Direito Comparado Plural

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DIREITO COMPARADO PLURAL

Escola de Direito da Universidade do Minho 2021



DIREITO COMPARADO PLURAL

Escola de Direito da Universidade do Minho 2021



FICHA TÉCNICA

TÍTULO DA PUBLICAÇÃO Direito Comparado Plural COORDENAÇÃO Ricardo Alexandre Sousa da Cunha DATA DE PUBLICAÇÃO Janeiro de 2021 EDIÇÃO Escola de Direito da Universidade do Minho (EDUM) Centro de Investigação em Justiça e Governação (JUSGOV) APOIO Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) PAGINAÇÃO E DESIGN DE CAPA Pedro Rito FOTO DE CAPA Foto de Markus Spiske - Unsplash ISBN 978-989-54587-7-6 IMPRESSÃO E TIRAGEM Gráfica Diário do Minho - 150 exemplares

Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia) no âmbito do Projeto UIDB/05749/2020.

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SUMÁRIO

NOTA PRÉVIA

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O Argumento Jurídico Comparado Plural Ricardo Sousa da Cunha

1 Os filhos dos Oitocentos Ulisses da Silveira Job

35 O direito comparado e o transplante do controle de constitucionalidade austríaco e norteamericano pela constituição portuguesa e brasileira Daniel Gomes de Souza Ramos

59 Estudo jurídico-comparativo do “assento” português: seria a “súmula vinculante” a versão brasileira do instituto lusitano? Murilo Strätz

79 O espaço de disponibilidade da administração pública para fins de mediação: uma microcomparação entre os sistemas jurídicos português e brasileiro Fernanda Karoline Oliveira Calixto

101 A difícil intregração dos ilícitos (administrativos) contraordenacionais na jurisdição administrativa portuguesa versus a natural relação entre os ilícitos administrativos e o contencioso administrativo espanhol João Vilas Boas Pinto

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Regulamento geral de proteção de dados: plataforma de unificação global na proteção de dados pessoais e seu transplante para a legislação brasileira Afonso Carvalho de Oliva

159 Direito ao esquecimento e delimitação temporal do uso de informação que viole a esfera privada do indivíduo: o contexto nacomparação entre os argumentos da Corte di Cassazione da Itália e do Superior Tribunal de Justiça do Brasil Rui Carlos Sloboda Bittencourt

185 Mediação Obrigatória Opt Out na Itália, Argentina e Brasil Asdrubal Júnior

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NOTA PRÉVIA

A publicação que agora se promove é o resultado do trabalho desenvolvido na unidade curricular de Sistemas Jurídicos Comparados do primeiro curso de Doutoramento em Ciências Jurídicas da Escola de Direito da Universidade do Minho, no ano letivo 2019/2020. A qualidade e a unidade dos trabalhos produzidos seria razão suficiente para a sua publicação, não fosse neste caso também imposta pela pertinência da crescente atualidade dos trabalhos de Direito Comparado. O primeiro texto lança as bases metodológicas do Direito Comparado, tal como foram seguidas na unidade curricular, que preferem a integração dos estudos jus-comparatísticos no convívio da especifica produção de sentido das ciências jurídicas pela integração de argumentos de Direito Comparado. Parte-se assim para a caracterização de um Direito Comparado relacional, na permanente tradução da diferença constitutiva para a argumentação jurídica interna, e plural, como cada vez mais são os desafios lançados à metodologia jurídica pela pluralidade jurídica que impõe existencialmente os estudos de Direito Comparado. Todos estes trabalhos são evidência de como é no cruzamento da pluralidade de fontes de Direito com as competências variáveis de vinculação ao Direito que se colocam alguns dos mais interessantes desafios do Direito contemporâneo à escala global e que, na consideração do argumento jurídico comparado, permitem a sua caracterização como Direito Comparado, em diversas instâncias, Plural. Impõe-se um agradecimento muito especial à Sra. Professora Doutora Patrícia Jerónimo pela oportunidade que culmina na chancela do JusGov a esta publicação entre as iniciativas do grupo de investigação Glob - Globalização, Democracia e Poder. Braga, 04 de Agosto de 2020

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O ARGUMENTO JURÍDICO COMPARADO PLURAL Ricardo Sousa da Cunha1

Resumo: Os estudos de Direito Comparado dirigidos a traduzir o direito estrangeiro (o Outro) para os processos internos de argumentação jurídica como argumento jurídico comparado integram-se plenamente entre as disciplinas jurídicas na realização do Direito a partir da comparação de soluções jurídicas. O Direito Comparado "assim entendido" não é apenas um discurso sobre o Direito estrangeiro, que o considera como uma facto externo aos argumentos jurídicos esgrimidos internamente, mas obriga a considerar as diferentes dimensões da sua integração na argumentação jurídica dirigida a cumprir específicas finalidades jurídicas. Abstract: The studies of Comparative Law aimed at translating foreign law (the Other) into the internal processes of legal argumentation as a comparative legal argument allows them it full membership within the legal sciences for the realization of Law. Comparative Law thus understood is not just a discourse on foreign law, which considers it as a fact external to the legal arguments wielded internally, but imposes the consideration of the different dimensions of legal argumentation aimed at fulfilling specific legal purposes. Palavras-Chave: Direito Comparado, Argumentação Jurídica, Sumário: 1. Introdução. 2. O Direito no Direito Comparado, 2.1 O Pluralismo Jurídico, 2.2 O Direito no Direito Comparado, 2.3 O Argumento Jurídico-Comparado. 3. A Comparação no Direito Comparado, 3.1 O Funcionalismo, 3.2 Os limites do funcionalismo metodológico, 3.3 O Funcionalismo como técnica do Direito Comparado. 4. O Direito que viaja pelo Direito Comparado, 4.1. Da pos1 ricardoscunha@direito.uminho.pt.

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O Argumento Jurídico Comparado Plural Ricardo Sousa da Cunha

sibilidade dos transplantes jurídicos, 4.2 O argumento jurídico comparado in action, 4.2.1 O Direito Comparado e a Codificação, 4.2.2 O Direito Comparado na Jurisprudência, 4.2.2.1 O maior sucesso dos transplantes judiciais, 4.2.2.2 A Jurisdição Constitucional, 4.2.2.3 A Jurisprudência Multicultural, 4.2.3 O Direito Comparado Administrativo. 5. Conclusão.

1. Introdução A constatação fenomenológica da existência de diferentes ordens jurídicas impõe a necessidade existencial dos estudos pluralistas e comparatísticos no centro da realização quotidiana do Direito. O pluralismo jurídico crescentemente imposto pela integração jurídica cosmopolita e pela concomitante abertura constitucional, em Portugal assinalado, entre outros, por António Manuel Hespanha2, tem colocado novos desafios jurídico-metodológicos, eles próprios plurais3, de há muito, que se impôs a necessidade histórica de comparação de soluções jurídicas diferentes para problemas que são comuns, semelhantes ou mesmo partilhados4. Este é um exercício metodológico muito diferente daquele que animava os estudos de Direito Comparado na sua origem e desde as primeiras tentativas pela sua autonomização dogmática5, o resultado, em larga medida, trágico do século XX. Os desafios daqui suscitados reorientam as tradicionais 2 António Manuel Hespanha, “Estadualismo, pluralismo e neo-republicanismo - Perplexidades dos nossos dias”, em Antônio Carlos Wolkmer et Al., Pluralismo jurídico. Os novos caminhos da contemporaneidade, Saraiva, São Paulo, 2010, páginas 139 a 172, maxime página 139. 3 Em especial com referência à receção constitucional dos impulsos do Direito Administrativo Global vide Ricardo Sousa da Cunha, Constituição e Legalidade Administrativa Cosmopolita, Almedina, Coimbra, 2016, página 369 e seguintes. 4 Desde a antiguidade Clássica, como ensina René David, Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado, Lisboa, Meridiano, 1972, página 9 apud Patrícia Jerónimo, Lições de Direito Comparado, Elsa-UMinho, Braga, 2015, página 12, mas em especial depois do movimento constitucional no final do século XVII Montesquieu, De l’Esprit des Lois (O Espírito das Leis), Martins Fontes, 2.a Edição, 2000. Alexis de Toqueville, Democracia nos Estados Unidos, Princípia, Lisboa, 2001 (original de 1835), na sequência da missão enviada pelo governo francês de Alexis de Tocqueville e Gustave Beaumont aos Estados Unidos da América em 1831 para estudar, em particular o sistema prisional americano, mas que redundou num clássico do Direito Comparado. Em Portugal, para o mesmo período vide António Manuel Hespanha, “O Constitucionalismo Monárquico Português. Breve Síntese”, História constitucional: Revista Electrónica de História Constitucional, nº. 13, 2012, página 477 e seguintes. 5 Com a criação da Societé de Legislation Comparée, em 1869, e o início do ensino do Direito Comparado em Madrid (1851), Oxford (1869) e Paris (1890) segundo Carlos Ferreira de Almeida e Jorge Morais Carvalho, Introdução ao Direito Comparado, 3.a ed., Coimbra, Almedina, 2013, página 15. Em especial, a partir de 1900, a realização em Paris do I Congresso Internacional de Direito Comparado afirma definitivamente a disciplina jurídica com ambição científica, conforme, entre outros, Paulo Dourado de Gusmão, Introdução ao Estudo do Direito, 12.a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1986, p. 29 apud Patrícia Jerónimo, Lições de Direito Comparado, Elsa-UMinho, Braga, 2015, página 12.

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preocupações sobre o lugar epistemológico dos estudos de Direito Comparado para o rigor da sua técnica6, numa ponderação feita no delicado equilíbrio estabelecido entre os dois termos da equação Direito e Comparação – se a específica técnica do Direito Comparado (como base no funcionalismo metodológico) é decisiva para uma realização rigorosa de estudos de Direito Comparado, sob pena de redundarem na mera comparação legislativa ou no estudos de soluções estrangeiras próximas, não se pode perder de vista a específica finalidade jurídica dos estudos de Direito Comparado, sem o que se estará perante a comparação de Direitos mais apta a integrar as preocupações de outras ciências sociais. O Direito Comparado "assim entendido como disciplina jurídica" não é apenas um discurso sobre o Direito estrangeiro, mas integra-se na própria argumentação jurídica dirigida a cumprir as suas específicas finalidades7.

2. O Direito no Direito Comparado O pluralismo jurídico é o modelo historicamente dominante do fenómeno jurídico contra a qual se levantou o Estado centralizador quando procurou, em especial a partir do século XIX, reduzir toda a normatividade vigente ao Direito Estadual sob a Constituição, num esforço marcado politicamente que encontrou, já no século XX, o seu expoente máximo na Escola positivista8. Uma alteração substancial desta realidade fenomenológica pode constatar-se na crescente globalização socioeconómica, facilitada pelo desenvolvimento tecnológico que coloca a interação dos indivíduos à escala planetária, e que, por essa via, tem imposto também a relação, interação e comparação de várias ordens jurídicas. O pluralismo jurídico, daí também metodológico, impõe existencial e necessariamente os estudos de Direito Comparado - como as montanhas para os alpinistas, simplesmente, porque estão lá!

6 Simone Glanert, “Method?” in Pier Giuseppe Monateri (Org.), Methods of Comparative Law, Elgar, Cheltenham, Northampton, 2012, páginas 61 e ss. 7 Thomas Coendet, Rechtsvergleichende Argumentation, Mohr Siebeck, Tubingen, 2012, página 29 e ss e Thomas Coendet, “Legal Reasoning: Arguments from Comparison”, Archiv für Rechts und Sozialphilosophie, 102, 2016/4, página 493. 8 A propósito dos estudos de pluralismo jurídico, Brian Z Tamahana refere-se ao pluralismo jurídico desde o período medieval, passando pelo exemplo particular do período colonial, até ao resultado no final do séxulo XX in Brian Z Tamanaha, “Understanding Legal Pluralism: Past to Present, Local to Global”, Sydney Law Review, Vol 30, 2008, página 375 e ss, maxime 377 e seguintes.

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O Conceito Pós-Moderno de Constituição Ricardo Sousa da Cunha

2.1 O Pluralismo Jurídico Na delimitação do objeto dos estudos sobre o pluralismo jurídico9 tem-se recentemente desvalorizado a relevância da definição de Direito(s) em termos que não podem deixar de ser significativos para os estudos de Direito Comparado. Brian Z Tamanaha, que num primeiro momento apontara o conceito de “semi-autonomous social field (‘SASF’)” de Sally Falk Moore10 para objeto dos estudos do pluralismo jurídico, afastou-se mais recentemente da necessidade metodológica de definição de “ordenamento jurídico”, “sistema normativo” ou de “Direito”11, acompanhando a evolução para uma posição anti-essencialista de Griffiths12 da definição de pluralismo jurídico ou normativo, neste exercício seguindo Boaventura Sousa Santos que há algum tempo questionava “why not?”13. Neste contexto, relevante para a delimitação do objeto dos estudos de pluralismo jurídico (que se acompanha para o Direito Comparado) é a delimitação interna dos atores de determinado sistema normativo, solução a partir da qual Tamanaha alicerça os estudos de pluralismo jurídico em “seis sistemas de organização normativa social: sistemas legais oficiais, sistemas normativos costumeiros/culturais; sistemas normativos religiosos/culturais; sistemas normati-

9 Os estudos de pluralismo jurídico que têm apresentado alguma unidade metodológica sobre o mesmo objeto, mas de uma perspetiva mais preocupada com a relação das diferentes ordens jurídicas, em particular na solução de eventuais conflitos, do que com a sua comparação. Estas duas perspetivas sobre o mesmo objeto, com ambição de cientificidade, andam, naturalmente, muito próximas e tocam-se em diversos momentos destes estudos. 10 Sally Falk Moore, ‘Law and Social Change: The Semi-Autonomous Social Field as an Appropriate Subject of Study’ (1973) 7 Law & Society Review 719. Este conceito acabou por ser repudiado pela propria Autora, in Sally Falk Moore, ‘Certainties Undone: Fifty Turbulent Years of Legal Anthropology, 1949– 1999’ in Sally Falk Moore (ed), Law and Anthropology: A Reader (2005) at 357 apud Brian Z Tamanaha, “Understanding Legal Pluralism…”, op. cit., página 375 e ss, a ponto de levar à proposta de superação por Griffiths in John Griffiths, ‘The Idea of Sociology of Law and its Relation to Law and to Sociology’ (2005) 8 Current Legal Issues 49 at 63–64. 11 “Law is a ‘folk concept’, that is, law is what people within social groups have come to see and label as ‘law’.77 It could not be formulated in terms of a single scientific category because over time and in different places people have seen law in different terms. State law is currently the paradigm example of law, but at various times and places, including today, people have considered as law: international law; customary law; versions of religious law; the lex mercatoria; the ius commune; natural law and more.78 These various manifestations of law do not all share the same basic characteristics — beyond the claim to represent legitimate normative authority — which means they cannot be reduced to a single set of elements for social scientific purposes.” in Brian Z Tamanaha, “Understanding Legal Pluralism…”, op. cit., página 396. 12 Brian Z Tamanaha, “Understanding Legal Pluralism…”, op. cit., página 396. 13 Boaventura de Sousa Santos, Toward a New Common Sense: Law, Science, and Politics in Paradigmatic Transition, Nova Iorque, Routledge, 1995, página 115.

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vos económicos/capitalistas; sistemas normativos funcionais e sistemas normativos comunitários/culturais”14. Especificamente nos estudos de Direito Comparado, já Legrand exigiu que o comparatista analisasse “as reivindicações de validade feitas e aceites pelo outro com base em premissas ontológicas-simbólicas que guiam suas declarações e ações e são tomadas por ele como verdadeiras ou corretas.”15. Decisivo nesta construção é revelar como não se pode deixar de partir do princípio da equivalência, formulado para a relação plural entre ordenamentos jurídicos16, para os estudos de pluralismo Jurídico como também para os estudos de Direito Comparado, segundo a imagem da “dupla contingência” entre Ego e Alter – Ego ignora a reação de Alter a uma determinada ação, pelo que ambos se confrontam com várias alternativas de atuação (dupla contingência)17 e a variedade de alternativas de atuação (contingência) é perspetivada por cada um dos subsistemas como liberdade, mesmo que na perspetiva do observador/recetor exterior se transforme em fonte de potencial conflito18. O pluralismo jurídico trata, assim, da perspetiva do “direito reflexivo” de Teubner, das diferentes relações de “interdiscursividade externa”, que ameaçam precisamente o fundamento da abertura cognitiva/clausura normativa e que garante a coexistência de diferentes subsistemas (normativos) sem deixar de os orientar procedimentalmente19.

14 Brian Z Tamanaha, “Understanding Legal Pluralism…”, op. cit., página 375 e ss, maxime 396. 15 Pierre Legrand, “The same and the different” in Pierre Legrand, Roderick Munday (Ed.), Comparative Legal Studies: Traditions and Transitions, Cambridge University Press, Cambridge, 2003, página 250. 16 Este princípio da equivalência tem sido central, por exemplo, na relação do contemporâneo pluralismo jurídico entre ordenamento jurídico da UE, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e dos seus Estados-membros conforme se pode ver, entre tanta outra bibliografia, em Ricardo Sousa da Cunha, Constituição e Legalidade Administrativa Cosmopolita – O Direito Administrativo Global entre a Constitucionalização e a Fragmentação, Almedina, Coimbra, 2016, página 261 e seguintes. 17 Niklas Luhmann, Soziale Systeme. Grundriß einer allgemeinen Theorie, Suhrkamp, Frankfurt, 1984, página 152 18 Ricardo Sousa da Cunha, Constituição e Legalidade Administrativa Cosmopolita…, op. cit., página 261 com referência a Niklas Luhmann, SozialSysteme..., op. cit., página 152. 19 Vide Günther Teubner, “Reflexives Recht”, ARSP, 1982, páginas 13 e seguintes, maxime páginas 58 e 59, e a resenha em Ricardo Sousa da Cunha, Constituição e Legalidade Administrativa Cosmopolita..., op. cit., página 265.

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O Argumento Jurídico Comparado para o Direito Plural Ricardo Sousa da Cunha

2.2 O Direito no Direito Comparado O ponto de partida para a construção da pluralidade jurídica em condições de equivalência é, assim, a ideia de diferença que, desde a identificação na Modernidade da soberania com sistemas jurídicos se encontra como o fundamento “ontológico” do Direito Internacional, do Direito Constitucional20 e também do Direito Comparado21. Uma comunidade política organizada sob estas condições, tão claramente moldada por uma identidade comum que privilegia a homogeneidade deliberativa em detrimento da relação com a diferença22, não teria razões para se preocupar com a inclusão dos seus membros - por isso, as relações com o Outro foram, durante muito tempo, uma questão de relações interestaduais, enquanto a ideia de uma comunidade humana foi desprezada. No entanto, não sendo possível a homogeneidade comunitária total, mais ainda, contemporaneamente em comunidades cada vez mais plurais, abertas ao mundo e relacionadas pela integração socioeconómica à escala da globalização, emergem no Estado constitucional as “lutas de reconhecimento” (Kampf um Anerkennung)23 de integração das minorias nos processos deliberativos ainda, em larga medida, na disponibilidade da regra da maioria. É, pois, um novo processo de “representação” comunitária que distingue a singularidade da diferença na identidade coletiva e que recusa a ignorância da diferença evitando que esta se converta em “invisibilidade social”24.

20 Sobre a relevância do argumento jurídico comparado no Direito Constitucional vide Ricardo Sousa da Cunha, “A argumentação jurídico-constitucional comparada sobre hierarquia normativa”, e-BLJ, n.º 4, 2019, páginas 122 e seguintes. 21 A expensas da ética da “responsabilidade” na relação com o outro de que falava Lévinas refere Sébastian Jodoin, “International Law and Alterity: The State and the Other”, LJIL, 21 (2008), páginas 1 a 28. A partir do mesmo diagnóstico traçado, as propostas de projectos “counter-violence”, alicerçados na abertura do Direito Internacional a outros sujeitos ou intervenientes, no quadro da escola do “pluralismo jurídico”, não parece ser (ou poder ser), como pretende o Autor, feita a expensas da centralidade do papel estadual no Direito Internacional, em especial, a propósito do direito de “intervenção humanitária”. 22 Carl Schmitt construiu a identidade politicamente significativa na relação com a diferença, que converte a relação com o “Outro” no fundamento de qualquer relação política – é a sua “categoria política específica”, segundo o poema de Daübler “Der Fein ist unsere eigene Frage als gestalt” [“O Inimigo é a nossa própria pergunta quando se apresenta”, numa tradução livre]. Numa crítica radical da democracia representativa liberal a “democracia exige primeiro a homogeneidade e segundo – se houver necessidade – a eliminação ou erradicação da heterogeneidade”. Carl Schmitt, 1921, The Crisis of Parlamentary Democracy, trad., 1985, página 4. 23 Axel Honneth, Kampf um Anerkennung. Zur moralischen Grammatik sozialer Konflikte, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 1994. 24 Ralph Ellison (1952). The Invisible Man (tradução Portuguesa Homem Invisível, Lisboa: 2006, 1.ª Ed., Casa das Letras), José Luis Almeida Gonçalves, Cadernos de Pedagogia Social n.º 1, “Invisibilidade e Reconhecimento: a construção da literacia moral em Pedagogia Social”, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2007.

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A relação com a alteridade encontrou a “viragem para a interpretação” (“turn to interpretation”)25 que animou a descoberta do “fundamento ontológico-existencial da linguagem”26 durante grande parte do século XX a partir da revalorização da linguagem como fundamento e limite de toda a ação humana. O resultado é sumariado numa dicotomia virtuosamente enunciada por Dérrida a partir da distinção entre différence/différance, pela qual o texto se revela sempre um presente/ausente, no qual não se encontram o seu referente, destinatário e autor27. A mediação linguística do Direito coloca problemas novos à hermenêutica tradicional28, uma vez que “compreender é sempre também aplicar”29, imprimindo sempre uma dimensão criativa distintiva que a consagra problematicamente na relação com a hermenêutica geral30. A reflexão metodológica jurídica 25 David Kennedy, “The Turn to Interpretation”, 58 South California Law Review, 1 (1985). 26 Martin Heidegger, Sein und Zeit (trad. Being and Time, Blackwell Publishing, Oxford, 1978), §34, página 203 e ss. 27 Jacques Derrida, “Différance”, Margins of Philosophy, (tradução Alan Bass), Chicago, University of Chicago Press, 1982, páginas 3 a 27. 28 No quadro da Metodologia Jurídica, ganha uma dimensão existencial a que José Lamego se refere como a “viragem ontológica da hermenêutica” José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência. Análise de uma recepção, Fragmentos, Lisboa, 1990, página 84 e nota 226a. 29 Joana Aguiar e Silva, Para uma teoria hermenêutica da justiça- Repercussões Jusliterárias no Eixo problemático das Fontes e da Interpretação Jurídicas, Almedina, Coimbra, 2011, página 304, segundo a qual a crítica assim formulada à “hermenêutica ontológica é a da potencial equivalência de todas as interpretações e da real dificuldade em encontrar critérios para aferir da respectiva validade e legitimidade. Ainda assim, não se recusa qualquer possibilidade de qualquer limite a um subjectivismo radical e incontrolável. Que Gadamer devolve na censura de uma irreprimível fidelidade a interpretação psicológica fundada por Schleiermacher. (…)”. 30 Gadamer reconstrói especificamente a hermenêutica como método de “extração de sentido” (“Auslesung”) numa “construção de sentido (“Sinngebung”), pela qual, interpretar é sempre uma ação de participar, fazer ou construir mediada linguisticamente, onde a “intencionalidade” que orienta a ação hermenêutica desde Husserl, para se afastar do psicologismo dominante à época na referência de Hopkins: “de acordo com a prerrogativa hermenêutica, não pode nunca haver uma instância de uma manifestação fenomenológica ‘ontologicamente’ neutra de entidades ou das suas estruturas essenciais (v.g. experiência vivida e a intencionalidade do seu momento consciente), uma vez que o último tem de ser sempre revelado metodologicamente no contexto do original, e primordial, modo ôntico-ontológico de encontrar as características da existência.” in B.C. Hopkins, Intentionality in Husserl and Heidegger: The Problem of the Original Method and Phenomenon of Phenomenology, Springer Science & Business Media, Dorderecht, 1993, página 203. Mesmo a quebra entre Autor e texto, preconizada por Dérrida, não elimina a intencionalidade original mesmo que a afaste do texto que se autonomiza do seu Autor. Vide Jacques Derrida, Limited Inc, Northwestern University Press, Evanston, IL, 1988, página 53, em resposta à polémica iniciada com Searle, entre outros relatada em Andreas Vrahimis, “The Intentionality of Speech Acts: A Confrontation between Ordinary Language Philosophy, Phenomenology, and Deconstruction?”, International Journal of Philosophical Studies, 23: 4, 2015 página 584 a 594 ou Peter Bornedal, Speech and system, Museum Tusculanum Press, Copenhagen, 1997, página 200.

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afasta-se, assim, da problemática da definição dos fundamentos éticos da definição e validação do Direito, para os problemas da técnica aplicativa do Direito, que reafirma a discricionariedade aplicativa (em especial, judiciária31) na decisão no caso concreto, pela qual a generalidade e abstração da norma ganha vida, precisamente, quando mediada pela hermenêutica jurídica. Realçar a natureza comunicacional do Direito revela também os seus limites intrínsecos, uma vez que a comunicação pública se desenvolve em comunidades naturais que, desde Carl Schmitt, se constroem identitariamente na relação com a diferença e privilegiam a homogeneidade deliberativa em detrimento da relação com o Outro.

2.3 O Argumento Jurídico-Comparado O Direito Comparado não escapa a estes desafios. Foi Pierre Legrand quem melhor trouxe este alerta para os estudos de Direito Comparado, avisando para a natureza constitutiva da diferença a partir do cristalino exemplo de uma “noite de estreia” que apenas o é porque há uma segunda noite de espetáculo, que assim é decisiva na definição do conceito de “noite de estreia”32. A diferença é constitutiva da identidade e, nessa medida, é também o elemento constitutivo dos estudos jurídicos e jurídico-comparatísticos. A partir da evidência de pluralidade e diferença, Legrand procura reconstruir o direito comparado num exercício hermenêutico (démarche herméneutique)33. Neste exercício, cabe ao comparatista procurar similitude e diferença (the same and the diferent), “com auto-distanciamento das suas próprias assunções e orientações (que, assim, já não procuram mais a verdade)”34 sempre com referência ao contexto cultural cultivado pelo culturalismo e mediado linguisticamente pela comunicação e seus li31 O problema da interpretação jurídica, integrada nas preocupações da Metodologia Jurídica, coloca-o Castanheira Neves na “irredutível indeterminação e insuficiência de quaisquer critérios positivos invocáveis”. António Castanheira Neves, O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, página 214.. O que é um problema especificamente jurídico, na realização do Direito, mais do que hermenêutico-linguístico. A interpretação jurídica revela-se na específica regulação de um caso concreto, pelo qual se consome a questão da hermenêutica jurídica na mais ampla definição de uma metodologia jurídica orientada à boa decisão de um caso concreto. A hermenêutica jurídica não se dirige à pura intelecção do texto da norma, mas antes à sua aplicação ao caso concreto, da qual, aliás, não se distingue. Será este o sentido do judicialismo de Castanheira Neves, que assim recusa a autonomia da questão da interpretação jurídica “como acto metódico autónomo para uma interpretação como momento da realização do direito” revelado no “sentido prático-normativo e problemático-concreto da interpretação jurídica”. António Castanheira Neves, Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, página 106. 32 Pierre Legrand, “The same and the different”…, op. cit., página 254. 33 Pierre Legrand, “Comparer” in Revue internationale de droit compare, Vol. 48 N°2, abril-junho, 1996, páginas 279 a 318, maxime 292. Para mais desenvolvimentos vide Pierre Legrand, Le Droit Comparé, 5.e edition, PUF, Paris, 2015. 34 Pierre Legrand, “The same and the different”…, op. cit., página 250

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mites usando a técnica da desconstrução. São “as exigências hermenêuticas de um pensamento não totalizante, que aceita o Outro como interlocutor (...) que permite ao Outro (o outro-na-lei) produzir sentido nos seus próprios termos e a sua óbvia natureza (obviousness)”35. Há, no entanto, um risco de sobrevalorização do contexto tal como é apontado à Critical Legal Studies que, a partir de Frankenberg, usou esta reconstrução do Direito (e do Direito Comparado) alicerçado na alteridade para, desde das limitações do funcionalismo metodológico quanto à necessidade, funcionalidade e universalidade da lei, alavancar o seu projeto político de crítica ao Direito36. Na verdade, o que com Legrand se impõe nesta reconstrução metodológica do Direito Comparado é o reconhecimento do potencial de distorção da relação com a alteridade constitutiva da análise das próprias regras de comparação, uma vez que na “escolha dos materiais pelo re-apresentador é um ato de poder, mesmo que apenas porque esses materiais sempre substituam outros materiais que são omitidos como parte da re-apresentação”37. É, por isso, decisivo o ato de seleção que move o comparatista do “modo descritivo para o modo prescritivo”38. É este o ponto de partida para a reconstrução metodológica do Direito Comparado no quadro das ciências jurídicas. A consideração do papel do outro na construção identitária foi referido por Legrand ao trabalho da desconstrução de Dérrida e é o mesmo que permite superar qualquer limite diferenciador (differenciated - differentiating)39 na argumentação jurídica, neste caso entre o 35 Ibid. A citação completa, livremente, traduzida é “The hermeneutic exigencies of a non-totalizing thought, a thought which accepts the other as interlocutor, which finds its closest grammatical analogue in the vocative, which allows the other (and the other-in-the-law) to signify according to himself and to his own obviousness, which accepts that the other is not just a modality of the self, which is, ultimately and empathically, for the other, wants to be read as an announcement and as a summation, as a demand and as a complaint and, in any event, as the principle of a comparison whereby the comparatist is prepared to engage in self-distanciation from his own assumptions and orientations (which, then, no longer partake in truth), is interested in a variety of responses to ‘reality’ and is keen to grasp the unique significance of these responses for given communities, such that his understanding of the world is stronger and that he lives more knowledgeably.”. 36 Numa abordagem em três etapas, o comparatista seria obrigado a considerar as consequências de um instituto jurídico retirado do seu contexto para, num segundo momento, analisar criticamente sua estrutura (especialmente as distinções público / privado) e aprofundar os processos de tomada de decisões legais, considerando não apenas a dicotomia direitos e deveres, mas considerando as opções políticas do sujeito comparado, para, finalmente, reintroduzir o contexto sociocultural que foi perdido ao “legalizar” um problema. Para evitar o viés do funcionalismo, Frankenberg propõe que os comparatistas entendam seus estudos como “experiência (s) de aprendizagem” que exigem “uma maior sensibilidade ao relacionamento entre o eu e o outro” e “tolerância à ambiguidade”. Gunter Frankenberg, “Critical Comparisons: Re-thinking Comparative Law”, Harvard International Law Journal, 26:2 (1985), páginas 411 a 456. 37 Pierre Legrand, “The same and the different”…, op. cit., página 254. 38 Ibid. 39 Thomas Coendet, Rechtsvergleichende Argumentation…, op. cit., página 29 e ss.

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direito interno e o direito comparado. Como o “espelho” exibido à argumentação jurídica interna, o Direito Comparado é assim construído como uma “categoria do direito nacional”, segundo Thomas Coendet 40. Decisiva aqui é a construção da “transubjectividade” de Wohlrapp pela qual o “direito comparado enriquece o ponto de vista do direito nacional (...) e permite construir novas teorias téticas ou criticar pontos de vista epistémicos ou téticos do direito nacional”41. A transubjectividade, segundo Coendet, não defende uma perspetiva estrangeira, mas promove a “transformação do ponto de vista nacional numa perspetiva nacional, através do argumento comparado”42. Este é o momento definidor do exercício comparado, segundo Coendet, quando o argumento de direito comparado é internalizado de forma definidora, que o afasta inclusivamente de receções comparada ou dos legal transplants marcando o passo de linking para o de comparing43. O exercício de comparação jurídica é, assim, orientado pela ambição pragmática de tradução do direito estrangeiro para os processos internos de argumentação jurídica, como argumento jurídico comparado, mesmo que consciente dos próprios limites internos da argumentação integrados no que o Autor, mais amplamente, constrói como uma “paragramatologia jurídica”44. Este é um exercício especialmente dirigido à argumentação jurídica levada a cabo pelos juízes, no pleno uso dos poderes hermenêuticos, mas que Coendet refere a diversos participantes no diálogo judicial, juízes, partes, peritos externos e mesmo fora internacionais, e que, como se verá adiante, é cada vez mais imposta também aos poderes separados na Constituição. Esta intencionalidade especificamente jurídica dos estudos de Direito Comparado é a marca decisiva da reconstrução argumentativa do Direito Comparado a partir da mediação linguística da construção identitária alicerçada na alteridade. Por isso o argumento jurídico comparado é especialmente decisivo na justiça constitucional e Peter Häberle o acrescenta aos elementos de interpretação jurídica de Savigny aplicados à hermenêutica constitucional45. Se o funcionalismo tinha a sua especial intencionalidade na ambição de “social engeneering” importada para os estudos de Direito Comparado, a crescente relevância da integração normativa global no quadro da reconstrução argumentativa do Direito revela o papel comprometido dos argumentos de Direito Comparado 40 Thomas Coendet, “Legal Reasoning: Arguments from Comparison”,…, op. cit., página 493. 41 Ibid, página 494 e ss. 42 Ibid, página 496. 43 Ibid, página 505. 44 Thomas Coendet, Rechtsvergleichende Argumentation, op. cit., página 128 a 132. 45 Peter Häberle, “Grundrechtsgeltung und Grundrechtsinterpretation im Verfassungsstaat – Zugleich zur Rechtsvergleichung als ‘fünfter’ Auslegungsmethode, Juristenzeitung (JZ), 1989, página 913 e seguintes.

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internalizados, como apontou Coendet, numa das dimensões relacionais plurais contemporâneas que impõem os estudos de Direito Comparado.

3. A Comparação no Direito Comparado A crescente relevância dos estudos de Direito Comparado como parte da própria argumentação jurídica renova a importância das preocupações metodológicas comparatísticas, no entanto, já não dirigidas à discussão da sua autonomia dogmática, mas orientadas ao rigor da técnica46. É a específica intencionalidade jurídica dos estudos comparatísticos, dirigidos a integrar elementos comparados no processo argumentativo de realização do Direito, que lhes garante um lugar entre as disciplinas jurídica47, sendo, por isso, internamente, mais relevante a preocupação em torno do rigor na técnica usada num exercício cada vez mais relevante pragmaticamente do que a discussão em torno da sua soberania dogmática.

3.1 O Funcionalismo Quando, em 1971, Zweigert e Kötz postularam o monopólio metodológico48 do funcionalismo para o Direito Comparado49, no contexto cientificista da época que empregava este método em diferentes ramos do saber, alicerçaram-no na ideia da função desempenhada por diferentes soluções jurídicas (comparáveis) em cada sistema jurídico para problemas sociais comuns. Esta solução metodológica permitiu ultrapassar as limitações da comparação de normas, leis ou institutos jurídicos para comparar soluções jurídicas para problemas integradas num determinado contexto, o que naturalmente obriga a ponderar vários elementos nessa comparação que não apenas a norma, lei ou instituto jurídico. O método funcionalista aplica ao Direito, pelo Direito Comparado, a ideia de tertium comparationis – de Radbruch em 1905 se referia já a uma “Kantian version of an ideal law” – pela qual se constrói um “terceiro comparado” a cada um dos comparanda: comparatum e comparandum. Este terceiro é a qualidade comum de dois comparados como ilustrado na figura de estilo da metáfora na literatura. Esta criação ideal ultrapassa as limitações da comparação de uma

46 Simone Glanert, “Method?”, op. cit., páginas 61 e ss. 47 Patrícia Jerónimo, Lições de Direito Comparado, op. cit., página 11. 48 Do grego, methodos (μέθοδος) – meta, que significa através de, por meio, e de hodos, que significa via, caminho. 49 Zweigert and Kötz, An Introduction to Comparative Law, OUP, Oxford, 1998, página 33.

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norma, lei ou instituto jurídico, que podem, por si só, não ser comparáveis50, permitindo identificar as respetivas semelhanças e as diferenças - a praesumptio similitudinis. O método funcionalista é, ainda hoje, decisivo no delicado equilíbrio entre Direito e Comparação, que pondera as virtudes e limites do método funcionalista perante as exigências da específica intencionalidade jurídica dos estudos de Direito Comparado anteriormente referidas.

3.2 Os limites do funcionalismo metodológico Entre as críticas ao método funcionalista no Direito Comparado, Ralph Michaels à partida refere-se à impossibilidade de se unificar sob uma só ideia as diferentes modalidades de funcionalismos metodológicos51, que assim refere ao: finalismo, adaptacionismo, funcionalismo clássico, instrumentalismo, funcionalismo refinado, funcionalismo epistemológico, funcionalismo de equivalência (apontado como o preferido do Autor) e, finalmente, o uso de todos eles. Entre os limites apontados ao método funcionalista no Direito Comparado, é decisivo considerar que o próprio pressuposto em que assenta esta opção metodológica é discutível, na ideia de que todos os problemas sociais têm soluções jurídicas comparáveis. Em primeiro lugar, o que uma comunidade politicamente organizada perspetiva como problemático e merecedor de solução jurídica pode não o ser para outra e a comparação pode nesse caso redundar numa exportação legislativa, como se verá adiante a propósito dos “transplantes” jurídicos, especialmente, problemáticos na ajuda internacional no direito ao desenvolvimento. Em segundo lugar, o mesmo problema pode ter soluções diferentes, mais ou menos complexas, que não são comparáveis – por exemplo, na comparação da efetivação de responsabilidade civil nos acidentes rodoviários não é possível comparar o regime jurídico do seguro automóvel obrigatório com ordenamentos jurídicos que não o têm. Estas preocupações, no entanto, não parecem suficientes para recusar a utilização do método funcionalista como 50 Assim, se o comparatista quiser, por exemplo, comparar a solução normativa dada em diferentes ordenamentos jurídicos para o problema da efetivação da responsabilidade civil por acidentes automóveis, não pode apenas comparar o regime jurídico da transferência de responsabilidade para sistemas de seguro obrigatório, uma vez que nem todos os ordenamentos jurídicos têm essa solução. Por isso, segundo o método funcionalista, partindo do problema que é a efetivação de responsabilidade civil por acidentes automóveis é possível comparar as diferentes soluções jurídicas dadas (os comparanda) pela extração do elemento comum entre ambos (o tertium comparationis) para a criação de uma ideia abstrata de efetivação responsabilidade civil nos acidentes automóveis. Esta solução metodológica permite, inclusivamente, ultrapassar as diferenças que a tradução determina em diferentes regimes jurídicos – importa à partida lembrar que contrat em francês não tem as mesmas consequências jurídicas que o contract em língua inglesa e Agency em inglês não tem o mesmo significado jurídico que agência em português. 51 Ralf Michaels, “The Functional Method of Comparative Law” in Mathias Reimann e Reinhard Zimmermann (Org.) The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford University Press, Oxford, 2006, páginas 339 e ss, maxime 343 e ss.

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técnica do Direito Comparado, uma vez que qualquer uma delas alerta é para a necessidade de um especial rigor na aplicação do funcionalismo comparatista, em particular na delimitação dos comparanda, cuja comparabilidade tem de ser previamente assegurada. Entre os limites do método funcionalista, criticam-se ainda alguns traços que são fruto do contexto cientificista da época, em especial na opção metodológica sobre o próprio conceito de Direito, ainda, em larga medida, essencialista dirigido a captar a “natureza das coisas”. Critica-se ao funcionalismo, em especial na versão de Zweigert, a perspetiva do Direito como “engenharia social”52 (“Law is social engineering”), a partir da qual se construiu o Direito Comparado como instrumento de avaliação da “melhor lei” (better law) dirigido por uma ambição universalizadora de soluções jurídicas parcelares, construída a partir da sobrevalorização nos estudos de Direito Comparado das similitudes entre os comparanda. Para os juristas, os estudos de Direito Comparado exclusivamente perspetivados a partir do funcionalismo metodológico original seriam insuficientemente normativistas porque demasiado factuais, para os cultores do funcionalismo sociológico seriam excessivamente normativistas porque insuficientemente factuais. A proximidade do funcionalismo da metodologia das demais ciências sociais, em especial da sociologia, que agora perde terreno para economia e a Análise Económica do Direito, também contribuiu para essas críticas. Os estudos de Direito Comparado feitos a partir desta perspetiva são, ainda hoje, criticados como conservadores ao justificar diferença, ao mesmo tempo que ativistas ao exportar soluções - em qualquer dos casos antidemocráticos. Esta crítica, feita a Zweigert, ressurge hoje em dia, nos estudos do Direito ao desenvolvimento – promovido, entre outros, pelos projetos do Banco Mundial, por exemplo “Doing Business”53. Grande parte destas críticas ao uso do método funcionalista no Direito Comprado são críticas ao conceito de Direito pressuposto pelo método funcionalista no Direito Comparado, dificilmente compatibilizado com a viragem linguística da filosofia hermenêutica e a revalorização da argumentação como método do Direito, que, em especial a partir do final do século XX, marcou metodologicamente a ciência do Direito, como se viu já. Já assim não é partindo do traço constitutivo da diferença na identidade, referido por Legrand aos estudos de Direito Comparado, que conduz à proposta de reconstrução do Direito Comparado no quadro da argumentação jurídica aqui já prosseguida, evidência da específica intencionalidade jurídica dos estudos de Direito comparado, proposta 52 Zweigert e Kötz, An Introduction to Comparative Law…, op. cit., página 45. 53 Ralf Michaels, “The Functional Method…”, op. cit., página 351, a propósito do instrumentalismo como método funcionalista do Direito Comparado.

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por Thomas Coendet a partir da desconstrução da divisão positivista que trata qualquer argumento de Direito Comparado como um mero facto e o integra como elemento constitutivo (identificador) da argumentação jurídica.

3.3 O Funcionalismo como técnica do Direito Comparado A querela em torno da autonomia metodológica dos estudos jurídicos-comparatísticos construída a partir do funcionalismo sociológico não é, pois, já decisiva. Necessário é sistematizar o que fica para o método do Direito Comparado entre as virtudes e as limitações do método funcionalista no Direito Comparado e a renovada centralidade dada pela sua integração na argumentação jurídica a partir da construção linguística da diferença. Já se enunciou como esta ponderação se faz sempre num delicado equilíbrio entre a específica técnica do Direito Comparado e a finalidade jurídica dos estudos de Direito Comparado na metódica jurídico-argumentativa que concentra atualmente as sugestões metodológicas do funcionalismo no rigor da técnica do Direito Comparado, mais do que na sua autonomia epistemológica. Neste exercício têm emergido diversas propostas. Mark Van Hoeck aponta como a escolha do método depende dos objetivos formulados por qualquer estudo comparatístico de entre a “caixa de ferramentas” (“toolbox”) dos comparatistas54. Na reconstrução contemporânea do método funcionalista no Direito Comparado, Ralph Michaels propõe uma perspetiva construtivista, a partir da asserção de Luhmann segundo o qual “the funcionalist method is a comparative one”55, para defender o método de equivalência funcionalista (ou

54 Mark Van Hoecke, “Methodology of comparative legal research”, Law and Method, 2015, páginas 1 a 35. Segundo este Autor, o método funcionalista é ainda o método dominante do Direito Comparado, fundando a sua reclamação por autonomia dogmática, através da análise de um problema social real e a solução em diferentes jurisdições - os mesmos problemas podem ter soluções semelhantes em lugares e tempos diferentes; o método analítico analisa conceitos e regras legais (por exemplo, propriedade) para identificar traços comuns ou variáveis; o método estrutural concentra-se na estrutura da lei ou dos elementos reconstruídos por meio de uma abordagem analítica; o método histórico quase sempre será uma parte necessária dos métodos usados ​​para entender a solução legal e suas origens; o método direito-no-contexto concentra-se no contexto social atual da lei (cultura, economia, psicologia, religião). 55 Ralf Michaels, “The Functional Method…”, op. cit., página 359.

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funcionalismo de equivalência)56. Em comum, todas partem da recusa das finalidades utópicas do Direito Comparado, como indicou já Carlos Ferreira de Almeida, que aqui se preferem referidas ao desenvolvimento de tópicos especificamente jurídicos, com Coendet. O funcionalismo considerado argumentativamente visa a reconstrução (crítica) do Direito Comparado no quadro da argumentação jurídica, evidência da específica intencionalidade jurídica dos estudos de Direito comparado. O funcionalismo é uma relevante técnica do método argumentativo do Direito Comparado, uma vez que permite construir através da identificação do tertium comparationis (terceiro comparado) os tópicos argumentativos em torno dos quais se desenrola a argumentação jurídica comparada. A comparação do resultado mediado linguisticamente da comunicação pública em comunidades cuja identidade é construída com base na relação com a diferença (com Schmitt) integra na sua própria argumentação (jurídica) o “Outro” pelo Direito Comparado, conforme ensina Thomas Coendet a partir da desconstrução da divisão positivista que trata qualquer argumento de Direito Comparado como um mero facto. Este exercício mantém permanentemente ativo o alerta de Legrand, segundo o qual os estudos de Direito Comparado constituem sempre um “ato de poder”, comprometido na “reapresentação” e reconstrução identitária do próprio comparatista que, assim, passa do “modo descritivo para o modo prescritivo” comparar é, assim, também sempre relacionar de tal forma que se limita sempre a ambição de neutralidade típica do comparatista57.

56 O funcionalismo de equivalência serve uma função epistemológica, para compreender o pluralismo jurídico do mundo em que vivemos, vista de fora, mas sem ambição essencialista de captura a “natureza das coisas”, que exige uma clara definição de “função”; uma função comparativa, pela qual se formula um elemento invariável, terceiro aos elementos comparados (Tertium Comparationis), que aponta similitudes e diferença, exigindo uma clara escolha dos objetos a comparar na comparação de funcionais equivalentes; que não sobrevaloriza a praesumptio similitudinis porque considera a diferença do contexto cultural apenas admitindo comparações entre o que é comparável, sem pretensões universalistas; que procura construir um sistema de comparação que sistematiza, alicerçado na similitude dos problemas existentes em diferentes sociedades, as relações funcionais entre problemas e respostas e na equivalência entre estes; que não serve para avaliar a “melhor lei” (better law), ou para uma ambição universalizadora, mas permite uma função critica, porque vista de fora, de soluções externas e internas, nas quais se valoriza tanto a similitude quanto a diferença de problemas e soluções construídas funcionalisticamente no respetivo contexto (cultura). Ibid, página 381. 57 Sobre a ideia de neutralidade vide Bruce A. Ackerman, “What Is Neutral about Neutrality?”, Ethics 93 (January 1983), página 372 a 390, onde se lê logo no proémio “Neutrality is not just another political slogan. If taken seriously, it will destroy the most distinctive feature of politics: the impossibility of reducing it to a neutral science of social engineering”.

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4. O Direito que viaja pelo Direito Comparado A partir da perda das finalidades utópicas do Direito Comparado, em especial do método funcionalista, e da aceitação de uma específica intencionalidade jurídica nas suas finalidades, os estudos de Direito Comparado tomam parte na argumentação jurídica dirigida ao desenvolvimento do Direito. Por esta via, o Direito Comparado converte-se no veículo privilegiado para um Direito que viaja, no espaço e no tempo, entre diferentes soluções normativas para resolver problemas que podem ser semelhantes, comuns ou comparáveis, mais ainda, em tempos de Globalização socioeconómica. Este é, afinal, o cerne da disciplina de Direito Comparado, ultrapassados os excessos utópicos do método funcionalista e as preocupações com a sua autonomia metodológica.

4.1. Da possibilidade dos transplantes jurídicos São diferentes as expressões usadas para designar esta realidade do Direito viajante, muitas delas representando à partida uma posição comprometida sobre a sua bondade - “transplante” (Graziadei), “implante” (Jerónimo), “transferência” (Frankenberg) “circulação” (Wise), “receção”, “transposição”, “influência” ou “inspiração”. Em particular, na opção pela metáfora dos “transplantes” jurídicos para designar este Direito que viaja, vai muitas vezes implicada uma valoração crítica sobre a imposição de soluções jurídicas que muitas vezes não tomam em consideração quaisquer especificidades locais, que, apesar de não ser o papel dos estudos de Direito Comparado, não podem deixar de ser avaliados da perspetiva da perfeição dos processos de deliberação normativa, neste momento ainda da sua própria democraticidade interna. Atualmente, o movimento de “better law”, já criticado entre as finalidades utópicas do funcionalismo metodológico no Direito Comparado, parece renascido em diversos programas de ajuda ao desenvolvimento, do Banco Mundial, ao FMI ou às próprias agências da ONU (como o PNUD), e promovido também pela exportação de uma pressão pela eficiência económica das soluções normativas de inspiração da económica liberal agora promovida ao nível global (e que cada vez mais parece impor a solução com melhor performance na Análise Económica do Direito). O papel desempenhado pelos estudos de Direito Comparado neste exercício leva Veronica Corcodel a apresentar a construção do Direito Comparado durante o século XX como uma “ambivalente apologia social pela Modernização” no período anterior à II Guerra Mundial e no período subsequente como “disfarçada apologia ambivalente pela transformação liberal”58. 58 Veronica Corcodel, Modern Law and Otherness - The Dynamics of Inclusion and Exclusion in Comparative Legal Thought, Studies in Comparative Law and Legal Culture series, Elgar, Cheltenham, 2019, respetivamente página 95 e seguintes e 144 e seguintes.

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No entanto, se é real o risco de estes propósitos se transformarem num projeto político de colonização jurídica, não parece caber entre as preocupações metodológicas do Direito Comparado desenvolver esta crítica, uma vez que este é um risco inerente a um diálogo jurídico cosmopolita do qual o Direito Comparado é veículo privilegiado como elemento participante da própria natureza dos processos dialógicos de comunicação jurídica transnacional. Aliás, esta é uma crítica que tanto poderia ser formulada aos transplantes impostos como àqueles voluntários, apoiados ou não externamente, e contra os quais não se podem brandir as limitações metodológicas do Direito Comparado, mas antes se devem reforçar as suas exigências de rigor. Assim, uma qualquer posição crítica ou laudatória, com referência ao cunho de diferentes expressões, é inconsequente da perspetiva do Direito Comparado, metodologicamente dirigido à integração na argumentação jurídica de elementos, precisamente, para lá da consideração como meros factos constatados na comparação de “Direitos”. Aliás, a generalização de soluções normativas parcelares é a regra mais do que a exceção na História do Direito e do Direito Comparado. Na verdade, foi este movimento de permanente tensão que permitiu a comunicação jurídica global, no Direito Comparado construída em torno dos grandes sistemas jurídicos-comparados, famílias jurídicas ou tradições. Muitas vezes, esta tensão é um conflito jurídico-político em comunidades politicamente organizadas entre modelos de desenvolvimento, como já foi também historicamente nos ordenamentos jurídicos estaduais europeus. Se, como já se viu, Aristóteles estudou 158 Constituições nas cidades-estado gregas da Antiguidade Clássica na investigação para o seu Tratado sobre a Política59, também a ambição imperial romana divulgou por toda a Europa soluções normativas que começaram por ser as soluções parcelares de um povo organizado politicamente na Península Italiana e hoje dominam ordenamentos jurídicos em todo o mundo60. A posição afirmada anteriormente de integração dos resultados dos estudos de Direito Comparado como tópicos argumentativos do diálogo jurídico interno leva a que se questione a própria eficácia dos referidos “transplantes” jurídicos. Parte da doutrina recusa mesmo a possibilidade destes transplantes jurídicos, como da perspetiva do “culturalismo” faz Pierre Legrand quando se refere à “impossibilidade” de transplantes jurídicos sempre dependentes da

59 René David, Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado, Lisboa, Meridiano, 1972, página 9 apud Patrícia Jerónimo, Lições de Direito Comparado, op. cit., página 11. 60 O Direito Romano teve durante séculos âmbito pessoal que foi, no entanto, gradualmente perdendo força, seja pela sua adoção pelos povos conquistados das soluções do Direito Romano, seja pela universalização da cidadania Romana outorgada pelo Imperador Caracala em 212 BC. “In orbe romano omnes qui sunt ex constitutione imperatoris Antonini cives romani effecti sunt” in Digesto, I, 5, 20, 17.

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relação com o contexto cultural61, ou Michelle Graziadei quando reconhece que transplantes implicam sempre uma incorporação à realidade normativa que tem o condão de sempre reagir62. A partir do exemplo da quase-universalização da codificação civil com referência ao modelo do Código Civil francês, não deixa de ser significativo apontar como esta codificação foi feita em ordenamentos jurídicos estaduais-formais emergentes de forma a incluir normas do direito da família e sucessões que não determinaram que deixassem de vigorar, pelo menos por este efeito, as normas consuetudinárias relativas às relações familiares que sobreviveram desde antes do período colonial, toleradas ou até admitidas nesse caso. Exemplo deste movimento é a aprovação e entrada em vigor do Código Civil em Timor-Leste que, apesar de prever a existência de um “casamento barlaqueado monogâmico” no artigo 1478.º, num esforço de localização da tradição codificadora civilista de inspiração europeia-continental, não encontra aplicação prática, mantendo-se a normatividade consuetudinárias nas relações familiares locais. A verdade é que dos exemplos referidos dificilmente se encontram transplantes jurídicos totais, revelando-se sempre instâncias internas de mediação que funcionam como crivo doméstico ao transplante estrangeiro – na sucessão de Estados é a nova Constituição, nos regimes coloniais são as exceções legais ou reais à aplicação da lei colonial, em todos os casos, uma qualquer solução legislativa é incapaz de determinar totalmente a prática administrativa ou judicial.

4.2 O argumento jurídico comparado in action Já houve oportunidade de apontar como os diferentes poderes separados pela Constituição reagem de diferente forma a impulsos externos oriundos da realidade jurídica crescentemente plural63. O mesmo se verá que sucede com a incorporação de argumentos jurídicos comparados.

4.2.1 O Direito Comparado e a Codificação O movimento codificador de inspiração revolucionária constitucional-liberal é a expressão, ainda hoje, mais visível do fenómeno de permanente tensão entre soluções jurídico-políticas. A partir da redução a escrito da limitação do 61 Pierre Legrand, “The impossibility of ‘legal transplants’”, Maastricht Journal of European & Comparative Law, vol. 4, 1997, página 111 e seguintes. 62 Michele Graziadei, “Comparative Law as the Study of Transplants and Receptions”, in Mathias Reimann and Reinhard Zimmermann (eds), The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford, Oxford University Press, 2008, página 441 a 475, maxime página 469. 63 Em especial com referência à receção constitucional dos impulsos do Direito Administrativo Global vide Ricardo Sousa da Cunha, Constituição e Legalidade Administrativa Cosmopolita..., op. cit., passim.

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poder na Constituição e alicerçado no exemplo legitimador do Corpus Iuris Civilis para a aprovação do Código Civil, a codificação foi o projeto político do liberalismo revolucionário que expressou a preferência revolucionária pela maior certeza e segurança jurídica do texto codificado, legitimado democraticamente, e pela redução do juiz à “boca da lei”, o poder nulo, oposto ao romantismo da Escola Histórica do Direito que o preferia como a melhor expressão da cultura jurídica do “espírito do povo”. A primeira “exportação” (transplante) deste movimento foi mesmo a ideia de Constituição, como documento escrito no qual se consagra a proteção dos Direitos Fundamentais e a separação dos poderes, nos termos do artigo 16.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, como de Portugal alguns suplicavam a Napoleão uma “Constituição como a da cidade de Varsóvia”64. A codificação no Código Civil das regras de interpretação desenvolvidas por Savigny é o exemplo paradigmático de uma apropriação histórica (transplante), esta não sem um traço de ironia. A recusa da organização do poder no Ancient Regime é a primeira linha orientadora do poder revolucionário que favoreceu a ação da burguesia comprometida com o projeto político liberal e a maior certeza e segurança jurídica da codificação contra o desenvolvimento jurisprudencial do Direito no quadro do pluralismo jurídico vigente ainda, por exemplo, no século XVIII português. Este foi um projeto político que se “generalizou”, primeiro por toda a Europa, em parte por via das invasões francesas, depois por todo o mundo pelo colonialismo ultramarino das potências europeias. É muito significativo o exemplo da influência do Code Civil francês no Código Civil português de 1867 (de Seabra) e, por essa via, nos Códigos Civis de diferentes Estados emergentes da descolonização portuguesa. De forma mais imediata e direta, o Código Civil português foi aplicado nos espaços sujeitos à presença colonial portuguesa. Esta modalidade de transplante imposto externamente, no entanto, não era total porque foi sendo garantida, tácita ou expressamente, a existência de regime jurídicos pessoais65 que autorizavam a manutenção de normação própria, por exemplo, em matérias como o direito da família e das sucessões, e que permitiu a manutenção até hoje de diferentes exemplos jurídicos plurais nos Estados de língua portuguesa – por exemplo, o barlaque no casa64 António Manuel Hespanha, “O Constitucionalismo Monárquico Português...”, op. cit., página 477 e seguintes. 65 Relativamente à presença colonial portuguesa, estes estatutos seriam o reverso da discriminação prevista nas diferentes modalidades de estatuto jurídico dos “indígenas” (Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique, de 1926, o Acto Colonial de 1930, a Carta Orgânica do Império Colonial Português e Reforma Administrativa Ultramarina, de 1933 e o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, aprovado pelo Decreto-lei de 20 de Maio de 1954) até que foi abolido em 1961. Sobre esta questão vide Maria Paula G. Meneses, “O ‘Indígena’ Africano e o Colono ‘Europeu’: a construção da diferença por processos legais” e-cadernos CES, n.º 7, 2010, páginas 68 e seguintes.

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mento em Timor-Leste. Esta ponderação plural existe ainda hoje, por exemplo, no Brasil onde subsiste uma modalidade de “Estatuto do Indígena”. A específica realidade brasileira revelou também uma renovada tensão interna entre o movimento codificador liberal e a Escola Histórica do Direito na “viagem” da ideia da codificação do direito civil para o Brasil, sob a forma do Código Civil brasileiro. O projeto de Teixeira de Freitas preferia a adaptação à realidade do “espírito do povo” brasileiro que era preocupação típica da Escola Histórica do Direito, nisso criticando a solução do Código de Seabra aprovado em Portugal em 1867. Durante anos foi discutido um projeto com milhares de artigos que, no entanto, acabou por ser abandonado e levou à aprovação em 1916 do Código Civil de Clóvis Beviláqua, com pendor mais europeu continental66. O Código de Seabra vigorou em Portugal até 1966, mas vigora ainda hoje em Goa, por decisão soberana da União Indiana na sucessão do Estados subsequente ao fim da presença portuguesa na Índia em 1961. A sucessão de Estado é um dos exemplos de aplicação de normas estrangeiras, neste caso já não imposto, mas um transplante voluntário por decisão soberana do Estado sucessor. Além do caso da vigência contemporânea do Código Civil de Seabra, já revogado em Portugal, em Goa, que é território de um Estado soberano estrangeiro, outros exemplo de sucessão de Estados são bem sugestivos. Em Timor-Leste, a restauração em 20 de Maio de 2002 da independência originalmente declarada em 1975 levou à necessidade de definir o ordenamento jurídico subsidiariamente vigente enquanto o mais novo Estado da CPLP e do século XX não aprovasse a sua própria legislação. A previsão constitucional, que no artigo 165.º estabelece a aplicação do Direito anterior a 20 de Maio de 2002, não esclarece se esta solução se refere à legislação indonésia resultante de uma ocupação nunca reconhecida juridicamente mas vigente de facto por via da ocupação, ou à legislação portuguesa de 1975 no momento da colonização ou de 2002 no momento da restauração da independência enquanto potência reconhecida internacionalmente como responsável pelo exercício do direito de autodeterminação dos timorenses. O Tribunal de Recurso preferiu a segunda opção67, mas em resposta a esta opção o legislador ordinário aprovou a Lei n.º 10/2003, de 20 de Novembro, estranhamente adjetivada de interpretativa (porque certamente não o poderia ser da Constituição, uma vez que esse exercício está vedado ao legislador ordinário) no 66 Entre outros, Thiago Reis, “Teixeira de Freitas leitor de Savigny”, Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, Paper no 121 (Mar. 2015). 67 Decisão do Tribunal de Recurso, de 15 Julho de 2003, no processo 3/2002 (Armando dos Santos), no qual o Tribunal se referiu a uma anterior decisão de um Tribunal Norte-Americano do District of Columbia, que aplicou a legislação portuguesa na ação civil de dois cidadãos timorenses contra um general indonésio. Sobre esta questão ver o detalhado relatório da Justice Sector Monitoring Programme in http://jsmp.tl/wp-content/uploads/2012/05/Report-on-the-Court-of-Appeal-Decision-in-the-Case-of-Armando-dos-Santos-2003.pdf, consultado em 18/03/2020.

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sentido de determinar a aplicação subsidiária do Direito indonésio, tendo o Tribunal de Recurso escolhido não questionar a constitucionalidade desta solução. O Parlamento Nacional preferiu a certeza e segurança jurídica com a promoção voluntária da sobrevigência da legislação indonésia de facto vigente em 2002, apesar de se tratar da legislação do ocupante violento contra o qual se tinha levantado a luta de independência nacional. Este transplante, mais uma vez, não é total, uma vez que se mantém sempre o crivo constitucional na aplicação da legislação subsidiária – razão pela qual se entende dever distinguir a vigência do direito subsidiário da sua mera aplicabilidade no preenchimento hermenêutico das lacunas do ordenamento jurídico. O diálogo jurídico que incorpora internamente argumentos comparados revaloriza a realização de estudos de Direito Comparado nos procedimentos legislativos contemporâneos, nomeadamente invocando soluções normativas de prestígio que legitimem as soluções encontradas no exercício do poder legislativo. Se a “Legisprudência” tem procurado, a partir da reflexão de Wintgens, construir uma “teoria normativa da legislação”, a adequada consideração do papel aqui desempenhado pelo Direito Comparado, pode ser designada de “Legisprudência Comparada”68.

4.2.2 O Direito Comparado na Jurisprudência Uma das mais relevantes pistas a prosseguir na revalorização da Comparative Legal Reasoning de Thomas Coendet, aquela para a qual foi, aliás, desenvolvida, prende-se com o valor a dar, judicialmente, aos argumentos de Direito Comparado no sentido amplo que lhe dá a adequada consideração da alteridade na relação entre ordens jurídicas.

4.2.2.1 O maior sucesso dos transplantes judiciais A solução casuística das lacunas do ordenamento jurídico facilita a adaptação das soluções jurídicas estrangeiras a uma nova realidade factual – razão pela qual os “transplantes judiciais” tendem a ser mais facilmente incorporados do que os “transplantes legislativos”. Esta é também uma das lições do funcionalismo no direito comparado que prefere analisar a função que cada solução 68 O ponto de partida da Legisprudência encontra-se dirigido a garantir a possibilidade de exercício individual da liberdade a partir das promessas feitas pela teoria do contrato social de Hobbes e Locke, num exercício que garante a legitimidade da limitação da liberdade pelo indivíduo e das limitações do exercício racional da função legislativa do Estado, a partir das quais Witgens coloca ao Estado-legislador as mesmas questões formuladas pela ciência do Direito do ponto de vista do juiz: “Em que sentido tem o legislador de considerar a sistemática do ordenamento jurídico? O que é uma norma válida? Quais os significados podem ser criados e como?”. Por todos, vide Luc Jean Wintgens, “Legitimacy and Legitimation from Legisprudential Perspective”, in Wintgens (ed.). Legislation in context: essays in legisprudence, Ashgate, 2007, páginas 3-42.

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normativa cumpre num determinado sistema normativo, um propósito mais facilmente cumprido com referência à solução judicial de um caso que sempre pondera o contexto social, constitucional e jurídico próprio. Exemplo suficiente desta afirmação é a divulgação da ideia de hierarquia normativa sob a Constituição, que não constava das Constituições proclamatórias revolucionárias, mas se impôs casuisticamente a partir da solução dada pela US Supreme Court no caso Marbury v Madison de 180369, no qual se construiu o controlo judicial da constitucionalidade das leis. Esta solução dada pela USSC não nasceu de geração espontânea e é ela própria o resultado de um transplante jurídico de origem judicial, uma vez que se aponta a primeira referência ao problema da fiscalização da constitucionalidade das leis à solução do Bonham Case pelos tribunais britânicos em 161070. A afirmação do controlo judicial da constitucionalidade das leis a partir de um caso concreto é típica do sistema jurídico Common Law, mas fez o seu caminho até ao texto de várias Constituições e é hoje um traço inquestionável do Direito Constitucional em diversos ordenamentos jurídicos. Em Portugal, esta solução passou a constar a partir do texto da Constituição de 1911, também aqui por “influência” do texto da Constituição brasileira de 1891, e na versão atual da CRP de 1976, em particular com as alterações da revisão de 1982, foi conjugada com as “influências” da Constituição Austríaca de 1929 que, a partir de Kelsen e da sua teoria do positivismo normativista, construiu um sistema de fiscalização judicial da Constituição com um Tribunal Constitucional com poderes de fiscalização abstrata e no topo da fiscalização difusa, concreta. Semelhante problema da hierarquia normativa se colocou ao TJUE na decisão do primado do Direito da UE no caso Costa /ENEL, primário e secundário, sobre o Direito dos Estados-membros e se tem repetido integrando outros compromissos como da Carta da ONU71. Mais recentemente, em Timor-Leste, problema comparável colocou-se na relação hierárquica entre atos normativos sucessivos aprovados pelo mesmo Parlamento Nacional72.

69 Marbury v. Madison, 5 U.S. (1C) 137 (1803) 70 8 Co. 114a, 77 Eng. Rep. 646 (1610) e 2 Brownl. 255, 77 Eng. Rep. 646 (1610) in George P. Smith, II, “Marbury v. Madison, Lord Coke and Dr. Bonham: Relics of the past, guidelines for the present-judicial review in transition?”, University of Puget Sound Law Review, 1979, Vol. 2, página 255 e seguintes. 71 Ricardo Sousa da Cunha, ““The Security Council’s Chapter VII action on Terrorism in light of the United Nations’ normative powers”, Tékhne, Edição Temática de Direito, Vol. VIII, n.º 13, Junho de 2010, página 241 e seguintes. 72 Ricardo Sousa da Cunha, “A evolução do Sistema de Governo em Timor-Leste, do texto à prática constitucional”, e-BLJ, Ano 1, 2018, n.o 1, páginas 171 a 194.

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4.2.2.2 A Jurisdição Constitucional O argumento jurídico comparado é especialmente decisivo na justiça constitucional73. Peter Häberle acrescenta, como se viu já, o Direito Comparado aos elementos de interpretação jurídica de Savigny aplicados à hermenêutica constitucional74. A assinalada relação em comum dos estudos de Direito Constitucional e de Direito Comparado com a alteridade constituinte, definidora da própria identidade, como apontada por Schmitt e Legrand, convergem na construção do Direito Constitucional Comparado. Como se viu a ideia de Constituição e da justiça constitucional são expressão de soluções jurídicas comparadas que “viajam”. A argumentação jurídico-constitucional em torno da hierarquia normativa intrassistemática pode parecer, dessa perspetiva interna, sempre uma discussão sui generis, mas revela-se a unidade comparada de argumentos como o consequencialismo apontado por MacCormick ao caso Marbury v. Madison da US Supreme Court e ao Acórdão Costa / ENEL do Tribunal de Justiça da UE75, mas que pode ser encontrado em semelhante jurisprudência constitucional76. Se a Constituição foi um dos primeiros transplantes saído da codificação do movimento constitucional pós-Revolução Francesa, não surpreende a unidade da argumentação jurídico-constitucional sobre a hierarquia normativa interna, aqui apontada com referência aos elementos consequenciais. A argumentação jurídica constitucional é, assim, sempre comparada, mais bem-sucedida judicialmente mas, como se viu no último ponto, nem sequer limitada a esse espaço.

4.2.2.3 A Jurisprudência Multicultural A jurisprudência multicultural77 procura integrar nas decisões judiciais de um determinado ordenamento jurídico as pistas da multiculturalidade (a cultural exception ou cultural defense), nessa medida impondo o prévio controlo de Direito Comparado de uma ordem jurídica sobre outra ordem jurídica, num exercício relacional também ele muito próximo do objeto de estudo do plura73 André Rufino Vale, Argumentação Constitucional – Um estudo sobre a deliberação nos Tribunais Constitucionais, Almedina, Coimbra, 2016, página 134 e seguintes. 74 Peter Häberle, “Grundrechtsgeltung und Grundrechtsinterpretation im Verfassungsstaat...”, op. cit., página 913 e seguintes. 75 Neil MacCormick, Rhetoric and the Rule of Law – a theory of legal reasoning, OUP, Oxford, 2010, página 109. 76 Ricardo Sousa da Cunha, A argumentação jurídico-constitucional comparada sobre hierarquia normativa ..., op. cit., página 122 e seguintes. 77 Patrícia Jerónimo, “Direitos humanos e diferença cultural na prática dos tribunais”, in Patrícia Jerónimo (Org.), Temas de Investigação em Direitos Humanos para o Século XXI, Braga, Direitos Humanos - Centro de Investigação Interdisciplinar, páginas 303 e seguintes.

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lismo jurídico. Este é um dos espaços onde se cruzam, precisamente, sobre o mesmo objeto de estudo as duas disciplinas. O exercício aqui implicado é um exercício jurídico, com a sua intencionalidade e método próprio, não limitado à comparação de ordens jurídicas para aferir da atendibilidade da exceção cultural invocada, mas que tem uma dimensão aplicada à solução jurídica de um caso concreto. De uma perspetiva jurídico-constitucional, este exercício comparado sensível à diferença cultural é uma imposição do conflito principialista entre princípio da constitucionalidade e princípio do pluralismo jurídico, na CRP apontado como marca genética da sua abertura internacional, europeia e multicultural, por António Manuel Hespanha78. Ora, sabe-se já como a solução de qualquer conflito de princípios procura assegurar a máxima efetividade de cada um dos princípios por graus, dirigida a garantir o máximo efeito de cada um dos princípios restringindo no mínimo possível o outro, ao contrário da lógica “tudo-ou-nada” das normas, segundo Alexy79. Esta construção principialista tem mesmo uma dimensão jus-fundamental. Apesar de a valorização da exceção cultural não constar entre as categorias suspeitas de discriminação (por isso categorias especiais de discriminação positiva), previstas no artigo 13.º da CRP, este é o resultado da construção de um “direito de liberdade” (freiheitsrecht), na doutrina jusfundamental alemã extraído do “direito à livre conformação da personalidade”, que se encontra previsto no artigo 26.º da CRP, por via do qual a valorização individual dos costumes tem de ser respeitada80. Além disso, as virtudes inclusivas do princípio da igualdade, no respeito pela diferença, na medida da diferença, impõe esta promoção ativa, mesmo no mais estrito sancionamento criminal pela consideração de adequadas causas de exclusão ou atenuação da culpa ou da ilicitude, e o incremento do contacto, documentação e formação numa permanente sensibilidade intersistemática sob a forma de uma política consuetudinária81. A ponderação das consequências desta exceção cultural apenas pode ser feita casuisticamente, mas toca todas as áreas do Direito, implicando um prévio estudo jurídico-comparatístico sobre a relevância jurídica da exceção cul-

78 António Manuel Hespanha, “Estadualismo, pluralismo e neo-republicanismo...”, op. cit., página 139. 79 Ricardo Sousa página 364.

da

Cunha, Constituição e Legalidade Administrativa Cosmopolita..., op. cit.,

80 Sobre esta mesma questão vide Ricardo Sousa da Cunha, “O pluralismo jurídico na Constituição timorense”, e-BLJ, Ano 2 (2019), n.o 3, página 65 e seguintes. 81 Patrícia Jerónimo, Lições de Direito Comparado, op. cit., página 163.

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tural invocada82. São já conhecidos casos em que os fatores culturais podem ter impacto, por exemplo, na determinação do nexo causal para determinação da obrigação de indemnizar emergente de responsabilidade civil extracontratual, em matéria administrativa na determinação da ilicitude de um comportamento disciplinar, como nos casos do uso do véu islâmico por professores, na exigência de não uso do hijab ou do turbante hindu nas fotos dos documentos oficiais, na ponderação da, a natureza confessional de um empregador face ao direito à reserva de vida privada do trabalhador e, em sentido inverso, na ponderação dos direitos de liberdade religiosa dos trabalhadores ponderados face aos seus deveres laborais. As mais decisivas ponderações são, no entanto, feitas entre as causas de exclusão de ilicitude ou de culpa do direito criminal, mais visivelmente nos casos de “crimes de honra” não sancionados pelo Direito criminal islâmicos ou na idade do consentimento para o casamento, por exemplo na comunidade Roma. É neste passo decisiva a jurisprudência multicultural do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, juntamente com outros sistemas internacionais de proteção de direitos humanos, muitas vezes mais sensíveis à diferença cultural do que os tribunais nacionais, mesmo de natureza constitucional. Neste exercício jurídico hermenêutico, mas que pondera adequadamente as sugestões do Direito Comparado plural, assume centralidade decisiva o princípio da proporcionalidade, não apenas na dimensão processual pela qual o julgador concede ao legislador uma considerável margem de apreciação em respeito pelo princípio da separação de poderes, mas aqui já numa ponderação substantiva sobre o juízo feito no caso concreto pelo legislador, julgador ou administração Este é o papel reservado ao juiz como última garantia na tutela dos direitos fundamentais.

4.2.3 O Direito Comparado Administrativo A abertura do sistema de fontes de Direito ao Direito Comparado tem também tido impacto decisivo na vinculação administrativa ao Direito. É hoje pacífica a superação da sujeição administrativa estrita a uma legalidade que lhe é externa, porque superiormente legitimidade democraticamente, cada vez mais se apontando a crescente criatividade da função administrativa na definição do direito aplicável a cada concreto com o mesmo potencial de trânsito em julgado das decisões judiciais, por isso, sujeito a análogo dever de fundamentação83. Este 82 Sobre o reconhecimento de sentença estrangeira vide Ricardo Sousa da Cunha, Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 10602/2005-2, 18.10.2007, disponível em https:// inclusivecourts.pt/tribunal-da-relacao-de-lisboa-proc-10602-2005-2-18-10-2007/ e Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proc. 1378/18.YRLSB-7, 19.11.2019, disponível em https://inclusivecourts.pt/tribunal-da-relacao-de-lisboa-proc-1378-18-yrlsb-7-19-11-2019. 83 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública – O Sentido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, Almedina, Coimbra, 2003, página 19.

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exercício é cada vez mais decisivo perante a abertura supraestadual, em especial internacional e europeia, do sistema de fontes de direito aplicáveis pela Administração Pública84, mas também estrangeiro. Metodologicamente, coloca-se o problema da habilitação legal para atuação administrativa de normas que não sejam de origem legal nacional a que a Administração Pública está tradicionalmente sujeita, admitindo-se também cada vez mais a vinculação da Administração Pública diretamente a normas de origem supraestadual ou estrangeira. Daqui potencialmente resultam antinomias normativas cuja solução pode levar, no limite, à desaplicação administrativa das normas de natureza legal nacional, a que a Administração Pública se encontraria tradicionalmente vinculada, a favor da aplicação de normas de origem supraestadual ou estrangeira. Da mesma forma, o mesmo pode acontecer com a aplicação de atos administrativos de origem externa, supraestadual ou estrangeira. Em qualquer dos casos se impõe o controlo administrativo de normas ou atos externos a uma determinada ordem jurídica, que implica sempre um exercício administrativo de Direito Comparado85 prévio à aplicação do Direito pela Administração Pública. Na ponderação da relevância do direito estrangeiro para a Administração Pública, numa das dimensões relacionais plurais contemporâneas que impõem os estudos de Direito Comparado, Paulo Otero não exclui tão pouco a relevância do Costume como fonte de Direito Administrativo86. A integração administrativa supraestadual leva à emergência de um Direito Administrativo Global que pondera as consequências metodológicas assinaladas87. O espaço da integração europeia é um caso decisivo da relevância de uma dessas dimensões no Direito Administrativo Transnacional, em que normas e atos de direito administrativo estrangeiro são aplicadas e controlados pela administração pública estadual. Nuno Piçarra caracteriza, no espaço da União Europeia, o ato administrativo transnacional como 1) praticado por uma autoridade nacional competente, 2) visa produzir efeitos jurídicos no território dos restantes Estados-membros, 3) por força do próprio Direito da União Europeia88. A inegável centralidade do conceito de ato administrativo transnacional não se

84 Ricardo Sousa da Cunha, Constituição e Legalidade Administrativa Cosmopolita..., op. cit., página 369 e seguintes. 85 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública..., op. cit., página 395. 86 Ibid, página 487 e seguintes. 87 Ricardo Sousa da Cunha, Constituição e Legalidade Administrativa Cosmopolita..., op. cit., maxime página 431 e seguintes. 88 Nuno Piçarra, “A eficácia transnacional dos actos administrativos dos Estados-Membros como elemento caracterizador do Direito Administrativo da União Europeia” in Em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Almedina, Coimbra, 2010, página 604 e ss..

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esgota no Direito da UE, mas aqui assume importância decisiva89. Com base no princípio do reconhecimento mútuo90, constata-se assim a emergência de um Direito Administrativo transnacional, pela sujeição ao Direito da UE, ainda que também aqui no quadro da administração da UE indireta, pelo qual um Estado-membro pode ser chamado a controlar decisões materialmente administrativas adotadas pelas autoridades de outro Estados-membros ao abrigo das mesmas normas de Direito da UE.

5. Conclusão A específica intencionalidade jurídica dos estudos comparatísticos dirigidos a tomar parte no processo metodológico argumentativo de realização do Direito a partir da comparação de soluções jurídicas integra o Direito Comparado entre as disciplinas jurídicas sujeita às mesmas exigências metodológicas. O Direito Comparado assim entendido não é apenas um discurso sobre o Direito estrangeiro, que o considera como uma facto externo aos argumentos jurídicos esgrimidos internamente, mas integra-se na própria argumentação jurídica dirigida a cumprir uma das específicas finalidades jurídicas. O exercício de comparação jurídica procura a tradução do direito estrangeiro para integração nos processos internos de argumentação jurídica como argumento jurídico comparado. A reconstrução argumentativa do funcionalismo como técnica do Direito Comparado afasta as suas ambições utópicas de monopólio metodológico, mas não diminui as exigências de rigor na construção de argumentos jurídico-comparados, em especial na identificação do tertium comparationis (terceiro comparado) como os tópicos em torno dos quais se desenrola a argumentação jurídica comparada. A ideia de uma neutralidade metodológica comparatística perante a pluralidade normativa foi, mesmo que inconfessadamente, cedo afastada pelo próprio método funcionalista que tinha na sua génese a ambição de “social engeneering”, mas é plenamente assumida pela contemporânea revalorização metodológica do uso comunicacional da linguagem incluindo no Direito Comparado sempre numa especial relação com a alteridade internalizada. Neste exercício, o compromisso comunicacional do comparatista, sempre um numa relação com o outro, é evidência da natureza eminentemente relacional do Direito Comparado orientada por uma específica intencionalidade jurídica. Este exercício empático parte do respeito pela afirmação (soberana) de cada ordem jurídica construída na alteridade identitária sobre o princípio da equivalência na origem dos estudos comparatísticos. 89 Jean-Bernard Auby e Jacqueline Dutheil Bruylant, Bruxelas, 2007, página 1006 e ss..

de la

Rochère, Droit Administratif Européen,

90 Miguel Poiares Maduro, A Constituição Plural – Constitucionalismo e União Europeia, Principia, Lisboa, 2006, página 131 e ss..

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Cada vez mais estas exigências de fundamentação argumentativa não se limitam à argumentação judicial, mas estendem-se a todas as funções do Estado, impondo a adequada consideração dos argumentos de Direito Comparado como o veículo privilegiado de um Direito que, naturalmente, viaja. O compromisso comunicacional do comparatista na relação com a alteridade jurídica é ainda mais evidente na integração dos estudos de Direito Comparado em específicos processos de comunicação jurídica - da perspetiva da separação constitucional dos poderes, tanto na produção legislativa (nas sugestões aqui formuladas pela Legisprudência Comparada), como na solução judicial de um caso concreto (aqui tratada a propósito da Jurisprudência Multicultural) ou inclusivamente na prossecução administrativa do interesse público vinculado à lei (aqui tratado a propósito do Direito Administrativo Comparado). Neste exercício, a domesticação dos argumentos de Direito Comparado afasta-se da metáfora dos transplantes jurídicos impostos externamente e prefere realçar a específica intencionalidade jurídica da formulação de tópicos argumentativos para um diálogo jurídico interno comprometido com uma solução jurídica cada vez mais cosmopolita. Assim emerge o Direito Comparado relacional e (duplamente) plural – substantivamente, com referência ao sistema de fontes, e metodologicamente, com referência à assinalada diferente vinculação dos poderes separados ao Direito cosmopolita. A reavaliação metodológica contemporânea do Direito Comparado Plural devolve os estudos de Direito Comparado ao convívio da argumentação típica das ciências jurídicas sem reservas, ao mesmo tempo que a abre à riqueza de um mundo cada vez plural e integrado na superação de diferentes barreiras artificiais da diferença.

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OS FILHOS DOS OITOCENTOS: o Romantismo, a Escola Histórica do Direito, Savigny e os seus reflexos na codificação civil portuguesa de Seabra e brasileira de Teixeira de Freitas Ulisses da Silveira Job1

1. Por quem os sinos dobram Muitas vezes, olvidamos que a vida humana é um tecido constituído por inúmeros fios entrelaçados e que todas as ações, ainda que se nos aparentem singelas, são gravadas por extrema complexidade. A lógica perene, a não dever ser esquecida, estaria assentada no discurso de John Donne, segundo o qual nós não devemos perguntar por quem os sinos dobram, pois eles tocam por todos nós. A morte de qualquer ser humano nos diminui porque, antes de individualidades, fazemos parte da humanidade. Servindo-me dessa assertiva como lanterna de proa, resolvi tratar de algumas temáticas, quais sejam, fragmentos do Romantismo e dos sistemas jurídicos de Portugal e do Brasil, prestigiando a riqueza de suas interseções e não apenas os seus patrimônios isolados. Primeiro, conto uma história, atrelada ao Romantismo, nos termos mínimos necessários para demonstrar a dimensão da influência exercida por aquele evento multifacetado no mundo jurídico. Por derradeiro, como destino de todo o percurso, exsurge o cenário que se presta ao cotejo. Considerando o pressuposto de que o trabalho desenvolvido pela grande maioria dos comparatistas do Direito importa, quase que miopemente, na busca de identidades, de logo 1 Professor de Ciência Política e Direito Constitucional do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba/Brasil e aluno do doutoramento em Ciências Jurídicas da Escola de Direito da Universidade do Minho/Portugal.

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apresento a minha irresignação para seguir a divergência, ainda que esse gesto, reconheço, não configure um ato heroico, dada a pujança de seu maior dignatário. Pierre Legrand acredita que tratar com Direitos significa lidar com Direitos diferentes, com diferenças e, portanto, não se poder ignorá-las. Essa circunstância lhe parece tão expressiva que encampa a defesa de uma prática comparativa que não apenas se aperceba das singularidades, mas se obrigue a prestigiá-las. As diferenças advêm do fato de que cada sistema jurídico é constituído, sobretudo, por especificidades culturais vinculadas aos lugares e épocas2 e isso, antes de configurar um obstáculo, há de ser visto como um sinal de fortuna, afinal, é diante das diversidades que novas opções satisfativas podem ser adotadas em face das sucessivas demandas da humanidade. Conseguintemente, essas peculiaridades só são bem descobertas se avaliadas de maneira contextual, perscrutando-se as suas causas constitutivas, daí o inarredável compromisso que o comparatista deve assumir de ver o Direito como integrante da cultura e não apenas da ambiência jurídica. Para Legrand, o comparatista há de renegar aquela ideia do positivismo, fundada na transcendentalidade, na universalidade da razão, limitadora do Direito a concepções genéricas, reduzíveis a textos normativos e decisões judiciais, para prestigiar o ensinamento dado pela experiência vivida, no seu mais largo horizonte. Em boa medida, deve majorar a valia da sensibilidade humana e acautelar-se diante de um compulsivo enobrecimento de sistemas racionais.3 Personagens como Johann Georg Hamann, Giambattista Vico e Johann Gottfried Herder já haviam criticado o Iluminismo e a sua desvalorização dos sentimentos atrelados à identidade nacional, à língua, à história. O projeto das Luzes abandonou a persecução do sentido, mitigou a relevância da experiência humana e, como decorrência, todos aqueles que circunscrevem a comparação jurídica à demonstração de eventuais identidades, padecem desse descompasso da Ilustração.4 A censura de Legrand à comparação restringida pela busca da semelhança e a contraposta sugestão de compreender os Sistemas a partir da apreciação de suas diferenças, reverberam discursos que o Romantismo fez, desejoso de trazer à razão o Iluminismo. Legrand faz questão de anunciar no texto The same and the different que as suas proposições assumem um viés contra-iluminista, 2 O Direito é fruto de uma combinação cultural complexa e, como tal, é único de cada extrato cultural observado. Todo Direito responde, necessariamente, a reclamos nacionais explicáveis historicamente através de elementos como o cultural (LEGRAND, Pierre. Como ler o direito estrangeiro. São Paulo: Contracorrente, 2018). 3 LEGRAND, Pierre – The same and the different. In: LEGRAND, Pierre; MUNDAY, Roderick (Ed.) – Comparative legal studies: traditions and transitions. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 268. 4 Ibid., p. 261-263.

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inspiradas pelo Idealismo, pelo Historicismo e pelo relativismo. Assevera que a relevância contemporânea da crítica historicista do racionalismo iluminista e de sua demanda por uma racionalidade trans-histórica e supracultural encontra-se na consequente defesa de uma abordagem pluralista não-hierárquica de substratos culturais.5 Pois bem, se o Romantismo influenciou a teoria do Direito Comparado, haja vista a qualificada inserção de Legrand nessa seara e o declarado reconhecimento do quão tributárias são suas ideias daquele denso e amplo movimento cultural, doravante discorrerei sobre outros legados jurídicos do Romantismo que, partindo da Escola Histórica do Direito, chegam aos movimentos de codificação civil dos sistemas jurídicos lusitano e brasileiro, pontuando, uma vez mais, a sua pertinência e relevância para a reflexão do Direito Comparado. Por obviedade, esse panorama exige uma abordagem culturalista, a única habilitada a vê-lo adequadamente, haja vista o discurso cultural abranger o jurídico, mas não se limitar a ele, contemplando, verbi gratia, o filosófico, o arquitetônico, o literário, todos que, de alguma forma, concorrem para a sua formatação. Se a cultura não deve ser apreciada como um princípio unificador, dadas as descontinuidades e as rupturas inerentes a cada sociedade, as conexões, certamente, se dão, como, por exemplo, “entre os jardins de Vaux-le-Vicomte e o Código Civil francês. Esses dois espaços se apresentam, de fato, como lugares onde a lógica e a simetria prevalecem”.6

2. Por vezes, é preciso sentir para melhor compreender A Confissão de um Filho do Século é um livro seminal do Romantismo. Assim o dizem e, após sua leitura, convalido. O autor, Alfred de Musset, enganado pela amante, a distinguida escritora George Sand (há dados que falam de uma prévia traição daquele), ao tempo em que expõe as suas dores, expressa o drama de sua geração, uma vez que compartilham o mesmo conteúdo. A sua angústia pessoal encontra paralelo na frustração de muitos de sua época com as promessas não cumpridas pela Revolução Francesa. Os filhos do século foram Otávio, aquele que encerrou suas experiências no romance, Musset, Sand, os traídos nas suas altivas expectativas, enfim, todos os personagens que pontuaram e notabilizaram o Romantismo. Nas falas de Musset, encontro o soberano apreço, melhor, a serviência aos “quereres” do amor, daí a extremada devoção aos amados. Otávio é retratado como um alguém a buscar na vida real amores eternos e absolutos, ou seja, a esperar de rouxinóis fiéis interpretações das sinfonias de Beethoven. É acon5 Ibid., p. 265/271. 6 LEGRAND, Pierre – Como ler o direito estrangeiro. São Paulo: Contracorrente, 2018.

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selhado a tirar do amor o que um homem sóbrio toma do vinho, mas não se transformar em um bêbado. Como de se esperar, restou apeado de sua mulher adorada, subsistindo-lhe, tão somente, a convicção de que se outros a amariam mais dignamente, nenhum o faria tão profundamente quanto ele.7

3. Soluções para nossas dores Assim como professou Hermann Hesse em um momento difícil para a humanidade, no final da Primeira Guerra Mundial, o consolo, a fé e um Deus tão necessários só podem ser encontrados na nossa intimidade, não têm como vir do oficialismo, das “Bíblias”, dos tronos. O Deus que vive em cada um de nós é mais sublime e eterno que o Deus patriota de 1914.8 As mortes, advindas das batalhas, das revoluções, das execuções, a morte presente na pobreza, na falta de oportunidades, enfim, na negação da vida, na dureza, na indiferença, hão de ser combatidas por cada pessoa, malgrado pareça insuportável, no cumprimento de sua missão individual de se tornar sempre mais humana. Por mais meritório e bonito que seja participar coletivamente do avanço da humanidade, prioritário é dar o testemunho pessoal de crescimento espiritual.9 Entre tantas formas de revelação do compromisso individual com o acerto, suscito o Romantismo. Sim, o Romantismo, e, para tanto, recorro a definição de Ayn Rand. A voz extremada do Liberalismo fala do Romantismo como uma categoria de arte baseada no reconhecimento do princípio de que são os homens aqueles que possuem a faculdade de decidir, ou seja, ela expressará livremente aquilo que os seus feitores desejarem.10

4. É rosa mais lírio mais pomba mais sol Em princípio, com o que estamos lidando? Segundo Isaiah Berlin, cumpre-nos questionar se o Romantismo deve ser tratado como um movimento, haja vista esse pressupor uma organização. Sem maior convicção, acredita que é melhor tomá-lo como um complexo de atitudes, uma forma de pensar e agir.11 Em obra de referência, cujo título me soa sugestivo, Os Filhos do Barro, Octavio Paz acentua que o seu conteúdo transcende os limites de um movimento literário

7 MUSSET, Alfred de – A confissão de um filho do século. Barueri: Amarilys, 2016. 8

HESSE, Hermann – Sobre la guerra e la paz. Barcelona: Noguer, 1977. p. 117.

9 Ibid., p. 122. 10 RAND, Ayn – The romantic manifesto. New York: Signet, 1981. p. 91. 11 BERLIN, Isaiah – O poder das ideias. Lisboa: Relógio D`água, 2006. p. 265.

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para agregar, também, caracteres morais e políticos. Seria uma maneira de pensar, sentir, apaixonar-se, combater, viajar. Uma maneira de viver e de morrer.12/13 Essa forma lírica de refletir e viver, múltipla em suas nuances, assume os contornos de seus artífices. Trate-se de Heinrich Heine e tenha uma exaltação à pessoa querida que, inobstante o consagrado apreço pelo sol, pomba, rosa e lírio, outrora queridos em delírio, prevalece, soberana. A bela donzela, apenas ela, seria a verdadeira fonte do amor e, candidamente, a rosa mais lírio, mais pomba e mais sol.14 Há um desejo manifesto de compartilhar prantos, de unir peitos a seios para que os corações queimem à luz da mesma ardente chama e, terminantemente, em delírio de amor, satisfeito a sorrir, morrer feliz.15 Henry Peyer o trata como movimento que lida com a nossa sensibilidade, amplia a imaginação, prestigia a individualidade e torna o homem moderno insatisfeito com o seu destino.16 Os seus artistas apegavam-se à melancolia e externavam o seu pessimismo.17 O próprio Alfred de Musset, como sugerido ao princípio, em tudo se conforma ao perfil precedente. Com vinte anos já dispunha de notoriedade literária e, à feição dos seus congêneres, entrega-se à vida noturna e ao alcoolismo que, segundo contam, foi o principal responsável pela sua morte.

5. Paradoxos e romantismos Em sua História da Filosofia, Giovanni Reale e Dario Antiseri asseveram que o Romantismo é tão dialético que o Classicismo, seu predecessor estilístico, de se imaginar incompatível, dada a recorrente contraposição de características entre as escolas literárias, é encontrado como um dos seus componentes.18 Completam dizendo que o Romantismo nasceu do choque entre a tempestuosidade e impetuosidade do Sturm und Drang (prelúdio do Romantismo) e o limite, notabilizante do Classicismo.19 O romântico almeja o infinito, tem uma ansiedade 12 PAZ, Octavio – Os filhos do barro: do Romantismo à vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 67. 13 Giovanni Reale e Dario Antiseri falam de um movimento espiritual (História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. V. 5. São Paulo: Paulus, 2005). 14 HEINE, Heinrich – Livro das canções. Seleção de tradução de Jamil Almansur Haddad. São Paulo: Hemus, 2008. p. 19. 15 Ibid., p. 22. 16 PEYER, Henry – Introdução ao Romantismo. 2a ed. Mem-Martins: Europa-América, 1986. p. 13. 17 Ibid., p. 21. 18 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario – História da Filosofia: do Romantismo ao Empiriocriticismo. V. 5. São Paulo: Paulus, 2005. p. 7. 19 Ibid., p. 8.

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própria do querer pelo irrealizável. Nessa perseguição pelo infinito, o homem sente a necessidade de se apegar à religião, mantenedora de íntima relação com o eterno. Na sequência de “contradições”, há de se lembrar, segundo Octavio Paz, que o Romantismo deve muito ao protestantismo, mantendo com ele uma relação de dependência espiritual. O Romantismo teria assumido o perfil contestador protestante. O protestantismo, notadamente o inglês e o alemão, havia preparado as condições psíquicas e morais para a contestação romântica. O Romantismo encampou a ruptura com a estética objetiva latina, quase impessoal, e a defesa do eu do poeta como realidade fundamental. Essa situação seria, todavia, uma aparente contradição, haja vista a conversão de muitos ao catolicismo decorrer da aversão ao racionalismo e não por refutação ao protestantismo. Dando conta desses antagonismos, calha rememorar a vida amorosa do pianista e compositor húngaro Franz Liszt que, inebriado pelas paixões, rompeu com padrões de comportamento, maiormente de sua época, enamorando-se e desposando mulheres casadas da nobreza europeia, tudo em nome do amor, mas sem se desvincular do compromisso religioso estatuído pela fé, superior e limitadora e, por isso, naturalmente aplacadora de quereres impuros, ou seja, a conduta liberal se manifestava no rompimento das amarras impostas pelo convívio social, mas sucumbia diante da fé religiosa, igualmente conservadora, formal e repressora das liberdades humanas.20 Em a Duquesa de Langeais, um romance de Honoré de Balzac, compositor da série de livros chamada pelo autor de A Comédia Humana, encontro um cenário semelhante. Uma duquesa casada resolve enfrentar a sociedade, sua família e costumes vigorantes em nome de um amor crescentemente nutrido por um herói de guerra, sem que a pressão social e o temor religioso deixem de atormentá-la, para, ao final, definitivamente dominá-la, sepultando um amor mutuamente partilhado. Diante desses dualismos, ilustrativamente enunciados, observo um substancioso e inarredável vínculo com os postulados liberais, seja na sua exaltação ou crítica. Curioso e necessário é perceber que os grandes promotores e maiores beneficiários do Liberalismo foram os principais responsáveis pela forja do Romantismo. Naturalmente, o Romantismo e os seus burgueses prestigiaram o Liberalismo. Inesperada, mas deveras bem-vinda, a autocrítica que construíram do Liberalismo, desejosa de fazê-lo melhor, liberto de distorções que, deixado sem vigilância, permitia ocorrer.

20 Sonho de amor: a história de Franz Liszt. Direção de George Cukor e Charles Vidor. Produção de William Goetz. Estados Unidos, 1960. 1 DVD (2h10min).

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6. Os burgueses, o Liberalismo e o Romantismo William Cereja e Thereza Cochar, com acerto, dizem que participaram da formação do Romantismo vários setores da burguesia, entre os quais aqueles que agregavam os comerciantes, militares, professores, magistrados, todos a defender, inspirados pelos valores que redundaram na Revolução Francesa, a reforma de instituições, o apego pela lei, à liberdade de comércio e à soberania popular, naturais pautas do Liberalismo.21 Digna de nota é a percepção de Elias Thomé Saliba acerca da relação entre eventos humanos notáveis e a trajetória do Romantismo. O referenciado autor acentua a grandeza representada pela Revolução Francesa no estímulo à reflexão romântica sobre a realidade. Seus momentos primeiros teriam sido festejados pela intelectualidade europeia. Mais abrangentemente, o esvair do Antigo Regime, os desacertos da Revolução e a Restauração débil concorreram para o delineamento da feição romântica.22 O Romantismo teria surgido como expressão de seu tempo, das Revoluções burguesas e da Industrial. Bem por isso, suas utopias almejavam um mundo mais próximo para os homens reais.23 Em Isaiah Berlin, encontro bom amparo para dar seguimento a essa narrativa. Diz-nos que se vivenciava um século elegante, o XVIII, no qual havia calma e suavidade, obedeciam-se as regras, fosse na vida ou na arte, avançava a racionalidade e recuava a Igreja. Construíam-se edifícios graciosos, havia uma crença na aplicação de uma razão universal. Irrompe, não obstante, uma repentina e, aparentemente, desarrazoada corrente de emoção, emerge o interesse pelas construções góticas, pela introspecção, o prestígio do gênio espontâneo. Busca-se a neurose e a melancolia. Substitui-se o simétrico, o garboso e o cristalino. Dá-se uma revolução, cortam a cabeça de um rei e começa o terror.24 Em princípios do Século XIX, valores como a integridade, pureza, dedicação, admiradas até hoje, passaram a ser exigências comuns, gradativamente compartilhadas pelo conjunto da sociedade.25 Valoriza-se mais a dedicação do que o resultado, o propósito do que a produção: diante disso, vejo-me obrigado a reconhecer e declarar a minha faceta romântica! Outro escritor, desses a nos lembrar dos estudos sobre escolas literárias quando na nossa juventude, José De Nicola atribui aos burgueses a formatação 21 CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar – Literatura brasileira: em diálogo com outras literaturas e outras linguagens. 5a ed. São Paulo: Atual, 2013. p. 268. 22 SALIBA, Elias Thomé – As utopias românticas. 2a ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. p. 20/27. 23 Ibid., p. 103. 24 BERLIN, Isaiah – As raízes do romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015. p. 29-30. 25 Ibid., p. 35.

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dos conceitos de arte, de artista e de público do Romantismo,26 todos aferrados ao individualismo, ao nacionalismo e à liberdade formal e temática, pautas, majoritariamente burguesas e, consequentemente, liberais. Mais, tudo isso se desnovelava em um século ascendentemente democrático, carecedor da constante legitimação popular. Os artistas assenhorearam-se da coisa pública; não mais se cuidou de adular príncipes augustos, mas de angariar a simpatia do conjunto da sociedade.27 Os burgueses, naturais excluídos do ambiente clássico, substituíram a produção erudita, bem ao gosto da nobreza, por uma de caráter frugal, ou seja, reflexiva da natureza burguesa. As obras deixaram de expressar os interesses dos financiadores que gravitavam as cortes e passaram a representar uma diversidade que só a liberdade poderia conferir. O público consumidor foi ampliado e passou a ser diversificado. Havia de se escrever, compor e pintar, doravante, também para as mulheres, para os estudantes. Eis que o romance assume esse desiderato, retratando o cotidiano e atendendo os apelos burgueses pela fantasia e aventura,28 era o modelo de escrita mais bem instrumentalizado para saciar as demandas dessa nova realidade social. Reconhecido como beneficiário da intervenção burguesa, o Liberalismo vicejado no Século XVII e imperante no Século XIX, manifesto maiormente nas searas política e econômica, não poderia deixar de se ver presente, em larga medida, no conteúdo do ambiente romântico. Pedro Duarte, realçando suas diferenças, trata de identificar semelhanças entre o Romantismo e o Liberalismo. Por serem frutos dos burgueses, desembaraçadamente compartilham valores.29 Para

26 O Romantismo representou artisticamente as aspirações da burguesia, recentemente empoderada (NICOLA, José De – Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. 18a ed. São Paulo: Scipione, 2011. p. 184). 27 Ibid., p. 216-217. 28 CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar – Literatura brasileira: em diálogo com outras literaturas e outras linguagens. 5a ed. São Paulo: Atual, 2013. p. 240. 29 Reconhecendo a sobrestante participação dos burgueses na formatação do Romantismo, encontro o professor Newton de Oliveira Lima que, cuidadoso, realça não ter sido obra apenas deles, mas também de nobres. Deu-se mais ou menos assim: os burgueses a reivindicar e os nobres assumindo uma postura saudosista. Teria havido uma filiação social do Romantismo a uma pequena burguesia e a uma nobreza decadente. O Romantismo não poderia ser restringido a uma forma de arte estritamente burguesa, sobretudo pela sua amplitude espiritual, suplantadora de imposições ideológicas de alguma classe social. Anacrônico, mas verossímil, os burgueses, promotores da Revolução Industrial, estabelecedores do domínio econômico capitalista, encontraram na arte romântica um meio de expressão da sua rebeldia, de crítica social, de censura a suas próprias misérias morais e comportamentais (LIMA, Newton de Oliveira – Romantismo e Neoclassicismo: liberdade v. formalismo na criação artística. In FUNDAÇÃO CULTURAL DO PIAUÍ. Concursos literários do Piauí. Teresina: FUNDAC, 2005. p. 372/389-392).

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os românticos, liberal é aquele que atua sem peias, em toda a sua humanidade, que procura a conversa, a comunicação.30 Naquilo que pertinente à política, Berlin diz que os românticos poderiam ser tanto revolucionários quanto reacionários, mostrando-se impossível relacionar o Romantismo a uma única corrente. Por sua própria natureza, prestigiadora da voluntariedade em desfavor do inexorável, opor-se-ia a qualquer doutrina, na medida em que, essencialmente, prendem-se a racionalismos, objetividades, ponderabilidades.31 Mesmo que não se vinculasse a uma doutrina política, é de se destacar que se atrelava a ideias políticas. É por haver tanta identidade com valores liberais que falo de um vínculo com o Liberalismo. Quanto ao prestígio conferido pelo Romantismo ao individualismo, ao subjetivismo, é marcadamente libertário. Vejamos o conceito dado por Benjamin Constant à liberdade obtida na contemporaneidade e concluamos em referendo. O apego ao nacionalismo também acentuou um compromisso com o Liberalismo. Advogar as causas da pátria importou em defender a liberdade de se autodeterminar, de se conformar de acordo com suas próprias conveniências, de bem prestigiar as belezas de sua natureza, da sua história, da sua cultura. Esse egocentrismo, todavia, não impediu os seus artífices de se condoerem dos problemas sociais. Muito pelo contrário, a introspecção teve natureza crítica e fez surgir uma conjuntura favorável às contestações e mudanças. Sobretudo na sua última fase, o Romantismo assumiu essa postura reivindicadora de justiça, a exemplo daquilo que encontramos em Os Miseráveis, de Victor Hugo, nos escritos de Castro Alves (cujas mudanças constantes quanto à forma ou conteúdo dos textos, não autorizam deixar de situá-lo entre aqueles que marcaram o Romantismo, notadamente por alinhado ao projeto liberal do Romantismo),32 de Sousândrade. Peter Gay fala-nos que os maiores censores da hipocrisia, materialismo, vulgaridade e insensibilidade burguesa foram os próprios burgueses (a cruzada assumida por Gustave Flaubert contra a burguesia vitoriana, como exemplo, foi uma luta intestina).33

30 DUARTE, Pedro – Estio do tempo: Romantismo e estética moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 20. 31 NICOLA, José De – Literatura brasileira: das origens aos nossos dias. 18a ed. São Paulo: Scipione, 2011. p. 191. 32 CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar – Literatura brasileira: em diálogo com outras literaturas e outras linguagens. 5a ed. São Paulo: Atual, 2013. p. 225. 33 GAY, Peter – O século de Schnitzler: a formação da cultura de classe média – 1815-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 50.

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William Cereja e Thereza Cochar, lidando com o Ultraromantismo, destacam que foi uma forma de manifestação contra o mundo burguês.34 As esperanças associadas às Revoluções, frustradas, justificaram o sentimento de desalento, melancolia, marcantes desse segundo momento do Romantismo. Chegou-se a perseguir um retorno às aristocracias, apegou-se ao irrealismo ou até mesmo à idealização da morte. Também chamada de literatura gótica ou maldita, contrapunha-se ao racionalismo e ao materialismo da sociedade burguesa e se expressava através do satanismo, mistério, sonho, loucura. Tendo entre seus expoentes Edgar Allan Poe, Lord Byron, Charles Baudelaire, Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, aos quais, mais tarde, se acostaram Oscar Wilde, Mallarmé, Cruz e Sousa, Alphonsus Guimarães e Augusto dos Anjos, punha-se mesmo como um estranho ao Romantismo.35 Poder-se-ia advogar que foi o Realismo o movimento a fazer a análise, a compreender, a criticar e a trabalhar pela superação dos problemas sociais, o que não deixaria de ser razoável. Mas mais representativo, por ser inspirador, por estabelecer os postulados teóricos, disponibilizar instrumentos, enfim, ser a luz para as mudanças e conquistas, foi o Romantismo. Ele afirmou-se como o primeiro grande movimento genuinamente burguês, concebido, nutrido e perseguidor do Liberalismo, que se pôs a criticá-lo e a concorrer para aperfeiçoá-lo, sempre em nome das mais lídimas aspirações do conjunto da sociedade.36

7. O Romantismo e a Escola Histórica do Direito Assim como a Revolução Francesa consolidou a vitória do racionalismo e do Liberalismo, concorreu para o surgimento de alguns dos seus opositores, como o Romantismo. Juntos, razão e sensibilidade, notabilizaram o pensamento e as práticas do Século XIX, como, arrisco dizer, subsistem pautando o debate público e privado até a contemporaneidade. Com a Revolução, sedimentaram-se o positivismo jurídico e a sua manifestação metodológica, a Escola da Exegese, bem jungidos aos postulados iluministas, valorizadores do Estado de Direito que recorria, também, às codificações normativas. Os exegetas acreditavam que a lei, advinda de uma vontade soberana, sendo este o seu fundamento, deveria ser interpretada pelo uso do método lógico-gramatical.

34 CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar – Literatura brasileira: em diálogo com outras literaturas e outras linguagens. 5a ed. São Paulo: Atual, 2013. p. 207. 35 Ibid., p. 263. 36 Na promoção dessa crítica à vida burguesa, valiam-se os autores dos mais variados artifícios. Recorriam a uma postura boêmia, prestigiavam as poesias populares (literatura de cordel e de feira), voltavam-se para o passado medievalista, para o catolicismo.

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No começo do Século XIX, construiu-se uma sólida crítica à ordem jurídica liberal, abrangente de seus princípios básicos e do seu conteúdo espraiado por vários textos normativos. Entre os censores, destacavam-se os católicos Joseph De Maistre e Louis de Bonald. Ao tempo em que demonstravam desprezo por aqueles valores liberais, confessavam sinergia com o Cristianismo, grandemente sacrificado pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. Ambos os autores desejavam um retorno ao pensamento medieval, a Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Defendiam, por exemplo, a sujeição do Papa e dos reis à moral bíblica e católica antecessora da Reforma. Evidentemente se contrapunham ao racionalismo de Descartes e, como consequência lógica, ao contratualismo de Jean-Jacques Rousseau e de Immanuel Kant. Maistre, particularmente, rejeitando o contratualismo de Rousseau, propôs, como alternativa, uma ideia orgânica do Estado, ou seja, enquanto Rousseau nos legava um conceito abstrato, construído ao arrepio da história e do substrato cultural compositor da Nação, Maistre dava conta de que a sociedade, incluída a política, surgia espontânea e organicamente e, portanto, o seu manejo pressupunha um conhecimento histórico do encadeamento de fatos que redundaram em um cenário de momento. A história descortinaria a natureza humana. A história dir-nos-ia que o Estado não surgiu a partir de um Contrato elaborado, discutido e decidido voluntariamente pelos indivíduos. Isso configuraria mera ficção. Razoável seria acreditar que, dadas as relações humanas, consequentemente a demanda pela edificação do Estado se daria. A Escola Histórica do Direito, de meu especial interesse pelas razões expendidas neste escrito, nasce nessa corrente, sujeitando a ideia de Direito Natural, estivesse fundado na fé ou na razão. Fez parte, inafastavelmente, do movimento romântico-histórico alemão de então. Friedrich Carl von Savigny foi o seu primeiro grande ícone e, como tal, fez a crítica das codificações que não se justificariam, ao menos naqueles momentos nos quais estavam a ser feitas ou defendidas na Europa. Com Savigny, compuseram Friedrich Schelling, Otto Gierke, Gustav Hugo, Karl Eichhorn, Jacob Grimm (este, para Franz Wieacker, pode bem ser enunciado como o representante da contribuição primeira do Romantismo para a Escola Histórica Alemã).37 O elemento a unir todos eles? O senso histórico, o Historicismo fundado no espírito do povo (Volksgeist), para cujo descobrimento se fazia necessário o manejo da literatura, da filosofia e da história. Segundo o Historicismo, o Direito adviria, espontaneamente, da consciência popular, todos os ordenamentos jurídicos incorporariam as peculiaridades dos povos correspondentes, criadas no transcurso da história.

37 WIEACKER, Franz – História do Direito Privado moderno. 5a ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2015. ISBN 9789723101720. p. 463.

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O Historicismo foi, a um só tempo, uma filosofia da cultura e um método de estudo do Direito. Como metodologia, importou na defesa de ciências baseadas em eventos históricos criticamente avaliados em substituição às ciências experimentais, positivas, vinculadas ao dogmatismo cartesiano. A história passou a ser o elemento de referência, paradigmático, como delineador e legitimador das instituições jurídicas. Enquanto a Escola Clássica do Direito Natural, do Século XVIII, pressupunha a racionalidade das normas jurídicas como parâmetro de justiça, a Histórica encontrava esse referencial no passado das instituições que, induvidosamente, é peculiar em cada lugar. Para muitos, o fundamento filosófico do Romantismo remete ao Historicismo e a seus pensadores, a exemplo de Maistre, Johann Fichte, Schelling, Friedrich Schlegel, Savigny, Otto Gierke, Gustavo Hugo, Georg Hegel. Esses e muitos outros, unindo história, filosofia e literatura, exaltavam o senso histórico e procuravam o espírito do povo e, na sua esteira, criticavam o universalismo jusnaturalista do Iluminismo. Acredito, diversamente, que foi o ambiente romântico aquele que justificou a elaboração da Escola Histórica. Criticado em vários países, o universalismo da Escola Clássica foi maiormente enfrentado na Alemanha, ícone do Historicismo. Certamente o fato de as codificações europeias, lastreadas em Declarações de Direitos da Revolução Francesa e no Código Civil napoleônico, de 1804, e as suas Escolas da Exegese grassarem em um momento no qual Napoleão afrontava o nacionalismo alheio, concorreu para o surgimento dessa Escola alternativa. Parece-me bem cunhado o entendimento de Cláudio De Cicco, para quem o Historicismo nasceu nesse ambiente de nacionalismo e Romantismo. Conclua-se, assim, que esse Historicismo encerrou um compromisso com a liberdade dos povos germânicos de qualquer ascendência estrangeira. O Napoleão dos códigos cartesianos era o mesmo que imitava os césares romanos e, também por isso, merecia a repulsa do povo da Germânia.38

8. O Volksgeist Não obstante seja lugar comum defender a presença de um Estado-nacional, depositário dos valores jurídicos de determinada comunidade, como essencial para a existência do legalismo, alguns casos parecem configurar exceções, como o da Alemanha dos dois primeiros quartos do Século XIX. Naquelas paragens, embora não houvesse uma unidade política, a presente consciência nacional, substancial, prescindia de um Estado e do seu Direito legislado para expressar valores políticos e jurídicos dos que por lá viviam. Ausente um Estado para 38 CICCO, Cláudio De – História do Direito e do pensamento jurídico. 8a ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 243.

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assumir esses encargos, valorizavam formas outras de organização política, tradicionais e de surgimento espontâneo, diversas marcadamente medievais, como se prestigiavam, romanticamente, formas políticas pré-estatais, exaltando-se a história, instrumento essencial para a compreensão de elementos do passado. Muito em função dessas peculiaridades, vários alemães viam na ideia de Estado e de código um sinal de desnacionalização. O Estado do contratualismo seria uma mera abstração. Assim como o código, adviria de uma idealização sem substrato histórico. Com feições universais, desprezavam idiossincrasias locais e isso a Alemanha não aceitaria. Essa sensibilidade alemã, apegada às fontes não estatais e legislativas do Direito, à ideia orgânica da sociedade, forjada à semelhança dos humanos, historicamente, condicionando o futuro ao passado, tudo peculiarmente, de acordo com cada povo, expressando o seu espírito, o Volksgeist, deu origem à Escola Histórica que, prevalecente nos primeiros cinquenta anos do Século XIX, prolongou a sua influência, através do seu desenvolvimento pandectista, até o começo do Século passado. O Volksgeist ou espírito do povo poderia ser encontrado nas suas produções culturais, a exemplo da língua, da poesia, folclore, literatura, na história do Direito. Obviamente, esse entendimento geraria consequências para o Direito. Como decorrência, houve um combate ao legalismo, ao movimento de codificação, uma vez que destruiria o Direito, sobretudo por se valer de um elemento conjuntural, a decisão legislativa tomada por um Governo ou assembleia em um ambiente normativo fortemente orgânico, constituído por normas indisponíveis e longevas emanadas do espírito do povo. Além disso, engessava o Direito, evitando as suas transformações conforme novas circunstâncias. Adstrindo-se à doutrina, chega-se a especular que a Escola Histórica, diversamente, valorizava os elementos doutrinários e consuetudinários do Direito, tratava-o como uma obra dos professores, juristas, da literatura jurídica, dos intelectuais, todos responsáveis pela expressão e sistematização do espírito do povo.

9. A Pandectística Desde o Século XVII que as Universidades alemães prestigiavam a tradição romanística, algo parecido com aquilo que proporia a Escola Histórica. Segundo Savigny e Rudolf von Jhering, a romanística mostrava-se mais habilitada do que a germanística para expressar o espírito do Direito. De qual Direito Romano se tratava? Daquele que as escolas medievais legaram, de posse do qual os juristas do usus modernus pandectarum extraíram informações que representariam o espírito do Direito Romano. Por isso Savigny exaltava tanto o Direito Romano, seja o medieval ou aquele utilizado modernamente na Alemanha. Lidava com a tradição romanística como sendo o Direito comum do Império alemão. Em obra na qual defendia o seu livro Da Vocação de Nosso Tempo para

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a Legislação e para a Ciência do Direito de críticas que reputava infundadas alinhavadas por N. Th. Gonner, Savigny destacou que o método histórico exigia o estudo do Direito Romano pelo fato de fazer parte do passado da Nação alemã, prestigiando, por via de consequência, o primitivo Direito germânico.39 Não de se eclipsar que a corrente romancista da Escola Histórica prevaleceu no ambiente europeu, ganhando longevidade através da Pandectística e da “jurisprudência dos conceitos”. A Pandectística surgiu daquilo que se tem convencionado chamar de contradição da Escola Histórica do Direito, entre os seus postulados e as suas prescrições, entre a sua teoria e prática. Ao tempo em que se declara que o Direito é uma produção do conjunto societário, admite-se que exsurja de outra fonte. Como de se esperar, com a Pandectística adotou-se o positivismo, renovado. Era um sistema que se pretendia completo e fechado, apto a dar solução para todas as demandas jurídicas. Com um enfoque mais metodológico, verifica-se que a Pandectística passou a analisar o Direito de uma maneira sistemática e não casuística, pois imaginava resolver todas as questões pessoais fazendo uso dos princípios, por evidente, mais abrangentes e compreendedores da complexidade societária humana. Oportuniza-se, assim, a mencionada “jurisprudência dos conceitos”.

10. A Escola Histórica do Direito em Portugal e no Brasil Com a Revolução de Agosto de 1820, o Liberalismo chegou a Portugal. Foi o denominado de Sinédrio, comandado por Manuel Fernandes Tomás, que instalou o regime liberal no Porto.40 Não obstante, já em 1823, deu-se a Contra-Revolução, em decorrência do golpe de Estado, a chamada Vilafrancada, promovida pela Rainha e pelo infante D. Miguel, afastando-se o regime constitucional. Depois de três anos, o regime constitucional foi reavivado. Todavia, agora, os portugueses não mais tinham a sua Constituição liberal, radical e revolucionária, de 1822, mas uma Carta constitucional imposta por D. Pedro, ostentadora de um Liberalismo conservador. Na sequência, de 1828 até 1834, os contra-revolucionários voltaram ao poder. Com a Convenção de Évora Monte, é reinaugurada a Carta Constitucional e D. Miguel exilado definitivamente. Mor39 SAVIGNY, Friedrich Carl von – Recensión del libro de N. Th. Gonner sobre Legislación y jurisprudencia. In SAVIGNY, Friedrich Carl von; EICHORN, Karl Friedrich; GIERKE, Otto von; STAMMLER, Rudolf – La Escuela Histórica del Derecho. Santiago: Olejnik, 2018. ISBN 9789563922394. p. 20. 40 Na Espanha, em janeiro deste ano, um levante semelhante aconteceu, culminando com o restabelecimento da Constituição de Cádiz, de 1812. Este evento, certamente, influenciou o ocorrido no vizinho país ibérico. Ambos os movimentos ostentaram a defesa do princípio da soberania nacional, a liberdade, a segurança e a proteção das propriedades dos cidadãos.

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rendo D. Pedro, quatro meses depois, promovem-se mudanças estruturais no Estado português, sejam nas áreas políticas ou econômicas. Até o fim do século, duas correntes disputarão o predomínio para ver qual será o perfil monárquico constitucional adotado por Portugal. Houve os radicais, herdeiros do Vintismo (vitoriosos na Revolução Setembrista de 1836, quando estabeleceram, uma vez mais, a Constituição de 1822 e conceberam a Constituição de 1838) e os moderados que contaram com a restauração da Carta Constitucional em 1842. Os Cartistas Puros governaram com tranquilidade, porém, apenas a partir de 1851, em um período que foi chamado de Regeneração. Foi esta Carta Constitucional a que vigorarou durante as últimas décadas da Monarquia portuguesa. Nesse período de paz, correspondente à segunda metade do Século XIX, fez-se o primeiro Código Civil português, em 1867. Até então, o Liberalismo vigorante contentou-se com a orientação dada ao Direito pelos jurisconsultos. Acho oportuno recorrer a Mário Reis Marques para relembrar que da instauração do Liberalismo em Portugal até 1867, data da aprovação do Código Civil, coube à doutrina dos jurisconsultos lutar e promover a modernização do Direito em Portugal.41 Em verdade, permaneceram como parâmetros jurídicos a “recta ratio” e o “usus modernos”, apenas adaptados às imposições de momento, como a do individualismo liberal. Esse movimento de codificação, como já citado, teve lastro iluminista e jusracionalista. As suas normas carregaram consigo valores universais e verdades absolutas, encontradas graças à interveniência da razão. Destaque-se que enquanto em alguns países a codificação foi encampada pelo Despotismo Esclarecido, em outros foi consumada por uma estrutura legislativa. Enfim, sendo uma criação do Estado, o Direito, identificado com a lei, precisava ser cumprido e nos estritos termos presentes nas normas, vez que se imaginavam suficientes para resolver todas as questões e, na medida do seu seguimento, grandemente responsáveis por um estádio de segurança jurídica. A presença do positivismo tornou-se imperiosa. Como fez questão de relembrar António Santos Justo, a razão, soberanamente, decidira que realidades como os costumes e as tradições simbolizavam retrocesso e, portanto, a lei deveria ser exaltada, haja vista prover segurança, liberdade e igualdade. Apenas a linguagem clara e simples de uma lei poderia conferir essa segurança tão quista. Seria, tam-

41 MARQUES, Mário Reis – O Liberalismo e a codificação do Direito Civil em Portugal. Coimbra: Coimbra, 1987. p. 147.

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bém, lídimo repositório da vontade geral, algo que lhe conferia maior respeitabilidade. Justificado estava o cenário para a codificação das leis.42 O Código português de 1867 teve o Projeto formulado por António Luís de Seabra e restou aprovado pela Carta de Lei de 1o de julho de 1867, muito embora a aspiração pela reforma do Direito privado local revolvesse ao Século XIX pelas razões já apresentadas. Rui Januário e António Ribeiro Gameiro, como exemplo, falam da retomada do desejo por uma codificação em Portugal com o advento da Revolução Francesa. Nessa oportunidade, chegou-se a reivindicar a simples adoção do Código napoleônico em solo português.43 É cediço que o próprio Napoleão, em 1808, fez consultas acerca da conveniência de adotar o documento em Portugal. A tradução chegou a ser feita e a obra impressa. O desiderato da empreitada restou comprometido pelos fatos que a História tratou de nos esclarecer.44 A mim me parece conveniente destacar a observação feita por Mário Júlio de Almeida Costa, em obra dedicada a estudar a história do Direito português. Fala-nos dos pontos positivos dessa forçada ação codificadora. Foi em função dela que a estrutura jurídica portuguesa bem se preparou para produzir um Código que não fosse mera cópia do napoleônico, mas uma madura reflexão, que retratasse valores absorvidos pela tradição portuguesa nas últimas décadas, em clara atenção aos postulados cuja autoria designada não reclama outro nome, a não ser o de Savigny.45 Valho-me ainda de Almeida Costa para suscitar que a obra civilista alemã compulsada por Seabra foi a de Savigny que, de certa maneira, o havia inspirado na feitura do Código português.46 Uma outra autoridade na temática, já referenciada, Mário Marques faz questão de realçar a importância exercida por Savigny em Portugal durante o período utilizado para a discussão, feitura e aprovação do Código Civil de 1867 que, certamente, foi considerada por Seabra no desempenho de sua função codificadora.47 Na estrita seara da metodologia e da sistemática, Seabra recorreu à tradução francesa do Sistema de Direito Romano de Savigny. Ele confessou que as suas ideias nada mais eram do que a reprodução daquelas de Savigny. Marques 42

JUSTO, António Santos – O Direito luso-brasileiro: codificação civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro. No 25. p. 167-228. (2o sem. 2003). p. 168.

43 JANUÁRIO, Rui; GAMEIRO, António Ribeiro – História do Direito português e do pensamento jurídico. Lisboa: Rei dos Livros, 2018. p. 241. 44 Ibid., p. 241. 45 COSTA, Mário Júlio de Almeida – História do Direito português. 5a ed. Coimbra: Almedina, 2018. p. 479. 46 Ibid., p. 484. 47 MARQUES, Mário Reis – O Liberalismo e a codificação do Direito Civil em Portugal. Coimbra: Coimbra, 1987. p. 179.

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destaca, ainda, que, neste particular, apesar de não serem idênticos, Seabra sintonizou o sistema do seu Projeto com o propugnado por Savigny.48 Segundo António Manuel Hespanha, existem autores que sustentam, com maior ou menor intensidade, uma influência do viés historicista da Escola Histórica alemã em Portugal e no Brasil, durante boa parte do Século XIX.49 Ele acredita em uma contribuição marginal, atrelada, sobretudo, ao surgimento do positivismo sociológico. Em Portugal, Alexandre Herculano, reconhecido literato do Romantismo, a quem se credita a elegância e clareza da linguagem do Código Civil português, incumbido que foi da redação final do Projeto, se dispôs, à feição do recomendado pela Escola alemã, a utilizar a história portuguesa como inspiração às propostas de estruturação do país. Coelho da Rocha teria feito o mesmo na seara exclusiva do Direito. Não obstante, subsistia como doutrina dominante o jusracionalismo, ainda que menos individualista e contratualista, prestigiando o tradicionalismo tão caro ao Historicismo alemão. António Santos Justo, conquanto reconheça a influência do Código Civil e da doutrina francesa na elaboração do Código português, afirma que este passara longe de uma mera cópia do francês, dispondo de uma sistematização autêntica e de uma reprodução de conteúdos que já faziam parte da tradição jurídica portuguesa, seja pela conduta dos juízes ou dos doutrinadores. Daí, se se operar um confronto, observar-se-á, tantas vezes, uma aproximação quanto um afastamento do Direito francês.50 Há autores, não obstante, que dizem ter sido o primeiro Código Civil português refletor do napoleônico, restando apenas ao segundo, formulado em 1966, ao se vincular à Pandectística, adotar um conteúdo peculiar. Tão somente neste seria possível identificar a presença de Savigny. O seu art. 9o, 1, ao preconizar que a interpretação não se deve limitar à letra da lei, mas buscar o pensamento do legislador, para tanto se valendo dos textos e das circunstâncias de sua elaboração e aplicação, seria representativo dessa assertiva.51 Mário Marques acredita que Seabra buscou um sistema original, mesmo que essa originalidade tivesse por horizonte ver o que existia para fazer diferen-

48 Ibid., p. 193. 49 HESPANHA, António Manuel – Cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Coimbra: Almedina, 2018. ISBN 9789724048109. p. 428. 50 JUSTO, António Santos – O Direito luso-brasileiro: codificação civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro. No 25. p. 167-228. (2o sem. 2003). p. 171-172. 51 HERZOG, Benjamin; PINTER, João Carlos Mettlach; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz – A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. V. 7 (Abr./Jun. 2016).

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te.52 Não teria havido imitação. Sem desconhecer o prestígio e a influência do Código francês, o trabalho de Seabra seria merecedor de respeito e consideração, afinal, soube manter a distância necessária para a garantia da identidade.53 No Brasil, semelhantemente, dá-se o uso concomitante de valores tomistas, jusracionalistas e do Romantismo. Festejou-se, é bom que se enfatize, o caráter valorativo, espiritual do Direito. A implementação desse ideário cambiou entre uma argumentação marcadamente literária, emotiva, e metodologias mais afetas ao Romantismo alemão, prestigiadoras da tradição romano-portuguesa, lastreada na presença do Direito Romano na literatura jurídica portuguesa. Coube a Augusto Teixeira de Freitas, de maneira destacada, encarnar esse entendimento. O seu Projeto de codificação do Direito Civil espelhou-se no uso moderno que os lusitanos conferiram ao Direito Romano para refutar a adoção no Brasil de soluções jusracionalistas, próprias do Iluminismo, a exemplo do Código Civil napoleônico, completamente dissociados das características culturais brasileiras. Embora o Código Civil brasileiro tenha sofrido influências francesas, alemães e argentinas, resguardava-se, preponderantemente, a tradição jurídica luso-brasileira.54 A recepção do pensamento de Savigny pelo Brasil passa, inexoravelmente, pela figura de Teixeira de Freitas, mesmo que muitos brasileiros denotassem admiração pelo alemão, como Antonio Joaquim Ribas, Francisco Paula Baptista e Luiz Gama.55 Essa predileção brasileira por Savigny, notadamente dos juristas da Escola de Recife, se devia, em boa medida, ao desejo de alcançarem uma independência da até então absoluta ascendência cultural jurídica portuguesa sobre o Brasil.56 Freitas era egresso dos Cursos de Direito de Olinda e São Paulo. A utilização por ele das ideias de Savigny se deu no momento em que os primeiros juristas atuantes no Brasil eram formados no país e labutavam pela modernização das instituições nacionais. A presença de Savigny foi abundante nas suas elucubrações teóricas. Suas obras fizeram uso de expressões próprias de Savigny, como “relação jurídica” ou “instituição de Direito”. Há, frequentemente, longas 52 MARQUES, Mário Reis – O Liberalismo e a codificação do Direito Civil em Portugal. Coimbra: Coimbra, 1987. p. 187. 53 Ibid, p. 187. 54 JUSTO, António Santos – O Direito luso-brasileiro: codificação civil. Revista Brasileira de Direito Comparado. Rio de Janeiro. No 25. p. 167-228. (2o sem. 2003). p. 177. 55 REIS, Thiago – Teixeira de Freitas leitor de Savigny. Fundação Getúlio Vargas. São Paulo. Paper no 121 (Mar. 2015). p. 9. 56 HERZOG, Benjamin; PINTER, João Carlos Mettlach; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz – A recepção da metodologia de Savigny no Brasil e em Portugal. Revista de Direito Civil Contemporâneo. V. 7 (Abr./Jun. 2016).

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passagens em seus textos que são, reconhecidamente, de Savigny. Por vezes, a autoria é enunciada, em outros instantes, não. Um dos momentos nos quais mais evidente ficou a utilização de Savigny por Freitas, deu-se quando das críticas que este destinou ao Código Civil português de 1867 e ao seu elaborador, Antonio Luiz Seabra (Mário Marques relembra a interação intelectual, centrada em debates, entre Seabra e Teixeira).57 Freitas fez críticas severas ao Projeto de Seabra, notadamente ao seu sistema. Seja pela escolha da seara da crítica, a da relação entre construção sistemática e Direito positivo, pelos termos utilizados, a exemplo de “desenvolvimento”, “entes”, “orgânica”, “personalidade”, a presença de Savigny se fazia indisfarçável. A título ilustrativo, Freitas censurou a adoção, pelo Código Civil português, da ideia de direitos naturais, originários, a exemplo da vida e da liberdade, e de um rol de direitos individuais que englobava a liberdade de expressão e o direito de propriedade, com caráter jusracionalista. Freitas defendia, ao revés, que os direitos não eram subjetivos, mas adquiridos através de manifestações de regras jurídicas positivadas e estruturadas a partir de relações jurídicas, ou seja, argumentos eminentemente savignyanos. Curioso é notar que Teixeira de Freitas, tornado famoso muito em função de argumentos que pressupunham a existência de códigos, tanto tenha se valido de Savigny, uma personalidade marcadamente anti-codificadora. Firmada a prática das codificações, como opção vencedora, coube à doutrina voltar-se, uma vez mais, a prestigiar a lei. Em Portugal, com o Código Civil de 1867, fortaleceu-se a exegese restringida pela letra da lei. No Brasil, com o Código Civil de 1916, decorrente do formalismo pandectista, há nuances que precisam ser realçadas. O propósito inaugurado por Teixeira de Freitas, de legar aos brasileiros uma consolidação genuína, respeitada a prática jurídica brasileira, é, em boa medida, continuada por Clóvis Beviláqua, o escolhido para elaborar o Código. Com uma visão sociológica unida a uma ideia orgânica do Direito, laborou por um sistema respeitoso do espírito brasileiro. A influência sempre mencionada de Savigny não abrangeu apenas o Código brasileiro de 1916, ela se fez presente, mais uma vez, no Código Civil de 2002. A cientificidade jurídica, tão reclamada por Savigny, esteve a exigir do legislador e encarrega o juiz de se pautar, no seu ofício judicante, também pelo princípio da “socialidade”, decorrente, em grande medida, da importância que a doutrina e o costume assumem na construção do Direito Civil brasileiro.58 57 MARQUES, Mário Reis – O Liberalismo e a codificação do Direito Civil em Portugal. Coimbra: Coimbra, 1987. p. 188. 58 MAGALHÃES, Joseli Lima – A moderna codificação das leis civis brasileiras: o novo Código Civil como eixo central do Direito Privado. Teresina: [S. n.], 2003. Dissertação de Mestrado. p. 46.

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Alfim, avulta o fato de nesse processo constitutivo dos Direitos português e brasileiro, na específica vereda civilista, interagirem valores jurídicos característicos de vários países. Naturalmente, o Brasil e Portugal, durante a feitura dos seus Projetos e Códigos, confrontaram os regramentos vigorantes e suas ideias inovadoras autênticas com o Sistema francês e retóricas alemães e, identificadas diferenças e semelhanças,59 com lastro fático e perspectiva utópica, propugnaram e/ou promoveram mudanças desejosas de configurar um efetivo enriquecimento da cultura jurídica de ambos os países,60 ou seja, oportunizou-se e laborou-se com toda uma sistemática própria do Direito Comparado.61/62

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59 ALMEIDA, Carlos Ferreira de; CARVALHO, Jorge Morais – Introdução ao Direito Comparado. 3a ed. Coimbra: Almedina, 2019. ISBN 9789724050669. p. 11. 60 Ibid., p. 16-19. 61 VICENTE, Dário Moura – Direito Comparado. 4a ed. V. I. São Paulo: Aduaneira, 2018. ISBN 9788584934362. p. 23. 62 Bem por isso, Deo Campos Dutra, em instigante artigo, recordou-nos da frequente menção nas Faculdades de Direito da presença do Direito estrangeiro no Sistema jurídico brasileiro, especialmente em seus Códigos. Pouco depois, alertou para a necessidade de não se secundarizar os transplantes jurídicos, sobretudo por propiciarem a compreensão da origem e da influência de muitos valores jurídicos externos no arcabouço normativo e doutrinário pátrio (DUTRA, Deo Campos – Transplantes Jurídicos: história, teoria e crítica no Direito Comparado. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS. Porto Alegre, no 39. p. 77-95 – dez. 2008. ISSN 01046594. p. 77-78).

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O DIREITO COMPARADO E O TRANSPLANTE DO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE AUSTRÍACO E NORTE-AMERICANO PELA CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA E BRASILEIRA Daniel Gomes de Souza Ramos1

Resumo: O Direito comparado têm sido um grande instrumento desenvolvimentista dos estudos científicos jurídicos, das decisões judiciais e dos sistemas normativos. A sua concretização se dá por meio da comparação dos ordenamentos jurídicos, visando identificar as semelhanças e diferenças existentes entre eles e daqui extrair uma síntese comparativa que é decisiva, nomeadamente no transplante de normas e institutos. Objetivamos demonstrar sua importância para a recepção normativa, para tanto, traremos como exemplo a garantia da Constituição em Portugal e no Brasil, que se deu por meio da transfusão do controle de constitucionalidade austríaco e norte-americano. Para chegarmos ao nó górdio deste ensaio, abordaremos a metodologia do direito comparado, os vieses do controle de constitucionalidade e, enfim, trataremos do controle adotado pela Constituição portuguesa de 1976 e pela brasileira de 1988. Palavras-chave: Direito comparado; Controle de constitucionalidade; Transplante Normativo.

1 Doutorando em Ciências Jurídicas Públicas pela Universidade do Minho – Portugal.

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O Direito Comparado e o Transplante Do Controle de Constitucionalidade Austríaco e NorteAmericano pela Constituição Portuguesa e Brasileira Daniel Gomes de Souza Ramos

Sumário: I - Introdução; II - Direito e Metodologia da Comparação; III - O Transplante Normativo; IV - Justiça e Garantia Constitucional; IV.I - Controle de Constitucionalidade Austríaco; IV.II - Controle De Constitucionalidade Norte-Americano (Judicial Review); V - O Transplante do Controle de Constitucionalidade em Portugal e no Brasil; V.I – Controle de Constitucionalidade em Portugal; V.II – Controle de Constitucionalidade no Brasil; VI – Conclusão.

1. Introdução Direito comparado é tema de intricada discussão em tempos hodiernos. A globalização, a interculturalidade, o desenvolvimento do constitucionalismo em forma de cooperação e tantos outros elementos fazem com que cada vez mais os estudiosos, juristas e demais protagonistas do direito venham a utilizar esta caixa de ferramentas que, desde o século XIX, contribui para o incremento dos sistemas normativos. Atrelado a isso, o avanço tecnológico e científico colaborou para o translado de estudantes em todo o mundo, quantificando e qualificando trabalhos científicos e criando elementos motrizes para uma nova prática na criação de institutos por meio de ideias para além do campo territorial de um país. Apesar de ter sido utilizado, pela primeira vez, ainda por Aristóteles em seus estudos sobre as “Constituições”, apenas no século XIX passou a ser consagrado pelos juristas, legisladores e julgadores como método de investigação. Por todo esse crescimento científico, aquilo que era carente de técnicas e conhecido como mero elemento de pesquisa, transformou-se numa grandiosa ferramenta metodológica com diversas facetas, dentre elas a de desenvolver o sistema normativo interno e externo e auxiliar aos legisladores em suas fidalgas atividades de legislar – transplantando normas. O controle de constitucionalidade não ficou de fora. Tido como a principal ferramenta para garantir a efetividade e o fiel cumprimento das Constituições modernas, o controle de constitucionalidade concentrado e difuso, oriundos da Áustria e dos Estados Unidos da América, respectivamente, foram transplantados pelas mais diversas Constituições dos Estados ocidentais, sobretudo após o constitucionalismo democrático, que se protagonizou com o fim do pós-guerra. O nosso trabalho tem como principal escopo demonstrar a importância da metodologia do direito comparado para o implante de institutos jurídicos, dando ênfase à recepção do controle de constitucionalidade adotado pela Constituição de Portugal (1976) e do Brasil (1988). Trata-se de um trabalho descritivo analítico, utilizaremos de referências bibliográficas decorrentes de livros, artigos científicos, sítios eletrônicos, bem como de jurisprudências e textos normativos oriundos de ordenamentos jurídicos diversos. O presente ensaio se torna relevante por ainda existir sistematizado desconhecimento acerca da disciplina do 60


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direito comparado, sobretudo no Brasil, em que não há qualquer abordagem direta ou indireta na grade curricular dos cursos de graduação em ciências jurídicas e pelos juristas. Fora dividido em três capítulos. O primeiro diz respeito ao direito comparado propriamente, tecendo as suas acepções, evolução e, como deveria de ser, a sua metodologia e importância para a sua finalidade precípua. Em seguida traremos elementos acerca do transplante normativo, mostrando as suas importâncias para o desenvolvimento dos institutos jurídicos. Mais à frente, falaremos do controle de constitucionalidade, dando referência a sua definição e sua importância para o constitucionalismo moderno. Por fim, chegando ao nó górdio do nosso trabalho, pontuaremos os elementos do referido controle na Constituição do Brasil e de Portugal, trazendo os elementos históricos, as convergências e divergência entre ambas e tecendo pequenos comentários sobre o porquê do transplante dos referidos institutos.

2. Direito e Metodologia da Comparação Podemos definir o direito comparado como uma disciplina jurídica que objetiva cotejar sistemas jurídicos distintos, visando identificar as semelhanças e diferenças existentes, desenvolvendo os estudos científicos e aprimorando os sistemas normativos2. A comparação e transplante de normas decorrentes de ordenamentos jurídicos alienígenas é método há tempos utilizados. Consta que desde a antiguidade clássica, Aristóteles estudou 158 “Constituições” das cidades gregas com o fito de elaborar o seu tratado sobre política3. Também se aponta que Maquiavel, Montesquieu ou Stuart Mill, no século XVII já utilizavam o direito comparado como ferramenta de análise dos ordenamentos jurídicos4. Ao cabo, mas não menos importante, elenca-se que o direito comparado foi utilizado para renovar a abordagem da escola exegética ainda dominante ao Código Civil francês. Como disciplina jurídica, o direito comparado apenas surgiu no século XIX, momento em que passou a ser ensinado nas escolas de Direito5. Todavia, apenas no final do século XX e início do século XXI que referido instituto vem se desenvolvendo de forma mais palpável, e isto se dá em decorrência do crescente interesse pela europeização dos sistemas jurídicos; pelo desenvolvimento 2 JERÔNIMO, Patrícia. Lições de Direito Comparado – 1ª ed. – Braga: Elsa Uminho, 2015. p. 11. 3 JERÔNIMO, Patrícia. Lições de Direito Comparado – 1ª ed. – Braga: Elsa Uminho, 2015. p. 11. 4 SILVA, Suzana Tavares da. Direitos fundamentais na arena global - 2ª ed. - Coimbra: Universidade de Coimbra, 2014. p. 10. 5 ALMEIDA, Carlos Ferreira de, e CARVALHO, Introdução ao Direito Comparado, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2013, p. 15.

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do constitucionalismo contemporâneo, sobremaneira após a segunda-guerra mundial; bem como pelo fato de o sistema jurídico da comunidade europeia ser tratado como elemento de estudo obrigatório6. O direito comparado, portanto, passa a ser visto como objeto de estudo obrigatório, dada a necessidade de se investigar o caráter histórico-político da norma estudada e/ou implantada. Van Hoecke7 lista que o direito comparado objetiva, dentre outras coisas, (i) oportunizar aprendizado e conhecimento sobre outras leis e uma melhor compreensão delas; (ii) conhecer a evolução e solução de determinada lei no mesmo ordenamento jurídico; (iii) contribuir para o próprio sistema jurídico interno e trazendo uma melhor harmonização da lei. Patrícia Jerônimo, por sua vez, elenca que o direito comparado, além de outros aspectos, tem o condão de formar juristas, na medida em que desenvolve as pesquisas cientificas e analisa a norma numa conjuntura teórica e pragmática, avaliando a solução de contendas por ela solucionadas; aplicação e desenvolvimento no plano interno, por meio da aplicação das normas transplantadas no panorama nacional e na interpretação dos tribunais nacionais, bem como para trazer descobertas de vias possíveis de reforma legislativa8. No presente trabalho vamos mais além, demonstraremos que o direito comparado serviu e objetivou, além dos elementos acima postos, como influenciador ao poder constituinte originário quando da sua fidalga função de elaborar a Constituição brasileira e portuguesa, na medida em que implantou regras já existentes em outros ordenamentos jurídicos – no presente caso analisaremos o instituto do controle de constitucionalidade. De mais a mais, é preciso saber o que se deve comparar, ou seja, se se compara apenas a norma em seu caráter literal ou se analisa-a também pelo seu aspecto histórico, teleológico, sistêmico e as jurisprudências dela decorrente. Indubitavelmente não há como analisar uma norma, seja ela nacional ou estrangeira, sem se ater aos seus elementos que vão para além do sentido literal. É preciso, claro, ter ciência acerca do porquê o legislador a incluiu daquela maneira, de como ela deve ser interpretada pelo contexto geral do diploma legal, e, ainda, deve-se verificar as soluções práticas decorrentes daquela norma (criação de precedentes). 6 SILVA, Suzana Tavares da. Direitos fundamentais na arena global - 2ª ed. - Coimbra: Universidade de Coimbra, 2014. p. 10. 7 HOECKE. Mark Van. Methodology of comparative legal research. Disponível em: < https:// www.academia.edu/23729111/Methodology_of_comparative_legal_research >. Acesso em 22 de novembro de 2019. p. 2. 8 JERÔNIMO, Patrícia. Lições de Direito Comparado – 1ª ed. – Braga: Elsa Uminho, 2015. p. 16-17.

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No aspecto jurisprudencial, é importante registrar que, em não havendo prestações jurisdicionais na solução de casos concretos, não há como se conceber o elemento motriz do direito comparado, que seria o caráter funcionalista da norma – conforme veremos mais abaixo. No espectro de como se comparar, passaremos a concatenar as ideias trazidas por Van Hoecke, por entendermos serem as mais salutares. O autor diferencia seis grandes métodos do direito comparado, quais sejam: (i) método funcional; (ii) método analítico; (iii) método estrutural; (iv) método histórico; (v) método de contextualização (law in context); e (vi) método do núcleo comum (common core)9. Frise-se, todavia, que este rol, conforme é determinado pelo próprio autor, não é taxativo, podendo o comparatista utilizar de outros métodos que se coadunem com os elementos centrais da metodologia do direito comparado. Outrossim, também deve ser destacado que o comparatista pode utilizar de um, de alguns ou de todos os métodos acima descritos para chegar ao seu objetivo, ou seja, o uso das ferramentas metodológicas vai depender do objeto e do objetivo da investigação. Teríamos, portanto, uma “caixa de ferramentas” ao dispor do comparatista. Ora bem, diante do que até então foi posto, começaremos, de forma sucinta, a elencar pequenas definições de cada método acima divulgado10. O método analítico visa ponderar o sistema jurídico como um todo, sendo impossível desconectá-lo ou fatiá-lo. O conceito jurídico é, neste caso, definido pelas regras que regulam uma matéria abrangida por todo o ordenamento jurídico, de modo que a análise de um simples tecido da norma pode trazer prejuízos na funcionalidade da comparação em decorrência de uma possível cognição exauriente não coadunável com a realidade11. O método estrutural pretende analisar toda a estrutura e relação entre diferentes sistemas jurídicos. Por esse método, as diferenças entre os sistemas jurídicos, em um determinado ponto específico, podem perder a sua importância e relevância se elas fracionam uma semelhança estrutural. O professor Günther Frankenberg tratou de estudar referido método, o seu intuito, nos dizeres de

9 JERÔNIMO, Patrícia. Lições de Direito Comparado – 1ª ed. – Braga: Elsa Uminho, 2015. p. 8. 10 Dado que o método funcionalista, em nosso ponto de vista, é a conclusão da análise de todos os demais métodos, por sistemática textual, deixaremos este para o final. 11 HOECKE. Mark Van. Methodology of comparative legal research. Disponível em: < https:// www.academia.edu/23729111/Methodology_of_comparative_legal_research >. Acesso em 22 de novembro de 2019. p. 16.

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Oliver Brand, foi construir um novo método para se comparar, transformando o direito comparado convencional em um instrumento de crítica ao direito12. Para isso, o professor divide este método em três momentos: (i) a necessidade de se escrutinar o que acontece quando um caso concreto é retirado de um contexto social e inserido no ordenamento jurídico; (ii) em seguida, deve o comparatista evidenciar esse quadro legal por meio de uma análise crítica de sua estrutura e analisar o seu processo de tomada de decisão; (iii) por último, deve o comparatista reinserir o contexto sociocultural que foi perdido na legalização do problema. A comparação “law in context” elenca não ser possível a comparação sem uma análise contextualizada da inclusão de determinado instituto normativo no ordenamento jurídico local. Van Hocke13 elenca que esse método pode ser utilizado por meio de dados históricos, sociológicos e/ou antropológicos, podendo haver, ainda, estudos interdisciplinares, a depender do objetivo do estudo jurídico. O método histórico serve, sobremaneira, para analisar as diferenças em determinados marcos históricos sobre determinada norma, reconhecendo a preponderância de respostas jurídicas mais alinhadas com perspectivas políticas14. O método núcleo baseia-se no método funcional, trazendo pontos que são compartilhados por diversos sistemas legais, objetivando harmonização em determinada lei. Procura-se divergências e convergências entre os sistemas jurídicos comparados, sempre questionando se é possível o enquadramento de determinada norma15. No que pertine ao método funcional, último método analisado, parte das escolas do direito comparado elenca este seria o único método comparatista, apoiando-se na premissa de que os conceitos podem ser diferentes, todavia a maioria dos sistemas normativos acaba por resolver os problemas legais de ma12 BRAND, Oliver. Conceptual Comparisons: Towards a Coherent Methodology of Comparative Legal Studies. Brooklyn Journal of International Law, v. 32, Issue 2, 2007, p. 405-466. In: DUTRA, Deo Campos. Método (s) em Direito Comparado. Disponível em:< https://revistas.ufpr.br/ direito/article/view/46620 > Acesso em 28 de novembro de 2019. p. 201. 13 HOECKE. Mark Van. Methodology of comparative legal research. Disponível em: < https:// www.academia.edu/23729111/Methodology_of_comparative_legal_research >. Acesso em 22 de novembro de 2019. p. 16. 14 HOECKE. Mark Van. Methodology of comparative legal research. Disponível em: < https:// www.academia.edu/23729111/Methodology_of_comparative_legal_research >. Acesso em 22 de novembro de 2019. p. 16. 15 HOECKE. Mark Van. Methodology of comparative legal research. Disponível em: < https:// www.academia.edu/23729111/Methodology_of_comparative_legal_research >. Acesso em 22 de novembro de 2019. p. 20.

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neira semelhante16. Noutras palavras, parte da doutrina entende que o direito comparado tem como única finalidade buscar a solução de determinado problema e desse extrair o que lhe seja conveniente. De fato, por tempos o método funcional foi o único a ser maciçamente estudado e declarado como singular17. E é exatamente por este motivo que não o enxergamos apenas com apenas uma finalidade. Pode-se usá-lo sobre diversos vieses, tais quais a compreensão da lei, a análise de convergências e divergências entre os sistemas jurídicos internos e externos, bem como a sua utilização para a transposição de normas externas (como por exemplo o implante do controle de constitucionalidade americano e austríaco por diversas constituições estatais) 18. O desenvolvimento dos estudos de Direito Comparado no período pós-guerra fez-se ao abrigo ao funcionalismo metodológico vigente na época que cedeu hoje em dia lugar a um sincretismo metodológico alicerçado na sua centralidade quase existencial para a ciência e prática do Direito. Vê-se, portanto, que existe uma variedade de métodos funcionais, e a sua aplicabilidade dependerá da finalidade do estudo comparatista. A sua finalidade, portanto, é analisar como um determinado problema foi solucionado à luz de determinado ordenamento jurídico.

16 HOECKE. Mark Van. Methodology of comparative legal research. Disponível em: < https:// www.academia.edu/23729111/Methodology_of_comparative_legal_research >. Acesso em 22 de novembro de 2019. p. 9. 17 Registre-se que parte da doutrina critica veementemente o referido método. As principais críticas são as de que: (i) não há um único método funcional, mas muitos, e isto vai depender do objetivo do comparatista; e (ii) nem todo método é funcional. (ii) Ralf Michaels elenca que: “‘In short, “the functional method” is a triple misnomer. First, there is not one (“the”) functional method, but many. Second, not all allegedly functional methods are “functional” at all. Third, some projects claiming adherence to it do not even follow any recognizable “method”. MICHAELS, Ralf. ‘Two Paradigms of Jurisdiction’, Michigan Journal of International Law 2006, p. 342. 18 Ralf Michaels elenca que “o funcionalismo na metodologia do direito comparado apresenta-se, contudo, como uma síntese das diversas acepções do funcionalismo na metodologia das ciências sociais – o finalismo neo-aristotélico (lei natural e razão), o adapticionismo darwiniano, o funcionalismo clássico de Durkheim, o instrumentalismo da engenharia social jurídica, o funcionalismo apurado, o funcionalismo epistemológico, o funcionalismo de equivalências, que está também subjacente ao construtivismo luhmanniano”. Ainda elenca que “Isto apesar de não ser possível dizer que se trata de uma bissectriz entre o funcionalismo da metodologia utilizada pela sociologia e o funcionalismo que caracteriza as correntes da filosofia do direito, pois do que se trata neste caso é, essencialmente, de procurar uma unificação do direito sob uma abordagem pragmática, à semelhança do que se verifica no direito europeu com a transposição das diretivas (os Estados-membros devem alcançar os mesmos resultados e não garantir uma aproximação doutrinal entre as soluções) e com o princípio do mútuo reconhecimento que se baseia em equivalências e não em semelhanças”. MICHAELS, Ralf. The Functional Method of Comparative Law, Oxford University Press. 2012. pp. 345-359/377. In: SILVA, Suzana Tavares da. Direitos fundamentais na arena global - 2ª ed. - Coimbra: Universidade de Coimbra, 2014. p. 19.

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Estaríamos, portanto, diante de um método (ou métodos) em que se objetiva analisar como as coisas podem ser enxergadas e solucionadas por diferentes sociedades, com a finalidade precípua de absolver a solução de um problema, mesmo não havendo uma similitude das normas jurídicas consagradas em espaços legais distintos19.

3. O Transplante Normativo Das diversas facetas do direito comparado, nos deparamos com o transplante normativo – para nós, o paradigma central do comparatismo -, que tem por objeto o estudo das recepções de culturas jurídicas e a análise das mudanças delas decorrentes20. Não há uma categorização sobre a sua terminologia. Muitos apodam de transplante normativo, outros de “circulação de modelos jurídicos”, “transferência de lei”, “recepção”, “influência”, “inspiração” e tantas outras nomenclaturas, mas o fato é que o espectro central do instituto é o mesmo21. Facilmente encontramos o uso da recepção normativa, basta olharmos o direito romano, que se alastrou pelo continente europeu e americano. No Brasil, por exemplo, a legislação, em 1822, foi veementemente influenciada pelas Ordenações Filipinas. A posteriori, do mesmo modo, o Código Civil brasileiro de 1916 tem todas as suas raízes enviesadas pelo Código Civil Napoleônico, de modo que os seus elaboradores beberam da fonte do referido diploma normativo. Não nos restam dúvidas, portanto, que este instrumento do direito comparado se torna um dos mais relevantes para desenvolver o sistema jurídico nacional e analisar o seu pragmatismo. Todavia, para a sua concretude e efetivi-

19 “In 1936, Roscoe Pound defined a ‘functional comparison’ as the ‘study of how the same thing may be brought about, the same problem may be met by one legal institution or doctrine or precept in one body of law and by another and quite different institution or doctrine or precept in another’”. POUND. Roscoe. ‘What May We Expect from Comparative Law?’, American Bar Association Journal 1936-22, p. 59. In: HOECKE. Mark Van. Methodology of comparative legal research. Disponível em: < https://www.academia.edu/23729111/Methodology_of_comparative_legal_research >. Acesso em 22 de novembro de 2019. p. 9. 20 GRAZIADEI. Michele. Comparative Law as the Study of Transplants and Receptions. Oxford Hand books Online. 2012. p. 1. Disponível em: < https://www.oxfordhandbooks.com/ view/10.1093/oxfordhb/9780199296064.001.0001/oxfordhb-9780199296064-e-014 > Acesso em 03 de dezembro de 2019. 21 GRAZIADEI. Michele. Comparative Law as the Study of Transplants and Receptions. Oxford Hand books Online. 2012. p. 2. Disponível em: < https://www.oxfordhandbooks.com/ view/10.1093/oxfordhb/9780199296064.001.0001/oxfordhb-9780199296064-e-014 > Acesso em 03 de dezembro de 2019.

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dade, é preciso sopesar a sua real compatibilidade, sendo necessária a devida aplicação dos métodos de comparação já relatados neste ensaio22. Defendemos que a aplicabilidade dos métodos de estudo do direito comparado deve ser mais rigorosa quando estamos diante dos transplantes normativos. Para além da “caixa de ferramentas” disponível ao comparatista, deve este conhecer de diversas outras ciências paralelas ao direito, tudo isto como forma de absolver, no contorno teórica e pragmática, a certeza de que há moldação do instituto alienígena ao ordenamento interno. Diga-se, por exemplo, que não há como transplantar normas oriundas de um sistema normativo que tem as suas raízes culturais totalmente diversas. Assim, o regramento da pena de morte de alguns países orientais jamais poderá ser implantado pelo Brasil, por exemplo. Isto porque todo o arcabouço normativo se embasa – dele não pode fugir – nos direitos e garantias individuais consagrados na Constituição Federal, valorizado pela dignidade da pessoa humana, que tem natureza de cláusula pétrea e assim foi concebido pelo poder constituinte por meio da representação do povo. Portanto, o aspecto histórico-político da norma deve ser analisado de maneira a colaborar para uma interpretação mais arguciosa, de modo que a simples análise textual pode trazer prejuízo na concretude finalística do transplante. É neste aspecto que Suzana Tavares elenca que: “[...] Não é possível fazer uma referência a uma decisão do tribunal constitucional alemão sem ter presente a “teoria do Estado” que sustentou a construção dogmática do direito público naquele sistema, não é correto analisar uma solução normativa francesa desconhecendo o service public ou mesmo procurar interpretar um preceito da Constituição portuguesa ou da Constituição espanhola sem lembrar o seu papel instrumental na transição de uma ditadura militar para um regime democrático – há uma historicidade subjacente que não pode ser ocultada e que se tornou indispensável no estudo do direito e das soluções jurídico-constitucionais”23.

Além do mais, é preciso ter zelo na busca da interpretação real da norma, principalmente quando estamos a tratar de implante oriundo de instituto derivado de país com outra língua oficial – inclusive esse é um dos principais percalços na utilização do direito comparado.

22 Vide capítulo II deste ensaio – a metodologia do direito comparado. 23 SILVA, Suzana Tavares da. Direitos fundamentais na arena global - 2ª ed. - Coimbra: Universidade de Coimbra, 2014. p. 15-16.

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4. Justiça e Garantia Constitucional Sem adentrar nas tantas outras atividades exercidas pela Justiça Constitucional, uma delas, em tempos atuais, é o controle de constitucionalidade que tem suas raízes aviltadas na necessidade de adequar, à constituição, os atos e normas infraconstitucionais. Nem sempre o referido controle se deu pelo poder judiciário, mas, sim, pelo poder legislativo, criador das leis. Estaríamos diante de um controle político, onde o poder judiciário, ao apreciar a constitucionalidade de uma norma, deve consultar o Poder Legislativo antes da possível incompatibilidade com a Constituição - facilmente se constata a sua inoperância e ineficácia por estamos diante de um autocontrole24. A garantia da Constituição pelo Poder Judiciário é, por nós, denominada de heterocontrole, que se deu a partir da criação da Justiça Constitucional “como garante dos regimes democráticos, assentes no respeito das minorias e dos direitos fundamentais, e limitadora dos poderes das maiorias parlamentares, em nome dos valores condensados na Constituição”25. Assim, se o constitucionalismo moderno nos traz Cartas Constitucionais com elementos de luta contra o absolutismo monárquico, limitando os poderes do Estado e garantindo direitos fundamentais a todos os cidadãos, não há como se conceber uma efetivação destes elementos sem a devida adequação das demais normas a Lei Maior. O controle judicial é dividido basicamente em dois modelos clássicos – o norte americano e o austríaco. O primeiro caracteriza-se pela atribuição dada a juízes e Tribunais Ordinários, seja de qual instância for, e tem como principal característica uma decisão que somente forma caso julgado entre as partes do processo (inter partes); já o controle de constitucionalidade concentrado (controle austríaco - Kelseniano), concede tal atribuição exclusivamente a um tribunal próprio e específico (geralmente Tribunais Constitucionais) e gera decisões com efeito para todos (erga omnes), com a consequente expulsão do ordenamento jurídico das normas que sejam tidas como inconstitucionais. Neste modelo, não há de se falar da competência dos tribunais ordinários para tal exercício26. Estes dois modelos são oriundos de tradições jurídico-políticas muito diferentes que, em particular partem de divergentes interpretações do princípio 24 URBANO, Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional: Evolução Histórica e Modelos do Controlo da Constitucionalidade. Almedina: 2014. p. 17. 25 CORREIA, Alves Fernando. Direito Constitucional: A Justiça Constitucional. Almedina: 2001, p. 38. 26 CORREIA, Alves Fernando. Direito Constitucional: A Justiça Constitucional. Almedina: 2001, p. 20.

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da separação de poderes na origem da divisão nas tradições jurídicas civil law e common law. No entanto, ambos têm dado origem a sistemas híbridos de controle de constitucionalidade, onde os traços de fiscalização abstrata concentrada e concreta difusa de cada um dos sistemas se misturam. Neste sentido, mais do que a comparação entre os dois sistemas interessa perspectivar como ambos os sistemas contribuíram, a partir das pistas do Direito Comparado, para a formação dos sistemas vigentes de fiscalização da constitucionalidade em Portugal e no Brasil. Vejamos de forma mais detalhada.

4.1. Controle de Constitucionalidade Austríaco O controle de constitucionalidade austríaco (Verfassungsgerichtsbarkeit) tem como principal característica a concentração desta atividade por um Tribunal Constitucional próprio e específico. Na década de 30 do século XX, Hans Kelsen e Carl Schmitt passaram a duelar sobre quem teria competência para controlar a Constituição, se o Poder Judiciário ou ao Chefe de Estado. Para Kelsen mister a necessidade de criar-se um Tribunal com competência exclusiva para tal atividade, não podendo haver esse controle pelos juízos ordinários e até mesmo pelos de topo27. Por sua vez, Carl Schmitt defendia a entrega do controle da Constituição a um órgão político, mais precisamente ao Chefe do Estado, por entender que defender a Constituição é defender o Estado, e que por isso não poderia haver a concentração do poder de controlá-la senão pelo poder Executivo28. Assim entendia por levar em consideração que, sendo a Constituição criada com fundamento político, não haveria outro caminho senão entregá-la a um órgão político – o que não seria o Poder Judiciário. Desta maneira, enquanto Hans Kelsen estava mais apegado à ideia de legalidade, coincidindo a ideia de Estado com a de ordem jurídica, Carl Schmitt privilegiava a ideia de legitimidade, consubstanciando a escolha do Chefe de Estado como que uma forma de “inserir um elemento de legitimidade material”, 27 KELSEN. Hans. La Garantie jurisdicionnelle de la Constitution. In Revue du Droit Public et de la Science Politique en France et à l’etranger, tomo 45, XXXV ano, 1928. In: URBANO. Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional. Almedina, 2014. p. 39. 28 Deixe-se claro que Schmitt não defendia um autocontrole, ao contrário, ele determinava que “o controle de constitucionalidade não deveria ser confiado ao parlamento. As suas reticencias em relação a esta solução assentavam numa dupla ordem de razões. Por um lado, o fato de que o parlamento não deixava de ser um potencial agressor da constituição, porventura até mais do que o executivo, entretanto domesticado. Para além disso, o controle de constitucionalidade não deveria ser atribuído ao parlamento, pois nesse caso ele seria juiz de causa própria. Quanto a atribuição deste controle ao governo, Smitch tinha consciência dos anticorpos que ainda restavam em relação ao poder executivo”. URBANO. Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional. Almedina, 2014. p. 41.

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desde logo, no sistema do controle29. Portanto, na ideia de Kelsen deveria haver um tribunal específico para exercer tal atividade, e este tribunal deveria estar de fora da organização judiciária, tendo total e plena autonomia para coadunar os atos e normas infraconstitucionais ao ditado pela Constituição.

4.2. Controle de Constitucionalidade Norte-Americano (judicial review): Os norte-americanos são propulsores no método de controle de constitucionalidade de forma difusa. Diversos fatores influenciaram o seu abrolhar. Primeiramente, cabe destacar que sempre houve uma grande confiabilidade ao Poder Judiciário, inclusive este poder, por vezes, decidia para além da norma sem que houvesse, em regra, discordância do jurisdicionado. Outrossim, foi nos Estados Unidos da América que vemos o primeiro modelo de Constituição gizada nos elementos centrais do constitucionalismo contemporâneo. Diga-se, ainda, que os norte-americanos, desde cedo assumiram e preservaram a real natureza de sua Constituição, dando-a força normativa e colocando-a no panorama superior das normas. Além do mais, os norte-americanos se apresentavam como um país que lutava incansavelmente pela liberdade de seu povo30. Por tudo isso, não tão longe da criação da Constituição Federal de 1787, o primeiro ato de controle se deu em 1803, no famoso caso Marbury x Madison31, onde o juiz John Marshall, mesmo sem ter apoio na Constituição Federal (por não existir texto expresso) proclamou que “1) A constituição é superior a qual29 URBANO. Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional. Almedina, 2014. p. 40. 30 URBANO. Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional. Almedina, 2014. p. 26-28. 31 Importante que se diga que parte da doutrina preleciona que a decisão, neste caso, foi de caráter eminentemente política, de forma que “o interesse de Marshall ter-se-á limitado a reproduzir a posição do seu partido (o Federalista), sendo pois a sua atuação politicamente motivada, levando a cabo que foi num contexto de uma disputa partidária. Ainda preleciona outros autores que nada de novo foi criado, bastando desde logo recordar que os seus fundamentos teóricos já tinham sido desenvolvidos e expostos por Alexander Hamilton. ALFANGE, Júnior. Dean, “Marbury x Madison and original understandings of judicial review: in defese of traditional wisdom. In: URBANO. Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional. Almedina, 2014. p. 29. Urbano elenca que o caso tratou-se de uma disputa política entre dois partidos com ideais opostos, de tal maneira que “Em síntese, a decisão de Marshall (e dos restantes juízes pró-Federalistas da Supreme Court) foi bem mais complexa do que à primeira vista pode parecer, e envolve grandes cálculos/benefícios relativamente a diversos aspectos. O que importava fundamentalmente era garantir os ideais federalistas, marcar posição, mostrar aos outros poderes a autoridade do poder judicial, dar a imagem de protetores dos direitos fundamentais (contra os abusos dos poderes), e, também, assegurar a supremacia e o respeito da constituição, tudo isto sem entrar em grandes confrontos com esses outros poderes. Já para o anti-Federalismo, o principal objetivo que os movia era o de fazer gorar a reforma judiciária de John Adams e assim enfraquecer os Federalistas no seu último reduto, o poder judicial”. URBANO. Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional. Almedina, 2014. p. 35-36.

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quer lei ordinária do parlamento; qualquer lei desconforme com a constituição é inválida, e 2) Os tribunais têm autoridade para invalidar uma lei inconstitucional.”32 Neste momento instituiu-se o judicial review of legislation, dando a qualquer juiz, independente do seu grau de jurisdição, o poder de garantir a Constituição Federal. Estaríamos, portanto, diante de um controle difuso de constitucionalidade, não sendo atribuída tal função a apenas um tribunal específico, como defendera Kelsen.

5. O Transplante do Controle de Constitucionalidade em Portugal e no Brasil A Constituição portuguesa de 1976 e a brasileira de 1988 gizaram-se, até certo modo, nos mesmos elementos histórico-políticos. Além da nova visão do constitucionalismo moderno, que trouxe uma verdadeira força normativa às Constituições estatais do final do século XX, dando primazia aos direitos e garantias individuais, também se destaca a marcha em busca da democracia e do esfacelamento do autoritarismo estatal. O pós-guerra fomentou um Estado Constitucional de Cooperação, com elementos bastante similares, tais quais a “cláusula de abertura” dos direitos fundamentais numa arena global, a inserção em tratados e convenções de proteção aos direitos humanos, bem como a participação de blocos regionais (sistema europeu e interamericano), o que gerou um arcabouço de cruzamentos normativos. Não se quer, com isso, afirmar que existe uma exata similitude entre todos os institutos de sistemas jurídicos passiveis de comparação. Tomando como exemplo o Brasil e Portugal, apesar de as suas Constituições terem várias similitudes em seus textos normativos e em elementos histórico-políticos que as constituíram, é preciso elencar que alguns comportamentos da Justiça Constitucional brasileira jamais se coadunariam com a Justiça Constitucional portuguesa. Tomemos como exemplo as reiteradas prolações de decisões do Judiciário brasileiro em que concede antecipação dos efeitos da tutela Jurídico-Constitucional para suspender determinada matéria constitucional ou, ainda, transplantar para Portugal a mutação constitucional de forma deliberada, sem qualquer elemento tecnicamente plausível. Do mesmo modo também não seria compatível a transfusão para o Brasil do princípio da colegialidade do Tribunal Constitu-

32 URBANO. Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional. Almedina, 2014. p. 28.

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cional Português33. Tem de ser tomada de igual sorte a diferente organização do poder político nas Constituições vigentes em Portugal, onde vigora um sistema de governo semipresidencial, e no Brasil, organizado como um sistema presidencial, que tem, entre outros, impacto na definição da legitimidade processual ativa na fiscalização da constitucionalidade. Entretanto, como dito, na contramão dessas limitações também enxergamos institutos que foram estampados nas Cartas Constitucionais de ambos os referidos países, como exemplo o controle de constitucionalidade (que tem grande similitude e somente se divergem nos aspectos organizacionais). Entre estas similitudes a mais decisiva será a própria previsão de um sistema judicial de garantia da Constituição, na esteira da tradição Constitucional global, reforçada a natureza jurídico-fundamental do Direito de acesso aos tribunais, na Constituição da República Portuguesa previsto no artigo 26.º, na Constituição da República Federativa do Brasil, no artigo 5º, XXXV. Cabe-nos salientar, todavia, que referidas similitudes não decorreram de uma fertilização cruzada entre Brasil e Portugal, mas, sim, da transposição dos modelos de controle judicial da constitucionalidade das leis já desenhados desde o século XIX – austríaco e americano. Como já referido, o exercício mais interessante desta perspectiva é procurar saber como as ferramentas do Direito Comparado operaram na criação, por transplante, de soluções tão diversas originalmente a partir destes dois modelos ideais. Nos dizeres do professor Fernando Correia, “pode-se dizer-se que estes dois modelos influenciaram, em maior ou menor medida, os sistemas de justiça constitucional de vários países europeus e de diferentes países ibero-americano”34. E ainda complementa o professor prelecionando que “é, neste contesto, que alguns autores salientam o fenômeno, ocorrido em vários países europeus, de “evolução convergente” dos dois modelos ou mesmo da “progressão fusão” dos controles”35. Com estes fundamentos é que defendemos a importância do direito comparado, tendo-o (desde que o comparatista utilize de todas as “ferramentas” hábeis a chegar na finalidade do transplante) como sinônimo de desenvolvimento de instituto normativos. Passaremos, agora, a fazer um estudo comparativo do controle português e brasileiro, de modo que demonstraremos as similitudes de ambos para, com 33 ALEXANDRINO. José Melo. Estudos sobre o constitucionalismo no mundo de língua portuguesa – vol. ii – Brasil e Portugal AAFDL – 2018. p. 8-9. Disponível em: < https://www.icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/introducao_jose_melo_alexandrino_vol._ii_brasil_e_portugal. pdf?253 > Acesso em 05 de dezembro de 2019. 34 CORREIA, Alves Fernando. Direito Constitucional: A Justiça Constitucional. Almedina: 2001, p. 49 35 CORREIA, Alves Fernando. Direito Constitucional: A Justiça Constitucional. Almedina: 2001, p. 49

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isso, trazer, de forma pragmática, a importância do transplante normativo – que decorreu a recepção austríaca e norte-americana em ambas as Constituições.

6. Controle de Constitucionalidade em Portugal O ordenamento constitucional português adotou o controle norte-americano (judicial-review – controle descentrado ou difuso) e austríaco (controle concentrado) de constitucionalidade, formando um sistema misto. Procurou-se conjugar as principais características e benefícios dos modelos expostos, em busca de uma melhor guarda judicante. Denota-se, portanto, uma evolução convergente dos dois modelos ou mesmo da progressiva fusão destes controles36. Tem-se, portanto, um (i) controle concreto ou incidental, que fica a cargo de todos os Tribunais ordinários (controle difuso), gerando coisa julgada inter partes; e um (ii) controle abstrato, direto, onde se busca a tutela jurídico-constitucional através de uma via de ação com natureza específica de discussão sobre a conformidade da norma com a Constituição, neste caso, a competência é somente do Tribunal Constitucional Português e gera efeito erga omnes. Tais controles podem se dar de forma repressiva/sucessiva ou preventiva. Assim, quando uma norma já faz parte do ordenamento jurídico português, estamos diante do controle repressivo/sucessivo de constitucionalidade, de sorte que referida norma, tida como inconstitucional, será expelida do sistema legal português. Já preventivo, define-se como “o controle que incide sobre o procedimento monogenético, ou seja, antes que o texto legal seja promulgado”37, caracterizando-se pela barragem da entrada em vigor do ato legislativo aprovado pelos órgãos competentes, mas ainda não promulgada pelo Presidente da República. Ainda encontramos o controle de constitucionalidade por omissão (omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas

36 CORREIA, Alves Fernando. Direito Constitucional: A Justiça Constitucional. Almedina: 2001, p. 49. 37 CRETELLA JR., José. Elementos de direito constitucional. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2000, p. 102.

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constitucionais)38-39 que, todavia, ainda continua sendo de competência do poder judiciário.

7. Controle de Constitucionalidade no Brasil Evitando tautologia em nosso ensaio, cabe afirmar, categoricamente, que a sistemática adotada pela Constituição brasileira tem grandes convergências com a portuguesa – claro, com algumas especificidades, conforme será visto – e não poderia ser diferente, haja vista ambas terem transplantado referido instituto da mesma fonte. Primeiramente, insta esclarecer que o controle também se dá pelo viés austríaco e norte-americano – uma forma mista de controle. Destarte, a Justiça Constitucional é compreendida por todos os seus órgãos e graus de jurisdição, desde o juízo de piso até o Supremo Tribunal Federal. A Corte Suprema tem competência para processar e julgar ações que objetivam declarar (in)constitucional norma Federal, por meio do controle concentrado e abstrato, e isto pode se dar por meio dos seguintes instrumentos: (i) Ação Direta de Inconstitucionalidade; (ii) Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão; (iii) Ação Declaratória de Constitucionalidade; (iv) Ação de Descumprimento de Preceitos Fundamentais40, mas também pode julgar de forma incidental. Os Tribunais dos Estados membros - segundo-grau de jurisdição – (justiça Estadual) tem competência para declarar a (in)constitucionalidade de norma ou ato Estadual - controle difuso e abstrato. Entretanto também tem competência para controlar de forma concreta – controle difuso e concreto (gerando apenas efeito inter partes). No Brasil apenas nos deparamos com o controle repressivo/sucessivo, não havendo taxação normativa quanto a competência do Poder Judiciário (heterocontrole) 38 CORREIA, Alves Fernando. Direito Constitucional: A Justiça Constitucional. Almedina: 2001, p. 61. 39 Artigo 283.º Inconstitucionalidade por omissão 1. A requerimento do Presidente da República, do Provedor de Justiça ou, com fundamento em violação de direitos das regiões autónomas, dos presidentes das Assembleias Legislativas das regiões autónomas, o Tribunal Constitucional aprecia e verifica o não cumprimento da Constituição por omissão das medidas legislativas necessárias para tornar exequíveis as normas constitucionais. 2. Quando o Tribunal Constitucional verificar a existência de inconstitucionalidade por omissão, dará disso conhecimento ao órgão legislativo competente. Disponível em: < https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx > Acesso em 31 de janeiro de 2018. 40 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: I - processar e julgar, originariamente: a) a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal; § 1º A arguição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm > Acesso em 06 de dezembro de 2019.

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para exercer o controle preventivo. Não será estranha a esta divergência face ao modelo português da organização presidencial do poder político, pelo qual o presidente dirige o Governo, enquanto e Portugal assume um papel de arbitragem da luta política que quotidianamente decorre no Parlamento. Entretanto, em caso de vício quanto à forma, deve o Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal para normas Federais e Tribunais Estaduais para normas Estaduais) ser acionado por meio de Mandado de Segurança com o fito de coibir referido vicio41-42. 41 Ementa: CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE PREVENTIVO DE CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE PROJETO DE LEI. INVIABILIDADE. 1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa corrigir o vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não. 2. Sendo inadmissível o controle preventivo da constitucionalidade material das normas em curso de formação, não cabe atribuir a parlamentar, a quem a Constituição nega habilitação para provocar o controle abstrato repressivo, a prerrogativa, sob todos os aspectos mais abrangente e mais eficiente, de provocar esse mesmo controle antecipadamente, por via de mandado de segurança. 3. A prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, eventualmente, um projeto assim se transformar em lei, sempre haverá a possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico. 4. Mandado de segurança indeferido. (Relator(a) p/ Acórdão: Min. TEORI ZAVASCKI. Julgamento: 20/06/2013 Órgão Julgador: Tribunal Pleno). Disponível em: < http://www.stf.jus.br/ portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28controle+preventivo+de+constitucionalidade+%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/ok3ordn> Acesso em: 05 de dezembro de 2019. 42 Entretanto existe uma divergência na doutrina. Uma corrente entende que não lhe cabe tal atribuição uma vez que não existe, nem na constituição nem no ordenamento interno do STF, qualquer autorização para tal serviço, o que haveria uma interferência abusiva do judiciário quando da violação da separação de poderes. Já a outra corrente adota a tese de que, por haver um direito consagrado atinente a inafastabilidade jurídica (art. 5º, XXXV), poderia sim o poder judiciário exercer tal atribuição. MESSA, Ana Flávia. Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Rideel, 2013, p. 196-197.

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Em relação a competência do Poder Legislativo na prática do controle preventivo, cabe a Comissão Permanente de Constituição e Justiça - que tem a função de analisar a compatibilidade de um projeto de lei ou de emenda constitucional que tramita na casa legislativa com a Constituição Federal – efetuar tal atividade43. Também pode ser exercido pelo plenário do Congresso Nacional quando rejeitar o projeto ou proposta alegando sua inconstitucionalidade, ou pelo presidente da casa legislativa quando, no exercício da sua função, entender que a norma tramitando na casa é inconstitucional. Ainda é dado ao poder executivo a função de controle preventivo de constitucionalidade, estas atividades dar-se-á quando o chefe do executivo (Presidente da República) dá seu veto jurídico, ou seja, rejeita o projeto de lei ou de emenda constitucional alegando a sua inconstitucionalidade44.

8. Conclusão Descritivamente e analiticamente, demonstramos a importância do direito comparado pelo atual viés (com métodos e formas de utilização). Não bastasse os seus ensinamentos nas Escolas de Direito já a partir do século XIX, só no final do século XX que a sua expansão metodológica se fortifica. Sua importância se estende para além dos estudos e trabalhos científicos, gotejando-se na fidalga atividade de desenvolver os ordenamentos jurídicos nacionais e supranacionais. Dentre as suas diversas facetas, nos deparamos as ferramentas do Dirieto Comparado são decisivas na produção legislativa, mesmo de natureza constitucional, com a natureza de transplante normativo, protagonista da multiplicação de diversos institutos alienígenas nos ordenamentos nacionais. A garantia da Constituição adotada pelo constitucionalismo contemporâneo, que profere uma justiça constitucional ampla e fundada em uma maior proteção aos princípios e preceitos consagrados nas Cartas Magnas, apoia-se no desenvolvimento científico, que em grande parte se inspirou em instrumentos oriundos de outros ordenamentos. No caso do Brasil e de Portugal, o controle de constitucionalidade, que é um dos maiores (se não o maior) mecanismos para salvaguardar o Estado de Direito Democrático, decorreu da implantação das ferramentas normativas produzidas na Áustria (controle concentrado – Kelseniano) e nos Estados Unidos da América (controle difuso – Judicial Review).

43 Referida comissão dará um parecer sobre a constitucionalidade ou não da norma. Havendo parecer sobre a inconstitucionalidade, este terá força conclusiva e vinculante se não houver recurso de 1/10 dos membros da Casa a que pertence a comissão, caso contrário o parecer não tem força vinculante. 44 MESSA, Ana Flávia. Direito Constitucional. 3ª ed. São Paulo: Rideel, 2013, p. 196-197.

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Em ficando estabelecido um controle “misto”, podendo ser aplicado de forma concentrada e difusa, acreditamos em um desenvolvimento do instituto, na medida em que o seu objeto principal (garantir o texto constitucional) se amplia, dada a possibilidade do seu uso por todos os órgãos jurídico-constitucionais. Infirme-se, por fim, que a apresentação do transplante do controle de constitucionalidade pela Constituição de Portugal (1978) e do Brasil (1988) serviu apenas como exemplo de demonstração da importância da transfusão normativa, de modo que poderíamos ter citado centenas de outros arquétipos para chegar a tal fim.

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ESTUDO JURÍDICO-COMPARATIVO DO “ASSENTO” PORTUGUÊS: SERIA A “SÚMULA VINCULANTE” A VERSÃO BRASILEIRA DO INSTITUTO LUSITANO? Murilo Strätz

Resumo: Trata-se de estudo jurídico-comparativo dos institutos do assento português e da súmula vinculante brasileira, conjugado com exame crítico dos fundamentos que levaram à declaração de inconstitucionalidade da previsão legal do assento enquanto fonte de direito (“doutrina com força obrigatória geral”). A conclusão é no sentido da compatibilidade da súmula com a Constituição brasileira. Abstract: Comparative legal study of the Portuguese “assento” and the Brazilian “súmula vinculante”, together with a critical examination of the legal arguments that led to the declaration of unconstitutionality of the “assento” as a source of law (“doctrine with general binding force”). Conclusion on the compatibility of the “súmula vinculante” with the Brazilian Constitution. Palavras-chave: Assentos – Súmula Vinculante – Direito Comparado.

1. Introdução O trabalho principia por delinear as características históricas e dogmáticas dos dois tipos de assento desenvolvidos no Direito Português, ambos atualmente extintos: o vetusto assento concebido no século XVI, a cargo da Casa de

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Estudo jurídico-comparativo do “assento” português: seria a “súmula vinculante” a versão brasileira do instituto lusitano? Murilo Strätz

Suplicação, e o assento recriado em 1926, cuja formulação passou a ser atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça. Na sequência passa-se a estudar a natureza jurídica dos assentos, bem como os seus contornos processuais mais evidentes, com destaque para as características que levaram o Tribunal Constitucional a declarar, nos anos de 1993 e 1994, a inconstitucionalidade desse instituto jurídico. A partir dos fundamentos contidos nas decisões da Corte Constitucional e das razões que conduziram à sua formal revogação, passa-se a construir uma análise jurídico-comparativa entre o instituto lusitano do assento e o instrumento brasileiro da súmula vinculante, para ao final se inferirem determinadas considerações conclusivas.

2. Os Assentos do Direito Português: breve histórico sobre dois institutos diversos Até serem declarados inconstitucionais, em 1993, e depois formalmente revogados, em 1995,1 havia em Portugal dois tipos de instituto de “assento”: o mais antigo, de competência da Casa de Suplicação, e o mais recente, à disposição do Supremo Tribunal de Justiça, recriado em 1926. Segundo Rogério Cruz e Tucci2, o Alvará de 10 de dezembro de 1518, que atravessou as Ordenações Manuelinas e Filipinas e até mesmo a Lei da Boa Razão3, de 18 de agosto de 1769, estabeleceu que os “assentos” da Casa de Suplicação teriam força vinculante sobre os demais órgãos do Judiciário português. 1 O Tribunal Constitucional português declarou inconstitucional, com efeitos inter partes, o instituto do assento (Acórdão 810/1993), o qual acabou sendo formalmente revogado, dois anos depois, pelo Decreto-Lei n.º 329-A/1995, de 12 de Dezembro de 1995. 2 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 135/145. 3 Dissecando a importância que a “Lei da Boa Razão” teve no Direito português, António Manuel Hespanha explica os seus principais desdobramentos sobre as “fontes de direito”, verbis: “A Lei da Boa Razão, de 18/08/1769, reviu todo o sistema de fontes de direito no sentido de tornar o direito mais certo, ou porque estava fixado na lei do Estado, ou porque estava organizado em sistema orientados por grandes princípios. Isto equivalia à proscrição do direito doutrinal e jurisprudencial que, como se sabe, constituía a espinha dorsal do sistema do ius commune; assim, bane-se a autoridade de Bártolo, de Acúrsio e da opinio communis doctorum, o mesmo acontecendo com a vigência do direito canónico nos tribunais comuns. Mantém-se a autoridade subsidiária do direito romano, mas apenas quando este fosse conforme à Boa Razão, ou seja – como se esclarecerá depois nos Estatutos da Universidade – aos princípios jurídico-políticos recebidos nas nações “polidas e civilizadas”. Em contrapartida, restringe-se a faculdade de fixar a jurisprudência aos assentos da Casa da Suplicação, ao mesmo tempo que se nega força vinculativa aos “estilos de julgar” dos tribunais e se estabelecem condições muito rigorosas de validade para os costumes” (HESPANHA, António Manuel. A cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Coimbra: Almedina, 2012, p. 350).

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Estes assentos não devem ser confundidos com os que futuramente passariam a ser editados pelo Supremo Tribunal de Justiça, que veio a suceder aquela Casa. O fato de aqueles primeiros assentos terem sobrevivido à Lei da Boa Razão é deveras digno de nota, pois o espírito legalista do Iluminismo, coincidindo com a gestão de Marquês de Pombal, influenciou sobremaneira as reformas por este levadas a cabo, no sentido de institucionalmente enfraquecer as demais modalidades de fonte de Direito que pudessem concorrer com a lei formal. A única jurisprudência admitida pela Lei da Boa razão era a representada pelos assentos da Casa de Suplicação, restando terminantemente vedada a vinculação, enquanto fonte de direito, dos “estilos ou praxes de julgar”. Em todo caso, obrigatório era o recurso ao rei na hipótese de interpretação de normas conflituosas ou integração das lacunas, embora na prática tal obrigação tivesse caído em desuso.4 Não fosse a ausência de Código em Portugal, a lei passaria, segundo a reforma pombalina, a gozar de um estatuto jurídico quase que absoluto, o que só veio a acontecer, segundo António Hespanha5, com o tardio advento do Código Civil português, em 1867, sessenta e três anos depois do Código Napoleônico. Considerando-se o papel da Casa de Suplicação em seus primórdios, um tribunal ainda muito subordinado à figura do Rei, de onde todo o poder emanava, é curial inferir-se que eventuais dúvidas na interpretação de um texto normativo deveriam ser resolvidas de acordo com a vontade soberana do Monarca, confundido que era com a própria noção de Estado. Nesse sentido, a Casa de Suplicação, enquanto extensão do poder real, poderia ser comparada ao do antigo ‘Tribunal de Cassação’ francês, o qual era incumbido de fixar a interpretação da única fonte de direito, a lei.

4 E o autor acrescenta, mais adiante: “Os ‘estilos’ ou praxes de julgar deixam de ter força vinculativa. Quanto aos ‘assentos’, normas de aplicação vinculativa estabelecidas por um tribunal a propósito de um caso concreto (cf. Ord. Fil., I, 5, 5), restringem-se agora aos do primeiro tribunal de justiça do reino, a Casa da Suplicação (Lei da Boa Razão, 18/8/1769). E, embora não aplicada, mantinha-se a ordenação que mandava recorrer ao rei no caso de dificuldade na interpretação ou integração das lacunas (L. 18/8/1769, § 11; Ord. Fil., III, 64, 2)” (HESPANHA, António Manuel. A cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Coimbra: Almedina, 2012, p. 426, NR 794). 5 “Neste contexto, a permanência do doutrinarismo jusracionalista dos finais do século XVIII (Martini, Heineccius, Thomasius, Wollf), combinado com a invocação direta dos modernos códigos estrangeiros e da doutrina sobre eles construída, permitida pela Lei da Boa Razão, mantém-se até 1867 (Ibidem, p. 426).

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Estudo jurídico-comparativo do “assento” português: seria a “súmula vinculante” a versão brasileira do instituto lusitano? Murilo Strätz

Assim, pode-se dizer que o instituto do assento quinhentista, de competência da Casa de Suplicação, fazia as vezes de um référé legislatif6, no sentido de servir para corrigir, pela via legislativa, uma falha legal do sistema objetivo, com caráter geral, na tentativa de impedir os juízes de “interpretar” as leis. Nesse período de culto sagrado da lei, a separação entre criar o Direito e aplicá-lo era muito rígida, devido ao temor que os revolucionários tinham dos desmandos que eram atribuídos aos juízes do Ancien Régime. Originariamente, as Cortes de Cassação7 eram extensão do Poder Legislativo, criadas com a missão de controlar a interpretação que os juízes e demais tribunais faziam das leis aprovadas pelo Parlamento. Nos dizeres de Robespierre, “le Tribunal de Cassation n’est point le juge des citoyens, mais le protecteur de lois”8. Por isso se diz que o Tribunal de Cassação, na forma como inicialmente concebi-

6 O instituto francês do référé legislatif foi formalmente instituído pelos revolucionários em 1790, embora suas verdadeiras origens remontem a leis de Justiniano do século VI, ao Direito Canônico e a uma Ordenança Civil francesa de 1667. Seu objetivo era, como o próprio nome indica, “referir” ao legislador eventual falha, lacuna ou conflito interpretativo sobre determinada lei, a fim de que o órgão legiferante procedesse à interpretação autêntica do texto controvertido ou o colmatasse. Com isso, pretendia-se evitar que os juízes subvertessem a aplicação da lei por vias interpretativas (FRATE, Paolo Alvazzi del. Aux origines du référé législatif: interprétation et jurisprudence dans les cahiers de doléances de 1789. Revue historique de droit français et étranger. Vol. 86, n. 2 (AVRILJUIN 2008), pp. 253-262). 7 “Legítima sucessora do ‘Parlamento de Paris’, ganhou o nome de ‘Tribunal de Cassação’, nos termos da lei de 27 de novembro-1o de dezembro de 1790. Com Napoleão Bonaparte, em 1804, recebeu a denominação histórica de ‘Corte de Cassação’ e converteu-se na mais alta jurisdição ordinária francesa nas matérias civis, comerciais, laborais e criminais. A concepção de um tribunal com poderes cassatórios espalhou-se pela Europa, juntamente com as tropas napoleônicas. Luxemburgo, Bélgica e Itália possuem cortes com perfil semelhante à Cour de Cassation francesa. A Corte de Cassação divide-se em: a) uma Câmara Criminal (Chambre criminelle - “Crim.”) b) uma Câmara Trabalhista (Chambre sociale – “Soc.”); c) uma Câmara Comercial (Chambre commerciale -“Com.”); d) três Câmaras Civis (Première chambre civile – “Civ. 1re”); Deuxième chambre civile (“Civ. 2e”); Troisième chambre civile (“Civ. 3e”), assim especializadas: i) direitos pessoais, de família e dos contratos; ii) responsabilidade civil e seguridade social; iii) Direito Imobiliário e da construção. A Corte pode funcionar ainda com “câmaras mistas”. O “Primeiro Presidente da Corte de Cassação” é a maior autoridade da Corte e também referido elegante e solenemente como o “primeiro magistrado de França”. Sua escolha é atribuída ao presidente da República Francesa, de entre os juízes indicados pelo Conselho Superior da Magistratura. Os franceses consideram que a Cassação é um tribunal de teses e não de fatos. Sua finalidade é estabelecer uma interpretação uniforme do direito ordinário para todo o território nacional, de modo a permitir que um súdito da República Francesa tenha sua vida, sua liberdade e seus bens considerados sob a óptica igualitária, um dos primados ainda hoje enaltecidos daquela sociedade” (RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Jurisprudência do Direito do Consumidor evolui na França. Consultor Jurídico. Acesso em 06/01/2020. Disponível em: https://www.conjur.com .br/2013-nov-20/direito-comparado-direito-consumidor-nacional-evolui-frances). 8 Apud NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 80.

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do, era judicial somente na estrutura, já que, funcionalmente, atuava como órgão acessório do Parlamento9. A sindicância do respeito à legalidade era, portanto, a sua função primordial, considerando que aos juízes, na quase nula função judicante que lhes cabia, não era dado “interpretar” a lei, muito menos ir além da sua fria letra gramatical, o que levou Montesquieu a afirmar, em seu célebre brocardo, que “os juízes são apenas a boca que pronuncia as palavras da lei”10. Assim era o Tribunal francês de Cassação, tal como os revolucionários o conceberam em 1790, enquanto órgão sucessor das funções que cabiam ao antigo Conselho do Rei11. Atualmente, entretanto, as Cortes de Cassação costumam situar-se a meio-termo entre a configuração institucional daquela versão originária da Assembleia Nacional francesa e a de um tribunal comum.12 As decisões da Corte de Cassação italiana, por exemplo, não possuem autoridade legal vinculante, ao contrário do que se dava com os assentos portugueses, atualmente já revogados. Também a Alemanha cogitou criar um instituto cuja estatura jurídica ficasse entre as figuras da decisão judicial e da lei, mas acabou abandonando a ideia, por entendê-la conflitante com o princípio da Tripartição dos Poderes, já que o órgão responsável por formular tal instituto também deveria ficar situado entre o Judiciário e o Legislativo, o que careceria de previsão constitucional.13 Já os supremos tribunais, por sua vez, foram desenhados para funcionar como a última instância do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, assegurar a uniformidade da jurisprudência. Na prática, “os próprios tribunais de cassação 9 O artigo 19 da Constituição francesa de 1791 previa o Tribunal de Cassação como “établi auprés du corps legislatif” (Idem, ibidem). 10 A restrita visão de Montesquieu sobre o papel dos juízes, enquanto «seres inanimados que não podem moderar o rigor da lei», celebrizou-se nesses termos, verbis: “Il pourrait arriver que la loi, qui est en même temps clairvoyante et aveugle, serait, en de certains cas, trop rigoureuse. Mais les juges de la nation ne sont, comme nous avons dit, que la bouche qui prononce les paroles de la loi; des êtres inanimés qui n’en peuvent modérer ni la force ni la rigueur” (MONTESQUIEU, Charles de Secondat de. De l’esprit des lois (1758). Édition établie par Laurent Versini. Paris : Éditions Gallimard, 1995, p. 116). 11 « Au sommet de la pyramide judiciaire, la Cour de cassation est en France la juridiction suprême chargée d’unifier le droit en vérifiant pour cela l’exacte application du droit par les juges du fond. Cette cour, «juge des décisions du juge», est historiquement la résurgence du Conseil du roi (et plus spécifiquement en son sein du Conseil des parties) qui avait délégué ce pouvoir de juger aux Parlements de l’Ancien Régime supprimés à la Révolution Française, rebaptisé en Tribunal de cassation dès 1790 » (Disponível em : http://www.justice.gouv.fr/histoire-et-patrimoine-10050/la-justice-danslhistoire-10288/histoire-de-la-cour-de-cassation-22450.html. Acesso em 06/01/2020). 12 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 33. 13 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 13.

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se converteram em verdadeiros tribunais de terceira instância – instância na qual a causa stricto sensu se vê submetida a um terceiro julgamento, ainda que de objeto material limitado”14. No ano de 1832, a Casa da Suplicação foi substituída pelo Supremo Tribunal de Justiça, o qual, até o ano de 1926, não podia, porém, editar os seus próprios “assentos”, senão apenas uniformizar a jurisprudência.15 Com efeito, a natureza dos assentos da Casa de Suplicação não pode ser confundida com a dos assentos que ficaram a cargo do Supremo Tribunal de Justiça a partir de 1926, já que aqueles tinham verdadeiro caráter legal, enquanto estes, judicial, conforme o próprio Supremo já reconheceu16. Em termos formais, os assentos deixaram de existir juntamente com o fim da Casa de Suplicação. Em de 1926, por meio do art. 66.º do Decreto 12.353/1926, os assentos foram formalmente reintroduzidos no ordenamento português, tais como hoje são conhecidos, isto é, enquanto mecanismos de uniformização da jurisprudência pelas cortes de revista. Trata-se dos assentos passíveis de serem instituídos pelo Supremo Tribunal de Justiça. Inicialmente eram instituto de Direito Processual Civil. Mas, em 1929, passaram também a ter previsão no processo criminal (Código de Processo Penal, artigos 608.º a 670.º). Posteriormente, foram definitivamente incorporados ao Código de Processo Civil português de 1939 (art. 768.º), tendo sobrevivido à passagem das Constituições de 1933 e 1976, bem como da Revisão Constitucional de 1982.17 Também eram expressamente previstos no art. 2º do atual Código Civil português (Decreto-Lei n.º 47344/66, de 25 de Novembro)18. A eficácia geral e vinculante (“doutrina com força obrigatória e geral”) do

14 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 647. 15 Desde a sua instituição em 1832, até à entrada em vigor do Decreto nº 12.353/1926, o Supremo Tribunal de Justiça não dispunha de competência para proferir assentos, mas apenas para uniformizar a jurisprudência, através da interpretação e aplicação da lei nos casos concretos que lhe eram submetidos. 16 Extrai-se do Acórdão nº 810/1993, por meio do qual o Supremo Tribunal de Justiça português declarou inconstitucional o instituto “novo” dos assentos, a diferença básica entre os “velhos assentos” (da Casa de Suplicação) e os “assentos” do Supremo Tribunal de Justiça, verbis: “Os velhos assentos eram interpretação autêntica, legislativa, e tinham, como tais, força de lei. Lavravam-se para o caso, depois, ‘não vir em dúvida’ (Ord. Fil., I, Tit. 3, § 5º; Ord. Man., I. V., Tit. 58, § 1º). Não julgavam ‘o direito das partes no particular de cada uma delas, mas, sim, a inteligência geral e perpétua de Lei em comum benefício’ (Lei de 18 de Agosto de 1769, § 2º)” (Disponível em http:// www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos /19930810.html. Acesso em 10/01/2020). 17 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 23, NR 56. 18 “Artigo 2.º (Assentos) Nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral.”

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assento foi mantida pelos Códigos de Processo Civil portugueses de 1939, 1961 e 1966.19 Após ser declarado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional português (Acórdão nº 810/1993), o instituto dos assentos foi formalmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 329-A/1995, de 12 de dezembro de 1995.

3. Natureza jurídica dos assentos Castanheira Neves, cuja doutrina foi uma das principais responsáveis pelo ocaso desse vetusto instituto que é o assento, já criticava o caráter abstrato, generalizável e comum dos assentos, bem assim o fato de eles se desvincularem do caráter historicamente individualizado do caso que esteve à sua base.20 Afirma que os assentos não se confundem com a “jurisprudência estabilizada”, pois esta consagra soluções que vêm do passado e persistem no tempo, enquanto aqueles constituem-se ex-novo e visam ao futuro, revestindo-se do caráter de “norma”. Diferenciam-se, portanto, tanto da “doctrina legal” do Supremo Tribunal espanhol quanto da “jurisprudência obrigatória” da Suprema Corte Mexicana.21 Restariam, portanto, para Castanheira Neves, três possíveis naturezas jurídicas dos assentos: 1) Normas legislativas de fundo, ainda que eventualmente consideradas como meras normas “interpretativas” (prescrições jurídico-normativas formais); 2) Instruções hierárquicas; e 3) Atos jurisdicionais. De acordo com o art. 1º, n. 2, do Código Civil português22, as leis, fontes imediatas do Direito por excelência, compreendem “todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes”, o que não afastaria do conceito legal, em tese, as disposições genéricas advindas do Judiciário, tal como se dava com os assentos formulados pelo Pleno do Supremo Tribunal de Justiça português. De outro lado, porém, a concepção mais hodierna de lei a identifica como produto emanado do Poder Legislativo, que, de modo espontâneo (sem necessi19 CRUZ E TUCCI, José Rogério. Precedente judicial como fonte de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, pp. 135-145. 20 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 4. 21 Ibidem, p. 11. 22 “Artigo 1.º (Fontes imediatas) 1. São fontes imediatas do direito as leis e as normas corporativas. 2. Consideram-se leis todas as disposições genéricas provindas dos órgãos estaduais competentes; são normas corporativas as regras ditadas pelos organismos representativos das diferentes categorias morais, culturais, económicas ou profissionais, no domínio das suas atribuições, bem como os respectivos estatutos e regulamentos internos. 3. As normas corporativas não podem contrariar as disposições legais de carácter imperativo.”

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dade de provocação) e por meio dos representantes eleitos pelo povo, pode criar normas jurídicas de caráter geral e abstrato, para vigorarem pro futuro e erga omnes, de modo inovador, indistinto e sem qualquer limite temático que não seja tão-somente a própria Constituição. Os juízes e tribunais, como é cediço, não criam normas a partir do nada, mas sim, quando muito, o fazem no decurso de um processo judicial instaurado por provocação de uma parte e com finalidades jurídicas muito específicas, de modo que não há que se confundir o modus operandi do legislador com o do Judiciário na criação de normas jurídicas em geral. Para Marcello Caetano23, o instituto do assento não constituía orginalmente uma lei interpretativa, mas sim uma norma interpretativa que vinculava apenas os órgãos judiciais. Daí não serem os assentos, em princípio, fonte imediata de direito, senão, quando muito, mera fonte mediata. Mas tal cenário foi alterado com a previsão, face à Constituição de 1933, do artigo 2º do Código Civil português, que passou a atribuir aos tribunais, ao fim e ao cabo, uma função legislativa quase que primária. Castanheira Neves indaga se os assentos seriam uma réplica das antigas “façanhas” do Direito Ibérico Medieval dos séculos XII a XV, ou mesmo se se assemelhariam aos “arrêts de reglements”, que costumavam ser expedidos pelo Parlamento francês durante o Ancien Régime, abolidos a partir das injunções levadas a efeito pelo 3º Estado por meio dos “cahiers de doléances”24 apresentados nas Assembleias Gerais de 1789. Mas o maior crítico dos assentos conclui que se trata de instrumento ainda mais arbitrário, quase próximo das “Directivas ou Princípios Directores” russos, próprios de regimes totalitários do leste europeu, que aglutinavam, indistintamente, funções judiciais, legislativas e administrativas.25 Castanheira Neves refuta a posição de que os assentos possam ser concebidos como meras “instruções hierárquicas”, pois entende que tal modo de vê-los esvaziaria o princípio da independência judicial formalmente garantido no Estatuto Judiciário (art. 111, a), anulando-o por completo.26 23 Marcello Caetano assim conceituava: “o assento é a definição em termos genéricos, e com caráter obrigatório para todos os tribunais dependentes daquele que o profere, do sentido que deve ser dado nos julgamentos futuros a uma norma legal de entendimento duvidoso” (CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo - Vol. II – 10ª ed. Coimbra: Almedina, 2017, p. 133). 24 FRATE, Paolo Alvazzi del. Aux origines du référé législatif: interprétation et jurisprudence dans les cahiers de doléances de 1789. Revue historique de droit français et étranger. Vol. 86, n. 2 (AVRILJUIN/2008), p. 259. 25 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 6, NR 13. 26 Ibidem, p. 19.

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Já J. Alberto dos Reis – autor intelectual do instituto dos assentos e do projeto que originou o CPC português de 1939 – sempre entendeu que a obediência, pelos juízes, à lei, implica a obediência à lei interpretada pelo assento, que é oriundo, ademais, do próprio Poder Judiciário a que os juízes estão vinculados, Poder este que é soberano, na forma do art. 71.º da Constituição portuguesa.27 Castanheira Neves temia que ocorresse com os assentos o fenômeno que há tempos já ocorre com a lei, no sentido da degradação do conceito de lei (a qual passa a ser vista como ato político de “efêmero oportunismo”), no que passou a ser conhecido como “inflação legislativa”. Assim, tamanha seria a inflação de assentos, que haveria o risco de serem editados assentos para interpretar outros assentos, isto é, “assentos sobre assentos”, ao invés apenas de assentos sobre leis ou sobre outras controvérsias jurídicas.28 Seriam os assentos fontes de direito, ou meros atos de aplicação do Direito, presos a um caráter puramente jurisdicional? Em verdade, possuem uma natureza mista, pois nascem de uma atividade jurisdicional, mas acabam regulando situações externas ao processo judicial do qual emanaram e, além disso, ostentam, outrossim, caráter vinculativo em relação aos demais juízes e tribunais que integram a estrutura judiciária cujo ápice hierárquico é ocupado pelo Pleno do Supremo Tribunal de Justiça, único órgão autorizado a formular assentos. Apesar da tensão entre o ius in thesi, fixado de modo uniforme, e o ius in hipothese, aplicado no caso concreto, os supremos passaram em geral a prestigiar a extensão, a todos os casos idênticos ou assemelhados, da solução que haviam fixado para determinado caso específico. Manuel de Andrade designa tal solução como “tese jurídica”29, conceito no qual se enquadram os padrões decisórios fixados pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça brasileiros ao estabelecerem o sentido hermenêutico do texto constitucional e das leis federais, respectivamente. Castanheira Neves critica o risco de engessamento do fenômeno jurídico que os assentos ofereciam, sobretudo a partir de 1961, quando a reforma proces27 “Se o juiz é obrigado a obedecer à lei, não se percebe em que é que fique diminuído o seu prestígio por ser obrigado a acatar um assento que se apresenta como a definição do sentido da lei, definição emanada do próprio poder a que o juiz pertence” (REIS, J. Alberto dos. Breve estudo sôbre a Reforma do Processo Civil e Comercial. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1929, p. 673). Com efeito, a vinculação é efeito jurídico da estrutura do processo judicial, e não ofensa à independência judicial. Estamos de acordo com J. Alberto dos Reis. 28 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 23. 29 ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Noções Elementares de Processo Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 221.

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sual revogou o art. 769 do CPC/1939, que previa a possibilidade de alteração/ revogação de assento.30 Enfim, concluindo este tópico sobre a natureza dos assentos, pode-se dizer que Castanheira Neves formula uma crítica de base, já que se contrapõe ao próprio paradigma positivista31 que, substituindo a lei pelo assento, deposita neste a solução pronta e acabada dos litígios jurídicos, sem a possibilidade de desenvolvimentos tópico-problemáticos a cargo dos juízes responsáveis pelos casos do dia-a-dia, pois vinculados aos assentos.

4. As declarações de inconstitucionalidade do assento enquanto instituto jurídico No ano de 1993, o Tribunal Constitucional português declarou inconstitucional, em processo de fiscalização concreta (com efeito apenas entre as partes litigantes), a parte final do art. 2º do Código Civil português (Decreto-Lei nº 47.344/1966), que assim dispunha: “Nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral” (Acórdão 810/1993).32. Para tanto, entendeu o Tribunal ser inconstitucional atribuir-se “força obrigatória geral” aos assentos, embora estes possam continuar a ser editados com finalidade meramente persuasiva. O único voto-vencido foi proferido

30 O legislador responsável por revogar aquele art. 769 provavelmente levou em consideração o fato de que, desde a sua concepção em 1926, um assento jamais chegou a ser revogado ou modificado pelo Supremo Tribunal de Justiça português (NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 195). 31 Segundo Castanheira Neves, o esquema normativista-subsuntivo, próprio daquela “certeza analítico-dedutiva”, é inválido metodologicamente, já que pressupõe uma dualidade entre fatos e normas que não se sustenta (Ibidem, pp. 50 e ss.). Assim, para Castanheira Neves, os aspectos fáticos relevantes só são revelados a partir da definição do problema jurídico que se quer resolver, e não pela situação fática em si considerada: “Todo o sentido jurídico problemático tem correlativo (e codetermina), como dissemos, um âmbito de relevância material” (Ibidem, p. 56). 32 Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19930810.html Acesso em 20/12/2019.

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pela Conselheira Maria da Assunção Esteves – no sentido da inconstitucionalidade total daquele art. 2º, em protesto33 à preservação do instituto. Três anos depois desse julgamento, agora em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade (com força obrigatória geral), a parte final do art. 2° do Código Civil foi declarada inconstitucional pelo Acórdão n° 743/1996 do Tribunal Constitucional, de acordo com a seguinte parte dispositiva, verbis: “Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, da norma do artigo 2º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115º, nº 5, da Constituição”34. Assim, o art. 2° do Código Civil foi declarado parcialmente inconstitucional, pois foi só a sua parte final reprochada, designadamente a que atribuía aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, de modo que ficou mantida a possibilidade de mera previsão de assentos para organização interna dos tribunais, sem efeitos externos nem força vinculante. 33 Extrai-se de parte do voto vencido, verbis: “No memorando que apresentei como primeira relatora, defendi a tese da inteira inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil, que determina que “nos casos declarados na lei, podem os tribunais fixar, por meio de assentos, doutrina com força obrigatória geral”. A tese vencedora julga inconstitucional um segmento da norma [o que contém a locução “doutrina com força obrigatória geral”] que, no entanto, esgota todo o sentido do artigo 2º do Código Civil. Depois, num vai-vem entre direito constituído e direito constituendo, reiventa a norma-objecto, com apoio num mecanismo de revisibilidade dos assentos que o sistema não prevê e com o qual, por isso, o sentido remissivo da norma do artigo 2º do Código Civil não conta. E, em nome da unidade da ordem jurídica, propõe um sistema alternativo de uniformização de jurisprudência que rejeita um critério comum de reconhecimento da normatividade entre os juízes do Supremo Tribunal de Justiça e os juízes dos tribunais inferiores, por um lado, e entre os tribunais e a comunidade interpretativa geral, por outro lado. Ao mesmo tempo, põe em causa a liberdade dos juízes, que a Constituição diz que “apenas estão sujeitos à lei” (C.R.P., artigo 206º). 2. A linha argumentativa central do acórdão dirige-se a contornar o problema da natureza legislativa dos assentos. Para isso amputa a norma do artigo 2º do Código Civil da expressão “doutrina com força obrigatória geral”. O acórdão reconhece, pois, que os assentos são inconstitucionais se dispuserem de força obrigatória geral. Como não existe outro lugar do sistema jurídico onde se defina a força vinculativa dos assentos, o acórdão, ao conceder neste ponto, teria de conceder na tese da inteira inconstitucionalidade da norma do artigo 2º do Código Civil, que é uma norma lógica e significativamente incindível” (Disponível em http:// www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ 19930810.html Acesso em 20/12/2019). 34 O Acórdão nº 743/1996 encontra-se disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt /tc/ acordaos/19960743.html Acesso em 15/01/2020. A fundamentação nele contida faz remissão expressa à motivação que constara do Acórdão 810/1993, do qual se destaca, em suma, que, verbis: “A Constituição não proíbe o legislador de estabelecer institutos adequados à uniformização da jurisprudência - era essa a primeira e essencial vocação dos assentos - mas veda-lhe seguramente a criação de instrumentos ali não previstos que, com eficácia externa (e, por maioria de razão , com força obrigatória geral) interpretem, integrem, modifiquem, suspendam ou revoguem normas legais. A colisão daquela norma com o texto constitucional radica assim, no facto de os assentos se arrogarem o direito de interpretação ou integração autêntica da lei, com força obrigatória geral, assumindo a natureza de actos não legislativos de interpretação ou integração das leis.”

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Entre esses dois importantes julgamentos (Acórdãos 810/1993 e 743/1996), o Tribunal Constitucional também proferiu os Acórdãos nº 407/1994 e 410/1994, aparelhados basicamente dos mesmos fundamentos do precedente original.

5. O revogado assento lusitano distingue-se da vigente súmula vinculante brasileira? Apesar da inegável semelhança entre os institutos do assento e da súmula vinculante, pequenas – porém importantes - diferenças devem ser apontadas. Embora ambos sejam instrumentos vocacionados a assegurar a segurança jurídica, a isonomia e a uniformidade jurisprudencial35, a primeira distinção é que o assento se caracterizava pela imutabilidade, enquanto os enunciados brasileiros de súmula podem sempre ser objeto de revisão pelo próprio tribunal. A revogação do art. 769.º do Código de Processo Civil de 1939 pela reforma processual levada a cabo em 1961, extinguiu-se a possibilidade, ao menos formal, de que o assento pudesse sofrer alterações, tal como aquele artigo permitia. O dispositivo legal revogado em 1961 previa que um assento poderia ser revisto a partir do voto de sete magistrados do Pleno do Supremo Tribunal de Justiça. Mas, na prática, isso jamais ocorreu, o que leva Castanheira Neves36 a presumir que tal desuso teria sido o móvel do legislador em revogar aquela previsão. Outra relevante diferença é que um enunciado da súmula vinculante só pode ser aprovado “após reiteradas decisões sobre matéria constitucional”, nos

35 Em mensagem institucional no sítio eletrônico do Supremo Tribunal de Justiça português, o Presidente deste enaltece a importância da fixação de padrões jurisprudenciais: “A sua função judicial é primordial na defesa de direitos, na preservação de bens jurídicos fundamentais e na resolução de litígios. Para o efeito, estabelece padrões jurisprudenciais para garantir a segurança jurídica e a consequente pacificação social” (Disponível em https://www.stj.pt/ Acesso em 09/01/2020). 36 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 1993, pp. 195-198.

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termos do art. 103.º da Constituição da República Federativa Brasileira37. Isto implica duas distinções da súmula em relação ao assento, já que só para a primeira se exige que: 1) haja mais de um julgamento no mesmo sentido (“reiteradas decisões”), e 2) tenha por objeto a interpretação constitucional, necessariamente, não cabendo editar-se verbete sumular vinculante sobre, por exemplo, normas infraconstitucionais. Além disso, enquanto o Supremo Tribunal de Justiça português era obrigado a redigir assentos,38 o Supremo Tribunal Federal brasileira edita seus enunciados de súmula vinculante de acordo com os seus próprios critérios de conveniência e oportunidade, não estando jungido para tanto. Por fim, mas não menos importante, é o fato de que a súmula vinculante, nos moldes brasileiros, tem expressa previsão constitucional, ao passo que os assentos lusitanos jamais tiveram assento na Constituição portuguesa, sendo previstos apenas em leis. Assim, considerando que não pode haver normas con

37 “Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.” 38 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 273, NR 604.

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stitucionais inconstitucionais, consoante a clássica lição de Otto Bachof39, o instituto brasileiro não contraria a Constituição, pois está nela previsto. Com efeito, o princípio ordenador da unidade hierárquico-normativa, a nortear a interpretação das constituições escritas, exige que todos os preceitos nelas positivados tenham a mesma dignidade formal. Portanto, enquanto o assento encontrava fundamento de validade em textos infraconstitucionais, a súmula vinculante é prevista pela própria Carta Política.

6. Análise jurídico-comparativa Como visto no tópico anterior, há muitas semelhanças entre os institutos do assento português e da súmula vinculante brasileira, assim como também há, todavia, importantes discrepâncias em suas conformações técnico-instrumentais, embora os objetivos colimados por ambos sejam os mesmos (segurança jurídica, isonomia, estabilidade decisória e a efetividade de uma prestação jurisdicional mais célere, econômica e confiável). Pode-se questionar se a abolição do instituto do assento deveria repercutir sobre a credibilidade da súmula vinculante, se se considerar que os fundamentos jurídicos que levaram à extinção daquele instituto português aplicam-se também à prima brasileira. É aqui que entra em ação um estudo jurídico-comparatístico. Se se adotar um critério comparativo que prestigie as diferenças entre os dois institutos, as respostas à pergunta acima tenderão a ser negativas; de forma inversa, provavelmente serão afirmativas as respostas dadas pelo observador que, em sua análise, valorize mais os traços que o assento e a súmula vinculante têm em comum, vale dizer, suas semelhanças. 39 BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994. Em rigor, para Bachof, as normas originárias de uma constituição não podem ser consideradas inconstitucionais. No caso brasileiro, porém, o instituto da súmula vinculante foi acrescido ao texto magno pelo Poder Constituinte Derivado, por meio da Emenda Constitucional nº 45, publicada no Diário Oficial da União de 31/12/2004, que instituiu a Reforma do Judiciário, com profundas modificações na estrutura de funcionamento do sistema brasileiro de justiça. Não obstante, ainda que não tenha sido fruto do Poder Constituinte Originário, a incorporação dos institutos da súmula vinculante e da Repercussão Geral no Direito brasileiro foi um importante fator de estabilização institucional das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal federal, bem como de valorização da sua jurisprudência dominante, com significativos ganhos para a efetividade da prestação jurisdicional e para o aumento da segurança jurídica. No dia 11/12/2019, celebrou-se cerimônia no Supremo Tribunal Federal, com a participação da Ordem dos Advogados Brasileiro (OAB) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em comemoração aos 15 anos de vigência daquela importantíssima Emenda Constitucional, com lançamento do livro “Emenda Constitucional nº 45/2004: 15 anos do novo Poder judiciário” (Disponível em http://portal.stf.jus.br/noticias /verNoticiaDetalhe. asp?idConteudo=432302&ori=2 Acesso em 15/01/2020).

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Mesmo que superada a discussão acerca da autonomia científica dos estudos jurídico-comparatísticos – sobretudo nos moldes do monopólio metodológico do Direito Comparado que Konrad Zweigert40 reivindicava em favor do funcionalismo -, o apelo ao método comparativo só cresce num mundo cada vez mais globalizado. Segundo Mark Van Hoecke, os comparatistas valem-se basicamente de seis métodos comparativos, quais sejam: método funcionalista, método analítico, método estrutural, método histórico, método jurídico-contextual (law-in-context method) e método do núcleo-comum dos países desenvolvidos (common-core method).41 Mas nem sempre esse apelo comparatístico preza por critérios metodológicos. Muitos o têm vulgarizado, a ponto de estudiosos mais ortodoxos torcerem o nariz só de ouvirem falar, em estudos acadêmicos, sobre o tão banalizado “método comparativo”. Isso não impede, contudo, que autores de renome se posicionem de modo diametralmente oposto às correntes mais apegadas à visão “científica do Direito”42, a qual exige, de modo bem definido, um “método” e um “objeto”. Filósofos da Escola Francesa como Pierre Legrand43 e Jacques Derrida44, por exemplo, são pensadores críticos que pregam a desconstrução do suposto objetivismo científico e de seus métodos formalmente lógico-sistemáticos. Isso não significa, po-

40 ZWEIGERT, Konrad; KÖTZ, Hein. An Introduction to Comparative Law. 3rd ed. Translated by Tony Weir. Oxford: Oxford University Press, 1996. 41 VAN HOECKE, Mark. “Methodology of comparative legal research”. In Law and Method. London: Queen Mary University Press, 2015. Disponível em file:///C:/Users/Murilo%20Stratz/Documents/textos%20 Doutorado/Methodology_of_Comparative_Legal_Research%20-%20Hoecke. pdf. Acesso em 15/01/2020. 42 “A Ciência do Direito pretende distinguir-se, via de regra, pelo seu método e também pelo seu objeto. Ela é vista pelos juristas como uma atividade sistemática que se volta principalmente para as normas (positivas, vão dizer alguns). Ciência da norma, Ciência do Direito desenvolveria, então, um método próprio que procuraria captá-la na sua situação concreta” (FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. A ciência do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 8). 43 LEGRAND, Pierre. “The same and the different”. In Comparative Legal Studies: Traditions and Transitions (Ed. by Pierre Legrand, Roderick Munday). Cambridge: Cambridge University Press, 2003, pp. 240 a 311. 44 Para Derrida, nenhum elemento se apresenta em si mesmo e por si só, senão numa relação de heterorreferência da qual as existências dos comparanda são entre si reciprocamente dependentes. Nas palavras do autor: verbis: “The play of differences supposes, in effect, syntheses and referrals which forbid at any moment, or in any sense, that a simple element be present in and of itself, referring only to itself. Whether in the order of spoken or written discourse, no element can function as a sign without referring to another element which itself is not simply present” (DERRIDA, Jacques. Positions. Trans. by Alan Bass. London: Athlone, 1981, p. 260).

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rém, uma total ausência de critérios ou protocolos mínimos que possibilitem a desconstrução.45 Sendo um desconstrutivista46, Derrida desenvolve um conceito segundo o qual as coisas não existem por si sós, mas se originam a partir de um processo de diferenciação: o conceito de différance. Segundo esta noção, a diferença é que constitui os entes, na medida em que não há uma rígida e prévia demarcação que os separe, mas sim um processo de diferenciação do qual os próprios entes diferenciandos se originariam.47 Neste sentido desconstrutivista, pode-se dizer que um jurista brasileiro só conseguirá interpretar a natureza jurídica do assento lusitano a partir do cotejo que inconscientemente fizer entre este instituto português e a súmula vinculante, já que comparar é uma necessidade existencial e, por conseguinte, instintiva e inexorável. Não se entenderá o assento sem se compreender a súmula, e vice-versa. Mas a compreensão desses dois institutos exige, ainda, a presença de um terceiro elemento, externo e, dentro do possível, “neutral”, o que é empresa nada fácil. Trata-se de uma metalinguagem (ou linguagem de segunda ordem) utilizada pelo comparatista com vistas a transcender a moldura dos quadros jurídicos do seu próprio sistema legal de origem e a projetar, a partir daí, uma versão ideal dos elementos que se comparam.48 A essa metalinguagem os teóricos do Direito 45 Simone Glanert destaca que Derrida, embora resistente a métodos, não é avesso à observância de certos protocolos: “Derrida’s resistance to what he himself stigmatizes as ‘scientificist objectivism’ or ‘naive objectivism’ cannot be taken to exclude the existence of certain protocols for the reading of texts, what he calls ‘a certain marching order’. (And Derrida agrees, of course, that there could be, if not a method, at least ‘regularities in the ways of putting certain questions in a deconstructive style’.)” (GLANERT, Simone. “Method?”. In Pier Giuseppe Monateri (Org.), Methods of Comparative Law, Elgar, Cheltenham, Northampton, 2012, pp. 61-81, p. 79). 46 Autores como Jacques Derrida (1930-2004), Michel Foucault (1926-1984), Gilles Deleuze (19251995) e Pierre Bourdieu (1930-2002) insurgiram-se contra os pensamentos estruturalistas, opondo-se, sobretudo, ao formalismo que caracteriza tais correntes. Derrida foi quem iniciou a Filosofia da Desconstrução, embora haja registro de Heidegger já houvesse, segundo alguns tradutores, utilizado essa expressão antes dos franceses (NEUVILLE, Sébastien. Philosophie du Droit. Paris: LGDJ Lextenso éditions, 2019, p. 283). 47 “Derrida’s philosophy can be understood as an explanation of how to think about differences. He argues, first, that difference is something that is required for thought and, second, that it should not be thought of as an inflexible demarcation between separated entities but as a process of differentiation from which those entities originate.” (COENDET, Thomas. Legal Reasoning: Arguments from Comparison. Archiv für Rechts - und Sozialphilosophie, 102, 2016/4, p. 481). 48 “In order to compare, it has been emphasized, we need a tertium comparationis. We should not look at a foreign legal system with the eyes and doctrinal framework of our own legal system, but try to transcend it, by using external ‘neutral’ elements for comparing legal systems” (VAN HOECKE, Mark. “Methodology of comparative legal research”. In Law and Method. London: Queen Mary University Press, 2015, p. 27).

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Comparado dão o nome de tertium comparationis, categoria tão necessária para o desejável distanciamento do comparador. No presente estudo jurídico-comparativo, o distanciamento do comparatista para a formulação do modelo ideal projetado pelo cotejo crítico e analítico busca no modelo da argumentação jurídica os fundamentos necessários à comparação entre assento e súmula vinculante. Isso porque, somente mediante a argumentação jurídica, é que a presente comparação despir-se-á dos elementos puramente normativos (deontológicos) que caracterizam os sistemas português e brasileiro, cada um à sua maneira, e que tanto limitam a isenção do comparatista. Considerando que a argumentação jurídica contém elementos de facticidade, diz-se que ela não é puramente deontológica, embora os tente mascarar, para parecer normativa (logo, mais convincente) diante do auditório ao qual se dirige. Em rigor, mesmo um fundamento revestido de um invólucro puramente normativo pelo jurista (seja um juiz, advogado ou mesmo um debatedor acadêmico) tem sempre o seu grau de facticidade, isto é, todo “dever-ser” (ought) camufla inevitavelmente a um “ser” (is), por mais que o discurso positivista tente esconder, na dimensão deontológica da linguagem, esse inevitável grau de facticidade.49 Essa dicotomia entre “dever-ser” (ought, em inglês; sollen, em alemão) e ser (is, em inglês; sein, em alemão) é atribuída a Kant, mas foi retomada pelo positivismo normativista de Kelsen.50 Nesse sentido é que os argumentos esgrimidos contra o instituto do assento, que levaram à sua derrocada nos planos judicial e legislativo, não vei49 “Because this pure ‘ought’ will also undertake a detour to the ‘is’, and so, even the ostensibly purest ‘ought’ of a legal system will contain traces of facticity. The positivist divide can therefore no longer be upheld.” (…) “In short – and in contrast to the idea of a pure ‘ought’ – legal norms also involve the court’s impure reasoning” (COENDET, Thomas. Legal Reasoning: Arguments from Comparison. Archiv für Rechts - und Sozialphilosophie, 102, 2016/4, p. 482). 50 Kelsen retoma tal dicotomia para desenvolver a tese, hoje consagrada, de que os eventos da natureza, inatos a esta enquanto ontologia, dar-se-iam por uma relação de “causalidade”, ao passo que o Direito, enquanto deontologia provida de sanção estatal, seria regido por relações de ”imputação”, de tal modo que fenômenos naturais e fenômenos jurídicos pertenceriam a ordens distintas e, portanto, inconfundíveis. Nas palavras do normativista de Viena: “A distinção entre causalidade e a imputação reside em que – como já notamos - a relação entre o pressuposto, como causa, e a conseqüência, como efeito, que é expressa na lei natural, não é produzida, tal como a relação entre pressuposto e consequência que se estabelece numa lei moral ou jurídica, através de uma norma posta pelos homens, mas é independente de toda a intervenção desta espécie. Visto que o sentido especifico do ato através do qual é produzida a relação entre pressuposto e conseqüência numa lei moral ou jurídica é uma norma, pode falar-se de uma relação normativa - para a distinguir de uma relação causal. “Imputação” designa uma relação normativa. É esta relação - e não qualquer outra - que é expressa na palavra “dever-ser”, sempre que esta é usada numa lei moral ou jurídica” (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 64).

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culam apenas fundamentos normativos ou deontológicos, mas sim, sobretudo, elementos factuais que, por isso mesmo, transcendem o ordenamento positivo de Portugal e aplicam-se também ao instituto brasileiro da súmula vinculante. Não obstante, situando-se a realidade da Justiça brasileira em contexto fático completamente diferente do que caracteriza o universo judicial dos países desenvolvidos em geral e, em particular, dos que integram o bloco europeu continental, as razões que levaram à abolição do assento não encontram eco no Brasil. Com efeito, no Brasil, um país periférico e de proporções continentais cujas instituições estatais ainda deixam muito a desejar se comparadas às dos países europeus, o funcionamento do sistema judiciário, antes da concepção da súmula vinculante e do Conselho Nacional de Justiça pela Emenda Constitucional nº 45/2004, mais lembrava o quotidiano de um manicômio judicial e menos o de um verdadeiro aparato de Justiça. Num sistema sem a menor unidade51, cada juiz decidia de acordo com o seu “gosto pessoal”, mesmo em matérias já pacificadas pelo Supremo Tribunal Federal, contrariando a jurisprudência superior, de modo que à parte lesada, antes da implantação da súmula vinculante, só restava a “via crúcis” de esgotar todas as instâncias até que o Supremo reformasse a decisão contrária ao seu entendimento. Por óbvio que isso só beneficiava os grandes litigantes e a classe dos advogados, já que as pessoas desprovidas de recursos não conseguem levar um processo até a última instância e nem costumam dispor de tempo ou saúde para aguardar durante longos anos por essa derradeira decisão. Como consequência, houve drástica redução na quantidade avassaladora de processos que batiam e continuam batendo diariamente às portas do Supremo Tribunal Federal (órgão de cúpula do Judiciário brasileiro que, só em 2019, decidiu cento e dez mil, novecentos e sessenta e cinco processos, em números que vêm caindo desde a instituição da súmula vinculante)52. Antes da súmula vinculante, o STF era provocado para decidir, novamente, sobre teses já sedi51 Onde há unidade, há ordem: ubi unitas ibi ordo. 52 Diversamente do Supremo Tribunal de Justiça português, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro é, ao mesmo tempo, a Corte Constitucional e o tribunal de Revista (funcionando como a cúpula do sistema judicial no Brasil). Assim, quanto maior for o número de processos que o STF tem de analisar enquanto Corte de Vértice, menos tempo terá para exercer a nobre função que em Portugal toca ao seu Tribunal Constitucional. Em síntese, o STF brasileiro, cumulando as funções de duas Cortes, tem de dar conta de uma quantidade avassaladora de processos, que não encontra paralelo no resto do mundo. Para se ter uma ideia, só no ano de 2019 o STF proferiu quase 111 mil decisões, número que retrata a importância deste Tribunal e o elevadíssimo grau de litigiosidade da sociedade brasileira (Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2019-12/ stf-profere-quase-111-mil-decisoes-em-2019 Acesso em 16/01/2020). As realidades brasileira e portuguesa são, como se vê, totalmente distintas.

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mentadas e pacificadas, em relação às quais certos juízes e tribunais se mostravam rebeldes. Enfim, inúmeras foram as vantagens decorrentes da criação no Brasil da súmula vinculante – cujo desrespeito, aliás, possibilita à parte lesada o atalho da “reclamação constitucional”53, evitando-se, assim, o longo e desencorajador caminho recursal para exaurimento de todas as instâncias judiciárias. Por fim, diferentemente do ambiente político que em Portugal ensejou a reintrodução do vetusto instituto dos assentos pelo Decreto 12.353/1926 – cenário de regime autocrático que perdurou de 1926 a 1974 -, o Brasil vivia o auge de sua democracia liberal quando da instituição do regime de súmula vinculante, no ano de 2004.

7. Conclusão Destarte, os fundamentos que se vêm de expor – sobretudo os articulados no estudo jurídico-comparativo contido no tópico anterior - levam à conclusão de que a derrocada do instituto dos assentos em terras portuguesas, na década de noventa, não implicou qualquer experiência capaz de inibir a criação no Brasil, em 2004, do instrumento da súmula vinculante. Não sensibilizou o Constituinte Derivado brasileiro o argumento de Direito Comparado no sentido de que a Constituição de Portugal – na qual muito se inspirou a Carta Política brasileira de 1988 – não comportaria um instrumento semelhante à súmula vinculante, no entendimento do Tribunal Constitucional português. Com efeito, Brasil e Portugal são realidades muito distintas, seja do ponto de vista dos contextos legal e judicial (ainda que filiados ao civil law), seja do prisma dogmático dos próprios institutos comparados (não se confundem as características, os objetos e os processos de formação/revisão do assento e da súmula vinculante), conforme as diferenças já apontadas ao longo do artigo. Ademais, até mesmo os objetivos colimados pelos institutos – isonomia e segurança jurídica, prioritariamente – são diferentes, se se fizer um exame mais rigoroso, bastando para tanto verificar o cenário histórico-político em que o instituto dos assentos foi reintroduzido (Portugal iniciava o seu mais longevo regime autocrático) e o auge da democracia liberal vivido pelo Brasil durante a incorporação da súmula vinculante ao texto constitucional. É fato notório que governos ditatoriais buscam manietar o Poder Judiciário – que em regimes de exceção costuma ser controlado pelo Executivo -, de modo a restringir, arbitrariamente, o regime de liberdades civis, cuja proteção só pode ser assegurada, em última ratio, pela via judicial, num sistema controlado por déspotas. 53 Cf. STRÄTZ, Murilo. Reclamação na jurisdição constitucional. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2015. 400 p.

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O alerta feito por Castanheira Neves contra o instituto da súmula vinculante também não tem encontrado eco fora de setores ainda impregnados de uma ideologia antissistemática e avessa à unidade do sistema judiciário brasileiro. Para Castanheira Neves, a unidade não é um pressuposto abstrato (algo de onde se parte), mas um objetivo constituendo, algo para onde se vai. Trata-se de uma unidade de ordenação, dinâmica, a ser conquistada a posteriori num sistema aberto, reconstrutivo e dialético, em contraposição à noção apriorística de unidade, de caráter lógico-abstrato e estático. A crítica de Castanheira Neves tem por alvos a metodologia analítica e a conceitualística ahistórica, de matriz teorético-sistemático e escolástico-doutrinário. Em sua tese doutoramento aprovada em 1967, Castanheira Neves defendeu que, embora a lei seja um instrumento privilegiado para a realização do Direito, haveria nela uma indeterminação intencional e normativa que só o julgador pode, constitutivamente, suprir, dados os limites de extensão e de validade que tornam o texto legal insuficiente, por si só, diante do caso concreto.54 O Catedrático de Coimbra sustenta, como abordagens científicas mais fiéis à realidade do Direito, as metodologias prático-normativas e histórico-concretas, próprias da casuística a nortear a “jurisprudência dos interesses”, ao entender que “o direito é uma entidade cultural, com uma intencionalidade, um conteúdo e um dinamismo históricos”55. Tal abordagem contrapõe-se ao método subsuntivo e à separação entre interpretação, aplicação e integração do Direito, que, sendo próprios do Positivismo Jurídico, desconsideram a “contínua constituição histórica do Direito”, de viés reconstrutivo e “historicamente regressivo”56. Todavia, em resposta à tese defendida por Castanheira Neves, faz-se esta retórica indagação: poder-se-ia implantar algo semelhante a uma “jurisprudência dos interesses” no Brasil, país cujas instituições judiciais costumam demonstrar, infelizmente, pouco apreço pelos critérios de legalidade e até mesmo de juridicidade nos mais diversos ramos do Direito? Deve-se ressaltar, a título ilus54 NEVES, A. Castanheira. Questão-de-facto - questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade: ensaio de uma reposição crítica. Coimbra: Almedina, 1967, pp. 212 e ss. 55 NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 198. 56 Na tentativa de provar que o Direito positivo só existe na fase judicial, Castanheira Neves recorre a François Gény, célebre jurista francês que se contrapunha à Escola da Exegese, e cita o seguinte trecho da clássica obra Méthode d’interprétation et sources en droit privé positif: “En la supposant parfaite et complète, la loi ne peut, à elle seule, porter directement toutes les injonctions, de nature à satisfaire les besoins tout concrets de l avie juridique. (...). De ce point de vue, il est parfaitement exact de dire que la jurisprudence représente le véritable droit positif” (NEVES, António Castanheira. O instituto dos “assentos” e a função jurídica dos Supremos Tribunais. 1ª ed. (reimpressão). Coimbra: Coimbra Editora, 2014, p. 214, NR 476).

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trativo, que há setores do Judiciário brasileiro que, em nome de um panprincipiologismo vulgar e de resultados utilitaristas, têm-se recusado, no exercício da função jurisdicional, a observar preceitos legais expressos, em especial os protetivos de direitos individuais. Isso implica subversão não só ao princípio constitucional da legalidade, mas também desprezo à segurança jurídica e ao próprio Estado de Direito, dada a rebelde inobservância de regras legais que densificam a cláusula constitucional do devido processo legal. Enfim, quanto maior for a estabilidade decisória, menor espaço haverá para “juízes heróis”57, aqueles que se acham acima da lei e da interpretação constitucional sedimentada na súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal.

8. Referências bibliográficas ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Noções Elementares de Processo Civil. Coimbra: Coimbra Editora, 1993. BACHOF, Otto. Normas Constitucionais Inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994. CAETANO, Marcello. Manual de Direito Administrativo - Vol. II – 10ª ed. Coimbra: Almedina, 2017. COENDET, Thomas. Legal Reasoning: Arguments from Comparison. Archiv für Rechts - und Sozialphilosophie, 102, 2016/4, pp. 476–507. DERRIDA, Jacques. Positions. Trans. by Alan Bass. London: Athlone, 1981. FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. A ciência do direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. FRATE, Paolo Alvazzi del. Aux origines du référé législatif: interprétation et jurisprudence dans les cahiers de doléances de 1789. Revue historique de droit français et étranger. Vol. 86, n. 2 (AVRIL-JUIN 2008), pp. 253-262. FREITAS Filho, Roberto. “O juiz ‘herói’ não é um bom juiz”. Consultor Jurídico. Publicado em 07/01/2020. Disponível em https://www.conjur.com. br/2020-jan-07/roberto-freitas-filho-juiz-heroi-nao-bom-juiz. Acesso em 17/01/2020. 57 Vide, a propósito, o recente artigo escrito pelo Professor e Desembargador Roberto Freitas Filho: “O juiz ‘herói’ não é um bom juiz”. Consultor Jurídico. Publicado em 07/01/2020. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jan-07/roberto-freitas-filho-juiz-heroi-nao-bom-juiz. Acesso em 17/01/2020.

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O ESPAÇO DE DISPONIBILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PARA FINS DE MEDIAÇÃO: UMA MICROCOMPARAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS JURÍDICOS PORTUGUÊS E BRASILEIRO1 Fernanda Karoline Oliveira Calixto2

Resumo: Este artigo compara analiticamente o espaço de disponibilidade da Administração Pública para fins de mediação nos sistemas jurídicos brasileiro e português. Considera que o estágio atual de evolução do direito e a crise na efetividade dos meios tradicionais de resolução de conflitos implica na busca de soluções mais ágeis, eficazes e menos burocráticas. Usa como fontes de comparação legislação e doutrina de ambas as nacionalidades referidas e procura realizar uma síntese que aponte possíveis soluções compartilhadas ao problema da ausência de previsões normativas que enumerem as expressas hipóteses em que

1 Trabalho apresentado como requisito avaliativo da disciplina Sistemas Jurídicos Comparados, no ano letivo 2019/2020, no Curso de Doutoramento em Ciências Jurídicas da Universidade do Minho, ministrada pelo professor Doutor Ricardo Cunha. 2 Doutoranda em Ciências Jurídicas Públicas pela Universidade do Minho (Portugal). Mestra em Direito Público pela Universidade Federal de Alagoas (Brasil). Pós-Graduada em Direito do Controle e Combate à Corrupção pela Universidade Estácio de Sá (Brasil). Pós Graduada em Direito Administrativo pela Universidade Wenceslau Brás (Brasil).Professora na Universidade de Ciências da Saúde Alagoas (UNCISAL) e no Centro Universitário Cesmac. Analista Jurídica no Ministério Público do Estado de Alagoas (Brasil).

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O espaço de disponibilidade da administração pública para fins de mediação: uma microcomparação entre os sistemas jurídicos português e brasileiro Fernanda Karoline Oliveira Calixto

a Administração Pública pode recorrer à mediação fora do tradicional espaço do Poder Judiciário para a resolução de conflitos. Palavras-chave: Administração Pública. Mediação. Brasil. Portugal. Critério de Mediabilidade. Disponibilidade. Abstract: This article analytically compares the availability of Public Administration for mediation purposes in the Brazilian and Portuguese legal systems. It considers that the current stage of the Law and the crisis in the effectiveness of traditional means of conflict resolution implies the search for more agile, effective and less bureaucratic solutions. It uses as source of comparison the legislation and legal doctrine of both nationalities and tries to make a synthesis that points out possible shared solutions to the problem of the absence of normative predictions that enumerate the express hypotheses in which the Public Administration can resort to the mediation outside the traditional space of the Power Judiciary for conflict resolution. Keywords: Public Administration. Mediation. Brazil. Portugal. Mediability Criterion. Availability.

1. Introdução O presente artigo investiga em que consiste o espaço de disponibilidade da Administração Pública apto a ser submetido ao mecanismo de mediação para solução de litígios nos sistemas jurídicos brasileiro e português. A ausência de legislação de mediação específica para a Administração Pública em Portugal, em que pese a menção a esta nos artigos 87º - C e 187 do Código de Processo dos Tribunais Administrativos, numa dimensão, a desenvoltura do instrumento da arbitragem, enquanto meio alternativo de resolução de controvérsias neste país, noutra dimensão, e a implantação de norma legislativa no Brasil que limita a mediação por entes públicos aos direitos disponíveis, conceito cujo teor não restou preenchido pelo legislador, e a convivência destes institutos com o princípio da indisponibilidade do interesse público, por outro lado, são os tópicos que justificam a realização deste estudo. Parte-se da premissa de que apesar de o Estado Português não possuir legislação que delimite diretamente o critério de mediabilidade para a Administração Pública isto não significa uma proibição à sua realização. Com isso, se objetiva avaliar o critério de disponibilidade para uso pelas Administração Pública brasileira e Administração Pública portuguesa do instituto da mediação em controvérsias que os envolvem, enquanto meio apto a promover a resolução consensual de controvérsias.

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Intenta-se ainda reconhecer as similitudes e diferenças entre os sistemas jurídicos analisados e indicar os pontos problemáticos da utilização do instituto em cada sistema, com atenção especial à definição do escopo de disponibilidade da Administração Pública. O estudo possui intenção eminentemente descritiva e comparativa dos sistemas jurídicos, em especial dos textos legislativos respectivos, sem prescindir da avaliação analítica necessária para identificar traços comuns e variáveis do instituto estudado nos sistemas comparados, identificando eventuais soluções de reforma legislativa compartilháveis. As fontes a serem usadas na comparação são legislação e doutrina em matéria administrativa dos sistemas jurídicos brasileiro e português. Destarte, este texto compartimenta-se em quatro pontos: Num primeiro momento contextualiza-se o objeto do trabalho apontando os marcos teóricos que justificam o estudo. Em seguida, descreve-se as principais características e procedimentalização da mediação no sistema jurídico brasileiro, apontando já as controvérsias quanto ao espaço de disponibilidade da Administração Pública apto a ser submetido a procedimentos de mediação. O mesmo é feito em relação ao sistema jurídico português na terceira parte do trabalho. Por fim, o quarto item do texto realiza a síntese comparativa e apresenta uma possível solução conjunta para o confronto entre indisponibilidade do interesse público e mediação de conflitos que envolvem a Administração Pública.

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2. Administração Pública, Mediação e Disponibilidade Na pós-modernidade3, o papel e as formas de atuação do Estado são colocados em questão4. O Estado ainda necessita atender à satisfação das necessidades coletivas e o interesse público, mas a limitação de recursos nos obriga a repensar o Estado Providência e seu clássico funcionamento5. Neste panorama, já não cabe a defesa de um Estado autoritário que, a todo tempo, verticaliza sua atuação e desconsidera a premência da participação popular e da transparência de seus atos.

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Sobre a pós-modernidade, MAIZ, Ramón; LOIS, Marta - Posmodernismo. In: MELLON, Joan Antón (editor). Ideologías y movimientos políticos contemporáneos. Madrid: Editorial Tecnos, 2006, p. 479, expõem a dificuldade de sua definição: “la posmodernidad quizás sea uno de los términos más polémicos e imprecisos que han circulado en los debates de las últimas décadas. Ha levantado suspicacias tanto por su capacidad para abrir espacios nuevos de reflexión cuanto por la distancia crítica mostrada frente a la modernidad. El intento mismo de establecer un rótulo periodizador no está exento de polémica. La distinción entre modernidad y posmodernidad ocupa numerosos volúmenes e informa numerosos volúmenes e informa numerosos proyectos literarios, arquitectónicos o políticos, y hoy en día, su interés clarificador se sitúa en el corazón mismo de la producción del pensamiento posmoderno. Lo cierto es que la posmodernidad es de por si lo suficientemente heterogénea y abierta como para resultar complejo el establecer unos presupuestos firmes y delimitadores”. Encara-se neste texto, a partir deste cenário que o aspecto globalizante do modernismo justifica estudos comparatisticos como este.

4 Hoje, pode-se afirmar que as políticas são instrumento de ação dos governos, de modo que a função de governar seria o fundamento imediato das políticas públicas, na medida em que o government by law é aprimorado pelo government by policies, conforme BUCCI , Maria Paula Dallari - Políticas públicas e direito administrativo. Revista do Senado. Brasília. n. 133. jan./mar. 1997. Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/198/r133-10.PDF?sequence=4, p. 91) Acesso em: 23 jan. 2019. Seria a sucessão do Estado-serviço público pelo Estado-políticas públicas, que implicou no amadurecimento teórico do direito administrativo. 5

Conforme CORREIA, José Manuel Sérvulo - Os grandes traços do direito administrativo no século XXI. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 63, p. 45-66, jan./mar. 2016, p. 51: “Essa crise foi-se tornando virulenta já ao longo do último quartel do século XX, em particular na Europa ocidental e central. As suas causas são múltiplas, podendo salientar-se o acentuado envelhecimento da população, o encerramento ou a deslocalização de muitas empresas tradicionais incapazes de suportar a concorrência num mercado globalizado, a contradição entre a renitência ao pagamento de impostos e a apetência pela obtenção de benefícios suportados pelo erário público, o alargamento contínuo do emprego público como processo de luta contra o desemprego e meio de satisfazer clientelas partidárias. A essa situação foi-se procurando responder – no meio de muitas incertezas e de acirrada controvérsia política – por medidas de contenção dos encargos sociais, redução dos quadros de servidores públicos, privatização e desregulação. As incertezas quanto à essência de um novo perfil da função administrativa refletem-se na pluralidade de suas designações doutrinais: administração orientadora, infraestruturante, garante, reguladora ou incentivadora, entre outras. Nalgumas dessas vertentes de um novo perfil de função administrativa, são patentes as flutuações”.

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A aproximação entre o direito público e o direito privado, o fenômeno do neoconstitucionalismo, a constitucionalização do direito administrativo6 e a influência da globalização econômica e jurídica (se é que se pode falar em um direito global7) levam a uma Administração Pública cada vez mais dialógica, com mais contratos e menos atos de império. O consensualismo nas relações jurídicas que envolvem a Administração Pública é uma realidade em diversos ordenamentos jurídicos que institucionalizaram soluções alternativas de resolução de controvérsias8 entre os Estados e os particulares, em especial a arbitragem. Outros meios, entretanto, despontam como possibilidades relevantes na ordem jurídica, significando um aprofundamento na noção consensualidade e impondo a reflexão acerca do que seria passível de mediação pela Administração Pública. Em outras palavras, qual o critério de mediabilidade a ser usado pelas Administrações Públicas? A mediação insere-se no contexto dos Métodos Alternativos de Resolução de Controvérsias, ao lado de institutos como a arbitragem e a conciliação, os quais se colocam como meios de alcançar o acesso equitativo à justiça fora dos meios jurisdicionais tradicionais. Estes, tem sido colocado em xeque em função de sua burocratização e/ou morosidade que impedem, por si mesmos, a efetividade dos próprios direitos e obrigações na ordem jurídica. No caso brasileiro, quando se trata de judicialização de demandas, a Administração Pública é um

6 Cuida-se aqui da superação de um direito administrativo imune à Constituição e da “posição sobranceira da Administração em face da Constituição, que se manifestava na afirmação de OTTO MAYER, segundo a qual ‘o Direito Administrativo fica, o Direito Constitucional passa’ [...]” (SILVA, Vasco Pereira da - Direito Constitucional e Administrativo sem fronteiras. Coimbra: Almedina, 2019., p.21). 7 Para CASSESSE, Sabino - Global Administrative Law: An introduction, in Institute for International Law and Justice. New York: University of Law, 2005, é possível sim falar em um direito administrativo global, cujo caráter auto-regulador desenvolve-se num espaço cooperativo, com preponderância de decisões tomadas por comitês de especialistas, o que pode implicar em problemas de legitimidade democrática. Ainda assim, afirma o autor que o Direito Global implica obrigações de transparência, consulta e respeito ao due process nas relações entre as Administrações Públicas de cada Estado. Por outro lado, para WALKER, Neil - Taking Constitutionalism Beyond the State, in: Political Studies, 2008, vol. 56, p. 1, um direito constitucional global seria “improbable, irrelevant, inconceivable, and illegitimate”. 8 Embora nem sempre através de legislação específica, como é o caso de Portugal. No Brasil há um microssistema aplicável.

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dos maiores litigantes9, abarrotando o Poder Judiciário com demandas que, muitas vezes, poderiam ser solucionadas por outras formas, não prevalecesse ainda uma cultura de contenciosiodade10. 9

Segundo levantamento realizado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) nomeado “O uso da Justiça e o Litígio No Brasil”, apontando que “em oito das onze Unidades da Federação pesquisadas, o Poder Público municipal, estadual e federal concentra a maior parte das ações iniciadas no Primeiro Grau (parte do polo ativo), no grupo dos 100 maiores litigantes” (BRASIL. AMB - O uso da Justiça e o Litígio No Brasil. 2018. p. 12. Disponível em: https://www.amb.com.br/wp-content/ uploads/2018/05/Pesquisa-AMB-10.pdf. Acesso em 05 de jan 2020). Este estudo foi publicado em 2018 e considerou dados de “11 Unidades da Federação, com o objetivo de verificar quais são os principais demandantes e demandados, no Primeiro Grau, no Segundo Grau e nas Turmas Recursais dos Juizados Especiais. O período de análise compreende os anos de 2010, 2011, 2012 e 2013. A partir dos dados coletados, foram extraídos os 100 maiores litigantes no polo ativo (aquele que toma a iniciativa do processo no Primeiro Grau) e passivo (aquele que é processado no Primeiro Grau), bem como os litigantes nos polos ativo e passivo no Segundo Grau e nas Turmas Recursais” (p. 12). Os seguintes resultados da pesquisa são uma amostra da litigância da Administração Pública no Brasil: “A Justiça Estadual de São Paulo, que concentra aproximadamente 40% dos processos em tramitação no País, é um dos exemplos da expressiva concentração setorial: a administração pública municipal figurou como parte ativa em mais da metade dos processos no Primeiro Grau entre 2010 e 2013, considerando os 100 maiores litigantes. Em Santa Catarina, o poder público municipal também figurou como o principal litigante na parte ativa do Primeiro Grau de 2010 a 2012 (considerando o total de processos apresentados pelos 100 maiores litigantes). Perdeu a dianteira para o setor financeiro em 2013. Naquele Estado, os 100 maiores demandantes foram responsáveis por 56% dos processos ajuizados no Primeiro Grau e 53% no polo passivo. A administração pública lidera a disputa judicial no Primeiro Grau como parte ativa no universo dos 100 maiores litigantes nas seguintes unidades federativas: Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Rondônia.” (p.13) 10 FRANCO, Marcelo Veiga. Administração Pública como litigante habitual: a necessária mudança da cultura jurídica de tratamento dos conflitos. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Direito. 2018. P. 14, aponta questões incisivas, perturbadoras e necessárias acerca do comportamento litigioso do Estado, no cenário brasileiro: “Como sustentar o fato de que o Estado brasileiro, por meio das pessoas jurídicas integrantes da Administração Pública, pratica uma litigância desmesurada que atua como um importante fator que concorre para a potencial falência do próprio Estado, sob o viés da atividade jurisdicional? Considerando a unidade estatal, é admissível que um dos braços do Estado (Administração Pública) atue processualmente de forma a contribuir com o esgotamento de outro de seu ramo (Judiciário), tendo em vista a inefetividade crônica da jurisdição? Em uma sociedade que se pretende republicana e democrática, é cabível que a Administração Pública se beneficie da morosidade processual, empregando o processo judicial como um instrumento de “rolagem de dívidas” de um mandato político para outro? dever da Administração Pública atuar processualmente com o objetivo de resolver rápida e definitivamente o litígio, ou lhe é facultado postergar a solução do imbróglio, agindo, por exemplo, em função de interesses transitórios de determinado governo? 15 A tradição de judicializar em excesso é, de fato, mais benéfica para o erário público? A instituição de uma cultura processual focada na autocomposição dos conflitos é apta a violar o “princípio da indisponibilidade do interesse público”? É obrigação da Administração Pública prevenir litígios repetitivos cuja solução já tenha sido objeto de precedentes judiciais vinculantes? Cabe à Administração Pública gerir racionalmente as suas controvérsias, mediante o emprego de métodos adequados de solução de disputas? Compete à Administração Pública empreender esforços para dirimir boa parte dos seus conflitos na esfera administrativa, evitando o acionamento excessivo e muitas vezes desnecessário do Judiciário?”

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O contexto que permite o uso de tais mecanismos é o do espaço democrático, em que o Estado busca a efetiva pacificação das relações sociais11. Há intrínseca relação entre direitos humanos e democracia, neste contexto: [...] na acepção material, pode-se sustentar que a democracia não se restringe ao primado da legalidade, mas também pressupõe o respeito aos direitos humanos. Isto é, além da instauração do Estado de Direito e das instituições democráticas, a democratização requer o aprofundamento da democracia no cotidiano, por meio do exercício da cidadania e da efetiva apropriação dos direitos humanos. Nesse sentido, não há democracia sem o exercício dos direitos e liberdades fundamentais. A democracia exige o efetivo e pleno exercício dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Há, portanto, uma conexão necessária entre democracia e direitos humanos12.

Quanto ao conceito de mediação, ao lado de diversas definições doutrinárias13, são de grande valor as definições trazidas pelas leis de mediação brasileira e portuguesa, cujos teores a seguir se transcreve: Lei 13. 140, de 26 de junho de 2015 (Lei da Mediação Brasileira) Art. 1º, parágrafo único: Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia. 11 É de se ressaltar que não se põe em causa neste trabalho a grande relevância e centralidade do Poder Judiciário enquanto sustentáculo de regimes democráticos. 12 PIOVESAN, Flávia - Direitos Humanos, Democracia e Integração Regional: Os Desafios Da Globalização. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. São Paulo, n. 54, p. 221-248, ano 2000. P. 228. 13 “um processo no qual uma terceira pessoa, neutra, o mediador, facilita a resolução de uma controvérsia ou disputa entre duas partes”, conforme GRUNSPUN, Haim - Mediação familiar: o mediador e a separação de casais com filhos.. São Paulo: LTr, 2000, p.13 “(...) interferência em uma negociação ou em um conflito de uma terceira parte aceitável, tendo um poder de decisão limitado ou não-autoritário, e que ajuda as partes envolvidas a chegarem voluntariamente a um acordo, mutuamente aceitável com relação às questões em disputa. Além de lidar com questões fundamentais, a mediação pode também estabelecer ou fortalecer relacionamentos de confiança e respeito entre as partes ou encerrar relacionamentos de uma maneira que minimize os custos e danos psicológicos”, conforme MOORE, Cristopher W - O Processo de Mediação: estratégias práticas para a resolução de conflitos. Porto Alegre: Ed. Artmed, 1999, p.28 “A mediação é uma técnica não-estatal de solução de conflitos, pela qual um terceiro se coloca entre os contendores e tenta conduzi-los à solução autocomposta. O mediador é um profissional qualificado que tenta fazer com que os próprios litigantes descubram as causas do problema e tentem removê-las. Trata-se de técnica para catalisar a autocomposição”, conforme DIDIER JR. Fredie - Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. Vol.1. Salvador: Editora Podium, 2009, p. 78.

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Lei nº 29/2013, de 19 de Abril (Lei da Mediação Portuguesa) Art. 2º Definições Para efeito do disposto na presente lei, entende-se por: “Mediação” a forma de resolução alternativa de litígios, realizada por entidades públicas ou privadas, através do qual duas ou mais partes em litígio procuram voluntariamente alcançar um acordo com assistência de um mediador de conflitos;

A análise das normas acima permite reconhecer uma identidade de conceitos nos ordenamentos brasileiro e português e, desde logo diferenciar mediação de conciliação14 e de arbitragem15. Em qualquer caso, o mediador é sempre um terceiro não interessado, neutro, independente e detentor tão somente dos poderes que lhe forem conferidos pelas partes em contenda, e cuja principal função é restabelecer o processo comunicativo que propiciará o acordo entre as partes16. Como essência da mediação teremos a condução de um diálogo que permita às partes em conflito, identificar as verdadeiras questões conflituosas e interesses em disputa, permitindo que, apesar do conflito em mediação, estas possam manter relações no futuro17. Outras características marcantes são a privacidade, a celeridade, a redução dos custos financeiros, a oralidade, a reaproximação das partes, a autonomia das partes e o equilíbrio das relações entre as partes18. 14 “O conflito é resolvido por meio do próprio consenso entre os litigantes e as causas psicológicas e sociológicas que envolvem os interessados são levadas em consideração pelo conciliador neutro, que busca sempre direcionar as partes para chegarem a uma decisão final com concessões e satisfação de ambas.” Conforme HESS, Heliana Maria Coutinho. Acesso à justiça por reformas judiciais: (comparativo entre as reformas judiciais do Brasil e da Alemanha). Campinas:Milennium Editora, 2004, p. 167. 15 “Constitui uma jurisdição privada, instituída pela vontade das partes ou por decisão do legislador, pela qual se permite a possibilidade de julgar por órgãos diferentes dos tribunais estatais, a quem se investe de faculdades jurisdicionais semelhantes às daqueles para a resolução de um caso concreto” conforme CAIAVANO, Roque J. Arbitraje: su eficácia como sistema alternativo de resolución de conflitos. Buenos Aires: Ad. Hoc, 1992, p.49. (traduziu-se). 16 MORAES, José Luis Bolsan de. SPLENGER, Fabiana Marion - Mediação e Arbitragem. Alternativas à Jurisdição!. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. 17 TARTUCE, Fernanda - Mediação nos Conflitos Civis. Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2008. 18 MORAES, José Luis Bolsan de. SPLENGER, Fabiana Marion. Op cit.

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A privacidade implica em sigilo que só será ultrapassada se as partes assim concordarem ou quando haja interesse público a ser levado em consideração. A celeridade e a redução de custos financeiros são algumas das características mais atrativas da mediação, se considerarmos a crise do Judiciário em propiciar equitativo acesso à Justiça, seja pela morosidade, seja pela carência de recursos materiais e humanos. A oralidade, que facilita a celeridade do processo, faz parte do aspecto informal que domina o procedimento. O fato de as próprias partes transigirem e chegarem por si mesmas à solução do conflito favorece a responsabilização e diminui as chances de não cumprimento do acordo firmado, dada a reaproximação e a autonomia das partes. Quanto ao procedimento, a mediação pode ser voluntária ou mandatória. Será voluntária quando as próprias partes, diante do conflito decidem consentir no desenvolvimento do processo19. Nos casos de mediação mandatória, o procedimento terá início por decisão judicial, quando houver precisão legal ou, na hipótese de as partes a realizarem em cumprimento de cláusula contratual20. Embora não haja uma sequência uniforme idêntica prevista nas legislações e nas mediações voluntárias, Kovach21 sugere um modelo, que é o mais usado nos Estados Unidos da América, com as seguintes etapas: Arranjos preliminares, Introdução do Mediador, Depoimentos iniciais pelas partes, Arejamento, Obtenção de Informações, Identificação da causa, Acerto do cronograma, Reuniões, Criação de opções, Teste da realidade, Barganha e negociação, Acordo e Fechamento. Além disso, a mediação sofre críticas por apontar para uma verdade consensual que não corresponde necessariamente à verdade do processo judicial, uma solução que não se condiciona a uma sanção imposta por um terceiro “através de formas paternalistas de controle social, exercitadas sem as tutelas que a justiça formal oferece” 22. Neste sentido, Moraes e Splenger23 resumem bem o cerne da crítica ao delimitá-lo como um novo modelo de justiça que foge da determinação rigorosa das regras jurídicas, abrindo-se à participação e à liberdade de decisão entre as partes, à comunicação de necessidades e de 19 Idem. Ibidem. 20 Idem. Ibidem. 21 KOVACH, Kimberlee K. - Mediation: principles and Practice. St. Paul – Minn – EUA: West Publishing, 1994. 22 MORAES, José Luis Bolsan de. SPLENGER, Fabiana Marion. Op cit., p. 162 23 Idem, ibidem, p. 163

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sentimentos, à reparação do mal mais que a punição de quem o praticou. Contudo, esse modelo diferenciado que propõe uma outra forma de tratar os conflitos, buscando não só uma solução para o Poder Judiciário (cujo modelo de jurisdição se encontra esgotado), mas também a autonomia das partes, possui, na falta de previsibilidade (baseada nas regras e nos procedimentos), uma causa de vantagem e outra de desvantagem.

A desvantagem que Moraes e Splenger24 citam diz respeito à assimetria de poder que pode implicar em grandes concessões pelas partes. Estas críticas suscitam particular inquietude quando se recorda dos princípios que instituem o regime jurídico administrativo e obrigam a Administração Pública: legalidade, supremacia do interesse público sobre o privado e indisponibilidade deste mesmo interesse público. O primeiro, em uma leitura deturpada25, pode apontar para uma ideia de exercício arbitrário de poderes pela Administração Pública contra o cidadão,

24 MORAES, José Luis Bolsan de. SPLENGER, Fabiana Marion, op. cit. 25 Neste sentido, HACHEM, Daniel Wunder - Princípio constitucional da supremacia do interesse público. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 30, afirma: “A ocorrência de interpretações deturpadas do princípio da supremacia do interesse público, inclinadas a legitimar práticas arbitrárias, não decorreu de sua formulação inicial. Esta, se bem compreendida, não permite que o manejo da norma se preste a tais propósitos. O fenômeno derivou de sua aplicação descompromissada com os fundamentos jurídicos e teóricos que lhe renderam ensejo, bem como da escassez bibliográfica nacional a seu respeito”.

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que se explica pela origem do Direito Administrativo26, mas que, no cenário democrático atual, não mais pode ser encarada como verdadeira contraposição de interesses públicos e privados27. É a busca de uma finalidade pública a que comumente se denomina “interesse público”, e que não se confunde com interesse governamental, que deve mover a Administração Pública. Neste sentido, é costumeira a afirmação de que o gestor público não pode dispor ou se apropriar do interesse público28. 26 BINENBOJM, Gustavo - Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos fundamentais, Democracia e Constitucionalização. São Paulo: Renovar, 2006, assinala que a história oficial do direito administrativo vincula-se a uma noção garantística em que se aponta sua formação no momento em que o poder “[...] aceita submeter-se ao direito e, por via reflexa, aos direitos dos cidadãos, alimentou o mito de uma origem milagrosa e a elaboração de categorias jurídicas exorbitantes do direito comum, cuja justificativa teórica seria a de melhor atender à consecução do interesse público” (p. 9-10). Entretanto, a interpretação garantística do seu nascedouro é um erro histórico, resultado de uma reprodução acrítica a associação do nascedouro do direito administrativo à gênese do Estado de Direito e do princípio da separação dos poderes na França pós-Revolução. O surgimento do direito administrativo, “[...] representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regime que a sua superação. A juridicização embrionária da Administração Pública não logrou subordiná-la ao direito; ao revés, serviu-lhe apenas de revestimento e aparato retórico para a sua perpetuação fora da esfera de controle dos cidadãos (BINENBOJM, Gustavo. Op. Cit., p. 11). Outra contradição da gênese do direito administrativo é a criação de um contencioso administrativo, pois, ao contrário de servir à separação de poderes, “[...] se baseou na desconfiança dos revolucionários franceses contra os tribunais judiciais, pretendendo impedir que o espírito de hostilidade existente nestes últimos contra a Revolução limitasse a ação das autoridades administrativas revolucionárias” (BINENBOJM, Gustavo. op. cit., p. 13). Também a instituição de um processo administrativo serviu apenas para justificar a quebra da isonomia e a instituição de privilégios para a Fazenda Pública (BINENBOJM, Gustavo op. cit.,). “Na melhor tradição absolutista, além de propriamente administrar, os donos do poder criam o direito que lhes é aplicável e o aplicam às situações litigiosas com caráter de definitividade” (BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo: Direitos fundamentais, Democracia e Constitucionalização. São Paulo: Renovar, 2006, p. 15). Com isso, “Milagre, mesmo, é essa sua transformação de direito da Administração em ‘direito Administrativo’” (PEREIRA DA SILVA, Vasco - Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 2003, p. 37) e isto só ocorreu em função das transformações do próprio Estado. 27 Seguimos neste trabalho a orientação disposta por MELLO, Celso Antônio Bandeira de - Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, segundo a qual, não haveria interesse público que se contrapusesse completamente aos interesses privados. Aqueles seriam a face pública e coletiva destes. 28 Neste sentido, afirma MELLO, Celso Antônio Bandeira de. op. cit., p, 74: “Em suma, o necessário – parece-nos – é encarecer que na administração os bens e os interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los nos termos da finalidade a que estão adstritos. É a ordem legal que dispõe sobre ela”. E CRETELLA JÚNIOR, José - Filosofia do direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 153: “O interesse público não fica à mercê do agente público. Tem regras que o restringem. É intangível e indisponível. O administrador não é dono. É guarda ou fiscal da coisa pública. Sua vontade não conta. As atividades que pratica são orientadas para um fim”.

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Assim, a natureza do instituto e as normas jurídicas que o cercam indicam uma limitação das hipóteses nas quais seria possível usar a mediação, ou, limites para os resultados mediados. Este espaço parece ser o da disponibilidade do direito ou o da suscetibilidade de transação, tanto no sistema jurídico brasileiro quanto no português. Uma vez que a noção de indisponibilidade do interesse público é comum aos sistemas jurídicos português e brasileiro, a conciliação entre esta e a transigibilidade de direitos/interesses pelas partes envolvidas, põe em dúvida o que seria ou não disponível para fins de mediação em litígio que envolva a Administração Pública. Nos próximos pontos nos dedicaremos a descrever os critérios de mediabilidade nos sistemas jurídicos brasileiro e português.

3. Disponibilidade para fins de mediação em conflitos que envolvem a Administração Pública no Sistema Jurídico português No âmbito português se pode aferir a presença de meios não judiciais de resolução de litígios já na Constituição, cujo artigo 202º, nº4, estabelece: “A lei poderá institucionalizar instrumentos e formas de composição não jurisdicional de conflitos”. O país regulamentou a mediação, sem fazer menções específicas à mediação pela Administração Pública, pela Lei nº 29/2013, de 19 de abril (Lei da Mediação). O artigo 4º da lei de mediação estabelece como seus princípios: voluntariedade, confidencialidade, igualdade e imparcialidade, independência, competência e responsabilidade e executoriedade. Quanto ao objeto da mediação, o artigo 11º da norma portuguesa aponta para o uso de mediação civil quanto a interesses de natureza patrimonial ou não, desde que as partes possam celebrar transação sobre o direito controvertido. Não há, portanto, na lei portuguesa, expressa menção à disponibilidade ou não dos direitos mediados como requisito da mediação, embora seja forçoso o reconhecimento da íntima relação entre transação e possibilidade de dispor de direitos. Interessa notar que a legislação portuguesa resulta de esforços desenvolvidos no âmbito da União Europeia para a promoção de meios alternativos de resolução de conflitos, destacando-se nesta seara a Diretiva 2008/52/CE, cujo artigo 1º, nº 2, que já excluía do seu âmbito de aplicação litígios “no que se refere aos direitos e obrigações de que as partes não possam dispor ao abrigo do direito aplicável”.

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Bem assim, no considerando (10) da mencionada diretiva consta ainda a afirmação de que “não se deverá aplicar aos direitos e obrigações sobre os quais as partes, nos termos do direito aplicável, não sejam livres de decidir por si só”. Consta ainda o esclarecimento de que “esses direitos e obrigações são particularmente frequentes em questões de direito da família e de direito do trabalho” Com isso, a ausência de norma geral29 em matéria de mediação pela Administração Pública abre portas para questionar se é possível o uso de mediação e, em sendo, qual o critério que o direito Português elegeu como sendo o da mediabilidade. Um levantamento da doutrina portuguesa recente sobre o tema30 aponta para uma oscilação entre os seguintes critérios: disponibilidade do interesse, transigibilidade e o mesmo critério usado na arbitragem pela Administração Pública. Um sucinto levantamento do quadro jurídico nos permite encontrar celeumas similares às que serão apontadas no quadro brasileiro, a começar pela legislação, com a afirmação do artigo 1249º do Código Civil que “as partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos”. O artigo 87º-C do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, ao referir-se à mediação e conciliação intraprocessuais, afirma poderem ter lugar “Quando a causa couber no âmbito dos Poderes de disposição das partes”. No Código de Processo Civil português (artigo 289º, nº 1) consta ainda: “Não é permitida […] transacção que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis”. 29 A lei nº 67/2013, de 28 de agosto prevê a possibilidade de mediação pelas Entidades Administrativas Independentes. A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos possui regulamentos próprios para a efetivação de meios de resolução alternativa de controvérsias. A Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas prevê a possibilidade de criação de sistemas públicos de mediação ao lado dos já existentes. 30 Cf. LOPES, Dulce. PATRÃO, Afonso - A mediação em litígios administrativos: contributo para a delimitação de seu âmbito. In: FONSECA, Isabel Celeste Monteiro (coord.). A mediação administrativa: contributos sobre as (im) possibilidades. Coimbra: Almedina, 2019, p.11-38. CARVALHO, Jorge Morais - A consagração legal da mediação em Portugal, in Julgar, vol 15, 2011, pp 271-290. CARVALHO, Ana Celeste - A mediação em matéria administrativa: uma possibilidade com futuro. In: Cadernos de Justiça Administrativa, nº 109, 2015, pp. 3-12. FONSECA, Isabel Celeste Monteiro - Das (im) possibilidades da mediação administrativa: Dare to fly higher. In: FONSECA, Isabel Celeste Monteiro (coord.). A mediação administrativa: contributos sobre as (im) possibilidades. Coimbra: Almedina, 2018, p. 81-92. FONSECA, Isabel Celeste Monteiro (coord.) - Estudos de Conciliação, mediação e arbitragem. O Estado da Arte. Coleção Estudos Jurídicos – Mestrado em Direito Administrativo. Braga: NEDip, 2019. FONSECA, Isabel Celeste Monteiro (coord.). Arbitragem Administrativa e Tributária. Problemas e Desafios. Coimbra: Almedina, 2018.

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Sobre as dificuldades de identificação prática destes direitos indisponíveis no âmbito português afirma José Alberto dos Reis: A expressão “direitos indisponíveis” corresponde precisamente à fórmula legal […] . Quais são os direitos indisponíveis? Quais as relações jurídicas subtraídas ao domínio da vontade das partes? Se a lei expressamente subtrai a relação jurídica ao domínio da vontade, como por exemplo [no artº 304], não há dificuldades; se não existe determinação expressa, temos de atender à natureza ou à índole da relação jurídica. Consideram-se geralmente indisponíveis as relações jurídicas concernentes ao estado das pessoas. Mas não pode admitir-se sem algumas reservas esta proposição31.

Daí que no direito português se identifica que nem sempre a indisponibilidade corresponde ao exato contraponto da disponibilidade de um direito, dadas as limitações dos ordenamentos jurídicos32. Interessa notar que a inexistência de um critério legal de mediabilidade para conflitos que envolvam a Administração Pública em Portugal leva ao entendimento de alguns de que o critério de arbitralidade, fixado taxativamente por lei, poderia ser transposto para a mediação. A afirmação é muito gravosa, na medida em os institutos da arbitragem e da mediação são muito distintos, desde o fato de que a mediação é autocompositiva e a arbitragem heterocompositiva. Mas, aqueles que assim pensam tem razões legislativas a justificar o entendimento. Qual seja, o teor do artigo 187º do CPTA, que confere aos Centros de Arbitragem a serem instituídos pela Administração Pública a possibilidade de realizar também mediação, sem delimitar em que termos isto poderia se realizar.

31 REIS, José Alberto dos - Código de Processo Civil Anotado. Vol .I. Coimbra: Editora Lim, 1982, p. 404 32 MAGALHÃES, Luísa Maria Alves Machado. Mediação. Alguns aspectos no contexto da lei nº 29/2013. A mediabilidade dos litígios e a transação. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto. 2013. Disponível em: http://recil.grupolusofona.pt/bitstream/handle/10437/5469/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20Texto%20Final%202.pdf?sequence=1. Acesso em: 02 jan 2020.

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O critério de arbitralidade administrativa encontra sede legal nos artigos 180º e 187º do CPTA33. Da leitura dos itens dispostos na norma, porém, não se identifica grande preocupação com a natureza dos litígios em si. Antes, “a escolha dos domínios susceptíveis de arbitragem parece ter sido orientada por critérios pragmáticos, indicando as áreas onde havia maior litigiosidade”34.

33 Artigo 180º 1 - Sem prejuízo do disposto em lei especial, pode ser constituído tribunal arbitral para o julgamento de: a) Questões respeitantes a contratos, incluindo a anulação ou declaração de nulidade de atos administrativos relativos à respetiva execução; b) Questões respeitantes a responsabilidade civil extracontratual, incluindo a efetivação do direito de regresso, ou indemnizações devidas nos termos da lei, no âmbito das relações jurídicas administrativas; c) Questões respeitantes à validade de atos administrativos, salvo determinação legal em contrário; d) Questões respeitantes a relações jurídicas de emprego público, quando não estejam em causa direitos indisponíveis e quando não resultem de acidente de trabalho ou de doença profissional. 2 - Quando existam contrainteressados, a regularidade da constituição de tribunal arbitral depende da sua aceitação do compromisso arbitral. 3 - Quando esteja em causa a impugnação de atos administrativos relativos à formação de algum dos contratos previstos no artigo 100.º, o recurso à arbitragem seguirá os termos previstos no Código dos Contratos Públicos, com as seguintes especialidades: a) O regime processual a aplicar deve ser estabelecido em conformidade com o regime de urgência previsto no presente Código para o contencioso pré-contratual; b) Em litígios de valor igual ou inferior ao previsto no n.º 5 do artigo 476.º do Código dos Contratos Públicos, da decisão arbitral cabe recurso urgente para o tribunal administrativo competente, com efeito meramente devolutivo, se essa possibilidade tiver sido salvaguardada pela entidade adjudicante nas peças do procedimento, ou declarada por algum dos concorrentes ou candidatos nas respetivas propostas ou candidaturas. Artigo 187º 1 - O Estado pode, nos termos da lei, autorizar a instalação de centros de arbitragem institucionalizada destinados à composição de litígios passíveis de arbitragem nos termos do artigo 180.º, designadamente no âmbito das seguintes matérias: a) [Revogada]; b) [Revogada]; c) Relações jurídicas de emprego público; d) Sistemas públicos de proteção social; e) Urbanismo. 2 - A vinculação de cada ministério à jurisdição de centros de arbitragem depende de portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça e do membro do Governo competente em razão da matéria, que estabelece o tipo e o valor máximo dos litígios abrangidos, conferindo aos interessados o poder de se dirigirem a esses centros para a resolução de tais litígios. 3 - Aos centros de arbitragem previstos no n.º 1 podem ser atribuídas funções de conciliação, mediação ou consulta no âmbito de procedimentos de impugnação administrativa. 34 LOPES, Dulce. PATRÃO, Afonso. Op. Cit., p. 20.

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Daí que neste contexto, que gera certa insegurança jurídica, vem a calhar a recomendação de Isabel Celeste Monteiro Fonseca35 no sentido de solucionar a medida pela via do estabelecimento legal do critério a ser adotado, e, numa solução mais simples, com “a identificação negativa de matéria que o legislador ordinário não pode afastar dos Tribunais do Estado e da jurisdição do juiz administrativo, tais como questões sancionatórias; questões disciplinares [...] questões relativas a direitos, liberdades e garantias [...]”. É certo que falta de legislação delimitante objetivamente do critério de mediabilidade dificulta a discussão em Portugal, mas conforme se verá adiante na normatização brasileira, nem sempre a existência de norma simplifica o debate.

4. Disponibilidade para fins de mediação em conflitos que envolvem a Administração Pública no Sistema Jurídico brasileiro No Brasil, a lei que dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos por meio da mediação no âmbito da administração pública é a Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015 (Lei Brasileira de Mediação). Antes dela, o Código de Processo Civil Brasileiro de 2015 (Lei n 13.105, de 16 de março de 2015, mas que só entrou em vigor em 18 de março de 2016) previu a mediação no âmbito do processo judicial brasileiro, ao lado de outras formas de resolução alternativa de controvérsias36. Também o Código Civil brasileiro de 2002 (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002) mencionava o uso de instrumentos extrajudiciais com finalidade de dirimir controvérsias pelos próprios interessados37. 35 FONSECA, Isabel Celeste Monteiro (coord.). A mediação administrativa: contributos sobre as (im) possibilidades. Coimbra: Almedina, p.81-92, p. 91-92 36 Código de Processo Civil Brasileiro de 2015: Art. 3º, § 2º - “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”, e § 3º - “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”, Art. 175: “As disposições desta Seção não excluem outras formas de conciliação e mediação extrajudiciais vinculadas a órgãos institucionais ou realizadas por intermédio de profissionais independentes, que poderão ser regulamentadas por lei específica”, e Art. 344.“Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência” 37 Código Civil de 2002. Art. 851. “é admitido compromisso, judicial ou extrajudicial, para resolver litígios entre pessoas que possam contratar”.

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Cumpre citar ainda que em 2010, por meio da Resolução nº 125, de 29 de novembro, o Conselho Nacional de Justiça instituiu política nacional de resolução adequada de controvérsias em ambientes não adversariais de solução de disputas38, prevendo mediação e conciliação como alguns de seus instrumentos39. Expressa normatização legal de meios mediatórios para a Administração Pública, entretanto, só veio mesmo com a Lei Brasileira de Mediação de 2015. A legislação brasileira estabelece os seguintes princípios gerais a serem observados na mediação: imparcialidade, isonomia entre as partes, oralidade, informalidade, autonomia da vontade das partes, busca do consenso e confidencialidade (art. 2º). E, especificamente quanto à Administração Pública, a Lei mencionada confere aos entes federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) a faculdade de criar câmeras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito de suas Advocacias Públicas, com as seguintes competências: Art. 32. omissis I - dirimir conflitos entre órgãos e entidades da administração pública; II - avaliar a admissibilidade dos pedidos de resolução de conflitos, por meio de composição, no caso de controvérsia entre particular e pessoa jurídica de direito público; III - promover, quando couber, a celebração de termo de ajustamento de conduta. [...] § 5º Compreendem-se na competência das câmaras de que trata o caput a prevenção e a resolução de conflitos que envolvam equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares. Parágrafo único. A Advocacia Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, onde houver, poderá instaurar, de ofício ou mediante provoca38 CNJ. Manual de Mediação Judicial, Brasília, DF, 2015, p.17. 39 Art. 1º: “ Aos órgãos judiciários incumbe, nos termos do art.334 do Novo Código de Processo Civil combinado com o art. 27 da Lei de Mediação, antes da solução adjudicada mediante sentença, oferecer outros mecanismos de soluções de controvérsias, em especial os chamados meios consensuais, como a mediação e a conciliação, bem assim prestar atendimento e orientação ao cidadão”. (Redação dada pela Emenda nº2, de 08.03.16) Disponível em: http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm? documento=2579. Acesso em: 28 nov. 2019.

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ção, procedimento de mediação coletiva de conflitos relacionados à prestação de serviços públicos.

Uma vez formado o consenso, o acordo deverá ser reduzido a termo e constituirá título executivo extrajudicial. A norma também estabelece (art. 32, § 4º) que “Não se incluem na competência dos órgãos mencionados no caput deste artigo as controvérsias que somente possam ser resolvidas por atos ou concessão de direitos sujeitos a autorização do Poder Legislativo”. Quanto ao procedimento a ser adotado, estabelece o art. 33 que “Enquanto não forem criadas as câmaras de mediação, os conflitos poderão ser dirimidos nos termos do procedimento de mediação previsto na Subseção I da Seção III do Capítulo I desta Lei”40. Constam ainda da norma regras que regem especifi-

40 Embora se trate aqui de uma mediação administrativa, fora do Poder Judiciário, até que se criem as Câmaras de Mediação Públicas, que elaborarão seus procedimentos em regulamentos próprios, a norma determina que se aplique o procedimento usado para a mediação judicial, conforme previsto na Lei. A seguir se transcreve: Art. 24. Os tribunais criarão centros judiciários de solução consensual de conflitos, responsáveis pela realização de sessões e audiências de conciliação e mediação, pré-processuais e processuais, e pelo desenvolvimento de programas destinados a auxiliar, orientar e estimular a autocomposição. Parágrafo único. A composição e a organização do centro serão definidas pelo respectivo tribunal, observadas as normas do Conselho Nacional de Justiça. Art. 25. Na mediação judicial, os mediadores não estarão sujeitos à prévia aceitação das partes, observado o disposto no art. 5º desta Lei. Art. 26. As partes deverão ser assistidas por advogados ou defensores públicos, ressalvadas as hipóteses previstas nas Leis n º 9.099, de 26 de setembro de 1995, e 10.259, de 12 de julho de 2001 . Parágrafo único. Aos que comprovarem insuficiência de recursos será assegurada assistência pela Defensoria Pública. Art. 27. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de mediação. Art. 28. O procedimento de mediação judicial deverá ser concluído em até sessenta dias, contados da primeira sessão, salvo quando as partes, de comum acordo, requererem sua prorrogação. Parágrafo único. Se houver acordo, os autos serão encaminhados ao juiz, que determinará o arquivamento do processo e, desde que requerido pelas partes, homologará o acordo, por sentença, e o termo final da mediação e determinará o arquivamento do processo. Art. 29. Solucionado o conflito pela mediação antes da citação do réu, não serão devidas custas judiciais finais.

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camente os conflitos envolvendo a Administração Pública Federal Direta, suas autarquias e fundações41. 41 Dos Conflitos Envolvendo a Administração Pública Federal Direta, suas Autarquias e Fundações Art. 35. As controvérsias jurídicas que envolvam a administração pública federal direta, suas autarquias e fundações poderão ser objeto de transação por adesão, com fundamento em: I - autorização do Advogado-Geral da União, com base na jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal ou de tribunais superiores; ou II - parecer do Advogado-Geral da União, aprovado pelo Presidente da República. § 1º Os requisitos e as condições da transação por adesão serão definidos em resolução administrativa própria. § 2º Ao fazer o pedido de adesão, o interessado deverá juntar prova de atendimento aos requisitos e às condições estabelecidos na resolução administrativa. § 3º A resolução administrativa terá efeitos gerais e será aplicada aos casos idênticos, tempestivamente habilitados mediante pedido de adesão, ainda que solucione apenas parte da controvérsia. § 4º A adesão implicará renúncia do interessado ao direito sobre o qual se fundamenta a ação ou o recurso, eventualmente pendentes, de natureza administrativa ou judicial, no que tange aos pontos compreendidos pelo objeto da resolução administrativa. § 5º Se o interessado for parte em processo judicial inaugurado por ação coletiva, a renúncia ao direito sobre o qual se fundamenta a ação deverá ser expressa, mediante petição dirigida ao juiz da causa. § 6º A formalização de resolução administrativa destinada à transação por adesão não implica a renúncia tácita à prescrição nem sua interrupção ou suspensão. Art. 36. No caso de conflitos que envolvam controvérsia jurídica entre órgãos ou entidades de direito público que integram a administração pública federal, a Advocacia-Geral da União deverá realizar composição extrajudicial do conflito, observados os procedimentos previstos em ato do Advogado-Geral da União. § 1º Na hipótese do caput, se não houver acordo quanto à controvérsia jurídica, caberá ao Advogado-Geral da União dirimi-la, com fundamento na legislação afeta. § 2º Nos casos em que a resolução da controvérsia implicar o reconhecimento da existência de créditos da União, de suas autarquias e fundações em face de pessoas jurídicas de direito público federais, a Advocacia-Geral da União poderá solicitar ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão a adequação orçamentária para quitação das dívidas reconhecidas como legítimas. § 3º A composição extrajudicial do conflito não afasta a apuração de responsabilidade do agente público que deu causa à dívida, sempre que se verificar que sua ação ou omissão constitui, em tese, infração disciplinar. § 4º Nas hipóteses em que a matéria objeto do litígio esteja sendo discutida em ação de improbidade administrativa ou sobre ela haja decisão do Tribunal de Contas da União, a conciliação de que trata o caput dependerá da anuência expressa do juiz da causa ou do Ministro Relator. Art. 37. É facultado aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, suas autarquias e fundações públicas, bem como às empresas públicas e sociedades de economia mista federais, submeter seus litígios com órgãos ou entidades da administração pública federal à Advocacia-Geral da União, para fins de composição extrajudicial do conflito. Art. 38. Nos casos em que a controvérsia jurídica seja relativa a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil ou a créditos inscritos em dívida ativa da União: I - não se aplicam as disposições dos incisos II e III do caput do art. 32; II - as empresas públicas, sociedades de economia mista e suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços em regime de concorrência não poderão exercer a faculdade prevista no art. 37; III - quando forem partes as pessoas a que alude o caput do art. 36: a) a submissão do conflito à composição extrajudicial pela Advocacia-Geral da União implica renúncia do direito de recorrer ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais; b) a redução ou o cancelamento do crédito dependerá de manifestação conjunta do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado da Fazenda. Parágrafo único. O disposto neste artigo não afasta a competência do Advogado-Geral da União prevista nos incisos VI, X e XI do art. 4º da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993 , e na Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997 . (Redação dada pela Lei nº 13.327, de 2016) (Produção de efeito) Art. 39. A propositura de ação judicial em que figurem concomitantemente nos polos ativo e passivo órgãos ou entidades de direito público que integrem a administração pública federal deverá ser previamente autorizada pelo Advogado-Geral da União. Art. 40. Os servidores e empregados públicos que participarem do processo de composição extrajudicial do conflito, somente poderão ser responsabilizados civil, administrativa ou criminalmente quando, mediante dolo ou fraude, receberem qualquer vantagem patrimonial indevida, permitirem ou facilitarem sua recepção por terceiro, ou para tal concorrerem.

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Sobre o objeto da mediação, em seu artigo 3º estabelece: “Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação”42. O processo legislativo que levou a esta redação foi árduo no Congresso Nacional Brasileiro. Cumpre saber, dada a sua importância, que a mencionada lei se originou do Projeto de Lei do Senado nº 517, de autoria do Senador Ricardo Ferraço, em 2011. O texto então apresentado não fazia menção expressa a transação de direitos indisponíveis. Em 2013, foram apresentados ao Senado mais dois projetos com o mesmo objeto: o PLS nº 405, do Senador Renan Calheiros; e o PLS nº 434, do Senador José Pimentel. Então, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado reuniu-os e apresentou substitutivo ao PLS 517 em que as questões de transacionabilidade e indisponibilidade passaram a ser vislumbradas. Eis a redação do art. 3º da lei nesta ocasião: Art. 3º Somente pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre matéria que admita transação. § 1º A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele. § 2º Os acordos envolvendo direitos indisponíveis e transigíveis devem ser homologados em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público quando houver interesse de incapazes. § 3º Não se submete à mediação o conflito em que se discute: I – filiação, adoção, poder familiar ou invalidade de matrimônio; II – interdição; III – recuperação judicial ou falência43.

A estranha expressão “direitos indisponíveis que admitam transação” foi obra do PLS 434, com a seguinte justificativa: 42 Eis o inteiro teor do mencionado artigo: Art. 3º Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação. § 1º A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele. § 2º O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público. 43 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 517, de 2011. Institui e disciplina o uso da mediação como instrumento para prevenção e solução consensual de conflitos.

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Optou-se por incluir-se no rol de matérias que podem ser objeto de mediação aquelas que envolvam direitos disponíveis e também as que envolvem indisponíveis passíveis de transação, ainda que sob respaldo judicial. Assim, abre-se espaço para que, por exemplo, um casal com filhos menores, durante uma eventual separação, resolva todas as questões de guarda e alimentos por meio da mediação extrajudicial, em um acordo consensual, se assim o desejar. Porém, tal acordo, para ter validade, precisa ser homologado judicialmente, com a prévia oitiva do Ministério Público. 44

Dando continuidade à sua tramitação, o PLS nº 517/2011 transformou-se no Projeto de Lei (PL) nº 7.169/2014. Na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, o Deputado Sergio Zveiter opinou pela modificação no artigo mencionado nos seguintes termos: Quanto ao caput artigo 3º, vale destacar que há direitos os quais, mesmo indisponíveis, admitem algum nível de transação. Os conflitos envolvendo questões de família, ressalvados os casos de filiação, adoção, poder familiar, e invalidade do matrimônio, ou questões ambientais, são exemplos de direitos, a princípio, indisponíveis, mas que são mediados com altas taxas de êxito e de efetividade. Assim, a alteração promovida no caput permitirá maior abrangência da lei e evitará que experiências já existentes e satisfatórias de mediação sejam desconsideradas45.

Neste ponto, assim ficou a redação do artigo: Art. 3º Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou de direitos indisponíveis que admitam transação. § 1º A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele. § 2º O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público. §3º Salvo em relação aos seus aspectos patrimoniais ou às questões que admitam transação, não se submete à mediação o conflito em que se discuta: I – filiação, adoção, poder familiar ou invalidade de matrimônio; II – interdição;

44 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado nº 434, de 2013. Dispõe sobre a mediação. 45 BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Parecer do Relator nº 1, de 10 de junho de 2014.

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III – recuperação judicial ou falência; IV – relações de trabalho46.

Ao final, a Câmara dos Deputados decidiu pela supressão do rol de hipóteses que não poderiam ser objeto de mediação (§3°). Em sua manifestação, o Deputado Sergio Zveiter explicou por quais razões: [...] a redação do §3º, da forma originalmente apresentada, dava margem à interpretação equivocada de que a lei estaria impedindo a mediação de qualquer conflito que envolva questão familiar. Em verdade, a mediação de disputas dessa natureza é uma das práticas consensuais de solução de conflitos mais avançada. Entendo, portanto, ser mais adequado que se excluam as exceções expressas, visto que o caput do artigo já especifica os tipos de conflitos que podem ser mediados, já estando prevista a proibição de mediação em conflitos que envolvam direitos indisponíveis que não admitam transação. Assim, evita-se não só a redundância no texto, mas, também, eventual interpretação equivocada que impeça a aplicação da mediação47.

Observe-se que as justificativas do projeto de lei não esclarecem os conceitos de disponibilidade de transação a serem levados em consideração nesta análise. Transação é classicamente concebida como negócio jurídico bilateral que permite, através de concessões recíprocas a eliminação de litígios em uma determinada relação jurídica48. Segundo José Carlos Barbosa Moreira49, a tradição portuguesa já admitia e o Código Civil brasileiro de 2002 passou também a admitir a transação mista, que permite como objeto a prevenção de litígios futuros. Este mesmo diploma legislativo, ao se referir a transação ampliará as dificuldades de análise da disposição de direitos humanos fundamentais ao estabelecer que “Art. 841. Só quanto a direitos patrimoniais de caráter privado se permite a transação”. Por seu turno, o conceito de disponibilidade vem geralmente associado a possibilidade de contratar ou de renunciar aos direitos de que se fala, com en-

46 BRASIL. Câmara dos Deputados. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Parecer do Relator nº 1, de 10 de junho de 2014. 47 BRASIL. Câmara dos Deputados Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Parecer do Relator nº 4, de 25 de março de 2015. 48 MIRANDA, Pontes de - Tratado de direito privado: parte especial. Direito das obrigações. Extinção das dívidas e obrigações. Dação em soluto. Confusão. Remissão de dívidas. Novação. Transação. Outros modos de extinção. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. 49 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Direito aplicado II: pareceres. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

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fraquecimento da posição jurídica do titular do direito50, sem que se localize um sentido unívoco nas análises51, de modo que a doutrina brasileira não parece ser, por si só, o porto mais seguro para ancorar nossa definição. Cintra, Grinover e Dinamarco52 apontam, por exemplo, que a ligação dos direitos da personalidade com a dignidade da pessoa humana os torna indisponíveis e, por consequência, intransigíveis. Entretanto, os mesmos autores reconhecem a transacionabilidade dos direitos econômicos sobre a imagem das pessoas, como nos casos de cessão dos direitos de imagem. Outros como Bessa53 apontam a disponibilidade dos seguintes direitos que considera indisponíveis por serem direitos da personalidade atrelados à dignidade da pessoa humana: a possibilidade jurídica de realização de transplantes de tecidos e órgãos humanos; a possibilidade de realização de cirurgias para mudança de sexo; a transacionabilidade do direito a alimentos; a transacionalibilidade de uma série de direitos trabalhistas; a renúncia pelo seu titular de direitos previdenciários; os acordos feitos em matéria de crédito tributário e outras mais hipóteses.

50 A leitura das mencionadas fontes aponta para a associação de disposição com desvantagem ou perda significativa para o titular do direito, o que de fato pode ocorrer num ato de disposição, mas que nem sempre significará um resultado negativo ou desvantajoso para o titular do direito. Quando for verdadeira a afirmação de que disposição significa necessariamente perda ou gravosa desvantagem, entende-se que a impossibilidade de transação protege os titulares em situação de fragilidade física, econômica, social ou de outra natureza de serem lesados em sua condição humana e submetidos à exploração disfarçada de disposição. Porém, como no exemplo de MARTEL, Letícia de Campos Velho - Indisponibilidade de Direitos Fundamentais: Conceito Lacônico, Consequências Duvidosas. Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 11, n. 2, p. 334-373, jul./dez. 2010, p. 361, sobre a realização de uma cirurgia se identifica vantagem na disposição do direito humanos fundamental: “Quando X consente em fazer uma cirurgia e autoriza o médico Y, X dispõe de posição subjetiva do direito estrito à integridade física, permitindo que Y realize atos que não poderia realizar, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento. X, que titularizava um direito em face de Y, libera-o do dever correlativo, deixando-o na posição dominante na relação. X, que era titular de um direito, passa a ter um não direito ou mesmo um novo dever. Aqui se vê que a ideia de perda de algo parece se manifestar. X não mais está no lado dominante da relação, Y está. Entretanto, X quer realizar a cirurgia e, no exemplo, ela será benéfica para sua saúde. Então, apesar de ocorrer um enfraquecimento nas posições subjetivas de direito fundamental de X, é no seu interesse, em razão do seu querer e para sua vantagem que ele consente na disposição”. 51 Conforme MARTEL, Letícia de Campos Velho. Op. Cit., p. 340: “parece haver uma tendência no sentido de ser a indisponibilidade ligada a comportamentos do titular que conduzem ao enfraquecimento do direito perante terceiros. Mas, ainda assim, o sentido não é unívoco, pois, em alguns juristas vinculados a esses grupos, os exemplos referem-se à afetação do bem tutelado pelo próprio titular, e não à modificação da relação jurídica de direito fundamental diante de terceiros”. 52 CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini.; DINAMARCO, Cândido Rangel - Teoria geral do processo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. 53 ANTUNES, Paulo de Bessa - Direito ambiental. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

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Ainda há aqueles, como Calmon de Passos, ao comentar o Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, que se referem à diferenciação entre indisponibilidade absoluta e relativa54. Do mesmo modo, quando se trata da legislação sobre o assunto, o ramo jurídico em análise apontará para diferentes acepções. Assim, nem sempre é possível ler com o mesmo sentido a indisponibilidade na legislação civil, na legislação penal ou na legislação administrativa, por exemplo55. Já da jurisprudência brasileira, Martel56 colheu os seguintes sentidos em que a expressão “direitos indisponíveis” é usada: a direitos que não podem sofrer ablações, mesmo que o titular coopere para tanto; b direitos que não podem ser abdicados por manifestação pelo titular; c direitos gravados pelo interesse público, sem que fique claro o significado de indisponível; 54 Afirma PASSOS, José Joaquim Calmon de - Comentários ao Código de Processo Civil. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, vol. III: arts.270 a 331. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 408-409: “Direitos há, contudo, que são indisponíveis, de modo absoluto ou relativo. A indisponibilidade é absoluta quando é próprio bem, conteúdo do direito, que se faz insuscetível de disposição, porque de tal modo se vincula ao sujeito que dele é indissociável. Werneck Cortes, no seu bem elaborado estudo, menciona alguns desses direitos. Predomina, entretanto, a categoria dos direitos cuja indisponibilidade é relativa, porque deriva ela dos limites fixados em lei ou em convenção dos interessados, quando esta última seja admitida. Nessa categoria dos direitos relativamente indisponíveis, acreditamos se possa e deva enquadrar, máxime para os efeitos perseguidos pelo art. 351, consequentemente também pelos arts. 302, II e 320, II todo e qualquer direito submetido, para efeito de sua disposição, a controles estatais, quer de natureza administrativa, quer de natureza jurisdicional.” 55 O direito à saúde, intimamente ligado ao próprio direto à vida é exemplo disso. Por mais que considerados indisponíveis e insuscetíveis de transação, não se criminaliza nos sistemas jurídicos brasileiro e português o suicídio, mas se impõem limitações civis à disposição do próprio corpo em vida (transplante de tecidos e órgãos, por exemplo). E, por mais relevantes e indisponíveis que sejam, a aplicação do princípio da reserva do possível não é desconhecida dos Tribunais brasileiros e portugueses em demandas que envolvem a prestação de medicamentos e tratamentos de saúde altamente custosos aos cofres públicos. Sobre o exemplo do direito à vida e a questão do suicídio, SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo, 2004. Tese (Livre Docência em Direito)–Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004. afirma “Mesmo que não se recorra a exemplos limítrofes – a renúncia ao direito à vida por meio do suicídio, por exemplo [...]” 2004, p. 73. MARTEL, Letícia de Campos Velho. Op. Cit., p. 356, por outro lado, assevera: “Ao entender que o suicídio de X é uma disposição das posições subjetivas do direito à vida, compreende-se a destruição do bem vida como disposição (renúncia). Inexoravelmente, a destruição do bem ensejará consequências quanto às posições subjetivas do direito à vida. Mas isso autoriza a chamar essa extinção do direito de disposição? Não” 56 MARTEL, Letícia de Campos Velho Op. Cit., p. 352.

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d direitos que não estão ao alcance de um indivíduo, por não ser ele o titular; e direitos que devem ser pleiteados em juízo; f direitos titularizados por pessoas que não possuem capacidade plena para abdicá-los. (grifou-se). Ao tratar da Administração Pública brasileira, podemos considerar, nos termos acima expostos, que sequer trataríamos de uma questão de disponibilidade do interesse público, mas de titularidade do mesmo e capacidade de representação destes interesses, que se expressa na noção jurídica de competência administrativa a conferir um poder, condicionado pelas normas, ao administrador57. Ao escamotear a legislação brasileira58, entretanto, se encontrará esta concessão de poderes ao Advogado-Geral da União, diretamente ou por delegação, e aos dirigentes das empresas públicas federais conjuntamente com o dirigente da área ligado ao tema, para realizar acordos ou transações com o objetivo de prevenir ou findar litígios, mesmo os já judicializados, que envolvam a União Federal. Ainda assim, foi grande a discussão no Supremo Tribunal Federal Brasileiro sobre a Constitucionalidade da Lei de Arbitragem Brasileira (Lei 9.307/1996)

57 O art. 2º da Lei Federal nº 9.784/1999 (Lei do processo administrativo federal) proíbe a renúncia total ou parcial de poderes ou competências, salvo autorização legal. 58 Lei 9.469/1997, que regulamenta a Lei Orgânica da Advocacia Geral da União (Lei Complementar 73/1993). Esta, em seu artigo 4º, VI, prevê como atribuições do Advogado Geral da União: “desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União, nos termos da legislação vigente”.

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que estabeleceu a arbitragem como possibilidade jurídica válida quando a lide versar sobre “direitos patrimoniais disponíveis”59. A classificação de direitos/interesses em patrimoniais e não patrimoniais pode até lançar algumas luzes sobre a questão, mas não a resolve na medida em que é possível que a patrimonialidade do direito não irá significar sua disponibilidade, e vice-versa. Assim, na tentativa de estabelecer o que seria este direito patrimonial disponível da Administração Pública, podemos colher relevantes lições do julgado do Superior Tribunal de Justiça brasileiro no Conflito de Competência nº 139.519/RJ, embora este não chegue a estabelecer um conceito. A título de contextualização, cumpre relatar a celeuma que levou a matéria ao STJ teve início quando a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) alterou unilateralmente uma cláusula de contrato de concessão assinado com a Petrobrás, sociedade de economia mista, pessoa jurídica de direito privado da Administração Pública Indireta Brasileira. O contrato concedia à Petrobrás a exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural no Bloco BC-60. Este contrato possuía cláusula compromissória de Arbitragem, de modo que a Petrobrás deu início ao processo de arbitragem com o fito de obter a declaração de nulidade da alteração unilateral do contrato promovida pela ANP. Simultaneamente, a Petrobrás ingressou com uma medida cautelar na Justiça Federal do Rio de Janeiro, alegando urgência na suspensão do ato de alteração unilateral do contrato de concessão, uma vez que o tribunal arbitral ainda não estava instalado. O ato foi sucedido por uma série de medidas judiciais que impediu a regular tramitação do processo arbitral e desembocou no conflito de

59 É importante destacar que a discussão é anterior às modificações introduzidas em 2015, pela Lei 13.129, que passou a prever expressamente o uso da arbitragem pela Administração Pública brasileira nos seguintes termos: “Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. § 1o A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Incluído pela Lei nº 13.129, de 2015) § 2o A autoridade ou o órgão competente da administração pública direta para a celebração de convenção de arbitragem é a mesma para a realização de acordos ou transações. (Incluído pela Lei nº 13.129, de 2015) Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes. § 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. § 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio. § 3o A arbitragem que envolva a administração pública será sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade. (Incluído pela Lei nº 13.129, de 2015)”

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competência mencionado, no qual buscava a Petrobrás o reconhecimento da competência da Corte Arbitral para julgar o litígio. Ao final, foi reconhecida a competência do juízo arbitral, mas o que interessa ao presente estudo foram as considerações dos julgadores quanto disponibilidade dos interesses patrimoniais mencionados. A solução encontrada pela Corte foi a distinção, já conhecida da doutrina brasileira, entre interesse público e interesse da pessoa jurídica de direito público, ou ainda, entre interesse público primário e interesse público secundário60: Em consequência, sempre que a Administração contrata há disponibilidade do direito patrimonial, podendo, desse modo, ser objeto de cláusula arbitral, sem que isso importe em disponibilidade do interesse público. [...] a Administração Pública, ao recorrer à arbitragem para solucionar litígios que tenham por objeto direitos patrimoniais disponíveis, não desatende ao interesse público, nem renuncia ao seu atendimento. Diversamente, ao assim agir, prestigia o princípio da indisponibilidade do interesse público, desdobramento que é do sobreprincípio da supremacia do interesse público sobre o particular61.

Assim, pode-se concluir, que, segundo a decisão acima, o poder de contratar implica, no mínimo, na disponibilidade do direito patrimonial. Este raciocínio pode ser complementar às considerações que Carlos Alberto de Salles62 faz ao analisar a arbitragem em contratos administrativos, no ordenamento brasileiro. Segundo o autor, a indisponibilidade para a Administração Pública pode ser material ou normativa. Será material quando decorrer da própria natureza do bem, exemplificando o direito ao meio ambiente como espécie de direito indisponível63. Será normativa quando voltar-se para a proteção da efetividade da própria norma e não do bem materialmente considerado64. Isto leva o autor a concluir que para a Administração Pública a indisponibilidade de interesses é quase sempre normativa, ou meramente condicionada, e, raramente, uma verdadeira indisponibilidade material65.

60 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Op. Cit. 61 STJ. Conflito de Competência nº 139.519/RJ. Primeira Seção. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Data de julgamento: 11 out. 2017. DJe: 10/11/2017. 62 SALLES, Carlos Alberto de - Arbitragem em contratos administrativos. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 292/293. 63 Idem. Ibidem, p. 292/293. 64 Idem, Ibidem, p. 292/293. 65 SALLES, Carlos Alberto de - A indisponibilidade e a solução consensual de controvérsias. In: GABBAY, Daniela Monteiro; TAKAHASHI, Bruno (Coord.). Justiça Federal: inovações nos mecanismos consensuais de solução de conflitos. Brasília/DF: Gazeta Jurídica, 2014, p. 212-215.

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Com isso, levadas em conta as razoáveis diferenças entre mediação e arbitragem, cremos que, se o critério lançado pela relevante decisão acima não permite estabelecer um rol de matérias passíveis de mediação, ao menos permite compreender que há disponibilidade de direitos passível de mediação quando estivermos a tratar de interesses em que as normas já permitem que a Administração celebre contratos e acordos, independente da patrimonialidade destes (já que não há referência na lei de mediação a esta condição). Nos parece, portanto, ser esta a acepção mais adequada na seara administrativa para a expressão direitos passíveis de transação, no cenário brasileiro atual.

5. Síntese comparativa e considerações finais O fato de Brasil e Portugal possuírem tradições legais fundadas no civil law, em especial jurídico-administrativas de matriz francesa, e estamparem regimes democráticos, tende a facilitar o estudo comparativo de institutos jurídicos, como o presente, entretanto a conformação jurisdicional significa um desafio relevante. Enquanto o Brasil adota um sistema de unicidade de jurisdição, que tem no Poder Público um de seus principais litigantes, seja no polo ativo ou no polo passivo, o que favorece a crise e o abarrotamento do Judiciário Brasileiro, Portugal faz uso do sistema de dualidade de Jurisdição, possuindo um Judiciário dedicado às demandas em que a Administração Pública é parte. Não são estranhos a Portugal, os problemas do acesso equitativo à Justiça, mas pode-se dizer que, desde o texto da Constituição da República Portuguesa, o país preocupa-se com meios externos ao Judiciário como adequados para a solução de controvérsias, mesmo quando lhe reconhece caráter jurisdicional, tal como é o caso da arbitragem. Enquanto podemos dizer que o Brasil demorou a deslanchar na promoção de meios alternativos de resolução de controvérsias que envolvem a Administração Pública66, o que se explica por um notório caráter litigante dos entes públicos brasileiros, “é inegável o carácter inovador da legislação portuguesa em matéria de arbitragem de direito público e em especial em relação a contratos administrativos e agora até a actos administrativos. É inegável um profuso crescendo de mais de 20 anos na área de arbitragem da doutrina portuguesa”67. 66 Embora já possuísse em legislação esparsa diversos mecanismos negociais para a Administração Pública, somente em 2015 legislação estabeleceu os critérios para a realização de arbitragem pela Administração Pública brasileira. 67 PALHARES, Ana - A arbitragem e a renúncia dos entes públicos ao direito de acesso aos tribunais do Estado. In: FONSECA, Isabel Celeste M (coord.). A Arbitragem Administrativa e Tributária. Problemas e Desafios. Coimbra: Almedina, 2018, p. 41 – p. 41-56, p. 41.

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Hoje, ambos os sistemas jurídicos possuem Legislações que permitem a realização fora dos Tribunais Jurisdicionais Estatais de Arbitragem, mas ao contrário do que ocorre na lei portuguesa de arbitragem pela Administração Pública, a lei brasileira não estabeleceu um rol de hipóteses cabíveis, tão somente, estabeleceu o critério do “interesse patrimonial disponível”, de modo que critério de arbitralidade não vai significar a mesma coisa em ambos os sistemas jurídicos. Importa apontar que a arbitragem é instituto com o mesmo sentido e mesma finalidade nos direitos brasileiro e português. O que diferenciará o instituto em ambos os sistemas para a administração pública é mesmo o critério de arbitralidade, conforme acima apontado. Portanto, a simples transposição do critério de arbitralidade para a mediação, no Brasil ou em Portugal, é solução excessivamente simplista, dadas as diferenças entre os institutos. Em todo caso, por representar, tanto no Brasil quanto em Portugal, a realização de uma política que reconhece a dialogicidade das relações administrativas e a importância de uma Administração Pública menos verticalizada em relação aos cidadãos, os critérios de arbitralidade em ambos os países poderiam lançar algumas pistas sobre qual o espaço de disponibilidade para fins de mediação de lides que envolvam a Administração Pública. Assim, quanto à mediação fora dos Tribunais estatais identifica-se dificuldades no aclaramento do critério de disponibilidade para fins de mediação a ser adotado em ambos os países pela Administração Pública, seja pela ausência de norma definidora em Portugal (que levanta o debate sobre a possibilidade de uso ou da transigibilidade, ou disponibilidade ou da arbitralidade), seja pela confusão conceitual que o termo “direito disponível passível de transação” cria no direito brasileiro. A própria noção de indisponibilidade do interesse público em ambos os países, se compreendida exclusivamente em termos materiais, dificulta a distinção entre interesses públicos passíveis e não passíveis de transação. Em qualquer dos sistemas jurídicos, porém, a transigibilidade não parece ter identidade com a noção de patrimonialidade, embora, no caso brasileiro, esta possa servir de pista para a delimitação do conceito. Tamanha confusão conceitual, mesmo nos Tribunais Jurisdicionais clássicos, nos permite compreender que a questão da indisponibilidade do interesse público não deverá ser encarada como impeditivo, a priori, à realização de mediação pela Administração Pública, pois esta consideração de interesses públicos deve ocorrer também nas decisões dos tribunais jurisdicionais estatais que se substituem à vontade das partes68. 68 FERNANDEZ, Elizabeth, “Um Juiz de Paz para a Paz dos Juízes (?)”, in: Cadernos de Direito Privado, n.º 15, 2006, pp. 15-31, p. 22, entende que o limite da disponibilidade dos direitos envolvidos está “presente em qualquer resolução por transacção, mesmo judicial”.

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Isto porque a mediação de um conflito que envolva interesses públicos não leva, necessariamente, a disposição violadora dos interesses públicos, ou renúncia destes. Conforme se pôde observar na descrição das etapas de uma mediação, O ponto de partida de um processo de mediação pode encontrar-se muito afastado do ponto de chegada, não sendo necessariamente solucionados os problemas que inicialmente as partes julgavam ter. Assim, aquilo que aparentemente poderia ser um litígio relativo a um direito indisponível pode afinal esconder outros interesses, especialmente ligados à pacificação social, que nada têm a ver com esse direito ou, pelo menos, com a sua disposição pelas partes69. E mesmo se houver alguma disposição, no sentido de cedência mútua de posições jurídicas, conforme se argumentou até aqui, a disposição, por si só, não significa desvantagem para os interesses públicos primários, mormente para a consecução do acesso equitativo, justo e célere à justiça. Outrossim, vislumbra-se que o resultado da mediação pode sempre ser objeto de avaliação quanto à sua validade jurídica, tal como ocorre nos contratos públicos e noutras manifestações de autonomia para contratar pela Administração Pública, tanto no Brasil, como em Portugal. Assim, pode-se concluir que, apesar dos diferentes sistemas jurisdicionais, dos diferentes estágios de evolução e aplicação de instrumentos não jurisdicionais de resolução de controvérsias e mesmo da diversidade de disposições legislativas, há mais semelhanças que diferenças entre o critério de disponibilidade de interesses pela Administração Pública que se pode extrair da análise das ordens jurídicas brasileira e portuguesa e a principal similitude está na eleição por ambos os sistemas da transacionabilidade como eixo central da discussão.

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ANEXO: Tabela comparativa CRITÉRIOS COMPARATIVOS

BRASIL

PORTUGAL

Lei 13. 140, de 26 de junho de 2015 (capítulo específico para a Administração pública) Novo Código de Processo Civil/2015 Lei 13.105/2015 Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996, com alterações da Lei 13.129/2015) Fontes de direito usadas na comparação

Lei de introdução às normas de direito brasileiro – LINDB, recentemente alterada pela lei 13.655/2018, regulamentada pelo Decreto 9.830/2019

Lei nº 29/2013, de 19 de Abril (Lei da Mediação) Art. 187º do CPTA Recomendação R (2001) 9 do Comitê de Ministros dos Estados Membros Doutrina Não há lei específica para a Administração pública.

Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça. Doutrina STJ. Conflito de Competência nº 139.519/RJ. Primeira Seção. Relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Data de julgamento: 11 out. 2017. DJe: 10/11/2017 Sistemas de jurisdição

Unicidade de jurisdição

Dualidade de jurisdição (sistema francês)

Tradição legal

Civil law

Civil law

Língua

Língua Portuguesa

Língua Portuguesa

Histórico de aplicação mais morosa, embora haja diversos instrumentos de transação.

Cultura de MARCs

Há diversas outras no sistema jurídico brasileiro pertinentes à matéria administrativa, em especial no âmbito de entidades da administração pública indireta tais como a Comissão de Valores Mobiliários, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, Agências Reguladoras e entes com competências ambientais, todas buscando a substituição do ato imperativo ou do conflito jurisdicional pela solução consensual.

Cultura consolidada, mas não imune a críticas. CRP prevê arbitragem como jurisdição. Há lei de mediação em matéria cível. Há previsão legal de mediação inclusive em âmbito penal.

Uma cultura de litigância. Art. 2º. Definições

Conceito de mediação

Espécies de mediação

Critério de mediabilidade

Art. 1º, parágrafo único: Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes, as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais para a controvérsia.

Para efeito do disposto na presente lei, entende-se por: “Mediação” a forma de resolução alternativa de litígios, realizada por entidades públicas ou privadas, através do qual duas ou mais partes em litígio procuram voluntariamente alcançar um acordo com assistência de um mediador de conflitos;

Judicial

Intraprocessual (pré-judicial)

Extrajudicial

Extraprocessual (incluindo sistemas públicos de mediação)

Disponibilidade do direito ou indisponibilidade que admita transação em juízo, conforme a lei.

Arbitralidade, Disponibilidade ou Transacionabilidade, conforme a doutrina.

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A DIFÍCIL INTREGRAÇÃO DOS ILÍCITOS (ADMINISTRATIVOS) CONTRAORDENACIONAIS NA JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA PORTUGUESA VERSUS A NATURAL RELAÇÃO ENTRE OS ILÍCITOS ADMINISTRATIVOS E O CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO ESPANHOL

(Singularidades de uma comparação jus administrativa)

João Vilas Boas Pinto1

Sumário: I. Enquadramento e Pressupostos; II. Brevíssimo incurso histórico pelo ordenamento jurídico alemão: do direito penal administrativo ao direito das contraordenações; III. O ilícito de mera ordenação social no ordenamento jurídico português e a (incompreensível) competência dos tribunais judiciais para a impugnação de decisões administrativas de aplicação de coimas; IV. A afirmação de um direito administrativo sancionatório e de um correspondente controlo contencioso-administrativo no ordenamento

1 Assistente Convidado da Escola de Direito da Universidade do Minho. Doutorando em Ciências Jurídicas Públicas.

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jurídico espanhol; V. Conclusão; VI. Síntese Comparativa – tabela de microcomparação; VII. Referências Bibliográficas.

I. Enquadramento e pressupostos O presente estudo tem por objetivo primordial proceder a uma comparação, no quadro ibérico, quanto à jurisdição competente em matéria de sanções administrativas, isto é, perscrutar, num e noutro ordenamento jurídicos, se o controlo dos atos administrativos sancionatórios - no caso português, maxime em matéria de ilícito de mera ordenação social - é efetuado pelos tribunais comuns (penais), pelos tribunais administrativos ou por ambas as jurisdições, por forma a destacar os principais pontos de convergência e divergência. Se o desiderato a que nos propomos aparenta um mero quadro de comparação linear, a realidade envolvente é profundamente diagonal e, diremos mesmo, assimétrica. Por via desta comparação, não nos bastaremos com uma mera declaração da jurisdição competente num e noutro ordenamento jurídico, mas antes buscaremos encontrar respostas – ou, minimum, possíveis soluções - para questões e problemas que, repetidamente, nos têm inquietado. No acerto de contas, que razões levaram, em matéria de sanções administrativas, os ordenamentos jurídicos português e espanhol a seguir caminhos tão distintos? Em face das sucessivas alterações e reformas num e noutro, aproximar-se-ão – quiçá, unir-se-ão – os caminhos? E que consequências daí decorrem para a tutela jurisdicional efetiva? No fundo, almejamos compreender, através de duas óticas distintas, a forma como é encarada a relação jurídica assente num ilícito administrativo. Tendo por adquirido que «o objeto do direito comparado é formado pela comparação (tendencialmente sincrónica e atual) entre ordens jurídicas, podendo estas ser consideradas quer na sua globalidade quer em relação a algum instituto, conjunto de institutos ou normas»(2), o labor a que nos propomos assume-se, indubitavelmente, como objeto de direito comparado. Não temos a pretensão de comparar o sistema jurídico português com o sistema jurídico espanhol, considerados na sua globalidade, mas apenas comparar institutos jurídicos afins em ordens jurídicas distintas: no caso concreto, o instituto do controlo jurisdicional dos ilícitos administrativos. Trata-se, portanto, de um estudo de microcomparação. Delimitado o objeto – e porque tal delimitação é feita mediante os fins que se desejam alcançar –, os objetivos principais do nosso estudo coincidem com algumas das funções do direito comparado: do ponto de vista do direito na2 FERREIRA DE ALMEIDA, Carlos / MORAIS CARVALHO, Jorge – Introdução ao Direito Comparado, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, p. 12.

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cional, perspetiva-se um melhor conhecimento do sistema jurídico e do referido instituto jurídico, ambicionando-se igualmente que constitua um instrumento de política legislativa. Para além desses objetivos-funções, é nosso intento que contribua para a harmonização de direitos, neste caso, sobretudo ao nível das garantias do sancionado(3). Resta-nos, pois, apontar referência ao método, isto é, ao processo de comparação propriamente dito. Sendo que só é possível comparar aquilo que é comparável, entendemos igualmente não ser possível, no presente estudo, preterir os contributos dos vários métodos utilizados pelo direito comparado. Se de facto o método primordial é o normativo-funcional, ou seja, a depuração da função que determinado quadro normativo desempenha num dado ordenamento jurídico, não menos verdade é a relevância assumida pelos métodos analítico e histórico, através da convocação e decomposição de um conjunto de elementos relevantes, por forma a apreender a integração sistemática desses mesmos elementos. Socorrer-nos-emos, enquanto principais fontes da comparação, do quadro legislativo, da doutrina e da jurisprudência. As diferenças que ao longo do texto se assinalam entre os dois sistemas jurídicos não obstam à comparação: se, de facto, no decurso histórico-cronológico é possível indicar múltiplas diferenças entre os dois sistemas, tanto ao nível das influências iniciais como ao nível das razões históricas locais, atualmente também é possível recortar nos dois sistemas jurídicos, tão próximos (ou mesmo convergentes) em diversas matérias, aproximação essa proporcionada sobretudo pelo processo de integração europeia, numerosas dissemelhanças no que à temática das sanções administrativas respeita. A diferença, enquanto expressão do pluralismo jurídico, não é, assim, sinónimo de proibidade, mas elemento nuclear da comparação(4). Convém igualmente, de antemão, subscrever, em jeito de declaração de interesses, a posição que perfilhamos sobre a temática em causa. Desse modo, o nosso entendimento cifra-se naturalmente na nossa condição de administrativista, pelo que propugnamos uma compreensão do Direito Administrativo Sancionatório por recurso à substância própria do Direito Administrativo, isto é, propenderemos a aceitar soluções, embora não acriticamente, que melhor se coadunem com tal posicionamento. Nesse sentido, o presente estudo pretende

3 Sobre as funções do Direito Comparado, vd. Idem, pp. 16 a 19. 4 Em sentido próximo, JERÓNIMO, Patrícia – Lições de Direito Comparado, Braga: ELSA UMINHO, 2015, pp.40 e 42: «A diversidade cultural traz consigo o pluralismo jurídico, ou seja, a existência de uma multiplicidade de fontes de Direito, de formas de conceber o Direito e de modos de o realizar na prática»; «O pluralismo jurídico não é observável apenas entre tradições ou famílias jurídicas, mas também entre Estados pertencentes a uma mesma família».

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contribuir para a (futura) apresentação de propostas de reforma de iure condendo(5).

II. Brevíssimo incurso histórico pelo ordenamento jurídico alemão: do direito penal administrativo ao direito das contraordenações O Direito dos Ilícitos de Mera Ordenação Social (comummente designado Contraordenacional) – e, diríamos mesmo, o Direito Administrativo Sancionatório - é resultado de uma trajetória histórica própria, marcada inevitavelmente por um conjunto de circunstâncias endógenas e exógenas. Não pairam dúvidas de que constitui uma realidade histórica, ou não fossemos prontamente alertados por FARIA COSTA de que «(…) quem pensasse que o direito de mera ordenação social era uma disciplina jurídica sem uma longa gestação doutrinal cometeria um erro grave de análise» (6). Desde as suas origens, o direito das Ordnungswidigkeiten colheu o interesse e o estudo dos administrativistas germânicos, que o configuravam como instituto próprio da Administração, isto é, autêntico direito administrativo. Contam-se entre eles, em especial, JAMES GOLDSCHMIDT e EBERHARD SCHMIDT. Devem-se a estes autores os primeiros estudos relativos ao Direito Penal Administrativo e ao Direito de Mera Ordenação Social. O sistema das sanções administrativas é tributário do processo de despenalização registado pós-Segunda Guerra Mundial. A JAMES GOLDSCHMIDT deve-se o início da doutrina do direito penal administrativo, cabendo-lhe a destrinça deste em relação ao direito penal: «enquanto o fundamento do direito penal está na lei, como manifestação do allgemeiner Willen [vontade geral], o do direito penal administrativo encontra-se no Sonderwillen [vontade especial] do Estado, o que, de resto, corresponde às representações contemporâneas, assentes no equilíbrio de poderes do monarca constitucional e do parlamento»(7) (tradução e destacado nossos). O ambiente em que esta doutrina se fecunda é marcadamente de cunho social: se, por um lado, 5 Comungamos, pois, da ideia de PIERRE LEGRAND, segundo o qual os transplantes legais desempenham um relevante papel na produção de mudanças legislativas (Apud GRAZIADEI, Michele – «Comparative Law as the study of transplants and receptions», in The Oxford Handbook of Comparative Law, Oxford University Press, 2012, p. 467). 6 FARIA COSTA, José - «A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social», in Revista de Direito e Economia, ano 9, n.ºs 1 e 2, Coimbra: Centro Interdisciplinar de Estudos Jurídico-Económicos , 1983, p. 45. 7 Apud VILELA, Alexandra - O Direito de Mera Ordenação Social – Entre a Ideia de “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 57.

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a Administração assume as funções de um aparelho prestador ou de promoção do bem-estar, por outro, emerge a necessidade de criar um sistema repressivo próprio que se encaixe nesse novo modelo de relacionamento entre os cidadãos e a Administração. Para o direito penal administrativo, a pena é representada pela multa, sendo considerado verdadeiro direito administrativo, protegendo não bens jurídicos individuais, mas sancionando uma falta para com a Administração(8). Numa segunda fase, JAMES GOLDSCHMIDT distingue o ilícito criminal do penal administrativo em razão da natureza das normas de cada um: se o direito penal/criminal se encontrava ancorado nas convicções éticas da comunidade, o direito penal administrativo consubstanciava uma criação positiva do Estado, para além da diferença tanto dos valores ofendidos como no modo dessa ofensa(9). A ERIK WOLF coube um especial papel no desenvolvimento da doutrina de GOLDSCHMIDT, teorizando um esforço de separação entre direito penal administrativo e direito penal de justiça, distinção essa de cariz material e não meramente lógico-formal: «o propósito do direito penal administrativo não é o de servir a justiça através da aplicação de penas expiatórias, mas de servir o bem-estar através de repreensões funcionalmente adequadas»(10). Ainda, do ponto de vista processual, WOLF advoga um processo junto dos tribunais administrativos. Anos volvidos, EBERHARD SCHMIDT vem alertar para a necessidade de uma distinção qualitativa-objetiva entre os dois ilícitos, dando origem ao direito das contraordenações (direito de mera ordenação social), numa clara assunção de um movimento de despenalização no período pós guerra mundial, sobretudo no âmbito do direito económico. Assim, enquanto as contraordenações não lesam materialmente o conteúdo dos bens jurídicos, os crimes traduzem-se na destruição ou no perigo aos bens jurídicos, sejam eles individuais ou coletivos(11), tendo tal doutrina respaldo na lei de simplificação do direito penal económico de 1949 (substituída em 1954). Ora, em síntese, as contraordenações representam infrações a normas e interesses administrativos, com um processo igualmente distinto do processo penal. Em extrema sinopse, as contraordenações eram, pois, sancionadas por meio de um procedimento sancionatório

8 Idem, p. 58. 9 Idem, pp. 61 e 62. 10 BRANDÃO, Nuno - Crimes e Contra-Ordenações: da cisão à convergência material. Ensaio para uma recompreensão da relação entre o direito penal e o direito contra-ordenacional, Coimbra: Tese de Doutoramento, texto policopiado, 2013, p. 42. 11 VILELA, Alexandra - O Direito de Mera Ordenação Social (…), op. cit., p. 79.

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administrativo, naturalmente conduzido por uma autoridade administrativa(12). Nesses casos, rejeita-se o recurso a multas para se aplicar uma coima, com uma conotação de censura ou advertência social (mera ordenação social). A extensão das contraordenações a outros ramos do direito que não o direito económico sucede em paralelo com a também extensão da intervenção Estatal a diversos setores da vida social. «Mas com isto logo se abre caminho à descriminalização no plano em que a hipertrofia da legislação penal, desde sempre, foi criticada: o da atribuição de competência aos tribunais ordinários para aplicar medidas que são materialmente administrativas, o que conduz, para além do mais, a uma insuportável massificação das suas sentenças»(13). Não isento de críticas - e dando nota da crescente hipertrofia e consequente “desnaturalização” do direito das contraordenações -, o rumo iniciado pelos mestres germânicos viria a sofrer um desvio significativo. Com a reforma de 1968, a OWiG negou a existência de especificidades materiais entre os crimes e as contraordenações. O § 1, n.º 1 da OWiG define contraordenação como «uma conduta ilícita e censurável que preencha o tipo para o qual uma lei admita a aplicação de uma coima». O núcleo fundamental do discurso da jurisprudência constitucional alemã tem sido, desde então, dominado por uma teoria mista qualitativa-quantitativa. Em resumo, recorrendo à explanação de NUNO BRANDÃO(14), podem registar-se, no ordenamento jurídico alemão e no que ao direito das contraordenações (mera ordenação social) em concreto respeita, as seguintes principais fases evolutivas: Renascimento da Teoria do Direito Penal Administrativo (SCHMIDT) – Domínio da Teoria Qualitativa (OWiG de 1952) – Preterição da Teoria Qualitativa e consolidação de uma Teoria Mista Qualitativa-Quantitativa (OWiG de 1968).

12 Assim, CORREIA, Eduardo – «Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social», in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XLIX, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1973, p. 271: «Pode considerar-se um dos maiores serviços prestados por EBERHARD SCHMIDT à dilucidação do problema que vimos tratando – até pelo largo eco que teve na legislação alemã – o ter chamado a atenção para a necessidade de considerar a aplicação de reações que traduzem advertências meramente sociais, como actividade da pura competência dos órgãos administrativos». 13 Idem, pp. 27 e 272. 14 BRANDÃO, Nuno - Crimes e Contra-Ordenações(…), op. cit., especialmente pp. 44 e ss’.

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III. O ilícito de mera ordenação social no ordenamento jurídico português e a (incompreensível) competência dos tribunais judiciais para a impugnação de decisões administrativas de aplicação de coimas No que ao ordenamento jurídico português concerne, e não obstante ter vigorado no nosso sistema penal a figura da contravenção, anterior ao direito de mera ordenação social, é sobretudo o acolhimento da doutrina do direito penal administrativo e os seus posteriores desenvolvimentos que mais acuidade assume, em estreita ligação com o ordenamento germânico, para a nossa narrativa. Como já demos conta, entronca no processo de despenalização, tendo-se positivado, entre nós, com o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de julho, que instituiu o ilícito de mera ordenação social e o respetivo processo. Em 1982, com o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, procede-se a uma revisão do primeiro diploma, tendo o legislador avançado com uma definição de contraordenação: «constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima» (art. 1.º). A coima é, desta feita, a sanção administrativa por excelência do ilícito contraordenacional. Tal como pregoado por NUNO BRANDÃO, «A Eduardo Correia deve creditar-se o indeclinável mérito de ter aberto definitivamente o direito português à inovadora e frutífera experiência contra-ordenacional alemã»(15). E, por conseguinte, cabe aqui recordar o pensamento do ilustre professor, que esteve na base da importação do ilícito de mera ordenação social, tal como perspetivado pelos autores germânicos a que já aludimos, para o nosso ordenamento jurídico: «(…) uma coisa será o ilícito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reações que lhe cabem não são directamente fundáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal»(16). O concatenamento, no ordenamento jurídico português, das impugnações de decisões administrativas de aplicação de coimas e a respetiva jurisdição competente para a apreciação daquelas deve contemplar três principais momentos, cronologicamente sucedâneos: (1) a instituição do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social de 1979 e, logo no imediato, do Regime Geral de 1982; (2) a revisão constitucional de 1989 e a posterior revisão do Regime Geral 15 Idem, p. 145. 16 CORREIA, Eduardo – Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, op. cit., pp. 267-268.

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das Contraordenações de 1995; e (3) as reformas da Justiça Administrativa de 2002 e de 2015. O primeiro momento(17) coincide com a instituição do ilícito de mera ordenação social no ordenamento jurídico português pelo DL n.º 232/79, de 24 de julho, tendo como mentor o então Ministro da Justiça, EDUARDO CORREIA. Do preâmbulo do referido diploma é possível recortar a atribuição aos tribunais judiciais da competência para conhecer dos recursos de impugnação, designadamente no ponto 5: « Após algumas hesitações, optou-se por atribuir aos tribunais comuns a competência para conhecer do recurso de impugnação judicial. Reconhece-se de boamente que a pureza dos princípios levaria a privilegiar a competência dos tribunais administrativos. Ponderadas, contudo, as vantagens e desvantagens que qualquer das soluções irrecusavelmente comporta, considerou-se mais oportuna a solução referida, pelo menos como solução imediata e eventualmente provisória. E isso por ser a solução normal em direito comparado. E ainda por se revelar mais adequada a uma fase de viragem tão significativa como a que a introdução do direito de ordenação social representa. Além do mais, afiguram-se mais facilmente vencíveis as naturais resistências ou reservas da comunidade dos utentes do novo meio de impugnação judicial» (sublinhado nosso). Este diploma, considerado uma espécie de «nado-morto»(18), veio a ser revogado pelo DL n.º 433/82, de 27 de outubro, que consagra o Regime Geral das Contraordenações, rectius do Ilícito de Mera Ordenação Social, e o respetivo processo. Integrado numa reforma global do sistema penal, postulava o artigo 61.º, n.º1 desse diploma, novamente, a competência dos tribunais judiciais para conhecer dos recursos das decisões administrativas que apliquem coimas: «É competente para conhecer do recurso o juiz de direito da comarca em cuja área tem a sua sede a autoridade que aplicou a coima». É curioso constatar que, a par da sustentação de um ilícito diferente do ilícito criminal(19) (20), o legislador tivesse consagrado os tribunais judiciais como competentes para conhecer da impugnação da decisão administrativa de aplicação de uma coima. Identificamo-nos, portanto, com a posição de CAVALEIRO FERREIRA, de que «(…) admitida a natureza de um ilícito penal administrativo diferente do ilícito criminal, a consequência seria (…) que da decisão administrati-

17 Sem prejuízo do passado relativo à figura das contravenções, com forte influência francesa, e dos contributos, entre nós, de Mello Freire e Henriques da Silva. 18 Vd. BRANDÃO, Nuno - Crimes e Contra-Ordenações (…), op. cit., pp. 170-171. 19 Abstemo-nos, aqui, de um pronunciamento sobre a coexistência das contravenções com as contraordenações. Com efeito, só em 2006 foi eliminada do nosso ordenamento jurídico a figura da contravenção. Para uma descrição e crítica sobre o assunto, vd. BRANDÃO, Nuno - Crimes e Contra-Ordenações (…), op. cit., pp. 175-178 e bibliografia aí citada. 20 Veja-se o disposto no ponto 2 do preâmbulo: «No mesmo sentido, ou seja, no da urgência de conferir efectividade ao direito de ordenação social, distinto e autónomo do direito penal (…)»

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va de aplicação de coimas houvesse recursos para os tribunais administrativos»(21). Mas, repetidamente, a “doutrina” legislativa explanada em 1979, ancorada na solução abundante preconizada em outros ordenamentos jurídicos e na ideia de maior facilidade na ultrapassagem das “naturais resistências”, fez predominar a opção pelos tribunais judiciais. Um outro argumento para a preferências pelos tribunais judiciais prende-se com o acautelamento dos direitos dos indivíduos, isto é, o facto de se reconhecer autonomia ao direito de mera ordenação social não implica que se olvide que este possa afetar, de uma maneira similar ao direito penal, os direitos daqueles(22), pelo que a última decisão deverá ser acometida ao sistema judicial – aos tribunais judiciais, bem entendido, - que melhores garantias oferece ao indivíduo. Cremos que esse argumento faria algum sentido quando sustentado no então artigo 3.º, n.º2 do regime, que previa o trânsito em julgado da decisão administrativa: « Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se já tiver transitado em julgado a decisão da autoridade administrativa ou do tribunal». De facto, admitir-se que o processo das contraordenações fosse instruído e julgado pelas entidades administrativas, sendo que essas decisões transitavam em julgado, não poderia deixar de suscitar a inconstitucionalidade da norma, do ponto de vista da intromissão da função administrativa na função jurisdicional. Destarte, parece-nos ser esse, em rigor, o único critério jurídico aceitável para a atribuição daquela competência aos tribunais judiciais, ou em abono da verdade, ao sistema judicial. A contrario, os demais argumentos invocados para júbilo dos tribunais judiciais assumem-se de índole pragmática (ou, dir-se-á também, política) e, por isso mesmo, não jurídicos. Com a revisão constitucional de 1989, inaugura-se um outro momento. Com ela se introduziu na nossa lei fundamental o atual artigo 212.º, preceituando-se incumbir aos tribunais administrativos e fiscais «o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais». Ora, a opção legislativa do Código das Contraordenações violaria essa reserva constitucional da jurisdição dos tribunais administrativos? A maioria dos autores propende a dar uma resposta negativa. CARDOSO DA COSTA advoga a ideia de que existem outros princípios constitucionais, designadamente o princípio da tutela jurisdicional, que reclamam a preferência do legislador pelos tribunais judiciais, em virtude de 21 CAVALEIRO FERREIRA, Manuel – Lições de Direito Penal, Parte Geral I – A Lei Penal e a Teoria do Crime no Código Penal de 1982, 4.ª Ed., Lisboa: Editorial Verbo, 1992, pp. 115-119. 22 Em sentido similar, CORREIA, Eduardo – Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social, op. cit., p. 281: «(…) ao definir as formas de exprimir esta censura e de formular as regras da sua aplicação, o chamado direito de pura ou mera ordenação social não pode desligar-se da especificidade dos interesses que o determinam, nem deixar de garantir, em medida adequada, os direitos de defesa daqueles que sujeita às suas reações».

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estes assegurarem uma proteção dos direitos fundamentais mais intensa que a jurisdição administrativa(23). No que tange à competência dos tribunais judiciais, a reforma do Regime Geral das Contraordenações de 1995 não produziu, portanto, qualquer alteração. Um novo momento é encetado pela Reforma da Justiça Administrativa de 2002, que altera o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF). Se é mister aplaudir solenemente este acontecimento, dando dignidade à jurisdição administrativa, não é menor o lamento no que à matéria das contraordenações (lato sensu, ao direito administrativo sancionatório) respeita. Com efeito, é o próprio artigo 1.º, alínea l) da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de dezembro que exclui expressamente do âmbito da jurisdição administrativa os litígios referentes a matéria contraordenacional («desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional»). É evidente que a maioria da doutrina penal aplaudiu a continuidade da solução, entendendo, como sintetiza ALEXANDRA VILELA, que «(…) quando a autoridade administrativa profere uma decisão condenatória, o seu acto aproxima-se muito pouco de um verdadeiro ato administrativo, pelo que, também por esse motivo, não faz sentido a sua impugnação para os tribunais administrativos, que, por regra, se encontram pouco vocacionados para a apreciação deste tipo de problemas»(24). Também a Reforma de 2015 pouco ou nada veio a acrescentar à narrativa. Apesar de ter alargado o âmbito da jurisdição administrativa, e não obstante a Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais (Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto) também registar uma tendência expansiva, designadamente por força do novo artigo 75.º-A(25), introduzido pela Lei n.º 114/2015, de 28 de agosto, a verdade é que tais alterações ficam aquém das propostas registadas no anteprojeto da

23 CARDOSO DA COSTA, Joaquim - «O recurso para os tribunais judiciais da aplicação de coimas», in Ciência e Técnica Fiscal, n.º 366, abril-junho, Lisboa: Ministério das Finanças, 1992, pp. 39 e ss’. 24 VILELA, Alexandra – O Direito de Mera Ordenação Social (…), op. cit., p. 382. Em posição contrária, tal como também preconizamos, PRATA ROQUE, Miguel - «O Direito sancionatório público enquanto bissetriz (imperfeita) entre o direito penal e o direito administrativo – a pretexto de alguma jurisprudência constitucional», in Revista da Concorrência e Regulação, Ano IV, n.º 14/15, abrir-setembro, Coimbra: Almedina, 2013, especialmente pp. 137-141. 25 Impugnação Judicial de contraordenações: «Caso o mesmo facto dê origem à aplicação, pela mesma entidade, de decisão por contraordenação do ordenamento do território, prevista na presente lei, e por contraordenação por violação de normas constantes do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro, a apreciação da impugnação judicial da decisão adotada pela autoridade administrativa compete aos tribunais administrativos».

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reforma(26). Em rigor, como bem sintetiza ISABEL CELESTE FONSECA, as propostas do anteprojeto não vingaram por razões de matriz técnica e pragmática, fazendo pender sobre a jurisdição administrativa «(…) o receio [de] não estar física e humanamente preparada para a ampliação das suas competências (…)»(27). Em jeito de balanço, poder-se-á afirmar que, para além da sua complexidade, o processo do ilícito de mera ordenação social encontra-se embrenhado no enredo da subsidiariedade do Direito Penal, para o qual o próprio regime geral remete nos artigos 32.º e 41.º. Mas, apesar da marcada tendência de jurisdicionalização (de cunho penalista), não podemos deixar de registar a importância assumida pelo Direito Administrativo na modelação da sua identidade. Assim, considerou o Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão de 09/02/2004 (Proc. 0345075), que «(…) o direito de mera ordenação social constitui um tertium genus entre o direito processual administrativo e o direito processual penal, não sendo um direito penal menor, mas respeitando a um ilícito de natureza diversa». A fase administrativa do processo contraordenacional constitui um verdadeiro procedimento administrativo. Nesse sentido, no Acórdão supra, entendeu o Tribunal: «nem se diga que a evolução legislativa tem seguido no sentido de que a fase administrativa se encontra sujeita aos mesmos princípios e regras, ainda que subsidiariamente aplicáveis, da fase judicial. Antes pelo contrário». Os atos sancionatórios são, em abono da verdade, autênticos atos administrativos. Neste último sentido, esclareceu o Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 19/2011, Proc. n.º 489/10: «cumpre afirmar que as decisões administrativas que aplicam determinada sanção não podem deixar de ser consideradas como «actos administrativos”, na medida em que visam produzir efeitos jurídicos, numa situação individual e concreta». Acresce que tal “acto administrativo” afigura-se sempre como uma manifestação da actividade administrativa de tipo agressivo, na medida em que comprime direitos subjectivos dos administrados, sujeitando-os a um determinado ónus - in casu, o pagamento de determinada quantia, a título de coima. Assim sendo, afigura-se igualmente incontroverso que o exercício de poder sancionatório pela Administração Pública implica sempre a contingência de uma relação jurídico-administrativa entre aquela e o sujeito da sanção aplicável»28. 26 A título exemplificativo, veja-se a proposta da Comissão de Revisão do ETAF e do CPTA para o artigo 4.º (âmbito da jurisdição administrativa): «n) impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas, no âmbito do ilícito de mera ordenação social, por violação de normas de direito administrativo em matéria de ambiente, ordenamento do território, urbanismo, património cultural e bens do Estado». 27 FONSECA, Isabel Celeste – As incertezas em torno do direito administrativo sancionatório: lamentos…, Braga: texto policopiado de apoio ao Mestrado em Direito Administrativo, 2016, pp. 16 e ss’. 28 Em linha com esta jurisprudência, vd. GOMES DIAS, Mário - «Breves reflexões sobre o processo de contra-ordenação», in Revista do Ministério Público, ano 5, volume 20, Lisboa: Sindicato dos Magistrados do Ministério Público,1984, pp. 91-110;

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Quanto à fase judicial, autêntico quebra-cabeças, resulta essencialmente da impugnação das decisões administrativas condenatórias. Sucede, porém, que se processa junto dos tribunais comuns(29): mais uma surpreendente incompreensão. Em rigor, não se trata de um verdadeiro recurso, mas da impugnação de uma decisão administrativa. Não deveria, então, a jurisdição competente ser a administrativa? GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA(30) aceitam que o desvio possa ter por base a existência de um obstáculo intransponível que se prenda por razões logísticas e de insuficiência dos tribunais administrativos e pela necessidade de acautelar a tutela jurisdicional efetiva que, devido ao entupimento e irregular funcionamento da jurisdição administrativa, poderia ficar comprometida. Há, no entanto, quem perfilhe um outro entendimento: é o caso de SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA(31), que consideram que a atribuição da competência aos tribunais judiciais é uma clara violação de preceitos constitucionais. De facto, o instrumentário garantístico de uma e outra jurisdição é, deveras, distinto, o que leva a questionar se as providências ao dispor dos sancionados cumprirão os requisitos da adequação e da eficácia. Estas, e outras, questões, longe de incontroversas, reforçam a urgência de um debate sério sobre a necessidade de um procedimento administrativo sancionatório e da redistribuição de competências entre os tribunais administrativos e os tribunais comuns. Reflexão essa onde a identidade autonómica das contraordenações terá de assumir um valor similar. E nesta última componente, se se aceitar a autonomia do Direito das Contraordenações, em que medida se poderá reclamar uma aplicação subsidiária do Direito Administrativo? Em face de prontas críticas, o Tribunal da Relação de Lisboa, de forma surpreendente, decidiu no seu Acórdão de 17/12/1997 (repare-se bem, 1997): «(…) tem natureza administrativa a fase do recurso de impugnação em processo contra-ordenacional. Por isso, não há razões para se lançar mão do regime do artigo 41.º do DL n.º 433/82, que manda remeter subsidiariamente para o processo penal». Recentemente, o Tribunal da Relação de Évora, no seu Acórdão de 06/12/2016, Proc. 236/15.0T8PTM.E1, veio estabelecer precisamente o inverso: «Um recurso de “impugnação judicial” em processo contra-ordenacional, como tal definido por lei – artigo 59º, n. 1 do RGCO - não é um recurso administrativo. Nem se lhe aplicam normas administrativas» e «Ao recurso de impugnação judicial do processo contra-ordenacional aplicam-se as normas do RGCO; em caso de lacuna neste aplicam-se as normas do C.P.P. (artigo 41º do RGCO); em caso de lacuna 29 Cfr. artigos 87.º e ss’ da LOFTJ. 30 Apud FONSECA, Isabel Celeste – As incertezas em torno do direito administrativo sancionatório: lamentos…, op. cit., pp.28-29. 31 SIMAS SANTOS, Manuel / LOPES DE SOUSA, Jorge – Contra-ordenações: anotações ao Regime Geral, Editora Áreas, 2011, p. 479 a 491.

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deste, aplicam-se as normas do C.P.C. (artigo 4º do C.P.P.)». De forma flagrante, considerou ainda que «O direito administrativo só serve para definir a entidade administrativa com competência decisória e qual a sua forma de decisão. O Código de Procedimento Administrativo é, pois, uma inutilidade no Direito contra-ordenacional. E indesejável porquanto limitador de direitos do acusado». Recentemente fomos confrontados com uma inovação legislativa quanto ao âmbito da jurisdição administrativa. Estamos a referir-nos à Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro, que procede à décima segunda alteração ao ETAF. Em especial, procede-se a uma adição à parte final do artigo 4º, n.º 1, alínea l): «impugnações judiciais de decisões da administração pública que apliquem coimas, no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias». Apraz somente lamentar que, do ponto de vista dogmático-estrutural, pouco nos esclarece. A título exemplificativo, registamos a permanência da fissura entre direito do urbanismo/direito do ordenamento do território. De novo se faz sentir um certo movimento pendular: entre os argumentos de receios da inovação e das questões de não preparação da jurisdição administrativa e os argumentos arreigados na maior preparação da jurisdição comum na aplicação do Código de Processo Penal e do Regime Geral das Contraordenações, continua a balançar, incerta e perigosamente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva. Estamos convictos de que, a passo com a falta de vontade política, coexiste uma nítida falta de coragem, que atinge em primeira linha a própria doutrina administrativista, conduzindo fatalmente a uma constante discutibilidade da legitimidade da jurisdição administrativa. Urge, neste sentido, uma reforma profunda ao Regime Geral das Contraordenações, a par de um alargamento da jurisdição administrativa em matéria contraordenacional, para o que serão decisivos os contributos de direito comparado, em especial do ordenamento jurídico que nos é geograficamente mais próximo.

IV. A afirmação de um direito administrativo sancionatório e de um correspondente controlo contenciosoadministrativo no ordenamento jurídico espanhol Em Espanha, contrariamente ao que sucedeu em Portugal, o direito administrativo sancionatório não recebeu no berço a herança germânica, de tal forma que alguns autores falam em fuga do direito penal para o direito administrativo(32). O poder sancionatório da Administração Pública espanhola foi, 32 Por exemplo, GÓMEZ TOMILLO, Manuel. Derecho Administrativo Sancionador; parte general. Madrid: Thomson, 2008, p. 50.

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durante grande parte da sua existência, pautado por grandes notas de discricionariedade e de cunho marcadamente político. Nesse sentido, seguindo a lição de RAMÓN PARADA(33), verificou-se, à semelhança de outros ordenamentos jurídicos como o francês, uma interpretação radical do princípio da separação dos poderes, de tal forma que a Constituição de Cádiz consagrou o monopólio repressivo dos juízes e dos Tribunais, ao mesmo tempo que negou a atribuição de poderes repressivos ao Governo e à Administração. Desse modo, aos Alcaldes atribuíam-se, enquanto representantes do Governo no Município, poderes sancionatórios limitados, relacionados, no essencial, com a repressão de faltas leves. Com o Código Penal de 1822, o ordenamento jurídico espanhol adotou a conceção tripartida francesa das infrações (crimes, delitos e contravenções), encontrando-se as sanções previstas intimamente conectadas com os Tribunais, competentes para as impor. Não tardou a que a doutrina se insurgisse contra a solução preconizada, usando contra ela o princípio da separação de poderes. COLMEIRO afirma impressivamente: «la independencia de la Administración estaria comprometida si no tuviese ninguna postetad coercitiva o careciese absolutamente de facultades para exigir la fiel observância de sus actos, aplicando penas pecuniárias o corporales dentro de los limites de una simple corrección de policía o por vía disciplinaria. El poder legislativo delega en la Administración esta parte de funciones proprias del poder judicial»(34). O panorama descrito alterou-se com o período ditatorial de Primo de Rivera. Não é estranho que, ante um regime ditatorial, se perscrute o exponencial crescimento e concentração dos poderes sancionatórios da e na Administração. Veja-se, a título meramente exemplificativo, o preceituado nos artigos 1 e 3 do Decreto-Real de 18 de maio de 1926: «en matérias administrativas y disciplinarias, el Gobierno usará de facultades discrecionales en la adopción de medidas, imposición de sanciones (…). Sobre tales determinaciones del poder público (…) no se admitirá ni tramitará outro recurso que el elevado al próprio Consejo de Ministros (…)». No período da II República, é da maior importância a Lei de Ordem Pública de 1933 para a afirmação do poder sancionatório da Administração. Como dá nota RAMÓN PARADA, a inovação primordial em matéria sancionatória relacionava-se com a atribuição à autoridade governativa das faculdades sancionatórias ordinárias fora da declaração formal dos estados de exceção, e na própria possibilidade de decretar a detenção do infrator em determinadas circunstâncias, o que leva a afirmar que o poder sancionatório personificava uma poderosa arma política ao serviço das autoridades administrativas, tanto ao nível central 33 PARADA, Ramón – Derecho Administrativo I. Parte General, 15.ª ed., Madrid/Barcelona: Marcial Pons, 2004, especialmente pp. 464 a 477. 34 Apud PARADA, Ramón – Derecho Administrativo I. Parte General (…), op. cit., p. 466.

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como local(35). No período Franquista, sublinham-se a Lei de 17 de julho de 1958, que instituiu um sistema de garantias administrativas e judiciais, e a nova Lei de Ordem Pública de 1971, que aumentou o âmbito setorial de intervenção do poder sancionatório, ao ponto de superar os da própria polícia geral. Mas, se de facto a afirmação da repressão política pode justificar o desenvolvimento de parte do poder administrativo sancionatório, não consegue sustentar, do ponto de vista jurídico, a sua expansão a certos domínios, como sejam, por exemplo, o urbanismo ou o rodoviário. Considera RAMÓN PARADA que «Si la legislacción há optado por la solución administrativa ello debe obedecer, al menos en buena parte, a que el legislador desconfía de que el sistema judicial penal pueda cumplir satisfactoriamente com aquella función»(36). Acentuando a desnaturalização do conceito de “ordem pública”, GARCÍA DE ENTERRIA propõe um único ius puniendi com duas manifestações: o direito penal e o direito administrativo sancionatório. Defendeu o mestre espanhol que ao direito administrativo sancionatório poderiam perfeitamente aplicar-se os princípios do direito penal, numa lógica de extensão garantística(37). Foi este o pensamento que se generalizou e consolidou no ordenamento jurídico vizinho: não se negando notas diferenciadoras entre os diversos ilícitos, reconhece-se uma unidade ontológica da sanção, verificando-se somente a coexistência de vários ordenamentos jurídicos especiais dentro de um ordenamento jurídico geral que todos abarca, pelo que a natureza jurídica do ilícito não é aferida senão em função do ordenamento especial que é atingido. Consequentemente, a doutrina maioritária tem aceite que a aplicação de sanções administrativas manifesta, tal como a imposição das penas pelos juízes, o ius puniendi do Estado, residindo a diferença tão-só na forma como o poder é exercido. O critério distintivo utilizado não é, portanto, material(38). ALEJANDRO NIETO é o porta estandarte da acérrima crítica à conceção propugnada. Na sua célebre obra, DERECHO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR, rejeita a ideia de que o direito administrativo sancionatório seja apenas uma das manifestações de um ius puniendi unitário. Desde a primeira edição da sua obra, em 1992, ALEJANDRO NIETO reclama a reversão da indiferença do 35 Vd. Idem, p. 471. 36 Idem, p. 473. 37 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo - «El Problema Jurídico de las Sanciones Administrativas», in Revista Española de Derecho Administrativo, n.º 10, Madrid: Civitas, 1976, p. 405. 38 Neste sentido, e para maiores desenvolvimentos, vd. REBOLLO PUIG, Manuel / IZQUIERDO CARRASCO, Manuel / ALARCÓN SOTOMOMAYOR, Lucía / BUENO ARMIJO, Antonio - «Panorama del derecho administrativo sancionador en España. Los derechos y las garantías de los ciudadanos», in Revista Estudios Socio-Jurídicos, Vol. 7, Nº. 1, Colombia: Universidad del Rosario, 2005, pp.23-24

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Direito Administrativo Sancionatório moderno perante o respeito pelos interesses públicos e gerais (39). Assinalando alguns problemas e paradoxos em relação ao Direito Administrativo Sancionador, o insigne autor entende que as enfermidades de que padece o sistema espanhol não isenta nenhum dos intervenientes - legislador, Administração e tribunais: «La potest sancionadora de la Administración – y su aparato técnico y jurídico, el Derecho Administrativo Sancionador – es, en definitiva, un montón de despropósitos en el que todos los Poderes están implicados»(40). Reiterando que o direito administrativo sancionador é produto de uma construção abundantemente jurisprudencial, NIETO afirma com veemência: «Vivimos en Espanã en un Estado judicial de Derecho y en mi opiniõn es urgente que los Jueces rematem pronto la tarea, que ya han realizado en gran parte, de crear un Derecho Administrativo Sancionador completo»(41). A Constituição Espanhola vigente (1978) é, em matéria de garantias do sancionado, bastante protecionista, assegurando-lhe um conjunto de direitos que trespassam o ciclo sancionatório, desde a tipificação da conduta à aplicação da sanção administrativa final. A Lei 30/1992 veio estabelecer o Regime Jurídico das Administrações Públicas e do Procedimento Administrativo Comum. Embora não avance com a apresentação ou densificação de conceitos, postulou um conjunto de garantias, adensando princípios constitucionais, como sejam o da legalidade, tipicidade, ne bis in idem, proibição da irretroatividade in pejus, e proporcionalidade. O regime espanhol encontra-se (também) inspirado parcialmente no direito penal e processual penal. A aceção de conceitos tem cabido à doutrina (administrativa) e, sobretudo, à jurisprudência constitucional. Embora lhes possam ser apontadas críticas, não pode olvidar-se o esforço crescente que tem vindo a ser feito no tratamento das questões do direito administrativo sancionatório, apontando na direção de um princípio de intervenção mínima do direito penal.

39 Recordamos aqui algumas das suas passagens mais expressivas: «El Derecho Administrativo Sancionador moderno –contaminado, sin duda, por las preocupaciones ideológicas constitucionales y por la tradición penalista– se autoproclamó de inmediato defensor a ultranza de los derechos y garantías individuales, no descuidados ciertamente en la época anterior, pero a los que no se había dado la importancia que merecían, al menos en la materia de orden público»; «(...) la tarea primordial de la Administración es la gestión (y defensa) de los intereses públicos y generales»; «(…) para la Administración, y muy particularmente en su vertiente sancionadora, el objetivo es la protección y defensa de los intereses públicos y generales, operando la ley y el Derecho como un límite del ejercicio de su actividad, no como un fin de contenido próprio». [NIETO, Alejandro - «Régimen sancionador de las administraciones públicas: últimas novedades. Pasos recientes del proceso sustantivizador del Derecho Administrativo Sancionador», in Cuadernos de Derecho Local, Fundación Democracia y Gobierno Local, n.º14, 2007, p. 11]. 40 NIETO, Alejandro – Derecho Administrativo Sancionador, 4.ª Edição, Madrid: Tecnos, 2005, p. 30. 41 Ibidem.

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A submissão do poder administrativo ao controlo jurisdicional é uma exigência do próprio artigo 24.º da Constituição Espanhola: «Todas las personas tienen derecho a obtener la tutela efectiva de los jueces y tribunales en el ejercicio de sus derechos e intereses legítimos, sin que, en ningún caso, pueda producirse indefensión». E a submissão ao controlo contencioso-administrativo é uma marca distintiva em relação ao caso português. Neste sentido, notamos que já na sua Sentença 77/1983, o Tribunal Constitucional Espanhol havia instituído algumas condições para a imposição de sanções administrativas, umas das quais precisamente a subordinação do poder sancionatório da Administração ao poder jurisdicional (sistema judicial), estabelecendo o posterior controlo dos atos sancionatórios pela Jurisdição Contencioso-Administrativa, cabendo à Jurisdição Penal apreciar e determinar os factos suscetíveis de serem julgados pela ordem ou jurisdição administrativa. A Lei Reguladora da Jurisdição Contenciosa-Administrativa (Lei 29/1998, de 13 de julho), por seu turno, consagra ainda em diversas disposições a inequívoca competência dos tribunais administrativos em matéria de sanções, como seja, por exemplo, no artigo 8.º: « Los Juzgados de lo Contencioso-administrativo (…) Conocerán, asimismo, en única o primera instancia de los recursos que se deduzcan frente a los actos administrativos de la Administración de las comunidades autónomas, salvo cuando procedan del respectivo Consejo de Gobierno, cuando tengan por objeto: b) Las sanciones administrativas que consistan en multas no superiores a 60.000 euros y en ceses de actividades o privación de ejercicio de derechos que no excedan de seis meses» (sublinhado nosso). Não sendo o lugar adequado para uma análise à forma como é exercido o controlo jurisdicional, parece-nos, ser, pois, de rematar com a ideia de «en el contencioso de las sanciones, naturalmente, se pueden alegar todos los vícios que les afecten en los mismos términos y com la misma amplitude que en los contencioso-administrativos contra qualquier outro ato administrativo (…)»(42), dando ressonância de que no ordenamento jurídico espanhol a jurisdição competente para conhecer das decisões administrativas que apliquem sanções administrativas é a jurisdição administrativa(43).

42 REBOLLO PUIG, Manuel / IZQUIERDO CARRASCO, Manuel / ALARCÓN SOTOMOMAYOR, Lucía / BUENO ARMIJO, Antonio – Derecho Administrativo Sancionador, Valladolid: Lex Nova, 2010, p. 925. 43 REBOLLO PUIG, Manuel / IZQUIERDO CARRASCO, Manuel / ALARCÓN SOTOMOMAYOR, Lucía / BUENO ARMIJO, Antonio - «Panorama del derecho administrativo sancionador en España (…), op. cit. p. 52: «La anterior supone la possibidad de impugnar todas la sanciones administrativas, como cualquier outro acto administrativo, ante los tribunales. En España, esa labor está confiada por completo a los juzgados y tribunales de la jurisdición contencioso-administrativa. Por tanto, todas las sanciones administrativas sin excepción pueden ser impugnadas ante la dicha jurisdición». (sublinhado nosso)

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Em suma, e fazendo eco das palavras de ALEXANDRA VILELA, em Espanha, «(…) o direito administrativo sancionador passou a ser usado, não só enquanto arma de luta política relativamente aos opositores das autoridades administrativas, num período de revolta ou de autoritarismo, mas também enquanto arma jurídica, para responder de uma forma eficaz a um conjunto de infrações, em relação às quais o sistema penal se revelava inadequado (…)»(44). De facto, esta tem sido uma marca indelével do regime sancionatório espanhol, pautado por um forte processo de administrativização, acompanhado pela arquitetura de uma panóplia de garantias a oferecer ao administrado/sancionado.

V. Conclusões A narrativa comparativa apresentada não consegue fornecer, por si só, elementos claros e indiscutíveis acerca da natureza jurídica do ilícito de mera ordenação social e, bem assim, sustentar a autonomia do direito administrativo sancionatório. Não obstante, permite-nos, a partir de um referencial (minimamente) comum, traçar diferentes segmentos, isto é, constatar soluções divergentes para um mesmo problema. Embora com múltiplas e oscilantes justificações, é indiscutível que a função subjacente à instituição de um ilícito administrativo, como o é o ilícito de mera ordenação social, nutre alguma similitude nos ordenamentos jurídicos germânico, português e espanhol. Seja por recurso a critérios objetivos ou subjetivos, qualitativos ou quantitativos, ou ainda critérios combinatórios, é notório que tem sido perfilhado, em larga escala e a diversos níveis (legislativo, jurisprudencial e doutrinal), uma distinção entre o ilícito de mera ordenação social, também denominado de contraordenação, e o direito criminal. O instituto do ilícito de mera ordenação social não cumpre, portanto, a mesma função que o ilícito criminal. Todavia, é na forma como é interpretada e desenvolvida essa diferença que encontramos o cerne da problemática. Se em Portugal o ilícito de mera ordenação social colheu diretamente dos contributos germânicos, em Espanha o caminho foi distinto, escorando-se primeiramente em redutos franceses para, posteriormente, assumir uma densidade criativa própria, afirmando um autêntico direito administrativo sancionatório. E, se no nosso ordenamento coube à doutrina dar ancoramento para as soluções legislativas – ou, pelo menos, de algumas delas-, no ordenamento vizinho o protagonismo tem sido avocado pelos Tribunais, cujas resoluções irradiam para todo sistema jurídico.

44 VILELA, Alexandra – O Direito de Mera Ordenação Social (…), op. cit., p. 173.

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Naturalmente, as diferenças de caminho repercutem-se na jurisdição competente para conhecer da impugnação das sanções administrativas, mormente consequentes de um ilícito de mera ordenação social: se em Portugal a desconfiança sempre pendeu sobre a jurisdição administrativa, cometendo-se continuamente aquela competência para os tribunais judiciais (penais), à exceção das infrações urbanísticas e tributárias, em Espanha, a competência para a apreciação das impugnações de (todas) as sanções administrativas foi conferida à jurisdição contencioso-administrativa, seja pela desconfiança que reiteradamente sobressaiu sobre os tribunais judiciais seja pela consolidação de um direito administrativo sancionador. Deve ainda registar-se que, embora o caminho em Espanha tenha divergido da matriz germânica, a solução adotada quanto à jurisdição competente é, ironicamente, a mesma que os teóricos germânicos do direito penal administrativo e do direito das contraordenações vigorosamente defendiam. O exercício comparativo permite-nos também constatar um total desfasamento entre os vários diplomas legais, e as respetivas reformas, que, no essencial, versam sobre o mesmo instituto. Estamos igualmente convictos de que a maioria dos argumentos e critérios invocados, em ambos os ordenamentos – embora com intensidades variáveis -, é iminentemente de índole pragmático-política e não de cariz jurídico. Inseridos na mesma família jurídica (romano-germânica), é tempo de os ordenamentos jurídicos português e espanhol se harmonizarem em matéria de direito administrativo sancionatório. Almejamos, assim, que os dois “irmãos”, aparentemente de costas voltadas neste domínio, se reconciliem. E tal desiderato só poderá ser alcançado por meio de uma intervenção legislativa que não poderá prescindir dos contributos teorético-dogmáticos.

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VI. Síntese comparativa - tabela de microcomparação

ELEMENTOS HISTÓRICOS E EXTERNOS

ELEMENTOS INTERNOS

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Ordenamento Jurídico Português

Ordenamento Jurídico Espanhol

Influência predominantemente germânica

Influência predominantemente Francesa

Forte influência do período pós-Guerra Mundial (Estado Social) e do movimento de despenalização

Forte influência do período Ditatorial

Distinção entre ilícito criminal e ilícito administrativo assente em funções igualmente distintas

Distinção entre ilícito criminal e ilícito administrativo assente em funções igualmente distintas

Construção inicial pela Doutrina

Construção inicial pela Jurisprudência

Abordagem maioritariamente pela doutrina penal

Abordagem maioritariamente pela doutrina administrativista

Ausência de um autêntico direito administrativo sancionatório

Construção e Consolidação de um verdadeiro direito administrativo sancionatório

Existência de um regime específico de contraordenações

Ausência de um regime específico de contraordenações

Desconfiança sobre a jurisdição administrativa

Desconfiança sobre a jurisdição comum (tribunais penais)

A Jurisdição Comum é competente para apreciar impugnações de atos administrativos sancionatórios de mera ordenação social (exceção: contraordenações tributárias e urbanísticas)

Controlo contencioso-administrativo dos atos administrativos sancionatórios


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REGULAMENTO GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS: PLATAFORMA DE UNIFICAÇÃO GLOBAL NA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS E SEU TRANSPLANTE PARA A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA Afonso Carvalho de Oliva1

Resumo: Trata-se da análise do Regulamento Geral de Proteção de Dados europeu e da Lei Geral de Proteção de Dados brasileira, sob um viés comparativo no que se refere aos seus objetivos, às definições que estabelecem e à territorialidade de cada diploma legal. Tendo o legislador brasileiro sido influenciado pelo regulamento europeu quando da propositura do projeto que se transformou na lei em questão, observa-se um exemplo de transplante legal no ordenamento jurídico brasileiro, talvez não tanto por real necessidade da sociedade do Brasil à época, mas, mais expressivamente, pelo interesse midiático sobre o tema, pelo interesse, por parte do legislador, de destacar-se em suas proposituras legislativas, e pelo interesse econômico, que deu respaldo à iniciativa e à aprovação da lei, vislumbrando a possibilidade de adentrar num novo ramo do mercado capitalista, através do tratamento de dados pessoais.

1 Advogado. Doutorando em Ciências Jurídicas Privatísticas na Universidade do Minho (Portugal). Mestre em Direito pela Universidade Tiradentes (Sergipe - Brasil). Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito 8 de Julho (Sergipe – Brasil). contato@afonsooliva.com.

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Regulamento geral de proteção de dados: plataforma de unificação global na proteção de dados pessoais e seu transplante para a legislação brasileira Afonso Carvalho de Oliva

Abstract: This is the analysis of the European General Data Protection Regulation and the Brazilian General Data Protection Law, under a comparative perspective regarding its objectives, the definitions they establish and the territoriality of each legal instrument. Since the Brazilian legislator was influenced by the European regulation when proposing the project that became the law in question, this is an example of legal transplant in the Brazilian legal system, perhaps not so much due to the real need of Brazilian society at the time, but, more expressively, due to the media interest on the subject, the interest on the part of the legislator, to stand out in its legislative proposals, and the economic interest, which supported the initiative and the approval of the law, envisioning the possibility of entering a new branch of the capitalist market, through the processing of personal data.

1. Introdução As linhas que seguem propõem-se, no contexto próprio para uma obra doutrinária conjunta relativa à disciplina Sistemas Jurídicos Comparados, à comparação do Regulamento Geral de Proteção de Dados e da Lei Geral de Proteção de Dados, que são os diplomas legais que disciplinam, de forma genérica, a proteção de dados na União Europeia e no Brasil, respectivamente. A comparação entre os «estados das artes» representados por ambos os diplomas é relevante porque auxilia na compreensão dos estágios de juridicidade do tema em ambos os contextos socioeconômicos e, mais especificamente, porque se trata de uma lei brasileira que foi redigida sob inequívoca influência do quanto já praticado na União Europeia, sob os termos do regulamento, do que se infere o interesse acadêmico em continuar a presente leitura. O intuito da análise que segue, entretanto, consiste mais em destacar as semelhanças existentes no regulamento e na lei, considerando-se que não tem sido esse um enfoque trabalhado com frequência, nem com a relevância que o assunto merece. Serão expostos, nos limites acadêmicos propostos por um artigo científico, seus objetivos, as definições que estabelecem para os objetos (dado pessoal e tratamento) e as partes (titular e agentes de tratamento) que guardam entre si a relação jurídica, e a territorialidade de cada diploma legal. Em relação a este último aspecto, percebe-se, de forma extrajurídica, a ascendência da norma europeia durante a fase legiferante no Brasil, a partir do que se passará a discorrer sobre a situação como um caso de transplante legal para o ordenamento jurídico brasileiro, uma vez que a Lei Geral de Proteção de Dados finalmente aprovada e em vigor reproduz muito do que se encontra no regulamento europeu, ainda que não tenham sido necessariamente verificados, à época, os mesmos fundamentos fáticos e sociais sequer para a proposta legislativa.

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Através do mote do transplante legal e considerando a lição do Prof. Graziadei, no que se refere às três principais razões pelas quais mudanças num ordenamento jurídico são realizadas com base no transplante legislativo – que são a imposição, o prestígio e a performance econômica, serão aventados fatores não jurídicos, mas de interesse midiático e econômico, que, efetivamente, parecem ter levado o Poder Legislativo brasileiro a se antecipar à ocorrência de reais demandas sociais a respeito da proteção de dados, que motivaram a necessidade de acrescer ao ordenamento jurídico brasileiro uma lei especial, ainda que em termos gerais, sobre o assunto. Ao final, mas sempre observada a vastidão da temática e a impossibilidade de esgotar as discussões, serão apresentadas as considerações finais, em forma de ideias conclusivas decorrentes do estudo.

2. Regulamento (UE) 2016/679 - Regulamento Geral de Proteção de Dados Objetivos O Regulamento Geral de Proteção de Dados2 foi publicado em 27 de abril de 2016, com o objetivo de substituir a Diretiva 95/46/CE3, até então, a norma vigente no tocante à proteção de dados pessoais no âmbito da União Europeia. Como destacado pelos «Considerandos» (7), (9) e (10), a existência da norma anterior não foi suficiente para garantir um elevado nível de proteção de dados pessoais numa sociedade cada vez mais informatizada, assim como também foi incapaz de manter a coerência sistêmica necessária para o funcionamento comunitário europeu – coerência essa extremamente necessária, uma vez que se verificou um aumento exponencial na transferência internacional desses dados. O principal motivo para dita incoerência reside na própria natureza jurídica da Diretiva, que apresenta apenas objetivos gerais sobre o tema e, para ter validade, necessita ser transposta aos ordenamentos nacionais europeus, por meio da edição de normas próprias, o que deixa grande margem para eventuais modificações. Com o intuito de superar a incoerência, a novel legislação foi rea2 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (Texto relevante para efeitos do EEE). OJ L [Em linha]. 32016R0679 (16-05-04) [Consult. 5 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://data.europa.eu/eli/reg/2016/679/oj/por>. 3 Directiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. [Em linha] (95-10-24) [Consult. 7 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=celex%3A31995L0046>.

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lizada sob a forma de Regulamento, espécie legislativa a que se atribui aplicabilidade direta em todos os estados-membros4 – entendimento que foi reforçado no «Considerando» (13). Insta destacar que os principais objetivos da norma são a regulamentação do tratamento e a livre circulação de dados pessoais, mas apenas no que diz respeito às pessoas singulares. Assim, embora sirva como principal instrumento na garantia do direito fundamental à proteção de dados pessoais – conforme garantido pela Carta Europeia de Direitos Fundamentais5 e pelo Tratado de Funcionamento da União Europeia6 –, está excluída do ordenamento a regulamentação de qualquer tipo de tratamento de dados de pessoas coletivas. No que concerne à livre circulação de dados pessoais, ao contrário do que proporcionou a Diretiva de 95, o Regulamento Geral procura uniformizar as regras, garantindo que o fluxo de dados ocorra de modo livre em toda a União Europeia, evitando desequilíbrio nos níveis de proteção de dados entre os membros da União Europeia, o que poderia acarretar situações em que países funcionariam como «paraísos» de dados pessoais, por possuírem menos exigências para a proteção destes. Outro ponto de particular destaque reside em que, ao contrário do que faz crer a maior parte das publicações científicas, o Regulamento disciplina não apenas o tratamento de dados em meio eletrônico. Embora este tema ganhe um relevo muito maior, sendo mesmo o principal ponto de estudo para a matéria, qualquer tipo de processamento de dados pessoais, ainda que proveniente de meios completamente analógicos, também está sujeito aos termos do Regulamento Geral. Por fim, observa-se que o artigo 2º, item 2, do Regulamento Geral de Proteção de Dados traz, ainda, algumas exclusões no que se refere à aplicação do Regulamento: a exclusão dos dados tratados num contexto em que não se aplica o direito da União (o que não implica, porém, como demonstrado a seguir, que o Regulamento acabe por alcançar outros países); de dados relativos à política externa e de segurança comum7; daqueles dados tratados por pessoas singula4 Regulamentos, diretivas e outros atos legislativos | União Europeia - [Em linha], atual. 16 jun. 2016. [Consult. 10 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:https://europa.eu/european-union/ eu-law/legal-acts_pt>. 5 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - 2016/C 202/02. [Em linha]. Jornal Oficial da União Europeia-C 202-7 de junho de 2016 (16-06-07) 391–407. [Consult. 5 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=OJ:C:2016:202:FULL&from=EN>. 6 Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (versão consolidada) - 2016/C 202/01. [Em linha]. Jornal Oficial da União Europeia-C 202-7 de junho de 2016 (16-06-07) 47–199. [Consult. 5 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=OJ:C:2016:202:FULL&from=EN>. 7 Aqueles previstos no Título V, capítulo 2, do TUE.

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res em contexto pessoal ou no âmbito doméstico; e, nos termos do Regulamento, Artigo 2º, 1, alínea d, do tratamento de dados por autoridades competentes «para efeitos de prevenção, investigação, deteção e repressão de infrações penais ou da execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e a prevenção de ameaças à segurança pública».

Definições A análise exaustiva de todas as definições apresentadas pelo Regulamento não consiste no escopo deste trabalho, cabendo, nesta oportunidade, uma breve explanação acerca das definições dos objetos (dados pessoais e tratamento de dados pessoais) e das partes (titular de dados e responsável pelo tratamento) abrangidos, direta ou indiretamente, pela proteção, uma vez que estas parecem ser as principais definições para fins de compreensão da ratio legis e de demonstração de como as legislações internacionais, mormente a brasileira, sofrem influência da normativa europeia sobre proteção de dados. As definições são apresentadas no artigo 3º do Regulamento Geral de Proteção de Dados. Do item 1 do referido artigo extrai-se que a definição de «dados pessoais» é apresentada em conjunto com a definição do «titular de dados» e, no contexto do Regulamento «dado pessoal», compreende-se que se trata de toda e qualquer informação que possa ser ligada a uma pessoa singular, esteja esta já identificada ou havendo potencialidade de ser identificada, o que exclui do conceito de dados pessoais aquelas informações existentes a título anônimo. De acordo com a conceituação apresentada, qualquer dado carrega em si a potencialidade de tornar-se um dado pessoal, sendo o fator determinante a possibilidade de ligação desta informação a uma pessoa singular. Cumprido referido requisito, passa-se a aplicar o Regulamento. Assim, um mero registro numérico de pessoas que ingressam em determinado ambiente pode tornar-se uma operação de coleta de dados pessoais, caso comecem a ser registrados, também, os nomes dos ingressantes. Já o conceito de «tratamento de dados pessoais», previsto no item 2, costuma causar preocupação naqueles que estão a se adequar ao Regulamento, devido à vasta aplicabilidade. Considera-se «tratamento», nos termos Regulamento, uma ou várias operações efetuadas com um dado pessoal ou mesmo com um conjunto destes, seja de forma automatizada ou não. O Regulamento apresenta, então, um rol não exaustivo do que poderia configurar essas operações: «a recolha, o registo, a organização, a estruturação, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a divulgação por transmissão, difusão ou qualquer outra forma de disponibilização, a comparação ou interconexão, a limitação, o apagamento ou a destruição». Em outras palavras, todo e qualquer tipo de atividade que possa ser realizada com ficheiros eletrônicos

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pode ser encaixada no conceito de tratamento, sendo os dois últimos exemplos – o apagamento e a destruição –, talvez, os que mais chamem a atenção, pois o Regulamento passa a proteger até mesmo os atos negativos de tratamento de dados, servindo, por exemplo, como salvaguarda para o titular de dados que seu histórico escolar estará protegido contra destruição. Em relação às definições das partes envolvidas numa operação de tratamento de dados pessoais, existe o conceito de «titular de dados», conjugado ao conceito de «dado pessoal» no item 1 do Artigo 3º, segundo o qual são titulares todas aquelas pessoas singulares. Trata-se, como anteriormente destacado, de um ponto de grande importância, uma vez que não se enquadram, no presente conceito, as pessoas coletivas. Diante disso, percebe-se, claramente, que a conceituação que se busca delinear é aquela que visa garantir um direito de personalidade que apenas pode ser imputado a pessoas singulares, fazendo com que o conceito encontre-se em perfeita sintonia com a Carta Europeia de Direitos Fundamentais8 e com o Tratado de Funcionamento da União Europeia9. Outro ponto de destaque diz respeito a identificação daquela pessoa: caso não seja possível identifica-la, não existirá pessoa a ser uma titular de dados. Ainda, é de se destacar que o próprio Regulamento, em seu «Considerando» (26), aprofunda a conceituação dos dados que podem ou não ser considerados como pessoais. Com isso, um dado que tenha sido apenas «pseudonimizado», ou seja, cuja origem possa ser definida com a utilização de documentos ou dados auxiliares, caracteriza-se, ainda assim, como dado pessoal, razão pela qual continuaram a existir titulares de dados em hipóteses como essa. Importante ressalva encontra-se no «Considerando» (27), em que se destaca que pessoas falecidas não são mais titulares de dados. Referido dispositivo corrobora com a noção de dados pessoais enquanto direitos da personalidade, além de manter a coerência com os termos do artigo 68º, 2, do Código Civil Português10. Todavia, o próprio Regulamento Geral de Proteção de Dados deixou em aberto, neste ponto, a possibilidade de os Estados-Membros estabelecerem regramentos próprios para lidar com o tratamento de dados de pessoas falecidas. 8 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - 2016/C 202/02. [Em linha]. Jornal Oficial da União Europeia-C 202-7 de junho de 2016 (16-06-07) 391–407. [Consult. 5 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=OJ:C:2016:202:FULL&from=EN>. 9 Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (versão consolidada) - 2016/C 202/01. [Em linha]. Jornal Oficial da União Europeia-C 202-7 de junho de 2016 (16-06-07) 47–199. [Consult. 5 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=OJ:C:2016:202:FULL&from=EN>. 10 DL n.o 47344/66, de 25 de Novembro. Código Civil [Em linha]. 47344/66 (66-11-25) [Consult. 11 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado. php?nid=775&tabela=leis&so_miolo=>.

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Nesse contexto, o governo português, ao editar a Lei nº. 58/201911, que garante a execução do Regulamento Geral em seu território, regulou, em seu artigo 17º, uma proteção específica ao tratamento de dados pessoais de pessoas falecidas, garantindo a proteção daqueles dados a que se refere o Artigo 9º do Regulamento Geral, quais sejam, os dados sensíveis. Em relação a estes, os direitos serão exercidos, nos termos do Artigo 17º, 2, da Lei nº. 58/2019, por um representante designado pelo falecido para tanto, ou, na falta deste, por seus herdeiros legais, ressalvada a possibilidade, nos termos do item 3 do mesmo artigo, de ser declarada, pelo falecido, a impossibilidade terceiros exercerem os direitos ali previstos. Por derradeiro, a definição trazida pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados no tocante ao «responsável pelo tratamento» o qual consta do item 7 do Artigo 4º. Trata-se de conceito amplo, que abarca uma série de partes em diferentes situações. Num primeiro momento, o responsável pelo tratamento pode ser tanto uma pessoa singular como uma pessoa coletiva. Assim, tanto um advogado que mantém sozinho um escritório profissional quanto uma banca de advogados multinacional podem ser caracterizados como «responsáveis pelo tratamento», bastando, para tanto, que realizem uma das atividades descritas no conceito de «tratamento». Da mesma forma, podem ser responsáveis, nos termos do item 7, a autoridade pública, a agência ou outro tipo de organismo público que, sujeitos ao direito da União, pratiquem ou determinem os meios para a prática desses tratamentos.

Aplicação territorial Inicialmente, não existe motivo para grande divagação acerca da competência territorial do Regulamento Geral de Proteção de Dados, porque, como regra unionista que é, sua aplicação territorial seria equivalente ao território formado pelos Estados-Membros da União Europeia. Isso é o que se espera com base nas regras seculares de soberania nacional e é justamente o que restou previsto na primeira parte do item 1 do artigo 3º do Regulamento Geral de Proteção de Dados, no qual se estabeleceu que o regulamento possui aplicabilidade sempre que o tratamento decorrer «das atividades de um estabelecimento de um responsável pelo tratamento ou de um subcontratante situado no território da União». Apesar disso, a parte final do mesmo item começa a apontar indícios de um objetivo maior do Regulamento Geral de Proteção de Dados, ao afirmar que a aplicação do Regulamento persistiria, mesmo que a operação de tratamento per se ocorresse fora da União.

11 Lei n.o 58/2019, de 08 de Agosto. LEI DA PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS [Em linha]. 58/2019 (19-08-08) [Consult. 11 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://www.pgdlisboa. pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=3118&tabela=leis&so_miolo=>.

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O item 3 do artigo 3º traz norma que também não causa estranheza à comunidade jurídica, uma vez que indica a aplicação do Regulamento Geral de Proteção de Dados sempre que o responsável pelo tratamento esteja estabelecido fora da União Europeia, mas em lugar em que «se aplique o direito de um Estado-Membro por força do direito internacional público», como é o caso das embaixadas ou de cruzeiros marítimos, conforme esclarece o «Considerando» (25) do Regulamento. Todavia, ao contrário dos itens acima analisados, no item 2 do artigo 3º, existe uma verdadeira inovação legislativa que foi responsável por causar espanto e grandes discussões no cenário internacional de proteção de dados12, já que passou a apresentar duas hipóteses em que os dados sejam de titulares localizados na União, mas tratados por responsáveis que não estejam na União: (i) oferta de bens e serviços, independente de pagamento, a titulares localizados na União, e, (ii) o controle de comportamento dos titulares, desde que esse comportamento tenha ocorrido dentro da União – o «Considerando» (23) aprofunda esta situação. Desta forma, com a edição do Regulamento Geral de Proteção de Dados, a União Europeia apresentou uma legislação capaz de, efetivamente, ser aplicável extraterritorialmente apenas por força econômica, atingindo todo e qualquer sítio eletrônico ou sistema que processe dados de cidadãos da União Europeia, fosse lá onde a operação de tratamento de dados pessoais viesse a acontecer. É certo que o Regulamento Geral de Proteção de Dados não foi a primeira norma com aspirações de aplicação extraterritorial. Por exemplo, na década de 1990, adveio o Código de Defesa do Consumidor brasileiro13, que, em seu artigo 3º, já considerava fornecedoras de produtos ou serviços qualquer pessoa física ou jurídica, ainda que estrangeira, que os oferecesse aos consumidores brasileiros. Quando da edição da norma, pouco se falava em comércio internacional Business 2 Client, porém, após o florescimento do comércio eletrônico, este fato tornou-se corriqueiro. Em que pese o texto legal – cabe observar –, falta a possibilidade de exigibilidade do cumprimento dessa norma, não havendo meios para que o governo brasileiro o faça perante empresas estrangeiras. Apesar de não ter sido a primeira norma com aspirações de aplicação extraterritorial, o modelo apresentado pela União Europeia possuía um fator diferente: embora não pudesse ser imposto a outros ordenamentos jurídicos, pos12 CURTISS, Tiffany - Privacy Harmonization and the Developing World: The Impact of the EU’s General Data Protection Regulation on Developing Economies. Washington Journal of Law, Technology & Arts. . ISSN 2157-2534. 12:1 (2017) 95–122. 13 Código de Proteção e Defesa do Consumidor. [Em linha]. 8.078 (90-11-09) [Consult. 10 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado. htm>.

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suía o peso do mercado consumidor comum europeu, formado por 513.481.690 pessoas14. Para qualquer empresa que não estivesse estabelecida naquele continente, fechar as portas para este mercado seria inimaginável, razão pela qual se observou um grande movimento de diversas empresas a seguirem os preceitos trazidos pela legislação europeia. Este fato também foi percebido pelos países, uma vez que o Regulamento Geral de Proteção de Dados trouxe, em seu artigo 45º, a possibilidade de transferência de dados para um país fora da União Europeia, desde que seja esse país reconhecido pela Comissão Europeia de Proteção de Dados como dotado de um nível «adequado» de segurança, o que significa possuir uma legislação tão ou mais protetiva que a legislação europeia. Com isso, a existência de leis nos padrões da Regulamento Geral de Proteção de Dados revela-se verdadeira vantagem econômica para os demais países no mercado consumidor comum europeu.

3. A Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) Objetivos Ao contrário da legislação europeia de proteção de dados pessoais, que possui fundamento na Carta Europeia de Direitos Fundamentais, no Tratado de Funcionamento da União Europeia, e que, na forma do Regulamento Geral, surge para aperfeiçoar uma norma prévia, a Lei nº 13.709 - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD)15 começa a ser discutida no Brasil apenas em 2012, por meio do Projeto de Lei nº. 4.060 e só ganha força a partir de 2016, após o apensamento dos Projetos de Lei de números 5.276 e 6.291, ambos surgidos após as discussões acerca do Regulamento Geral de Proteção de Dados europeu. Os objetivos da legislação brasileira de proteção de dados podem ser encontrados em seu artigo 1º, que estabelece que a referida lei busca proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade (ambos consagrados no artigo 5º da Constituição Federal16) e apresenta, também, a garantia para o «livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural». É de se destacar que essa é a 14 Eurostat - Profiles - [Em linha] [Consult. 11 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:https:// ec.europa.eu/eurostat/guip/themeAction.do;jsessionid=boaWo7Tr0RzpboBIO_GnHqODeHxi58_PfpulLo9n7wYAukcPhqZP!-1864290094>. 15 Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). [Em linha]. 13709 (18-08-14) [Consult. 6 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/ lei/L13709.htm>. 16 MORAES, Alexandre De - Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5.ed ed. São Paulo : Atlas, 2005. ISBN 978-85-224-4069-6.

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primeira legislação brasileira a apresentar o livre desenvolvimento da personalidade como um objetivo. Até então, só existia, na legislação pátria, a garantia para os «direitos da personalidade», nunca se tendo falado de seu desenvolvimento, tema que aparece apenas como construção jurisprudencial, ao contrário do que acontece em Portugal, onde o desenvolvimento da personalidade está previsto no artigo 26º do seu texto constitucional17. Destaca-se, ainda, conforme o parágrafo único do artigo 1º da Lei Geral de Proteção de Dados, que as normas apresentadas neste diploma legal são de interesse nacional, devendo ser observadas por todos os entes da Federação, União, Estados e Municípios. Todavia, ao se analisar o desenvolvimento histórico da noção de Proteção de Dados Pessoais no Brasil, verifica-se uma ausência de implementação efetiva deste direito, muito embora, como já destacado, existisse a previsão constitucional18 da proteção à intimidade e à vida privada e, também, a previsão da proteção de dados pessoais na legislação infraconstitucional, tais como o Código de Defesa do Consumidor e o Marco Civil da Internet19. Ante a suposta inexistência de legislação específica, nunca se aprofundou a discussão acerca da proteção dos dados pessoais. Porém, referido contexto mudou por completo com a chegada da Lei Geral de Proteção de Dados, que aplicou no Brasil um nível altíssimo de exigência para a proteção de dados, deixando o país no mesmo patamar da União Europeia. Assim, temos que a Lei Geral de Proteção de Dados surge, ao menos no plano de desenvolvimento legislativo regular, com o principal objetivo de suprir a aparente lacuna existente na proteção de dados dos cidadãos brasileiros. É o que se extrai também do relatório apresentado quando da análise do projeto de lei que deu origem à lei ora analisada20. Entretanto, como se buscará demonstrar adiante, talvez não seja esse o principal motivo para a criação da Lei Geral de Proteção de Dados, em especial, por conta da enorme semelhança apresentada pelo ordenamento brasileiro, quando posto em comparação com o Regulamento Gerald, de Proteção de Dados aprovado pela União Europeia poucos anos antes). 17 Decreto de 10 de Abril de 1976. Constituição da República Portuguesa [Em linha] (76-04-10) [Consult. 11 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=4&tabela=leis&so_miolo=&>. 18 MORAES, Alexandre De - Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5.ed ed. São Paulo : Atlas, 2005. ISBN 978-85-224-4069-6. 19 Para uma análise mais aprofundada desta proteção: OLIVA, Afonso Carvalho De - Direitos do Consumidor: proteção de dados pessoais. 1. ed. Aracaju : DireitoMais, 2016. ISBN 978-85-5960003-2. 20 SILVA, Orlando - Parecer ao Projeto de Lei no. 4.060, de 2012 Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei no. 4.060, de 2012. . Brasília : Câmara dos Deputados, 29 Mai. 2018

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Definições Seguindo os mesmos moldes metodológicos, não serão analisadas exaustivamente todas as definições apresentadas pela Lei Geral de Proteção de Dados, pois, como dito alhures, não se trata do escopo deste trabalho. Da mesma forma como feito quando da análise do Regulamento Geral de Proteção de Dados, segue breve explanação acerca das definições dos objetos (dado pessoal e tratamento) e das partes (titular e agentes de tratamento). Com isso, pretende-se iniciar a demonstração da influência normativa do Regulamento Geral de Proteção de Dados na legislação brasileira. Para fins de aplicação da lei brasileira de proteção de dados, considera-se «dado pessoal», nos termos do artigo 5º, inciso I, toda «informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável»21. De imediato, percebe-se a semelhança com a legislação europeia de proteção de dados, uma vez que, da mesma forma, restringe a aplicação da lei apenas às pessoas naturais (as singulares, no contexto europeu) e aos dados identificados ou que sejam passíveis de identificação, o que exclui os dados anônimos ou anonimizados. Com relação ao conceito de «tratamento», assim como no contexto europeu, a definição apresentada pela lei brasileira é bastante ampla, nos termos do artigo 5º, inciso X, que engloba qualquer atividade com dados pessoais e traz, em seguida, um rol exemplificativo de atividades que podem vir a ser realizadas, a saber: « coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração». Diante disso, mais uma vez, percebe-se uma identidade conceitual com a norma europeia de proteção de dados, inclusive, com a mesma proteção contra a eliminação de dados sem a autorização do titular dos dados. É de se destacar que, ao contrário da norma europeia, não se encontram, na legislação brasileira, os «Considerandos», responsáveis por esclarecer os conceitos e objetivos da lei. Apesar disso, conforme demonstrada a identidade conceitual entre as normas, percebe-se que será de extrema necessidade, para os aplicadores da lei brasileira, o conhecimento da legislação europeia, pois poderão se valer dos «Considerandos» para melhor esclarecer os conceitos apresentados. Já com relação às partes envolvidas na legislação protetiva de dados, existem, de um lado, o «titular» e, do outro, os «agentes de tratamento», que englobam o conceito de «controlador» e «operador». O «titular», previsto no inciso V 21 Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). [Em linha]. 13709 (18-08-14) [Consult. 6 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/ lei/L13709.htm>.

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do artigo 5º, é conceituado como aquela pessoa natural, reforçando a não aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados aos dados de pessoas jurídicas, «a quem se referem os dados que são objeto de tratamento». Já no tocante ao conceito de «agentes de tratamento», encontram-se duas figuras diversas, «controlador» e «operador», o primeiro, previsto no inciso VI do artigo 5º, toma as decisões acerca do tratamento de dados pessoais; já o segundo, previsto no inciso VII do mesmo artigo, é aquele que, efetivamente, realiza o tratamento dos dados pessoais sob a orientação do controlador, agindo como uma espécie de preposto daquele. Importa, ainda, destacar que nos dois casos, o «controlador» e o «operador» podem ser pessoas naturais ou jurídicas e de direito público ou privado, pelo que o campo de pessoas que podem vir a ser enquadradas como «responsáveis pelo tratamento» é enorme, assim como no contexto europeu, bastando que a pessoa realize uma das atividades previstas no inciso X do artigo 5º, sem que esse «tratamento» possa enquadrado em uma das exceções previstas pelo artigo 4º da Lei Geral de Proteção de Dados. Desta forma, também como no Regulamento Geral de Proteção de Dados, vê-se que a norma brasileira pode atingir uma imensa gama de atividades, sem que se trate, necessariamente, de dados em formato digital, pois estão sujeitos à aplicação da norma dados em suporte físico e digitais, tornando-se válido o mesmo exemplo dado quando da análise da normativa europeia. Aplica-se a Lei Geral de Proteção de Dados aos arquivos físicos que um advogado, que atua sozinho como profissional liberal, mantém em seu escritório com dados dos seus clientes, bem como aos dados digitalizados de uma grande firma de advocacia com escritórios espalhados em todo o território brasileiro.

Aplicação territorial O último ponto de análise da Lei Geral de Proteção de Dados consiste na sua aplicação territorial. Nos termos do artigo 3º da lei, percebe-se uma aplicação extraterritorial semelhante ao que foi apresentado pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados, uma vez que, conforme o texto legal, a lei brasileira é aplicável «a qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados [...]», bastando, para tanto, que seja preenchido um dos três requisitos apresentados nos incisos do artigo 3º, quais sejam: (i) que seja a operação de «tratamento» realizada dentro do território brasileiro; (ii) que se trate de oferta ou fornecimento de bens ou serviços, ou do «tratamento» de dados de indivíduos que estejam em território brasileiro; e (iii) que os dados a serem tratados tenham sido recolhidos em território brasileiro.

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O artigo 3º apresenta, ainda, um esclarecimento no §1º, de modo a definir que se consideram coletados em território nacional os dados cujos titulares encontrem-se em território brasileiro no momento da coleta, incluindo, assim, os brasileiros e demais pessoas que possam estar, mesmo que a caráter temporário, precário ou não, em território brasileiro, tais como turistas, imigrantes, trabalhadores estrangeiros, representantes consulares ou até pessoas que estejam apenas realizando uma estada temporária para conexão voos internacionais, por exemplo. Já o §2º do mesmo artigo apresenta uma exceção à aplicação territorial da Lei Geral de Proteção de Dados, que ocorrerá nos casos em que o tratamento de dados for realizado em território brasileiro, porém, com dados provenientes de fora do território nacional e que não sejam comunicados ou compartilhados com agentes de tratamento brasileiros, sendo, ainda, necessário que o país de origem destes dados ofereça um nível de proteção aos dados pessoais que seja adequado ao previsto na lei brasileira. Referida exceção permitirá o funcionamento de empresas cuja atividade seja, exclusivamente, o processamento de dados estrangeiros, nos moldes da legislação do país dos titulares daqueles dados, permitindo ao Brasil apresentar-se como uma alternativa à «terceirização» de processamento de dados pessoais, fato este que será analisado adiante. Percebe-se, na legislação brasileira de proteção de dados, uma interessante dicotomia: por um lado, a norma apresenta uma tentativa de aplicação extraterritorial, considerando a lei aplicável sempre que estiverem em causa o tratamento de dados de cidadão brasileiro, independentemente de onde estejam localizados os «agentes de tratamento». Contudo, abre mão de uma legítima aplicação da lei contra «agentes de tratamento» estabelecidos em território nacional, caso os dados tratados não possuam correlação com o Brasil, assim, percebe-se claramente que para definição da aplicação territorial da norma o fato mais importante é definir a territorialidade do «titular» de dados e não das demais partes envolvidas. Questiona-se, ainda, da mesma forma como ocorre com o Código de Defesa do Consumidor22, qual a real efetividade desta aplicação extraterritorial, já que não se verifica quais os meios disponíveis para que o Brasil possa impor o respeito ao texto legal perante empresas ou pessoas naturais que estejam localizadas fora do seu território nacional.

22 Código de Proteção e Defesa do Consumidor. [Em linha]. 8.078 (90-11-09) [Consult. 10 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado. htm>.

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4. A Lei Geral de Proteção de Dados como transplante legal do Regulamento Geral de Proteção de Dados «Legal Transplants» e o ordenamento jurídico brasileiro Para o presente estudo comparativo, será utilizada a noção apresentada por Michele Graziadei de «Legal Transplants»23, a fim de comprovar a influência exercida pelo Regulamento Europeu de Proteção de Dados Pessoais na modernização das leis que buscam proteger dados pessoais em um nível global, focando, especificamente, na situação brasileira. Como demonstrado pelo autor, o fenômeno dos transplantes legais não é novo, porém, só ganhou espaço nas discussões envolvendo o estudo do direito comparado no final do século XX. O fenômeno consiste, de forma resumida, em capturar a difusão gradual de uma lei entre diversos ordenamentos jurídicos, assim como o processo natural que leva à mudança de leis com base na apropriação de ideias estrangeiras. A recepção do Direito Romano no continente europeu é um dos mais tradicionais exemplos de transplante legal e serve para demonstrar que, nem sempre, a recepção de leis estrangeiras ocorre apenas pela sua qualidade superior, podendo ocorrer por simples escolha daqueles que estão em posição de difundir as ideias. No caso do Direito Romano, foi o que ocorreu por força das recém-criadas Universidades que optaram por apresentar aquele modelo como o «estado da arte» em ordenamentos jurídicos. O Brasil não é estranho ao uso dos transplantes legais. Primeiramente, logo após a independência, em 1822, com a utilização das Ordenações Filipinas como ordenamento civil vigente, e, posteriormente, em 1858, o jurista Teixeira

23 GRAZIADEI, Michele - Comparative Law as the Study of Transplants and Receptions. Em REIMANN, MATHIAS; ZIMMERMANN, REINHARD (Eds.) - The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford Handbooks in Law Series. [Em linha]. 2. ed. Oxford : Oxford University Press, 2019 [Consult. 13 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://oxfordhandbooks.com/view/10.1093/ oxfordhb/9780199296064.001.0001/oxfordhb-9780199296064-e-014>. ISBN 978-0-19-929606-4. p. 1430.

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de Freitas apresentou a Consolidação das Leis Civis24, com o objetivo de sistematizar a legislação recebida do império português, o direito canônico em aplicação no país e os costumes do foro local, resultando num novo ordenamento jurídico, baseado em transplantes de ordenamentos alienígenas. Após a apresentação da Consolidação das Leis Civis, Teixeira de Freitas apresentou seu projeto para um Código Civil Brasileiro, porém, nunca conseguiu finalizar a monumental obra que buscava representar uma ruptura com as tradições jurídicas europeias. Ante o insucesso deste projeto, o Brasil viu-se, mais uma vez, diante de um novo transplante legislativo, pois foram adotadas as bases do Código Civil Francês para servir de inspiração para a criação do Código Civil Brasileiro de 1916. Esse movimento de busca pela legislação civil francesa não foi exclusividade do Brasil, tendo sido verificado pelo Prof. Graziadei em diversos ordenamentos jurídicos, como prova da necessária adequação que cada um destes ordenamentos fez no texto original, para que fosse, de fato, adaptado à realidade social do país que recebia a norma. Uma breve digressão acerca dos transplantes legais faz lembrar o que ocorre nas ciências biológicas, no que diz respeito a transplantes de órgãos, que só são realizados diante de uma compatibilidade previamente verificada, pois as realidades biológicas precisam ser compatíveis, assim como as realidades sociais e jurídicas. Sem isso, já diminuem, drasticamente, as chances de sucesso da operação, e, posteriormente ao transplante, ajustes ainda são necessários, seja para melhor acomodar o novo órgão, seja para evitar a rejeição pelo corpo receptor, entrando em cena os imunossupressores. De forma análoga, ocorre com os ordenamentos jurídicos, visto que é necessário preparar o corpo jurídico para a recepção da nova norma, ajustando o que poderia causar incompatibilidade e, posteriormente, adequar a cultura já existente para lidar com os novos instru24 FREITAS, Augusto Teixeira De - Consolidação das Leis Civis - Volume I. História do Direito Brasileiro - Série Direito Civil. [Em linha]. fac-similar ed. Brasília : Senado Federal, 2003 Disponível em WWW:<URL:https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496206/000653866_ V1.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.2003 Dispon\\uc0\\u237{}vel em WWW:<URL:https:// www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496206/000653866_V1.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.”,”plainCitation”:”FREITAS, Augusto Teixeira De - Consolidação das Leis Civis - Volume IHistória do Direito Brasileiro - Série Direito Civil. [Em linha]. fac-similar ed. Brasília : Senado Federal, 2003 Disponível em WWW:<URL:https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/496206/000653866_V1.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.”,”noteIndex”:24},”citationItems”:[{“ id”:428,”uris”:[“http://zotero.org/users/1652231/items/8Q35K9HC”],”uri”:[“http://zotero.org/ users/1652231/items/8Q35K9HC”],”itemData”:{“id”:428,”type”:”book”,”collection-title”:”História do Direito Brasileiro - Série Direito Civil”,”edition”:”fac-similar”,”event-place”:”Brasília”,”number-of-volumes”:”II”,”publisher”:”Senado Federal”,”publisher-place”:”Brasília”,”title”:”Consolidação das Leis Civis - Volume I”,”URL”:”https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/ id/496206/000653866_V1.pdf?sequence=1&isAllowed=y”,”volume”:”I”,”author”:[{“family”:”Freitas”,”given”:”Augusto Teixeira”,”dropping-particle”:”de”}],”issued”:{“date-parts”:[[“2003”]]}}}],”schema”:”https://github.com/citation-style-language/schema/raw/master/csl-citation.json”}

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mentos apresentados. De outro modo, não alcançaremos uma recepção completa e efetiva de novas normas jurídicas. Graziadei aponta três principais razões pelas quais mudanças no ordenamento jurídicos são realizadas com base no transplante legislativo: Imposição, Prestígio e Performance Econômica. A imposição de ordenamentos jurídicos por meio da força já não é uma realidade para a maior parte do mundo. Desde a colonização inglesa da Índia, percebeu-se que era mais proveitoso o ajuste entre os ordenamentos existentes e o dos conquistadores, o que garante a continuidade da dominação sem muito destaque para impactos negativos sobre os dominados, conferindo uma margem muito maior para o sucesso da dominação. Para o presente estudo, as duas outras razões – o prestígio e a performance econômica – interessam sobremaneira, especialmente, ao se falar de proteção de dados pessoais no ordenamento jurídico brasileiro, e serão abordadas nos próximos tópicos. Aliado as palavras de Graziadei «[p]restige motivates imitation»25, utilizar-se-ão os conceitos de direito posto e direito pressuposto, trabalhados por Eros Grau26, nos sentidos, respectivamente, de direito legislado e de direito necessário para a sociedade. No tema em estudo, não existe, a priori, uma conexão entre o direito pressuposto pela sociedade (a necessidade de proteção dos seus dados pessoais), com o direito posto (a Lei Geral de Proteção de Dados). Para uma sociedade que pouco se preocupa[va] com a temática, a lei editada apresenta um nível de sofisticação e exigência que põe em prova a sua própria efetividade, seja pela falta de clamor e de aceitação sociais, seja pelas implicações econômicas que referida legislação representará para as empresas aqui estabelecidas27.

Semelhanças (ou imitação) Até o momento, não se tem notícia de uma investigação aprofundada e sistematizada acerca das semelhanças entre o Regulamento Geral de Proteção de Dados e a Lei Geral de Proteção de Dados. Uma investigação que possa, efeti25 GRAZIADEI, Michele - Comparative Law as the Study of Transplants and Receptions. Em REIMANN, MATHIAS; ZIMMERMANN, REINHARD (Eds.) - The Oxford Handbook of Comparative Law. Oxford Handbooks in Law Series. [Em linha]. 2. ed. Oxford : Oxford University Press, 2019 [Consult. 13 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://oxfordhandbooks.com/view/10.1093/ oxfordhb/9780199296064.001.0001/oxfordhb-9780199296064-e-014>. ISBN 978-0-19-929606-4. p. 1430. 26 GRAU, Eros Roberto - O direito pressuposto e o direito posto. Revista dos Tribunais. 80:673 (1991) 21–26. 27 Neste sentido: «B. Weaknesses for developing economies» in CURTISS, Tiffany - Privacy Harmonization and the Developing World: The Impact of the EU’s General Data Protection Regulation on Developing Economies. Washington Journal of Law, Technology & Arts. ISSN 2157-2534. 12:1 (2017) 95–122.

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vamente, demonstrar até que ponto existem normas semelhantes, que respeitariam, portanto, as especificidades locais, ou se ocorreu mesmo, no Brasil, uma imitação da legislação europeia de proteção de dados. Questiona-se se é possível e, até mesmo, devido falar-se sobre a proteção brasileira aos dados pessoais, ou se se deveria tratar o tópico de forma uniforme e globalizada28. Uma forma de avaliar as semelhanças seria, a par das técnicas de estudo do direito comparado, a criação de uma grelha comparativa absoluta, na qual não se apresentariam conceitos e noções que se buscam comparar, mas sim a realização de uma comparação direta, de correspondência de dispositivos de uma e de outra legislação. Não se tem notícia deste tipo de comparação entre o Regulamento Geral de Proteção de Dados e da Lei Geral de Proteção de Dados, porém, acredita-se, firmemente, no enriquecimento que referida comparação proporcionaria para o estudo e o aprofundamento do ordenamento jurídico brasileiro. O mais próximo desse propósito comparativo são breves apontamentos acerca das diferenças entre os ordenamentos. Em que pese as diferenças também sejam relevantes para o comparatista, não se constata a profundidade no estudo sobre as verificadas entre o regulamento europeu e a lei brasileira. Ao contrário, nestes casos, o que se mostra é apenas um objetivo informativo para aqueles que estarão sujeitos à aplicação das regras, de modo a «tranquilizá-los» acerca de suas futuras responsabilidades29. O entendimento, neste trabalho, é de que a legislação brasileira de proteção de dados não representa uma inovação, ou uma resposta aos anseios da população por uma melhora no ambiente digital de troca de dados. Percebe-se, pelo próprio andamento dos projetos que levaram à criação derradeira da lei, que surgiram sempre de forma reativa a algum evento internacional que ganhou relevo nas mídias, a exemplo (a) do caso Snowden30, que resultou na apresentação do projeto de lei, e, posteriormente, (b) dos casos Cambridge Analytica e (c) do próprio desenvolvimento do Regulamento Geral de Proteção de Dados. Interessa observar fator não jurídico para a atividade legislativa: para um legislador nacional, a apresentação de projetos de lei que respondam, na ordem nacional, 28 Neste sentido; PALMIERI III, Nicolas F. - Data Protection in an Increasingly Globalized World. Indiana Law Journal. 94:1 (2019) 297–330. ; SCHWARTZ, Paul M. - Global Data Privacy: The EU Way. New York University Law Review. 94:4 (2019) 771–818. 29 Como exemplo temos MACHADO, JOSÉ MAURO DECOUSSAU; PARANHOS, MARIO COSAC OLIVEIRA; SANTOS, MATHEUS CHUCRI DOS - LGPD E GDPR: UMA ANÁLISE COMPARATIVA ENTRE AS LEGISLAÇÕES [Em linha], atual. 13 set. 2018. [Consult. 12 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://www.pinheironeto.com.br:80/Pages/publicacoes-detalhes. aspx?publicacao=lgpd-e-gdpr-uma-analise-comparativa-entre-as-legislacoes>. 30 MONTEIRO, Renato Leite - Tribuna | Cambridge Analytica e a nova era Snowden na proteção de dados pessoais [Em linha], atual. 20 mar. 2018. [Consult. 1 abr. 2018]. Disponível em WWW:<URL:https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/20/tecnologia/1521582374_496225.html>.

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a temas polêmicos de âmbito internacional, garante a este político um prestígio midiático quase instantâneo. Por isso, é comum, no Brasil, o surgimento de diversos projetos de lei sobre o mesmo tema de forma quase simultânea, todos em busca de espaço midiático. A título de exemplo, o próprio projeto que deu origem à Lei Geral de Proteção de Dados resultou do apensamento de três projetos diferentes. Ademais, quando se analisa o relatório final31 para a aprovação do projeto de lei, constata-se, mais uma vez, a força do prestígio para a recepção da norma estrangeira, pois se afirmou que «as propostas se inserem em um contexto mundial» e, mais adiante, que «[g]rande fonte de inspiração para os projetos advém do arcabouço europeu». Posteriormente, no mesmo relatório, vemos menções diretas aos casos anteriormente citados, como o Cambridge Analytica. No mesmo sentido, percebe-se que o próprio relatório, também mirando no prestígio, aponta que, após a aprovação do Regulamento Geral de Proteção de Dados, a Argentina foi o «primeiro país Latino-americano a ganhar a certificação da União Europeia como “país adequado”»32. Com isso, verifica-se, a todo momento, a comparação com o modelo europeu e o destaque que se dá à suposta necessidade de se estar a par com aquele modelo, mesmo que existam outras formas de se regular a matéria. Por fim, o supra mencionado relatório apresenta, também, um resumo das contribuições trazidas por especialistas na área que foram ouvidos ao longo das discussões do projeto de lei. Trata-se de uma gama variada de profissionais e de entidades, todas ouvidas com o fito de apresentar um argumento de autoridade para as discussões travadas, procurando chancelar a temática ali explorada. Entretanto, da mesma forma como Graziadei ressaltou ter ocorrido na Europa quando da recepção do Direito Romano – escolhido não pelas suas virtudes, mas sim por ser o que era, de fato, dominado pelos professores das Universidades –, o mesmo se percebe quando das discussões para a lei brasileira de proteção de dados: a formação, seja profissional, seja acadêmica, dos profissionais que apresentaram contributos para as discussões do projeto de lei, em sua maioria, advém do continente europeu. A partir disso, nada mais natural que a apresentação do Regulamento Geral de Proteção de Dados como o «estado-da-arte» no que se refere à proteção de dados pessoais. 31 SILVA, Orlando - Parecer ao Projeto de Lei no. 4.060, de 2012. Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei no. 4.060, de 2012. . Brasília : Câmara dos Deputados, 29 Mai. 2018 32 Neste ponto destacamos que o prestígio, especificamente ao que se refere no comparativo com a Argentina, decorre de uma «rivalidade» entre os países que teve origem na política do início do século XIX e migrou para as disputas esportivas, se solidificando para qualquer tipo de comparação possível entre os dois países, assim, ao citar textualmente a Argentina, percebe-se que isso é capaz de fazer aflorar o sentimento que o Brasil não pode ser passado pela Argentina nas relações internacionais, quase como se fosse uma disputa de futebol.

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Como demonstrado anteriormente, entre o modelo europeu e o modelo brasileiro de proteção de dados as semelhanças são enormes. Existe uma identidade de objetivos, de definições e até de aplicação territorial das duas normas. Ambas são apresentadas como respostas a garantias fundamentais do cidadão, seja de privacidade, seja da efetiva proteção dos seus dados pessoas, como no caso europeu. As definições apresentadas, não só as tratadas neste estudo, mas, praticamente, todas as trazidas pela lei, são demasiadamente semelhantes – as partes envolvidas, os conceitos de «dados pessoais», de «tratamento», todos possuem identidade entre as duas normas. Quando da análise da aplicação territorial, verifica-se que o modelo brasileiro seguiu, ipsis litteris o modelo europeu de extraterritorialidade, buscando a validade da norma, ainda que a operação de tratamento não ocorra em território nacional, porém, interessante brecha foi deixada na legislação brasileira, ao permitir a não aplicação da lei brasileira quando o «responsável pelo tratamento», embora estabelecido em solo brasileiro, apenas realize o tratamento de dados estrangeiros, sem qualquer comunicação com «operadores» brasileiros. Referida norma não possui precedentes na legislação europeia, o que nos leva ao próximo ponto de estudo, qual seja, o transplante da legislação europeia em razão de interesses (ou performance) econômicos, como sustentado por Graziadei.

Interesses econômicos Como derradeiro ponto de análise do diálogo existente entre o Regulamento Geral de Proteção de Dados europeu e a Lei Geral de Proteção de Dados, como destacado por Graziadei, a possibilidade de transplante legal em busca de «performance econômica», ou seja, a lei é recebida em um ordenamento jurídico não como uma resposta aos anseios da população, não como uma representação dos valores daquela sociedades, mas sim com o objetivo de alcançar uma melhoria econômica para o país - principalmente por meio de uma tentativa de destaque daquele que transplanta a legislação internacional em relação a outros, que não agiram da mesma forma. A doutrina vem reconhecendo o papel que a legislação europeia representou no desenvolvimento do avanço na proteção da privacidade em todo o mundo, mas, além disso, reconhece o impacto econômico da legislação, uma vez que, ao impor regras rígidas para o processamento dos dados dos seus cidadãos, afasta do seu mercado empresas que, embora prestem serviços para os cidadãos europeus, estavam localizadas fora do espaço da União, em países que não possuíam regramento rígido de proteção de dados. Trata-se de cenário que permite perceber a movimentação global33 em busca de um mesmo padrão legislativo de 33 SCHWARTZ, Paul M. - Global Data Privacy: The EU Way. New York University Law Review. 94:4 (2019) 771–818.

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proteção de dados pessoais, justamente para garantir que esse mercado europeu esteja aberto a novos players, demandando a contrapartida estatal no sentido de produção normativa adequada ao exigido pela União Europeia. Alguns autores34 argumentam que isso pode representar um verdadeiro óbice para aqueles países em desenvolvimento, ao impor às suas economias, ainda em desenvolvimento, exigências iguais ao que se vê num consolidado bloco de países, como a União Europeia. Por outro lado, outros veem esse movimento como a possibilidade de abertura de novos mercados35, permitindo que esses países em desenvolvimento apresentem-se para o mercado europeu, com o substrato de uma proteção legislativa de nível adequado a suprir os requisitos do Regulamento Geral de Proteção de Dados, como uma alternativa de menor custo para o processamento de dados, realizando uma «terceirização» deste tratamento para países em que o custo das operações seriam sensivelmente mais baixos do que aqueles encontrados no mercado europeu. No contexto do Regulamento Geral de Proteção de Dados, provável que não fosse esse um objetivo da norma, visto que esta veio, sim, como uma resposta à fragmentação legislativa que se verificou após a Diretiva 95/46CE, e, também, como uma forma de, nos termos do «Considerando»36 (2), contribuir para o «progresso econômico e social, a consolidação e a convergência das economias a nível do mercado interno». Em outras palavras, o intuito da norma era servir à própria União Europeia, mas, da forma como implementada, abriu margem para a exploração do mercado por países terceiros. Nesta esteira é que se verifica uma das motivações de se realizar o transplante das normas europeias para o contexto brasileiro. Em lugar de aprovar uma legislação tratando sobre o tema de forma própria, que poderia abrir margem para análises de adequação aos padrões europeus, ao utilizar o Regulamento Geral de Proteção de Dados como uma «norma-modelo», transplantando-o quase em sua totalidade para o ordenamento jurídico brasileiro, afasta-se a possibilidade de não reconhecimento do Brasil como um país capaz de receber dados de cidadãos europeus para serem tratados em território nacional. Por 34 CURTISS, Tiffany - Privacy Harmonization and the Developing World: The Impact of the EU’s General Data Protection Regulation on Developing Economies. Washington Journal of Law, Technology & Arts. ISSN 2157-2534. 12:1 (2017) 95–122. 35 GUTIERREZ, Horacio E.; KORN, Daniel - Facilitando the Cloud: Data Protection Regulation as a Driver of National Competitiveness in Latin America. University of Miami Inter-American Law Review. ISSN 0884-1756. 45:1 (2013) 33–62. 36 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados) (Texto relevante para efeitos do EEE). OJ L [Em linha]. 32016R0679 (16-05-04) [Consult. 5 jan. 2020]. Disponível em WWW:<URL:http://data.europa.eu/eli/reg/2016/679/oj/por>.

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acréscimo, observa-se que a aludida possibilidade, se não afastada totalmente, resta sensivelmente diminuída, pois, como a norma não foi completamente implementada no país, ainda não há que se falar em adequação ao padrão europeu – principalmente em função da ausência de criação, até o momento, da Agência Nacional de Proteção de Dados, autoridade independente responsável por fiscalizar o cumprimento da lei em questão. O interesse econômico foi documentado no parecer de análise do projeto de lei brasileiro, ao restar afirmado que «a construção de um arcabouço similar entre os países gera um ambiente propício aos negócios, principalmente globais, oriundos do manuseio de dados»37, principalmente, a fim de garantir o outsourcing mencionado anteriormente. O relator continuou demonstrando a importância econômica, ao afirmar que o fato de a «legislação do país estar de acordo com a legislação europeia, é extremamente pertinente neste julgamento, pois indica, como questão de fundo, a atratividade comercial do setor de TIC (Tecnologia da Informação e das Comunicações)». Ainda, sustentou a capacidade destes países de atraírem, como anteriormente citado, o processamento de dados coletados na União Europeia, permitindo, assim, não só a instalação de data-centers, mas das próprias empresas de TIC. Em ambos os casos, estas podem se valer do custo menor de mão de obra e de insumos para sua atividade, como o custo menor de energia elétrica ou mesmo de espaço físico para suas operações, num movimento similar ao que aconteceu com a Índia entre o final dos anos de 1990 e início dos anos 2000, quando se tornou uma potência no outsorcing de serviços remotos, devido ao baixo custo de mão de obra e à grande disponibilidade de infraestrutura telemática. Como resultado, aquele país alcançou a posição de um dos principais líderes no setor, conforme relatado por Friedman38. Por todo o exposto, evidencia-se que o interesse do Poder Legislativo, ao realizar o «legal transplant» do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia para o ordenamento jurídico brasileiro, não reflete, ao menos num primeiro movimento, cuidado ou preocupação genuínos com a proteção de interesses fundamentais, nem resposta a exigências da população, mas sim uma decisão de adequação a um «padrão» imposto por um mercado em potencial, o qual se desejou passar a explorar, ainda que através das empresas estabelecidas no Brasil.

37 SILVA, Orlando - Parecer ao Projeto de Lei no. 4.060, de 2012. Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei no. 4.060, de 2012. . Brasília : Câmara dos Deputados, 29 Mai. 2018 38 FRIEDMAN, Thomas L. - O mundo é plano uma breve história do século XXI. Rio de Janeiro : Objetiva, 2007. ISBN 978-85-7302-863-8.

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5. Conclusões Representam o estudo exposto até o momento as seguintes conclusões: a A identidade entre o Regulamento Geral de Proteção de Dados europeu e a Lei Geral de Proteção de Dados brasileira, quando confrontados seus objetivos, suas definições e sua aplicação territorial demonstra que o Regulamento europeu serviu como plataforma conceitual para a lei brasileira; b Exsurge do presente estudo comparativo a certeza de que o prestígio e a performance econômica interessam sobremaneira, ao se falar de proteção de dados pessoais no ordenamento jurídico brasileiro, desconectada da realidade social, então, com pouca preocupação com a temática, apresentando a lei editada um nível de sofisticação e exigência que põe em prova a sua própria efetividade, seja pela falta de clamor e de aceitação sociais, seja pelas implicações econômicas que referida legislação representará para as empresas brasileiras; c O modelo brasileiro seguiu, ipsis litteris o modelo europeu de extraterritorialidade, buscando a validade da norma, ainda que a operação de tratamento não ocorra em território nacional, porém, de um modo que não encontra precedentes na legislação europeia, enquanto a legislação brasileira faculta a aplicação da lei brasileira quando o «responsável pelo tratamento», embora estabelecido em solo brasileiro, apenas realize o tratamento de dados estrangeiros, sem qualquer comunicação com «operadores» brasileiros, fato este que reforça o entendimento de que a legislação europeia foi transplantada para o Brasil por interesses (ou pela busca de performance) econômicos; d Evidencia-se que o interesse do Poder Legislativo, ao realizar o «legal transplant» do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia para o ordenamento jurídico brasileiro, não reflete, ao menos num primeiro movimento, cuidado ou preocupação genuínos com a proteção de interesses fundamentais, nem resposta a exigências da população, mas sim uma decisão de adequação a um «padrão» imposto por um mercado em potencial, o qual se desejou passar a explorar, ainda que através das empresas estabelecidas no Brasil. Através deste breve estudo comparativo, confirma-se a vastidão de implicações ainda a serem submetidas à apreciação por parte dos poderes estatais, da doutrina especializada e das instituições privadas. Resta esperar que, após a de-

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monstração do «legal transplant» do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia para o ordenamento jurídico brasileiro atinente à Proteção de Dados Pessoais, fique clara a necessidade de transplantar também todo o desenvolvimento judicial e doutrinário acerca da temática, uma vez servirem como balizas para a melhor aplicação dos direitos ali previstos.

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DIREITO AO ESQUECIMENTO E DELIMITAÇÃO TEMPORAL DO USO DE INFORMAÇÃO QUE VIOLE A ESFERA PRIVADA DO INDIVÍDUO: O CONTEXTO NACOMPARAÇÃO ENTRE OS ARGUMENTOS DA CORTE DI CASSAZIONE DA ITÁLIA E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO BRASIL Rui Carlos Sloboda Bittencourt

Resumo: Em tempos de reprodutibilidade de informação facilitada pelas tecnologias da informação e comunicação disponíveis, o cuidado com o que se publica deve ser redobrado. Em especial quando quem publica está sob o manto protetor da liberdade de imprensa. Quando ocorrem abusos, como a violação da intimidade e privacidade de um indivíduo, o Direito deve facultar a este a possibilidade de fazer cessar os danos decorrentes de tais abusos. É dessa ideia que surgiu como construção doutrinária e jurisprudencial e agora retorna ao centro dos debates jurídicos o direito ao esquecimento. Buscando entender semelhanças e diferenças entre os parâmetros adotados pelas cortes superiores de Brasil e Itália para decidir pela aplicação ou não deste direito, pretende-se neste trabalho de Direito Comparado a sistematização argumentativa de duas decisões paradigmáticas nas quais era solicitado o direito ao esquecimento. Após construções

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argumentativas muito distintas, as situações, que guardam diversas semelhanças entre si, acabam por receber respostas diferentes. Palavras-chave: direito comparado; direito ao esquecimento; direito de personalidade; direito de informação. Abstract: In times of reproducibility of information facilitated by the available information and communication technologies, the care with what is published must be redoubled. Especially when the publisher is under the protective cover of press freedom. When abuses occur, such as the violation of an individual’s intimacy and privacy, the law should provide the individual with the possibility to stop the damages arising from such abuses. It is from this idea that emerged as a doctrinal and jurisprudential construction – and now is returning to the center of legal debates – the right to be forgotten. Seeking to understand similarities and differences between the parameters adopted by the higher courts of Brazil and Italy to decide whether or not to apply this right, the aim of this Comparative Law work is the argumentative systematization of two paradigmatic decisions in which the right to be forgotten was requested. After very different argumentative constructions, the situations, that have several similarities between them, end up receiving different responses. Keywords: Comparative law; right to be forgotten; rights of personality; right to information. “Esquecer não é uma simples ‘vis inertiae’ [força inercial], como crêem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido [...] Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer imperturbado pelo barulho e a luta do nosso submundo de órgãos serviçais a cooperar e divergir; um pouco de sossego, um pouco de ‘tabula rasa’ da consciência, para que novamente haja lugar para o novo, sobretudo para as funções e os funcionários mais nobres, para o reger, prever, predeterminar (pois o nosso organismo é disposto hierarquicamente) – eis a utilidade do esquecimento, ativo, como disse, espécie de guardião da porta, de zelador da ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, ‘presente’, sem o esquecimento” F. W. Nietzsche – A Genealogia da Moral

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Introdução Estabelecer comparação entre ordenamentos jurídicos é tarefa que vai muito além de observar aquilo que formalmente é chamado de Direito. É-se convidado a analisar as estruturas por trás de tais ordenamentos, os arcabouços históricos, culturais e até mesmo linguísticos, as possibilidades surgidas na construção política do Direito, entre outras tantas variáveis. Tudo isso, não para comparar a aplicação de um mesmo instituto em ordenamentos diferentes, mas sim as diferentes soluções que os ordenamentos ora comparados utilizam no intuito de resolver um mesmo problema. Uma das possibilidades que o ferramental teórico-metodológico do Direito Comparado oferece para tanto é a comparação de sentenças judiciais. Na presente pesquisa, será realizada análise da construção argumentativa de duas sentenças que tratam de conflitos entre o direito à informação – em ambos os casos, de cunho jornalístico – e os direitos de personalidade, nomeadamente o direito à privacidade, em situações que impliquem republicação em massa de informação fora seu contexto temporal original. Pretende-se aqui comparar tais sentenças de forma a demonstrar que para um mesmo problema e sob um mesmo nome – direito ao esquecimento – encontram-se soluções díspares. Pretende-se ainda, ao revelar os princípios que norteiam cada solução, perceber qual dos modelos comparados tenderá a garantir a aplicação do Direito que produza uma máxima efetivação possível para ambos os direitos em conflito. Não se pretende neste trabalho abordar a questão específica da proteção de dados que no artigo 17 da normativa 2016/679 da União Europeia, Regulamento Geral de Proteção de Dados, recebeu a alcunha de “direito a ser esquecido” e nem do capítulo III de seu congênere brasileiro, a Lei 13709/2018, Lei Geral de Proteção de Dados, onde estão definidos direitos do titular de dados, dentre os quais, o direito à eliminação de seus dados, uma vez que a proteção de dados pessoais compreende situação distinta daquela que será desenvolvida no decorrer do presente texto. Outro alerta necessário diz respeito ao fato de ter-se propositadamente escolhido sentenças que não tratem de casos de direito ao esquecimento na internet de forma a evitar elastecer muito o assunto, uma vez que seria necessário abordar nuances específicas e também definir diferenças entre conceitos como direito ao esquecimento e direito à desindexação, fugindo assim do recorte pretendido para esta pesquisa, como será demonstrado oportunamente. O trabalho abordará, portanto, duas situações em que o argumento do direito ao esquecimento é utilizado nas sentenças de casos em que a informação veiculada em mídia televisiva pretensamente ofende e causa dano à personalidade dos indivíduos retratados ou de pessoas a estes ligadas, pois os fatos que

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voltam a noticiar tempos depois de ocorridos não permitem que cicatrizes emocionais se fechem em definitivo. Por fim, mesmo ciente das limitações apresentadas pelo método de comparação funcionalista apresentadas por Van Hoecke1, optou-se por ele por ser o que propicia as melhores possibilidades diante do questionamento inicial que originou o trabalho e das fontes primárias disponíveis para embasar o seu desenvolvimento, uma vez que foca no aspecto factual, relacionando-o com a ideia de que o objeto da comparação deve ser observado através da forma como se dá sua relação funcional com a sociedade.2

1. A função do chamado direito ao esquecimento A comparação entre soluções jurídicas para um (mesmo ou semelhante) problema parte da função desempenhada em cada ordenamento jurídico que transcende a mera comparação normativa para procurar a sua inserção sistemática num determinado contexto jurídico3. O “direito ao esquecimento” parte da tradicional tutela do direito à privacidade, honra, imagem, agora colocado numa situação em que tais objetos são atacados, qual seja, por nova publicação de informação que, ao ser reavivada, pode vir a causar danos aos citados elementos da personalidade de um indivíduo. Ora, então não se está a falar de uma ofensa qualquer à privacidade ou à imagem deste indivíduo, mas sim, especificamente daquela que decorra de informação que já tenha sido publicada em outra situação e que, retirada de seu contexto original, volte a circular com alguma relevância. A ideia original do que hoje se pretende por direito ao esquecimento, atrelada à seara criminal, era a de evitar que aquele que cometesse crime continuasse a pagar por este crime de outras formas após ter cumprido a pena prevista pelo Direito, revivendo indefinidamente o seu erro a cada nova notícia, muitas vezes de cunho sensacionalista, impossibilitando sua ressocialização. Tal remete a uma das primeiras construções jurídicas em se falando da tutela específica da privacidade: o “right to be let alone” de WARREN e BRANDEIS

1 VAN HOECKE, Mark. «Methodology of Comparative Legal Research». Law and Method n. 12, (Dez. 2015), pp. 9-11. 2 MICHAELS, Ralf. «The Functional Method of Comparative Law». In REIMANN, Mathias; ZIMMERMANN, Reinhard. The Oxford Handbook of Comparative Law. New York: Oxford University Press, 2006. p. 342. 3 Idem. Vide também Jerónimo, Patrícia. «Lições de direito comparado». Braga: ELSA UMinho, 2015, p.13.

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baseados em decisão do Judge Cooley4, que vão definir um direito à privacidade como uma extensão do direito à vida a partir do momento em que se reconhece a “natureza espiritual do ser humano, seus sentimentos e seu intelecto”5. A finalidade do direito ao esquecimento, apta a ser objeto de comparação, não é outra senão a garantia de que o indivíduo não venha a ser importunado indefinidamente em decorrência de atos pretéritos. Não significa, de forma alguma, que fatos ou mesmo seus registros devam ser eliminados, o que se espera é que quem faz uso comercial de tais registros, o faça de forma consciente, tendo sempre no horizonte o respeito pela dignidade daqueles que podem ser direta ou indiretamente atingidos por uma nova divulgação fora do contexto original. Perscrutando a origem histórica comum da diferente solução jurídica dada em ordenamentos jurídicos diferentes a um problema comum, constata-se que apenas quase um século depois, da construção doutrinária passou-se a uma construção judicial. Em 1973 o Tribunal Constitucional Alemão julgou o Caso Lebach – I. Em que um canal de televisão pretendia exibir documentário sobre um crime de homicídio anos depois do ocorrido, por ocasião da saída da prisão de um dos acusados, condenado como partícipe. Este, alegando que a nova divulgação seria entrave para sua reinserção na sociedade após ter cumprido a pena determinada, pedia que o vídeo não fosse exibido. A decisão pela denegação da liminar na primeira instância e no tribunal revisor foi depois revertida pelo Tribunal Constitucional. Recentemente, esta construção doutinária e jurisprudencial voltou a ser assunto por conta da discussão sobre sua aplicabilidade para publicações feitas na internet, uma vez que a grande rede tem como características intrínsecas a facilitação tanto do armazenamento quanto da busca por informações. Nas palavras de SCHREIBER, “embora ninguém tenha direito de apagar os fatos, deve-se evitar que uma pessoa seja perseguida, ao longo de toda a vida, por um acontecimento pretérito”6.

2. Os comparados Trata-se de duas decisões judiciais, ambas em instâncias superiores, sobre casos envolvendo a republicação de informações em contexto temporal diverso daquele para o qual foram originalmente produzidas, acarretando alegados danos às pessoas sobre quem se fala ou a pessoas do convívio íntimo destas. 4 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D.. «The Right to Privacy». Harvard Law Review 4, no. 5 (1890), pp. 193. 5 Idem. 193-195 6 SCHREIBER, Anderson. «Direitos da Personalidade». 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2013. p. 170-171.

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A escolha dos casos não foi aleatória. Além de serem decisões tidas como paradigmas em seus países, em ambas as situações os fatos republicados não se referem à rememoração de alguma prática delituosa dos retratados – em diferença do que ocorria nos casos que acabaram por consolidar a noção atual de direito ao esquecimento. Também têm de similar entre si o fato de que não são casos sobre direito ao esquecimento na internet, mas sim sobre programas de televisão com grandes índices de popularidade. Neste caso, a escolha se deve ao fato de entendermos serem muito diferentes os efeitos produzidos por uma republicação na internet de uma na televisão. Desde a forma como os espectadores interagem com a transmissão – passiva na televisão, ativa na internet – até o fato de que quando se fala de uma transmissão pela televisão ou na imprensa tradicional de uma forma geral, a fonte da qual parte a informação é única, centralizada, enquanto que na internet a facilidade para replicação em redes sociais, por exemplo, leva a uma realidade de fontes difusas. Além disso, da transmissão pela televisão, ainda que esta comporte reprises, espera-se que ocorra em um momento determinado e que apenas a memória do público vá transmiti-la adiante, enquanto que da internet se espera justamente o contrário, a possibilidade de acesso a qualquer assunto publicado em qualquer momento posterior à publicação. Como se costuma dizer, a internet não esquece. Pro fim, importante destacar que em ambos os casos, tanto a publicação original quanto a republicação das informações eram lícitas. Faz-se este adendo uma vez que publicações ilícitas não são solucionadas com a utilização do direito ao esquecimento, mas sim, por outros meios mais simples e objetivos fornecidos pelos ordenamentos. Caso a publicação original fosse ilícita, assim também seria a republicação, com as mesmas consequências nos âmbitos cível e criminal.

2.1. O Recurso Especial 1.335.153-RJ Refere-se a caso cuja controvérsia diz respeito à veiculação em programa de televisão de grande apelo popular à época de reconstituição da história de um crime que chocara a opinião pública décadas antes. No episódio em questão7 fora apresentado crime cometido em julho de 1958 contra uma jovem de 18 anos de idade, recém saída do internato religioso onde passara boa parte de sua infância e toda a sua adolescência. A jovem, apre7 O episódio segue disponível ainda hoje no YouTube, podendo ser visualizado livremente por qualquer indivíduo com acesso à internet. Destaca-se o fato de que o direito ao esquecimento na internet pede um tratamento quase que totalmente diferente daquele dado a questões envolvendo a media tradicional – televisão, rádio, impressos – uma vez que seu impacto em termos quantitativos e qualitativos diferencia as duas situações.

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sentada pelo programa como ingênua, trabalhadora, quase uma santa, teria sucumbido às pressões de um dos criminosos que a levou para um apartamento no décimo segundo andar de um edifício na Avenida Atlântica que se encontrava fechado para obras, contando com a colaboração de um amigo e do porteiro do prédio, já no apartamento, os três abusaram sexualmente dela. A jovem, durante os atos de violência, acabou por desmaiar. Imaginando que ela tivesse falecido e para se esquivar de qualquer responsabilidade, os criminosos a arremessaram da varanda do apartamento para a rua, simulando um suicídio. Depois de vários julgamentos polêmicos, um dos jovens foi condenado por atentado violento ao pudor e tentativa de estupro, o outro por atentado violento ao pudor, tentativa de estupro e homicídio e o porteiro do edifício, que desapareceu após o caso não tendo cumprido pena, havia sido condenado por atentado violento ao pudor e tentativa de estupro. Passados 46 anos do crime, um canal de televisão decide contar novamente a história trágica mesclando representações teledramatúrgicas do ocorrido com depoimentos reais, narração jornalística e vídeos e fotografias da época, numa produção que visava construir uma narrativa específica dos fatos8. Irmãos da vítima acionam judicialmente o canal de televisão pedindo uma indenização por danos morais por terem visto reaberta a chaga daquele drama familiar tanto tempo depois e materiais, pelo uso não autorizado da imagem da vítima. O Recurso Especial que será comparado no tópico posterior tem por objeto sentença do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que não dera provimento aos pedidos da família, confirmando, assim, a decisão do juízo de primeira instância.

2.2. O Ricorso 10583/2014 Um famoso cantor e compositor italiano aciona judicialmente uma emissora de televisão daquele mesmo país por conta da retransmissão de um vídeo que considera desabonador de sua imagem em um programa que o classificava entre as personalidades “mais desagradáveis e mal-humoradas no mundo do entretenimento”. A transmissão original, de 2000, mostrava o cantor sendo surpreendido por uma equipe do programa ao sair de um restaurante e se recusando a responder o que lhe perguntavam. Cinco anos mais tarde, a emissora retransmite aquela cena, incluindo comentários com indagações irônicas sobre o que o teria deixado de mal humor se estavam próximos do Natal, época em que o humor das pessoas costuma melhorar. O cantor, então, propôs ação contra a emissora alegando violação de seu direito de imagem, da sua privacidade e da sua honra, além do direito ao es8 SCHREIBER, Simone. p. 362-363, citada no corpo da sentença em análise nas páginas 28 e 29.

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quecimento. A decisão – objeto do recurso à Corte Suprema di Cassazione que será analisado em comparação ao caso brasileiro – com argumentos no mínimo pitorescos, veio a conceder apenas a reparação pelo uso indevido da imagem, sob alegação de que o cantor era figura pública e que, portanto, havia interesse público na transmissão televisiva de fatos assim. Para a não concessão de reparação por ter visto violado seu direito à privacidade, a alegação foi de que a transmissão havia sido legítima e com relação à reparação por violação da honra, o tribunal disse tratar-se de comentários satíricos que não tinham intenção de denegrir sua honra. Por fim, com relação ao direito ao esquecimento, o tribunal a quo disse que como há interesse público no fato, não caberia tal tutela.

3. A comparação da construção argumentativa e da definição dos efeitos do direito ao esquecimento De início, para efeitos metodológicos, cumpre informar que se adotará durante a comparação que segue uma notação específica para as duas sentenças analisadas. Para a sentença brasileira, será utilizada, no corpo do texto, a notação (BRA, p. XX) e para a sentença italiana, (ITA, p. XX), sendo “XX” em ambos os casos o número da página nas cópias digitais das sentenças retiradas dos sítios dos respectivos tribunais. Pretende-se, assim, que o texto comparativo seja tão fluido quanto possível. Para efeito de análise comparativa, serão aqui tratados de forma sistemática duas decisões judiciais de cortes superiores, equivalentes na estrutura judicial de seus respectivos países como se observa pela própria previsão de competência de ambas, justificando, assim, o aspecto institucional da comparação. Compete ao Superior Tribunal de Justiça enquanto órgão do Poder Judiciário brasileiro – conforme previsão constitucional – entre outros, “julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhe a vigência; b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal; c) der a lei federal interpretação vigente da que lhe haja atribuído outro tribunal.”9 Nota-se claramente a intenção do legislador constituinte de lhe atribuir a função de uniformizador da jurisprudência sobre legislação federal. No caso da Corte Suprema di Cassazione, sua competência está prevista no ordinamento giudiziario aprovado pelo Regio decreto del 30 gennaio 1941, n. 12 em seu artigo 65 que dispõe que “La corte suprema di cassazione, quale organo supremo della giustizia, assicura l’esatta osservanza e l’uniforme interpretazione della legge, l’unità del diritto oggettivo nazionale, il rispetto dei limiti delle diverse 9 BRASIL, Constituição art. 105, III.

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giurisdizioni; regola i conflitti di competenza e di attribuzioni, ed adempie gli altri compiti ad essa conferiti dalla legge.”10 Assim como no caso da corte brasileira de cuja sentença se tratará, está-se a falar de uma corte cuja principal função também é a de uniformização da jurisprudência no âmbito nacional. Do ponto de vista material, o que justifica a comparação em termos gerais é o fato de ambas as decisões citarem textualmente o chamado “direito ao esquecimento”, mas utilizarem a expressão de formas diferentes em suas construções argumentativas, conduzindo a soluções distintas para um mesmo problema11, qual seja, a republicação de matéria jornalística em momento posterior, distinto daquele para a qual fora produzida originalmente, reabrindo chagas do passado de maneira desnecessária.

3.1. O suporte legislativo utilizado na fundamentação Do ponto de vista do suporte legislativo para as decisões, na sentença brasileira, como não há na legislação daquele país dispositivo que trate explicitamente de um direito ao esquecimento, utilizou-se como suporte legislativo na fundamentação a ideia de dignidade da pessoa humana enquanto fundamento da República Federativa do Brasil consagrado na Constituição de 1988 em seu art. 1º, inc. III (BRA, p. 24) e a construção sistemática dos direitos da personalidade, com destaque para a privacidade (BRA, p. 25), primeiro na Carta Magna, em seu art. 5º, inc. X, que garante como invioláveis “a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” e depois no Código Civil, destacando seus artigos 11, 20 e 21, que ressaltam as características dos direitos da personalidade como sendo intransmissíveis, irrenunciáveis e não passíveis de sofrer limitação voluntária, e estabelecem alguns parâmetros básicos para os direitos à imagem, à honra e à privacidade. Há, também, breve referência ao art. 10º da lei 12.965/2014, o chamado Marco Civil da Internet, por tratar da privacidade na internet. Como o caso julgado não tem relação nenhuma com a internet, considera-se tal referência inócua na elaboração da argumentação. À semelhança da situação legislativa brasileira, também não há no ordenamento italiano previsão legislativa direta para a aplicação de um direito ao 10 ITALIA, Regio decreto... “A Corte suprema de cassação, como órgão supremo da justiça, garante a exata observância e interpretação uniforme da lei, a unidade da lei objetiva nacional, o respeito pelos limites das várias jurisdições; regula conflitos de competência e atribuições e cumpre os demais deveres que lhe são conferidos por lei.” (Tradução nossa) 11 VAN HOECKE, Mark. Methodology of Comparative Legal Research. «Law and Method» n. 12, Dez./2015. pp. 11.

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esquecimento12. Assim sendo, operou-se da mesma maneira uma construção básica a partir da privacidade. Da legislação comunitária (ITA, p. 9), a decisão faz referência ao art. 8º da Convenção Europeia de Direitos do Homem, que trata do direito à privacidade, aos art. 7º e 8º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que tratam respectivamente do respeito pela vida privada e familiar e da proteção de dados pessoais e à Diretiva 95/46/CE, que em seu art. 12º, b) fala de garantia estatal a retificação, apagamento ou bloqueio de dados em casos específicos e em seu art. 14º fala sobre direito à oposição ao tratamento de dados pessoais sob condições específicas – da mesma forma, descarta-se as referências específicas à proteção de dados por não se enquadrarem no caso analisado. Da legislação nacional (ITA, p. 9), a sentença trará fundamentação no art. 2º da Constituição que tutela os direitos da personalidade e no Código Civil que em seu art. 10º tratará do abuso da imagem de outrem, da mesma forma que o art. 97 da lei 633/1941. Neste ponto as construções argumentativas são, então, semelhantes, uma vez que não há fundamento legislativo específico para se falar em direito ao esquecimento, os magistrados se socorrem nos fundamentos legais da privacidade, um de seus elementos constitutivos. Nota-se aí a tradição legalista de ambas culturas jurídicas que, para aplicar construção jurisprudencial e doutrinária, buscam uma lei para a fundamentação da sentença, ainda que a lei encontrada não corresponda exatamente à situação que se busca solucionar.

3.2. Os fundamentos para a possibilidade de aplicação do direito ao esquecimento em outras fontes jurídicas Uma vez que direito à privacidade não se confunde com direito ao esquecimento, há que se buscar nas sentenças a ratio que fundamentou a utilização da forma específica – direito ao esquecimento – no processo decisório dos magistrados. No caso brasileiro, a sentença traz alguma referência doutrinária dispersa por quase todo o seu teor, merecendo destaque positivo as citações a Gilmar Ferreira Mendes, Hermano Duval e Claudio Luiz Bueno de Godoy (BRA, pp. 38-39), todas trazendo elementos do direito ao esquecimento e, a mais elaborada de todas, uma citação de François Ost que caracteriza o direito ao esquecimento como uma das espécies de direito relacionadas à privacidade e transcreve trecho

12 Há o artigo do RGPD que usa a expressão no título, mas o que se pretende com aquele dispositivo está mais próximo de controle sobre o tratamento de dados que fazem de si do que de um real direito ao esquecimento.

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de decisão judicial francesa de 1983 acerca do direito ao esquecimento de pessoas públicas. Além do aporte doutrinário, há também referência ao Enunciado 531 da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (BRA, p. 17) que, muito embora venha sendo utilizado como a referência geral para casos de direito ao esquecimento no Brasil, traz tanto em seu conteúdo quanto em sua justificativa a vinculação à ideia de direito ao esquecimento na internet: “Enunciado: A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento. Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.”13 A decisão ainda traz, sob o pretexto de uma “relevância supranacional do tema”, a importação imprópria de argumentos relacionados ao direito ao esquecimento retirados de textos jornalísticos (BRA, pp. 17-18) como, por exemplo, trecho de uma fala da então Vice-Presidente da Comissão de Justiça da União Europeia, Viviane Reding, sobre proposta apresentada para a revisão de diretivas de forma a incluir previsão expressa de proteção ao direito ao esquecimento dos usuários de internet, retirado da edição espanhola do site 20 minutos. Em oposição a esta sistematização labiríntica proposta pelo Min. Salomão no Superior Tribunal de Justiça brasileiro, a decisão da corte italiana fundamenta a utilização do direito ao esquecimento como argumento jurídico em uma construção jurisprudencial já consolidada tanto em âmbito europeu quanto em âmbito nacional. (ITA, p. 5). A nível europeu faz extensa referência ao caso C131/12, Google Inc. contra Agência Espanhola de Proteção de Dados e Mario Costeja González, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia que versa sobre aplicação do direito ao esquecimento no tratamento de dados pessoais e a nível nacional, traz duas decisões da própria Corte di Cassazione (ITA, pp. 8-9), decisão de 26/06/2013, n. 16111 e decisão de 05/04/2012, n. 5525, ambas tratando da oposição entre o direito ao esquecimento e a liberdade jornalística, com fundamento no interesse público atual. Desnecessário afirmar a diferença gritante entre a corte brasileira e sua congênere italiana no que se refere ao nível de sedimentação e refino dos funda13 ENUNCIADO 531 da VI Jornada de Direito Civil da Justiça Federal. Disponível em <https:// www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/142>.

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mentos previstos em outras fontes que não a lei para a possibilidade de se aplicar o direito ao esquecimento.

3.3. O contexto histórico e social No caso da decisão brasileira, a separação temporal entre o fato e a sua republicação é tão grande que a análise do contexto histórico e social precisa ser dividida em duas partes para se possa ter em conta as peculiaridades de cada momento. Com relação ao fato original, cabe destacar a imensa repercussão midiática em torno do assunto na época, que contribuiu para que a vítima se tornasse uma figura mítica no imaginário da cidade do Rio de Janeiro e as polêmicas em torno do julgamento dos três envolvidos no crime, sob forte suspeita de fraude para proteger o criminoso que vinha de família mais abastada. No programa de televisão que deu azo à ação reivindicando direito ao esquecimento, há referência ao fato de os óculos escuros que o criminoso usava terem virado moda entre os jovens cariocas. Este fato nos dá uma ideia de como a imprensa atuou na reconstrução da imagem dele de forma a influenciar o(s) julgamento(s). Com relação à possibilidade de aplicação do direito ao esquecimento no ordenamento brasileiro, um forte movimento contrário veio justamente da imprensa, preocupada com as consequências que a decisão poderia acarretar sobre seu trabalho informativo. Sobre isso, o magistrado fará referência (BRA, pp. 2122) ao triste passado recente de censura pelo regime militar, um fantasma que parece estar sempre pairando sobre a cabeça dos brasileiros. No caso italiano, o maior destaque reside no fato de ser o recorrente uma pessoa pública e, em tempos de híper-exposição, encontrar incompreensão por parte de determinado público quando manifesta seu descontentamento com invasões à sua privacidade. A única semelhança que se depreende dos dois contextos históricos e culturais reside na (ainda enorme) importância do papel da televisão como veículo de informação e entretenimento.

3.4. O estilo das sentenças O primeiro aspecto que chama a atenção é a prolixidade da sentença brasileira comparada à italiana. 37 páginas tem o voto do relator, Min. Luis Felipe Salomão, contra menos de 15 do voto do Consigliere Antonio Valitutti. Esta prolixidade deu margem para que o Min. Salomão apresentasse até mesmo argumentos que se contradizem. Além disso, na sentença brasileira, há abundantes elementos não jurídicos a compôr a argumentação, enquanto que na decisão italiana há preponderância dos elementos legislativos e jurisprudenciais. 196


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A própria estruturação dos tópicos é discrepante, tanto na quantidade quanto nos assuntos a serem abordados em cada divisão. O documento brasileiro está dividido da seguinte forma: Preliminarmente ao voto do relator há a Ementa e o Relatório. Depois disso o relator dividiu seu voto nos seguintes tópicos: 2, 3 e 4 para aspectos processuais e sobre competência. Após o 4, ao invés do 5, tem-se o 1, onde se começa a falar sobre direito ao esquecimento. A partir deste ponto, o magistrado afirma querer analisar a possibilidade de aplicação do direito ao esquecimento no ordenamento brasileiro em casos que envolvam mídia televisiva. No 6 traz as objeções à aplicação do direito ao esquecimento. No 7 trata-se da nova relação entre o público e o privado, baseando-se principalmente em Bauman. O tópico 8 será dedicado ao argumento da possível censura à liberdade de imprensa. No 9, o conflito aparente entre a História de um povo e o direito ao esquecimento. No 10, repete-se a promessa feita antes do tópico 6, de se avaliar a possibilidade de aplicação do direito ao esquecimento no ordenamento brasileiro. Por fim, o tópico 11 é dedicado ao caso concreto. Passando-se a sumarizar o documento italiano, há duas grandes partes – fatti di causa e ragione della decisione – divididos em subtópicos. A primeira parte é dividida em 4 tópicos breves, narração dos fatos originais, descrição da sentença recorrida, pedido e um adendo processual. A segunda parte é dividida em relação entre os fatos e o direito, possibilidade de aplicação do direito ao esquecimento no ordenamento italiano, quadro normativo, análise dos argumentos na sentença recorrida, resposta a estes argumentos, decisão. Mais uma vez, o contraste sistemático impressiona. Entende-se a intenção do magistrado brasileiro de desenvolver detalhadamente os conceitos a serem aplicados na decisão que viria a servir de paradigma sobre a matéria, mas a falta de sistematização pode ter colocado todo este trabalho a perder.

3.5 Diferenças e similitudes na argumentação judicial Um argumento relevante que aparece em ambas as sentenças, mas de forma distinta, diz respeito ao estabelecimento de uma fronteira entre o direito à informação jornalística e o direito à privacidade. Na sentença italiana, a privacidade limita o direito à crônica jornalística por meio da necessidade de adequação da informação aos critérios do interesse público e da atualidade (ITA, p. 5). Por sua vez, o julgador brasileiro optou por apresentar como limites à crônica jornalística aqueles já definidos pelo próprio Superior Tribunal de Justiça em acórdão anterior (BRA, p. 16), quais sejam, “(I) o compromisso ético com a informação verossímil; (II) a preservação dos chamados direitos da personalidade, entre os quais incluem-se os direitos à honra, à imagem, à privacidade e à intimidade; e (III) a vedação de veiculação de crítica jornalística com intuito 197


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de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa (animus injuriandi vel diffamandi )” (REsp 801.109/DF, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 12/06/2012) e também os limites à liberdade de imprensa positivados na Constituição (BRA, p. 21) e tratados como princípios norteadores dessa liberdade: “...como a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas (art. 220, § 1º). Na mesma direção, como que o § 3º do art. 222, em alguma medida, dirigisse o exercício de tal liberdade, afirma-se que “[os] meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221”, princípios dos quais se destaca o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” (inciso IV).” Indica que nestes casos o legislador constitucional pareceu apontar a uma “predileção para soluções protetivas da pessoa humana”. Uma das principais diferenças entre a construção argumentativa brasileira e a italiana reside no facto de o julgador brasileiro, ao contrário do italiano, ter elencado um virtual conflito entre o direito à privacidade e o direito de uma sociedade à sua História, tratada como seu patrimônio imaterial (BRA, p. 26) da seguinte forma: “Assim, um crime, como qualquer fato social, pode entrar para os arquivos da história de uma sociedade e deve ser lembrado por gerações futuras por inúmeras razões. É que a notícia de um delito, o registro de um acontecimento político, de costumes sociais ou até mesmo de fatos cotidianos (sobre trajes14 de banho, por exemplo), quando unidos, constituem um recorte, um retrato de determinado momento e revelam as características de um povo na época retratada.”. Entendemos ser este argumento no mínimo questionável, uma vez que, para se rememorar historicamente um facto criminal, não se faz necessário expôr a identidade da vítima e, muito menos, exibi-la em programa de televisão que não tem enfoque histórico, mas sim criminal. Um segundo argumento neste sentido (BRA, p. 26) é o de a vítima querer ter seu caso utilizado como exemplo, como foi o caso de Maria da Penha Maia Fernandes cuja luta contribuiu para a criação da lei que leva seu nome, Lei Maria da Penha, de combate à violência doméstica. Este argumento é facilmente desconstruído. Ora, se a pessoa busca exposição e rememoração do fato que lhe ocorreu, isso significa obviamente não sente seus direitos da personalidade violados por tal exposição. Por fim, com todo o respeito que merece o julgador, não cabe ao poder judiciário em nenhuma de suas instâncias decidir sobre quais crimes ou quais as circunstâncias de um crime que são ou deixam de ser importantes para a História. Note-se, por exemplo, que ao se referir ao outro caso que estava em julgamento envolvendo direito ao esquecimento, o ministro fala em Chacina da 14 No original, trajes está mal grafado com g ao invés de j.

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Candelária, neste caso, parece que o nome das vítimas não é aspecto tão importante para a História na visão do ministro. Depois de tudo isso, o ministro reforça a importância da historicidade de fatos como a ocorrência de um crime, mas diz que esta pode, eventualmente, ser preterida em relação aos direitos da pessoa humana pois “a permissão ampla e irrestrita a que um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo – a pretexto da historicidade do fato – pode significar permissão de um segundo abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no passado.” (BRA, pp. 29-30) O argumento relacionado ao interesse público também é tratado de forma distinta nas decisões analisadas. No julgado brasileiro, inicia-se (BRA, p. 30) definindo o interesse público em factos como o do caso analisado simplesmente por tratar-se de ação penal pública. Neste ponto o ministro parece confundir o interesse público na boa apuração judicial do caso com um eventual interesse público na transmissão televisiva de detalhes pessoais a respeito dos envolvidos no caso. Interessante notar que na mesma página (BRA, p. 30), traz uma citação muito ponderada do doutrinador Gilmar Ferreira Mendes diferenciando interesse público de interesse do público15 para, logo a seguir, (BRA, p. 31) apontar como solução “a restrição à publicidade do processo, tornando pública apenas a resposta estatal aos conflitos a ele submetidos, dando-se publicidade da sentença ou do julgamento”. Adiante, irá relacionar o interesse público com outro aspecto fundamental para o problema a se resolver, a passagem do tempo, ao decretar que “o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas consumadas irreversivelmente.” (BRA, p. 38) No julgado italiano, o interesse público é tratado como o próprio fundamento para que a liberdade de imprensa possa se contrapôr aos direitos da personalidade de um indivíduo (ITA, p. 5). Para tanto, fará referência à decisão do TEDH que coloca a contribuição da informação republicada para um “debate de interesse público” como requisito para esta republicação (ITA, p. 7). Ainda, que sentença de tribunal nacional alerta para possibilidade de violação de direito ao esquecimento quando não haja interesse público significativo e atual na informação em arquivo histórico de jornal disponibilizado para grande quantidade de pessoas via internet (ITA, p. 8). Há convergência entre os argumentos italiano e brasileiro com relação ao que ocorre com o interesse público com o passar do 15 Grifo meu.

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tempo, uma vez que também diz que este interesse tende a cessar (ITA, p. 9) Por fim, admite que factos do passado podem voltar a ter relevância para o interesse público, mas em casos ligados à ordem pública ou à segurança nacional e somente se reavivados por novo fato (ITA, p. 11). Como último elemento a ser comparado na argumentação, uma vez que o mais decisivo por ser componente do direito ao esquecimento, veja-se a forma com que fora tratado o “passar do tempo” na construção argumentativa de ambas as decisões. A decisão brasileira (BRA, p. 41), quase em sua conclusão e contrariando boa parte dos argumentos anteriormente apresentados, irá trazer que com o tempo a dor se dilui e não se justifica mais um direito ao esquecimento. Além disso, apenas a título ilustrativo, há um esforço em relacionar Direito e tempo que pouco agrega à avaliação da aplicabilidade ou não do direito ao esquecimento, conforme se observa em: “o direito estabiliza o passado e confere previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos: prescrição, decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada.” (BRA, pp. 31- 32) Do lado italiano, destaque constante para a necessidade de a informação ter caráter atual para merecer a publicação, sabendo-se que o interesse público na informação pode ressurgir em decorrência de factos supervenientes (ITA, pp. 9-11), como já tratado na argumentação sobre o interesse público. Note-se aqui que o julgador brasileiro destacou que o tempo diminuirá o sofrimento da família da vítima exposta, enquanto que o italiano destacou que o tempo diminuirá o interesse público na informação. É deste tratamento divergente que surgem as conclusões diferentes para os casos analisados. Com uma frase de efeito o julgador brasileiro descarta toda a argumentação elaborada em sentido contrário e nega provimento ao recurso da família da vítima do crime apresentado em programa de televisão, apresentando como solução a preponderância da liberdade de imprensa sobre o direito à privacidade. No julgamento italiano, conclui-se por dar provimento ao recurso do cantor que considerou ter visto sua intimidade violada pelo programa de televisão, privilegiando em uma argumentação coerente, sintética e objetiva, o direito à privacidade sobre a liberdade de imprensa, uma vez que apresentou como obrigação da imprensa a publicação de informação com interesse público, assim definida como sendo aquela que é relevante para fomentar o debate público e que tem carácter atual.

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Conclusão Após a pesquisa doutrinária sobre a construção do que vem a ser o direito ao esquecimento e a comparação de duas sentenças nacionais, paradigmáticas para seus ordenamentos, relacionadas a este direito, constatou-se que, muito embora se esteja utilizando a mesma expressão – direito ao esquecimento – a ponderação dos elementos relevantes em busca da solução para o conflito entre a liberdade de imprensa e o direito à privacidade se deu de maneira diametralmente oposta. O apreço pelos direitos pessoais na sentença italiana sustenta a ideia de que para que uma informação seja publicada, deve trazer em si a possibilidade de fomentar o debate público em busca de uma sociedade melhor. A grande audiência não se confunde com o interesse público. No caso brasileiro, talvez pelo medo que a imprensa nacional ainda tem da possibilidade de retorno de uma censura escancarada aos jornalistas, como ocorria no recente período de ditadura civil-militar, o julgador reconhece a importância do interesse público para que se justifique uma violação de direito pessoal, mas estica o conceito de interesse público até este se encontrar – equivocadamente – com o interesse do público. A confusão entre o que é facto histórico e o que é a luta dos media por audiência foi fator preponderante para a conclusão da decisão. Assim sendo, conclui-se que em se tratando de casos de direito ao esquecimento fora do âmbito da internet, de tratamento muito mais simples que os casos envolvendo publicação na internet, as soluções jurídicas para o mesmo problema são decisivamente condicionadas pelo contexto. Da comparação das soluções judiciais para semelhantes problemas constata-se este condicionalismo na diferente ponderação entre privacidade e interesse público, o que seria expectável, mas de forma mais interessante para os estudos do Direito Comparado na divergente construção de um instituto jurídico emergente como “direito ao esquecimento”. A ponderação do contexto relatada nestes casos é alerta suficiente para as virtudes e limites dos “transplantes” – neste caso judiciais – em Direito Comparado, especialmente decisivos nesta matéria que agora é tratada de forma aproximada relativamente à proteção de dados no Regulamento Geral de Proteção de Dados, na União Europeia, e na Lei Geral de Proteção de Dados, no Brasil. Também aqui valerá a pena ponderar o peso do contexto nesta aparentemente uniforme solução legislativa comparada para um problema comum.

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MEDIAÇÃO OBRIGATÓRIA OPT OUT NA ITÁLIA, ARGENTINA E BRASIL Asdrubal Júnior1

A mediação tem existido desde a vida em sociedade, presentes em costumes no oriente ou no ocidente, por ser inerente à prática social. Contudo, é preciso reconhecer que nas últimas décadas vem se apresentando como fenômeno de crescimento internacional, com inserções em diversos ordenamentos jurídicos. A mediação é uma negociação assistida pela intervenção de uma terceira pessoa imparcial que facilita a comunicação entre as pessoas que se encontram em uma situação de conflito, auxiliando e estimulando para que possam identificar opções de solução e assim chegarem a um acordo que seja satisfatório para as partes envolvidas. Os conceitos técnicos de Mediação embora variados, guardam em comum a ideia de ter a condução de um terceiro imparcial que contribuirá para que as partes possam solucionar o conflito, por mútuo consentimento.

1 Asdrubal Nascimento Lima Júnior, advogado no Brasil e em Portugal. Mediador Certificado ICFML. Integrante da lista de Árbitros de diversas entidades especializadas. Professor de Pós-Graduação em Negociação, Mediação e Arbitragem em diversas instituições. Especialista em Direito Público. Mestre em Direito Privado pela UFPE, Doutorando em Direito na UMINHO. Apresentador do Canal Momento Arbitragem. Presidente do Instituto de Estudos e Pesquisas International Observatory of Justice.

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Mediação Obrigatória Opt Out na Itália, Argentina e Brasil Asdrubal Júnior

A historiografia do estudo da Mediação2 como forma de resolver conflitos passa pela milenar experiência oriental, na China3, no Japão, até experiências no Reino Unido, na França, nos EUA, Canadá, Austrália e outros países, fazendo surgir os estudos dos chamados Alternatives Dispute Resolutions – ADR’s. O crescimento da atenção e interesse ao tema da Mediação foi potencializado não somente pelos claros e notórios benefícios proporcionados às partes, como forma de gerar soluções, que atendam aos interesses das pessoas envolvidas e satisfaçam suas necessidades, respeitando sentimentos e, proporcionando uma solução definitiva de modo ágil e econômico. Mas também, pela percepção de que a eficiência desse caminho pode contribuir para evitar a necessidade de disputas judiciais e para abreviar as soluções de muitas daquelas que já se encontram em tramitação nos órgãos de justiça, com a perspectiva de reduzir o número de processos e, por conseguinte, proporcionar economia aos custos do sistema judicial. O tema mediação entrou, pois, na pauta da sociedade por todo o mundo, atraiu interesse e atenção, multiplicando-se iniciativas, práticas, estudos e leis para disciplinar e estimular a sua utilização, sendo notória a inclusão deste tema em inúmeros ordenamentos jurídicos. A mediação e outros meios alternativos de resolução de disputas passaram a ser percebidos como formas de Justiça e estariam compreendidos na terceira das ondas renovatórias de acesso à Justiça, estudadas por Mauro Cappelletti e Bryan Garth em Acces to justice: The Woldwide Movement to make Rights Effective. O Conselho Europeu na reunião de 15 e 16 de outubro de 1999, no intuito de facilitar um melhor acesso à justiça, solicitou aos Estados Membros que criassem procedimentos extrajudiciais alternativos. Essa iniciativa evoluiu para, em 21 de maio de 2008, ser emitida a Directiva 2008/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho4, relativo a certos aspectos

2 Leite, Gisele, professora, Mestre em Direito. Doutora em Direito. Um breve histórico sobre a Mediação. https://professoragiseleleite.jusbrasil.com.br/artigos/437359512/um-breve-historico-sobre-a-mediacao 3 Cachapuz, Maria Cláudia Mércio. Carello, Clarissa Pereira. O direito chinês e a mediação: como o Brasil chegará lá?. Revista de formas consensuais de solução de conflitos. https://www.researchgate.net/publication/322619910_O_Direito_Chines_e_a_Mediacao_Como_o_Brasil_Chegara_La 4 Diretiva 2008/52/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 21 de maio de 2008 Relativa a Certos Aspectos da Mediação em Matéria Civil e Comercial, 2008, Jornal Oficial da União Europeia (L 136), https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/?uri=CELEX%3A32008L0052 [doravante Diretiva da Mediação]. [N. da T.: link para a versão em português da Diretiva da Mediação: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:32008L0052&from=EN.]

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da mediação civil e comercial, visando promover o uso da mediação e assegurar uma “relação equilibrada entre a mediação e o processo judicial” (Artigo 1º). Premissas como a presente no item 195 dos considerandos da Directiva 2008/52/CE deixam notabilizar a compreensão de que a solução por Mediação também deve ser percebida como Justiça, quando afirma que a mediação não deverá ser considerada uma alternativa inferior ao processo judicial. A Directiva da Mediação inseriu normas a respeito dos padrões de qualidade da mediação, permitiu o encaminhamento pelo Poder Judiciário, dispôs sobre a execução de acordos resultantes de mediação e fixou a necessidade do sigilo do procedimento. E além destas configurações, permitiu que os Estados-Membros adotassem a mediação obrigatória6, desde que garantissem aos cidadãos o acesso à justiça. Contudo, apesar do contínuo acompanhamento das iniciativas adotadas nos Estados-Membros e dos estudos promovidos ao longo desse percurso, ultrapassados mais de 10 anos de sua edição foi rechaçada a proposta de revisão da Directiva 2008/52/CE. Embora, tenham havido inúmeras iniciativas dos Estados-Membros para que se divulgassem as vantagens de se utilizar a Mediação para resolver disputas e se estimular a sua adoção, o fato constatado nos Estudos solicitados pelo Parlamento Europeu para calcular o impacto da Directiva 2008/52/CE, realizados por Giuseppe De Palo, Ashley Feasley e Flavia Orecchini em 20117, demonstraram que sua utilização espontânea pelas pessoas envolvidas em conflitos pouco cresceu, não se alcançou o equilíbrio planejado8 e está muito longe de colocar-se como a opção mais considerada e utilizada pela sociedade ao enfrentar a resolução de um conflito. As explicações para justificar a baixa adesão espontânea e voluntária da utilização da mediação como a primeira iniciativa, ou como forma integrada a se buscar para a resolução de uma controvérsia, tem lugar na questão cultural, 5 Id. (19) A mediação não deverá ser considerada uma alternativa inferior ao processo judicial pelo facto de o cumprimento dos acordos resultantes da mediação depender da boa vontade das partes. 6 Id. Artigo 5.o ... 2. A presente directiva não afecta a legislação nacional que preveja o recurso obrigatório à mediação ou o sujeite a incentivos ou sanções, quer antes, quer depois do início do processo judicial, desde que tal legislação não impeça as partes de exercerem o seu direito de acesso ao sistema judicial. 7 Giuseppe De Palo, Ashley Feasley e Flavia Orecchini, Quantifying The Cost Of Not Using Mediation—A Data Analysis (2011), http://www.europarl.europa.eu/document/activities/cont/201105/20110518ATT19592/20110518ATT19592EN.pdf 8 Id. Artigo 1º. 1. O objectivo da presente directiva consiste em facilitar o acesso à resolução alternativa de litígios e em promover a resolução amigável de litígios, incentivando o recurso à mediação e assegurando uma relação equilibrada entre a mediação e o processo judicial.

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de que as pessoas interiorizaram que o processo natural seria o processo contencioso e judicial, notadamente na cultura ocidental. A rigor, a Mediação voluntária é um caminho que depende do impulso próprio e da iniciativa de manifestação e do acordo de vontades das partes envolvidas para aderir a esse caminho. Essa escolha, supostamente livre, que depende de uma iniciativa das partes envolvidas na disputa, nem de longe, tem sido a exercida na maioria dos casos, o que se constata pelo baixo número de casos que são submetidos espontaneamente à Mediação, em comparação com os casos que acessam diretamente a Justiça, por via do processo judicial, sem que antes tenham realizado qualquer tentativa de solução autocompositiva com auxílio de terceiro imparcial. Após pouco mais de três anos de vigência da Directiva 2008/52/CE, a proporção medida era de menos de 1 mediação voluntária a cada 1000 processos ajuizados9. Essa constatação de que são bastante modestos os números de mediações espontâneas e voluntárias, opt in, em contraste com o número de casos levados à justiça pública, nos diferentes países ocidentais, em que pese a compreensão dos diversos e patentes benefícios da solução por mediação, leva a uma natural frustração de não encontrar na difusão das vantagens deste mecanismo alternativo de resolução de disputas, estratégia eficaz para reduzir o número de processos judiciais, ou para apontar uma tendência de redução de ingressos de novos processos. E, por conseguinte, no modelo opt in, não tem proporcionado a economia nos custos de funcionamento da justiça e de aperfeiçoamento no tempo de solução dos processos judiciais. Portanto, o almejado efeito sócio-econômico de redução das demandas judiciais, seja na redução do ingresso de novos casos, seja na redução dos estoques da Justiça, que também se idealizava alcançar com a divulgação das vantagens de se utilizar o processo de mediação aliada à alternativa dos juízes encami-

9 “O Parlamento Europeu reexaminou a questão da falta de impacto da Diretiva da Mediação no final de 2012, quando a sua Comissão de Assuntos Jurídicos, durante uma audiência formal, perguntou verbalmente à Comissão Europeia se deveriam ser tomadas medidas legais contra os Estados -Membros por terem deixado de implementar de fato a Diretiva da Mediação de forma que pudesse atingir o seu manifesto objetivo. Três anos e meio após a sua edição e um ano e meio após o término do prazo para a sua implementação, a mediação ainda estava sendo usada em muito menos do que em 1 a cada 1.000 casos. A Comissão Europeia respondeu que, no final de 2012, ainda era muito cedo para avaliar o impacto da Diretiva da Mediação.”. Autor: Giuseppe De Palo. Tradução para o Português do Brasil: Carla Sabóia. Revisão de conteúdo da tradução: Marcelo Girade Corrêa “O Paradoxo da Mediação na UE” ao Longo dos Últimos Dez Anos – Quando uma Diretiva da UE Precisa Ser Mais... Diretiva”. www.europarl.europa.eu/supporting-analyses

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nharem os casos à mediação, não vem produzindo os resultados imaginados, ao menos quanto a este macro efeito. A compreensão de que a estratégia de difusão da informação sobre os benefícios da mediação para a sociedade, não é, por si só, suficientemente eficaz na alteração do comportamento das pessoas para refletir em uma efetiva mudança de cultura na resolução de disputas, porque, ainda fortemente calcada na ideia do processo contencioso e na solução heterocompositva do Estado-Juiz, nos permite perceber que essa estratégia não reune força bastante para alterar o comportamento do impulso habitual de se buscar o amparo pretendido para a equação de conflitos por meio do processo judicial, ignorando os aspectos racionais que apontariam o caminho da mediação como primeira e poderosa providência. De certo modo, o reconhecimento da insuficiência dessa estratégia, aliada à compreensão de provavelmente estar correta a tese de que: se a sociedade, de fato, aderisse largamente ao uso da mediação para a resolução de disputas, conseguiria alcançar os objetivos de abreviar grande parte das soluções; de trazer economia para as pessoas; também para todo o sistema; e, de alcançar maior satisfação na resolução dos problemas por se proporcionar o efeito win-win (ganha-ganha). Desta forma, diante de um cenário de tímida escolha voluntária pela mediação, justifica-se o prosseguimento de novas experiências para a consolidação de outras estratégias mais audaciosas, assertivas e consistentes no sentido de gerar o substancial crescimento do número de casos levados à Mediação e, assegurados padrões de qualidade no desenvolvimento do procedimento de mediação, por reflexo, proporcionar no espectro macro da medida, a redução significativa do número de casos levados à solução heterocompositiva, própria do processo judicial, além claro, no espectro micro do interesse das pessoas envolvidas, abreviar o tempo e proporcionar soluções de ganhos mútuos. Se o processo de transformação da cultura de uma sociedade tende, sem outros estímulos, a ser gradual e lento, frustrando as expectativas de representar transformações rápidas que atendam ao anseio de economia e justiça de uma sociedade, convencidos dos benefícios dessa alteração de cultura no comportamento sócio-jurídico das pessoas, há que se empreender novos esforços no sentido de se construir outras formas e estratégias de agilizar esta mudança. O presente e breve estudo pretende abordar e comparar o sistemas jurídicos de mediação obrigatória opt out adotados em três países: Itália, Argentina e Brasil. Nesta comparação, abordaremos as semelhanças e diferenças, as potenciais objeções e os reflexos que elas podem porporcionar para a mudança de cultura na solução de litígios em seus respectivos territórios.

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As variações dos Modelos de Mediação Voluntária e Obrigatória Os modelos de mediação voluntárias e obrigatórias10 identificados por Giuseppe De Palo e Leonardo D’Urso no estudo desenvolvido por solicitação do comitê de assuntos jurídicos do Parlamento Europeu, variam de mediação voluntária, sem sequer a exigência de legislação que a tutele, até um modelo que obrigue a realização e pagamento de um procedimento completo de mediação, sem contudo obrigar a que se chegue a um acordo, como requisito para que se possa desenvolver um processo judicial. Nessa concepção, os modelos são: • Mediação Voluntária Cheia: as partes livremente podem buscar o serviço de um mediador para auxiliá-las na resolução do conflito. Esta liberdade dispensa até a necessidade de lei reguladora. •

Mediação Voluntária Incentivada: a legislação e as políticas públicas estimulam, até mesmo com vantagens econômicas ou fiscais, que as pessoas possam se utilizar da mediação para resolver conflitos, regulando como poderá ser desenvolvido esse procedimento, com princípios regentes e imprimindo validade e segurança jurídica à mediação. Esta é uma típica opção opt in.

Sessão Inicial Obrigatória de Mediação, que denominamos também como Mediação Obrigatória Opt Out: a legislação torna obrigatório que as partes se submetam a uma reunião inicial de mediação, com a presença do mediador, sem nenhum custo ou mediante um pequeno custo, para que as partes possam conhecer com mais detalhes o que o procedimento de mediação pode representar para ajudá-las na resolução daquela disputa, podendo avaliar livremente se desejam ou não seguir no procedimento de mediação. Este é um típico modelo opt out, com entrada induzida pela lei e saída voluntária e de opção fácil manifestada por qualquer das partes.

Mediação Obrigatória Cheia: a legislação exige para que se possa ter acesso ao processo judicial, com exceção das medidas de urgência, que as partes busquem um serviço de mediação e arquem com os custos de um procedimento completo, exigindo o comparecimento mas sem obrigar a que firmem um acordo, preservando aqui a voluntariedade.

10 Giuseppe De Palo & Leonardo D’Urso, Achieving a Balanced Relationship between Mediation and Judicial Proceedings (2016), elaborado por solicitação do Comitê de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu e publicado pelo Departamento de Políticas de Direitos dos Cidadãos e Assuntos Constitucionais na compilação THE IMPLEMENTATION OF THE MEDIATION DIRECTIVE (29.11.2016)

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Ou seja, a mediação voluntária cheia e a mediação voluntária incentivada configuram a concepção opt in, implicando na necessidade de impulso próprio para o exercício de manifestação de vontade por entrar na mediação. Enquanto que o modelo de reunião inicial obrigatória que aqui também denominamos Mediação Obrigatória Opt Out estabelece a necessidade para quem pretende a resolução de uma disputa, de buscar, previamente, um serviço de mediação, e também se caracteriza pela obrigação das partes de comparecerem a uma reunião inicial, sob pena de sanções jurídicas e/ou econômicas, mas assegurando-lhes o direito de manifestarem, sem custo ou de baixo custo, que não desejam seguir no procedimento de mediação, ou seja, caracterizando o fácil acesso ao exercício da opção de sair, opt-out. O modelo de Mediação Obrigatória Cheia, apesar de conservar a liberdade da não realização do acordo, exige previamente a busca de um serviço de mediação, obrigando também ao comparecimento à mediação, sob consequencias jurídicas e/ ou econômicas. E, difere fundamentalmente do modelo de reunião inicial obrigatório, porque torna mais oneroso o exercício da vontade de sair, exigindo que assumam os custos integrais do procedimento de mediação completo. embora conserve a liberdade e o direito de não realizar o acordo. O modelo de Mediação Voluntária Cheia era o modelo sempre disponível às sociedades livres, pois prescindia da existência de qualquer legislação regente, situando-se no campo da liberdade de negociar, de contratar, de dispor dos seus próprios direitos. O modelo de Mediação Voluntária Incentivada foi o modelo estimulado pela Directiva 2008/52/CE e adotado, em geral, pelos Estados-Membros, mas que não gerou significativo aumento das mediações nem o almejado equilíbrio preconizado no artigo 1º da Directiva. O modelo de Mediação Obrigatória Opt Out, que exige a busca prévia pela mediação antes do ajuizamento da ação judicial e o comparecimento a uma Reunião Inicial Obrigatória foi admitido na Directiva 2008/52/CE, desde que assegurado o acesso à Justiça. Contudo, dos Estados-Membros da UE, apenas a Itália adotou esse modelo, destoando claramente dos resultados dos demais Estados integrantes da União Europeia, como veremos mais adiante. O modelo de Mediação Obrigatória Cheia é de discutível constitucionalidade, em qualquer ordem jurídica, por dificultar o acesso à Justiça, onerando com o custo integral de uma mediação, mesmo sem interesse das partes de se servirem deste procedimento. Ou seja, a opção de sair, é percebida como de acesso mais difícil. A lógica do modelo obrigatório opt out, de entrada obrigatória mas com saída facilitada, está assentada em uma simples inversão na forma de se exercitar a manifestação de vontade. Ao invés de esperar o Sim para entrar, já insere as pessoas indutivamente no sistema, e concebe, a partir do ato inicial, que é a reunião obrigatória, o livre e fácil exercício da opção do Não – “eu não quero continuar, desejo sair”. 209


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Esta inversão proporciona a oportunidade singular para que se tenha efetivo contato com a Mediação, viabilizando maior compreensão das vantagens que a autocomposição pode representar, qual seja, a de resolver com mais agilidade, eficiência, economia, controle do resultado e satisfação de interesses e necessidades, de modo a reposicionar a forma e o momento da manifestação livre de vontade, alterando a forma do optar entrar (opt in), pela forma do optar sair (opt out), e pelo momento, de assim o fazer, após conhecer em detalhes as características do processo de mediação. Portanto, sem afetar o direito e a liberdade de acesso ao processo judicial. Esta lógica opt out pode ter sido inspirada nas class actions dos Estados Unidos, nas quais as pessoas já estariam automaticamente representadas naquela ação, mas tem right to opt out, ou seja, o direito de se retirar da demada coletiva ou de não se beneficiar dela. Segundo o estudo11 The Rebooting Study, acerca da União Europeia, somente 4 países – Itália, Reino Unido, Holanda e Dinamarca – relataram a existência de mais de 10.000 casos levados à mediação. A maioria dos países (13) relatou menos de 500 casos ao ano. Somente um país registrou cerca de 200.000 casos levados por ano à mediação: a Itália. A Itália adotou o modelo de Mediação Obrigatória Opt Out – da Reunião Inicial Obrigatória, assim como a Argentina e mais recentemente o Brasil, com uma variação deste modelo, cujos destaques e comentários faremos mais adiante. A eficiência do modelo indutivo opt out não se observa somente na mediação ou nas class actions, mas também foi constatado por Eric J. Johnson e Daniel Goldstein12, por ocasião da pesquisa que realizaram sobre os programas de doação de orgãos na União Europeia. Na pesquisa, verificou-se as diferenças entre 11 Estados-Membros da União Europeia que à ocasião utilizavam sistemas de registro opt-in, ou, opt-out, para participação no programa de doação de órgãos, como manifestação exigida no processo de obtenção da carteira de habilitação. Nos Estados-Membros nos quais o processo continha a exigência de que se marcasse uma caixa para aderir à doação (opt-in), os percentuais de adesão variavam entre 4,25%, na Dinamarca, a 27,5%, na Holanda. Enquanto que nos Estados-Membros nos quais o processo apresentava uma caixa que deveria ser assinalada para recusar participar do programa de doação (opt-out), o percentual dos que não assinalavam 11 Giuseppe De Palo, Leonardo D’Urso, Mary Trevor, Bryan Branon, Romina Canessa, Beverly Cawyer e Reagan Florence, Rebooting The Mediation Directive: Assessing The Limited Impact Of Its Implementation And Proposing Legislative And Non-Legislative Measures To Increase The Number Of Mediations In The Eu (2013), http://www.europarl.europa.eu/thinktank/en/document.html?reference=IPOL-JURI ET(2014)493042 12 Eric J. Johnson & Daniel Goldstein, Do Defaults Save Lives?, 302 MED. POL’Y F. 1338 (2003), https://www.academia.edu/5104501/Save_default_save_life.

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a recusa a serem doadores, era na ordem de 99%, com a exceção da Suécia que registrou 85,9%.

Desta feita, em que pese a União Europeia ainda não ter revista a Directiva 52, para passar a adotar a Mediação Obrigatória Opt Out, como na experiência italiana, o fato é que os estudos realizados por encomenda do Parlamento Europeu, como já mencionado linhas acima, para o monitoramento da efetividade no aumento de Mediações e no equilíbrio desejado entre casos resolvidos por mediação e pelo processo judicial convencional, foi claro constatar que foi tímido o aumento do uso da mediação nos Estados-Membros, com exceção justamente da Itália. Aliás, o Parlamento Europeu aprovou a Resolução de 12 de setembro de 2017 sobre a implementação da Directiva 2008/52/EC do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2008, relativa a certos aspectos da mediação em matéria civil e comercial13, e dentre as preocupações observadas, reconheceu que os objetivos que visavam aumentar o uso da mediação e, promover uma “relação equilibrada entre a mediação e o processo judicial”, não foram alcançados, posto que a mediação é utilizada em menos de 1% dos processo judiciais, em média, na maioria dos Estados-Membros.

13 Disponível em http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P8-TA-2017-0321+0+DOC+XML+V0//EN&language=EN.

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Os Sistemas Jurídicos de Mediação Opt Out adotados pela Itália, Argentina e Brasil O ordenamento jurídico dos três países: Itália, Argentina e Brasil adotaram modelos de Mediação Opt Out, com grandes semelhanças e algumas diferenças importantes que merecem observação e comparação, o que trataremos no tópico seguinte.

Itália Na Itália, o modelo de mediação opt out que tornou obrigatória uma reunião inicial para tentativa de mediação antes do início do processo judicial, nas diversas matérias definidas na norma regente, como: locação, condomínio, ressarcimento de dano de responsabilidade médica, entre outras, foi introduzido pelo Decreto Legislativo 28, de 04 de março de 2010, que disciplinou a matéria prevista na Lei n. 69/2009, instituindo três tipos de mediação: a mediazione facoltativa, a mediazione concordata e a mediazione obbligatoria. Após mais de um ano de vigência, com muitos casos já submetidos à tentativa de Mediação, no modelo Opt Out e pré-processual (mediazione obbligatoria), a Corte Constitucional italiana invalidou partes do Decreto Legislativo 28, por entender exceder a delegação legislativa, notadamente na parte que tratava da mediazione obbligatoria. Em junho de 2013 foi editado o Decreto Legislativo 69, promovendo a alteração dos artigos do Decreto Legislativo 28 declarados inconstitucionais14, reintroduzindo a mediazione obbligatoria. Em 09 de agosto de 2013, o Decreto Legislativo 69/2013 foi convertido com modificações em Lei, pela Lei n. 98/2013.

14 AGGIORNAMENTO (3) La Corte Costituzionale, con sentenza 24 ottobre 2012 - 6 dicembre 2012, n. 272 (in G.U. 1a s.s. 12/12/2012, n. 49), ha dichiarato “l’illegittimita’ costituzionale dell’articolo 5, comma 1, del decreto legislativo 4 marzo 2010, n. 28 (Attuazione dell’articolo 60 della legge 18 giugno 2009, n. 69, in materia di mediazione finalizzata alla conciliazione delle controversie civili e commerciali)”. Ha inoltre dichiarato “in via consequenziale, ai sensi dell’art. 27 della legge 11 marzo 1953, n. 87 (Norme sulla costituzione e sul funzionamento della Corte costituzionale), l’illegittimita’ costituzionale: [...] b) dell’art. 5, comma 2, primo periodo, del detto decreto legislativo, limitatamente alle parole «Fermo quanto previsto dal comma 1 e», c) dell’art. 5, comma 4, del detto decreto legislativo, limitatamente alle parole «I commi 1 e»; d) dell’art. 5, comma 5 del detto decreto legislativo, limitatamente alle parole «Fermo quanto previsto dal comma 1 e»”

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Portanto, vige o art. 5º15 do Decreto Legislativo 28/2010, com as alterações introduzidas pelo Decreto Legislativo 69/2013 e pela Lei 98/2013, que prevê modelo de mediação obrigatória, opt out, como condizione di procedibilitá, e estabelece a necessidade de comparecimento obrigatório a uma reunião inicial de mediação. Assim, qualquer pessoa que deseje intentar uma ação judicial relacionada a uma disputa referente a condomínio, direitos reais, divisão, herança, acordos 15 Art. 5 Condizione di procedibilita’ e rapporti con il processo 1. Chi intende esercitare in giudizio un’azione relativa ad una controversia in materia di condominio, diritti reali, divisione, successioni ereditarie, patti di famiglia, locazione, comodato, affitto di aziende, risarcimento del danno derivante dalla circolazione di veicoli e natanti, da responsabilita’ medica e da diffamazione con il mezzo della stampa o con altro mezzo di pubblicita’, contratti assicurativi, bancari e finanziari, e’ tenuto preliminarmente a esperire il procedimento di mediazione ai sensi del presente decreto ovvero il procedimento di conciliazione previsto dal decreto legislativo 8 ottobre 2007, n. 179, ovvero il procedimento istituito in attuazione dell’articolo 128-bis del testo unico delle leggi in materia bancaria e creditizia di cui al decreto legislativo 1° settembre 1993, n. 385, e successive modificazioni, per le materie ivi regolate. L’esperimento del procedimento di mediazione e’ condizione di procedibilita’ della domanda giudiziale. L’improcedibilita’ deve essere eccepita dal convenuto, a pena di decadenza, o rilevata d’ufficio dal giudice, non oltre la prima udienza. Il giudice ove rilevi che la mediazione e’ gia’ iniziata, ma non si e’ conclusa, fissa la successiva udienza dopo la scadenza del termine di cui all’articolo 6. Allo stesso modo provvede quando la mediazione non e’ stata esperita, assegnando contestualmente alle parti il termine di quindici giorni per la presentazione della domanda di mediazione. Il presente comma non si applica alle azioni previste dagli articoli 37, 140 e 140-bis del codice del consumo di cui al decreto legislativo 6 settembre 2005, n. 206, e successive modificazioni. (3) 1-bis. Chi intende esercitare in giudizio un’azione relativa a una controversia in materia di condominio, diritti reali, divisione, successioni ereditarie, patti di famiglia, locazione, comodato, affitto di aziende, risarcimento del danno derivante da responsabilita’ medica e sanitaria e da diffamazione con il mezzo della stampa o con altro mezzo di pubblicita’, contratti assicurativi, bancari e finanziari, e’ tenuto, assistito dall’avvocato, preliminarmente a esperire il procedimento di mediazione ai sensi del presente decreto ovvero i procedimenti previsti dal decreto legislativo 8 ottobre 2007, n. 179, e dai rispettivi regolamenti di attuazione ovvero il procedimento istituito in attuazione dell’articolo 128-bis del testo unico delle leggi in materia bancaria e creditizia di cui al decreto legislativo 1° settembre 1993, n. 385, e successive modificazioni,((ovvero il procedimento istituito in attuazione dell’articolo 187-ter del Codice delle assicurazioni private di cui al decreto legislativo 7 settembre 2005, n. 209,)) per le materie ivi regolate. L’esperimento del procedimento di mediazione e’ condizione di procedibilita’ della domanda giudiziale. A decorrere dall’anno 2018, il Ministro della giustizia riferisce annualmente alle Camere sugli effetti prodotti e sui risultati conseguiti dall’applicazione delle disposizioni del presente comma. L’improcedibilita’ deve essere eccepita dal convenuto, a pena di decadenza, o rilevata d’ufficio dal giudice, non oltre la prima udienza. Il giudice ove rilevi che la mediazione e’ gia’ iniziata, ma non si e’ conclusa, fissa la successiva udienza dopo la scadenza del termine di cui all’articolo 6. Allo stesso modo provvede quando la mediazione non e’ stata esperita, assegnando contestualmente alle parti il termine di quindici giorni per la presentazione della domanda di mediazione. Il presente comma non si applica alle azioni previste dagli articoli 37, 140 e 140-bis del codice del consumo di cui al decreto legislativo 6 settembre 2005, n. 206, e successive modificazioni.(4) (6) ((8)) 2. Fermo quanto previsto dal comma 1-bis e salvo quanto disposto dai commi 3 e 4, il giudice, anche in sede di giudizio di appello, valutata la natura della causa, lo stato dell’istruzione e il comportamento delle parti, puo’ disporre l’esperimento del procedimento di mediazione; in tal caso, l’esperimento del procedimento di mediazione e’ condizione di procedibilita’ della domanda giudiziale anche in sede di appello. Il provvedimento di cui al periodo precedente e’ adottato prima dell’udienza di precisazione delle conclusioni ovvero, quando tale udienza non e’ prevista, prima della discussione della causa. Il giudice fissa la successiva udienza dopo la scadenza del termine di cui all’articolo 6 e, quando la mediazione non e’ gia’ stata avviata, assegna contestualmente alle parti il termine di quindici giorni per la presentazione della domanda di mediazione.(4) 2-bis. Quando l’esperimento del procedimento di mediazione e’ condizione di procedibilita’ della domanda giudiziale la condizione si considera avverata se il primo incontro dinanzi al mediatore si conclude senza l’accordo.(4) 3. Lo svolgimento della mediazione non preclude in ogni caso la concessione dei provvedimenti urgenti e cautelari, ne’ la trascrizione della domanda giudiziale. 4. I commi 1-bis e 2 non si applicano: a) nei procedimenti per ingiunzione, inclusa l’opposizione, fino alla pronuncia sulle istanze di concessione e sospensione della provvisoria esecuzione; b) nei procedimenti per convalida di licenza o sfratto, fino al mutamento del rito di cui all’articolo 667 del codice di procedura civile; c) nei procedimenti di consulenza tecnica preventiva ai fini della composizione della lite, di cui all’articolo 696-bis del codice di procedura civile; d) nei procedimenti possessori, fino alla pronuncia dei provvedimenti di cui all’articolo 703, terzo comma, del codice di procedura civile; e) nei procedimenti di opposizione o incidentali di cognizione relativi all’esecuzione forzata; f) nei procedimenti in camera di consiglio; g) nell’azione civile esercitata nel processo penale; (4) 5. Fermo quanto previsto dal comma 1-bis e salvo quanto disposto dai commi 3 e 4, se il contratto, lo statuto ovvero l’atto costitutivo dell’ente prevedono una clausola di mediazione o conciliazione e il tentativo non risulta esperito, il giudice o l’arbitro, su eccezione di parte, proposta nella prima difesa, assegna alle parti il termine di quindici giorni per la presentazione della domanda di mediazione e fissa la successiva udienza dopo la scadenza del termine di cui all’articolo 6. Allo stesso modo il giudice o l’arbitro fissa la successiva udienza quando la mediazione o il tentativo di conciliazione sono iniziati, ma non conclusi. La domanda e’ presentata davanti all’organismo indicato dalla clausola, se iscritto nel registro, ovvero, in mancanza, davanti ad un altro organismo iscritto, fermo il rispetto del criterio di cui all’articolo 4, comma 1. In ogni caso, le parti possono concordare, successivamente al contratto o allo statuto o all’atto costitutivo, l’individuazione di un diverso organismo iscritto.(4) 6. Dal momento della comunicazione alle altre parti, la domanda di mediazione produce sulla prescrizione gli effetti della domanda giudiziale. Dalla stessa data, la domanda di mediazione impedisce altresi’ la decadenza per una sola volta, ma se il tentativo fallisce la domanda giudiziale deve essere proposta entro il medesimo termine di decadenza, decorrente dal deposito del verbale di cui all’articolo 11 presso la segreteria dell’organismo. . ------------- AGGIORNAMENTO (4) Il D.L. 21 giugno 2013, n. 69, convertito con modificazioni dalla L. 9 agosto 2013, n. 98 ha disposto (con l’art. 84, comma 2) che “ Le disposizioni di cui al comma 1 si applicano decorsi trenta giorni dall’entrata in vigore della legge di conversione del presente decreto.” ------------- AGGIORNAMENTO (6) Il D.Lgs. 6 agosto 2015, n. 130 ha disposto (con l’art. 2, comma 1) che “Le disposizioni del presente decreto, concernenti l’attuazione del regolamento (UE) n. 524/2013 del Parlamento europeo e del Consiglio, del 21 maggio 2013, relativo alla risoluzione delle controversie online dei consumatori, si applicano a decorrere dal 9 gennaio 2016”. ------------- AGGIORNAMENTO (8) Il D.Lgs. 21 maggio 2018, n. 68 ha disposto (con l’art. 4, comma 7) che “Le disposizioni di cui agli articoli 1 e 2 del presente decreto legislativo trovano applicazione dal 1° ottobre 2018, conformemente a quanto previsto dalla direttiva (UE) 2018/411 del Parlamento europeo e del Consiglio, che modifica la direttiva (UE) 2016/97 per quanto riguarda la data di applicazione delle misure di recepimento degli Stati membri”.

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familiares, arrendamento, empréstimo, aluguel de empresas, indenização por danos decorrentes do movimento de veículos e embarcações, responsabilidade médica e difamação com a imprensa ou com outros meios de publicidade, seguros, contratos bancários e financeiros, deve realizar preliminarmente o procedimento de mediação nos termos do decreto. Outro aspecto que merece destaque nas disposições do Decreto Legislativo 28/2010 é a obrigação atribuída aos advogados16 de informarem a seus clientes sobre a possibilidade de utilizarem o procedimento de mediação e os casos em que é condição de procedibilidade, exigindo-se que assim o faça, inclusive por escrito. Merece destaque ainda que a responsabilidade pela realização das mediações foi atribuída a organismos privados ou públicos criados para essa finalidade, e que os mediadores que poderão ser profissionais de diversas áreas, inclusive advogados, serão credenciados pelas instituições e devem ser capacitados na forma definida na lei e regras complementares. O que é digno de observação é que após o Tribunal Constitucional italiano ter invalidado a regra original da Mediazione Obbligatoria prevista no texto original do Decreto Legislativo 28/2010, na nova regra trazida pelo Decreto-Legislativo 69/2013 e logo após ligeiramente alterada e convertida em lei, pela Lei 98/2013, alterou a configuração do modelo de Mediação Obrigatória Cheia, que exigia que se pagasse antecipadamente e passasse por um processo de mediação completo nos casos já mencionados. Ou seja, onerando e dificultando o direito de sair da mediação, para então transformar a Mediazione Obbligatoria italiana, de “cheia” para o modelo de Mediação Obrigatória Opt Out, que obriga a participar da primeira reunião com o mediador, sob pena de certas sanções, porém, viabiliza o fácil exercício da opção de sair, que poderá ser manifestado por qualquer das partes, pagando a taxa simbólica entre entre 40 e 80 Euros. A Itália desde então vem registrando a ordem de 150.000 mediações ao ano, isto apenas para os casos relacionados onde existe a obrigação de tentar a

16 Art. 4 ((3. All’atto del conferimento dell’incarico, l’avvocato e’ tenuto a informare l’assistito della possibilita’ di avvalersi del procedimento di mediazione disciplinato dal presente decreto e delle agevolazioni fiscali di cui agli articoli 17 e 20. L’avvocato informa altresi’ l’assistito dei casi in cui l’esperimento del procedimento di mediazione e’ condizione di procedibilita’ della domanda giudiziale. L’informazione deve essere fornita chiaramente e per iscritto. In caso di violazione degli obblighi di informazione, il contratto tra l’avvocato e l’assistito e’ annullabile. Il documento che contiene l’informazione e’ sottoscritto dall’assistito e deve essere allegato all’atto introduttivo dell’eventuale giudizio. Il giudice che verifica la mancata allegazione del documento, se non provvede ai sensi dell’articolo 5, comma 1-bis, informa la parte della facolta’ di chiedere la mediazione)). ((4))

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mediação prévia, ou seja, casos estes que representam menos de 10% dos tipos de processos cíveis do país17. E, segundo dados do Departamento de Estatística do Ministério da Justiça da Itália, apresentados por Giuseppe De Palo em seu trabalho intitulado “O Paradoxo da Mediação na UE ao Longo dos Últimos Dez Anos – Quando uma Diretiva da UE Precisa Ser Mais... Diretiva”18, taxa de acordo nas mediações realizadas no 1º semeste de 2018, varia entre 38 a 62%, a depender de qual tipo de entidade de mediação é responsável, entre Câmaras de Comércio, entidades privadas, associações profissionais e associações de advogados, sendo 38,1% a taxa de acordo obtida nas mediações realizadas nas associações de advogados, 47% nas câmaras de Comércio, 49,4% nas entidades privadas (as que realizam o maior número de mediações no país) e 62% em outras associações profissionais (as que realizam o menor número de mediações).

Argentina Na Argentina, a Mediação Obrigatória foi instituída pela Lei n.º 26.589, promulgada em 03 de maio de 2010 e regulamentada pelo Decreto Nacional 1.467/2011. Segundo a classificação de modelos propostas por Giuseppe De Palo, o modelo adotado pela Argentina foi o da Mediação Obrigatória Cheia, pois o articulo 1º diz: “ Se establece con carácter obligatorio la mediación previa a todo proceso judicial”, ou seja, não se limitando a obrigatoriedade ao comparecimento a uma reunião inicial, mas dando como caráter obrigatória a própria mediação. Também estabeleceu nos artigos 1º e 2º da Lei 26.589/201019 tratar-se de mediação obrigatória pré-processual como condição de procedibilidade.

17 Studi, analisi e ricerche della DG-Stat (“Studies, analyses, and investigations of DG-Stat”), MINISTÉRIO DA JUSTIÇA DA ITÁLIA, https://webstat.giustizia.it/_layoutsX15/start.aspx#/SitePages/ Stud i%20analisi%20e%20ricerche.aspx (último acesso em 1.4.2017). 18 “O Paradoxo da Mediação na UE” ao Longo dos Últimos Dez Anos – Quando uma Diretiva da UE Precisa Ser Mais... Diretiva”. Autor: Giuseppe De Palo. Tradução para o Português do Brasil: Carla Sabóia. Revisão de conteúdo da tradução: Marcelo Girade Corrêa. https://www.europarl.europa. eu/supporting-analyses 19 ARTICULO 1º — Objeto. Se establece con carácter obligatorio la mediación previa a todo proceso judicial, la que se regirá por las disposiciones de la presente ley. Este procedimiento promoverá la comunicación directa entre las partes para la solución extrajudicial de la controversia. ARTICULO 2º — Requisito de admisión de la demanda. Al promoverse demanda judicial deberá acompañarse acta expedida y firmada por el mediador interviniente.

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A regra geral estabelecida no art. 4º20 foi de todos os casos se submeterem à prévia mediação, com exceção daqueles listados no art. 5º21 e facultados nos casos do art. 6º22, todos dispositivos mencionados da lei regente. Embora tenha trazido o direito de liberdade e voluntariedade de participar da mediação, que poderia ser entendido como, opt out, ou seja, o direito de não ser obrigado a ficar na mediação está assegurado pelo princípio da liberdade e voluntariedade, previsto na letra b, do art. 7º da lei regente23, contudo este fato não exime, ao menos, do pagamento dos honorários básicos do mediador, se esse encerramento for logo no início da mediação ou dos honorários na forma convencionada pelas partes ou segundo as regras estabelecidas no Decreto 1.467/2011. Daí não se pode afirmar que a obrigação seja somente de comparecer e que a opção de sair não seja razoavelmente onerosa. Uma característica singular da lei argentina foi prever como exigência para ser mediador, que seja advogado com no mínimo 3 anos de experiência, além da capacitação específica e o cadastro no Registro Nacional de Mediadores. 20 ARTICULO 4º — Controversias comprendidas dentro del procedimiento de mediación prejudicial obligatoria. Quedan comprendidas dentro del procedimiento de mediación prejudicial obligatoria todo tipo de controversias, excepto las previstas en el artículo 5º de la presente ley. 21 ARTICULO 5º — Controversias excluidas del procedimiento de mediación prejudicial obligatoria. El procedimiento de mediación prejudicial obligatoria no será aplicable en los siguientes casos: a) Acciones penales; b) Acciones de separación personal y divorcio, nulidad de matrimonio, filiación, patria potestad y adopción, con excepción de las cuestiones patrimoniales derivadas de éstas. El juez deberá dividir los procesos, derivando la parte patrimonial al mediador; c) Causas en que el Estado nacional, las provincias, los municipios o la Ciudad Autónoma de Buenos Aires o sus entidades descentralizadas sean parte, salvo en el caso que medie autorización expresa y no se trate de ninguno de los supuestos a que se refiere el artículo 841 del Código Civil; d) Procesos de inhabilitación, de declaración de incapacidad y de rehabilitación; e) Amparos, hábeas corpus, hábeas data e interdictos; f) Medidas cautelares; g) Diligencias preliminares y prueba anticipada; h) Juicios sucesorios; i) Concursos preventivos y quiebras; j) Convocatoria a asamblea de copropietarios prevista por el artículo 10 de la ley 13.512; k) Conflictos de competencia de la justicia del trabajo; l) Procesos voluntarios. 22 ARTICULO 6º — Aplicación optativa del procedimiento de mediación prejudicial obligatoria. En los casos de ejecución y desalojos el procedimiento de mediación prejudicial obligatoria será optativo para el reclamante sin que el requerido pueda cuestionar la vía. 23 ARTICULO 7º — Principios que rigen el procedimiento de mediación prejudicial obligatoria. El procedimiento de mediación prejudicial obligatoria se ajustará a los siguientes principios: ... b) Libertad y voluntariedad de las partes en conflicto para participar en la mediación;

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A falta de qualquer das partes à mediação obrigatória enseja a aplicação de multa à parte ausente equivalente a 5% do soldo básico de um juiz nacional de 1ª instância. Apesar de se ter aqui uma mediação obrigatória cheia e opt out, com obrigação para todos os casos, salvo os excepcionados na lei, cuja opção de sair pressupõe o comparecimento obrigatório e um certo ônus, não se pode dizer que a experiência tenha encontrado resistência suficiente que impedisse a sua implantação e já alguns anos de vigência e efetiva aplicação. Aliás do que se pode observar de alguns dados da Dirección Nacional de Mediación y Métodos Participativos de Resolución de Conflictos del Ministerio de Justicia y Derechos Humanos divulgados em 2018, 51% dos casos de família submetidos à mediação alcançaram acordo24, isso em um modelo obrigatório cheio e pré-processual parece traduzir em um resultado bastante expressivo. E quando pesquisado sobre a percepção das partes envolvidas nas disputas após concluídas a mediação, “El 83 por ciento de las personas manifestaron que el proceso “contribuyó a transformar positivamente el vínculo” con la otra parte, independientemente del resultado de la mediación.”25 E ainda segundo as estatísticas da Dirección de Mediación observa-se um elevado nível de desjudicialização, na ordem de “el 65% de las mediaciones familiares y patrimoniales finalizadas no derivaron en acciones judiciales.”26 E outro dado relevante apontado nas estatísticas divulgadas é “una reducción en los tiempos de la resolución de conflictos a través de la mediación. Tienen una duración promedio de 80 dias en conflictos patrimoniales y 60 dias en familiares, mientras que a través de la judicialización los conflictos tardan entre 3 y 4 años en resolverse”27. O relatório aludido também trata sobre deficiências do sistema, como a dificuldade para garantir e assegurar a dedicação exclusiva dos profissionais, e o trabalho solitário dos mediadores com naturais dificuldades para rever e evoluir a prática de sua atuação.~ Por fim, destaca que os planos de expansão dos Métodos Alternativos de Resolução de Conflitos é um dos eixos do “Programa Justicia 2020”, conclui dizendo que “Las estadisticas están demonstrando el efecto transformador de la mediación, que excede la suscripción de un acuerdo: replanteo del conflicto, reduc-

24 https://www.argentina.gob.ar/noticias/se-llega-un-acuerdo-en-el-51-de-las-mediaciones-familiares 25 Id. 26 Id. 27 Id.

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ción de los niveles de conflictividad, visualización más realista de las posibilidades de sus reclamos”.28

Brasil No Brasil, a Mediação Opt Out foi introduzida pela Lei 13.105/2015, que instituiu o novo código de processo civil, e confirmada e ampliada pela Lei de Mediação n.º 13.140/2015. A característica da lei brasileira foi a de não estabelecer a obrigatoriedade de uma mediação pré-processual, mas sim a de prever a mediação obrigatória opt out endoprocessual, ou seja, quando já apresentada a ação perante o Poder Judiciário e como primeira providência dentro do processo judicial, antes do exercício do contraditório pelo requerido29, designando logo no início do processo uma audiência obrigatória de mediação ou conciliação30, onde será exigida a presença das partes e de um mediador ou conciliador que atuará de forma independente ao juiz. Essa singularidade do modelo brasileiro faz com que ele não se enquadre em nenhuma das classificações de modelos sugeridas no estudo feito no âmbito da União Europeia, por Giuseppe De Palo, como já mencionado neste ensaio, pois todos os modelos apresentados referiam-se à mediação antes do ajuizamento da ação judicial. E, na verdade, no desenho dos modelos propostos, todos se localizam antes do ajuizamento da ação, porque a pretensão é confessadamente de evitar a judicialização, ao auxiliar na resolução da disputa antes mesmo do ingresso da demanda na Justiça. O legislador brasileiro preferiu dedicar o esforço para promover a solução autocompositiva, não antes do ajuizamento, mas imediatamente após este ajuizamento, quando verificados preenchidos os pressupostos para o curso da ação, o juiz identificando tratar-se de caso de direito disponível ou transacionável, designará uma audiência de conciliação ou mediação, estabelecendo a lei que essa tentativa se traduz de presença obrigatória para as partes e deve ser

28 Id. 29 Art. 335. O réu poderá oferecer contestação, por petição, no prazo de 15 (quinze) dias, cujo termo inicial será a data: I - da audiência de conciliação ou de mediação, ou da última sessão de conciliação, quando qualquer parte não comparecer ou, comparecendo, não houver autocomposição; 30 Art. 334. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.

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realizada logo no início do processo e antes do requerido exercer seu direito de contestação. A lei brasileira deu obrigatoriedade a realização desta audiência, contudo, previu a hipótese de seu cancelamento, se todas as partes, unânime e previamente, manifestarem por escrito pelo desinteresse na autocomposição. Em regra geral, todos os casos de direitos disponíveis ou transacionáveis31 devem ser remetidos à mediação obrigatória opt out. Embora a lei brasileira preveja a mediação “obrigatória” dentro do processo judicial, como etapa inicial, admite também que ela possa ser tentada a qualquer tempo do processo32, e que ela poderá ser realizada por mediadores judiciais designados pelo Juiz ou escolhidos pelas partes, inclusive por Mediadores não cadastrados pelo Tribunal, inclusive, por instituições privadas33 e ainda inclusive fora do ambiente da Justiça34, suspendendo o processo judicial nessa situação. A ausência à audiência de conciliação ou mediação será considerado como ato atentório à dignidade da justiça35. E, a parte ausente, qualquer delas, poderá ser apenada com uma multa de até 2% sobre o valor em disputa. O caráter obrigatório do comparecimento, embora não tenha sido objetivamente expresso na lei brasileira, decorre da previsão legal de designação de 31 Lei 13.140/2015 Art. 3º Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação. § 1º A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele. § 2º O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público. 32 Art. 139... V - promover, a qualquer tempo, a autocomposição, preferencialmente com auxílio de conciliadores e mediadores judiciais; 33 Art. 168. As partes podem escolher, de comum acordo, o conciliador, o mediador ou a câmara privada de conciliação e de mediação. § 1º O conciliador ou mediador escolhido pelas partes poderá ou não estar cadastrado no tribunal. § 2º Inexistindo acordo quanto à escolha do mediador ou conciliador, haverá distribuição entre aqueles cadastrados no registro do tribunal, observada a respectiva formação. § 3º Sempre que recomendável, haverá a designação de mais de um mediador ou conciliador. 34 Art. 16. Ainda que haja processo arbitral ou judicial em curso, as partes poderão submeter-se à mediação, hipótese em que requererão ao juiz ou árbitro a suspensão do processo por prazo suficiente para a solução consensual do litígio. 35 Art. 334... § 8º O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado.

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audiência e sobre as únicas hipóteses de cancelamento do ato, somente quando o caso não for passível de mediação ou se todas as partes, unanimemente, manifestarem em prazo assinado na lei pelo desinteresse na realização da audiência de conciliação ou mediação, bastando qualquer das partes concordar ou silenciar36, que se presumirá como anuindo com a realização da audiência. E, também por considerar a ausência como ato atentatório à dignidade da justiça, apenando-o economicamente, como já comentado linhas acima. Outra característica relevante da lei brasileira foi atribuir ao Estado o dever de promover a solução consensual dos conflitos, e estender este dever aos profissionais, atribuindo a todos os profissionais do Direito que atuam no processo: juiz, defensor público, membro do ministério público e advogados,37 o dever de estimular a solução por conciliação, mediação ou outro método consensual. Quando a lei brasileira diz acerca do dever dos profissionais de estimular a conciliação, a mediação e outros métodos consensuais, alerta que este deve ser exercido “inclusive no curso do processo judicial”, o que permite inferir que se trata de um dever dentro e fora do processo judicial, cabendo portanto aos advogados estimularem o uso da conciliação e mediação também antes do ajuizamento das ações, por meio das mediações extrajudiciais pré-processuais.

36 Art. 334... § 4º A audiência não será realizada: I - se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual; II - quando não se admitir a autocomposição. § 5º O autor deverá indicar, na petição inicial, seu desinteresse na autocomposição, e o réu deverá fazê-lo, por petição, apresentada com 10 (dez) dias de antecedência, contados da data da audiência. § 6º Havendo litisconsórcio, o desinteresse na realização da audiência deve ser manifestado por todos os litisconsortes. 37 Art. 3º Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei. § 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

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A regra brasileira considera o Mediador como um Auxiliar da Justiça38, e exige que para ser Mediador Judicial39, a pessoa tenha capacidade civil, e formação de nível superior completa há pelo menos 2 anos, em qualquer área de formação, além de ser capacitado em curso de mediação que cumpra as exigências de conteúdo e carga horária expressas na lei e normas complementares e que seja oferecido pelos tribunais ou por instituições credenciadas. A lei 13.140/2015 também disciplinou a mediação extrajudicial, de caráter voluntário, contudo prevendo que se as partes estabelecerem cláusula compromissória que as remeta a uma mediação extrajudicial em caso de controvérsia e que condicione que a disputa contenciosa só poderá avançar quando implementada a tentativa da solução por mediação extrajudicial, neste caso, a lei criou o vínculo para que os juízes ou árbitros observem essa cláusula e suspendam o processo até que a mediação seja realizada, caso a parte não o tenha observado, e tenha ingressando diretamente em juízo ou na arbitragem. A experiência brasileira é pois um pouco distinta e mais recente em relação a Argentina e a Itália. Os números da Justiça no Brasil40 também são impactantes, como o número de processos no estoque da Justiça. Em 2018, ingressaram 28,1 milhões de processos novos e a Justiça finalizou o ano com o estoque de 78,7 milhões de processos, o que permite inferir que tramitaram 106,8 milhões de processos durante o ano de 2018. Pela primeira vez, na série histórica, conseguiu promover uma redução, diminuindo o número de processos de seu estoque em aproximadamente 1 milhão. O tempo médio de solução dos processos é de pouco mais de 8 anos, os custos orçamentários do Poder Judiciário do ano de 2018 foram na ordem de aproximadamente 94 bilhões de reais41. 38 Art. 149. São auxiliares da Justiça, além de outros cujas atribuições sejam determinadas pelas normas de organização judiciária, o escrivão, o chefe de secretaria, o oficial de justiça, o perito, o depositário, o administrador, o intérprete, o tradutor, o mediador, o conciliador judicial, o partidor, o distribuidor, o contabilista e o regulador de avarias. 39 Lei 13.140/2015 Art. 11. Poderá atuar como mediador judicial a pessoa capaz, graduada há pelo menos dois anos em curso de ensino superior de instituição reconhecida pelo Ministério da Educação e que tenha obtido capacitação em escola ou instituição de formação de mediadores, reconhecida pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM ou pelos tribunais, observados os requisitos mínimos estabelecidos pelo Conselho Nacional de Justiça em conjunto com o Ministério da Justiça. 40 15ª edição. Relatório Justiça em Números, 2019. CNJ - Conselho Nacional de Justiça. https:// www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919. pdf 41 Id.

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O índice de conciliação é medido pelo percentual de sentenças judiciais homologatórias de acordos sobre o total de sentenças judiciais e decisões terminativas emitidas no ano, e relativo ao ano de 2018 foi de 11,5%. O número de sentenças e decisões terminativas emitidas em 2018 foi 32 milhões, significa dizer que destas 11,5%, ou seja, 3.680.000 (três milhões, seiscentos e oitenta mil) casos foram resolvidos por acordos celebrados nas conciliações ou mediações realizadas ou por reflexos desse movimento de estímulo à autocomposição.42 Enquanto os estudos europeus, apontam que os Estados-Membros da União Europeia, com exceção da Itália, só conseguem resolver por mediação, menos de 1% dos casos levados à jurisdição do Poder Judiciário. Os dados oficiais no Brasil apontam para 11,5% de casos levados ao Poder Judiciário resolvidos por mediação ou conciliação, apontando que embora se possa melhorar ainda muito esse número no Brasil, já registra resultado relevante, resolvendo só no ano de 2018 mais de 3,6 milhões de disputas por acordo celebrado. Mas, o modelo brasileiro também guarda características que merecem reflexão quanto a pontos que possam ser entendidos negativos ou que causam preocupação. Por um lado, o modelo brasileiro traz dificuldades adicionais, como: •

não promover a redução do ingresso de processos na Justiça, embora acelere a resolução dos mesmos, a mediação pré-processual segue o modelo de voluntária cheia.

Atrai para o próprio Poder Judiciário o encargo de organizar o funcionamento da mediação, incluindo novas atribuições ao Juiz e às serventias judiciais, sobrecarregando um sistema já muito acumulado.

Atrai para os cofres públicos o pesado encargo econômico das medidas estruturais necessárias para a implantação e gestão do sistema de mediação.

Atrai para o encargo do Poder Judiciário a formação, capacitação, treinamento, aperfeiçoamento e supervisão dos mediadores conciliadores, embora possa credenciar instituições privadas para esse fim também, assumindo função diversa da sua finalidade, sobrecarregando ainda mais sua gestão.

Enfrenta sobrecarga de novas audiências que exigem espaços físicos, estruturas e recursos materiais e humanos de toda ordem.

Enfrenta fila para o agendamento de audiências pela sobrecarga de casos obrigatórios para a mediação desproporcionais as suas condições de material humano, mediadores, conciliadores e serventuários e as dificuldades de tempo nas agendas e espaço nas salas de mediação.

42 Id.

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O excesso de demanda para mediação e a desproporção de sua estrutura apontam para o estrangulamento do tempo disponibilizado para cada sessão de mediação, a demora irrazoável na designação de audiências iniciais ou de continuidade das mediações, desapego ao tempo ideal de maturação para o desenvolvimento do procedimento de mediação e consequente perda da qualidade e da eficiência da mediação. Por outro lado, o modelo brasileiro tem aspectos muito positivos:

Não inibe nem dificulta o livre acesso à Justiça.

Não enseja qualquer discussão de constitucionalidade.

Suaviza objeções ao aspecto de obrigatoriedade de participação da reunião de mediação.

Reduz o tempo de processo com as soluções obtidas nas mediações.

Reduz o custo dos processos nos casos onde se obteve a mediação.

A ampliação do uso eficiente da mediação pode contribuir para reduzir o estoque da Justiça.

Mantém o controle e a gestão da mediação.

Viabiliza exercer um maior controle de qualidade das mediações e do treinamento dos profissionais para o aperfeiçoamento de suas práticas.

Fomenta uma gradual inserção da cultura da mediação, sem choques transformadores.

Aproveita o prestígio da Justiça estatal para promover a convivência com os meios consensuais de resolução de disputas

Permite a parceria com a iniciativa privada, com instituições privadas especializadas que poderão participar da formação de mediadores.

Permite a parceria com a iniciativa privada, com instituições especializadas para a realização da mediação fora do âmbido do Poder Judiciário, minimizando seus impactos estruturais e econômicos. Registre-se que embora autorizado na lei brasileira, ainda é inicipiente o credenciamento de instituições privadas e a distribuição de casos para serem realizados por essas instituições.

Permite a parceria com profisisonais independentes, mediadores que poderão realizar mediações fora do âmbito do Poder Judiciário. Registre-se que embora autorizado na lei brasileira, é quase inexistente o cadastramento de mediadores privados e a distribuição de casos para a realização fora do ambiente da Justiça.

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Mediação Obrigatória Opt Out na Itália, Argentina e Brasil Asdrubal Júnior

Sintese comparativa No quadro abaixo, destacamos os pontos de semelhança e de diferenças entre os modelos adotados na Itália, Argentina e Brasil. Itália

Argentina

Brasil

Mediação Obrigatória

Mediação Obrigatória Cheia – Opt Out

Mediação Obrigatória Opt Out

Opt Out

pré processual

endoprocessual

Lei 26.589/2010

Lei 13.105/2015 – Código de Processo Civil

Lei regente

Decreto Legislativo 28/2010 alterado pelo Decreto Legislativo 69/2013 e Lei 98/2013

Momento que se exige

Pré-processual, condição de procedibilidade para o processo judicial

Pré-Processual, condição de procedibilidade para o processo judicial

Endoprocessual, 1ª etapa do processo judicial

Obrigatoriedade

Sim, obrigatoriedade de tentativa

Sim, obrigatoriedade de tentativa

Sim, obrigatoriedade de tentativa

Elemento comparativo

pré processual

Decreto Nacional 1.467/2011

Sim, obrigatório comparecer, mas pode optar por sair.

Opt Out Voluntariedade

Sim, obrigatório comparecer mas pode optar por sair.

Sim, obrigatório comparecer, mas pode optar por sair

condomínio, direitos reais, divisão, herança, acordos familiares, arrendamento, empréstimo, aluguel de empresas, indenização por danos decorrentes do movimento de veículos e embarcações, responsabilidade médica e difamação com a imprensa ou com outros meios de publicidade, seguros, contratos bancários e financeiros

Todos os casos, com exceção dos previstos no art. 5º da Lei 26.589/2010

Liberdade

Hipóteses que se exige a mediação opt out

Responsável pela Mediação

Lei n. 13.140/2015

Entidades privadas ou públicas: câmaras de comércio, entidades privadas, associações de advogados, associações profissionais, que contarão com mediadores capacitados

Mediadores que são advogados com ao menos 3 anos de formação, inscritos na Lista Nacional de Mediadores, devidamente capacitados para Mediação

A manifestação prévia e unânime das partes pelo desinteresse na composição pode cancelar a audiência

Todos os casos de direito disponível ou transacionável

Mediadores Judiciais que podem ser profissionais de nível superior completo de qualquer área, com pelo menos 2 anos de formação, devidamente capacitados para a Mediação, cadastrados ou não nos Tribunais, escolhidos pelas partes ou designados pelo Juiz. Mediadores Extrajudiciais escolhidos pelas partes ou Câmaras privadas de Conciliação ou Mediação

Fora da Justiça Pública. Local

Fora da Justiça Pública, no local das entidades responsáveis pela mediação

Nos escritórios de Mediação mantidos pelos Advogados inscritos no Registro Nacional de Mediadores

As partes devem estar assistidas por advogados. Participação de Advogados

Consequencias do não comparecimento

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Os advogados tem o dever de informar aos clientes, inclusive por escrito, sobre a possibilidade de Mediação e nos casos em que a Mediação é condição de procedibilidade, sob pena de anulação do contrato de honorários

As partes devem estar assistidas por Advogados

do autor, não atendimento da condição de procedibilidade.

do autor, não atendimento da condição de procedibilidade

De qualquer das partes, assumir a responsabilidade pelas custas do processo judicial

Qualquer das partes que não comparecer fica sujeita a multa de 5% do saldo básico de um juiz nacional de 1ª instância

Dentro da Justiça, nos CEJUSCs Ou fora da Justiça, nas Câmaras Privadas ou nos escritórios dos Mediadores

As partes devem estar assistidas por Advogados, exceção aos casos previstos na Lei dos Juizados Especiais. Os advogados tem o dever de estimular o uso da conciliação, mediação e outros métodos de solução consensual De qualquer das partes, será considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será aplicada Multa equivalente a 2% do valor em discussão


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Uma breve análise sobre as comparações diretas dos sistemas jurídicos de mediação opt out adotados na Itália, na Argentina e no Brasil, podemos dizer que em todos esses países se tratam de experiências relativamente recentes e portanto ainda não é possível inferir que se tenha estabelecido uma efetiva mudança de cultura na resolução de disputas. Também, há que se dizer que em todos os três países enfrentou-se resistências internas formulados por diferentes setores, notadamente, dos próprios advogados. As entrevistas trabalhadas nos programas do Canal Momento Arbitragem já apontadas linhas acima, em inúmeras passagens relatam informações sobre algum desconforto e objeção por parte dos advogados, porém tambem com a informação que os modelos seguem sendo aplicados e pouco a pouco vai vencendo as objeções e gerando resultados gerais que justificaram a iniciativa de se estabelecer um modelo opt out. Há também que se dizer que os números de realização de mediações cresceram substancialmente em relação ao período anterior à adoção do modelo opt out, com taxa de acordo em percentuais positivos que demonstram a assertividade da mediação como meio de resolução de disputas. Na Itália já houve o enfrentamento da discussão de constitucionalidade, e tendo a primeira versão legislativa invalidada, com a edição de nova legislação com alteração do modelo de mediação obrigatória cheia para mediação obrigatória opt out. E de lá pra cá, vige no país sem que qualquer inconstitucionalidade fosse declarada. Na Argentina, os advogados prestigiados pelo modelo que concebeu a missão de mediador exclusivamente aos profissionais da advocacia, viabilizando que os escritórios cujos advogados tenham sido capacitados e credenciados na lista nacional de mediadores pudessem inserir estruturas físicas adequadas para o atendimento da demanda à mediação. Já tendo incorporado ao dia a dia dos advogados, a compreensão e o hábito de utilização da mediação pré-processual obrigatória. No Brasil, a mais jovem dessas três experiências internacionais, o modelo adotado reuniu características tanto da Itália, quanto da Argentina, como por exemplo, utilizando Mediadores independentes, inseridos em um Cadastro Nacional, como também a ideia realizada na Itália, de permitir as instituições privadas de empreenderem sobre a Mediação. E adicionando, a condição de Mediadores Judiciais que atuam vinculados ao próprio Poder Judiciário. De outro modo, o Brasil procurou evitar as objeções de ordem constitucional, por não estabelecer um modelo de condição de procedibilidade pré-processual, eis que estabeleceu a mediação obrigatória opt out após o ajuizamento da ação perante o Poder Judiciário, já dentro do processo judicial, debelando

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assim qualquer discussão de que a Mediação estivesse por cercear o acesso à Justiça. Contudo, se por um lado, minimizou os riscos de um debate de constitucionalidade da sua regra, por outro, há que se dizer que trouxe para si a responsabilidade de implantação, o ônus econômico e gerencial, as dificuldades estruturais de recursos materiais, humanos, físicos, de formação e de administração do tempo e dos espaços necessários para a boa realização da mediação, colocando em risco, de que sua ineficiência ou incapacidade financeira ou gerencial possa comprometer a eficiência da mediação. De todo modo, a legislação brasileira permitiu a integração e parceria do Poder Judiciário com a iniciativa privada, com a utilização de instituições privadas e profissionais independentes, como câmaras privadas e mediadores independentes para realizar parte da demanda da própria mediação judicial. Porém, essa opção ainda se encontra pouco explorada, em fase inicial de integração e parceria, com poucos casos distribuídos à iniciativa privada, e assim incipiente e carente de ampliação e implantação em grande parte do país. Nos três países, como era de se esperar, o número de mediações aumentou substancialmente, após a adoção do modelo obrigatório opt out, aumentando também a quantidade de casos resolvidos por acordo. A mediação obrigatória pode representar percentualmente taxas de acordo ligeiramente inferiores aquelas colhidas em mediações voluntárias. Pois quem exerce a opção de entrar, em geral, está mais tendencioso a se esforçar pela composição do conflito, do que aqueles que foram para a mediação não porque exercitaram a vontade de ir, mas porque o sistema já o inseriu no contexto de estar numa mediação e, assim, aceitaram tentar e resolveram não sair dela, mas contudo, nem sempre estão igualmente inclinados a se esforçarem com o mesmo empenho pela solução autocompositiva, como procede aqueles que tiveram a iniciativa de buscar o caminho da mediação. Entretanto, como são expressivamente mais numerosos os casos de mediação obrigatória opt out, do que mediação voluntária opt in, justifica integralmente a realização desse método indutivo que inverte a manifestação de vontade de ter que dizer: sim, eu quero entrar; para precisar dizer: não, eu quero sair. Entretanto, no registro colhido na sensibilidade dos entrevistados, à luz de suas percepções, os números de acordos e a taxa de acordos celebrados revela o acerto da escolha, mostrando que justifica-se seguir com esses caminhos, buscando ajustes pontuais para seus aperfeiçoamentos. Se a mediação também é forma de Justiça, sendo o mediador um auxiliar da justiça como denomina a lei brasileira, remeter as partes inicialmente para uma tentativa de solução consensual, assegurando-lhes o direito de sairem desta

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tentativa quando desejarem, não se estará ferindo qualquer princípio fundamental de garantia de acesso à Justiça. Se a Justiça é o produto pretendido, e o processo não é sinônimo de Justiça, mas meio para sua obtenção. Se outros meios legítimos são apresentados, inclusive, com a possibilidade de acesso mais breve ao produto Justiça, através de um processo de mediação, prévio ao processo judicial ou no início do processo judicial, então não se pode afirmar que a mediação opt out represente qualquer obstáculo à Justiça. A oferta de outro meio mais célere e sumário que poderá igualmente proporcionar o acesso ao valor Justiça, e cujo percurso, não se está obrigando realizar, mas conduzindo-o inicialmente a entrada desse caminho, sinalizando claramente que poderá tentar, ou não, percorrer esse caminho colaborativo e mais curto, e se decidirem tentar, ainda assim saberão que a qualquer tempo poderão desistir e sair quando desejarem para seguirem pelo caminho contencioso do processo judicial. Os três sistemas comparados mostram pontos de semelhança e diferenças, todos se destacam por algum aspecto, mas fundamentalmente todos conservam a ideia da liberdade e voluntariedade, porém concebem a lógica inteligente de saber que levar as pessoas a conhecer com mais detalhes o caminho da mediação pode ser determinante para que estas optem por não sair deste caminho, que queiram seguir em frente no caminho colaborativo e assim se esforcem na construção de uma solução consensual. E que a prática bem sucedida da exploração desta informação, fazendo ver tratar-se de percurso natural poderá representar a multiplicação do uso desse caminho, proporcionando melhores e mais breves resultados para as pessoas em conflito, contribuindo para acelerar o processo de transformação da cultura, por dar ao caminho, a aura de caminho natural, por exercitar novos e bons hábitos, na valorização do diálogo, no restabelecimento da comunicação e por contribuir para a compreensão de que nós podemos, e até devemos, chamarmos para nós mesmos, a responsabilidade de construir boas soluções para os nossos próprios problemas.

Referências BEER, Veronica. O avanço da mediação na Itália. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4049, 2 ago. 2014. Disponível em: https://jus. com.br/artigos/30577. Acesso em: 15 jan. 2020. CACHAPUZ, Maria Cláudia Mércio. CARELLO, Clarissa Pereira. O direito chinês e a mediação: como o Brasil chegará lá?. Revista de formas consensuais de

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Mediação Obrigatória Opt Out na Itália, Argentina e Brasil Asdrubal Júnior

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TÍTULO Direito Comparado Plural COORDENAÇÃO Ricardo Alexandre Sousa da Cunha EDIÇÃO Escola de Direito da Universidade do Minho (EDUM) Centro de Investigação em Justiça e Governação (JUSGOV) AUTORES Afonso Carvalho de Oliva | Asdrubal Júnior | Daniel Gomes de Souza Ramos | Fernanda Karoline Oliveira Calixto João Vilas Boas Pinto | Murilo Strätz | Ricardo Sousa da Cunha | Rui Carlos Sloboda Bittencourt | Ulisses da Silveira Job DATA Janeiro de 2021 ISBN 978-989-54587-7-6


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