações são recolhidas durante um exame em que o indivíduo é orientado a realizar atividades de natureza cognitiva ou motora. À medida que são recolhidas as informações é possível realizar uma comparação entre as áreas do cérebro ativadas durante a execução das atividades e as áreas inativas, que permite atestar

6 Tal como esclarece M Taruffo, supra n 1, 15.

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a (in)existência de alterações no funcionamento cerebral e, por conseguinte, estabelecer uma correlação com determinados tipos de transtorno mental7. Na prática, tal significa que a neuroimagem pode tornar possível uma distinção entre pessoas que sofrem de uma doença mental, daquelas que sofrem de graves transtornos de personalidade e daquelas que não têm qualquer tipo destas patologias8. E por isso não há como negar que a interação entre o conhecimento das ciências humanas e biológicas aplicada no âmbito jurídico pode fortalecer o conteúdo dos relatórios periciais e permitir ao tribunal uma decisão mais consciente. Em Portugal o debate parece ainda estar à margem da revolução despoletada pela neurociência9. Com efeito, desconhece-se um único caso judicial em que, havendo suspeitas de inimputabilidade do arguido, se tenha aberto portas a qualquer tipo de exame operado por esta área científica. A prática judicial mostra-nos que o juízo sobre a existência de alguma anomalia psíquica é, por via de regra, apresentado num relatório pericial elaborado por um psiquiatra. Muito embora se reconheça que a psiquiatria tenha também sofrido um profundo desenvolvimento - que permitiu aumentar a sua objetividade no diagnóstico e eficiência da terapêutica - não podemos olvidar que a sua natureza multidimensional e o seu objeto de estudo impede uma maior simplicidade, certeza e coerência

7 Para uma leitura sobre as diferentes técnicas de que se socorrem os estudos neurocientíficos, leiam-se P M Mathews e P Jezzard, “Functional magnetic resonance imaging” (2004), Journal of Neurology, Neurosurgery & Psychiatry 75 (1), 6-12; D F Swaab, “Developments in neuroscience”, in J Giordano e B Gordijn (eds.), Scientific and philosophical perspectives in neuroethics (Cambridge University Press, United Kingdom, 2010), 1-36, 2; P S Appelbaum, “The new lie detectors: Neuroscience, deception, and the courts” (2007), Law & Psychiatry 58 (4), 460-462, 461; J Illes e E Racine, “Imaging or imagining? A neuroethics challenge informed by genetics” (2005), The American Journal of Bioethics 5 (2), 5-18, 6-7, O D Jones, et al., “Brain imaging for legal thinkers: a guide for the perplexed” (2009), Stanford Technology Law Review, 5 e T R Brown e E R Murphy, “Through a scanner darkly: functional neuroimaging as evidence of a criminal defendant’s past mental states” (2010), Stanford Law Reviewm 62 (4), 1119-1208, 1136. 8 Neste sentido, M T Collica, “La crisi del concetto di autore non imputabile ‘periculoso’” (2012), Diritto Penale Contemporaneo, 1-47. 9 Embora venha sendo principalmente nos Estados Unidos que os resultados das técnicas de neuroimagem são cada vez mais introduzidos no âmbito jurídico, o uso de dados neurocientíficos começa a surgir na Europa. As primeiras decisões surgiram em Itália, e ficaram conhecidas como o caso Trieste (Corte d’Assise d’Appello di Trieste, de 18.09.2009, n.º 5) e o caso Como (Tribunale di Como, de 20.05.2011, n.º 536.)

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dos diagnósticos traçados10. Por isso, lamentamos que os nossos atores judiciais não sejam mais ambiciosos e não procurem retirar as maiores vantagens da especialização do conhecimento e de um diálogo interdisciplinar que sempre será exigível quando se discute a responsabilidade penal.

3. (Des)mistificação dos contributos da neurociência Pese embora tudo quanto se afirmou, cumpre fazer uma clarificação inicial: por mais desenvolvidas que se mostrem as técnicas da neurociência, nenhuma imagem cerebral poderá, por si, concluir pela (in)imputabilidade dos arguidos em sede de processo penal. Em primeiro lugar pelo facto de, como vimos, o diagnóstico da existência de uma anomalia psíquica ser apenas um dos pressupostos da inimputabilidade, já que para além desse o juiz deve indagar se a anomalia de que padece o arguido é suficientemente grave para afetar a sua capacidade de querer e entender no momento da prática do ilícito de que é acusado. Em segundo porque a demonstração do nexo de causalidade entre uma condição psíquica e um determinado comportamento apresenta as mais variadas dificuldades mesmo no âmbito clínico e mostra-se arriscado afirmar se uma lesão ou anomalia cerebral tem efeito causal no comportamento11. A este propósito, cumpre então desconstruir o mito segundo o qual a ciência permite aos juristas o conhecimento da verdade e lutar contra a prática reiterada assente na ideia de que o relatório pericial permite ao tribunal escusar-se da sua função jurisdicional de decidir12. Muitos são os argumentos que relevam para esta conclusão. Para este estudo, importa apresentar algumas limitações da neuroimagem que atestam o que se acabou de afirmar. 10 Com efeito, as análises perseguidas pela psicologia e psiquiatria assentam num plano sobretudo comportamental que não permite revelar e associar uma atividade cerebral com uma determinada manifestação clínica, contrariamente à neurociência. Daí que se afirme que as técnicas da neuroimagem possam facultar informações mais confiáveis sobre a existência e respetivos efeitos de uma anomalia psíquica. Como bem elenca L Celant, O juízo de inimputabilidade em função de anomalia psíquica à luz do contributo da neurociência ( Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016), 66, a abordagem neuropsicológica pode reduzir a margem de discricionariedade na avaliação do funcionamento mental individual; permitir uma descrição detalhada do quadro cognitivo do sujeito; compreender como o sujeito em exame constrói a consciência e como os processos cognitivos e emotivos emergem do seu substrato biológico e ainda possibilitar a mensuração de forma precisa e eficaz do funcionamento cognitivo e comportamental do sujeito em exame. 11 Cf. O D Jones, et al., supra n 7. 12 Sobre a tensão e o difícil equilíbrio entre a ciência e o Direito e a esperança que os juristas depositam na ciência para o conhecimento da verdade, podem ler-se M C Calheiros, Estudos de Direito, ciência e prova (EDUM, Braga, 2019) e M J Lourenço, supra n 5 e.

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Aquela que merece destaque inicial é o facto de ser praticamente impossível determinar, por meio de neuroimagem, se o arguido entendeu o seu ato ilícito ou se conseguiu concretizar um julgamento moral e/ou legal aquando do mesmo13. Nota merece ainda a incapacidade de a fMRI para decifrar a (falta) de intenção do agente no momento da prática do crime, compreendida na capacidade volitiva, porque o autocontrolo além de variável de pessoa para pessoa, é sensível em função do contexto14. A respeito, deve lembrar-se que a incapacidade de entender ou querer é um problema jurídico e não científico: recai sobre o juiz valorar as informações sobre o estado do cérebro para qualificar o sujeito como capaz ou incapaz de querer e entender os seus comportamentos. E por isso se deve concluir que os resultados de um exame de neuroimagem não podem, por si só, responder à (ir)responsabilidade penal do agente. Ademais, mesmo sendo hoje aceite que o cérebro é composto por regiões claramente distintas, não resultam, contudo, ainda bem delimitadas essas zonas cerebrais e assim ainda se mostra extremamente complexa a delimitação daquelas que se relacionam com os estados mentais. Mas mesmo que tal se mostrasse possível, não se deve olvidar que o cérebro funciona como um “todo holístico”, onde não se pode afirmar de maneira exata que a anomalia verificada impede o funcionamento cognitivo ou volitivo. Para além de que essas zonas já definidas foram-no em função de padrões gerais, que estão sujeitos a desvios de pessoa para pessoa, e, nessa perspetiva, a interpretação estatística reproduz uma média e a comparação dos valores individuais com tais padrões pode não ser totalmente fiável15. Mais, nenhuma dessas zonas do cérebro corresponde a uma “área de capacidade” cujo funcionamento possa verificar-se para se estabelecer se é “normal” ou se se identificam anomalias suficientes para concluir que o sujeito é incapaz16. Também a plasticidade do nosso sistema nervoso, que se vai alterando em consequência de cada estímulo, contribui para a incapacidade de a neuroimagem facultar certezas quanto à existência de uma doença mental17. Outra limitação que deve aqui ser aduzida está relacionada com o inevitável hiato temporal que decorre entre a realização do exame e a prática do ilícito 13 Cf. N Koivula, “A neuroscientific perspective on cognitive and volitional impairment in criminal irresponsibility assessments: a case for a capacity-based approach”, in AAVV, Neurolaw - MaRBLe Research Papers, vol 5 (Maastricht University, Maastricht, 2014) 105-137,115. 14 Por isso há autores que lembram que não pode ser estabelecida uma relação direta de causa-efeito entre atividade cerebral e corpo humano, como M Taruffo, supra n 1, 18. 15 Cf. N Feigenson, “Brain imaging and courtroom evidence: on the admissibility and persuasiveness of fMRI” (2006), International Journal of Law in Context 2, 233-255, 240-1. 16 Cf. M Taruffo, supra n 1,17. 17 Cf. J Illes e E, Racine, supra n 7, 251.

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penal. Como facilmente se compreende, a imagem do cérebro obtida pela fMRI capta a atividade cerebral do sujeito no momento da realização do exame, mas não no momento da sua atuação criminal, que é a única que merece relevância para determinação da inimputabilidade. Este lapso temporal “aumenta o grau de incerteza em torno dos elementos probatórios produzíveis no processo e dramatiza o estabelecimento dos pressupostos da responsabilidade penal para além da dúvida razoável”18. Mas ainda assim, não será de descurar que faculta conhecimento do estado mental do agente aquando da realização d exame, que pode ser útil para se reconstruir o passado através de inferências19. A acrescer a isto, é ainda importante lembrar que a neuroimagem desconsidera quaisquer circunstâncias sociais e ambientais, que sempre devem ser pesadas para efeito de responsabilidade penal. Outra das limitações inerente a este tipo de exame relaciona-se com o ambiente em que o mesmo se realiza, porque pelo facto de não recrear nenhuma situação real, e menos ainda as circunstâncias em que o crime foi cometido, as conclusões deverão ser sempre condicionadas. De tudo isto se pode extrair então que a existência de doença mental, ainda que confirmada por meio de uma imagem cerebral, não tem ligação direta e imediata com a culpabilidade do agente, nem é capaz de explicar a razão da prática do crime ou confirmar, por si, um estado de inimputabilidade. Por isso, os juristas não podem ficar deslumbrados com os contributos das ciências como a neurociência ou a psiquiatria, sob pena de se assumir que existe uma relação causal entre uma anomalia cerebral e a inimputabilidade penal. Essa relação seria não só violadora do paradigma normativo da inimputabilidade - porque eliminaria o juízo do tribunal - como desajustada às contribuições que a neurociência pode oferecer, já que é genericamente reconhecido que as técnicas de neuroimagem não podem oferecer uma prova irrefutável de mérito sobre a capacidade cognitiva e volitiva de um sujeito. Em qualquer caso, mesmo não tendo capacidade de reproduzir o pensamento do indivíduo no momento do ato jurídico penalmente relevante20, não devem ser desconsiderados os seus préstimos, porque as suas técnicas proporcionam a descrição de forma estrutural e funcional das mais diversas funções cognitivas como nenhumas outras. Para o campo da inimputabilidade, ao per-

18 Cf. J Costa, “A relevância jurídico-penal das perturbações da personalidade no contexto da inimputabilidade” (2011), Revista Julgar 15, 53-81, 77. 19 Cf. M Taruffo, supra n 1,17. 20 Cf. O D Jones, et al., supra n 7, 49; D Mobbs, et al., “Law, Responsibility, and the Brain” (2007), Plos Biology 5(4), 693-700, 696.

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mitirem a visualização de um substrato neural disfuncional, fazem com que a comprovação da anomalia psíquica se revista de maior valor21. Assim, pese embora as técnicas da neurociência possam configurar um importante ponto de partida para o conhecimento do estado mental do arguido, a interpretação da neuroimagem recolhida, constante de um relatório, não poderá substituir o poder e dever jurisdicional que impende sobre o Tribunal. É precisamente sobre as dificuldades em equilibrar as contribuições da neurociência, psicologia e psiquiatria e as necessidades dos processos judiciais que nos debruçamos na secção seguinte.

4. A difícil valoração do conhecimento científico22 Cientes das vantagens deste diálogo e da relevância de produção deste tipo de prova nos processos judiciais, a questão que cumpre agora analisar prende-se com as dificuldades na articulação da intervenção dos profissionais das ciências do Homem nos processos judicias. Dito de outra forma, como valorar os conhecimentos por eles trazidos - através de prova pericial - dentro dos demais elementos de prova. Nos termos do disposto no art. 163.º do CPP, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador e sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência. Reside aqui, como é bom de compreender, um dos paradoxos da prova pericial: surgindo o perito no processo para auxiliar o juiz, que não tem conhecimentos técnicos para compreensão da matéria em discussão, a exigência de este realizar uma avaliação do testemunho do perito, determinando se será forte o suficiente para suprir todas as dúvidas e configurar uma prova válida e credível ao ponto de suportar uma decisão judicial sobre a inimputabilidade do arguido, obsta a que, na praxis, os juízes se afastem do juízo constante do relatório pericial e o perito seja visto como o decisor da causa. Daí que não seja excessivo afirmar que o perito se aproxima, em certa medida, da posição de julgador. A opinião de qualquer «médico, psiquiatra ou psicólogo, passa a ter o estatuto intocável de “juízo científico”, não obstante a nomeação como perito seja inexistente, a metodologia para chegar às conclusões seja obscura ou os fatos que a deveriam basear sejam parciais, falsos ou claramente desvirtuados ou manipulados»23. Sobretudo 21 Cf. Di Bari, S, “Nuove frontiere della ‘pruova’: ripensare la prova penale in una prospettiva psicologica e neuroscientifica” (XII), Psicologia e Giustizia 1, 1-40, 31. 22 Sobre esta discussão, leia-se o artigo M J Lourenço, supra n 5. 23 Cf. J H G Sousa, «A “perícia” técnica ou científica revisitada numa visão prático-judicial» (2011), Revista Julgar 15, 27-52, 27.

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porque da parte dos juristas há uma reconhecida tendência para idolatrar os conhecimentos que advêm das ciências naturais, relativamente aos quais depositam a “fé”24 na descoberta da verdade que tanto procuram. Estas considerações mostram-se ainda mais prementes nos casos em que sejam produzidos e valorados conhecimentos da neurociência porque, por falta de formação e de experiência dos magistrados e advogados em lidar com relatórios deste tipo, há um elevado risco de o contraditório se mostrar meramente formal e de a decisão sobre a existência de anomalia psíquica assentar num parecer que não é verdadeiramente compreendido pela parte e pelo decisor. Tudo isto é ainda mais alarmante se considerarmos que a interpretação do relatório está agarrada à ideia de que o mesmo se funda em juízos de natureza científico e, por conseguinte, certos e incontestáveis. Constatamos, assim, que os profissionais de saúde mental podem exercer uma sólida e importante influência na configuração do Direito, que idealmente pode conduzir a uma maior transparência e atenção no uso de conhecimentos psiquiátricos e a um aumento da qualidade da justiça25. Porém, são inúmeras as dificuldades e os riscos associados a um diálogo interdisciplinar que nem sempre se mostra profícuo. Nos casos sobre os quais nos debruçamos, tal pode implicar, por um lado, a violação do modelo normativo de inimputabilidade e, por outro, a mistificação de conhecimentos que apenas devem ser interpretados como prováveis. No primeiro caso porque, bastando-se o juiz com o relatório pericial do responsável pela realização da fMRI, sem depois confrontar o diagnóstico numa ótica de dinâmica-causal ou procurar, com recurso a perícias psiquiátricas e psicológicas, uma avaliação das capacidades cognitivas e volitivas do sujeito no momento de cometimento do fato, demite-se das suas funções jurisdicionais, que delega no perito. Perito esse que, como vimos, não só não pode responder com certeza absoluta sobre a existência de uma anomalia psíquica, como não tem qualquer competência para apurar se, existindo uma qualquer anomalia, ela possa configurar uma situação de inimputabilidade - conceito jurídico que apenas ao juiz compete apreciar casuisticamente. Aqui se deve então chamar atenção para o facto de, contrariamente àquele que parece ter vindo a ser o entendimento na nossa praxis, a prova pericial produzida quanto à anomalia psíquica não será bastante para decidir sobre a sua inimputabilidade. É que, se por um lado, o juízo de inimputabilidade exige um nexo entre o transtorno mental e a conduta penal ilícita do sujeito agente, por outro, esse nexo não é determinado pela fMRI e

24 Cf. M C Calheiros, supra n 12, 127. 25 Neste sentido, E S Janus e M Hackett, “Establishing a Law and Psychiatry Clinic” (2004), Journal of Law & Policy 14, 209-247, 209.

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comporta a necessidade de uma ponderação com os demais elementos de prova. E, por isso, a decisão final terá sempre que ser do tribunal e não do perito. No segundo porque, como vimos, não se pode esquecer que a neurociência, tal como sucede com as demais áreas do saber, não pode oferecer respostas binárias. Nas situações em análise, essa impossibilidade é facilmente compreendida se se atenderem às importantes limitações descritas em momento anterior. Por isso, o juiz também não se deve demitir de uma análise crítica ao relatório e procurar certificar-se de que foram respeitados todos os métodos deontológica e cientificamente previstos para se assegurar o maior grau de fiabilidade, como ainda o grau de confiabilidade do relatório pericial.

5. Repercussões em alguns dos direitos dos arguidos Até aqui procuramos evidenciar que os conhecimentos da neurociência podem ser um importante instrumento para auxiliar o tribunal a apurar a existência de anomalia psíquica, apesar de nem sempre se mostrar fácil a articulação entre os profissionais das ciências e do foro. Agora cumpre-nos lembrar que antes de um meio de prova, a fMRI é um instrumento de diagnóstico médico e por isso a sua utilização no processo penal enfrenta dificuldades tanto do ponto de vista de valoração, como num plano mais teórico e principiológico, designadamente pelo facto de poder colidir com alguns dos mais elementares princípios do processo penal. Cingiremos a análise à técnica a que nos temos vindo a referir de molde a compreender se a mesma pode afrontar com o direito dos arguidos a não produzir prova contra si mesmo e os direitos ao silêncio, à privacidade e ao contraditório - que no imediato são aqueles que poderão ser mais afetados em virtude da utilização da referida técnica. Sem apresentarmos qualquer embasamento teórico sobre os mesmos, que se mostram já devida e aprofundadamente perscrutados pela literatura, concentramos o olhar para a discussão que se tem gerado sobre se a fMRI pode violar o direito dos arguidos ao silêncio e a não produzir prova contra si. É que, como demos conta, esta técnica permite o acesso a memórias e pensamentos obtidos de forma direta e involuntária, que não podem ser controladas pelo indivíduo. Questiona-se, pois, se uma situação deste género não será violadora do direito do arguido permanecer em silêncio porque permite aceder a informações mesmo antes de serem por ele verbalizadas. Mais do que isso, a recolha e análise dos padrões da atividade cerebral podem permitir informações que o indivíduo não estaria disposto a fornecer. A resposta a esta discussão pode encontrar o seu ponto de partida no entendimento que o Tribunal Constitucional tem vindo a defender sobre a extensão e conteúdo do nemo tenetur, nos termos do qual o princípio da não autoincriminação se limita às declarações de natureza verbal,

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sem abranger os elementos probatórios que se tenham obtido coercivamente26. Ora, aplicando esse mesmo raciocínio e a ponderação de valores fundamentais desenvolvida por esta jurisprudência, concluímos que também nestas situações parece ser possível que os arguidos sejam compelidos à realização de um exame ainda que sem o seu consentimento27 e, por isso, relativamente a este ponto, não será a fMRI suscetível de afetar os direitos dos arguidos. Contudo, as dificuldades não se dissolvem aqui e outra questão pode ser levantada perante a utilização da neuroimagem como prova em processo penal: nas situações em que o arguido se remete ao silêncio, é possível extrair-se uma confissão pela análise das imagens da fMRI quando este consente na realização do exame? Uma resposta a esta pergunta não pode esquecer que nenhuma confissão deve por si só ser suficiente para determinar uma condenação e que a leitura das imagens do cérebro deve sempre ser analisada conjuntamente com os demais meios de prova. A acrescer que o relatório pericial, como vimos, não pode determinar a decisão de inimputabilidade, que sempre exige uma ponderação jurídica. De resto, sempre se dirá que obter uma confissão, que não é verbal nem realizada na presença do juiz, se for constituída como meio de prova sem o consentimento do arguido, constitui prova de caráter ilícito, não podendo ser utilizada para a sua condenação. Outro dos riscos que se pode verificar a este respeito prende-se com o facto de, no decurso do exame, os quesitos apresentados e utilizados como estímulo para o cérebro permitirem alcançar informações que exorbitam o propósito do exame e que podem prejudicar a defesa do arguido que consentiu na sua realização. Dito de outra forma, mesmo havendo consentimento na sujeição ao 26 Não ignoramos nem desconsideramos os diversos trabalhos doutrinais e a vasta jurisprudência (até do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) desenvolvidos em torno deste princípio e da sua extensão. Porém, não nos sendo possível aqui apresentar considerações profundas sobre o tema, sempre deveremos sugerir a leitura de duas decisões do Tribunal Constitucional (n.ºs 155/2007 e 228/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) que bem resumem a polémica em causa. Na primeira, decidiu o Tribunal “[…] no seguimento da jurisprudência e doutrina acabada de citar, que o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo, como igualmente se concluiu na sentença do TEDH supra citada, o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de A.D.N.. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio contra a auto-incriminação.” 27 De resto, sempre seria essa a resposta em função do disposto no art. 172.º, n.º 1 do CPP que prevê a possibilidade de coerção por decisão judicial daquele que se recusar a contribuir com exame.

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exame, pode não conseguir assegurar-se ao acusado total capacidade de decidir voluntariamente e manifestar a sua vontade, considerando que a sua atividade cerebral não pode simplesmente ser interrompida após ser provocada por uma questão colocada pelo examinador28. Já quanto ao direito à privacidade e dignidade dos arguidos, a discussão remete-nos sobretudo para a proteção daquela que é designada por “privacidade cerebral”29 e deve ser equacionada à luz da discussão gerada a propósito das possíveis violações do direito à privacidade pela realização dos exames de ADN. Mas no âmbito do recurso à fMRI, a discussão pode ser adensada pelo facto de esta técnica poder revelar, inclusivamente, informações sobre a relação do arguido com terceiros e, nesse medida, se dever discutir se também não se deve colocar a necessidade da proteção da privacidade relativamente a esses terceiros30. Por fim, tem também sido questionado se a utilização da neurociência e das suas técnicas como elemento de prova não pode afetar o exercício efetivo do contraditório pelos arguidos. Isto porque o contraditório material pressupõe uma igualdade de armas entre as partes que permita que todas se encontrem nas mesmas condições para produzir e analisar as provas necessárias à descoberta da verdade material. Ora, o recurso à fMRI pode provocar desvios a estes pressupostos: seja porque a técnica é inacessível ao arguido, seja porque habitualmente a sua defesa não tem conhecimento científico adequado para discutir os resultados dos exames realizados. Por conseguinte, o resultado habitual é que a parte fica impossibilitada de contradizer o relatório pericial, que é aceite sem contestação pelo tribunal. Com todas as consequências de valoração inadequada do mesmo por parte dos magistrados judiciais, que não dispõem de formação nem de conhecimentos para valorar devidamente a (falta) de confiabilidade da prova científica produzida. É, pois, nuclear, que neste tipo de processos, o tribunal procure assegurar, com todos os meios processuais previstos, a maior confiabilidade da prova - p. ex., requerendo a presença do técnico responsável pela realização do exame na audiência de julgamento para explicar como procedeu ao exame e prestar todos os esclarecimentos sobre o relatório, mormente taxas de erro e fatores que podem ter influenciado as suas conclusões, dificuldades técnicas,… É que, não podemos esquecer, as limitações dos contributos das neurociências encontram outra importante fonte nas necessidades de interpretação dos resultados dos exames de neuroimagem. Tudo isto para evitar que o “juízo científico” 28 Para maiores desenvolvimentos, M O Nascimento, A ressonância magnética funcional e os meios de prova no processo penal reflexões à luz dos processos brasileiro e português (Faculdade de Direto da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2017), 51-6. 29 Termo sugerido por M J Farah, et al., “Brain Imaging and Brain Privacy: A Realistic Concern?” (2010), Journal of Cognitive Neuroscience 21(1), 119-127, 120. 30 Não sendo possível esmiuçar esta questão, não deve deixar de ler-se M O Nascimento, supra n 28, 63-5.

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continue a funcionar como “como guarda-chuva para o cometimento de atropelos à intenção do legislador de colocar a ciência num patamar superior dos conhecimentos e da razão”31. Parece-nos ser, pois, este o direito dos arguidos que mais pode ser afetado pela utilização da fMRI como meio de prova no âmbito dos processos de natureza criminal.

6. Notas conclusivas O contínuo debate interdisciplinar entre juristas e cientistas resulta muitas vezes paradoxal: não só nos permite acreditar que estamos cada vez mais perto de conseguir alcançar a verdade, como simultaneamente nos faz duvidar daquilo que tínhamos por mais certo. Este é o ponto de chegada após os diversos estudos da neurociência que abriram caminho a uma discussão em torno do livre arbítrio em que assenta toda a nossa conceção de responsabilidade penal. Reconhecendo os benefícios de abrirmos portas à neurociência nos processos judiciais, não podemos ocultar os receios que uma porta totalmente aberta possa implicar uma violação de alguns dos mais elementares direitos dos arguidos nos processos de natureza penal - em particular, o direito ao contraditório. A solução passará sempre por um equilíbrio. Não se espera ou se defende estabelecer limites ou se impedir a liberdade científica - se assim fosse não se chegariam a verificar as diversas conquistas dos últimos séculos que nos permitiram conhecer o que hoje conhecemos. Igualmente não se espera que os processos judicias se encerrem em si mesmo, sem conhecer a realidade que os rodeia. Mas não se pode defender que a descoberta da tão perseguida verdade possa condicionar os direitos fundamentais. Ou sequer que o Direito fique subserviente do universo das ciências naturais. As informações da neurociência não devem ser usadas acriticamente como regra de inferência, sob pena de nos conduzir por caminhos incertos e perigosos: o seu uso deve mostrar-se extremamente cauteloso e prudente, sem que a sua força heurística seja sobrevalorizada. Mais uma vez, reclama-se o equilíbrio: retirar proveito dos conhecimentos e das descobertas científicas em posição de alerta, submetendo-as a uma ponderação com os demais elementos de prova. Tudo se parece resumir, portanto, ao estabelecimento de um diálogo conjunto, interdisciplinar, que resulte no estabelecimento de padrões éticos mínimos que se mostrem suficientes para atenuar os possíveis riscos de um desequilíbrio entre a ciência e o direito.

31 Cf. J H G Sousa, supra n 23, 27.

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A INTEROPERABILIDADE COMO GARANTIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE ACESSO ÀS REDES INFORMATIZADAS DE USO PÚBLICO, PREVISTO NO ARTIGO 35.º N.º 6 DA C.R.P. Pedro Dias Venâncio Professor Adjunto convidado na Escola Superior de Tecnologia e Gestão, Instituto Politécnico do Porto Professor Auxiliar convidado na Escola de Direito, Universidade do Minho Investigador do CIICESI - Centro de Inovação e Investigação em Ciências Empresariais e Sistemas. Investigador do JusGov - Centro de Investigação em Justiça e Governação. pdvenancio@direito.uminho.pt

Resumo: O n.º 6 do artigo 35.º da Constituição da República Portuguesa consagra, na sua parte inicial, um direito fundamental de liberdade de acesso às redes informáticas de uso público. A Lei das Comunicações Eletrónicas dá-nos um conceito aproximado de redes informáticas de uso público, ou seja, aquelas que foram concebidas para utilização e prestação de serviços pela generalidade dos cidadãos e empresas. Entendemos ainda pacífico que, atualmente, este direito de livre acesso se configura não apenas como uma liberdade individual mas, também, como uma garantia que o Estado deve assegurar aos cidadãos. A questão que discutimos neste artigo é se a tutela da interoperabilidade digital, promovida pela legislação da União Europeia e nacional, representa uma realização deste direito fundamental.

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A interoperabilidade como garantia do direito fundamental à liberdade de acesso às redes informatizadas de uso público, previsto no artigo 35.º n.º 6 da C.R.P. Pedro Dias Venâncio

A interoperabilidade é definida no artigo 3.º n.º 2 da Lei n.º 36/2011, 21/06, – em concordância com a legislação da União Europeia - como «a capacidade de dois ou mais sistemas, designadamente computadores, meios de comunicação, redes, software e outros componentes de tecnologia da informação, de interagir e de trocar dados de acordo com um método definido de forma a obter os resultados esperados». Sendo largamente apresentada, por legisladores e doutrina, como um meio essencial à promoção da liberdade de acesso aos bens digitais. Nessa medida, discutimos neste artigo se o reconhecimento legal deste direito à interoperabilidade se insere na garantia constitucional de liberdade de acesso às redes informatizadas de uso público. Palavras-chave: Direitos fundamentais; liberdade de acesso; redes informáticas; uso público; Interoperabilidade.

1. O Artigo 35.º da Constituição da República Portuguesa Como já afirmamos num texto1 publicado em 2007 a propósito do artigo 35.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), esta foi, em muitos campos, um diploma extraordinariamente avançado para a sua época2. Se é verdade que o facto de resultar de uma rutura constitucional, decorrente de uma revolução que depôs o anterior regime, permitiu a adoção das mais recentes ideias e técnicas legislativas, o certo é que, apesar do atraso em que o país se encontrava a nível tecnológico, esta soube ser um documento espantosamente avançado nessa área. O artigo 35º, consagrando direitos fundamentais no âmbito da utilização da informática, é um caso paradigmático deste vanguardismo tecnológico da CRP. Tanto mais que o legislador constitucional incluí este artigo sobre a “utilização da informática” no âmbito do restrito leque de “Direitos, Liberdades e Garantias”. Ficou assim sujeito ao especial regime jurídico dos “Direitos, Liberdade e Garantias”, previsto no artigo 18º da CRP, do qual salientamos a especial efetividade3 jurídica que dele decorrem para os direitos abrangidos, face às suas três principais características: a aplicabilidade direta; a vinculação de entidades públicas e privadas; e a reserva de lei4. 1 P D Venâncio, “A Previsão Constitucional da Utilização da Informática” (2007), Tèkhne - Revista de Estudos Politécnicos V (8), 243-264. 2 C Sarmento e Castro, Direito da Informática, Privacidade e Dados Pessoais (Almedina, 2005), 32. 3 Nesse sentido, J C Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (Almedina, 3.ª ed., 2004), 196. 4 Cfr. J C Vieira de Andrade, supra n 3, 203- 245.

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O texto original deste artigo 35.º da CRP de 1976 continha apenas três números. O primeiro consagrava o direito de todo o cidadão a tomar conhecimento do conteúdo de registos mecanográficos a seu respeito, de se inteirar do fim a que se destinavam essas informações, e de exigir a retificação e a atualização dos dados constantes desses registos. O segundo número proibia o uso da informática para o tratamento de dados referentes a convicções políticas, fé religiosa ou vida privada, salvo quando se tratasse do processamento de dados não identificáveis para fins estatísticos. Em ambos os casos matéria que hoje se encontra no centro das preocupações mundiais, face à expansão hegemónica da Sociedade da Informação5. O terceiro proibia a atribuição de um número nacional único. Proibição que foi justificada na época pelo receio que a concentração de toda a informação sobre os cidadão numa única base de dados, por referência a um único número, pudesse potenciar o uso abusivo dessa informação, face à possibilidade de com ela construir uma imagem completa de cada cidadão em todos os seus traços económicos, sociais, físicos e psicológicos. Aquilo a que hoje designaríamos criação de perfis (ou “profiling”) e que cuja prática se vem banalizando nesta nova Era de “Big Data” 6. Este artigo veio a sofrer sucessivas alterações, sobre as quais já nos debruçamos no nosso artigo que citamos supra na nota de rodapé n.º 1. Não nos repetiremos nessa análise histórica. Das sucessivas alterações ao artigo 35.º da CRP interessa-nos em particular a efetuada pela Lei Constitucional n.º 1/1997 que introduz no n.º 6 do artigo 35.º a garantia de “livre acesso às redes informáticas de uso público”, que no entendimento de Jorge Miranda7 representa uma extensão do direito de acesso do cidadão aos dados e registos informáticos que lhe dizem respeito.

2. O Direito Fundamental de Liberdade de Acesso às Redes Informáticas. Dispõe o atual n.º 6 do artigo 35.º da CRP que “A todos é garantido livre acesso às redes informáticas de uso público, definindo a lei o regime aplicável aos fluxos de dados transfronteiriços e as formas adequadas de proteção de dados pessoais e de outros cuja salvaguarda se justifique por razões de interesse nacional”. 5 Não nos alongaremos sobre o conceito de Sociedade da Informação, que se encontra já extensamente debatido, e sobre o qual nós já escrevemos na nossa tese de doutoramento [P D Venâncio, A Tutela Jurídica do Formato de Ficheiro Eletrónico (Almedina, 2016), 34-36]. 6 Não será também este o âmbito do nosso estudo. 7 Jorge Miranda, em anotação ao artigo 35º da CRP [J Miranda e R Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada – Tomo I (Coimbra Editora, 2005), 382]

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No nosso estudo não nos debruçaremos sobre a temática da tutela de fluxos de dados transfronteiriços, em particular dos dados pessoais, que se encontra hoje tão em voga, e que se plasma na segunda parte da norma. Centraremos a nossa atenção na primeira parte do artigo, naquilo que denominaremos de direito fundamental de liberdade de acesso às redes informáticas de uso público. A afirmação deste direito de acesso como um direito fundamental universal espelhou-se, desde logo, na legislação ordinária subsequente a revisão constitucional de 1997. Refere Joel Timóteo Ramos Pereira, no seu percussor Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação, que «foi através da Resolução do Conselho n.º 96/99 [DR, I-B de 27-08) que o Estado reconheceu, pela primeira vez, que a sociedade da informação tem de ser para todos»8 (sublinhado nosso), aqui se afirmando a universalidade inerente aos direitos fundamentais. Concluindo o mesmo autor que “assegurar a todos os cidadãos, sem exceção, o acesso às tecnologias de informação e a respetiva capacidade de as utilizar constitui uma forma de democratização da sociedade. Se esse desiderato não for alcançado, o desenvolvimento da sociedade acabará por tornar-se num poderoso facto de exclusão social”9. Para compreendermos melhor o que compõe este direito fundamental à liberdade de acesso às redes informáticas de uso público, importa a caracterização de dois conceitos: o objeto e o âmbito. Quanto ao objeto há que determinar quais são as redes informáticas a que o cidadão deve ter liberdade de acesso, em particular, o que significa de “uso público”. Quanto ao âmbito da tutela constitucional, a questão é em que medida deve o Estado garantir ao cidadão a liberdade de acesso a essas redes? Ou seja: Trata-se de um dever do Estado se abster de inibir o livre acesso dos cidadãos às redes informáticas? E, portanto, um direito subjetivo de liberdade individual. Ou este preceito constitucional impõe ao Estado o dever ativo de garantir condições de realização plena e livre desse acesso?

2.1 As redes informáticas de uso público Comecemos por uma sucinta caracterização do que se deve entender por rede informática de uso público. A pretérita Lei da Criminalidade Informática (Lei n.º 109/91, de 17/08) definia no seu artigo 2.º a) uma rede informática como “um conjunto de dois ou mais computadores interconectados”. A atual Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, 15/09), que revogou a Lei da Criminalidade Informática, não define o conceito. Em boa verdade, pensamos dispensável a definição legal de um 8 J T R Pereira, Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação (QuidJuris, 2004), 31. 9 J T R Pereira, supra n 8, 31.

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conceito eminentemente técnico e que nos parece pacífico entre as ciências das tecnologias da informação e da comunicação (TIC). Aliás, a definição que constava da revogada Lei da Criminalidade Informática corresponde, grosso modo, à definição mais genérica constante dos dicionários de termos informáticos. Numa perspetiva técnica pode definir-se rede informática como um «conjunto de dois ou mais equipamentos de tratamento automático de informação, ligados entre si por placas de rede a nível físico (cabo), ou outro (infravermelhos, radiofrequência, …)»10 ou, simplesmente, «conjunto de computadores interligados»11. As tecnologias mais relevantes para a construção das extraordinárias redes informáticas que hoje dominam as comunicações a nível mundial, e em todas as áreas do conhecimento, são os protocolos de comunicação. Na definição dada pela cibernética Wikipédia «na ciência da computação, um protocolo é uma convenção ou padrão que controla e possibilita uma conexão, comunicação ou transferência de dados entre dois sistemas computacionais. De maneira simples, um protocolo pode ser definido como “as regras que governam” a sintaxe, semântica e sincronização da comunicação»12-13. No âmbito das TIC, o conjunto de protocolos de comunicação mais conhecido será o TPC/IP, sobre o qual assenta o funcionamento da internet. No entanto, sobre este conjunto TPC/IP correm muitos outros protocolos de comunicação com funções específicas, que permitem hoje a múltipla aplicabilidade da internet e que a tornam no núcleo em torno do qual gravita a Sociedade da Informação14.

10 J A A Matos, Dicionário de Informática e Novas Tecnologias (FCA, 3.ª ed., 2009), 308. 11 D Downing, M Covington M, M M Covington (tradução Damásio PDC), Dicionário de Termos Informáticos e Da Internet (Platano, 2001), 485. 12

https://pt.wikipedia.org/wiki/Protocolo_(ci%C3%AAncia_da_computa%C3%A7%C3%A3o), consultado em 14 de fevereiro de 2020.

13 Alguns dicionários definem protocolo com apenas uma «norma regulando a transmissão de dados entre computadores» [D Downing, M Covington M, M M Covington (tradução Damásio PDC), Dicionário de Termos Informáticos e Da Internet (Platano, 2001), 470], ou o «conjunto de regras que descrevem a forma como é efectuada a transmissão e receção de dados, nomeadamente numa rede informática» [J A A Matos, Dicionário de Informática e Novas Tecnologias (FCA, 3.ª ed., 2009), 296]. 14 «A Internet é uma rede formada por um largo conjunto de redes tendo todas elas um protocolo de comunicação comum: o IP (Internet Protocol). Por outras palavras, a Internet é a mais bem sucedida aplicação prática do conceito de Internetworking, que consiste em conectividade de redes de tecnologias distintas. Essa conectividade foi conseguida pelo uso conjunto de protocolos conhecido como TCP/IP Protocol Suite ou simplesmente TCP/IP», J Garrot e A Ferreira, Programação na Word Wide Web com CGIs (FCA, 1999), 5.

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Em conclusão, o conceito de rede informática assenta na possibilidade de diferentes aparelhos informáticos poderem trocar entre si dados informáticos, independentemente do seu conteúdo informativo, através destas tecnologias de comunicação comuns. O que, face ao exponencial desenvolvimento das tecnologias e infraestruturas de transmissão de dados informáticos, vem permitindo a conceção de redes informáticas cada vez maiores, mais dispersas e com maior rapidez, fiabilidade, fidelidade e capacidade de transmissão de dados. Isto significa que cabe neste conceito técnico de rede informática, desde a pequena rede wireless que um qualquer particular tem instalada em sua casa para conexão entre o seu computador pessoal, tablet, telemóvel, televisor, impressora, etc., até à mega rede informática universal a que usualmente designamos de Internet ou WWW (World Wide Web). Parece-nos ser neste conceito mais amplo que o artigo 3.º alínea dd) da Lei das Comunicações Eletrónicas15, define o conceito de «Rede de comunicações eletrónicas» como «os sistemas de transmissão e, se for o caso, os equipamentos de comutação ou encaminhamento e os demais recursos, nomeadamente elementos de rede que não se encontrem ativos, que permitem o envio de sinais por cabo, meios radioelétricos, meios óticos, ou por outros meios eletromagnéticos, incluindo as redes de satélites, as redes terrestres fixas (com comutação de circuitos ou de pacotes, incluindo a Internet) e móveis, os sistemas de cabos de eletricidade, na medida em que sejam utilizados para a transmissão de sinais, as redes de radiodifusão sonora e televisiva e as redes de televisão por cabo, independentemente do tipo de informação transmitida». Ora, o segundo elemento caracterizador do objeto deste direito fundamental relaciona-se precisamente com esta característica do conceito técnico de rede informática e resulta de uma possível delimitação subjetiva da sua utilização. Diz o artigo 35.º n.º 6 da CRP que se garante o livre acesso às redes informáticas que sejam de “uso público”. Importa então analisar o que será uma rede informática de “uso público”, por oposição a uma rede informática de “uso privado”. E, na verdade, esta delimitação não é de natureza tecnológica (pois em abstrato podem ser utilizadas as mesmas tecnologias da comunicação para a sua criação), mas de natureza subjetiva. Ou seja, quanto ao âmbito subjetivo para o qual a rede é concebida e/ou utilizada. Numa interpretação literal do normativo constitucional, diríamos que se classificarão como redes informáticas de acesso público aquelas que foram concebidas para ser utilizadas por qualquer cidadão, indiferenciadamente. E, por

15 Aprovada pela Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, e múltiplas vezes alterada.

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oposição, serão privadas aquelas que são concebidas para serem utilizadas apenas por aqueles sujeitos que preencham determinados requisitos de acesso. Este conceito de rede informática de acesso público parece ser o que transparece igualmente do disposto na alínea ee) do já citado artigo 3.º da Lei das Comunicações Eletrónicas que define «Rede de comunicações públicas» como «a rede de comunicações eletrónicas utilizada total ou principalmente para o fornecimento de serviços de comunicações eletrónicas acessíveis ao público». Em coerência com o exposto, a mesma lei, nas alíneas c) e d) do n.º 1 artigo 2.º, excluí do seu âmbito: “as redes privativas do Ministério da Defesa Nacional ou sob sua responsabilidade e das forças e serviços de segurança e de emergência, as quais se regem por legislação específica”, e “a rede informática do Governo, gerida pelo Centro de Gestão da Rede Informática do Governo (CEGER), bem como as redes criadas para prosseguir os fins previstos no n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 163/2007, de 3 de Maio”. Assim, serão redes informáticas de uso privado não só as redes criadas por particulares (pessoas singulares ou coletivas) no âmbito das suas atividades e às quais apenas tem direito de acesso as pessoas por estes autorizadas, mas também as redes detidas pelo Estado mas destinadas ao uso “privativo” dos seus serviços. Em conclusão, entendemos que o conceito de redes informáticas de uso público, a que se refere o n.º 6 do artigo 35.º da CRP, encontra a sua expressão na lei ordinária no disposto nas alíneas dd) e ee) do artigo 3.º da Lei das Comunicações Eletrónicas, podendo-se definir como as redes informáticas concebidas para utilização e prestação de serviços pela generalidade dos cidadãos e empresas.

2.2. A Liberdade de acesso Dispõe a alínea a) do artigo 3.º da citada Lei das Comunicações Eletrónicas que «acesso» significa «a disponibilização de recursos e ou serviços a outra empresa, segundo condições definidas, em regime de exclusividade ou não exclusividade, para efeitos de prestação de serviços de comunicações eletrónicas, mesmo quando estes forem utilizados para a prestação dos serviços previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo anterior, abrangendo, nomeadamente, o acesso a elementos da rede e recursos conexos, podendo incluir a ligação de equipamento, através de meios fixos ou não fixos (incluindo, em especial, o acesso ao lacete local e a recursos e serviços necessários para prestar serviços pelo lacete local); o acesso a infraestruturas físicas, incluindo edifícios, condutas e postes; o acesso a sistemas de software pertinentes, incluindo sistemas de apoio operacional; o acesso a sistemas de informação ou bases de dados para pré-encomenda, aprovisionamento, encomenda, pedidos de manutenção e reparação, e faturação;

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o acesso à conversão numérica ou a sistemas que ofereçam uma funcionalidade equivalente; o acesso a redes fixas e móveis, em especial para fins de itinerância (roaming); o acesso a sistemas de acesso condicional para serviços de programas televisivos e de rádio digitais; o acesso aos serviços de rede virtual». Esta definição está concebida na lógica do âmbito material que a Lei das Comunicações Eletrónicas pretende regular, ou seja, na perspetiva do prestador de serviços de comunicações eletrónicas. No entanto, pensamos que a mesma é suficientemente completa e abrangente para que dela se possa igualmente extrair o que para a lei constitucional representa o acesso na perspetiva do utilizador desses serviços. O acesso às redes informatizadas de uso público pressupõe a liberdade de todo o cidadão se ligar/conectar a essa rede informatizada para qualquer uso lícito da mesma. Aquando do nascimento das TIC, o acesso e utilização das redes informáticas de uso público, máxime, da Internet, era equacionado essencialmente como um ato de liberdade individual. Falava-se então de um espaço de liberdade, que alguns chegaram a imaginar excluído inclusivamente da tutela jurídica dos Estrado16. Não nos alongaremos sobre esta falácia que não é relevante para a questão central deste artigo. Atualmente, face à crescente dependência destas redes informatizadas para o acesso a bens e serviços públicos e privados essenciais, assim como a crescente transferência para as redes informatizadas da interação social e cultural inerente à condição do Ser Humano, questiona-se se não caberá aos Estado também garantir esse acesso livre. Não é por acaso que a formulação original (de 1976) do artigo 35.º da CRP previa essencialmente a proteção do cidadão contra utilizações da informática que pudesse lesar os seus direitos, liberdades e garantias, e com a reforma de 1997 o n.º 6 deste artigo passasse a prever a utilização da informática já não apenas como uma ameaça, mas ela própria como um direito a que o cidadão deve aceder livremente. Na lógica do processo de cumulação próprio da construção de um leque de direitos fundamentais, a evolução das TIC e da própria sociedade para uma sociedade em rede fez com que sucessivas alterações constitucionais expandissem este artigo 35.º, reconhecendo-se em 1997 este direito fundamental de liberdade de acesso a redes informáticas de uso público. 16 O que se pode exemplificar através da “Declaração de Independência da Internet”, promovida pelo ativista norte-americano Perry Barrow em fevereiro de 1996, da qual consta «Governo do mundo industrial, em nome do futuro, pedimos que nos deixem sós. São personas gratas entre nós. Falta-lhes soberania e legitimidade ética para implantar regras e métodos. O ciberespaço não se ajusta às vossas fronteiras», citado por J T R Pereira, Compêndio Jurídico da Sociedade da Informação (QuidJuris, 2004), 461.

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Pensamos assim, em conclusão, que o direito fundamental de liberdade de acesso às redes informáticas de uso público, previsto no n.º 6 do artigo 35.º da CRP, se apresenta não apenas como uma liberdade individual que o Estado deve se abster de limitar, mas também um direito cuja efetividade o Estado deve garantir a todos os cidadãos. A questão que pretendemos aprofundar neste artigo são os instrumentos do Estado para garantir este direito e, de entre estes, o princípio da livre interoperabilidade digital.

3. A Interoperabilidade digital 3.1. Noção de interoperabilidade

No ordenamento jurídico português a interoperabilidade é definida como «a capacidade de dois ou mais sistemas, designadamente computadores, meios de comunicação, redes, software e outros componentes de tecnologia da informação, de interagir e de trocar dados de acordo com um método definido de forma a obter os resultados esperados», pelo artigo 3.º n.º 2 da Lei n.º 36/2011, de 21 de junho, que tem por objeto estabelecer a adoção de normas abertas para a informação em suporte digital na Administração Pública, promovendo a liberdade tecnológica dos cidadãos e organizações e a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado. A União Europeia, no considerando (10) da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador, apresenta a interoperabilidade num âmbito ainda mais abrangente. Diz este considerando que «a função de um programa de computador é comunicar e trabalhar com outros componentes de um sistema de computador e com os utilizadores e, para este efeito, é necessária uma interconexão e uma interação lógica e, quando necessário, física, no sentido de permitir o funcionamento de todos os elementos do suporte lógico e do equipamento com outros suportes lógicos e equipamentos e com os utilizadores, e todas as formas de funcionamento previstas. As partes do programa que permitem tal interconexão e interação entre os componentes de um sistema são geralmente conhecidas como “interfaces”. Esta interconexão e interação funcionais são geralmente conhecidas como “interoperabilidade”; esta interoperabilidade é definida como a capacidade de trocar informações e de reciprocamente utilizar as informações trocadas». Esta preocupação do legislador na definição do conceito de interoperabilidade, e na construção de um regime jurídico em sua volta, espelha a constatação que, quer na perspetiva técnica, quer nas perspetivas económica, social e cultural, o desenvolvimento exponencial das TIC esteve indissociavelmente ligado à interoperabilidade entre sistemas informáticos. Sendo que, no vasto universo 79


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das TIC, a interoperabilidade encontra diversos reflexos e significados em função da área de negócio ou da tecnologia em que a questão se coloca17.

3.2 A importância da interoperabilidade Hiram Meléndez-Juarbe associa a importância da interoperabilidade no seio das TIC a três valores fundamentais: «(1) autonomia, escolha e flexibilidade; (2) a diversidade cultural; (3) a concorrência e inovação» (tradução nossa)18. A “autonomia, escolha e flexibilidade” significa que a interoperabilidade deve permitir a liberdade de escolha quanto ao hardware e ao software a utilizar, sem dependência técnica de escolhas anteriores. A promoção da “diversidade cultural” pela interoperabilidade resulta desta permitir uma maior liberdade de escolha e, logo, maior diversidade técnica e com isto evitar a limitação de opções técnicas no processo criativo. E, por fim, essa liberdade de escolha e de opções criativas promove a concorrência e com esta estimula-se a inovação. A interoperabilidade não só é relevante para promoção destes três valores como eles se revelam, quanto a esta, verdadeiramente interdependentes. Reconhecendo estes três valores essenciais, o legislador português, através da Lei n.º 36/2011, de 21 de Junho, veio estabelecer um princípio de adoção de normas abertas para a informação em suporte digital na Administração Pública como forma de promover «a liberdade tecnológica dos cidadãos e a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado» (artigo 1.º), impondo no seu artigo 5.º a obrigação do Estado aprovar um Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital. Este regulamento «alinhado com as diretrizes europeias em termos de interoperabilidade, contribui para a universalidade de acesso e utilização da informação, para a preservação dos documentos eletrónicos e para uma redução de custos de licenciamento de software»19. Esta importância vem sendo defendida a nível internacional por diversos autores que sustentam que a interoperabilidade tem sido considerada uma questão de política pública essencial por países de todas as partes do globo. Nesse sentido, Laura DeNardis refere que «há numerosos exemplos de governos que estabeleceram políticas para adquirir produtos de TIC que aderem aos princípios de abertura e interoperabilidade. Muitas vezes chamados de “quadros de interoperabilidade do governo” (GIFs), políticas de padrões abertos foram intro17 Não nos alongaremos mais sobre este conceito que já abordamos com profundidade no nosso artigo «O Princípio Geral da Llivre Interoperabilidade” (2016), SCIENTIA IVRIDICA Tomo LXV (341), 241-258. 18 H Meléndez-Juarbe, “DRM Interoperability” (2009), 15 J. Sci. Technol. Law. 329. 19 Preâmbulo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 91/2012, de 8 de novembro de 2012, publicada no DR, 1.º Série, n.º 216, que aprova o Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital que define as normas e formatos digitais a adotar pela Administração Pública.

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duzidas por países como a Austrália, Bangladesh, Bélgica, Brasil, China, Croácia, Dinamarca, França, Hong Kong, Índia, Itália, Malásia, Nova Zelândia, Sri Lanka e na Tailândia»20 (tradução nossa).

3.3. O princípio da livre interoperabilidade Seja na interconexão entre elementos da estrutura física e lógica do computador - interoperabilidade vertical -, seja na interconexão entre computadores ou sistemas informáticos – interoperabilidade horizontal -, seja ainda na acessibilidade dos cidadãos aos serviços da sociedade da informação, numa perspetiva jurídica, a interoperabilidade no âmbito das TIC vem sendo reconhecida como um espaço de liberdade fundamental. A interoperabilidade entre tecnologias sempre foi uma questão abordada na política legislativa, com diferentes soluções conhecidas, como acontece com as telecomunicações ou a eletricidade. Por um lado, protegendo as inovações tecnológicas (garantindo-lhes exclusivos de utilização por direitos de propriedade intelectual) e, por outro, promovendo a liberdade de acesso a essa tecnologia como elemento essencial para o funcionamento do mercado (usualmente pelo Direito da Concorrência). Sucede que, como refere Ashwin van Rooijen, «Quando o controle é exercido sobre as interfaces, esse equilíbrio pode precisar de ser recalibrado. Isto resulta dos efeitos indiretos de maior dimensão que o controle sobre as interfaces podem ter sobre a interoperabilidade, os efeitos de rede e à concorrência de sistemas, e, consequentemente, na inovação e na concorrência. Estes efeitos de controlo sobre as interfaces podem gerar muito mais poder de mercado do que o controle sobre o produto final. (...) Mais importante, este equilíbrio deve ser atingido com a consideração expressa dos efeitos indiretos sobre a interoperabilidade a inovação e a concorrência gerados pelo controlo das especificações de interfaces. Uma abordagem que trata especificações de interface a par com outro assunto pode, portanto, resultar em muito controle e pouca abertura» (tradução nossa)21. De facto, um dos componentes das TIC que mais questões têm levantado quanto à realização deste fim – interoperabilidade – são os “interfaces” quer entre programas, quer entre programas e hardware. O considerando (10) da Diretiva 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, que citamos supra, refere expressamente que as «partes do programa que permitem tal interconexão e

20 L Denardis, “The Global Politics of Interoperability”, in Krikorian e Kapczybski (eds.), Access to Knowledge in the Age of Intellectual Property (Zone Books, New York, 2010), 511. 21 L Denardis, supra n 20, 43-44.

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interação entre os componentes de um sistema são geralmente conhecidas como “interfaces”», como um elemento essencial para garantir essa interoperabilidade. A questão que se coloca quanto aos “interfaces” é que, sendo eles o elemento da estrutura lógica do computador que habilita tecnicamente a interoperabilidade, a possibilidade de constituição de exclusivos jurídicos de apropriação desses interfaces equivale à constituição de exclusivos de utilização sobre “parcelas” da interoperabilidade dos sistemas informáticos. Ashwin van Rooijen refere que «fundamentalmente, o controle sobre interfaces (por exemplo através de direitos de propriedade intelectual) pode assim produzir dois tipos de efeitos: efeitos diretos (controle sobre a tecnologia de interfaces como tal) e, mais importante, os efeitos indiretos (controle sobre a interoperabilidade). Na verdade, o valor de interfaces reside principalmente na sua função indireta: controlando as interfaces, as empresas conseguem obter o controle ‘de-facto’ sobre a interoperabilidade com o seu produto» (tradução nossa)22. A mesma Diretiva 2009/24/CE vem a seguir, no considerando (11), para salvaguarda desta “interoperabilidade”, determinar que a proteção consagrada aos programas de computador pelo Direito de Autor «abrange unicamente a expressão de um programa de computador e que as ideias e princípios subjacentes a qualquer elemento de um programa, incluindo os subjacentes às suas interfaces, não são protegidos por direitos de autor ao abrigo da presente diretiva». Este fim vem ainda melhor explicitado no considerando (15), onde o legislador comunitário esclarece que os direitos de exclusivos conferidos ao titular do direito de autor sobre programas de computador deverão ceder perante este princípio, esclarecendo que «em certas circunstâncias uma tal modificação da forma do código de um programa de computador no sentido da sua reprodução e tradução é indispensável para obter as necessárias informações no sentido de conseguir a interoperabilidade de um programa independente com outros programas», na medida em que «um dos objetivos desta exceção é o de permitir a interação de todos os elementos de um sistema informático, incluindo os de diferentes fabricantes, de forma a poderem funcionar conjuntamente». Perante estes considerandos entendemos que é clara a intenção do legislador da União Europeia em consagrar um verdadeiro princípio de livre interoperabilidade que se “espelha” no regime imposto pelas Diretivas n.º 91/250/CEE e n.º 2009/24/CE. A interoperabilidade entre programas de computador, e entre este e o hardware, é consagrada neste regime jurídico como uma esfera de liberdade

22 A V Rooijen, The Software Interface Between Copyright and Competition Law: A Legal Analysis of Interoperability in Computer Programs (Kluwer Law International, 2010), 21-22.

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fundamental que se funda na sua essencialidade para garantir a completa usabilidade do programa23 em particular e dos sistemas informáticos em geral. Princípio que se espelha quer no disposto no artigo 2.º n.º 2 do Decreto-lei n.º 252/94 quando este dispõe que «esta tutela não prejudica a liberdade (…) da sua interoperabilidade», quer na liberdade de descompilação de programas protegidos quando tal se afigurar essencial a essa interoperabilidade (artigo 7.º n.º 1 do Decreto -lei n.º 252/94 e artigo 6.º das Diretivas citadas). Alexandre Dias Pereira salienta que «a interoperabilidade é desejável no contexto computador-programa e programa-programa, pode ser também desejável em certos estratos das redes digitais e de componentes de dados-programas e dados-dados nos ambientes emergentes de rede digital, sendo que o grau de interoperabilidade em redes e dados determinará a dimensão do mercado no ciberespaço e o nível de concorrência do comércio eletrónico»24. Concluímos, por isso, que a consagração deste princípio de livre interoperabilidade representa não só um elemento necessário à lealdade da concorrência entre fabricante de produtos informáticos, mas também a expressão do direito de acesso dos utilizadores/cidadãos aos seus bens e dados informáticos. No âmbito dos dados informáticos, encontramos uma expressão desse reconhecimento na Lei n.º 36/2011, de 21 de junho, que vem estabelecer a regra de adoção de normas abertas para a informação em suporte digital na Administração Pública, como forma de promover «a liberdade tecnológica dos cidadãos e a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado» (artigo 1.º). Esta lei determina no seu artigo 5.º a obrigação do Estado aprovar um Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital que impõe à Administração Pública, precisamente, a adoção de «formatos abertos», o que classifica como «imprescindível para assegurar a interoperabilidade técnica e semântica, em termos globais com o cidadão ou a empresas e para disponibilização de conteúdos e serviços, criando a necessária independência dos fornecedores ou soluções de software adotadas». Concluindo que este regulamento «alinhado com as diretrizes europeias em termos de interoperabilidade, contribui para a universalidade de acesso e utilização da informação, para a preservação dos documento ele-

23 Nesse sentido, referindo-se à consagração desta regra de liberdade de descompilação para garantia da interoperabilidade dos programas, Ignacio Vidal Portabales sustenta que «su fundamento se encuentra en la realidade indiscutible de que los programas no se ejecutam aisladamente, sino simultaneamente com otros, circunstancia que puede afectar a su correcto funcionamento» [I V Portabales, “Algunas Considerationes sobre las Licencias de Uso de Programas de Ordenador de Distribuición Masiva “, Actas de Derecho Industrial Y Derecho de Autor, 2010, 493)]. 24 A Dias Pereira, Informática, Direito de Autor e Propriedade Tecnodigital (Coimbra, 2008), 645 (em nota de rodapé).

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trónicos e para uma redução de custos de licenciamento de software» (sublinhado nosso)25. Esta legislação coloca a questão precisamente nestas duas perspetivas, por um lado, a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado como um imperativo de eficiência da administração pública e, por outro, a liberdade tecnológica dos cidadãos como expressão deste direito fundamental de liberdade de acesso às redes informáticas de uso público.

3.4. O utilizador legítimo de bens digitais Acresce que as diretivas da União Europeia relativas à harmonização da tutela jurídica dos bens digitais26 têm optado por regular os direitos do “utilizador legítimo” sem, no entanto, dar uma definição clara deste conceito. Remédio Marques aborda com pertinência o conceito de “utilizador legítimo” para efeitos de regime do direito especial do fabricante de bases de dados, concluindo que «o “utilizador legítimo” parece ser toda a pessoa ou entidade que disponha licitamente, na respetiva esfera jurídica, de poderes jurídicos de utilização da base fundados num contrato celebrado com o titular do direito “sui generis” (“máxime”, o titular de direitos de utilização mediante contrato de licença) ou num contrato celebrado com outrem que haja adquirido licitamente – de forma direta por parte do titular, ou derivadamente, através dos canais de distribuição controlados pelo titular (no caso de se curar de bases de dados on line: art.º. 12º/2, aliena b), e n.º 3 do Decreto-Lei n.º 122/2000) ou permitidos por lei (rectius, nos casos em que ocorre o esgotamento do direito) – direito de utilização da base (ou de uma cópia) que haja sido colocada à disposição do público»27. A propósito do mesmo conceito, mas no âmbito da tutela de programas de computador, José Alberto Vieira considera que o “utilizador legítimo” é aquele que «tem um direito a utilizar o programa de computador, seja qual for o facto jurídico do qual esse direito nasce», sendo “utilizador legítimo” «aquele que concluiu um contrato de licença com o titular do direito de autor, qualquer que seja o tipo contratual a que se reconduza esta licença; mas é igualmente utilizador legítimo aquele que adquiriu validamente uma cópia do programa de computa25 Preâmbulo da Resolução do Conselho de Ministros n.º 91/2012, de 8 de novembro de 2012. 26 Onde sobressaem a Diretiva n.º 96/9/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Março de 1996, relativa à proteção jurídica das bases de dados; a Diretiva n.º 2001/29/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2001, relativa à harmonização de certos aspetos do direito de autor e dos direitos conexos na sociedade da informação; e a Diretiva n.º 2009/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de abril de 2009, relativa à proteção jurídica dos programas de computador (que veio revogar a Diretiva 91/250/CEE), 27 J P Remédio Marques, Biotecnologias e Propriedade Intelectual – Volume II (Almedina, 2007), 920-927.

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dor, seja através da compra de um suporta autónomo, seja através de “downloud”, e quer a mesma seja adquirida isoladamente, quer seja adquirida conjuntamente com o “hardware”»28. Do que supra dissemos resulta que o conceito de “utilizador legítimo” que o legislador da União Europeia tem adotado nos regimes de Direitos de Autor sobre obras digitais apresenta-se como bastante mais amplo que o tradicional conceito de “consumidor”. Embora «a noção de consumidor não seja unívoca»29, a doutrina tende a reconhecer-lhe quatro características comuns30. Primeiro, apenas as pessoas singulares31 assumem a categoria de consumidores; segundo, que são consumidores os que adquirem algum tipo de bens ou serviços de outrem; terceiro, que esses bens ou serviços devem ser destinados a uso pessoal e não profissional; e por fim, que a entidade de quem os consumidores adquirem esses bens ou serviços terá de ser alguém que exerce essa atividade a título profissional. Podemos dizer que existe na relação de consumo típica uma relação profissional / particular em que o direito visa proteger a parte potencialmente mais fraca (a não profissional). Notoriamente as normas que impõem, perentoriamente, um conteúdo mínimo para direitos do utilizador de bens digitais resultam do reconhecimento que o utilizador de bens digitais se encontra, por norma, numa situação de parte mais fraca na sua relação com o fornecedor de bens digitais. Esta característica parece aproximar o regime do “utilizador legítimo” de bens digitais ao conceito de consumidor. No entanto, nenhum dos diplomas comunitários supra referidos delimita o conceito de utilizador legítimo, quer quanto à sua natureza pessoal (pessoa singular ou coletiva) quer quanto ao fim a que os mesmos destinam os bens digitais adquiridos (profissional ou particular). O utilizador legítimo de bens digitais (programa de computador ou base de dados) é qualquer sujeito legitimado a utilizar o bem digital, seja ele pessoa singular ou coletiva, seja o fim dessa utilização profissional ou particular. Desta constatação podemos concluir que, no âmbito do reconhecimento de direitos de propriedade intelectual sobre bens digitais (máxime por Direito de Autor), a União Europeia tem entendido que o regime do direito do consumidor 28 J A Vieira, A Proteção dos Programas de Computador pelo Direito de Autor (Lex, 2005), 650651. 29 E Dias Oliveira, A Proteção dos Consumidores nos Contratos Celebrados através da Internet (Almedina, 2003), 57. 30 Entre outros: C Ferreira de Almeida, Os Direitos dos Consumidores (Almedina, 1982), 206 e ss. 31 Nesse sentido, cfr. J Calvão da Silva, Venda de Bens de Consumo - Comentário (Almedina, 2003), 44.

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não é suficiente para garantir um acesso universal. Existe um núcleo essencial de direitos, em particular de direitos de utilização, em que qualquer utilizador legítimo está numa situação de fragilidade perante os fabricantes de bens digitais e, nesse sentido, carente de proteção legal. Também esta constatação reforça a ideia que o reconhecimento do direito à interoperabilidade, insere-se na garantia constitucional de liberdade de acesso às redes informatizadas de acesso público, por respeito pelo princípio da universalidade dos direitos fundamentais (artigo 12.º da CRP). Nesse sentido, compreende-se que, enquanto instrumento de garantia desta liberdade de acesso a bens digitais, a interoperabilidade seja prevista como um direito de todo o cidadão titular de direitos fundamentais, e não apenas dos consumidores. Inclusivamente, podendo ser como tal reconhecido a pessoas coletivas, na medida em que por força do artigo 12.º n.º 2 da CRP “as pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres compatíveis com a sua natureza”. Face à essencialidade e universalidade dos serviços prestados através de redes informáticas, parece-nos pacífico que o direito de acesso às redes informáticas de uso publico se afigura nos dias de hoje como um direito compatível com a natureza das pessoas coletivas, ou seja, com a realização do seu fim32.

4. Conclusão Do disposto na primeira parte do n.º 6 do artigo 35.º da CRP, concluímos que a nossa Constituição consagra um direito fundamental de liberdade de acesso às redes informáticas de uso público. O conceito de redes informáticas de uso público, a que se este artigo, encontra a sua expressão na lei ordinária no disposto nas alíneas dd) e ee) do artigo 3.º da Lei das Comunicações Eletrónicas, e que definimos como as redes informáticas concebidas para utilização e prestação de serviços pela generalidade dos cidadãos e empresas. Concluímos ainda que, com este direito fundamental de liberdade de acesso às redes informáticas de uso público, o legislador constitucional não se limitou a reconhecer uma liberdade individual que o Estado deve se abster de limitar, mas também um direito fundamental de acesso cuja efetividade que o Estado deve garantir a todos, pessoas singulares e coletivas.

32 «Finalmente, cada pessoa coletiva pode ter os direitos conducentes à prossecução dos fins para que exist, os direitos adequados à sua especialidade – é o princípio geral de Direito (art. 160.º, n.º 1, do Código Civil) e que a Constituição se dispensa de reproduzir», Jorge Miranda em anotação ao artigo 12.º, in J Miranda e R Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada – Tomo I (Coimbra Editora, 2005), 114.

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Verificamos que tem sido sustentado pela generalidade da doutrina, e pelos legisladores europeu e nacional, que a interoperabilidade no seio das TIC representa um fator essencial para a promoção da liberdade de escolha, da diversidade cultural e da promoção da concorrência e inovação. Por este motivo, quer a legislação da União Europeia quer a legislação interna portuguesa, reconhecem a um verdadeiro princípio de livre interoperabilidade digital, que se reflete em diversas áreas da regulamentação da sociedade da informação. Também no que tange à realização do direito fundamental de liberdade de acesso às redes informáticas de uso público, consagrado no n.º 6 do artigo 35.º da CRP, concluímos que a garantia da interoperabilidade digital constituí uma condição essencial à sua efetivação. Razão pela qual se deve entender que, as normas que consagram as diferentes facetas da tutela da livre interoperabilidade digital representam uma expressão deste direito fundamental e, logo, merecem tutela constitucional.

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ALGORITHMS DISCRIMINATION AND LABOUR LAW1 Teresa Coelho Moreira Assistant Professor at the Law School, University of Minho Member of the JusGov - Research Centre for Justice and Governance - and coordinator of the Human Rights Research Group Member of the board of the APODIT – Portuguese Labour Law Association. tmoreira@direito.uminho.pt

Abstract: We live in the age of the algorithm. Increasingly, the decisions that affect our lives are being made not by humans, but by mathematical models. In theory, this should lead to greater fairness and transparency because everyone is judged according to the same rules, and bias is eliminated. But, in reality, that doesn’t happen. The models being used today are opaque, unregulated, and uncontestable, even when they are wrong. And, even more problematic, is that they reinforce discrimination. Algorithms have become, in many cases, the new supervisors of workers, and in some cases there is an increase in sexism and other ways of discrimination, as none is neutral. Quite the opposite. They often reflect biases that exist in the real world and that also exist in programmers and clients. And in the case of the evaluations and ratings made by these are often the reflection of their prejudices. Keywords: Algorithms; Discrimination; Labour Law; General Data Protection Regulation.

1 This article was developed in the framework of the InclusiveCourts project, financed by the FCT with the ref. PTDC / DIR-OUT / 28229 / 2017.

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1. Introduction 1.1. The right to equality and the prohibition of discrimination is a universal right, recognized by the Universal Declaration of Human Rights, the United Nations Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women, the United Nations International Covenants on Human Rights. Civil and Political Rights and on Economic, Social and Cultural Rights, and by the Convention for the Protection of Human Rights and Fundamental Freedoms, to which Portugal is a signatory. In addition, Convention No. 111 of the International Labour Organization prohibits discrimination in the field of employment and occupation. 1.2. Nowadays we are facing a true digital revolution, related with the internet, cloud computing, 3D printing, automatization, robotization, working with collaborative robots or cobots and new ways of performing work. With this also comes the so-called digital work in the collaborative economy, on digital platforms, and a new type of worker. In many parts of the world, technological innovations such as artificial intelligence, robotics and machine learning are already having an impact on many aspects of society in general and in Labour relationship in special. They allow us to communicate faster, to share information, to feel closer to one another. They have become an essential part of our everyday lives, providing us with unprecedented opportunities for advancement in areas ranging from education to political participation. As we all know that the collaborative economy, sometimes called the sharing economy, covers a great variety of sectors and is rapidly emerging across Europe. Many people in the EU have already used, or are aware of collaborative economy services, which range from sharing houses and car journeys, to domestic services. The collaborative economy provides new opportunities for citizens and innovative entrepreneurs. But it has also created tensions between the new service providers and existing market operators. According with the European Commission, “The collaborative economy involves three categories of actors: (i) service providers who share assets, resources, time and/or skills — these can be private individuals offering services on an occasional basis (‘peers’) or service providers acting in their professional capacity (“professional services providers”); (ii) users of these; and (iii) interme-

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diaries that connect — via an online platform — providers with users and that facilitate transactions between them (‘collaborative platforms’)”2. And work is proving to be a key factor in this transformation and revolution. So we talk about work 4.0, gig economy work that includes both Crowdwork and platform work - work-on-demand via apps. Of course there is no homogeneous or monolithic concept of this type of work, as different methods and ways of working are used, ranging from routine, monotonous tasks to more complex new tasks where the added value is in qualification and the innovation of those who provide it. There is thus no univocal concept in this kind of work and the issue of discrimination is how to apply the legislation to these new ways of performing work3. 1.3. Thus, these new ways of performing work may be further increasing gender inequality or other ways of discrimination as reconciling private and family life when on an on-call basis and on these ways of work can be very difficult. In fact, it is women who continue to provide most of the care at the family level, while the most lucrative and best-paid activities belong to those who do not have these burdens, which may lead to widening gender pay gap also in these new forms of work. However, we think that ICTs and new ways of work can also help to better reconcile work and private life if they are well used through a reorganization that allows for real flexibility rather than mere appearance. The flexibility of the sharing economy offers to both men and women the promise of gainful employment alongside family-care, potentially even changing the normalized gendered roles of caretaking and breadwinning. Nevertheless, as ARIANNE BARZILAY and ANAT BEN-DAVID4 defend “the view of cyberspace as an ideal realm where all can participate equally, free from historical, social, and physical restraints has already been critiqued as utopian”.

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Communication from the Commission to the European parliament, the council, the European economic and social committee and the committee of the regions a European agenda for the collaborative economy, COM(2016) 356 final, 3.

3 T C Moreira, “Algumas questões sobre Trabalho 4.0”, in Prontuário de Direito do Trabalho (2016, II). 4 “Platform Inequality: Gender in the Gig-Economy” (2017), Setton Hall Law Review 47, 401-402.

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In fact, flexibility often does not rhyme with freedom, and when work is done at home there is a clear blurring of the boundaries between work and private life5. 1.4. The concept of AI, or at least the term, came up in a series of conferences that took place at Dartmouth College in 1956. At this time several scientists came together to try to teach machines how to solve problems that only humans could solve at that time. On the other hand, there are AI that are considered “weak” and other “strong”. Strong AI means that these systems have the same intellectual capacity as humans, or even exceed it. “Weak” AI is focused on solving specific problems by using math and computer science to evaluate and get systems to optimize. To achieve this goal, certain aspects of human intelligence are mapped and formally described, and systems are designed and stimulated to support human thinking. And the first type of AI has intrigued many throughout the ages. Right away Alan Turing who in 1950 posed the question “Can machines think?”6. So, as we can see AI is not a new phenomenon. It has been around for 40 or even 50 years. However, today, with the rise of digital technologies, and the vast amount of data produced each day, AI as gain a new significance and an entire new dimension: machine learning. Machine learning is an application of artificial intelligence that provides systems the ability to automatically learn and improve from experience without being explicitly programmed. Machine learning focuses on the development of computer programs that can access data and use it to learn for themselves7.

2. Algorithms discrimination 2.1. As CATHY O’NEIL8 advocates we live in the age of the algorithm. Increasingly, the decisions that affect our lives are being made not by humans, but by mathematical models. In theory, this should lead to greater fairness and 5 In the same sense N Schoenbaum, “Gender and the Sharing Economy” (2016), Fordham Urb. L. J. vol. XLIII, 1024 and ff.. 6 OSH and the Future of Work: benefits and risks of artificial intelligence tools in workplaces, eg https://osha.europa.eu/en/publications/osh-and-future-work-benefits-and-risks-artificial-intelligence-tools-workplaces/view, accessed on January 2020. 7 UNI, Top 10 principles for ethical artificial intelligence, eg http://www.thefutureworldofwork.org/ opinions/10-principles-for-ethical-ai/ , accessed on January 2020. 8 Weapons of Math Destruction - How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy, (Crown/Archetype, 2017).

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transparency because everyone is judged according to the same rules, and bias is eliminated. But, in reality, that doesn’t happen. The models being used today are opaque, unregulated, and uncontestable, even when they are wrong. And, even more problematic, is that they reinforce discrimination. Theoretically it seems that the conceit of removing humans from the decision-making process will also eliminate human bias. The paradox, however, is that in some instances, automated decision making has served to replicate and amplify bias9. The use of algorithms carries the promise of objectivity. People assume that algorithm outcomes are “neutral.” This neutrality is, however, an illusion. Algorithms are not as unbiased as we think, and the risk of discrimination rises10. The profiling of human behaviour and the resulting data allow management to make judgements about who people are, as well as to predict their future behaviour. Computer-generated data are expected to be reliable and neutral, and to help with forecasting. 2.2. Employees are increasingly selected and discarded, replaced and disposable in this “profane referencing system”11. Reputation in the online labour market has become incredibly important for work that happens in digital spaces, so-called virtual work and digital labour. Online platform work is still unregulated, leading it to “resemble a neo-Darwinist arena of uncertainty: discrimination is fully experienced offline but is generated online where the social relations of work are masked and anonymized” 12. Decisions are increasingly made based on algorithms, posing a new problem for society, which is the development of a society based on a new type of black box - the black box society - given the opaque and lack of transparency of the algorithms. In this scenario, it is essential to remember that all types of control must comply with the principle of transparency, which is the employees’ knowledge of the supervision and control, and is essential for the correct processing of personal data of individuals in general, and employees, in particular, who should know how, when, where and how control is carried out. This right, 9 I Ajunwa, “The paradox of automation as anti-bias intervention” (forthcoming, 2020), 41 CARDOZO. L. REV., 1. 10 J Dop, Using Algorithms in the Employment Relationship, eg https://www.russell.nl/publicatie/ use-algorithms-employment-relationship, accessed on January 2020. 11 P Akhtar and P More, “The psychosocial impacts of technological change in contemporary workplaces and trade union responses” (2016), International Journal of Labour Research 8 (1/2), 112. 12 P Akhtar and P More, supra n 10, 112.

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moreover, is reinforced in the General Data Protection Regulation, and has to apply to the control performed by the algorithms, thus moving from a black box society to a kind of transparent box society. The implementation of programmes capable of learning and adapting to perform functions that relate to people creates new ethical and regulatory challenges, since it increases the possibility of obtaining results other than those intended, or even totally unexpected ones. In addition, these results can cause harm to other actors, such as the discriminatory offenses. The use of technology, with an emphasis on artificial intelligence, can cause unpredictable and uncontrollable consequences, so that often the only solution is to deactivate the system13. Algorithms have become, in many cases, the new supervisors of workers, and in some cases there is an increase in sexism and other ways of discrimination, as none is neutral. Quite the opposite. They often reflect biases that exist in the real world and that also exist in programmers and clients. And in the case of the evaluations and ratings made by these are often the reflection of their prejudices. In reality, just as technological innovations can help us advance, they can also further deepen existing inequalities and biases. Nowadays, algorithms make many important decisions for us, like our creditworthiness, best romantic prospects and whether we are qualified for a job. Employers are increasingly using them during the hiring process out of the belief they’re both more convenient and less biased than humans. But that is not true. In fact, automated hiring platforms have enabled discrimination against job applicants and other platforms have led to discrimination in the progression of workers, for example. When using algorithms, employers can process large amounts of data in order to obtain relevant information, which can be used for automatic decision-making. For example, algorithms can speed up the application process by weeding out large numbers of resumes or analysing video interviews and selecting the most suitable applicants. Employers also can use algorithms to assess the performance of employees or to determine which employee is eligible for a promotion or bonus. According to research, 40 percent of the HR functions of international companies are currently using AI-applications14.

13 E Magrani, “New perspectives on ethics and the laws of artificial intelligence� (2019), Internet Policy Review, 8(3). 14 PWC, Artificicial Intelligence in HR: a no Brainer (2018), eg https://www.pwc.at/de/publikationen/verschiedenes/artificial-intelligence-in-hr-a-no-brainer.pdf, accessed on January 2020.

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Furthermore, algorithms are used by companies, for distribution of work and rewards or to send people out. The use of algorithms can streamline these processes and may cut costs, since less people are needed for the recruitment and assessment of potential employees. However, the use of these algorithms is not without risk because they can discriminate employees. As JEREMIAS PRASSL and AURIANE LAMINE15 pointed out the rating system that most platforms use allows for a “pure quantitative”, “dehumanising, or objectifying, evaluation of workers’ performance”. This rating system is the cover of many platforms that try to give the impression of the quality of their individual workers’ service. Even in the case of algorithms the question remains because they are based on the previous behaviour of the user, and often make decisions based on stored historical data, that is, on previous customer evaluations16. Nevertheless, as Tom Slee17 demonstrates “the regulation systems fail in their basic task of providing quality information”. These rating algorithms are “the boss from hell: an erratic, bad tempered and unaccountable manager that may fire you at any time, on a whim, with no appeal”. In reality, platform operators depend on endless monitoring by algorithms lead to a control almost with no limits, controlling all aspects of how the work is done, how quickly and often a worker accepts new tasks or microtasks are all joined into the equation, with any deviation from the system being sanctioned in real time trough lower ratings. The problem that immediately arises, apart from clear discrimination, is that a lower assessment or a lower evaluation has direct consequences on the position of the worker and on the possibility of obtaining a new job, called a new task which may lead to the eventual deviation of the same, forgetting article 1 of the Declaration of Philadelphia that Work is not a commodity18. In fact, in many cases, these new forms of work foster a renewed and specific form of commodification of labour. 15 “Collective Autonomy for On Demand Workers”, in S Laulom (ed.), Collective Bargaining Developments in Times of Crisis (Bulletin of Comparative Labour Relations, Wolters Kluwer, vol. 99, 2018), 282. 16 See Barocas and Selbst, “Big Data’s Disparate Impact” (2016), California Law Review 671, 682 e ss., and S Wachter; B Mittelstadt and L Floridi, “Why a Right to Explanation of Automated Decision-Making Does Not Exist in the General Data Protection Regulation” (2017), International Data Privacy Law. 17 Apud J Prassl and A Lamine, supra n 14, 282-283. 18 See for more developments, T C Moreira, “Igualdade de Género no Trabalho 4.0”, in M R P Ramalho and T C Moreira (coords.), A Igualdade nas Relações de Trabalho, Estudos APODIT (vol. 5, AAFDL, Lisbon, 2019), 45 and ff..

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Algorithms are, in the end, human constructs: algorithms are invented, programmed and trained by humans. The choices made by humans while programming and training an algorithm affect its operation and results. Thus, algorithms are not free of human inspiration. Additionally, algorithms are trained on historical data. If this training data is biased against certain individuals or groups, the algorithm will replicate the human bias and learn to discriminate against them. The selection process of the training data is also important. Data that is outdated, incorrect, incomplete or unrepresentative, or wrong, may lead to machine learning mistakes and misinterpretations. Eventually, algorithms are only as good as the data they are trained on. This is also referred to as “garbage in, garbage out” or “discrimination in, discrimination out.” However, we don´t think we should be so pessimistic because technology, being neutral, can be used to improve women’s working conditions or other workers and enable them to be heard and create their own space for discussion on these issues. Indeed, if technology is created from initial through an approximation of human rights, incorporating this vision of defending equality transparency and sustainability, and prohibiting discrimination, it is considered that this situation could be greatly improved. In fact, this New Digital World of Work doesn’t need to be scary. With the right tools, equality-friendly technology, as a kind of Equality by Design and by Default19, and the necessary education, it is possible to adapt and work with machines and robots using algorithms. This idea of equality by design and by default seems to be essential for tackling the discrimination that many continue to suffer even when they are working through digital platforms, and trying to make it easier to prove because this is very difficult in the virtual world. It is therefore argued that the concept of equality and the prohibition of discrimination, whether direct or indirect, as well as the rules on the burden of proof must be reviewed and in face of these new cyber digital world of work. We should then change attitude from questioning who made the discrimination to how the discrimination is being done and how the platforms provide it through the algorithms that are introduced and which reproduce many of the prejudices and stereotypes of the real-world discrimination20. Detecting algorithmic discrimination is not easy, especially since smart algorithms are increasingly complex. Algorithms are often described as a “black box:” the input – for instance, applicants’ resumes or a employees’ performance – 19 Like Article 25 of the GDPR that establishes privacy by design and by default. 20 In the same sense A Barzilay and A Ben-David, supra n 3, 394 and ff.

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and the output of the algorithm – for instance, which applicant will be invited for a job interview or which employee is going to be promoted – are clear. However, how the algorithm came to this conclusion is highly opaque. That is why the algorithms must be transparent and include the principle of equal treatment from the beginning of the process of building them. Another possibility that is the existence of external audits to the use of this algorithms. Employers that subject their automated platforms to external audits should also receive a certification mark, that would favourably distinguish those employers in the labour market. In these cases the General Data Protection Regulation of the European Parliament and of the Council of 27 April 2016 on the protection of natural persons with regard to the processing of personal data and on the free movement of such data, is very important because it establishes in Recital 71 “the right not to be subject to a decision, which may include a measure, evaluating personal aspects relating to him or her which is based solely on automated processing and which produces legal effects concerning him or her or similarly significantly affects him or her, such as automatic refusal of an online credit application or e-recruiting practices without any human intervention. Such processing includes ‘profiling’ that consists of any form of automated processing of personal data evaluating the personal aspects relating to a natural person, in particular to analyse or predict aspects concerning the data subject’s performance at work, economic situation, health, personal preferences or interests, reliability or behaviour, location or movements, where it produces legal effects concerning him or her or similarly significantly affects him or her.” and in Article 22 establishes some rights related with “Automated individual decision-making, including profiling”, and number 1 states that “The data subject shall have the right not to be subject to a decision based solely on automated processing, including profiling, which produces legal effects concerning him or her or similarly significantly affects him or her”. And we think that is very important what the Article 29 Data Protection Working Party defends in the Document Guidelines on Automated individual decision-making and Profiling for the purposes of Regulation 2016/67921. “The controller cannot avoid the Article 22 provisions by fabricating human involvement. For example, if someone routinely applies automatically generated profiles to individuals without any actual influence on the result, this would still be a decision based solely on automated processing. To qualify as human involvement, the controller must ensure that any oversight of the decision is meaningful, rather than just a token gesture. It should 21 Adopted on 3 October 2017 and last Revised and Adopted on 6 February 2018, 21.

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be carried out by someone who has the authority and competence to change the decision. As part of the analysis, they should consider all the relevant data”. This seems very important in this kind of decisions. We cannot really see a justification for any gender or race or ethnic differentiation, for example, in the case of virtual work. It does not seem possible a situation in which gender, or race, for instance, may constitute an essential and determining requirement for the exercise of the activity that justifies accepting only male workers or workers of a certain race. The European Commission in its Document about Ethics Guidelines for Trustworthy AI, from 8 of April 2019, establishes in one of its requirements “Human agency and oversight: AI systems should empower human beings, allowing them to make informed decisions and fostering their fundamental rights. At the same time, proper oversight mechanisms need to be ensured, which can be achieved through human-in-the-loop, human-on-the-loop, and human-in-command approaches”. Also, another requirement that is very important is the one about “Privacy and data governance: besides ensuring full respect for privacy and data protection, adequate data governance mechanisms must also be ensured, taking into account the quality and integrity of the data, and ensuring legitimized access to data. And the one about “Transparency: the data, system and AI business models should be transparent. Traceability mechanisms can help achieving this. Moreover, AI systems and their decisions should be explained in a manner adapted to the stakeholder concerned. Humans need to be aware that they are interacting with an AI system, and must be informed of the system’s capabilities and limitations” and of the utmost importance the requirement of “Diversity, non-discrimination and fairness: unfair (algorithmic) bias must be avoided, as it could have multiple negative implications, from the marginalization of vulnerable groups, to the exacerbation of prejudice and discrimination. Fostering diversity, AI systems should be accessible to all, regardless of any disability, and involve relevant stakeholders throughout their entire life circle”. Finally, very important also and related with this issue is the requirement of “Accountability: mechanisms should be put in place to ensure responsibility and accountability for AI systems and their outcomes. Auditability, which enables the assessment of algorithms, data and design processes plays a key role therein, especially in critical applications. Moreover, adequate an accessible redress should be ensured”22. The ILO23 stated the same when defending that there should be a “human-in-command” approach to artificial intelligence “that ensures that the final 22 eg https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/news/ethics-guidelines-trustworthy-ai, accessed on January 2020. 23 Work for a brighter future – Global Commission on the Future of Work (Genebra, 2019), 13.

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decisions affecting work are taken by human beings. An international governance system for digital labour platforms should be established to require platforms (and their clients) to respect certain minimum rights and protections. Technological advances also demand regulation of data use and algorithmic accountability in the world of work”. And also that “The exercise of algorithmic management, surveillance and control, through sensors, wearables and other forms of monitoring, needs to be regulated to protect the dignity of workers. Labour is not a commodity; nor is it a robot”24. One possibility that could be used to try to diminish these possibilities of discrimination could be that ratings should be “portable”, allowing employees who desire to do so to bring their positive ratings with them if they change platforms or to refer to them when looking for other jobs. However we have to bear in mind Article 20 of the General Data Protection Regulation that establishes the right to portability and that says that: “The data subject shall have the right to receive the personal data concerning him or her, which he or she has provided to a controller, in a structured, commonly used and machine-readable format and have the right to transmit those data to another controller without hindrance from the controller to which the personal data have been provided, where: (a) the processing is based on consent pursuant to point (a) of Article 6(1) or point (a) of Article 9(2) or on a contract pursuant to point (b) of Article 6(1); and (b) the processing is carried out by automated means. And number 2 establishes that “In exercising his or her right to data portability pursuant to paragraph 1, the data subject shall have the right to have the personal data transmitted directly from one controller to another, where technically feasible”. This article is important and it seems that the worker can only use this right about data that is generated by them and the rating system but the problem that arises is that many of these reviews are provided by third parties. Does this mean that the worker will not be able to take with him? We think that this article could be interpreted extensively and encompass this new situation. Even the European Commission was in favour of the possibility for digital platforms to allow data portability, including stakeholder evaluations25. This is also important because the case of automated hiring systems, the applicant-data-generated employee profiles may live on past the snapshot in 24 P. 43. 25 Communication from the Commission, Online platforms and the Digital Single Market Opportunities and Challenges for Europe.

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time when the employee applied for a specific position and may come to haunt the worker during an entirely different bid for employment. In Portugal, for example, article 17.º of Portuguese Labour Code, with the epigraph Protection of personal data, establishes what is the field of control of the employers and of the futures employers in relation to employees and to candidates in what concerns their personal data. The employer cannot require job candidates to provide information regarding their private lives, except when such information is strictly necessary and relevant to assess their capability to perform the labour contract and such grounds are supplied in writing. The employer that uses deceiving or clandestine schemes, collecting data in a secret and covert way violates the law and can be held pre-contractual responsible in the terms of article 102 of Portuguese Labour Code26, being that practice punished not only at a civil level but also a criminal one in same cases. Another principle that is very important is the principle of transparency of the algorithm because we cannot live in a “black box society” but in a transparent society in terms of using algorithms. Algorithms should not operate as black boxes but should be open up for examination. And the General Data Protection Regulation can help here because it reinforce this principle and establishes in article 88 that “Member States may, by law or by collective agreements, provide for more specific rules to ensure the protection of the rights and freedoms in respect of the processing of employees’ personal data in the employment context, in particular for the purposes of the recruitment, the performance of the contract of employment, including discharge of obligations laid down by law or by collective agreements, management, planning and organisation of work, equality and diversity in the workplace, health and safety at work, protection of employer’s or customer’s property and for the purposes of the exercise and enjoyment, on an individual or collective basis, of rights and benefits related to employment, and for the purpose of the termination of the employment relationship”. This is very important. And Recital 39 establishes that “The principle of transparency requires that any information and communication relating to the processing of those personal data be easily accessible and easy to understand, and that clear and plain language be used. That principle concerns, in particular, information to the data subjects on the identity of the controller and the purposes of the processing and further information to ensure fair and transparent processing in respect of the natural persons concerned and their right to obtain confirmation and communication of personal data concerning them which are being processed. Natural persons should be made aware of risks, rules, safeguards and rights in relation 26 But also in many other legal instruments in many countries.

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to the processing of personal data and how to exercise their rights in relation to such processing. In particular, the specific purposes for which personal data are processed should be explicit and legitimate and determined at the time of the collection of the personal data.” Workers must have the right to demand transparency in the decisions and outcomes of AI systems as well as the underlying algorithms, establishing the right to appeal decisions made by AI/algorithms, and having it reviewed by a human being. We always must remember that not everything that is technically possible is legally admissible. We must bear in mind that antidiscrimination law is to preserve equal opportunity for all and that anti-discrimination imposes a duty on employers to work towards that end. Employment discrimination law imposes a duty of care on employers to avoid decisions that undermine social equality. While developing and using machine learning algorithms, employers have to be aware of privacy laws. For this reason, employers should introduce a human control system and should always remain capable of explaining how a decision was made. Also, they should ensure that the use of algorithms is not at the expense of equal treatment rights. After all, the use of algorithms in decision making poses a risk to a workers’ right to equality.

3. Conclusion It is obvious that this AI and algorithms are consistently exerting more influence in the way we think and organise ourselves in society and, consequently, the scientific and legal advance cannot detach itself from the ethical and legal issues involved in this new scenario. Governing AI and specifically algorithms with some ethical principles like fairness, reliability, security, privacy, data protection, inclusiveness, transparency and accountability, and the by design and by default technique, are an important step to try to follow the pace of technological innovation, at the same time as trying to guarantee effectiveness of the law.

List of references Ajunwa, I, “The paradox of automation as anti-bias intervention” (forthcoming, 2020), 41 CARDOZO. L. REV..

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Akhtar, P and More, P, “The psychosocial impacts of technological change in contemporary workplaces and trade union responses” (2016), International Journal of Labour Research 8 (1/2). Barocas, S, “Big Data’s Disparate Impact” (2016), California Law Review 671. Barzilay, A and Ben-David, A, “Platform Inequality: Gender in the Gig-Economy” (2017), Setton Hall Law Review 47. Dop, J, Using Algorithms in the Employment Relationship, eg https://www.russell.nl/publicatie/use-algorithms-employment-relationship, accessed on January 2020. EUROPEAN COMMISSION - Communication from the Commission to the European parliament, the council, the European economic and social committee and the committee of the regions a European agenda for the collaborative economy, COM(2016) 356 final ILO - Work for a brighter future – Global Commission on the Future of Work, Genebra, 2019. Magrani, E, “New perspectives on ethics and the laws of artificial intelligence” (2019), Internet Policy Review 8(3). Moreira, T C, “Algumas questões sobre Trabalho 4.0”, in Prontuário de Direito do Trabalho (2016, II). Moreira, T C, “Igualdade de Género no Trabalho 4.0”, in M R P Ramalho and T C Moreira (coords.), A Igualdade nas Relações de Trabalho, Estudos APODIT (vol. 5, AAFDL, Lisbon, 2019). O’Neil, C, Weapons of Math Destruction - How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy (Crown/Archetype, 2017). OSH - OSH and the Future of Work: benefits and risks of artificial intelligence tools in workplaces, eg https://osha.europa.eu/en/publications/osh-and-future-work-benefits-and-risks-artificial-intelligence-tools-workplaces/view, accessed on January 2020. Prassl, J and Lamine, A, “Collective Autonomy for On Demand Workers”, in S Laulom (ed.), Collective Bargaining Developments in Times of Crisis, Bulletin of Comparative (Labour Relations, Wolters Kluwer, vol. 99, 2018).

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PWC - Artificicial Intelligence in HR: a no Brainer, 2018, eg https://www.pwc. at/de/publikationen/verschiedenes/artificial-intelligence-in-hr-a-no-brainer.pdf, accessed on January 2020. Schoenbaum, N, “Gender and the Sharing Economy” (2016), Fordham Urb. L. J., vol. XLIII. UNI - Top 10 principles for ethical artificial intelligence, eg http://www.thefutureworldofwork.org/opinions/10-principles-for-ethical-ai/, accessed on January 2020. Wachter, S; Mittelstadt, B and Floridi, L, “Why a Right to Explanation of Automated Decision-Making Does Not Exist in the General Data Protection Regulation” (2017), International Data Privacy Law.

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O REGIME DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS DE PESSOAS FALECIDAS: A «SUCESSÃO INFORMACIONAL» Tiago Branco da Costa Investigador do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação tfbrancoc@gmail.com

Resumo: A proteção de dados pessoais está na ordem do dia, pois, apesar da consagração de um regime legal comum aos diversos Estados-Membros da União Europeia, este novo quadro legal e as novas relações jurídicas que têm vindo a ser estabelecidas no tráfico jurídico negocial têm despoletado no mundo jurídico sérias reflexões. Uma das questões que tem vindo a lume na sequência da aplicação deste novo quadro legal, designadamente na sequência da entrada em vigor da lei de execução interna, é, precisamente, a do tratamento de dados pessoais de pessoas falecidas. Almejamos, assim, com o presente trabalho, oferecer uma leitura do regime legal de proteção dos dados pessoais das pessoas falecidas resultante da Lei de Proteção de Dados Pessoais (lei de execução interna do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), evidenciando, por um lado, os principais obstáculos que este novo regime patenteia e, em segundo lugar, colhendo as contribuições que o regime sucessório português oferece neste domínio. Palavras-chave: sucessão informacional; proteção de dados; dados pessoais; pessoas falecidas; regime sucessório

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O regime de proteção de dados pessoais de pessoas falecidas: a «sucessão informacional» Tiago Branco da Costa

1. Considerações introdutórias O novo quadro legal da proteção de dados pessoais veio oferecer resposta a um conjunto de questões novas, despoletadas no mundo jurídico pela introdução, em massa, das novas tecnologias no nosso quotidiano. Os dados pessoais assumiram, no mercado de capitais, um valor nunca antes alcançado, o que se verificou a par de um crescimento acelerado da troca destes dados no mercado interno. A comunidade jurídica foi, então, convidada a discutir a validade e os termos da introdução dos dados pessoais no tráfico jurídico negocial, num esforço de conciliação entre as respostas oferecidas pelos tradicionais institutos jurídicos e os desafios que a sociedade de informação tem vindo a colocar ao Direito. Concomitantemente, constatou-se a necessidade de regular o tratamento dos dados pessoais das pessoas singulares, por um lado, e a facilitação do intercâmbio de dados no mercado interno em condições de segurança para os próprios titulares, por outro lado. Neste domínio, pese embora o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados1 tenha excluído, prima facie, os dados pessoais de pessoas falecidas do âmbito de aplicação material deste diploma legal, concedeu-se aos Estados-Membros a possibilidade de regularem tal matéria em consonância com o ordenamento jurídico interno. Deste modo, o sistema jurídico português, através da Lei da Proteção de Dados Pessoais2, estatuiu, a este respeito, um regime de tratamento de dados pessoais de pessoas falecidas. A consagração deste regime legal relativo ao tratamento de dados pessoais das pessoas falecidas não concretizou com um grau de pormenor satisfatório a sucessão informacional. Com efeito, em primeiro lugar, tentaremos evidenciar as incongruências, ao nível da redação, da norma introduzida pela Lei da Proteção de Dados Pessoais, que desde logo são potenciadoras de dificuldades interpretativas.

1 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), JO L119/1, doravante designado por Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados ou apenas pela sigla RGPD. 2 Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto, assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, daqui em diante designada por Lei da Proteção de Dados Pessoais, lei de execução ou somente pela sigla LE.

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Anuário de Direitos Humanos 2019 p.105 - p.125

Em segundo lugar, procuraremos demonstrar que a tutela conferida aos dados pessoais do titular falecido não goza da amplitude que é conferida, em termos gerais, aos dados pessoais do titular de dados vivo. Uma vez mais, constataremos uma dificuldade interpretativa na leitura do regime legal que o legislador tentou imprimir, concretamente no que respeita ao tratamento de dados relativos à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações. De seguida, cumprirá decifrar o objeto da sucessão informacional, à luz do regime sucessório tradicional, compreendendo o conjunto de direitos que a sucessão informacional comporta, assim como as limitações ou inibições que o próprio titular dos dados pode, em vida, determinar. Por fim, cumpre analisar o rol dos sucessores informacionais, à luz da Lei da Proteção de Dados Pessoais. A consagração deste direito sucessório veio introduzir alterações significativas ao regime dos direitos de personalidade consagrado no Código Civil. Aquela que parecia ser uma tentativa de conciliação, ao nível do ordenamento jurídico interno, entre a nova disciplina legal e o tradicional quadro legal de tutela dos direitos de personalidade saiu gorada3. Com efeito, urge, desde já, assinalar que o direito de autodeterminação informacional, que se apresenta como subprincípio do direito à reserva da intimidade da vida privada, enquanto direito fundamental surge retratado no âmbito do direito civil, em particular, no domínio dos direitos de personalidade4. Não obstante, a disciplina da proteção de dados permite que, em certos domínios, o objeto dos demais direitos de personalidade possa, também, ser considerado um dado pessoal, na aceção do RGPD, o que de per si é gerador de dificuldades na conciliação dos vários regimes legais aplicáveis e impossibilita uma aplicação integral e imediata do regime dos direitos de personalidade consagrado no Código Civil. Deste modo, o facto de partirmos de um diploma de cariz europeu para um outro que assegura a sua execução no panorama legal interno obrigar-nos-á a uma leitura e a uma interpretação conformes, o que não nos afastará da tentativa de escalpelizar este novo regime de proteção legal dos dados pessoais da pessoa falecida, recorrendo, quando necessário e com as devidas adaptações, ao regime sucessório português.

3 Vd. A B Cordeiro, Direito da Proteção de Dados: à Luz do RGPD e da Lei nº 58/2019 (Almedina, 1.ª ed., 2020), 116. 4 Ver, eg A S Pinheiro, Privacy e Proteção de Dados Pessoais: a Construção Dogmática do Direito à Identidade Informacional (AAFDL, 2015), 805.

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2. A proteção dos dados pessoais do de cujus na nova Lei da Proteção de Dados Pessoais O tratamento de dados pessoais de pessoas falecidas resultou afastado do âmbito de aplicação material do Regulamento Geral da Proteção de Dados. Assim resulta da leitura conjugada dos artigos 2.º e 4.º e do considerando 27 do RGPD5. Ademais, ao longo do citado diploma legal é possível encontrar outras disposições que perfilham o afastamento da aplicação do regulamento às pessoas falecidas, como é exemplo o tratamento de dados para fins de arquivo (considerando 158), ou o tratamento de dados para fins de investigação histórica (considerando 160). Todavia, concedeu o legislador europeu, aos Estados-Membros, a possibilidade de estabelecerem, internamente, regras para o tratamento de dados de pessoas falecidas. Deste modo, o legislador português, gozando da prerrogativa que lhe foi concedida pelo RGPD, ordenou a aplicação dos preceitos legais constantes do RGPD e da lei de execução interna aos dados sensíveis de pessoas falecidas6. Com efeito, resulta desta nova disciplina legal a proteção dos dados pessoais do de cujus que revelem a origem racial ou étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, dados biométricos para identificar uma pessoa de forma inequívoca, dados relativos à saúde ou dados relativos à vida sexual ou orientação sexual. Paralelamente, determinou-se a aplicação deste regime de proteção aos dados pessoais respeitantes à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações do defunto7. Em razão da limitação introduzida pelo legislador nacional, relativamente aos dados pessoais do defunto merecedores de tutela, não será despiciendo recapitular o conteúdo e a amplitude do artigo 4.º do RGPD, que avança com a 5 Esta opção tinha já sido a adotada pela Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de outubro de 1995, JO L281/31, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. A este respeito, ver, eg G Resta, “La ‘Morte’ Digitale”, Il Diritto Dell’informazione e Dell’informatica, Anno XXIX Fasc. 6 – 2014, 902, “Se la disciplina dettata dalla direttiva 95/46/CE e dalle normative costruite su tale archetipo fosse applicabile anche ai dati del defunto, molti dei problemi applicativi sin qui rimessi alla cognizione delle corti troverebbero un’agevole, o quanto meno ordinata, composizione. Lo stesso è a dirsi per la Proposta di regolamento in materia di protezione dei dati, che peraltro in un testo preliminare del giugno 2012 — poi superato — escludeva espressamente l’estensibilità della disciplina ai dati relativi a defunti”. 6 Artigo 17.º da Lei da Proteção de Dados Pessoais. 7 Ibidem.

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definição de dados pessoais, nos seguintes termos: “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”. Por sua vez, o artigo 9.º do RGPD, a que temos vindo a fazer referência, circunscreve-se aos dados pessoais sensíveis, isto é, ao conjunto de dados de categorias especiais, relativamente aos quais, por via de regra, o tratamento de dados se encontra vedado. A proibição do tratamento de dados imposta não se aplicará quando, alternativamente, se verifique o preenchimento de uma das situações previstas no n.º 2 do artigo 9.º do RGPD. Todavia, a ressalva dos casos previstos no n.º 2 do artigo 9.º e a respetiva remissão que é feita pelo artigo 17.º n.º 1 in fine da LE, para este regime, é questionável, sobretudo pela redação que lhe é imposta. Senão vejamos, se por um lado a lei de execução permite a aplicação do regime constante da própria lei e do RGPD aos dados relativos às categorias previstas no n.º 1 do artigo 9.º, por outro lado, sugere a mesma lei que sejam “ressalvados” os casos previstos no n.º 2, transmitindo-se a ideia de que nesses casos não são aplicáveis as disposições legais em questão para proteção dos dados pessoais do falecido. Conforme resulta do Parecer n.º 20/2018 da Comissão Nacional da Proteção de Dados (CNPD)8, seria salutar a correção da ressalva feita na parte final do n.º 1 do artigo 17.º da LE, na medida em que a redação atual sugere a circunscrição da proteção de dados pessoais do falecido ao n.º 1 do artigo 9.º, excetuando as situações previstas no n.º 2, que são precisamente aquelas que permitem o tratamento lícito dos dados sensíveis. Ao negarmos a aplicação do n.º 2 do artigo 9.º aos dados pessoais de pessoas falecidas, estaríamos a defender que o tratamento de quaisquer dados pessoais do falecido enquadráveis no n.º 1 seria sempre proibido.

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Comissão Nacional da Proteção de Dados, Parecer n.º 20/2018, Processo n.º 6275/2018. Disponível em http://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a53556c4d5a5763765130394e4c7a464451554e45544563765247396a6457316c626e527663306c7561574e70595852706 46d46446232317063334e686279396a5a57593359544d794f4330325a44526c4c54526c4e546b74596a41304e4331694e54426d4f5449314d6a64684d7a45756347526d&fich=cef7a328-6d4e-4e59-b044-b50f92527a31.pdf&Inline=true, consultado em 1 de fevereiro de 2020.

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Deste modo, e atendendo à redação que foi conferida à norma em apreço, cumprirá ao aplicador procurar, dentro do espírito do sistema, o sentido que o legislador tentou imprimir à norma, o que poderá, ainda assim, ser gerador de dúvidas e de interpretações diversas. Não obstante, cremos que a intenção seria a de ressalvar a licitude do tratamento de dados destas categorias apenas quando verificado pelo menos um dos casos previstos no n.º 2 do artigo 9.º do RGPD. Por outro lado, deve-se assinalar que, para além da categoria de dados constante do n.º 1 do artigo 9.º do RGPD, o legislador nacional estendeu a proteção de dados pessoais da pessoa falecida aos dados que se reportem à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações. E, só após elencar todas as categorias de dados relativamente aos quais se estende a proteção relativamente aos titulares já falecidos, “ressalvou” os casos previstos no n.º 2 do artigo 9.º do RGPD. Neste sentido, atendendo, uma vez mais, à formulação adotada, podemos questionar a intenção do legislador reconduzir o tratamento de dados relativos à intimidade da vida privada, à imagem ou às comunicações às condições de licitude especiais que resultam evidenciadas no n.º 2 do artigo 9.º do RGPD ou se, ao invés, a licitude desse tratamento deve observar as regras gerais constantes do artigo 6.º do RGPD. As cláusulas de licitude elencadas no artigo 6.º do RGPD são genéricas em relação a qualquer tratamento de dados pessoais, ao passo que aquelas que resultam do artigo 9.º n.º 2 do RGPD representam os casos específicos em que os dados sensíveis do titular (cujo tratamento deveria estar, por princípio, vedado) podem ser alvo de uma operação de tratamento de dados e para as quais se exigem, portanto, cautelas adicionais.

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A presente ideia encontra-se desde logo patente ao nível do consentimento, quando se exige no artigo 9.º do RGPD um consentimento explícito9. Apesar de esta não ser a única condição de licitude que habilita o tratamento de dados pessoais, na verdade, não podemos ignorar a sua relevância no rol apresentado em ambos os preceitos legais constantes do RGPD a que temos vindo a fazer referência, para efeitos de validação do tratamento de dados do de cujus. Por outro lado, não podemos olvidar que, de entre as condições de licitude apresentadas, num e noutro artigo do RGPD, se identificam algumas que, atenta a modificação ou extinção da relação jurídica provocada pelo falecimento do titular dos dados, surgem, necessariamente, afastadas (v.g. alínea b) do n.º 1 do artigo 6.º do RGPD). Cremos, assim, que, da leitura do n.º 1 do artigo 17.º da LE, resulta a intenção de submeter ao escrutínio da disciplina constante do n.º 2 do artigo 9.º o tratamento de dados do titular falecido relativo aos dados sensíveis e aos respeitantes à intimidade da vida privada, imagem e dados relativos às comunicações. No entanto, esta interpretação parece não se enquadrar, harmoniosamente, no quadro legal da proteção de dados, porquanto a condução dos dados pessoais não sensíveis (merecedores de tutela) do falecido ao regime do n.º 2 do artigo 9.º institui uma proteção superior, relativamente àquela que é prescrita para os direitos de personalidade do titular de dados vivo. Por sua vez, a aplicação de um regime mais severo para a proteção de dados do titular após a sua morte poderá comprometer a condição de licitude preenchida em vida. Pense-se, uma vez mais, no exemplo do consentimento que trouxemos já à colação, que, prevendo um requisito adicional (caráter explícito) após a morte, poderá implicar a ilicitude do tratamento de dados do falecido

9 Pese embora resulte do artigo 4.º n.º 11 do RGPD que o consentimento deve representar uma manifestação de vontade, livre, específica, informada e explícita, pela qual o titular dos dados aceita, mediante declaração ou ato positivo inequívoco, que os dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de tratamento, entendemos que o conceito de consentimento constante do artigo 6.º do RGPD não é coincidente com aquele que se encontra vertido no artigo 9.º do RGPD. Com efeito, na versão inglesa do RGPD, quer o considerando 32, quer o artigo 4.º n.º 11 não fazem alusão ao caráter explícito do consentimento. Concomitantemente, nas Orientações relativas ao consentimento na aceção do Regulamento (UE)2016/679, do extinto Grupo de Trabalho do Artigo 29.º, adotadas em 28 de novembro de 2017, última redação revista e adotada em 10 de abril de 2018, disponível em https://www.cnpd.pt/bin/rgpd/docs/wp259rev0.1_PT.pdf., consultado em 1 de fevereiro de 2020, são indicados como requisitos de validade do consentimento os seguintes: livre, específico, informado e inequívoco. Reconhece-se, assim, que “O consentimento explícito é necessário em determinadas situações em que surge um risco grave para a proteção dos dados e, portanto, em que se considera adequado existir um nível elevado de controlo individual em relação aos dados pessoais”.

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levado a cabo com base num consentimento não explícito prestado em vida do titular. Ademais, podemos, ainda, equacionar que a vontade do legislador terá sido a de conceber uma maior tutela dos direitos do titular de dados falecido por, após a sua morte, ser-lhe difícil perscrutar o tratamento dos seus dados pessoais. Não obstante, como veremos de seguida, não é pelo facto de o titular dos dados ter falecido que os direitos previstos no RGPD deixam de poder ser exercidos. Pelo contrário, a LE habilita a pessoa designada pelo falecido, ou os seus herdeiros, ao exercício de tais direitos. A razão de ser da consagração deste direito sucessório terá que ver com a tutela dos interesses pessoais do titular dos dados falecido que, devido à sua participação no tráfico jurídico negocial, e à celebração de inúmeras relações jurídicas, deixa, aquando da sua morte, um acervo, mais ou menos amplo, de dados pessoais, o qual deve ser gerido ou destruído. Por todas as razões expostas, cremos que a solução mais avisada, dentro do espírito da lei, será a de reconduzir o tratamento de dados referentes à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações do falecido ao regime geral instituído pelo artigo 6.º do RGPD10, considerando que a ressalva feita no artigo 17.º n.º 1 in fine da LE se aplica somente aos dados sensíveis constantes do n.º 1 do artigo 9.º do RGPD. Por fim, mas não menos importante, devemos assinalar que o legislador nacional apenas previu a proteção dos dados pessoais do falecido relativos à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações, excluindo, sem razão aparente, alguns direitos de personalidade (igualmente merecedores de tutela). Conforme assinala A. Barreto Menezes Cordeiro, o legislador terá acolhido na reformulação do artigo 17.º alguns dos direitos de personalidade

10 A recondução do tratamento de dados do titular falecido ao regime do artigo 6.º do RGPD pode aparentar uma maior desproteção do titular, contudo, deve-se notar que todos os restantes dados pessoais que não caibam nas categorias elencadas no artigo 17.º da LE não são abrangidos pelo RGPD nem pela LE. Por outro lado, conforme outrora assinalou o extinto Grupo de Trabalho do Artigo 29.º, no Parecer 4/2007 sobre o conceito de dados pessoais, adotado em 20 de junho, 23, “(…) os dados sobre pessoas mortas poderão ainda receber proteção indiretamente. Por um lado, o responsável pelo tratamento pode não estar em posição de determinar se a pessoa a que diz respeito a informação ainda é viva ou já está morta. Ou mesmo que o possa fazer, a informação sobre os mortos pode ser tratada ao abrigo do mesmo regime que o aplicado aos vivos, sem distinção. Uma vez que o responsável pelo tratamento está sujeito às obrigações de proteção de dados impostas pela Diretiva relativamente aos dados sobre pessoas vivas, na prática, provavelmente para ele será mais fácil tratar os dados sobre os mortos da mesma forma imposta pelas regras de proteção de dados, em vez de separar os dois grupos de dados. Por outro lado, a informação sobre pessoas mortas pode também fazer referência a pessoas vivas”.

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que a CNPD sugeriu no seu Parecer n.º 20/201811, embora devesse ter optado por incluir todos os direitos de personalidade12.

3. Sucessão informacional: conceito e objeto Uma vez delimitado o âmbito de aplicação do RGPD e da LE no que aos dados do de cujus concerne, cumpre-nos, agora, definir o conceito e o âmbito da sucessão informacional, isto é, desvendar os direitos adquiríveis pelos sucessores. Sem pretendermos introduzir uma abordagem despicienda nem demasiado aprofundada, cumpre-nos iniciar a presente incursão com referência ao conceito de sucessão. De acordo com o disposto no artigo 2024.º do Código Civil, entende-se por sucessão o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta pertenciam. O instituto jurídico da sucessão divide-se, por sua vez, em duas categorias principais, a sucessão inter vivos, por um lado, e a sucessão mortis causa, por outro lado. Na sucessão inter vivos opera-se uma modificação da relação jurídica em vida do titular, o que se verifica mediante a prática de um ato jurídico translativo do direito ou obrigação. Por seu turno, na sucessão mortis causa referimo-nos a uma transmissão da titularidade dos bens ou direitos por força da morte do seu titular. Neste contexto em particular, não podemos deixar de atender, primordialmente, à sucessão mortis causa. Feito este intróito, urge, desde já, assinalar que, anteriormente, nos referimos ao direito de autodeterminação informacional como um direito de perso-

11 Comissão Nacional da Proteção de Dados, supra n 7. 12 A B Cordeiro, supra n 3, 116, “Qual a razão para proteger a imagem e não o nome? Ambos são direitos de personalidade. E qual a razão para proteger a imagem e não a voz/palavra? Apenas porque o primeiro consubstancia um direito de personalidade típico e o segundo atípico?”.

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nalidade que, como tal, é um direito pessoal (ainda que se lhe possa reconhecer um cunho de patrimonialidade)13. “Por regra, as relações jurídicas patrimoniais são transmissíveis, enquanto as relações pessoais são intransmissíveis”14. Todavia, conhecemos na lei alguns exemplos de direitos pessoais que podem ser objeto de devolução sucessória15, tal como revela ser o caso sub judice – direito de gerir os dados pessoais do de cujus (cfr. artigo 17.º, n.º 2 da LE). Estes direitos, pese embora não tenham uma natureza patrimonial16 que os inclua, desde logo, no conceito de sucessão, contido no artigo 2024.º do Código Civil, que se refere às “relações jurídicas patrimoniais”, podem também ser objeto de sucessão. O direito de gerir os dados pessoais do de cujus representa, então, o direito do sucessor exercer os direitos previstos no RGPD, relativos a dados pessoais do falecido. Esta consagração legal consubstancia um segundo desvio relativamente à inereditabilidade natural, referente aos direitos que se extinguem à morte do

13 Os direitos de personalidade são tradicionalidade definidos como direitos indissociáveis da pessoa humana, gerais, inalienáveis e irrenunciáveis, absolutos, vitalícios e imprescritíveis. Ver, eg J O Ascensão, Direito Civil - Teoria Geral (Coimbra Editora, 2.ª ed., 2000), 91, “Estes direitos são seguramente direitos pessoais. Isso não impede que tenham reflexos patrimoniais”; H E Hörster, A parte geral do código civil português (Almedina, 6.ª reimpressão da ed. 1992, 2011), 304; P M Pinto, Direitos de Personalidade e Direitos Fundamentais – Estudos (GESTLEGAL, 1.ª ed., 2018), 479; C A PINTO, Teoria Geral do Direito Civil (Coimbra Editora, 4.ª ed., 2012), 215; R C Sousa, O Direito Geral de Personalidade (Coimbra Editora, 1995), 402. 14 C A Dias, Lições de Direito das Sucessões (Almedina, 3.ª ed., 2014), 45. 15 Ibidem, “Como direitos pessoais civis transmissíveis sucessoriamente costuma indicar-se, p. ex., os direitos morais de autor (art. 42.º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos). Como exemplo de direitos pessoais processuais hereditáveis indica-se o direito a intentar ou prosseguir a ação de anulação de perfilhação (art. 1862.º), o direito a intentar ou prosseguir a ação de impugnação da maternalidade e da paternalidade (arts. 1825.º e 1844.º), etc.”. No mesmo sentido, ver L A Fernandes, Lições de Direito das Sucessões (Quid Juris, 4.ª ed., 2012), 65. 16 A respeito do conteúdo patrimonial dos direitos de personalidade, em especial do direito à imagem, ver D O Festas, Do Conteúdo Patrimonial do Direito à Imagem: Contributo para um Estudo do seu Aproveitamento Consentido e Inter Vivos, (Coimbra Editora, 2009), 127-128, “O reconhecimento do conteúdo patrimonial do direito à imagem tem na sua base uma realidade fáctica: existe um mercado de aproveitamento económico da imagem. No entanto, a existência de um mercado não é critério suficiente para o reconhecimento do conteúdo patrimonial de um direito. Há bens com valor de mercado cujo aproveitamento económico não é juridicamente permitido. […] O reconhecimento do conteúdo patrimonial de um direito depende da aprovação da ordem jurídica. É a ordem jurídica que permite que se passe da pura factualidade ao Direito e é também à ordem jurídica que se deve recorrer para definir os limites do conteúdo patrimonial do direito à imagem”.

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seu titular em razão da sua natureza, i.e. os direitos pessoais que se encontram intimamente ligados ao seu titular17. Conforme resulta do RGPD, assiste ao titular dos dados o direito à informação (artigos 13.º e 16.º)18, o direito de acesso (artigo 15.º)19, o direito de corrigir, apagar e limitar (artigos 16.º a 19.º)20, o direito de oposição (artigo 21.º)21, o direito a não ser alvo de decisões automatizadas (artigo 22.º)22, o direito à portabilidade (artigo 20.º)23 e o direito à comunicação de violação de dados pessoais (artigo 34.º)24. Do mesmo modo, ao sucessor do titular de dados falecido ser-lhe-á reconhecido o exercício de todos estes direitos, porquanto o artigo 17.º n.º 2 da LE refere, exemplificativamente, os direitos de acesso, retificação e apagamento, não configurando tal referência uma limitação ao rol dos direitos que assistem ao sucessor do defunto. Assim sendo, deste preceito legal resulta a sucessão do exercício integral dos direitos que, no domínio da proteção de dados pessoais, assistem ao titular de dados durante a sua vida, com as devidas limitações que lhe são impostas pela disciplina aplicável à proteção de dados do titular agora falecido, ou pelas limitações que o próprio titular dos dados está legalmente autorizado a introduzir. Ao contrário do que se verifica em relação ao conjunto de dados pessoais do titular merecedores de tutela para além da sua vida, o legislador português decidiu não limitar o exercício de direitos pelo sucessor do de cujus. 17 Ver C A Dias, supra n 13, 46. 18 Ver, eg A S Pinheiro, et al., Comentário ao Regulamento Geral de Proteção de Dados (Almedina, 1.ª ed., 2018), 347-351; G Caldas, “O direito à explicação no Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados”, Anuário da Proteção de Dados 2019 (CEDIS, Lisboa, 2019), 37-53. 19 Ver, eg A S Pinheiro, supra n 17, 356-362. 20 Ver, eg L Chastre, “Quem tem medo do direito ao esquecimento?” (2017), Boletim da Ordem dos Advogados 2. Disponível em http://historico-ordemadvogados.impresa.pt/oa-02/opiniao_leonor-chastre, consultado em 1 de fevereiro de 2020. 21 Ver, eg A S Pinheiro, supra n 17, 384-386. 22 Ver Grupo de Trabalho do Artigo 29.º, Orientações sobre as decisões individuais automatizadas e a definição de perfispara efeitos do Regulamento (UE) 2016/679, adotadas em 3 de outubro de 2017, com a última redação revista e adotada em 6 de fevereiro de 2018. Disponíveis em https:// www.cnpd.pt/home/rgpd/docs/wp251rev01_pt.pdf, consultado em 1 de fevereiro de 2020. 23 Ver, eg G C Moniz, “Direitos do Titular dos Dados Pessoais: O Direito à Portabilidade”, Anuário da Proteção de Dados 2018 (CEDIS, Lisboa, 2018), 11-34. 24 Ver Grupo de Trabalho do Artigo 29.º, Orientações sobre a notificação de uma violação de dados pessoais ao abrigo do Regulamento (UE) 2016/679, adotadas em 3 de outubro de 2017, revistas e adotadas pela última vez em 6 de fevereiro de 2018. Disponíveis em https://www.cnpd.pt/home/ rgpd/docs/wp250rev01_pt.pdf, consultado em 1 de fevereiro de 2020.

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Esta opção legislativa encerra em si alguns problemas de ordem ético-jurídica, na medida em que atribui ao sucessor a prerrogativa de aceder à esfera mais íntima do titular dos dados falecido. Apesar de termos já feito alusão à natureza deste direito sucessório e à sua relevância no quadro legal português, reiteramos aqui o dever de o sucessor exercer os direitos que resultam do RGPD, no que respeita ao tratamento de dados pessoais do falecido, em estrito cumprimento dos interesses do próprio titular. O sucessor informacional deverá, assim, afastar-se de um exercício destes direitos, exclusivamente, em proveito próprio. Ainda assim, apesar de ser este o seu dever, em termos pragmáticos, o sucessor do de cujus poderá facilmente, ainda que somente a título de curiosidade, aceder a toda e qualquer informação que lhe diga respeito, ou até mesmo permitir o acesso, ainda que indireto, à informação por terceiros para quem a mesma possa assumir especial relevância25. A norma legal em apreço é, assim, potenciadora de uma discussão mais acesa que merecerá uma análise prudente, sob pena de não garantirmos ao titular dos dados já falecido a tutela que o diploma almejava assegurar-lhe.

4. Os sucessores do de cujus Nos termos do disposto no artigo 17.º n.º 2 in fine da LE, os direitos objeto da sucessão informacional são exercidos por quem a pessoa falecida haja designado para o efeito ou, na sua falta, pelos respetivos herdeiros. Estando perante uma norma supletiva, caberá ao titular decidir se pretende ou não exercer o direito que lhe é concedido, pelo legislador nacional, de selecionar o sucessor informacional, isto é, de escolher o indivíduo que, no seu entender, é a pessoa adequada ao exercício, após a sua morte, dos direitos que resultam do RGPD, no que aos seus dados pessoais diz respeito. No que concerne, diretamente, ao indivíduo designado pela pessoa falecida para o exercício dos seus direitos de autodeterminação informacional, a primeira questão que nos assalta é a de saber de que modo poderá, validamente, o titular dos dados, antes da sua morte, dispor nesse sentido. 25 Ver Comissão Nacional da Proteção de Dados, supra n 7, 31v., “Acresce que o exercício, pelos herdeiros do falecido, do direito de acesso (titulado pelo falecido) aos dados pessoais é uma solução que permite às seguradoras, em especial no âmbito dos seguros de vida, acederem por via indireta a dados de saúde do falecido, nos casos em que este não tenha consentido especificamente. Com o que está o legislador a permitir um resultado que, ao menos aparentemente, parece ter querido vedar no contexto do acesso a dados pessoais constantes de documentos administrativos (cf. artigo 6.º, n.º 5, da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto)”.

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A LE peca, no nosso modesto entendimento, por não ter identificado, expressamente, quais os instrumentos jurídicos adequados para o efeito e por não ter feito, expressamente, uma remissão para a lei civil, concretamente, para o regime sucessório português. Assim, não esclareceu o legislador como poderá o titular dos dados designar o seu sucessor informacional. Na falta de disposição legal específica, devemos atender à disciplina imposta pelos preceitos legais que regulam a sucessão testamentária, com as devidas adaptações, que resulta dos artigos 2179.º e seguintes do Código Civil. Neste sentido, entende-se por testamento o ato unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles (cfr. artigo 2179.º do Código Civil). Note-se, ainda, que as disposições de natureza não patrimonial também poderão validamente ser insertas no testamento, desde que façam parte de um ato revestido de forma testamentária26. No que respeita à forma, o testamento pode ser público, quando escrito por notário no seu livro de notas, ou pode ser cerrado, quando escrito e assinado pelo testador ou por outra pessoa a seu rogo, ou escrito por outra pessoa a rogo do testador e por este assinado27. Apesar de defendermos ser esta a solução legal atualmente adequada para este tipo de sucessão, a verdade é que têm vindo a ser esboçadas outras alternativas que permitam ao titular dos dados dispor, para depois da sua morte, do conteúdo e da gestão informacional, máxime através de um documento ad hoc ou da subscrição de opções contratuais28. Em segundo lugar, não podemos olvidar que a LE se refere aos respetivos herdeiros, quando não haja sido designada qualquer outra pessoa para lhe suceder.

26 Cf. Artigo 2179.º, n.º 2 do Código Civil. 27 Cf. Artigos 2204.º, 2205.º e 2206.º do Código Civil. 28 Ver, eg M O Crespo, “La Sucesión en Los «Bienes Digitales». La Respuesta Plurilegislativa Española” (2019), Revista de Derecho Civil VI (4), Estudios, 89-133, 105-111; G Resta, supra n 4, 900.

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Uma vez mais, não refere o legislador a categoria dos herdeiros em questão, pelo que poderemos estar a falar quer dos legítimos29, quer dos testamentários. Ademais, por nos situarmos no domínio dos direitos pessoais, por isso sem expressão patrimonial, cremos que esta é a solução mais avisada, já que não nos encontramos limitados, no que respeita à afetação da quota legítima. Por outro lado, esta é também a leitura que nos valida a remissão para o direito sucessório, atendendo a que a natureza da norma jurídica em questão é também reveladora da intenção do legislador em atribuir ao titular dos dados, em vida, a escolha do seu sucessor. De qualquer modo, será sempre necessário recorrermos ao elenco constante do artigo 2133.º do Código Civil para fixar aquele que será o elenco dos “respetivos herdeiros”, caso o de cujus não tenha designado livremente o seu sucessor informacional. Nestes termos, serão potenciais sucessores do titular de dados falecido: o cônjuge, os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os descendentes dos irmãos, colaterais até ao quarto grau e, ainda, o Estado. Por conseguinte, e em terceiro lugar, cumpre aferir da necessidade de observação dos critérios de ordenação instituídos pelo preceito legal em apreço. Conforme começamos por assinalar neste particular, a LE não efetuou qualquer remissão (pelo menos direta) para o direito sucessório, pese embora se tenha referido aos “respetivos herdeiros”, suscitando, assim, o necessário e adequado enquadramento da temática com o regime sucessório. O elenco dos herdeiros que resulta do regime sucessório estabelece um critério ordenador que tem que ver com a proximidade familiar típica existente entres os sucessores e o falecido. Associada a esta proximidade afetiva e relacional está também subjacente uma ideia de preservação do património familiar. No domínio dos dados pessoais, apesar da assinalada ausência de remissão legal e da consagração de um critério ordenador, cremos ser salutar observar a ordem conferida pelo artigo 2133.º e as demais regras, com as necessárias adaptações30.

29 Optámos pela referência aos herdeiros legítimos ao invés da referência, alternativa ou cumulativa, aos herdeiros legitimários, pois a estes últimos destina-se, por lei, uma determinada porção de bens de que o indivíduo não pode livremente dispor. Ver C A Dias, supra n 13, 185, os herdeiros legitimários são também chamados herdeiros forçados. Contudo, uma vez que estamos perante um direito especialmente hereditável, relativamente ao qual o autor da sucessão goza de total liberdade quanto à seleção do seu sucessor, não se afigura adequada a referência aos herdeiros legitimários, na aceção do regime previsto nos artigos 2156.º e seguintes do Código Civil. 30 Em sentido diverso, ver eg A B Cordeiro, supra n 3, 119.

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Nestes termos, devemos começar por observar a ordem por que são chamados os herdeiros, tendo em consideração que cada uma das classes de sucessíveis prefere em relação às classes imediatamente inferiores31. Por sua vez, dentro de cada classe, os parentes de grau mais próximo preferem aos de grau mais afastado32, sucedendo em partes iguais, isto é, sendo designados conjuntamente para o exercício dos direitos resultantes do RGPD, relativamente aos dados do de cujus33. Poderão ainda verificar-se, com as devidas adaptações, situações de vocação indireta. Se o sucessor informacional não puder ou não quiser aceitar a herança ou legado, deverão ser chamados os seus descentes34. Por sua vez, se o sucessor informacional, chamado à herança, vier a falecer antes de aceitar ou repudiar a herança ou o legado, este direito de aceitar ou repudiar transmitir-se-á aos seus herdeiros35. Por fim, no que respeita à vocação indireta poderemos, ainda, falar do direito de acrescer, embora nesta conjuntura com as devidas adaptações. O direito de acrescer representa o direito do sucessível chamado, simultaneamente, com outros sucessíveis à sucessão, que não tenham aceitado ou que não tenham podido aceitar a sucessão, adquirir a parte que lhes cabia nessa sucessão36. No caso sub judice poderemos admitir um direito de acrescer nos casos em que o direito de gestão informacional dos dados pessoais do defunto tenha sido conferido a mais do que um indivíduo, não se verifique nenhuma causa que 31 Cfr. Artigo 2134.º do Código Civil. 32 Cfr. 2135.º do Código Civil. 33 Cfr. artigo 2136.º do Código Civil, com as necessárias adaptações. 34 Esta figura corresponde, com as devidas adaptações, ao direito de representação previsto nos artigos 2039.º e seguintes do Código Civil. Para efeitos de aplicação deste instituto jurídico é necessário, em suma e sem prejuízo de uma análise aprofundada e exigente em relação a cada um dos seus elementos, quer na sucessão legal, quer na sucessão testamentária, o preenchimento de dois requisitos: (i) falte, por não poder ou não querer aceitar a herança ou legado, um parente da primeira ou da terceira classe de sucessíveis do art. 2133.º; (ii) o parente em falta tenha deixado descendentes – Ver C A Dias, supra n 13, 116-117. 35 Referimo-nos ao ius transmissionis previsto no artigo 2058.º do Código Civil, bem como no artigo 2249.º do Código Civil, no que aos legados diz respeito. 36 Ver C A Dias, supra n 13, 130, para o efeito é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos: (i) falta ou repúdio de herdeiros ou de legatários; (ii) instituição de dois ou mais herdeiros ou legatários; (iii) não se verificar (a) a substituição direta, (b) que a vontade do autor da sucessão é contrária ao direito de acrescer, (c) o direito de representação, (d) a transmissão do direito de aceitar ou repudiar a sucessão ou (e) que se trata de um legado de natureza estritamente pessoal.

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afaste este direito, nos termos previstos no direito sucessório, e que um desses sucessíveis não tenha aceitado, por não querer ou por não poder, a sucessão. Neste cenário, o sucessor informacional, em vez de partilhar o direito de gestão informacional dos dados pessoais do titular de dados falecido, passará, assim, a assumir, em exclusivo, o exercício deste direito. Apesar de não termos esgotado, nesta singela e breve abordagem, todos os aspetos, pormenores e problemáticas de cada um dos institutos oriundos do direito sucessório, almejamos ter alcançado uma salutar correlação entre o regime da sucessão informacional e o “tradicional” direito sucessório. A interpretação que sugerimos do artigo 17.º, n.º 2 da LE tem em devida conta as críticas que têm sido tecidas à consagração da sucessão informacional37, bem como as necessidades de tutela da personalidade do titular de dados falecido. Com efeito, a atribuição do direito de gerir os dados pessoais do falecido aos seus herdeiros ou a outra pessoa por ele designado pode suscitar dúvidas quanto ao risco da devassa da vida privada do defunto. Em primeiro lugar, reiteramos as dificuldades emergentes da conciliação dos vários regimes legais mobilizáveis em matéria de proteção de dados pessoais, enquanto direito fundamental e, simultaneamente, sujeito a uma tutela civilística própria do direito de personalidade (da reserva da intimidade da vida privada). Por outro lado, o legislador nacional, ao consagrar a tutela dos dados pessoais do titular falecido, fê-lo, apenas, em relação aos dados sensíveis e aos dados referentes à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações, pelo que o direito de gerir os dados pessoais do falecido circunscreve-se, necessariamente, ao referido conjunto de dados. Ademais, o exercício do direito de gerir os dados pessoais do falecido pode ser alvo de uma limitação mais específica, quando o próprio titular, em vida, tenha disposto nesse sentido, isto é, quando tenha determinado a impossibilidade de exercício dos direitos ou tenha imposto limites ou condições a esse exercício38. A consagração deste direito sucessório admite a possibilidade de o sucessor informacional poder exercer todos os direitos que assistem ao titular dos dados, inclusivamente o direito (intrínseco ao próprio titular) de acesso aos dados da sua vida privada. 37 Ver Comissão Nacional da Proteção de Dados, supra n 7, 31v.; M J Bourbon, «Herdeiros passam a ter acesso a dados privados dos mortos», in Expresso Economia, 08 de fevereiro de 2020. 38 Cfr. Artigo 17.º, n.º 3 da LE. Pese embora o legislador apenas faça referência à impossibilidade de tratamento dos dados pessoais (o mais), cremos que a limitação do exercício (o menos) também é possível, dentro dos limites da lei.

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Esta nova disciplina não é coincidente com aquela que encontrávamos no domínio dos direitos de personalidade, em particular no artigo 71.º n.º 2 do Código Civil39, de acordo com a qual o cônjuge sobrevivo ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido tinham legitimidade para requerer as providências adequadas a colocar termo à consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa já cometida à personalidade física ou moral do falecido. No que concerne diretamente ao direito à reserva da intimidade da vida privada, e ao contrário do que se verifica a respeito de outros direitos de personalidade, não se prescrevia a ingerência de quaisquer herdeiros nas esferas íntima, secreta, privada e individual40 do defunto41, bastando-se a lei com a tutela conferida pelo citado artigo 71.º, n.º 2 do Código Civil. Todavia, cremos que a exclusão dos dados pessoais das pessoas falecidas do âmbito de aplicação do RGPD e, por conseguinte, a ausência da sucessão informacional não assegurariam, convenientemente, a tutela da personalidade do titular de dados falecido. Se nos suscita dúvidas a permissão conferida aos herdeiros para gerir o acervo informacional do defunto, incluindo o acesso aos seus dados pessoais, mais dúvidas nos suscitam o tratamento de dados do titular falecido fora das balizas impostas pelo RGPD e longe do escrutínio dos sucessores do de cujus.

39 Ver eg A F Antunes, Comentário aos artigos 70.º a 81.º do Código Civil: direitos de personalidade, (Universidade Católica Editora, 2012), 57-78. 40 Acompanhamos de perto a teoria das esferas que nos apresenta, entre outros, A M Cordeiro, Tratado de Direito Civil, IV (Almedina, 5.ª ed., 2019), 264-265 apud A B Cordeiro, supra n 3, 116. 41 Neste sentido, ver Comissão Nacional da Proteção de Dados, supra n 7, 31, “Notar-se-á, desde logo, que o Código Civil reconheceu legitimidade a familiares e herdeiros do falecido em relação aos vários direitos de personalidade, mas não em relação ao direito à reserva da intimidade da vida privada – esta solução deve-se provavelmente ao facto de se poder presumir que a vontade dos familiares e herdeiros é coincidente com a da pessoa falecida quanto à defesa do seu bom nome e da sua imagem, mas já a mesma presunção não poder ser afirmada quanto à vida privada deste. Na verdade, a vida privada do falecido é muitas vezes desconhecida dos familiares sobrevivos, não se podendo presumir que este quisesse que os seus familiares ou herdeiros acedessem a informação relativa à sua vida íntima, à sua saúde, à sua orientação sexual, etc. Repare-se que, na terminologia da proteção de dados, o direito de acesso, bem como o direito de retificação e o direito ao apagamento são direitos intrínsecos do titular dos dados e diferem, não podendo por isso com eles ser confundidos, em relação a outras posições jurídicas subjetivas, designadamente, ao acesso por terceiros, à obrigação de exatidão dos dados pessoais (alínea d) do n.º 1 do artigo 5.º do RGPD) ou à obrigação de eliminação da informação (alínea e) do n.º 1 do artigo 5.º do RGPD). Assim, se se compreende o reconhecimento a certas categorias de terceiros de legitimidade para garantir a defesa da honra e da reputação do falecido, tais direitos, já estão ponderadamente reconhecidos no Código Civil (…)”.

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Poder-se-ia, no entanto, equacionar, no nosso entender, alguma limitação quanto ao exercício dos direitos que decorrem do RGPD pelo sucessor do titular dos dados. Contudo, entendemos que a intenção primordial do legislador foi a de conceder o mais amplo poder de conformação ao titular dos dados quanto à escolha do destino do seu acervo informacional, permitindo-lhe determinar, por um lado, a pessoa adequada ao exercício dos direitos que lhe foram reconhecidos pelo RGPD, e optar, por outro lado, pela exclusão ou limitação do exercício de tais direitos. Mais permitiu a lei que o titular pudesse conformar-se com o regime supletivo - o de atribuir aos seus herdeiros o exercício de tais direitos, caso o titular entenda não manifestar a sua vontade. Deste modo, o rol de sujeitos habilitados ao exercício dos direitos resultantes do RGPD resulta do respeito pelas razões de ordem familiar e afetiva e, quiçá, patrimonial que subjazem ao regime já referido dos direitos de personalidade.

5. Síntese conclusiva O novo quadro europeu legal da proteção de dados pessoais suscita várias questões quanto à sua aplicabilidade no contexto do ordenamento jurídico interno dos diferentes Estados-Membros. No domínio da proteção de dados pessoais das pessoas falecidas, o legislador europeu consagrou uma ampla liberdade para que os Estados-Membros estabelecessem, internamente, regras para o tratamento dos dados pessoais de pessoas falecidas. Ao abrigo de tal prerrogativa, o legislador nacional consagrou, na lei de execução interna – Lei da Proteção de Dados Pessoais – a proteção de dados pessoais de pessoas falecidas. Neste sentido, estendeu a aplicação do regime previsto pelo RGPD e pela lei de execução interna aos dados pessoais das pessoas falecidas enquadráveis na categoria de dados definida no n.º 1 do artigo 9.º do RGPD e ainda aos referentes à intimidade da vida privada, à imagem ou aos dados relativos às comunicações. A par desta consagração, previu o legislador que o titular dos dados determinasse, em vida, quem havia de lhe suceder no exercício dos direitos de autodeterminação informacional resultantes do RGPD, sendo certo que, na falta de manifestação de vontade, atribuiu aos seus herdeiros tal direito. A introdução, em massa, dos dados pessoais no tráfico jurídico negocial e o aumento exponencial da transferência de dados pessoais no mercado interno alertou a comunidade jurídica para a necessidade de prever um regime sucessório informacional.

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Todavia, o regime instituído pela Lei da Proteção de Dados Pessoais respeitante à sucessão informacional revela-se (ainda?) insuficiente, na medida em que não disciplina integralmente (e especialmente) este novo instituto jurídico que, atenta a sua natureza e o contexto em que se insere, reclama do legislador uma resposta mais consistente, mas concomitantemente avisada e prudente. Não obstante o facto de se erigirem dúvidas quanto à bondade da opção legislativa, e de esta nova disciplina carecer de aprofundamento, estudo, ponderação e aperfeiçoamento, em cada um dos subsetores que abrange, estamos em crer que este será, pelo menos, um primeiro passo na consagração de um verdadeiro e completo regime sucessório informacional.

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Título:

Anuário de Direitos Humanos - Nº 2

Edição:

Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos Escola de Direito da Universidade do Minho

Diretora:

Anabela Susana de Sousa Gonçalves

Data:

Junho 2020

ISSN:

2184-1853


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