Direito na Lusofonia. Direito e Novas Tecnologias, Vol. 2

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DIREITO NA LUSOFONIA Direito e novas tecnologias Vol. 2

EDUM Escola de Direito da Universidade do Minho JUSGOV Centro de Investigação em Justiça e Governação

Julho 2019



FICHA TÉCNICA

TÍTULO

Direito na Lusofonia. Direito e novas tecnologias. Vol. 2

COORDENADORES Clara Calheiros Mário Ferreira Monte Maria Assunção Pereira Anabela Gonçalves

REVISÃO Isa Meireles

DATA DE PUBLICAÇÃO Julho de 2019

EDIÇÃO

Escola de Direito da Universidade do Minho Centro de Investigação em Justiça e Governação (Jusgov)

PAGINAÇÃO E DESIGN DE CAPA Pedro Rito

ISBN

978-989-54194-8-7

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ÍNDICE

NOTA DE APRESENTAÇÃO vii A UNIVERSALIDADE DOS DIREITO FUNDAMENTAIS NA ERA DIGITAL: ENTRE A UTOPIA E A REALIDADE Benfeito Mosso Ramos

1 A PALAVRA FALADA, A PALAVRA ESCRITA E A PALAVRA DIGITAL – DESCONTINUIDADES DISCURSIVAS E ALTERAÇÃO DOS CÂNONES JURÍDICO-PENAIS Flávia Noversa Loureiro

11 BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS: O CONFLITO JURÍDICO ENTRE O DIREITO À PRIVACIDADE E À INFORMAÇÃO Gina Vidal Marcílio Pompeu, Inês Mota Randal Pompeu

19 TESTOR - A SIMPLIFICAÇÃO E A PRODUÇÃO DA PROVA EM PROCESSO CIVIL

Irene Portela

35 O FINANCIAMENTO DE SOCIEDADES COMERCIAIS E AS NOVAS TECNOLOGIAS: OPORTUNIDADES E DESAFIOS João Nuno Barros

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O “SHARENTING”: UMA DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DA INTIMIDADE DOS FILHOS MENORES

Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

55 O ALICIAMENTO DE MENORES PARA FINS SEXUAIS: DA CRIMINOLOGIA AO CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS Pedro Miguel Freitas

81 AS PLATAFORMAS DE CROWDFUNDING E O FINANCIAMENTO DE PROJETOS CULTURAIS Suzana Fernandes da Costa

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NOTA DE APRESENTAÇÃO Direito na Lusofonia. Direito e Novas Tecnologias, Vol. 2 Em 2018, decorreu na Escola de Direito da Universidade do Minho a quinta edição do Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, subordinado ao tema Direito e Novas Tecnologias. Na altura, foi publicado o livro de atas do Congresso que juntava os trabalhos que tinham sido enviados até à data estabelecida pela Comissão Organizadora para o efeito. Todavia, após a realização do Congresso vários participantes enviaram os seus trabalhos, que a Comissão Organizadora resolve agora publicar neste segundo volume. Este segundo volume, correspondendo ainda às atas do Congresso, testemunha a vitalidade e o crescente interesse que o Congresso Internacional de Direito na Lusofonia continua a gerar junto de académicos, magistrados, advogados, representantes políticos nacionais e estrangeiros de diversos países lusófonos. Nele são discutidas ainda as questões relacionadas com os direitos fundamentais no mundo digital, os novos desafios que a tecnologia coloca ao Direito, a tecnologia ao serviço do Direito como meio de Justiça, e as tecnologias no âmbito da governação e da democracia. É com elevado sentido de missão e empenho no projeto de criação e desenvolvimento de uma rede de investigação em Direito que envolva os países lusófonos que publicamos este segundo livro de atas, reiterando os agradecimentos feitos no prefácio do primeiro volume. A Comissão Organizadora, Maria Clara Calheiros Mário Monte Maria da Assunção Vale Pereira Anabela Gonçalves

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A UNIVERSALIDADE DOS DIREITO FUNDAMENTAIS NA ERA DIGITAL: ENTRE A UTOPIA E A REALIDADE Benfeito Mosso Ramos

Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça de Cabo Verde

1. Introdução Gostaria de exprimir o quão agradecido e honrado me sinto por, na qualidade de jurista cabo-verdiano, estar a participar neste 5.º “Congresso do Direito na Lusofonia”, fórum acolhido pela Universidade do Minho e ao qual auguro os maiores sucessos. O título da presente comunicação comporta elementos que demandam uma clarificação tendente, por um lado, à delimitação do seu objecto e, por outro, à precisão do sentido com que os termos nele empregues serão utilizados. O que pretendo não é fazer uma abordagem exaustiva dos direitos fundamentais, empreitada que não podia caber nos estritos limites de uma intervenção desta índole, mas sim partir das características que são inerentes a essa categoria de direitos – as da igualdade e da universalidade – para tentar compreender e, se possível, contribuir para que sejam superadas as disparidades que a sociedade da informação acabou por deixar mais expostas, no que toca ao acesso a bens que deviam nos dias de hoje estar ao alcance de todos e à desigual proteção de direitos que deveriam ser garantidos, também a todos por igual. O texto está, assim, estruturado em duas partes, incidindo a primeira sobre a possibilidade da emergência der um novo direito fundamental, autónomo ou instrumental de outros direitos já existentes, justificado pela dinâmica e pe1


A Universalidade dos direito fundamentais na era digital: entre a utopia e a realidade Benfeito Mosso Ramos

los progressos da era digital, e a segunda sobre os riscos que impendem sobre certos direitos fundamentais, tornando-os mais vulneráveis a intrusões externas de poderes públicos e privados, sem que os Estados, ao menos os mais frágeis, consigam desincumbir-se da sua responsabilidade constitucional e internacional de os proteger efetivamente.

2. A igual dignidade da pessoa humana impõe uma perspectiva mais abrangente dos direitos fundamentais Na chamada era digital é praticamente impossível abstrair-se da progressiva abertura, ou mesmo diluição, das fronteiras que delimitam o espaço geográfico e a jurisdição dos Estados, bem como da interdependência que entre eles se vai estabelecendo, o que implica que o conceito de direitos fundamentais com que se vai operar tende a estender-se para além daqueles que estão expressamente positivados na ordem jurídica interna de cada País, através do seu reconhecimento formal na Constituição, para abranger igualmente outros que constam dos instrumentos jurídicos internacionais, ainda que formulados em termos de meros princípios. Sem pretender descurar o conceito estrito de direito fundamental que nos é fornecido por certa doutrina1, a abordagem tenta, pois, fazer uma simbiose entre a dimensão positiva e a perspetiva universalista ou internacionalista2, na convicção de que constitui património da Lusofonia o postulado de que, como já referido, tais direitos não se esgotam no catálogo vertido formalmente na Constituição de cada um dos nossos países. Na verdade, se há uma disposição que é comum a todos os países fundadores da CPLP, graças à contribuição originária da Constituição Portuguesa de 1976, é a que prevê que “os direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e das regras aplicáveis de Direito Internacional” (art. 16.º, n.º 1). Outrossim, parte-se naturalmente do axioma de que todos os seres humanos, independentemente da sua origem, nacionalidade, género ou condição social, aspiram legitimamente à titularidade, ao exercício e à proteção de direitos fundamentais básicos dos quais, e tendo em vista a temática que nos reúne neste congresso, sobressaem os direitos à privacidade, à liberdade de opinião e de informação, à educação e à participação política. Nisso se afirma, a nosso ver, a universalidade dos direitos em referência, no exacto sentido em que essa expres1 ALEXANDRINO, José Melo, Direitos Fundamentais, Introdução Geral, 2ª edição revista e atualizada, Princípia 2015, pág. 23. 2 DE ANDRADE, José Carlos Vieira, Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4ª edição, Almedina 2009, págs. 27 e ss..

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são é conceitualizada tanto no Direito interno como no Direito Internacional, com o que se afirma a superioridade paradigmática da era dos direitos em que vivemos. Como sustentou a delegação portuguesa, uma das vozes lusófonas à Conferência de Viena de 1993 sobre os direitos humanos, ainda a propósito do princípio da universalidade, e passamos a citar: “Importa relembrar que, qualquer que seja o contexto geográfico, étnico, histórico ou económico-social em que cada um de nós se insere, a cada homem assiste um conjunto inderrogável de direitos fundamentais. Não podemos permitir que, consoante o nascimento, o sexo, a raça, a religião, se etabeleçam diferença em termos de dignidade dos cidadãos”3.

3. Combater a info-exclusão e reconhecer o direito de acesso universal à internet Questão que entretanto se coloca consiste em saber se no citado “conjunto inderrogável de direitos fundamentais” estarão apenas os clássicos direitos do homem ou se a evolução da sociedade associada à demanda da plena realização da dignidade humana, da igualdade de oportunidades para todos, em termos de educação, instrução, liberdade de expressão e de participação na vida da comunidade, não justificaria a inclusão de direitos que na era digital se afiguram como básicos, como é o caso do direito de acesso à internet. Para melhor se compreender a razoabilidade de uma tal proposição há que ter em conta a chamada digital divide, fenómeno que corporiza um fosso de desigualdade que se vai alargando entre o Norte e o Sul, entre países industrializados e os menos desenvolvidos, e mesmo entre as regiões ou estratos e grupos sociais do mesmo país, no que toca ao acesso aos dividendos gerados pelas tecnologias de informação e comunicação. Com efeito o relatório do Banco Mundial de 2014 sobre a revolução digital dá conta de que “a internet em sentido amplo cresceu rapidamente, mas não é de modo algum universal. Para cada pessoa conectada a uma banda larga de alta velocidade, cinco não estão. A nível mundial cerca de quatro bilhões de pessoas não têm acesso à internet, quase dois bilhões não utilizam telefone celular e quase meio bilhão vive fora de àreas com sinal móvel”. Acrescenta, ainda, esse relatório que “a vida da maioria dos habitantes do mundo continua em grande parte intocada pela

3 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado, Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, Vol I, Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, pág. 218, 1.ª edição.

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A Universalidade dos direito fundamentais na era digital: entre a utopia e a realidade Benfeito Mosso Ramos

revolução digital. Somente 15% têm condição económica para dispor de internet de banda larga”4. Esses dados, que exprimem uma tremenda iniquidade no acesso a um bem de capital importância nos dias de hoje, apenas vieram confirmar a pertinência a e justeza das observações que largos segmentos da comunidade internacional já vinham fazendo sobre a matéria e que podem ser sintetizadas nas seguintes considerações do Relator Especial das Nações Unidas, Frank de La Rue: “Given that the internet has become an indispensable tool for realizing a range of human rights, com bating inequality, and accelerating development and human progress ensuring universal access to the Internet should be a priority for all States. Each State should thus develop a concrete and effective policy, in consultation with individuals from all sections of society, including the private sector and relevant Government ministries, to make the Internet widely available, accessible and affordable to all segments of population”5.

4. A contribuição das Nações Unidas e a recetividade das ordens internas Orientando-se pelo mesmo propósito o Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas viria a adotar a 1 de Julho de 2016 uma resolução afirmando o acesso à Internet como um direito fundamental do homem6. Embora não tenha efeito vinculativo sobre os Estados que integram as Nações Unidas essa resolução não deixa de constituir um marco em dois aspetos significativos. Primeiro, porque desencoraja iniciativas dos poderes públicos tendentes a restringir o exercício dos direitos fundamentais, nomeadamente a liberdade de expressão e da informação através da internet. E todos sabemos a importância que tem vindo a assumir a rede digital na mobilização dos cidadãos para o controlo ou escrutínio mais apertado sobretudo doo regimes autoritários. O segundo aspeto em que essa resolução se mostra importante consiste no facto de se traduzir numa medida de encorajamento à partilha do conhecimento, a redução da exclusão digital, condição para o exercício de vários outros direitos fundamentais.

4 Banco Mundial, 2016. “Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2016: Dividendos Digitais”. Overview booklet. Banco Mundial Washington, D. C. Licença: Creative Commons Attribution CC BY 3.0 IGO, pág. 6 -- http://documents.worldbank.org/curated/pt/788831468179643665/pdf/102724-WDR-WDR2016Overview-PORTUGUESE-WebResBox-394840B-OUO-9.pdf. Acesso 10 de Março de 2018. 5 Report of the Special Rapporteur on the promotion and protection of the right to freedom of opinion and expressions, Frank La Rue. http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/ 17session/ A.HRC.17.27_en.pdf. Acesso 12 de Março de 2018. 6 United Nations Human Rights Council A/HRC/RES/32/13.

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No direito interno de vários Estados já se encontra hoje suficiente abertura constitucional para que o acesso à internet seja visto como um direito fundamental. Como defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito do artigo 35.º, n.º 6, da Constituição Portuguesa, que reconhece a todos o direito de acesso a uma rede informática pública, “a garantia do acesso às redes informáticas de uso público é um direito autónomo acrescentado pela Lei Constitucional nº 1/97. Embora apareça neste preceito constitucional articulado com a proteção de dados, ele é, em rigor, uma nova dimensão da liberdade de expressão. O Acesso à rede é uma espécie de pré-requisito (pre-committente) da própria liberdade de expressão via internet. Esta liberdade de expressão adquire as mais variadas formas desde sites, chats, blogs, até cadeias de mensagens”7. Os exemplos vão se multiplicando, como é o caso do artigo 5.º-A da Constituição Grega segundo a qual todas as pessoas têm direito de participar na Sociedade de Informação, incumbindo ao Estado a obrigação de facilitar a produção, a troca, a difusão e o acesso a informações transmitidas eletronicamente. Em França o Conselho Constitucional chegou de declarar em Junho o acesso à internet como um direito humano fundamental. O mesmo sucedeu com o Supremo Tribunal da Costa Rica cuja sala constitucional declarou em Julho de 2010 que o acesso às novas tecnologias tornou-se num instrumento básico para o exercício dos direitos fundamentais e para a participação democrática (e-democracy) e controlo dos poderes públicos pelos cidadãos, educação, liberdade de pensamento e de expressão etc. etc. E podíamos continuar como outros exemplos como os da Finlândia ou da Estónia ou mesmo o Ruanda em África. Do que vimos expondo é legítima a conclusão de que, quer seja visto como um direito fundamental autónomo, quer como um direito instrumental para o exercício de outros direitos fundamentais, como o direito à educação, à liberdade de expressão, ao desenvolvimento, o direito de acesso à internet, seja na dimensão negativa de abstenção de ingerência da parte do Estado, no sentido de não impor proibições ou restrições arbitrárias ao seu acesso, seja como uma obrigação positiva de criar condições para um acesso universal a esse bem, embora não tenha ainda adquirido qualquer força vinculativa no plano internacional, está em processo avançado de formação, tendo já conquistado um lugar na agenda pública a que não se pode ficar indiferente.

7 CANOTILHO, JJ Gomes e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4.ª edição revista e anotada, Coimbra Editora, Outubro 2014, pág. 556.

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A Universalidade dos direito fundamentais na era digital: entre a utopia e a realidade Benfeito Mosso Ramos

5. A África também caminha no sentido de se dotar de instrumentos jurídicos tendentes à protecção dos direitos na era digital.

Mas, a relevância do tema que propusemos analisar não se restringe ao plano do reconhecimento de direitos próprios da era digital, como é o do acesso à internet. Ela estende-se também para o plano da efectiva protecção dos direitos já reconhecidos, como o da privacidade, pois que apesar de se assistir a uma regulamentação exaustiva centrada no reforço das garantias, crescentes desafios se vão colocando. Tomemos como exemplo o artigo 1.º da Convenção Europeia sobre a proteção de dados cujo texto passamos a citar: “A presente Convenção destina-se a garantir, no território de cada Parte, a todas as pessoas singulares, seja qual for a sua nacionalidade ou residência, o respeito pelos seus direitos e liberdades fundamentais, e especialmente pelo seu direito à vida privada, face ao tratamento automatizado dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito («protecção dos dados»)”. E, se fazemos alusão a essa convenção, que acaba por incorporar de forma exemplar o princípio da universalidade, é porque ela, como iniciativa pioneira em termos de instrumento regional para proteção de direitos fundamentais dealbar da era digital, acabaria por servir de referência e motivo de inspiração para outras latitudes, nomeadamente para a correspondente convenção da União Africana8 sobre a cibersegurança e a protecção de dados aprovada em 27 de Junho de 2014. Efectivamente, no continente africano, apesar dos obstáculos estruturais que se têm colocado ao seu desenvolvimento económico, não têm faltado iniciativas dignas menção tendentes a acompanhar a sociedade da informação e os riscos que ela comporta. Neste aspeto ganha significado a preocupação de se reduzir o fosso que separa a nossa região do mundo industrializado no que respeita à criação de um quadro jurídico institucional que incorpore mecanismos de protecção dos direitos do homem de acordo com os melhores standards, sobretudo no que toca aos direitos mais expostos à violação com recurso às novas tecnologias de informação e de comunicação. Embora com uma abrangência mais reduzida, cabe aqui referir ainda ao Protocolo da CEDEAO (Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental, de que fazem parte a Guiné Bissau e Cabo Verde) sobre a proteção de 8 Cabe referir a qui que à União Africana pertencem seis dos países que integram a CPLP ou a Lusofonia: Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé.

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dados pessoais no espaço dessa comunidade, assinado em 16 de Fevereiro de 2010. A importância deste documento reside no facto, sendo parte integrante do tratado dessa organização, poder produzir efeito direto na ordem jurídica de cada Estado Membro. E exemplos da adoção de instrumentos jurídicos dessa natureza vão-se multiplicando do mesmo modo que as constituições e demais leis dos Estados tendem a reforçar as garantias a favor da privacidade dos cidadãos, de que é exemplo o instituto do habeas acolhido pelo artigo 46.º da Constituição de Cabo Verde9. Por isso mesmo, tivéssemos que avaliar as coisas pelo quadro jurídico-institucional que se pretende implementar, ou que já começou mesmo a ser implementado, e pelas boas intenções de uns e de outros, não andaríamos longe da verdade se disséssemos que estaríamos em vias da realização da utopia: a tendencial harmonização no plano normativo e dos princípios entre a era digital, com todos os seus sinais de crescimento económico e de prosperidade, e a proteção dos direitos fundamentais.

6. Crescentes riscos para a efetiva proteção dos direitos fundamentais A realidade tem sido, contudo, diferente. Na verdade, a efetivação dos direitos fundamentais na era digital à escala universal depende de vários factores sobre os quais os países mais pobres ou em vias de desenvolvimento não podem exercer significativa influência. Por outro lado, é sabido que algumas regiões do globo, e até mesmo Estados individualmente considerados, estão munidos de um maior poder, e animados de uma maior propensão, para utilizarem as tecnologias de informação e de comunicação de forma intrusiva contra os direitos fundamentais dos cidadãos, nomeadamente no seu direito à privacidade, mesmo para além das suas fronteiras, se não mesmo à escala global, sem se exporem ao escrutínio de qualquer autoridade. E face a essa desigual distribuição dos recursos em sede das novas tecnologias de informação e de comunicação, mesmo que se esforcem em se dotar de toda a arquitectura jurídico-institucional visando a protecção dos direitos fundamentais dos seus cidadãos, os países em vias de desenvolvimento, em especial os mais pobres, confrontam-se com uma terrível dependência traduzida no facto 9 Artigo 46.º, nº 1: “A todo o cidadão é concedido habeas data para assegurar o conhecimento de informações constantes de ficheiros, arquivos ou registos informáticos que lhe digam respeito, bem como para ser informado do fim a que se destinam e para exigir a rectificação ou actualização dos dados”.

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A Universalidade dos direito fundamentais na era digital: entre a utopia e a realidade Benfeito Mosso Ramos

de os depositários dos dados dos seus cidadãos serem em regra países estrangeiros ou empresas privadas sedeadas no estrangeiro, logo para além das fronteiras dentro das quais exercem o seu poder soberano. Assim sendo, coloca-se a questão de saber como é que um país nessas condições pode cumprimr com a sua obrigação constitucional ou internacional de proteger os direitos fundamentais dos seus próprios cidadãos. Ora, isso significa que os direitos fundamentais assim ameaçados estão num estado de completa vulnerabilidade, pois que não é só impossível impedir a sua violação, como também será ilusória qualquer expectativa de reparação para tal violação. Pode-se contrapor que essa intromissão nos direitos fundamentais acontece mesmo no interior das fronteiras dos citados estados, tendo por alvo os seus próprios cidadãos. Mas, não há que subestimar a pujança das instituições judiciárias desses países na protecção dos direitos fundamentais, em especial contra acções dos poderes públicos. Acresce que não são só os Estados. Os entes privados podem também violar direitos fundamentais dos cidadãos em várias regiões do globo, sem que as autoridades públicas a quem incumbe a protecção efectiva de tais direitos possam reagir, exactamente por falta de meios ou poder para tal.

7. A assimétrica distribuição do poder e de recursos entre Estados clama por uma autoridade a nível das Nações Unidas. Com isso pretendemos demonstrar que na era digital a ideia da universalidade dos direitos fundamentais, na dimensão de que assistem a todos os seres humanos que deles devem beneficiar de igual nível de proteção pode comportar nuances que relevam exatamente da desigual distribuição do poder de domínio das tecnologias de informação entre as regiões do globo ou entre os Estados. Exemplo paradigmático do que se acaba de dizer foi a devassa estrangeira, não apenas a meros cidadãos, mas a líderes de países de reconhecida influência mundial, como a Alemanha e o Brasil, o que levou a queixas que iriam conduzir à resolução A/RES/68/167 adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 18 de Dezembro de 2013, tendo por objecto o direito à privacidade na era digital. Tratou-se de um passo importante, sobretudo porque apesar da extraordinária sensibilidade que a matéria se revestia no plano político, pois que os alvos eram proeminentes estadistas, e a motivação para a devassa terá sido política, o tratamento da questão acabou por ser feita à luz dos direitos fundamentais do homem, consagrados em instrumentos universais, nomeadamente os artigos

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12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 17.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. A citada resolução, que como se sabe não possui força vinculativa, não deixa entretanto de representar, pela força moral que lhe está subjacente, um passo importante que poderá levar a prazo à institucionalização de uma autoridade supranacional, a nível das Nações Unidas, com o mandato para velar pela efetiva protecção no plano universal dos direitos fundamentais e a efectiva responsabilização dos Estados que incorrerem na sua violação, adentro ou para além das suas fronteiras. Seria a forma de superar a impotência com que se debatem os Estados, individualmente considerados, em especial os menos desenvolvidos ou mais pobres, na protecção dos direitos dos seus cidadãos face aos crescentes desafios que a era digital acabou por colocar.

8. Conclusões Concluo, assim, reiterando que a era digital comporta virtualidades para a expansão dos direitos fundamentais, criando oportunidades para um exercício de certos direitos básicos, como os direitos à educação, à instrução, à liberdade de informação e de expressão, bem como de participação política, desde que haja um efectivo empenho na promoção da equidade no acesso aos dividendos resultantes da sociedade da informação, com a progressiva redução da info-exclusão. Mas, também crescentes desafios vão-se colocando a esses direitos, em especial ao direito à privacidade, que acabou por ficar muito mais vulnerável à intrusão externa, num contexto de notória impotência da mioria dos Estados para se desincumbirem das suas obrigações internas e internacionais, donde a necessidade de uma autoridade de supervisão a nível das Nações Unidas para assegurar a sua efectiva protecção.

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A PALAVRA FALADA, A PALAVRA ESCRITA E A PALAVRA DIGITAL – DESCONTINUIDADES DISCURSIVAS E ALTERAÇÃO DOS CÂNONES JURÍDICO-PENAIS Flávia Noversa Loureiro

Doutora em Direito. Professora Auxiliar na Escola de Direito da Universidade do Minho. Investigadora do JusGov – Centro de Investigação em Justiça e Governação.

A palavra é, como sabemos, manifestação humana idiossincrática e sem paralelo, que nos permite, a um tempo, caraterizar o próprio ser humano enquanto tal, pois que pensa e comunica através dela, e captar-lhe o seu sentido último, compreende-lo na realização do ser que é. Não é de estranhar, nesta medida, que desde sempre a palavra tenha desempenhado papel crucial na justiça, quer na criação de normas – escritas ou não escritas –, quer na aplicação do direito – o juiz diz o direito1. Nesta última dimensão, judicária ou judicativa2, de aplicação do direito ao caso concreto, muitas outras palavras têm relevo, na exata medida em que o processo é, ele próprio, um meio comunicativo, compondo-se das palavras dos muitos que a ele chegam por diferentes vias e com ele têm de colaborar. 1 Mais do que ser apenas a boca da lei, de acordo com a formulação saída da Revolução Francesa, o juiz diz o direito do caso concreto. 2 A propósito do papel do juiz na resolução do caso concreto que em cada circunstância lhe é apresentado e do seu papel cocriador do Direito, cf. Monte, Mário Ferreira. Direito Processual Penal Aplicado. Braga: AEDUM, 2017, p. 35 e ss.

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A Palavra Falada, a Palavra Escrita e a Palavra Digital – descontinuidades discursivas e alteração dos cânones jurídico-penais Flávia Noversa Loureiro

Compreende-se bem, pois, que se diga usualmente que a prova testemunhal é a prova rainha em todo o processo, sobretudo no processo penal, pois sempre foi ela aquela que, de modo mais satisfatório, permitiu aferir dos factos passados, narrados por diversas pessoas a diferentes títulos envolvidas no caso concreto e de cujo encontro e antinomia de narrativas – de palavras – poderá o juiz retirar aquela que se lhe afigure ser a mais verosímil versão dos factos. Se assim é – ainda hoje, apesar de toda a evolução – no que respeita às testemunhas em sede de audiência de julgamento (e, porventura, no que tange com as declarações prestadas por assistente ou ofendido ou por arguido), o mesmo se passa também, talvez até de modo superlativo, no que diz respeito à palavra proferida fora daquela audiência, sobretudo em momento concomitante ou imediatamente posterior à ocorrência dos factos3, e que permite, através de diversos meios de obtenção de prova que hoje reconhecemos, refazer tanto quanto possível aqueles que foram o percurso, a intenção e as ações do agente. Meios que são, necessariamente, de grande relevo para a investigação criminal, podendo desempenhar uma importância capital na efetiva condenação posterior do arguido, mas, do mesmo modo, especialmente gravosos e limitadores de direitos, liberdades e garantias, por constituírem em quase todos os casos, pela sua própria natureza, invasões à vida privada dos cidadãos. Desempenham aí particular importância, dentro dos aspetos que hoje queremos ponderar, aqueles meios que pretendem interferir com a palavra, quer falada quer escrita, e que, nessa exata medida, permitirão trazer ao processo um conjunto de elementos de grande relevo para a formação da convicção do julgador. No nosso CPP, o desenho desta interferência do Estado detentor do ius puniendi na palavra dita foi idealizado de acordo com dois grandes cânones: por um lado, a interceção da palavra escrita, feita de acordo com as regras da apreensão de correspondência (arts. 178.º e ss. do CPP, em particular art. 179.º); por

3 Quando não mesmo, como se discute hoje, em momento prévio. Efetivamente, ganham cada vez maior relevo as atividades de recolha e troca de informações prévias e independentes da existência de um processo crime, no âmbito daquilo a que agora se chama policiamento preditivo. Para lá das questões que um tal conjunto de meios e intervenções na esfera dos cidadãos coloca por si só, são de monta considerável as interrogações que se suscitam quanto à possibilidade de utilização dos elementos assim recolhidos num eventual processo penal que possa vir a ter lugar. Cf., a este propósito, o que dizíamos já em Loureiro, Flávia Noversa. “A (i)mutabilidade do paradigma processual penal respeitante aos direitos fundamentais em pleno século XXI”. Que Futuro para o Direito Processual Penal? Simpósio em Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 269289.

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outro, a interceção da palavra falada, realizada nos termos das normas previstas para as escutas telefónicas (arts. 187.º e ss. do mesmo diploma)4. A dicotomia de regimes, mesmo quando nos aproximamos deles ainda e não os conhecemos em detalhe, deixa bem claro que o legislador não trata da mesma forma as duas dimensões comunicativas, entendendo que palavra escrita e palavra falada não são uma e a mesma coisa, mas antes merecem tratamento distinto. Posição que se afigura, aliás, cheia de sentido e interrogações em face do texto constitucional, que no seu art. 34.º estabelece a inviolabilidade do domicílio e o sigilo da correspondência e de outros meios de comunicação privada (n.º 1), adiantando depois no seu n.º 4 que é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal5. Assim, muito embora o legislador constitucional preveja, em aparente pé de igualdade, o sigilo da correspondência bem como de outros meios de comunicação (que hoje assumem cada vez maior protagonismo e aqui nos ocupam em particular), a verdade é que o legislador criminal estabeleceu um regime diferenciado para a interferência do Estado na palavra escrita e na palavra falada, considerando, fundamentalmente, que esta última deve ser mais protegida, na medida em que é menos refletida, mais direta e imediata, usualmente mais aligeirada e fazendo parte de um núcleo mais reservado de intimidade6. Nessa medida, enquanto o art. 179.º no CPP estabelece que “o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que: a) a correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; b) está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e c) a diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova”, os arts. 187.º e ss. são muito mais detalhados e exigentes no que tange com a interceção de comunicações (vulgo, escutas telefónicas). Não cabendo aqui, por força do objeto deste trabalho, uma análise detalhada do regime da interceção nas comunicações, veja-se, desde logo, as mais elevadas exigências de proporcionalidade e necessidade em sentido estrito que se 4 Não cabendo aqui a análise e discussão destes regimes, cf. Andrade, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2013 (reimpressão), p. 272 e ss. 5 Cf., por todos, Silva, Germano Marques da, e Sá, Fernando. “Anotação ao artigo 34.º”. Constituição Portuguesa Anotada. Tomo I. Coimbra: Coimbra Editora, 2010 (2.ª edição), p. 755-778. 6 Cf., a este respeito, o ensinamento de Andrade, Manuel da Costa. Sobre as proibições de prova em processo penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2013 (reimpressão), p. 188 e ss.

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A Palavra Falada, a Palavra Escrita e a Palavra Digital – descontinuidades discursivas e alteração dos cânones jurídico-penais Flávia Noversa Loureiro

fazem, ao dizer-se que “a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter” (por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público num catálogo fechado de crimes7). Para lá destes requisitos materiais, colocam-se igualmente um conjunto muito grande de regras no que respeita à operacionalização da interceção, também elas pensadas para assegurar a mínima limitação possível dos direitos fundamentais dos cidadãos8. Ora, concordando-se ou não com esta regime – nem entraremos agora em considerações em torno da sua propriedade e adequação ou da necessidade de uma remodelação profunda, como tantos sustentam (e nós concordamos)9 –, a verdade é que dúvidas não restam sobre o tratamento dual que o legislador faz destas comunicações: comunicações orais, sejam telefónicas, sejam de outra natureza telemática (como admite a norma de extensão prevista no art. 189.º)10, estão sujeitas ao regime das escutas telefónicas, detalhadamente previsto nos arts. 186.º a 189.º; comunicações escritas, melhor, que possam caber no conceito de correspondência (pense-se numa encomenda, por exemplo) seguem o regime previsto no art. 178.º – enquanto a correspondência não for aberta, pois que

7 Nos termos do n.º 1 do art. 187.º do CPP. Na verdade, este catálogo acaba por não ser tão fechado quanto isso na medida em que se prevê, para lá dos tipos qualitativamente selecionados (relativos ao tráfico de estupefacientes; de detenção de arma proibida e de tráfico de armas; de contrabando; de injúria, de ameaça, de coação, de devassa da vida privada e perturbação da paz e do sossego, quando cometidos através de telefone; de ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo; ou de evasão, quando o arguido haja sido condenado por algum dos crimes previstos nas alíneas anteriores), todos os crimes puníveis com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos. 8 E que, não cabendo aqui esmiuçar, podem ser encontradas no art. 188.º do CPP. De entre a vastíssima bibliografia disponível quanto a esta matéria, ver, por todos, Andrade, Manuel da Costa. “Das Escutas Telefónicas”. I Congresso de Processo Penal – Memórias. Coimbra: Almedina, 2005, p. 215-224, e “Sobre o regime processual penal das escutas telefónicas”. Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Ano I, n.º 3 (jul./set. 1991), p. 369-408; Valente, Manuel Monteiro Guedes. Escutas Telefónicas. Da excepcionalidade à vulgaridade. Coimbra: Almedina, 2008 (2.ª edição); ou Conceição, Ana Raquel. Escutas Telefónicas – Regime Processual Penal, Lisboa: Quid Iuris, 2009. 9 Cf., por todos, as críticas de Andrade, Manuel da Costa. “Bruscamente no Verão Passado”, a reforma do Código de Processo Penal. Observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido diferente. Coimbra: Coimbra Editora, 2009, especialmente a p. 145 e ss. 10 A norma de extensão abrange ainda às denominadas escutas ambientais (interceção de comunicações entre presentes), o que suscita igualmente muitas dificuldades cuja análise não cabe no escopo deste trabalho.

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a partir daí, entende a generalidade da doutrina e da jurisprudência (não sem dúvidas, quanto a nós), passar a reger-se pelas ditames das comuns apreensões11. Se todo este panorama já não é simples e apresenta-se como especialmente sujeito a discussão e debate, a questão complexifica-se quando esteja em causa a palavra digital. Ou seja, se quisermos de modo mais simples, e o que se passa quando esta palavra seja produzida através de um mecanismo digital, por exemplo, quando se trate de correio eletrónico (para lançarmos mão apenas de uma das hipóteses)? Que regime deve ser aplicado aí? O regime da palavra falada, o da palavra escrita ou nem um nem outro, deveremos avançar para uma terceira alternativa? A questão é muito complexa e, diga-se em abono da verdade, o nosso legislador não tem contribuído para o seu cabal esclarecimento, acabando por produzir normas que ou são contraditórias ou caminham num sentido que não nos parece ser o mais curial e adequado (ou ambas as coisas). Uma vez mais não podemos fazer neste momento uma exegese cuidada de todo o normativo aplicável, mas chamemos a atenção apenas para aqueles que nos parecem ser os seu pontos mais relevantes. Em primeiro lugar, como dissemos já, temos a norma de extensão prevista do art. 189.º do CPP, que manda aplicar o regime das escutas telefónicas às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio eletrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à interceção das comunicações entre presentes. A opção é, em si própria, de duvidosa bondade, pois que bem se compreende que se outros modos de conversação por meio técnico diferente do telefone podem – podem, sublinha-se – ser comparados com este, claramente já não será assim, sem mais, quando estejamos a falar de uma comunicação efetuada através de e-mail. Mas a opção torna-se especialmente difícil de sustentar (e para alguns mesmo tacitamente revogada12) quando a conjugamos com a Lei do Cibercrime (lei n.º 109/2009, de 15 de setembro) e, particularmente, os seus arts. 17.º e 18.º De facto, nestes preceitos se prevê um regime diferenciado para a interceção que tenha por objeto o correio eletrónico, aplicando, por um lado, o 18.º 11 Nos termos do n.º 1 do art. 178.º, são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova. Esta apreensão, ao contrário do que acontece com a de correspondência, é autorizada ou ordenada por autoridade judiciária e não necessariamente pelo juiz. 12 Ver as considerações de Correia, João Conde. “Prova Digital: as leis que temos e a lei que devíamos ter”. Revista do Ministério Público. Ano 35 (2014), n.º 139, p. 29-59; bem como as de Neves, Rita Castanheira. As Ingerências nas Comunicações Electrónicas em Processo Penal - Natureza e Respectivo Regime Jurídico do Correio Electrónico enquanto Meio de Obtenção de Prova. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 285 e ss.

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da Lei do Cibercrime13 (com um regime aproximado do das escutas telefónicas), quando esteja em causa a ingerência em tempo real no correio eletrónico14 – no espaço de tempo que medeia entre o envio e a receção ou leitura –, e, por outro, o art. 17.º da mesma lei15, quando esteja em causa correio eletrónico armazenado (com um regime que remete para a apreensão de correspondência) – depois, portanto, daquela receção ou leitura. Ora, assim colocadas as coisas, parece-nos que estamos aqui perante uma multiplicidade de problemas. Em primeiro lugar, o art. 189.º do CPP estabelece um regime que equipara toda a interferência em correio eletrónico (em transmissão ou já armazenado) à escuta telefónica – o que não se nos afigura aceitável. Sucede, depois, em segundo lugar, que a Lei do Cibercrime também não vem resolver o problema de modo adequado, segundo cremos, pois que, para lá de suscitar questões técnicas importantes e de muito difícil resolução (como, por exemplo, a de descortinar o momento que transforma a comunicação em documento, ou seja, que faz com que saiamos do âmbito do art. 18.º para passarmos para o do 17.º), levanta um problema mais fundo e mais sério: o de compreender qual a razão que justifica o tratamento diferenciado dos dois momentos e saber se essa razão, que foi gizada pela diferença entre comunicação oral e comunicação escrita (entre palavra falada e palavra escrita), pode sem mais ser importada 13 O art. 18.º, epigrafado de interceção de comunicações, fixa o seguinte: “1 - É admissível o recurso à interceção de comunicações em processos relativos a crimes: a) Previstos na presente lei; ou b) Cometidos por meio de um sistema informático ou em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte eletrónico, quando tais crimes se encontrem previstos no artigo 187.º do Código de Processo Penal. 2 - A interceção e o registo de transmissões de dados informáticos só podem ser autorizados durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do Ministério Público. 3 - A interceção pode destinar-se ao registo de dados relativos ao conteúdo das comunicações ou visar apenas a recolha e registo de dados de tráfego, devendo o despacho referido no número anterior especificar o respetivo âmbito, de acordo com as necessidades concretas da investigação. 4 - Em tudo o que não for contrariado pelo presente artigo, à interceção e registo de transmissões de dados informáticos é aplicável o regime da interceção e gravação de conversações ou comunicações telefónicas constante dos artigos 187.º, 188.º e 190.º do Código de Processo Penal”. 14 Muito embora uma formulação como esta suscite enormes dúvidas técnicas, não se compreendendo bem, do ponto de vista informático, a que corresponderá esta interceção em tempo real, este espaço e tempo que mediará entre a emissão e a receção do e-mail. 15 Nos termos do art. 17.º (apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante), “[q]uando, no decurso de uma pesquisa informática ou outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontrados, armazenados nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou registos de comunicações de natureza semelhante, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão daqueles que se afigurem ser de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, aplicando-se correspondentemente o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal”.

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para a comunicação eletrónica (aquilo a que a este propósito chamamos de palavra digital). Em forma de interrogação, para compreendermos porventura melhor: uma comunicação eletrónica, por e-mail, poderá ser equiparada a comunicação oral no percurso entre emissor e recetor, ou seja, entre o envio e a receção (ou leitura?16), passando a ser equivalente a palavra escrita quando é recebida e lida? Quero dizer, se a diferença de regimes assenta, como parece, na necessária diferença entre comunicação escrita e comunicação oral, dizendo-se que é esta natureza que, no regime geral, sustenta a distinção entre a escuta telefónica (a interceção de comunicação) e a apreensão (sobretudo de correspondência), porque é que o legislador entendeu aplicar o regime da comunicação oral à interceção de e-mail em tempo real? Veja-se que, a ser assim, como parece resultar do texto legal e do entendimento da doutrina maioritária, a comunicação por correio eletrónico tem, na verdade, uma dúplice natureza, sendo simultaneamente comunicação oral e comunicação escrita, dependendo do momento em que a interceção se dê. Sem juntar, sequer, como alguns sustentam, que, na verdade, quando esteja em causa correio eletrónico já recebido, lido e armazenado, não deveríamos sequer aplicar o regime equivalente à apreensão de correspondência (art. 17.º da Lei do Cibercrime), mas antes os seus arts. 15.º e, sobretudo, 16.º, tratando a hipótese, no fundo, como de uma mera apreensão (próxima, portanto, da solução encontrada à luz do CPP para a correspondência já recebida e lida, nos termos do art. 178.º)17. Fala-se a este propósito, segundo a lição de Costa Andrade, num perigo superlativo quando a correspondência (no caso, o e-mail) não foi ainda recebida ou lida, a merecer tutela adicional relativamente àquela que haja já sido conhecida. Temos de confessar-nos não absolutamente pacificados com este argumento. Porque razão existe esse perigo superlativo? O que justifica uma tutela mais apertada quando esteja em causa um e-mail não lido do que um lido? A questão também se coloca, naturalmente, na correspondência tradicional, digamos física, mas parece-nos que se agudiza ou pode agudizar na eletrónica, sendo mais difícil ainda compreender a razão de ser da distinção. Sobretudo se a seguir nos questionarmos acerca da possibilidade de, no âmbito de uma investigação criminal, se recuperarem, por exemplo, e-mails lidos e apagados pelo recetor. Que sentido fará, aí, a diferenciação entre correio lido e não lido? 16 Também sobre este aspeto há, na verdade, discussão doutrinária. Ver, por todos, as considerações de Rodrigues, Benjamim Silva. Das Escutas Telefónicas. Tomo I – A monotorização dos fluxos informacionais e comunicacionais. Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 430 e ss. 17 Cf., por todos, Venâncio, Pedro Dias. Lei do Cibercrime Anotada e Comentada. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 119 e ss.; e Ramos, Armando Dias. A prova digital em processo penal: o correio eletrónico. Lisboa: Chiado Editora, 2017, p. 70 e ss.

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Enfim, a questão – as múltiplas questões – que aqui estão em causa são profundas e complexas e o seu tratamento não cabe, naturalmente, num texto desta natureza. Nessa medida, mais do que fazer uma análise que se nos afigura inoportuna a respeito das diversas normas, quer do CPP, quer da Lei do Cibercrime, quer da Constituição, e da sua cuidada e detida interpretação, parece-nos que o acento tónico deve ser colocado naquela que é, do nosso ponto de vista, a incongruência de base do modelo, que, segundo cremos, põe em causa todo o tratamento das questões que aqui enunciámos. A evolução tecnológica trouxe consigo – isso é inegável – novos meios de comunicação e de transmissão de informação que transformaram por absoluto o modo como contactamos e comunicamos com os outros e, por isso, se impuseram igualmente ao direito penal e processual penal, pois que o facto criminal é um facto da vida. A palavra digital, aquilo que comunicamos em rede ou através de instrumentos eletrónicos, substituiu, em medida muito significativa, o espaço que antes era ocupado tanto pela palavra escrita (a correspondência tradicional diminuiu drasticamente) como pela palavra falada (hoje mais depressa enviamos a alguém uma SMS ou uma mensagem de WhatsApp do que fazemos uma ligação telefónica). Será, nessa medida, que faz sentido continuarmos a utilizar os mesmos cânones que até aqui tínhamos por válidos quando estejamos perante esta nova realidade? Será que podemos fazer equivaler um e-mail ou a correspondência ou a conversação – ou a ambas! –, aplicando-lhe ainda o modelo sob o qual nos habituámos a raciocinar até aqui em matéria de recolha e produção de prova? Não indo mais longe nem mais fundo – muito mar haveria aqui para navegar... –, parece-nos claramente que não. A palavra digital, os novos meios de comunicação – mais amplamente até: os novos fenómenos comunicacionais do nosso tempo – merecem, cremos, um tratamento distinto e autónomo, um efetivo regime diferenciado que não queira apenas constar da legislação avulsa para poder contornar as especiais exigências garantísticas do CPP, de modo a facilitar uma recolha de prova necessariamente complexa e particularmente obstaculizada. A palavra digital necessita de ser pensada como um todo, como uma nova realidade, como um aliud, e, nessa medida, de ser solucionada autonomamente, tendo em consideração as suas idiossincrasias e, sobretudo, reponderando obrigatoriamente o equilíbrio entre os instrumentos que visem recolhe-la para utilização em processo penal e as garantias fundamentais dos cidadãos. Como sempre.

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BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS: O CONFLITO JURÍDICO ENTRE O DIREITO À PRIVACIDADE E À INFORMAÇÃO. Gina Vidal Marcílio Pompeu

Possui Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2004), Mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (1994) e Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (1987). Advogada inscrita na OAB n. 6.101. Atualmente é Coordenadora e Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza, Mestrado e Doutorado, Consultora jurídica da Assembléia Legislativa do Estado do Ceará, Vice-presidente Nordeste do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito - CONPEDI. A autora encontra-se vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, na Cidade de Fortaleza/CE, Brasil, e-mail: ginapompeu@ unifor.br.

Inês Mota Randal Pompeu

Graduada em Direito pela Universidade Federal do Ceará (2016) e mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza. Advogada e Pesquisadora do Centro de Estudos sobre a América Latina, Relações econômicas, jurídicas e políticas da América Latina. REPJAL.

1. Resumo Com o avanço dos meios de comunicação, a sociedade de vigilância, compreendida também como sociedade de classificação segundo Stefano Rodotà, tem ganhado destaque. A privacidade e a informação passam, portanto, a serem questionadas. Nesse sentido, a convivência harmônica entre referidos direitos se faz essencial para o exercício pleno e efetivo da democracia. A liberdade de expressão e de informação representa um corolário democrático, haja vista que, na ausência daquelas, o regime igualitário corre risco de sucumbir a regimes ditatoriais. Ressalta-se também a importância da veracidade das informações vei-

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Biografias não autorizadas: o conflito jurídico entre o direito à privacidade e à informação Gina Vidal Marcílio Pompeu, Inês Mota Randal Pompeu

culadas a fim de cumprir sua função social. Apesar de a liberdade de informação ser fundamental em um ambiente democrático, a privacidade e a honra devem também ser tuteladas. Nesse contexto, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815 estabeleceu interpretação conforme a Constituição para os artigos 20 e 21 do Código Civil de 2002, declarando ser inexigível a prévia autorização para a publicação de biografias, afirmando que a censura deve ser proibida. O artigo tem como escopo analisar a relação jurídica estabelecida entre os biografados e os biógrafos em meio ao contexto da liberdade de informação.

2. Introdução A problemática da publicação das biografias não autorizadas tem ganhado destaque, principalmente no contexto da sociedade de informação, tendo em vista que nesta as informações se veiculam de maneira bastante célere, muitas vezes sem o devido cuidado do emissor e autorização da pessoa sobre a qual versa o conteúdo propagado. Além disso, a vida privada fica bem mais exposta, ainda mais quando se trata de pessoas públicas. Nesta senda, tem-se o caso das biografias não autorizadas, que dá margem para o debate acerca dos limites da liberdade de expressão e de informação de uma lado e intimidade e vida privada do outro. Diante desse contexto, alguns direitos passam a ser questionados, tendo em vista que a liberdade de expressão e de informação, bem como a vida privada e a intimidade ficam mais vulneráveis. Sendo assim, pode-se dizer que se tem a necessidade de buscar uma convivência harmônica entre as esferas supracitadas para o exercício pleno e efetivo da democracia, uma vez que a liberdade de expressão e de informação constituem um verdadeiro corolário democrático. Nesse viés, o estudo da presente pesquisa, tem como objetivo analisar o tema das biografias não autorizadas, investigando os direitos fundamentais da liberdade de expressão e informação e da intimidade e vida privada, demonstrando a importância social e informativa das biografias, para, por fim, averiguar a constitucionalidade ou não dos artigos 20 e 21 do Código Civil em meio ao contexto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4815. Apresenta-se, desta feita, uma pesquisa de conteúdo bibliográfico, com substrato em doutrinas que discorre sobre a matéria em análise, pura quanto à obtenção de resultados e qualitativa quanto à abordagem. Ademais, a pesquisa é descritiva, uma vez que tem como objetivo elucidar o objeto investigado, e exploratória, pois visa aperfeiçoar as ideias referentes à correlação entre privacidade e liberdade de expressão. A importância do presente estudo paria sobre a avaliação da constitucionalidade das biografias não autorizadas, pautada no estudo dos direitos fun-

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damentais, com ênfase para a liberdade de expressão e direito à privacidade em face das mudanças advindas da sociedade de informação.

3. Liberdade de expressão como corolário democrático A liberdade de expressão constitui um direito essencial para a afirmação e consolidação do Estado Democrático de Direito, sendo válido ressaltar que neste há uma proteção jurídica aos direitos humanos e garantias constitucionais, como é definido nas palavras de José Afonso da Silva (2016, p. 122): [...] como tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor de justiça social que o personalismo e o monismo político das democracias populares sob o influxo do socialismo real não foram capazes de construir.

Além disso, a liberdade de expressão é um direito fundamental amparado pela Constituição Federal, em seu artigo 5.°, incisos IX e XIV, in verbis: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

Pode-se dizer que liberdade de expressão corresponde ao direito que o indivíduo possui de manifestar seu pensamento e opinião acerca dos mais diversos assuntos ou pessoas. Vale ressaltar que o direito ora em análise garante a proibição de censura prévia à liberdade de expressão, conforme o artigo 220 da CRFB/88: Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...) § 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.

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§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.

Dada a literalidade dos termos da Constituição Federal, é possível perceber que o exercício do direito à liberdade de expressão não está vinculado a um controle prévio sobre o mérito da manifestação de opinião e do pensamento para haver, posteriormente, sua divulgação. Mas isso não significa dizer que o direito ora em questão seja absoluto, tendo em vista que a vedação à censura não exclui a possibilidade de o Poder Judiciário exercer um controle sobre a liberdade de expressão, até porque o Poder Público tem como obrigação garantir o respeito aos demais direitos fundamentais com guarida constitucional, com o escopo de evitar que haja lesão ou ameaça de lesão ao direito alheio. Isso ocorre em função do princípio da unidade constitucional, que mostra que não há hierarquia entre os direitos previstos na CRFB/88, tendo todos o mesmo status constitucional, bem como em virtude do princípio da dignidade da pessoa humana, que constitui um fundamento do Estado Democrático de Direito, conforme o disposto no art. 1.°, III, da Constituição Federal, haja vista que deste princípio tem origem a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, assunto que será abordado posteriormente no presente trabalho. O direito fundamental à liberdade de expressão constitui um dos direitos que mais merece destaque na sociedade democrática, pois na sua ausência instaura-se praticamente um regime ditatorial, haja vista que o direito de expressar a opinião, tendo voz diante da sociedade, equivale a um instrumento caracterizador do Estado Democrático de Direito. Com base nisso, é que Norberto Bobbio (2000, p. 10) defende a ideia de que o direito à liberdade de expressão é a regra do Estado brasileiro, apenas em casos excepcionais sendo possível o cerceamento deste direito. Corroborando com a ideia de a liberdade de expressão como um elemento democrático tem-se as ponderações de Liliana Minardi Paesani (2013, p. 6; 8): A reconquista da democracia fez renascer a vontade e o desenvolvimento da liberdade de informação, garantido um espaço livre. É louvável e pertinente o enunciado constitucional “ [...] a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo[...]”, como se o legislador tivesse clara a previsão do progresso tecnológico. [...] pode-se afirmar que o grau de democracia de um sistema pode ser medido pela quantidade e qualidade de informação transmitida e pelo número de sujeitos que a ela tem acesso.

De acordo com José Afonso da Silva (2016, p. 243 a 245), a liberdade de pensamento “se caracteriza como a exteriorização do pensamento no seu sentido mais abrangente”, bem como possui duas facetas, uma interna e uma externa. A

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interna diz respeito à autonomia da pessoa, aos seus pensamentos íntimos, tais como a liberdade de consciência e de crença. Esta liberdade de pensamento está intimamente ligada à liberdade de opinião, uma podendo até resumir a outra. Neste âmbito interno destaca-se a possibilidade de a pessoa ter a liberdade de escolher aquilo que acredita ser o correto, o verdadeiro. É exatamente aí que o indivíduo terá a oportunidade de formular e consolidar sua opinião, sua posição acerca de um determinado assunto, tudo isso de forma íntima. Ao passo que a faceta externa diz respeito à concretização deste pensamento íntimo, ou seja, quando a manifestação de pensamento supera a barreira do íntimo e atinge a seara do mundo exterior, através da liberdade de expressão e de informação. Tal diferenciação pode ser definida com a seguinte passagem de Pontes de Miranda (1968, p. 139): “a livre manifestação ou emissão do pensamento é direito de liberdade do indivíduo em suas relações com os outros, no que se distingue da liberdade de pensamento, que é direito do indivíduo sozinho, de per si”. O direito à liberdade de expressão e de informação está consolidado em diversos documentos internacionais, destacando-se a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela Organização das Nações Unidas – ONU, em seu artigo 19: Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

A liberdade de comunicação consiste num conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação. (SILVA, 2015, p. 245). É um gênero, tendo como espécies a liberdade de informação e liberdade de expressão. Assim, toma-se a nota de Nuno e Sousa (1984, p. 293) sustentado que: “liberdade de expressão e de informação estarão tanto mais alto na escala dos bens jurídicos, quanto mais diretamente manifestarem os princípios da dignidade humana e do Estado de Direito democrático”. Ressalte-se que o direito fundamental à liberdade de expressão consiste no fundamento do conhecimento por parte da sociedade, uma vez que por meio da colisão de opiniões diversificadas faz-se possível adquirir tal conhecimento (MILL, 1976, p. 276). Torna-se a frisar que, apesar de ser um direito fundamental constitucionalmente protegido, a liberdade de expressão não é um direito absoluto, tendo em vista a necessidade de proteção dos demais direitos fundamentais, é com base nisso que a manifestação de pensamento encontra freios no seu exercício, tais como a vedação ao anonimato (artigo 5°, IV, da CRFB/88), com o escopo de a pessoa assumir a responsabilidade sobre aquilo que disse, podendo até one23


Biografias não autorizadas: o conflito jurídico entre o direito à privacidade e à informação Gina Vidal Marcílio Pompeu, Inês Mota Randal Pompeu

rar-se de possíveis danos que venha a causar a terceiros. Justifica-se o direito de resposta, previsto no artigo 5°, V, da CRFB/88, servindo como um instrumento de proteção ao direito à privacidade do indivíduo. A liberdade de informação, envolvendo tanto o direito de informar quanto o de ser informado, está intimamente ligada à liberdade de expressão, conforme se pode perceber do seguinte trecho de Cláudio Luiz Bueno Gogoy (2015, p. 51): Esse direito de informação ou de ser informado, então, antes concebido como um direito individual, decorrente da liberdade de manifestação e expressão do pensamento, modernamente vem sendo entendido como dotado de forte componente e interesse coletivos, a que corresponde, na realidade, um direito coletivo à informação.

Hoje se pode dizer que a liberdade de informação jornalística ou midiática se difunde e se propaga pelos mais diversos meios de comunicação, tais como jornais, revistas, rádio, televisão, e principalmente pelo meio de comunicação mais rápido e eficaz da atualidade, qual seja, a internet. É incontroverso que, com o advento e modernização da internet, as informações se propagam em uma velocidade surpreendente, o que corresponde a um grande avanço para a liberdade de informação jornalística. Destaca-se ainda a revogação da Lei n° 5.250/67, mais conhecida como Lei de Imprensa, a qual tem origem no período da ditadura militar, tendo sido promulgada em 1967. O objetivo da lei em comento era servir de guia para a atividade jornalística, todavia, diante do fato de ela ter sido criada no contexto da ditadura, era tida como mecanismo de segurança nacional e censura. Um exemplo disso consiste na presença de penas mais pesadas que as estabelecidas no Código Penal, quanto aos crimes de calúnia, injúria e difamação cometidos pelos jornalistas, o que mostra o alto grau de repressão à liberdade de expressão que esta lei legitimava. Destaque-se que, com o fundamento nesta lei, inúmeros atos de censura foram cometidos, o que dificultava a atividade jornalística desenvolvida no País, ratificando assim o sentido desta lei como um verdadeiro instrumento de censura e repressão criado à época da ditadura. O Ministro relator da ADPF n°130 foi o Ministro Carlos Ayres Britto, que apontou como fundamento central de seu voto o fato de a Lei de Imprensa não está em conformidade de com o espírito democrático caracterizado na CRFB/88. Ele destaca a importância da livre circulação de ideias e pensamentos em meio ao Estado Democrático de Direito. Com isso, a liberdade de imprensa possuiria local de destaque na Constituição Federal, ratificando seu princípio maior, qual seja, a democracia.

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Outro ponto destacado pelo ministro relator Ayres de Britto era a inexiste de meia liberdade de expressão, haja vista que esta deveria ser assegurada em sua plenitude. É com base nisto, que afirma que no caso de conflito da liberdade de expressão com outros direitos, como os da personalidade, estes deveriam paralisar momentaneamente com o fito de salvaguardar e prestigiar aquela (CARVALHO, GALVÃO, 2011, p. 18-19).

4. A tutela jurídica dos direitos da personalidade No que concerne ao conceito de direitos da personalidade, é possível dizer que estes dizem respeito a direitos autônomos inerentes à qualidade do homem, sendo verdadeiros atributos destes, diretamente ligados à dignidade da pessoa humana. Além disso, possuem guarida constitucional no artigo 5°, X, da CRFB/88, in verbis: “ são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. A partir deste inciso é possível afirmar que os direitos da personalidade visam à proteção de alguns direitos específicos, tais como o direito à imagem, à privacidade e à honra das pessoas. O direito à honra corresponde a um direito inato, natural e universal da pessoa humana e visa à tutela da própria condição humana, protegendo a sua dignidade e integridade moral. Pode-se dizer que a honra aqui tutelada subdivide-se em subjetiva e objetiva. Nesta última, a honra diz respeito à reputação que o indivíduo possui em meio à sociedade a qual está inserido, ao passo que a subjetiva equivale à dignidade pessoal do indivíduo, seu próprio valor moral. O direito aqui em questão possui guarida constitucional, bem como infraconstitucional, pois está previsto no Código Civil de 2002 em seu artigo 20, in verbis: “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.”

Vida privada e intimidade não se confundem, haja vista que possuem uma verdadeira relação de gênero e espécie, sendo a intimidade mais restrita que a vida privada. Por mais reservada que ela seja, vai sempre apresentar uma faceta pública, sendo certo que esta exposição irá variar de pessoa para pessoa, bem como de acordo com a posição que o indivíduo ocupa na sociedade, pois há casos em que sua vida privada sofrerá uma exposição maior em virtude da atividade exercida por ela.

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Com base nos ensinamentos de José Afonso da Silva, pode-se dizer que a intimidade e a vida privada compõem o direito à privacidade, que corresponde a pessoa ter direito a ter seu “próprio espaço’’, entenda-se ter assuntos e locais que só dizem respeito a si própria, devendo estar livres da curiosidade e interesse alheios. De acordo com os ensinamentos de Rodotà (2008, p. 17), a privacidade demanda “um tipo de proteção dinâmica, que segue o dado em todos os seus movimentos”, sendo este o resultado: “ [...] de um longo processo evolutivo experimentado pelo conceito de privacidade - de uma definição original como o direito de ser deixado em paz, até o direito de controle sobre as informações de cada um e de determinar como a esfera privada deve ser construída”.

Diante desse contexto, Juan Bonilla Sanchéz (2010, p.171) traz a intimidade como sendo: “[...] o ámbito de independencia de una persona frente a los demás, sean particulares os poderes públicos, que asegura la falta de información sobre ella e que le concede la facultad de controlar toda la que le afecta, tanto previa, como posteriormente a su difusión”. Diante do exposto é de fácil percepção que as esferas da liberdade de expressão e de informação entram em embate com as esferas da privacidade e intimidade, haja vista que ambas são amparadas constitucionalmente, bem como são consideradas direitos fundamentais. Nesta senda, destaca-se a relação que é estabelecida entre os biógrafos e os biografados, pois de um lado aquele quer exercer sua profissão através da efetivação da liberdade de expressão e informação, em contrapartida estes visam à proteção de sua vida íntima e privada.

5. (In)constitucionalidade das biografias não autorizadas O termo biografia vem do grego e tem origem da junção das palavras bios e graphein, aquela significa vida e esta diz respeito à escrita. Advém daí que biografia se refere a um gênero informativo que narra a vida de alguma personalidade, o que enseja a necessidade de haver veracidade no conteúdo veiculado, uma vez que a biografia não se confunde com uma obra literária de ficção. Com isso, o exercício autêntico de um biógrafo deve ser pautado na distância para com a parcialidade de sua escrita (VILAS BOAS, 2002, p. 39). Nesta senda, pode-se afirmar que biógrafo está susceptível a lhe ser imputado alguma responsabilização em virtude da veiculação de informações dotadas de inverdades, bem como aquelas que denigrem a imagem e a honra do biografado. Na medida que a disseminação de conteúdo como o acima descrito promove a desvirtuação da função inerente aos biógrafos. 26


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Dentre as obras bibliográficas é possível destacar dois tipos, as biografias autorizadas e as não autorizadas. Aquelas possuem a autorização do próprio biografado ou de seus familiares, os quais, muitas vezes, participam da elaboração da obra por meio da contribuição com relatos, documentos e informações pessoais. Por outro lado, as biografias não autorizadas dizem respeito àquelas obras que são produzidas e publicadas sem a autorização do biografado ou de seus parentes. A conjuntura das biografias não autorizadas ocasiona o conflito entre searas fundamentais de direitos, igualmente importantes e constitucionais, quais sejam: a liberdade de expressão e os direitos da personalidade, vez que aquela é utilizada como pretexto para o exercício profissional dos biógrafos, ao passo que os biografados alegam a proteção de seus direitos da personalidade. Tem-se então a controversa e polêmica discussão acerca da constitucionalidade da publicação das biografias não autorizadas. Nesta esteira, um dos casos de biografias não autorizadas de maior destaque no Brasil é o da biografia “Roberto Carlos em Detalhes”, do historiador Paulo César de Araújo. O cantor Roberto Carlos recorreu ao Poder Judiciário com o fito de proibir a venda da obra em questão1, com o argumento de que ele não a havia autorizado, bem como que o autor da obra biográfica havia ido além da narração fática, e se utilizado de parcialidade ao escrever o texto, vide o emprego descomedido de adjetivos. O cantor alega também que a biografia não autorizada feria seus respectivos direitos da personalidade, pois atingiam diretamente sua intimidade e vida privada. Neste contexto, faz-se imperioso citar o grupo Procure Saber, formado por personalidades como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, dentre outros. A associação foi formada com o intuito de defender as restrições no que tange às biografias de pessoas públicas, ou seja, visa à proibição de publicação de biografias não autorizadas pelos biografados. O fundamento da associação Procure Saber encontra amparo em dois dispositivos do Código Civil de 2002: artigos 20 e 21. O primeiro preza pela proibição de publicações que atinjam a honra do indivíduo, ao passo que o segundo dispositivo determina a inviolabilidade da vida privada. Bem a pretexto desta regra é que se ressalta a Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4815, ajuizada em 2012 perante o Supremo Tribunal Federal de autoria da Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel). A ADI nº 4815 visava declarar a ausência de obrigação no que concerne à autorização dos biografados para a publicação biográfica. Com o escopo de alcançar tal fim, almejava a interpretação conforme o texto constitucional dos artigos 20 e 21 do Código 1 O biografado e o biógrafo entraram em um acordo e a editora responsável pela publicação, Editora Planeta, cessou a impressão de exemplares bem como a venda dos mesmos.

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Civil de 2002, posto que estes representavam limitação ao exercício da liberdade de expressão e informação, o que iria de encontro à democracia. A ANEL sustenta ainda que as personalidades públicas não poderiam alegar a invasão da privacidade e intimidade por parte de publicação como biografias tendo em vista que elas teriam um grau mais reduzido no que se refere às esferas de vida privada. É bem verdade que as personalidades em comento possuem privacidade protegida de forma mais amena em relação às pessoas comuns, a título exemplificativo, pessoas titulares de cargos públicos, políticos, artistas, cantores, figuras públicas em geral, destacam-se neste contexto, com menor esfera de proteção à privacidade. Nesta senda, tem-se que tais personalidades detêm atenção em virtude da posição social ocupada (FERRARI, 1993, p. 142). Ocorre que, quanto às pessoas famosas em virtude do trabalho exercido no contexto no entretenimento, o interesse público, que iria justificar a relativização da vida privacidade, não é de fácil identificação, ou é até mesmo inexistente, pois não caberia defender a ideia de que seria de interesse da coletividade ter um controle sobre a vida de um cantor, por exemplo, haja vista que este não tem o dever de prestar contas à sociedade, como no caso de um político. Destarte, frisa-se que, apesar de personalidades públicas se submeterem à restrição no que tange à proteção de suas respectivas privacidades, este direito não é suprimido por completo, havendo apenas uma espécie de relativização, pois sempre haverá proteção ao direito à privacidade, em virtude de sua fundamentalidade constitucional. De acordo com a autora da ADI, diante do fato de os artigos 20 e 21 do Código Civil não estarem de acordo com o disposto na Constituição Federal de 1988, far-se-ia preciso haver um controle de constitucionalidade pelo STF, uma vez que o dispositivo do Código Civil preza mais pela inviolabilidade dos direitos da personalidade em detrimento do exercício pleno e efetivo do direito fundamental à liberdade de expressão, a qual é tutelada pelo texto constitucional. Depreende-se da análise da ADI nº. 4815 que um dos argumentos nos quais se fundamentou a petição inicial foi a essencialidade da liberdade de expressão para a caracterização do Estado Democrático de Direito, tendo em vista que esta liberdade representa um corolário democrático, sendo assim, sem liberdade de expressão não haveria democracia. Pode-se afirmar assim que o cerne da discussão versa sobre harmonização da norma infraconstitucional prevista no Código Civil com o texto constitucional. O professor Gustavo Tepedino (2012, p. 29) emitiu parecer, posicionando-se a favor da ADI nº. 4815, pois entende que os artigos 20 e 21 do Código Civil não são interpretados conforme o disposto na Constituição Federal de 1988:

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A exigência de autorização do biografado ou de seus familiares (na hipótese de pessoa falecida) prévia à publicação de biografia representa intolerável violação às liberdades de informação, expressão e pensamento, constitucionalmente tuteladas, a configurar, a partir de ponderação in abstracto, censura privada, acarretando, inevitavelmente, a extinção do gênero biografia. Por isso mesmo, tal interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil afigura-se inconstitucional, não podendo ser admitida. As biografias revelam narrativas históricas descritas a partir de referências subjetivas, isto é, do ponto de vista dos protagonistas dos fatos que integram a história. Tais fatos, só por serem considerados históricos, já revelam seu interesse público, em favor da liberdade de informar e de ser informado, mas como preservação da memória e da identidade cultural da sociedade.

Por fim, a ministra relatora afirmou em seu voto que “biografia é história. A história de uma vida. (...) ingressa na intimidade sem que o biografado sequer precise se manifestar”. Ressaltando aí a relevância das obras bibliográficas, bem como a inevitabilidade de o biógrafo abordar de aspectos íntimos da vida da pessoa biografada em prol da construção de uma boa e fidedigna obra. A ministra relatora continua dizendo: “A vida do outro há de ser preservada. A curiosidade de todos há de ser satisfeita. O biógrafo cumpre o segundo papel” (BRASIL, STF, 2015, p. 98 e 99). A relatoria sustenta que a liberdade de expressão e os artigos 20 e 21 do Código Civil de 2002 não estão em consonância, na medida que estes corresponderiam à espécie de censura, ao visar o controle daquilo que é publicado. Tal fato traz a ideia de práticas abusivas e autoritárias por parte do Estado, situações comuns em regimes ditatoriais e não em ambientes democráticos: (BRASIL, STF, 2015, P. 47) A censura é, com frequência, lembrada em relação ao ilegítimo e perverso atuar ilegítimo do Estado. Prática comum em regimes autoritários ou totalitários, não é, contudo, exclusividade do Estado. Mas a censura permeia as relações sociais, propaga-se nas circunstâncias próprias da vida. A censura recorta a historia, reinventa o experimentado, pessoal ou coletivamente, omite fatos que poderiam explicitar a vida de pessoa ou de povo em diferentes momentos e locais. Censura é repressão e opressão. Restringe a informação, limita o acesso ao conhecimento, obstrui o livre expressar o pensado e o sentido. Democracia deveria escrever censura com s em seu inicio: semsura.

O voto proferido afirma ainda que a liberdade de expressão é livre, sendo certo que toda variedade de censura prévia deve ser afastada, com isso a autorização prévia para a publicação de biografias seria uma manifestação de censura

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prévia ao direito de expressão que o particular possui. Nesta senda, a ministra relatora Carmen Lúcia aponta as indagações seguintes: (BRASIL, STF, 2015, P. 100) Como conhecer a história para reprisar fatos bons e maus e repetir exemplos, negando os negativos, se a obra não pode ser mostrada? Como imaginar que novos holocaustos ocorram sem saber o que os envolveram, quem esteve na frente dos movimentos e como a seus atos chegaram? Como ignorar que é na privacidade que as coxias do poder estatal e social se engendram? Como saber como movimentos artísticos, científicos e políticos nasceram, suas causas, motivações e características se reuniram?

Os questionamentos levantados pela ministra relatora denotam a importância da liberdade de expressão e informação para viabilização do entendimento e compreensão de dada conjuntura, e é exatamente neste contexto que as biografias vem à baila como elementos propiciadores do desenvolvimento histórico e social. Sendo assim, nas palavras da ministra relatora, “pela biografia não se escreve apenas a vida de uma pessoa, mas o relato de um povo, os caminhos de uma sociedade” (BRASIL, STF, 2015, p. 113). De acordo com o voto proferido, infere-se que as liberdades, tais como a de expressão e de informação, estão calcadas no texto constitucional, de tal maneira que não se faz possível que nenhum outro dispositivo as derrogue. Tendo em vista que, apesar de as normas constitucionais estarem todas no mesmo patamar de relevância, sendo merecedoras do mesmo grau de proteção jurídica, o mesmo não vale para as demais normas, como as dispostas em leis infraconstitucionais, visto que estas estão em posição hierárquica inferior às normas constitucionais, devendo sempre estar em consonância com elas. Ao final, a referida ADI nº. 4815 foi julgada procedente, o que resultou na inexigibilidade de autorização prévia para a publicação de biografias. Sendo assim, entende-se que a liberdade de expressão e de informação são fundamentais para a construção efetiva de um ambiente democrático, com isso, o julgamento procedente da ADI nº.4815 apenas ratifica a essencialidade de tais liberdades, sendo certo que a publicação de biografias não autorizadas representa uma forma de exercício da liberdade de expressão e de informação.

6. Conclusão Os direitos fundamentais constituem um núcleo inviolável de direitos inerentes à condição humana, sendo essenciais para a própria existência do homem e sua convivência harmônica em sociedade. Despiciendo afirmar a essencialidade desses direitos, que devem estar a salvo, seja da investida estatal, seja do possível ataque que se lhes possa fazer em nome do exercício do direito à ampla liberdade de informar. Os direitos ora em análise estão previstos na Cons-

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tituição Federal de 1988, principalmente na sua Parte I, porém não se resume apenas nisto, haja vista que não há um rol taxativo de direitos fundamentais na Constituição. No contexto do Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão constitui um papel essencial, como uma espécie de corolário, pois corresponde a elemento caracterizador da democracia, haja vista que, na ausência do direito à liberdade de expressão, o regime democrático corre um sério risco de sucumbir a regimes ditatoriais. Liberdade de expressão corresponde ao direito que o indivíduo possui de manifestar seus pensamentos e opiniões, o que não se confunde com o direito à liberdade de informação, que se refere à divulgação de fatos, dados e informações, sendo certo que, neste caso, não há emissão de pensamentos do próprio emissor, sendo apenas um repasse de informação para a sociedade, a ser feito de forma imparcial. Com base nisso é que se afirma que a informação possui uma verdadeira função social, pois contribui para a formação da opinião pública, exigida a sua veracidade e imparcialidade. Incontroverso que com a Revolução Tecnológica surgiu um novo paradigma tecnológico, principalmente com o advento da internet, que foi essencial para o desenvolvimento e maximização da difusão de informações, que se dá de maneira bastante célere. Apesar de possuir um papel fundamental no âmbito do Estado Democrático de Direito, o direito à liberdade de expressão não é um direito absoluto, atentando-se para a necessidade de tutela de outros direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, como os direitos à imagem e à privacidade. Os direitos à imagem e à privacidade correspondem a espécies do gênero direitos da personalidade. Este diz respeito a direitos inerentes à condição do homem, possuindo correspondência com a dignidade da pessoa humana. O direito à imagem afigura-se na expressão física e moral do sujeito, assim atraindo as características que identificam a pessoa, ao passo que o direito à privacidade assegura ao indivíduo possuir seu espaço próprio de vida pessoal, que não é de interesse de terceiros. Além disso, abrange tanto a tutela da vida privada como da intimidade. Ressalte-se que estas não se confundem, porquanto a intimidade possui uma esfera mais restrita que a vida privada, sendo certo que aquela está contida nesta. Faz-se mister frisar que os parâmetros de privacidade irão variar de acordo com a posição ocupada pelo indivíduo na sociedade a qual está inserido, pois, a depender do papel que ele exerce, a sua privacidade pode ser restringida, mas nunca extirpada, tendo em vista a fundamentalidade do direito à privacidade. O conflito entre liberdade de expressão e direito à imagem e à privacidade é muito comum, destacando-se o caso das biografias não autorizadas, que trouxe à tona um debate acerca da constitucionalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil de 2002, pois de acordo com a petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4815 apresentada pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL), tais artigos não estavam sendo interpretados de acordo com o 31


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disposto na Constituição Federal de 1988, haja vista que os dispositivos infraconstitucionais prezavam pela tutela da vida privada e intimidade em detrimento da liberdade de expressão e de informação, o que não seria compatível com o contexto democrático vigente. Nesta senda, a ADI nº. 4815 foi apresentada visando que o Supremo Tribunal Federal estabelecesse uma interpretação conforme dos artigos 20 e 21 do Código Civil de 2002 com a Constituição Federal de 1998. A referida ação foi julgada pelo STF, tendo como relatora a ministra Carmen Lúcia, a qual proferiu voto no sentido de dar procedência ao pedido da ADI, no sentido de declarar a inexigibilidade da prévia autorização para a publicação de biografias. O voto da ministra relatora ressaltou a importância das biografias para a consolidação de um contexto histórico, bem como afirmou a incompatibilidade da liberdade de expressão com a censura defendida nos dispositivos infraconstitucionais do Código Civil de 2002, pois a censura está relacionada com práticas abusivas e ditatoriais, o que não é preponderante em um Estado Democrático de Direito. Sendo assim, caso fosse necessária a prévia autorização para a publicação de biografias, estaria dando espaço para a censura prévia à liberdade de expressão e de informação. Neste diapasão, o voto proferido pela ministra relatora Carmen Lúcia deu preferência ao exercício do direito fundamental à liberdade de expressão e de informação, com o fundamento de que tais direitos são essenciais para a consolidação do Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL. Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 1a edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. _______. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado, 1998. ________. Lei nº 5.250, de 09 de fevereiro de 1967. Regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 10 fev. 1967. _______, Supremo Tribunal Federal. Ação de Arguição de Preceito Fundamental n° 130. Arguente: Partido Democrático Trabalhista. Arguido: Presidente da República. Relator: Ministro Carlos Ayres Britto. Brasília, 19.02.2008, publicado no D.O do dia 06.11.2009

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________, Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4815. Requerente: Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL. Relatora Ministra Carmen Lúcia. Brasília, 10 de julho de 2015. BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 4 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. CARVALHO, L. G. Grandinetti Castanho de; GALVÃO, Mônica Cristina Mendes. O STF e o direito de imprensa: análise e conseqüências do julgamento da ADPF 130/2008. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM DE 1948. Carta das Nações Unidas, 1945. Disponível em <www.humanrights.com/pt/.../ universal-declaration-of-human-rights.html.>. Acesso em: 17 set. 2016. FERRARI, Janice Helena. Direito à própria imagem. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993 GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas S.a., 2015. MILL, John Stuart. Da liberdade de pensamento e expressão. 2 ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1976. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de, Comentários à Constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 5, 1968. PAESANI, Liliana Minardi. Direito e internet: liberdade de informação, privacidade e responsabilidade civil. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2013. RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. SÁNCHEZ, Juan José Bonilla. Persona y derechos de la personalidade. Madrid: Reus, 2010. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 39. ed. São Paulo: Malheiros, 2016 SOUSA, Nuno e. A liberdade de imprensa. Coimbra: Coimbra, 1984. TEPEDINO, Gustavo. Opinião Doutrinária. Disponível em: <http://www. migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20120823-06.pdf >. Acesso em: 20 set. 2016. VILAS BOAS, Sergio. Biografias e biógrafos: jornalismo sobre personagens. São Paulo. Summu, 2002. 33


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TESTOR A SIMPLIFICAÇÃO E A PRODUÇÃO DA PROVA EM PROCESSO CIVIL Irene Portela

Instituto Polit´écnico do C´avado e do Ave, Barcelos JusGov, Universidade do Minho, Braga

1. Resumo O projeto TESTOR é um projeto de investigação financiado pelo Quadro Portugal 2020 e pela Fundação da Ciência e da Tecnologia, e visa a obtenção da simplificação e da produção da prova no âmbito do Processo civil em sede judicial– é um projeto enquadrado no domínio da eJustice (entendido como sistema de e-justiça, num âmbito eminentemente de tecnologia digital de última geração (TIC) programada de acordo com nova legislação da promovida pela reforma da Agência da Modernização Administrativa. O projeto consiste na produção de um protótipo, recorrendo à metodologia da prova de conceito (Poc) para envolver os stakeholders internos (ao nível estratégico, de gestão, operacional e técnico) e externos (ao nível da prevenção e profilaxia, de um lado, redução de custos, a segurança jurídica, a resolução célere de litígios com o escoamento de pendências) na equação da solução do problema da lentidão/custo e ineficácia do eJustice sistema. Em dezoito meses, usando um financiamento de cerca de cento e vinte mil euros, uma equipa de treze membros (nove investigadores universitários e quatro jovens investigadores) irão desenvolver um protótipo cuja função é simplificar a produção da prova, antecipadamente para ser usada em fins judiciais, ou extra-judiciais. A prova, com toda a panóplia de problemas que se lhe associam (sem prova não existem danos, nem responsáveis) acaba por ser o ponto nevrálgico do sistema da eJustiça. Os factos materiais devem ser provados e esta atividade é determinante para fixar do valor da prova. O valor probatório de um facto é atribuído pelo princípio da livre apreciação do Juiz.

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TESTOR - a simplificação e a produção da prova em processo civil Irene Portela

A constatação de que o projeto TESTOR implica uma união intrínseca com as TIC, num quadro de envolvimento dos principais agentes da eJustice, pode ser a materialização e posterior validação de novo sistema mais transparente e mais justo para todos os intervenientes no sistema judicial.

2. Introdução O Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, através do número 1 do Artigo 38.º, vem atribuir aos solicitadores competências para realizar “reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial”. O número 2 do mesmo artigo, confere força probatória aos reconhecimentos, autenticações e certificações realizadas pelos solicitadores, desde que, tal como é exposto no número 3 do Artigo 38.º, sejam efetuados mediante registo em sistema informático. Neste âmbito, a Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução (OSAE) desenvolveu uma aplicação de “Registo Online de Actos de Solicitadores” (ROAS), que possibilita, a estes profissionais, o registo de atos de reconhecimentos, autenticação e certificação, através de uma autenticação na plataforma por um mecanismo de autenticação utilizador/senha (atribuído pela Câmara dos Solicitadores). A legalidade e certificação dos documentos depositados no ROAS, é assegurada pelo uso de Selos de Autenticação em papel autocolante (vinhetas)/indicação do número de vinheta, que são emitidos para cada solicitador e remetidos para o domicílio profissional do solicitador, por carta registada. De acordo com o disposto no “Regulamento de Publicidade e Imagem dos Solicitadores e Agentes de Execução” (Regulamento 786/2010), a autenticação de documentos compostos por mais de uma página, é realizada utilizando um único selo, colocado sobre um agrafo que une as páginas do documento. No processo de autenticação, o solicitador deve ainda assinar ou rubricar o selo, colocando a data em que a assinatura ou rúbrica foi aposta. Este procedimento torna um documento “particular” num documento “particular autenticado”, mas não lhe confere a força de “documento público” tal como sucede por exemplo com a escritura pública. O documento assinado por este profissional pode ser alterado de forma fraudulenta, ou seja, sem o consentimento do seu autor ou das partes envolvidas (no caso dos negócios jurídicos) – estão aqui em causa os valores da autenticidade, da integridade e do não-repúdio. Por outro lalo, o decurso do tempo é por si só um fator cuja existência não pode ser iludida nos custos da prática forense por um lado, e da justiça por

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outro – a possibilidade de um documento ser destruído aumenta à medida em que o tempo decorre, podendo ter este um efeito corrosivo e irreparável sobre o conteúdo e a forma dos documentos. A informação digital apresenta-se sob uma quantidade de formatos, mapeados em código binário sobre suportes informáticos, e a sua leitura e conservação coloca aos “novos curadores” dos contratos/das procurações/dos testamentos/das declarações para memória futura/dos auto de constatação ou dos autos de verificação, o desafio da sua “irreversibilidade e da sua incorrupção” para sempre. Esta indicação criptográfica verificável e segura vem converter a ação dos Solicitadores e dos Agentes de Execução em agentes autenticadores e certificadores plenipotenciários das competências que o legislador lhes atribuiu com a reforma, o papel de verdadeiros auxiliares da justiça.

3. O Projeto TESTOR No projeto TESTOR é permitido não apenas certificar documentos (como um notário), mas também acompanhar e ligar a prova, que pode ser áudio, vídeo ou ter qualquer outro conteúdo digital. A agregação do documento com um registo de data e hora é uma funcionalidade essencial e o registo de data e hora deve ser preservado por um período de tempo indeterminado. A constante evolução tecnológica e o aumento da capacidade computacional dos dispositivos eletrónicos fazem com que os algoritmos criptográficos se tornem obsoletos e percam parte da capacidade de proteção do conteúdo assinado digitalmente. Quando o objetivo é arquivar os documentos assinados, a assinatura digital deve ser uma assinatura Long Term Validation (LTV). Uma assinatura LTV atua aplicando um carimbo temporal com metadados integrados ao conteúdo do documento, garantindo a sua preservação e o seu conteúdo inalterados durante um longo período de tempo[1] habilitando o arquivo do conteúdo[4]. Uma alternativa às assinaturas digitais é a tecnologia blockchain. A tecnologia Blockchain pode preservar os documentos digitais com um carimbo temporal com a tecnologia de base de dados segura, distribuída e aberta[8]. Para isso, uma função hash é aplicada ao documento assinado e adicionada à blockchain, o código hash na blockchain também é enviado para o cliente. Para comprovar a integridade e autenticidade do documento submetido, uma função hash é aplicada ao documento em questão e visto se está presente na blockchain, estando presente é comprovada a autenticidade e integridade do documento. Os documentos são assinados digitalmente por todas as partes interessadas e podem incluir um solicitador ou um advogado. A assinatura é realizada com um smartcard (cartão de cidadão)[8] de cada stakeholder. Portugal oferece o serviço Chave Móvel Digital (CMD) que permite ao cidadão realizar, por sua própria vontade, uma assinatura digital qualificada com a senha escolhida por ele e o seu código de segurança[2]. Para utilizar o serviço CMD é necessário estar previamen37


TESTOR - a simplificação e a produção da prova em processo civil Irene Portela

te registado, o que pode ser feito online ou pessoalmente no serviço. O CMD necessita da associação de um número de telemóvel com o número de identificação civil (NIC) para um cidadão português e o número do passaporte para um cidadão estrangeiro.

Fig.1 - Arquitetura do sistema

4. Requisitos de Segurança A identificação dos requisitos do Sistema de Certificação Digital a ser adoptado para o processo de assinatura e submiss˜ao, e para o processo de migração (se apropriado): •

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Segurança na Comunicação: Os dados comunicados entre o cliente (browser) e o servidor não podem ser visualizados por uma terceira entidade nem podem ser alterados na comunicação passando a solução pela encriptação dos dados. A solução envolve o uso do protocolo de segurança Transport Layer Security (TLS)[3]. Este protocolo tem de ser usado entre o browser e o servidor e entre o servidor e possíveis integrações com outros sistemas, como um serviço externo de assinatura digital. Proteção dos Dados: Os dados guardados serão os metadados da submissão e os documentos submetidos. Os metadados da submissão e os dados do utilizador serão guardados numa base de dados relacional e os documentos


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num sistema de ficheiros onde a base de dados indexa a localização dos documentos submetidos. Existem medidas para garantir a segurança e a privacidade dos dados, soluções para a recuperação dos dados, acesso ao dados e infraestrutura. O acesso à informação e conteúdo das submissões é autorizado apenas para aqueles que têm permissão para tal acesso, e as permissões são definidas no ato de submissão de documentos. Todo o acesso aos dados é registado. Para isso, todo o acesso ao conteúdo das submissões na base de dados é guardados na base de dados. Os dados presentes na base de dados estarão encriptados. Migração de Tecnologias: A criação de futuros formatos para leitura de texto, áudio, vídeo, entre outros, pode tornar obsoletos os formatos de arquivo existentes no sistema.

Para garantir que os documentos digitais que são guardados hoje possam ser lidos pelos computadores e programas que serão usados no futuro a fim de mitigar o problema da obsolescência tecnológica e garantir o acesso contínuo à informação digital, várias estratégias de preservação da informação digital foram apontadas, como a emulação, a migração de formatos e o encapsulamento. Pode-se concluir que o seguinte conjunto de serviços é suficiente para implementar procedimentos de preservação automática (nesta fase, exclusivamente com base na migração de formatos) que operam transversalmente em coleções de objetos digitais[5]: •

• •

Serviço de identificação de formatos: fundamental para obter um mapa dos formatos que constituem a coleção de objetos a serem preservados. Através desta informação, decisões podem ser tomadas quanto à melhor estratégia de preservação a ser tomada; Serviço de notificação de obsolescência: serviço necessário para garantir a automação dos processos de preservação. Este serviço monitoriza permanentemente o atual contexto tecnológico e determina o nível de obsolescência de um determinado formato e os riscos associados à sua conservação. Numa situação de rutura tecnológica iminente, informa o sistema da preservação que deve iniciar uma intervenção de preservação. Serviço de conversão de formato - serviço responsável pela execução de ações de preservação; Serviço de controlo de qualidade - os conversores não são todos iguais e as conversões nem sempre são perfeitas. Este serviço é responsável por avaliar a qualidade de uma conversão e, subsequentemente, o conversor ou conversores usados; Serviço de ajuda na seleção de estratégias de conversão - um objeto, formato ou classe de objetos pode ser convertido em um grande número de formatos diferentes. Uma migração pode ser realizada usando uma infinidade de 39


TESTOR - a simplificação e a produção da prova em processo civil Irene Portela

ferramentas de conversão. Este serviço permite identificar, entre todas as opções reconhecidas pelo sistema, o que garante o mais alto nível de satisfação do preservador.

Partes interessadas Assinam Digitalmente o Ficheiro/Documento

Aplicação de uma Hash Function

Long Term Signature Timestamp

Assinatura Digital TESTOR

Fig.2 - Criação de prova

Uma função hash é aplicada ao documento submetido e assinado anteriormente pelas partes interessadas. Em seguida, o código hash é enviado para uma autoridade externa reconhecida que adiciona o registo de data e hora[6] e assina digitalmente com uma assinatura de longo prazo (assinatura LTV)[1], a entidade central assina e entrega o resultado para o cliente como prova, fornecendo uma assinatura digital legalmente reconhecida. O par de chaves da autoridade central é único e usado para todos os documentos a serem assinados, conforme mostrado na figura 2. Este par de chaves pode incluir um certificado por uma autoridade externa reconhecida. O cliente com o resultado indicado e o documento igual ao documento submetido pode verificar a sua submissão mesmo que a entidade central (TESTOR) remova os dados referentes à sua submissão. Quando a autenticidade da data e hora da apresentação é contestada, a prova é feita através da data presente na assinatura de longo prazo. Quando a autenticidade do documento é contestada, a prova é feita comparando a função hash do aplicativo ao documento em questão com o hash presente no resultado assinado, o hash não sendo igual, os documentos não são os mesmos.

5. Conclusões A conceção do projeto TESTOR é eminentemente prática, e visa simplificar procedimentos, proporcionando segurança, rapidez, prevenção de litígios judiciais. O protóipo do TESTOR será usado como uma prova de conceito. Esperamos que este projecto gere novas oportunidades para aplicações sociais e 40


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profissionais na área da justiça, com significativas consequências na economia, nas finanças e na inteligência artificial. A OSAE está empenhada em garantir a plena exploração do prototipo como serviço público de e-Justice, inovador com enfoque profissional e social. O sistema de justiça electrónica da OSAE em Portugal será pioneiro e a utilização será a base para uma nova fase da justiça.

Referências bibliográficas 1. Ansper, A. Buldas, A., Roos, M. and Willemson, J. (2001) Efficient long-term validation of digital signatures. In International Workshop on Public Key Cryptography, pages 402–415. Springer. 2. Chave mo´vel digital. https://www.autenticacao.gov.pt/ a-chave-movel-digital, 2018. [Online; accessed 24-April-2018]. Dierks, T. (2008) The transport layer security (tls) protocol version 1.2 3. Dierks, T. (2008) The transport layer security (tls) protocol version 1.2 4. Dumortier, J (2003) E-government and digital preservation. E-Government: Legal, Technical and Pedagogical Aspects, Publicaciones del Seminario de Informatica y Derecho, Universidad de Zaragoza, pages 93–104 5. Ferreira, M. (2009) Preservac¸˜ao de longa dura¸c˜ao de informa¸c˜ao digital no contexto de um arquivo hist´orico. Doctoral’s thesis, Universidade do Minho [Online; accessed 24-April-2018]. 6. Haber, S. and Scott, W. How to time-stamp a digital document. In Conference on the Theory and Application. 7. Ølnes. S. (2016) Beyond bitcoin enabling smart government using blockchain technology. In International Conference on Electronic Government and the Information Systems Perspective, pages 253–264. Springer. 8. Vasconcelos, A. (2107) The portuguese interoperability framework applied to the Portuguese citizen card project. http://www.oecd.org/dataoecd/36/9/38573902. pdf, [Online; accessed 24-April-2018].

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O FINANCIAMENTO DE SOCIEDADES COMERCIAIS E AS NOVAS TECNOLOGIAS: OPORTUNIDADES E DESAFIOS1 João Nuno Barros

Advogado de PLMJ Advogados, SP RL | Doutorando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

1. Resumo Pese embora, nos tempos hodiernos, as sociedades comerciais se constituam, por via de regra, com insuficiência de capitais próprios, as mesmas necessitam de ser dotadas de fundos que permitam a prossecução da respetiva atividade social. Adicionalmente, a crise iniciada em 2007 agudizou os problemas existentes ao nível do financiamento bancário, porquanto teve um inequívoco impacto na atividade bancária, o que gerou uma crise do recurso a esse tipo de divida – a mais recorrente na vida das empresas nacionais. Nesse sentido, com o desiderato de permitir a subsistência do extrato empresarial nacional, e mais do que isso, de fomentar o crescimento económico

1 O texto que se publica mantém-se fiel ao conteúdo e à forma de discurso oral dada à intervenção no 5.º Congresso Internacional de Direito da Lusofonia, organizado pela Escola de Direito da Universidade do Minho nos dias 22 a 24 de março de 2018. Considerando que o texto resultou de notas pessoais que serviram de base à preparação da referida intervenção, bem como que se destinou a dar forma oral às mesmas, mantém uma feição essencialmente oral, e apenas em determinados casos se impôs, em face da manutenção do rigor científico, a realização de remissões para estudos mais aprofundados acerca de determinados temas. Por outro lado, o texto não visa dar resposta a questões prementes que possam resultar da leitura do título que se lhe atribui, tendo em vista, apenas e tão só, alertar para as problemáticas relacionadas com o assunto em mérito.

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O financiamento de Sociedades Comerciais e as Novas Tecnologias: oportunidades e desafios João Nuno Barros

em Portugal, tornou-se imperativo repensar os modelos até então existentes de financiamento societário. A opção, como não poderia deixar de suceder, passou pelo estabelecimento de uma estreita ligação entre o mercado do financiamento e as novas tecnologias, o que resultou numa clara aposta de criação e desenvolvimento de empresas de FinTech. As empresas de FinTech, para além de assumirem um papel preponderante ao nível do desenvolvimento de instrumentos de financiamento preexistentes – como o crowdfunding ou o P2P Lending -, têm vindo a “chamar a si” a tarefa de criação de novas soluções de financiamento da atividade das empresas nacionais, sempre com recurso às novas tecnologias. Ora, a atividade que tem vindo a ser desenvolvida pelas empresas de FinTech tem o mérito de estar na base da criação de um conjunto de oportunidades para o mercado do financiamento empresarial, bem como de promover o desenvolvimento da tecnologia ao serviço das necessidades e interesses empresariais e sociais. No entanto, o desenvolvimento de soluções ao nível do financiamento societário não pode surgir desacompanhado do trabalho legislativo de regulação do mercado de tecnologia financeira, que carece de uma constante e célere adaptação à evolução da tecnologia que está na sua base.

2. Breve enquadramento Do ponto de vista jurídico, o financiamento societário caracteriza-se por ser uma área do conhecimento que visa analisar e estudar as formas de obtenção dos fundos necessários à prossecução de atividades comerciais por parte das sociedades comerciais. Encontra-se englobado na área geral do “direito das finanças societárias”2, a qual, por sua vez, é a área do saber que se debruça sobre o estudo das finanças societárias de uma perspetiva jurídica, e que versa sob os vários aspetos financeiros relativos às sociedades comerciais, com especial ênfase nas formas de financiamento empresarial. Por fim, cumpre referir que o direito das finanças societárias, juntamente com o tema da governação societária, é um dos pilares do direito societário. É frequente, nos tempos hodiernos, que as sociedades comerciais se constituam com insuficiência de capitais próprios. Para o efeito, basta considerar a possibilidade de se constituir uma sociedade comercial com recurso a um capital social de um euro, dois euros ou cinquenta mil euros – no caso, respetivamente,

2 Habitualmente designado, no contexto internacional, por corporate finance.

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de se pretender constituir uma sociedade unipessoal por quotas, uma sociedade pluripessoal por quotas, ou uma sociedade anónima. Adicionalmente, cumpre referir que hoje em dia o capital social não exerce, em grande parte dos casos, uma função de financiamento das sociedades comerciais, antes se defendendo, no essencial, que os dois principais argumentos pelos quais se mantém a necessidade de existência de capital social são (i) a fixação de um limite abaixo do qual não se pode proceder à distribuição de lucros aos sócios, bem como (ii) o exercício de uma função organizativa interna da sociedade, nomeadamente no que respeita à fixação das percentagens necessárias para efeitos de exercício do direito de voto, do direito aos lucros, do direito à informação, entre outros3. Pese embora não seja esta a sede adequada para efeitos de aferir dos méritos e deméritos associados à necessidade de existência de um capital social mínimo nas sociedades comerciais, importa assinalar que o facto de existirem sociedades comerciais subcapitalizadas originariamente gera problemas a diversos níveis: (i) ao nível do próprio projeto empresarial (na medida em que são constituídas sociedades comerciais que podem não se encontrar dotadas dos fundos necessários para prosseguir as respetivas atividades sociais); (ii) ao nível do próprio mercado (que pode ficar repleto de empresas económica e financeiramente “esvaziadas” e materialmente insolventes ab initio); e, por fim, (iii) ao nível pessoal dos próprios sócios da sociedade (os quais, em face da escassez de património social, são “forçados” a financiar a atividade social por via da prestação de garantias pessoais, desvirtuando, não raras vezes, o propósito subjacente à constituição de sociedades comerciais). Em suma, para efeitos de exercício das respetivas atividades sociais, as sociedades comerciais carecem de financiamento, circunstância que, em tempos de crise, se afigura, não raras vezes, como a única forma de manutenção da própria atividade das sociedades comerciais, o que bem denota a importância do tema.

3. Os tipos de capital e de financiamento societário No âmbito do financiamento societário, é clássica a afirmação de que existem duas grandes áreas fundamentais: o financiamento através de capitais próprios (equity finance) e o financiamento através de capitais alheios (debt finance)4, ainda que na atualidade se esfumace tal distinção, na medida em que é

3 Para um estudo aprofundado acerca das funções geralmente associadas ao capital social, vd. Domingues, Paulo de Tarso, Variações sobre o capital social, Almedina, Coimbra, 2013, pp. 61-2. 4 Oliveira, Ana Perestrelo 2015, p. 14.

de,

Manual de Corporate Finance, Almedina, Coimbra, 2.ª edição,

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possível constatar que existe uma “dissipação substantiva da separação formal entre financiamento externo e financiamento interno”5. Ademais, cumpre ainda referir que se assumem de inegável importância, na atualidade, os instrumentos financeiros híbridos, por via dos quais as sociedades comerciais obtêm financiamento através de mecanismos que reúnem características geralmente associadas a instrumentos de capital próprio e, simultaneamente, alheio6, cuja utilização prática começa a justificar, entre nós, um estudo aprofundado tendente à análise do respetivo regime jurídico. Seguindo os ensinamentos de Alexandre Mota Pinto, são várias as coordenadas que podemos adotar numa tentativa de distinção entre capital próprio e capital alheio, já que ambos se distinguem, sem prejuízo de estarmos perante características meramente tendenciais (dada a heterogeneidade subjacente às diversas formas de financiamento societário): a Em função da sua origem ou proveniência: “o capital próprio é fornecido à sociedade pelos sócios, diretamente, através da realização de entradas, ou, indiretamente, através da retenção de lucros, enquanto o capital alheio, normalmente, é fornecido por terceiros”7; b Em função da liberdade do seu reembolso: enquanto os sócios não têm a liberdade de exigir a restituição, a qualquer momento, do capital próprio, dependendo tal distribuição de uma deliberação que respeite certos requisitos8, os credores apenas terão que aguardar o termo do prazo fundo o qual se poderá exigir a restituição do capital fornecido à sociedade9;

5 Oliveira, Ana Perestrelo de Oliveira, Os credores e o governo societário: deveres de lealdade para os credores controladores?, in “Revista de Direito das Sociedades”, Almedina, Ano I, n.º 1, 2009, pp. 95-133, na p. 95. 6 Para Guiné, Orlando Vogler, O Financiamento de Sociedades por meio de Valores Mobiliários Híbridos (entre as acções e as obrigações), in “I Congresso de Direito das Sociedades em Revista”, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 75-93, na p. 76, “[uma] coisa é híbrida quando não é bem uma primeira nem uma segunda coisa, é antes uma terceira coisa que eventualmente até poderá acabar por estar entre a primeira e a segunda, participando de algumas características próprias de cada uma delas”. 7 Pinto, Alexandre Mota, A prestação de contas e o financiamento das sociedades comerciais, in “O Direito do Balanço e as Normas Internacionais de relato Financeiro”, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 77-117, p. 96. 8 Refira-se, desde logo, a necessidade de respeito pelo princípio da conservação do capital social. 9 Pinto, Alexandre Mota Pinto, A prestação de contas e o financiamento das sociedades comerciais, cit., pp. 96-7.

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c Em função da forma como é regulada a restituição do capital em situações de insolvência ou de liquidação da sociedade10; d Em função da forma de retribuição do capital: “[o] capital próprio […] não pode ser retribuído de forma certa (cfr. artigo 21.º, n.º 2), ao passo que o capital alheio pode, e, normalmente, é retribuído, através do pagamento de juros”11. Tendo em vista elucidar acerca das valências práticas subjacentes ao domínio das matérias relativas ao financiamento de sociedades comerciais, cumpre exemplificar as vastas e distintas formas de financiamento de sociedades comerciais com recurso aos instrumentos acima analisados. Deste modo, (i) exemplos de financiamento por capitais próprios serão o financiamento através de aumento de capital social, por via de prestações suplementares, ou através de investimentos de capital de risco tradicionais, enquanto (ii) exemplos de financiamento por capitais alheios serão o recurso ao financiamento bancário (mútuo), ou a empréstimos obrigacionistas. Por fim, (iii) exemplos de financiamento com recurso a instrumentos de capital híbrido serão o financiamento através de valores mobiliários convertíveis, bem como o recurso a empréstimos subordinados.

4. Status quo do mercado de financiamento societário Os sócios “decidem, livremente, não só “se” (e quanto) financiam, mas, também, “como” financiam a sociedade”, o que remete para uma panóplia de incontáveis meios passíveis de exercer a função de financiamento da sociedade comercial, de modo a que esta possa prosseguir o respetivo objeto social12. Gabriela Figueiredo Dias refere, com especial enfoque dedicado às cláusulas apostas em contratos de financiamento, destinadas a garantir a posição jurídica e económica dos financiadores nos contratos celebrados pelas sociedades, mas com aplicabilidade ao presente caso, que “[os] exemplos de cláusulas contratuais com este sentido e propósito são inesgotáveis e tão diversos quanto a criatividade das partes e a sofisticação da engenharia jurídica e financeira subja-

10 Por todos, vd. Labareda, João / Fernandes, Luís A. Carvalho, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, Lisboa, 2015; Ventura, Raúl, Dissolução e Liquidação de Sociedades – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2011. 11 Pinto, Alexandre Mota Pinto, A prestação de contas e o financiamento das sociedades comerciais, cit., p. 98. 12 Pinto, Alexandre Mota, Do Contrato de Suprimento – O financiamento da sociedade entre capital próprio e capital alheio, Almedina, Coimbra, 2002, p. 59.

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cente à respetiva conceção”, o que bem denota, em termos gerais, a complexidade subjacente às atuais formas de financiamento societário13. De facto, deparamo-nos, hoje em dia, com a existência de um verdadeiro mercado no âmbito do financiamento das sociedades comerciais, no qual existe, como não poderia deixar de ser, procura, oferta, agentes económicos distintos entidades financiadoras, entidades financiadas, intermediários financeiros, entre outros -, transações económicas (em regra) avultadas. Ou seja, podemos afirmar, na presente data, existir um verdadeiro mercado de financiamento de sociedades comerciais, com dimensão e importância acrescidas no âmbito da economia nacional, europeia e internacional. Conforme defende Ana Perestrelo de Oliveira, no âmbito deste mercado de financiamento de sociedades comerciais deparamo-nos, ainda, com a existência de um funding gap, na medida em que existem empresas que obtiveram financiamento numa fase inicial da respetiva vida económica – financiamento obtido por via de instrumentos de capital próprio, ou alheio (financiamento bancário, em regra) -, mas que durante um (maior ou menor) espetro temporal não voltam a ter acesso a novas formas de financiamento das respetivas atividades14. Ora, para além da existência do referido funding gap, existem ainda diferenças significativas no que respeita às formas de financiamento de grandes sociedades anónimas – que se podem financiar por via da entrada em bolsa, por via da emissão de obrigações, entre outras formas - e as Pequenas e Médias Empresas (doravante, “PME”) e startups em início de “vida” – as quais, tipicamente, se financiam via investimento dos próprios sócios e/ou financiamento bancário. De facto, as PME e as startups não podem, por via de regra, socorrer-se da panóplia de instrumentos de financiamento ao dispor das grandes sociedades comerciais nacionais, porquanto não se encontram dotadas de meios, estruturas, bem como do acompanhamento jurídico necessário para o efeito, não dispondo, igualmente, dos fundos necessários para efeitos de cobertura dos altos custos associados ao recurso a diversos tipos de financiamento, como a entrada em bolsa ou a emissão de obrigações.

13 Gabriela Figueiredo Dias, “Financiamento e governo de sociedades (Debt Governance): o terceiro poder”, III Congresso DSR, Almedina, 2014, pp. 359-383, na p. 372. Relativamente a tais cláusulas, veja-se Francisco Pinto da Silva, “A influência dos credores bancários na administração das sociedades comerciais e a sua responsabilidade”, DSR, Ano 6, Vol. 12, 2014, pp. 231-265, as pp. 236-43. 14 Oliveira, Ana Perestrelo de, O papel das startups na FinTech e o ciclo de financiamento de startups, in “FinTech – Desafios da Tecnologia Financeira”, Almedina, Coimbra, 2017, coord. António Menezes Cordeiro / Ana Perestrelo de Oliveira / Diogo Pereira Duarte, pp. 237-245, nas pp. 239-243.

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Por seu turno, nem todas as PME e startups podem ser objeto de investimentos, por exemplo, de capital de risco - atividade em crescimento em Portugal, mas com mercado muito residual face ao mercado do financiamento bancário, por exemplo -, o que reduz substancialmente o tipo de instrumentos financeiros de que aqueles tipos de sociedades comerciais se podem socorrer. Em jeito de remate, conclui-se que há várias formas de financiamento, bem como que algumas dessas formas de financiamento se encontram “reservadas” a certos tipos de sociedades.

5. A crise e impacto nas formas tradicionais de financiamento É de conhecimento geral que a crise iniciada em 2007 teve um inequívoco impacto na atividade bancária, a qual se afigura como a principal fonte de financiamento das PME em Portugal, as quais, por seu turno, representam cerca de 99% do tecido empresarial nacional. Tal impacto implicou, entre outras, a fixação de taxas de juro desajustadas, uma generalizada falta de confiança dos investidores nas entidades bancárias, condições demasiado exigentes para efeitos de concessão de crédito por parte destas últimas, entre outras questões. Deste modo, a dificuldade de acesso ao crédito bancário gerou uma situação económica caracterizada por uma falta de fundos gritante, e consequentemente uma crise do recurso à dívida, o que por sua vez implicou a necessidade de repensar os modelos de financiamento societário, tendo em vista contornar os obstáculos que, à data, se colocavam, bem como que possibilitavam o aproveitamento das “oportunidades criadas por um mercado moderno e inovador”, cuja origem se ficou a dever “à necessidade de inovar as estratégias de financiamento societário”15. Efetivamente, é hoje claro que a “conjuntura de crise económico-financeira desencadeou a procura de mecanismos de financiamento por parte das sociedades, quer por recurso a capitais próprios, quer por recurso a capitais alheios”16. A esse respeito, cumpre referir que o legislador nacional tentou ”colaborar” com os próprios agentes económicos, e adotou um conjunto de iniciativas derivadas, na sua generalidade decorrentes da aprovação do Programa Capitalizar, o qual visa garantir uma recuperação forte e sustentada do crescimento 15 Menezes, Álvaro Silveira de, ”Hybrid mismatch arrangements” e a influência da tributação na decisão de financiamento: os velhos problemas e as novas soluções, in “Revista de Direito das Sociedades”, Almedina, Coimbra, Ano VII, n.º 2, 2016, pp. 427-450, nas pp. 427-9. 16 Duarte, Susana Azevedo, Imposto do selo nas operações de crédito intragrupo – O caso particular dos financiamentos upstream entre SGPS, in “Estudos Comemorativos dos 20 anos da Abreu Advogados”, Coleção de Estudos, n.º 4, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 817-845, na p. 818.

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económico, entre outras formas, por via da criação de estruturas e medidas destinadas a agilizar o acesso das micro, pequenas e médias empresas, bem como do setor empresarial mid cap, a novas formas de financiamento, bem como assegurar a sua capitalização, assim como uma maior solidez e equilíbrio financeiros nas estruturas empresariais. Entre outros exemplos, identifique-se a criação do regime jurídico das Sociedades de Investimento Mobiliário para Fomento da Economia (SIMFE), por via do Decreto-Lei n.º 77/2017, de 30 de julho, bem como a publicação do Decreto-Lei n.º 126-C/2017, de 6 de outubro, através do qual o legislador português criou o Fundo de Coinvestimento 200M, entre outros. Por seu turno, também os próprios agentes económicos trataram de “arregaçar as mangas” e “construir”, arquitetando, novas formas de financiamento societário, tendo o recurso às novas tecnologias assumido um papel extremamente relevante neste ponto.

6. O papel das novas tecnologias 6.1 Influência das novas tecnologias no Direito em geral É claro e absolutamente inegável a importância que as novas tecnologias assumem nas várias áreas da sociedade, às quais é transversal a respetiva importância. Ora, o Direito não é exceção, existindo, aliás, uma particularidade que aqui cumpre assinalar: para além de as novas tecnologias influenciarem o Direito, é a esta área do saber que se reserva a competência de regular essas mesmas novas tecnologias. Deste modo, a relação existente entre Direito e novas tecnologias não se basta com uma influência unilateral das últimas no Direito, antes se verificando uma influência mútua, bilateral, entre ambas. São vários os exemplos que podemos dar de casos em que as novas tecnologias implicaram uma mudança de paradigma em diversas áreas do Direito: na área do Direito Laboral , refiram-se, entre outras questões, as novas exigências de privacidade dos trabalhadores, o direito ao descanso; no que respeita ao direito administrativo, pense-se na criação e utilização de leilões eletrónicos quando tal seja previsto na legislação aplicável; ao nível do direito do consumo, a criação do livro de reclamações eletrónico ou a publicação de diplomas legais tendentes a regular relações de consumo à distância; no que concerne ao direito imobiliário, pense-se em plataformas de alojamento local; entre muitas outras áreas.

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6.2 Influência das novas tecnologias no mercado de financiamento societário Por via de regra, no âmbito do corporate finance, e em especial por referência ao financiamento de sociedades comerciais, há dois tipos de virtualidades geralmente associadas ao papel desempenhado pelas novas tecnologias pode assumir, e que se apresentam de extremo relevo: (i) por via das novas tecnologias, procede-se à criação de novos meios de financiamento de sociedades comerciais; (ii) através das novas tecnologias, é possível proceder-se à criação de mecanismos e plataformas que facilitam (e possibilitam) o acesso da generalidades das sociedades comerciais às formas tradicionais de financiamento. No que respeita ao ponto (i), é inegável que as novas tecnologias assumem um papel de extrema relevância prática na criação de novos meios de financiamento de atividades societárias. Não sendo nosso desiderato proceder a uma enumeração desses novos meios de financiamento, mas pretendendo familiarizar o leitor com exemplos práticos do que aqui referimos, destaque-se, entre outras hipóteses, o papel das novas tecnologias na criação e desenvolvimento do conhecido financiamento colaborativo (crowdfunding)17, através do qual a utilização de plataformas online permite a uma comunidade indeterminada (crowd) financiar, por diversas vias18, projetos empresarias distintos19.

17 Duarte, Diogo Pereira, Financiamento colaborativo de capital (equity-crowdfunding), in “FinTech – Desafios da Tecnologia Financeira”, Almedina, Coimbra, 2017, coord. António Menezes Cordeiro / Ana Perestrelo de Oliveira / Diogo Pereira Duarte, pp. 247-300; Geraldes, Luís Roquette / Silva, João Lima / Cardoso, Francisca Seara, P2P Lending, in “FinTech – Desafios da Tecnologia Financeira”, Almedina, Coimbra, 2017, coord. António Menezes Cordeiro / Ana Perestrelo de Oliveira / Diogo Pereira Duarte, pp. 301-320; Cardoso, Francisca Seara / Geraldes, Luís Roquette, Uma revolução chamada crowdfunding, in “IV Congresso de Direito das Sociedades em Revista”, Almedina, Coimbra, 2016, pp. 439-512. 18 São várias as modalidades de financiamento colaborativo: enquanto o financiamento colaborativo de capital pressupõe que a entidade financiada remunere o financiamento obtido mediante uma participação no respetivo capital social, distribuição de dividendos ou partilha de lucros, o financiamento colaborativo por empréstimo verifica-se quando a entidade financiada remunera o financiamento obtido mediante o pagamento de juros fixados no momento da angariação. Por outro lado, o financiamento colaborativo através de donativo verifica-se quando a entidade financiada recebe um donativo, com ou sem a entrega de uma contrapartida pecuniária, enquanto o financiamento colaborativo com recompensa implica que a entidade financiada fique obrigada à prestação do produto ou serviço financiado, como contrapartida do financiamento obtido – por todos, vd. Belezas, Fernando, Crowdfunding: Regime Jurídico do Financiamento Colaborativo, Almedina, Coimbra, 2017. 19 Entre outras plataformas, pense-se nas seguintes (reconhecidas em Portugal e a nível internacional): PPL, Kickstarter, Fundly, entre outras.

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O financiamento de Sociedades Comerciais e as Novas Tecnologias: oportunidades e desafios João Nuno Barros

Por outro lado, as novas tecnologias desempenham ainda um papel de relevo na criação de serviços, mecanismos e meios que facilitam o acesso das sociedades comerciais em geral às formas tradicionais de financiamento societário. Ora, é no presente segmento de atividade que as empresas de Fintech20 (empresas de Financial Technology) assumem um papel de especial importância, na medida em que desenvolvem aplicações e soluções que criam, para os clientes dos bancos / intermediários financeiros / seguradores tradicionais, uma ecosfera que permite a partilha de dados bancários, o acesso a crédito de forma facilitada e quase instantânea, a desburocratização do acesso a fontes de financiamento, facilitando-se transferência de fundos e a obtenção de melhores condições em empréstimos, nomeadamente através do acesso, por parte dos operadores, a dados das empresas que possibilitam, de forma célere e precisa, avaliar o risco de modo acertado – no fundo, possibilita-se a desintermediação bancária, abrindo-se portas a novas oportunidades de financiamento, com a posterior “reintermediação” por parte de outros atores21. 20 Para uma interessante análise das relações estabelecidas entre o sistema legal e o fenómeno da Fintech, vd. Bonneau, Thierry / Verbiest, Thibault, Fintech et Droit – Quelle régulation pour les nouveaux entrants du secteur bancaire et financier?, RB Édition, Paris, 2017. A este propósito, veja-se, ainda, Duarte, Diogo Pereira, Response to the Commission consultation paper on Fintech : a more competitive and innovative financial sector, in “Revista de Direito das Sociedades”, Almedina, Coimbra, Ano IX (2017), n.º 3, 2017, pp. 715-728. No que respeita a exemplos de empresas de Fintech e respetivos objetivos, atente-se nas seguintes: (i) LOQR (promove o desenvolvimento de sistemas complexos de autenticação e controlo de acessos); (ii) ANT FINANCIAL (promove a utilização de tecnologia de Inteligência Artificial para oferecer serviços financeiros personalizados); (iii) JD FINANCE (tem em vista a criação de uma “nuvem financeira” que permite que bancos e instituições financeiras acedam a todos os tipos de dados que podem ser usados mais tarde para melhorar os seus negócios); (iv) TRANSFERWISE (almeja reduzir taxas e facilitar o processo de transferência de fundos para contas no exterior, bem como atingir uma redução de custos de até 90% nas taxas que envolvem operações de transferência monetária internacional); (v) NUBANK (criação de um cartão de crédito que não tem taxa de anuidade nem tarifas, cobra juros rotativos abaixo da média do mercado; (vi) NEXOOS (visa facilitar a tomada de empréstimos para pequenas e médias empresas, e permitir que o empresário escolha qual taxa de juros se adequa melhor à sua realidade). 21 Por tudo quanto se refere, quase que citando, vd. Oliveira, Ana Perestrelo de, O papel das startups na FinTech e o ciclo de financiamento de startups, in “FinTech – Desafios da Tecnologia Financeira”, Almedina, Coimbra, 2017, coord. António Menezes Cordeiro / Ana Perestrelo de Oliveira / Diogo Pereira Duarte, pp. 237-245, nas pp. 243-244. Por outro lado, no que respeita a exemplos concretos de soluções oferecidas a este nível, pense-se, entre outras, e sem grande rigor, nas soluções eBroker (corretor online, que permite a realização de investimentos “a partir de casa”, ou nas APIs Públicas – Application Programming Interface -, que permitem a utilização de serviços alternativos aos bancos sem que os clientes tenham que alterar as suas contas bancárias, criando uma rede de dados financeiros que permite a partilha com outras entidades financeiras – quanto a estas últimas, vd. Oliveira, Ana Perestrelo de, O papel das startups na FinTech e o ciclo de financiamento de startups, in “FinTech – Desafios da Tecnologia Financeira”, Almedina, Coimbra, 2017, coord. António Menezes Cordeiro / Ana Perestrelo de Oliveira / Diogo Pereira Duarte, pp. 237-245, nas pp. 243-244.

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Dado o relevo assumido pelas empresas de Fintech, o próprio governador do Banco de Portugal afirmou recentemente que “os bancos devem olhar para as fintech “não apenas como concorrentes dos prestadores tradicionais”, mas, sobretudo, como empresas que podem ser instituições complementares ou parceiras”22.

7. Oportunidades e desafios Cumprirá por fim enunciar, de forma necessariamente breve e sumária, as oportunidades e os desafios que, a nosso ver, derivam da crescente influência exercida pelas novas tecnologias no mercado de financiamento societário. Deste modo, começando por destacar as principais oportunidades que daí resultam, em geral, para os agentes económicos, para as entidades financiadoras, bem como para a própria economia nacional, pense-se, entre outras, nas vantagens geralmente associadas ao avanço e desenvolvimento tecnológico na sociedade, a possibilidade de criação de novos postos de trabalho especializado, a possibilidade de facultar às sociedades comerciais fontes de financiamento alternativas (ou mesmo o recurso às formas tradicionais de financiamento), o que permitirá afirmar as empresas nacionais como financeiramente fortes, aptas a expandir-se e internacionalizar as respetivas atividades, a promoção da competitividade entre empresas nacionais e empresas de outros Estados, os benefícios decorrentes da atração de investimento internacional e do consequente fomento direto e indireto da economia nacional, o fomento do mercado de financiamento societário que, por sua vez, poderá implicar um aumento no número de transações passiveis de gerar uma base para tributação por parte do Estado, que assim poderá aumentar a sua receita fiscal sem prejuízo direto dos contribuintes, bem como, em geral, o facto de se propiciar, de forma sustentada, o crescimento da economia portuguesa. Pese embora sejam várias, e claras, as vantagens e oportunidades que podem emergir do estabelecimento de uma relação estreita entre a área do financiamento societário e as novas tecnologias, há também desafios que decorrem dessa mesma relação. Deste modo, destaque-se, entre outras, a necessidade de existência de uma constante adaptação do Direito, de modo a que seja possível ao legislador acompanhar, a par e passo, a (rápida) evolução tecnológica – que implica a existência de um legislador ativo -, bem como a necessidade de o legislador ser especializado, isto é, o legislador ter que estar apto a dar uma resposta cabal e acertada à constante e célere evolução e desenvolvimento da tecnologia aplicada às formas de financiamento. 22 Notícia disponibilizada pelo jornal online “Observador”, datada de 6 de fevereiro de 2018, consultada na data de 7 de abril de 2018 no endereço eletrónico www.observador.pt.

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Entre outros desafios conta-se, ainda, a nosso ver, a necessidade de as entidades reguladoras (com especial enfoque, na presente sede, para o Banco de Portugal e para a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários) atuarem, ao nível da regulação e supervisão das atividades de financiamento societário, de modo eficaz e acertado, tendo, para o efeito, de se encontrar dotadas dos meios técnicos e humanos necessários, em quantidade e qualidade, para o efeito. Por seu turno, afigura-se-nos premente a necessidade de criação de um ambiente legal sólido, mas não suficientemente denso, que simultaneamente atraia e proteja investidores nacionais e internacionais que pretendam exercer atividade no mercado de financiamento societário nacional. Deste modo, pese embora as oportunidades supra mencionadas, o desenvolvimento de soluções ao nível do financiamento societário, com recurso às novas tecnologias, não pode surgir desacompanhado do trabalho legislativo de regulação do mercado de tecnologia financeira, que carece de uma constante e célere adaptação à evolução da tecnologia que está na sua base, tendo em vista, no geral, a criação de condições de segurança e certeza para os investidores nacionais e internacionais investirem em Portugal.

8. Síntese conclusiva Em jeito de conclusão, e tendo em vista tudo quanto acima vem exposto, cumpre reiterar que o financiamento societário assume, na presente data, tal como tem vindo a assumir nos últimos anos, um papel indispensável na vida das sociedades comerciais. Tal como todas as áreas do Direito em geral, o financiamento de sociedades comerciais foi objeto de uma incidência intensa por parte das novas tecnologias, passando a existir novas formas de financiamento societário, bem como meios e plataformas que permitem aos agentes económicos aceder, de modo facilitado e desburocratizado, às formas tradicionais de financiamento. Pese embora seja válida a assunção de que a forte relação estabelecida entre o mercado de financiamento societário cria vantagens e oportunidades claras para a generalidade dos agentes económicos, bem como para os Estados, é inegável que dessa mesma relação decorrem, igualmente, desafios exigentes para o legislador, que deverá estar apto a dar uma resposta célere e acertada às imposições práticas que decorrem do desenvolvimento da relação que vimos de referir, tendo em vista garantir a verificação das vantagens associadas à mesma.

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O “SHARENTING”: UMA DISCUSSÃO SOBRE OS LIMITES DA INTIMIDADE DOS FILHOS MENORES Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

Ministra e Ex-Presidente do Superior Tribunal Militar. Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora honoris causa pela Universidade Inca Garcilaso de la Vega – Lima, Peru. Mestra em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Católica de LisboaPortugal. Professora Universitária. Autora de diversos livros e artigos jurídicos no Brasil e no exterior. Colaboradora Daniela Boson Gropen – Analista Judiciária e Assessora Jurídica/STM/Brasil.

Houve um tempo em que a vida dos filhos era registrada nos álbuns de família ou em filmes caseiros e, o mais grave que poderia ocorrer seria um amigo ter acesso a alguma foto pouco lisonjeira. Atualmente, porém, as crianças aparecem na internet antes mesmo de engatinhar. O incremento das mídias sociais na atualidade trouxe à tona dilemas parentais inéditos, nomeadamente no que concerne à criação da prole. Uma dessas questões diz respeito ao chamado sharenting, neologismo derivado das palavras de língua inglesa share – compartilhar – e parenting- ato de criar os filhos, numa livre tradução. O termo sharenting1 ou oversharenting2 tem sido usado para a descrição do excesso de utilização das mídias sociais pelos pais ou responsáveis no compartilhamento de conteúdos dos filhos menores. A discussão difere 1 Em 2016 o Dicionário Collins de língua inglesa incluiu o sharenting nas palavras do ano para significar o uso habitual das mídias sociais pelos pais para compartilhar notícias e imagens sobre os filhos. In: https://www.collinsdictionary.com/pt/dictionary/english/sharenting. Acesso: 11/2/2017. 2 A primeira utilização da expressão pode ser encontrada nas palavras da semana da revista Time, de 6 de fevereiro de 2013. Vide: http://newsfeed.time.com/2013/02/06/words-of-the-week-new-jersey-jughandles-oversharenting-and-more/ . Acesso : 2.2.2018.

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O “Sharenting”: uma discussão sobre os limites da intimidade dos filhos menores Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha

da relativa às postagens que estes últimos fazem de si próprios, vez serem eles os autores da exposição. Para o sharenting configurar-se mister dois critérios restarem presentes: a criança deve ser identificável (não necessariamente pelo nome completo) e atingir audiência em massa. Ameaças como a pedofilia, o cyberbullying ou o sexting3 levantam questionamentos acerca dos limites ao direito dos genitores em realizar tais postagens. Decerto, se por um lado a comunicação via web é uma forma de conexão com a comunidade e os parentes, por outro o fluxo de informações dispostas na rede mundial de computadores pode afrontar e impedir as pessoas, na mais tenra idade, de criarem no futuro suas próprias “pegadas digitais”. E aí cabe indagar se há ou não violação à intimidade e à imagem dos filhos? As respostas estão longe de serem conclusivas. A respeito do tema, a Convenção Europeia de Direitos Humanos resguarda a privacidade e a vida familiar apenas em relação aos conteúdos remetidos por estranhos, não pelos consanguíneos. Prevalece a presunção de que os pais sempre agem em prol do melhor interesse da prole. O cruel é, por vezes, não terem eles, necessariamente, a real noção sobre a dimensão e os efeitos, a longo ou curto prazo, de tais descortinos no ciberespaço4. Abrigados pela Constituição Brasileira de 1988, os direitos à intimidade e à privacidade são disciplinados pelo inciso X, do art. 5.º. São garantias, oponí-

3 Muitas crianças envolvem-se em atividades online a convite de terceiros e acabam expondo-se sexualmente e envolvendo-se em situações de risco e perigo, que podem evoluir até para contatos físicos eróticos ou libidinosos. 4 Sobre o assunto consultar: RETTORE, Anna Cristina de Carvalho e BORGES E SILVA, Beatriz de Almeida. A exposição da imagem dos filhos pelos pais funcionalizada ao melhor interesse da criança e do adolescente. In: Revista Brasileira de Direito Civil. Volume 8 – Abr/Jun 2016, pp.32-46.

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veis à estatalidade5 e à sociedade em geral, que visam proteger a individualidade, vedando ingerências na vida particular que possam causar constrangimentos, do mais singelo ao mais vexatório. Integram o rol protetivo dos direitos da personalidade, salvaguardando o espaço íntimo do indivíduo, intransponível às intromissões ilícitas externas6. À luz das Ciências Jurídicas, a preservação da intimidade traduz-se em obstaculizar o conhecimento de terceiros da esfera pessoal e do mundo intrapsíquico de cada qual. Fatos ocorridos no domicílio, relativos à vida amorosa ou conjugal, segredos, convicções, hábitos, dentre outros dados confidenciais, reservados a um círculo social limitado, não devem ser revelados porque degradam e causam sofrimento. A intimidade, como exigência moral, impõe que sob

5 Nesta esteira protetiva, a Carta Portuguesa os resguarda em seu art. 26: “1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.” De igual modo, a Constituição Espanhola de 1978 proclama, no art. 18, 1 que: “se garantirá o direito à honra, à intimidade pessoal e familiar e à própria imagem”. Alçado à cânon constitucional, os direitos à intimidade, à vida privada e à imagem foram, paulatinamente, evoluindo do âmbito inter privado, para gozar de um regime jurídico especial de envergadura máxima. Tais postulados “concedem um poder às pessoas para proteger a essência de sua personalidade e suas mais importantes qualidades.” FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. 3ª ed., ver. e atual. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Ed. 2008, p.119. 6 O direito à intimidade pode ser definido como “o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento pelos outros daquilo que se refere a ela só”. CUPIS, Adriano de. Apud: FARIAS, Edilsom Pereira de. Op. Cit, p. 124. Ele reflete a “necessidade de ‘ reservar seus próprios assuntos para si e o abandono da publicidade como um meio de assegurar a conformidade aos códigos sociais”. Id, p. 124

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certas circunstâncias e situações o indivíduo seja deixado em paz, livrando-o da indiscrição alheia, em respeito ao isolamento do sujeito7. A intimidade reúne três elementos básicos: a solidão ou o desejo de estar só; o segredo, daí a necessidade do silêncio; e a autonomia, que se traduz na liberdade de decidir sobre si mesmo como centro propagador de informações8. Funda-se, pois, em uma tríade: a esfera confidencial, a esfera da vida privada e a esfera do sigilo.

7 FARIAS, Edilsom Pereira de. Op. Cit., p.126 e 130. Na doutrina de Paulo José da Costa Júnior: “Poder-se-ia falar numa intimidade exterior e noutra interior. Aquela, como a intimidade de que o homem haveria de desfrutar, abstraindo-se da multidão que o engloba. Insulando-se, em meio dela. E alheando-se mesmo estando em companhia. A intimidade interior, que muitas vezes não implica em solidão já que o homem pode trazer para a sua companhia os fantasmas que mais lhe apeteçam é aquela de que o indivíduo goza, materialmente apartado de seus semelhantes. A intimidade exterior, portanto, é aquela de natureza psíquica. O homem a estabelece no burburinho da multidão. Ensimesmando-se em pleno tumulto coletivo. Decretando-se alheio, impenetrável às solicitações dos que o rodeiam. Presente e ausente. Rodeado e só. A intimidade interior reveste-se de natureza física e material. O indivíduo afasta-se da multidão. Recolhe-se ao seu castelo. Desce dentro da sua alma e sai em busca do seu ser. O que bem pode comportar, no solitário físico, um contato com a vida social, através dos meios de comunicação de que dispõe. E mesmo trazendo para junto de si na sua fantasia, o diálogo silente dos vivos e dos mortos.” O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970, p. 8. 8 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Sigilo de dados: direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. In: Revista da Faculdade de Direito da USP. V. 88. São Paulo, 1999, pp. 442-443. Warren e Brandeis em artigo histórico publicado na Revista de Direito de Harvard, datado de 1890 e intitulado The right to privacy, cogitaram pela primeira vez sobre a necessidade de proteção legal para respaldar a privacidade das pessoas, seus pensamentos, sentimentos e emoções. O texto, de espantosa atualidade, pondera: “ Recent inventions and business methods call attention to the next step which must be taken for the protection of the person, and for securing to the individual what Judge Cooley calls the right «to be let alone» Instantaneous photographs and newspaper enterprise have invaded the sacred precincts of private and domestic life; and numerous mechanical devices threaten to make good the prediction that «what is whispered in the closet shall be proclaimed from the house-tops.» For years there has been a feeling that the law must afford some remedy for the unauthorized circulation of portraits of private persons; and the evil of invasion of privacy by the newspapers, long keenly felt, has been but recently discussed by an able writer. The alleged facts of a somewhat notorious case brought before an inferior tribunal in New York a few months ago directly involved the consideration of the right of circulating portraits; and the question whether our law will recognize and protect the right to privacy in this and in other respects must soon come before our courts for consideration.” In: www.cs.cornell. edu/~shmat/courses/cs5436. Acesso: 30/04/2018. A expressão “right to be let alone” utilizada pelos autores, na verdade, fora utilizada originalmente pelo Juiz Thomas M. Cooley, na obra The elements of torts. Chicago: Callagham and Company, 1895.

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Intimidade9 e vida privada são conceitos interligados. Distinguem-se na medida em que a primeira refere-se às relações subjetivas e de trato personalíssimo10. Por outras palavras, a intimidade é a vida privada tomada stricto sensu. Já a vida privada propriamente dita, engloba as demais relações humanas, cujos dados, embora divididos com um pequeno grupo de pessoas, só ali devem per-

9 A Conferência Nórdica sobre o Direito à Intimidade, realizada em Estocolmo no ano de 1967, conceituou-o como o direito do homem de viver de forma independente a sua vida, com um mínimo de ingerência alheia. Anteriormente, o art. 12 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, dispôs que: “Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e à sua reputação. Toda a pessoa tem direito à proteção da lei contra interferências ou ataques.” 10 Subdivide a doutrina alemã, a vida particular ou privada em três esferas, de dimensões progressivamente menores, na medida em que a intimidade se for restringindo. “O âmbito maior seria abrangido pela esfera privada propriamente dita, que é a esfera privada stricto sensu (Privatsphäre). Nele estão compreendidos todos aqueles comportamentos e fatos que o indivíduo não deseja que se tornem do domínio público. Fora da esfera privada situam-se episódios e condutas de natureza pública. Acham-se eles ao alcance da coletividade em geral, ou seja, de um número indeterminado de pessoas. Por estarem fora da esfera privada, tais fenômenos não gozam da tutela da intimidade, pois estão juridicamente excluídos do campo dos chamados delitos de indiscrição (Indiskretionsdelikt). No bojo da esfera privada está contida a intimidade (Vertrauensphäre) ou esfera confidencial (Vertraulichkeitssphäre). Dela participam somente aquelas pessoas nas quais o indivíduo deposita certa confiança e com as quais mantém certa intimidade. Fazem parte desse campo conversações ou acontecimentos íntimos, dele estando excluídos não só o quivis ex populo como muitos membros que chegam a integrar a esfera pessoal do titular do direito à intimidade. Vale dizer, da esfera da intimidade resta excluído não apenas o público em geral, como é óbvio, bem assim determinadas pessoas, que privam com o indivíduo num âmbito mais amplo. Por derradeiro, no âmago da esfera privada está aquela que deve ser objeto de especial proteção contra a indiscrição; a esfera do segredo (Geheimsphäre). Ela compreende aquela parcela da vida particular que é conservada em segredo pelos indivíduos, do qual compartilham uns poucos amigos, muito chegados. Dessa esfera não participam sequer pessoas da intimidade do sujeito. Conseqüentemente, a necessidade de proteção legal contra a indiscrição, nessa esfera, faz-se sentir mais intensa.” COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Agressões à Intimidade. O episódio Lady Di. São Paulo: Malheiros, 1997, pp.25-26.

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manecer11. Tem um escopo mais amplo de proteção acerca do que se deseja resguardar da sabença pública12. Ambas “são espaços que devem ser preservados da curiosidade alheia, por envolverem o modo de ser de cada um, as suas particularidades. Aí estão incluídos os fatos ordinários, ocorridos geralmente no âmbito do domicílio ou em locais reservados, como hábitos, atitudes, comentários, escolhas pessoais, vida familiar, relações afetivas. Como regra geral, não haverá interesse público em ter acesso a esse tipo de informação”13. Quanto à autonomia, direito personalíssimo e pertencente unicamente ao seu titular, em se tratando de púbere ou impúbere, conforme o grau de maturida-

11 FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 35. 12 A Constituição Brasileira incluiu em seu texto a proteção dos direitos à intimidade e à vida privada como dois institutos distintos. Vide: Art.5º omissis. X– são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação. Assim, vida privada ou vida particular designa aquela afastada do convívio ou da observação de estranhos. Já a intimidade “deriva do latim intimus e, indica a qualidade ou o caráter das coisas e dos fatos que se mostram estreitamente ligados ou das pessoas que se mostram afetuosamente unidas pela estima”. DE PLÁCIDO E SILVA, Apud: VIEIRA, Sônia Aguiar do Amaral. Inviolabilidade da vida privada e da intimidade pelos meios de comunicação. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p.25. Também alguns doutrinadores diferenciam o direito à intimidade e à vida privada quando entendem ser visível que o primeiro apresenta caráter mais restrito que o segundo. Vidal Serrano define a intimidade como: O núcleo mais restrito da vida privada, uma privacidade qualificada, [...] reconhecendo-se que não só o poder público ou a sociedade podem interferir na vida individual, mas a própria vida em família, por vezes, pode vir a violar um espaço que o titular deseja manter impenetrável, mesmo aos mais próximos, que compartilha consigo a vida cotidiana. SERRANO, Vidal. A proteção constitucional da informação e o direito a crítica jornalística. São Paulo: FTD, 1997. 13 BARROSO, Luís Roberto. Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente Adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa. In: Revista de Direito Administrativo, n. 235. Rio de Janeiro: Editora Renovar, jan./mar. 2004. p. 13.

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de, sua vontade poderá prevalecer sobre a dos genitores, sobretudo se detentores de discernimento suficiente para decidirem sobre interesses de cunho pessoal14. Por óbvio o direito à intimidade articula-se com o da imagem. Contemplado por Samuel Warren e Louis Brandeis no passado, define-se como “a faculdade que toda a pessoa tem para dispor de sua aparência, autorizando ou não a captação e difusão dela” 15. Projeta-se, o jus imaginis, como inalienável, irrenunciável, intransmissível e imprescritível16. Nesse norte, ninguém pode alienar, transferir, renunciar, transmitir aos sucessores o direito à própria aparência, que se estende não só ao rosto, mas as partes do corpo, às expressões faciais, voz, dentre outras características singulares e distintas de cada um. E, se cedido pelo titular, a eficácia do consentimento cinge-se aos limites em que for autorizada. Isso porque admite a lei assentir o sujeito ceder sua própria imagem. Em se tratando de crianças, a anuência é dos genitores ou representantes legais, e seu caráter será sempre transitório e específico. Mais, o consentimento só é eficaz em relação àqueles a quem foi conferido, subsistindo o poder de anuir ou recusar a exposição,17 no-

14 Para Pasquale Stanzione: “O menor, segundo os princípios constitucionais, é ‘pessoa’, merecedor de verdadeiro respeito e tutela da dignidade humana a fim de resguardar o desenvolvimento da personalidade. Ser considerado verdadeiro sujeito de direito significa consentir-lhe, em plena autonomia, as escolhas que concernem à sua pessoa [...] especialmente quando ele reúna a capacidade de discernimento”. In: Capacitá e minore età nella problemática dela persona umana. Apud: CURY JÚNIOR, David. A Proteção Jurídica da Imagem da Criança e do Adolescente. Tese de Doutoramento apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2006, pp. 108-109. 15 ZANONI, Eduardo A e BÍSCARO, Beatriz R. Responsabilidad de los medios de prensa. Buenos Aires: Astrea, 1993, p.105. 16 Sobre o direito à imagem e sua exposição na web, vide: TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Considerações sobre a proteção do direito à imagem na internet. In: Revista de Informação Legislativa. Nº 213. Senado Federal. Brasília. Janeiro-Março de 2017, pp. 173-198. Ver, também: STOCO, Rui. Proteção da imagem versus liberdade de informação. In: Revista da Escola Paulista de Magistratura. Vol.3, nº 2, julho/dezembro de 2002, pp. 73-92. 17 CUPIS, Adriano de. Teoria e pratica del diritto civili. Apud: FARIAS, Edilsom Pereira de. Op. cit. p.137, pé pág. 380.O art. 11 do Código Civil Brasileiro é taxativo ao dispor que: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. Cede-se o exercício e não a titularidade de certos direitos atinentes à personalidade, porém, somente durante lapso temporal determinado e não de forma geral ou permanente. FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direito Civil. Teoria Geral. 9ªed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 154.

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meadamente se menor for e desprovido da pretensão de exibir-se18. Nesses casos extremos, o Poder Judiciário deverá intervir, hipóteses nas quais os incapazes serão representados ou assistidos pelos pais, tutores ou curadores ex vi do art. 71 do Novo Código de Processo Civil Brasileiro ou pelo próprio Ministério Público, a depender19. Sob esse prisma, o parens patriae há de ser invocado para reprimir abusos e negligências. E é por esta razão e não outra que o art. 201 da Lei nº 8.069/90, estabelece competir ao Parquet promover o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos interesses difusos ou coletivos, bem como dos individuais, referentes à infância e à adolescência, atribuindo-se-lhe legimitatio ad causam ativa. Há de se salvaguardar a exigência de isolamento ínsita de todo o ser humano, desde a mais tenra idade, que induz ao desejo de privacidade, notadamente se vulnerável ou em estágio de formação. Certo é que os postulados e princípios outrora referidos dialogam com os direitos autônomos da personalidade, concebidos como um conjunto de distintivos pessoais, atinentes à condição humana20.

18 Farias dá notícia de que na Espanha foi editada a Lei Orgânica 1/1982, com o escopo de amparar os direitos à honra, à intimidade pessoal e familiar e à própria imagem em face dos choques oriundos de publicações de opiniões, fatos ou imagens que afetem esses direitos de personalidade. Citando Conde-Pumpido Ferreiro, elucida prestigiar a referida lei princípios como 1) o caráter preferente daquele que detiver maior efetividade; 2) que tais direitos são irrenunciáveis, inalienáveis e imprescritíveis, razão pela qual a renúncia à proteção prevista é nula; 3) se houver consentimento legitimador, prévio e expresso, poderá ser revogável a qualquer momento cabendo indenização pelos prejuízos e danos; 4) que não se admitirá intromissões ilegítimas, tais como como a captação, reprodução ou publicação por fotografia, filme ou qualquer outro procedimento referente à imagem de pessoas em local ou momento de sua vida privada ou fora deles, exceto em hipótese legais específicas. Op. Cit, pp. 154-155. 19 Não se olvide o caráter imprescritível dos direitos a personalidade a rechaçar a convalescência da lesão com o tempo ou sua vitaliciedade. Nesse norte, alcançada a maioridade, a criança já adulta poderá perfeitamente reivindicar a apreciação judicial de eventuais agravos ou delitos e, até mesmo, pugnar pretensão reparatória por dano moral, a ser analisada caso a caso. 20 “O ser humano, como pessoa, fundamento do direito e razão de toda ordem normativa, rodeado se encontra de um arcabouço jurídico que o garante nos compostos basilares de sobrevivência social e desenvolvimento moral próprio.” ARRIBAS, Bruno Felipe da Silva Martin de. Considerações acerca do direito à imagem como direito da personalidade. In: Revista de Informação Legislativa, n 164. Senado Federal, out./dez. 2004. pp. 363-364. “Nessa ordem de ideias, é possível asseverar serem os direitos da personalidade aquelas situações jurídicas reconhecidas à pessoa, tomada em si mesma e em suas necessárias projeções sociais. Isto é, são os direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, em que se convertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe emprestar segura e avançada tutela jurídica.” FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Direito Civil. Teoria Geral. Op. Cit, p. 149.

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Compõem as prerrogativas ínsitas do patrimônio jurídico do cidadão21. Precisamente por considerar estar a criança e o adolescente em desenvolvimento, o legislador nacional conferiu-lhes proteção integral, alçando-os como autênticos detentores de direito, credores de prestações positivas e negativas por parte da família, da sociedade e do Estado22. Ainda, o disposto no art. 227 da Constituição Federal preceitua ser absolutamente prioritário seu resguardo sobre todos os vieses existenciais23. Efetivamente a tutela da personalidade infanto-juvenil há de ser diferenciada para reforçar normas e princípios revestidos de petrealidade. A questão que se coloca é: o pátrio poder autoriza os pais a construírem a identidade virtual do filho à sua revelia, postergando-lhe ou mesmo obstruindo-lhe o exercício da autonomia? David Cury Júnior, em estudo sobre o tema, pontua estar a tutela integral do menor “associada à sua própria fraqueza”, razão pela qual Georges Ripert denomina-a de “assistência aos pequenos.”24 Segundo Cury Júnior, o: “reconhecimento de um direito da personalidade especial, peculiar às pessoas em desenvolvimento, amparado nos princípios da proteção integral e da maior vulnerabilidade, garante que, em caso de colisão com outros direitos de natureza igualmente

21 De eficácia erga omnes, os direitos da personalidade carregam consigo as características da indisponibilidade relativa, da imprescritibilidade, da vitaliciedade e da extrapatrimonialidade. Obrigação de não fazer, isto é, de não violar a personalidade individualizada, proteja-se tanto em relação as demais pessoas quanto ao Estado. 22 Dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990: “Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.” 23 Leia-se o art. 227: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. 24 In: CURY JÚNIOR, David. A Proteção Jurídica da Imagem da Criança e do Adolescente. Tese de Doutoramento apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2006, p.83. Citando Ripert, releva o autor: “A medida é em favor da pessoa. Todos aqueles que pela idade, estado intelectual, inexperiência, pobreza, impossibilidade de agir ou de compreender são na sociedade mais fracos que os outros, têm direito à proteção legal. É necessário protegê-los para restabelecer a igualdade.” Id ,p. 83.

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absoluta, para solução do conflito, prevaleça o melhor interesse da criança e do adolescente [...]”25. Em última análise, o que a positividade almeja blindar é a dignidade, concebida como princípio, valor e norma, cerne das garantias magnas e meio pelo qual são asseguradas as múltiplas dimensões da vida. Diante deste tripé juridicizante, sustenta a doutrina germânica que “a norma consagradora da dignidade da pessoa revela uma diferença estrutural em relação às normas de direitos fundamentais, justamente pelo fato de não admitir uma ponderação no sentido de uma colisão entre princípios, já que a ponderação acaba sendo remetida à esfera da definição do conteúdo da dignidade”26. Sobre o tema, impossível não exaltar o grande constitucionalista Paulo Bonavides quando assevera que: “sua densidade jurídica no sistema constitucional há de ser máxima. Se houver reconhecidamente um princípio supremo no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados: a dignidade”27. Nesse diapasão, o asilo à intimidade e à privacidade emana diretamente da dignidade. Reconhecê-la impõe a “elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico, no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e para a sua realização existencial [...]”, uma vez ser ela “o centro de gravidade ao derredor do qual se posicionam todas as normas jurídicas”. Ela enfeixa valores inerentes à integridade física, psíquica e intelectual do indivíduo, porquanto entrincheira a autonomia e o livre desenvolvimento do ser humano28. Por certo, valem-se os genitores das redes sociais para dividirem experiências de parentalidade, manterem contato com a família e os amigos, atualizando-os acerca da criação de seus rebentos. Está-se diante de manifestação da liberdade de comunicação, compreendida como um direito subjetivo fundamen25 Id., p. 85. 26 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 3ªed, p.73. 27 Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, 2003, 2ª ed, p.233. Para Alexandre de Moraes: “A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na auto-determinação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.” MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 5ª ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2006 p. 60. 28 FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson .Op. Cit, , p. 136-137.

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tal que defere a expressão livre das ideias, pensamentos e opiniões, por meio de escritos, falas, imagens ou outro veículo de difusão. Nessa senda, aos pais é autorizado transmitirem informações sem sofrerem restrições ou interferências. Até porque, a priori, a proteção do menor cabe à eles ou aos responsáveis legais, pelo que exercem um duplo papel: o de guardiões de direitos e o de narradores das histórias domésticas. O conflito exsurge quando os filhos crescem e se ressentem da exibição não consentida feita por quem supostamente deveria protegê-los ou, quando ela excede ao razoável e expõe os juridicamente incapazes29. A propósito da utilização indiscriminada das mídias sociais, pesquisa realizada pela BBC de Londres estima que uma em cada quatro crianças sente-se envergonhada, ansiosa e preocupada quando os pais publicam suas fotografias na internet. “Um psicólogo entrevistado pelo The Gardian afirmou que o sharenting pode fazer mal à saúde mental pelo fato de a infância ser um período crucial 29 “Respeita-se a dignidade da pessoa quando o indivíduo é tratado como sujeito com valor intrínseco, posto acima de todas as coisas criadas e em patamar de igualdade de direitos com os seus semelhantes. Há o desrespeito ao princípio, quando a pessoa é tratada como objeto, como meio para a satisfação de algum interesse imediato. O ser humano não pode ser exposto - máxime contra a sua vontade - à mera curiosidade de terceiros, para satisfazer instintos primários, nem pode ser apresentado como instrumento de divertimento alheio, com vistas a preencher o tempo de ócio de certo público.” MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 365. Recentemente causou indignação a transmissão ao vivo de castigo imposto a um menino de 10 anos, no Estado da Virgínia, USA, que por ter cometido byllying contra um colega foi suspenso por três dias do ônibus escolar. O pai, Bryan Thornill, transmitiu ao vivo, via Facebook, a reprimenda, mostrando um vídeo do filho correndo na chuva. A filmagem foi realizada dentro do carro do genitor que dirigia vagarosamente, atrás da criança, porquanto recusou-se a levá-la de automóvel a título de punição. Segundo especialistas, tratou-se de uma ideia primitiva de reciprocidade, constrangedora e violenta; de uma “espetacularização do cotidiano” com a consequente quebra de fronteiras entre o público e privado. In: Jornal O Globo, de 8 de março de 2018, p. 26. Educar e disciplinar os filhos expondo-os à humilhação pública é veementemente criticado por médicos e pedagogos. “It’s important to differentiate between discipline and punishment. Discipline teaches a child how they should act, and should be a response that makes sense to the child and give them a chance to correct their mistakes. Punishment does not teach a child what they should do; it simply teaches them that they are bad. When a child is punished or shamed by their parent, it can inadvertently attack the child’s personality and not the behaviour the parent is attempting to reprimand. Instead of making the child understand that what they’ve done is wrong, shaming can actually make them feel like there’s something wrong with who they are. In fact, shame is the worst consequence of emotional abuse, especially when it comes from a parent. From a neurodevelopmental perspective, social brain structures are critical to a teenager’s development, which is why many teenagers are more sensitive to social evaluation from their peers. This makes it even more painful when parents use such a magnified social context to punish their children. Damage done during this stage of development, when social interactions are a priority for success in the future, can create long-lasting harm and emotional damage.” The Dark side of Public Shaming Parenting, VALENTIN&BLACKSTOCK PSYCHOL. In: http://www.vbpsychology.com/the-dark-side-of-public-shaming-parenting/. Acesso: 7/5/2018.

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para a formação da personalidade”30, sendo perigosa a ausência de diferenciação entre o público e o privado. Há quem argumente que a exibição da intimidade infantil anterior à capacidade de opinamento do menor pode expô-lo às situações vexatórias e ao bullying,31 uma forma de agressão cada vez mais presente. Pior, pode vir a prejudicá-lo profissionalmente na vida adulta ou mesmo torná-lo alvo de chacota social. Isso porque as chamadas “pegadas digitais” são rastros praticamente indeléveis. Á evidência o mundo está cada vez mais informatizado. Hodiernamente, postar fatos e imagens equivale à antiga remessa pelos Correios de cartas e fotos familiares e rememora as histórias narradas em rodas de amigos. Situações cômicas e brincadeiras infantis sempre foram contadas inocentemente; afinal, o convívio social nunca esteve adstrito ao recinto do lar, mas ao seio comunitário. O que mudou nesta contemporaneidade foi o alcance e o dimensionamento da mídia, a desafiar os operadores do Direito na busca de critérios jurídicos eficientes para preservar valores tradicionais e solver eventual colisão de bens fundamentalizados. Nesse sentido, a preferred position, o balancing of interest, o regime de exclusão, a necessária ponderação e a concorrência normativa, despontam como técnicas hermenêuticas conciliatórias para dirimir impasses inter privato inéditos. Para além, o princípio da proteção integral da criança pactuado na Assembleia Geral das Nações Unidas, o postulado do melhor interesse e da maior vulnerabilidade infantil a convergirem nos conexos direitos ao respeito, à identidade, à autonomia, à vida privada, já nomeados, hão de nortear

30 http://www.updateordie.com/2017/06/14/voce-sabe-o-que-e-sharenting/, Acesso: 2/2/2018. 31 Verbete extraído da língua inglesa que revela atitudes violentas que atacam a integridade física e psicológica do sujeito passivo, de maneira intencional e repetitiva, causando dores perenes e reiteradas no ofendido.

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o magistrado e o legislador na fixação de critérios para a preservação da integridade de segmentos minoritários e hipossuficientes32. Agregue-se à problemática exposta, os delitos cibernéticos cada vez mais crescentes, como a pedofilia, um grave transtorno psiquiátrico no qual adultos sentem atração sexual primária ou exclusiva por pré-púberes e que recorrem à fotografias inocentes para fins lascivos e delituosos, sem qualquer controle

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Nas palavras de David Cury Júnior, o princípio do melhor interesse da criança deve ser considerado pelo magistrado no julgamento de processos que envolvam a tutela da personalidade infanto-juvenil. “Tal regra adveio da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e foi incorporada a diversos preceitos do Estatuto da Criança e do Adolescente, como por exemplo, aos artigos 4º, 6º, 22, 28, parágrafo 1º, 45, parágrafo 2º e 161, parágrafo 2º, e agora, de forma expressa, ao artigo 1.584 do Código Civil vigente, sendo que ela funciona como cláusula geral dos direitos da criança e do adolescente, pois, sua flexibilidade, confere amplos poderes ao Juiz para, atendendo as particularidades do caso concreto, adotar a solução mais conveniente aos interesses supremos da criança e do adolescente, observadas as diretrizes n. 8.069/90 e do artigo 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil.[...] Nestes casos, o Magistrado deve buscar a solução mais adequada à preservação do interesse da criança ou adolescente, ainda que a sua decisão contrarie a vontade dos genitores, pois, em razão da simples condição da incapacidade de fato, o menor não deve ser privado de exercer ou praticar atos que possibilitem o desenvolvimento pleno da sua personalidade.” Op. Cit., pp.94 e 96.

Os tribunais brasileiros pacificaram o entendimento de que a prevalência do poder familiar condiciona-se ao bem estar do menor. Veja-se: “AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPACIAL. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. 1. PREVALÊNCIA DO PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA. REITERADO DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR COM SUBMISSÃO DO MENOR À SITUAÇÃO DE RISCO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDADE. ALTERAÇÃO DO ACÓRDÃO COMBATIDO. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE REEXAME DOS FATOS E PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7 DO STJ. 2. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1, Tanto o Juiz singular como o Tribunal estadual entenderam pela perda do poder familiar do agravante. Para alterar as premissas fáticas fixadas no acórdão recorrido há a necessidade de reexame do conjunto probatório dos autos, nos termos da Súmula n.7/STJ. 2. Agravo interno improvido.” (AgInt no AResp 1055042/MS, Rel. Ministro Marco Aurélio Belizze, Terceira Turma, julgado em 14/11/2107, DJe 27/11/2017.)” “AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. DESTITUTIÇÃO DO PODER FAMILIAR. HIPÓTESES PREVISTAS NO ART.1.638/CC. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA Nº 7/STJ. 1. A perda do poder familiar ocorrerá quando presente qualquer das hipóteses previstas no art. 1.638/CC. 2. Para prevalecer a pretensão em sentido contrário à conclusão do tribunal de origem, que manteve a sentença que decretou a destituição do poder familiar, mister se faz a revisão do conjunto fático-probatório dos autos, o que, como já decidido, é inviabilizado, nesta instância, pela Súmula nº7/STJ. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no AResp 70.611/MS, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 17/5/2012, DJe 24/5/2012.”

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apriorístico das redes sociais ou de seus usuários. É possível, inclusive, que um pedófilo as altere e envie para redes frequentadas por criminosos de igual índole. Há, outrossim, outra conduta gravosa denominada “sequestro digital”, qual seja, alguém se apropria de imagens alheias como se suas fossem, com objetivos escusos. Exemplificativamente, um sítio sobre maternidade captura fotos do perfil virtual verdadeiro, indevidamente e sem autorização. Pesquisadores da Universidade de Nova York33 exploraram o modo como os dados fornecidos pela rede mundial de computadores colocam em risco a segurança devido à identificação dos hábitos familiares, da escola ou de nomes inadvertidamente divulgados. Por óbvio, a revelação dos conteúdos na web permite o acesso de muitos para além daqueles que, em princípio, se desejava enviar. A ameaça representada pelos hackers, por meio de vigilância eletrônica, é assaz preocupante. Consoante compilado pelos pesquisadores, “ladrões de dados” traçam descrições das pessoas e as vendem para anunciantes, agências de empregos, grupos de admissão de faculdades, etc.34. No tocante às crianças, a conclusão foi de que o mercado de anúncios voltado para o universo infantil movimenta bilhões de dólares somente nos Estados Unidos, razão pela qual não surpreende a existência de dossiês biográficos sendo comercializados. Nesse norte, os informes familiares possibilitam aos larápios virtuais criarem mini per-

33 https://scholarship.law.ufl.edu/cgi/viewcontent.cgi?referer=https://www.google.com. br/&httpsredir=1&article=1796&context=facultypub. Acesso: 5/5/2018. Segundo Stacey Steinberg: “Researchers at New York University explored how generally shared ‘personally identifiable’ information can pose a risk to children. By tracing a parent’s social media data to voter registration materials, children’s identity can be inferred, including name, location, age and birthday, and religion. This information often leads to the traditional concerns of ‘Stranger Danger’ and, more specifically, to overexposure to acquaintances, data brokers, and unwanted surveillance. When parents share information with their social media feeds, they are often sharing with more than just individuals they would consider ‘friends’ in face-to-face relationships. This reality, coupled with the fact that ‘76% of kidnappings and 90% of all violent crimes against juveniles [are] perpetrated by relatives or acquaintances’, indicates that personal information about location, likes and dislikes of a child can be revealed to those who might wish to harm the child.” Sharentig: Children’s Privacy in the Age of Social Media. University of Florida Levin College of Law. UF Law Scholarship Repository, 2017. In: http://scholarship.law.edu/facultypub, pp. 848-849. Acesso: 5/5/2018. 34 “The threat posed by data brokers and electronic surveillance is equally worrisome. According to the NYU researchers, ‘data brokers build profiles about people and sell them advertisers, spammers, malware distributors, employment agencies, and college admission offices’. The researchers expounded, saying: children merchandise market is in the hundreds of billion dollars in the US alone, it is not surprising that data brokers are really seeking to compile dossiers on children. Using the information that parents post about their children, data brokers can created mini-profiles that can be continually enhanced throughout an individual’s lifetime” STEINBERG, Stacey. Sharenting…, Op. Cit, p.849.

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fis, continuamente enriquecidos e atualizados, com o propósito de vendê-los às empresas interessadas35. Nessa mesma pesquisa, identificou-se que 92% (noventa e dois por cento) das crianças norte-americanas na faixa etária dos dois anos de idade, possuem alguma presença internet. Dentre elas, aproximadamente um terço são recém-nascidas, com menções ao primeiro nome e a data de nascimento, o que permite a fixação etária exata. Muitas, inclusive, têm imagens reveladas antes mesmo de virem ao mundo, pois mulheres grávidas expõem as ultrassonografias36. A ilusão está na pretensa segurança de acesso por um grupo seleto, previamente escolhido. Os posts, como se sabe, podem alcançar um público maior que o pretendido, porquanto os usuários autorizados a visualizarem-nos podem salvá-los e repassá-los às plataformas e aos fóruns alternativos. Releva ponderar que as informações digitais tornam-se “data”. E a indagação perturbadora, formulada por de Tomás Filipe Schoeller Paiva é: “Quem protege os seus dados?37 Analisando a quaestio a partir dos recentes incidentes de desvirtuamento de políticas de privacidade na internet que propiciou o acesso de terceiros a informações pessoais de milhões de usuários, 35 Buscando proteger os usuários, “a União Europeia aprovou em 14 de abril de 2016 a nova Diretiva sobre proteção de dados, a GDPR – General Data Protection Regulation, Regulamento EU 679/2016, que entrará em vigor no dia 25 de maio de 2018. A Diretiva visa proteger e restringir o acesso aos dados pessoais dos cidadãos europeus, estabelecendo regras mais claras para sua coleta e utilização, bem como multas mais severas para as hipóteses de descumprimento das regras estabelecidas. O Regulamento será aplicado em todos os países da Europa e em países situados fora do bloco, inclusive no Brasil, caso se verifique a coleta, o tratamento ou a utilização de dados pessoais de cidadãos europeus ou de estrangeiros que estejam ali domiciliados ou somente de passagem.” http:// www.lacazmartins.com.br/impactos-da-nova-lei-europeia-sobre-protecao-de-dados-para-as-empresas-brasileiras. Acesso: 6/5/2018. 36 Os percentuais de exposição infantil nas mídias sociais impressiona. Nos Estados Unidos quando uma criança aparece nas fotos do Facebook , 45.2% têm o nome revelado; 6.2% fazem referência à sua data de aniversário, possibilitando o estabelecimento preciso da idade. No Instagram, 63% dos pais fazem referência ao nome da criança em pelo menos uma foto; 27% revelam a data de nascimento e 19% partilham ambas as informações. STEINBERG, Stacey. Sharenting…, Op. Cit, p.849. 37 37 In: Editorial do Jornal O Estado de São Paulo, de 25 de abril de 2018, Espaço Aberto. Destaca, também, que no Brasil “já existem no ordenamento jurídico normas que buscam proteger dados pessoais como o Marco Civil da Internet de 2014. Essa lei assegura, no âmbito da web, garantias como a de não coleta de informações pessoais, salvo mediante consentimento livre e expresso do seu titular, ou ainda o direito à informação, de forma clara e detalhada, sobre coleta, uso e armazenamento de dados pessoais. No Congresso, há projetos de lei que buscam estabelecer um regramento geral [...]. Exemplo de maior relevância é o Projeto de Lei nº 5.276/2016, em discussão na Câmara, que foi precedido de amplo debate popular. A aprovação de uma lei nesse sentido é bem-vinda e necessária, não apenas para proteger direitos, mas para criar um ambiente propício a investimentos, permitindo que o País se integre, definitivamente, à cadeia internacional de fluxo de dados.”

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bem assim a sua utilização para diferentes finalidades não autorizadas, o autor sobreleva o dever estatal de resguardo da intimidade e privacidade dos cidadãos. Com percuciência pondera: “ É o Estado – e só ele – o devedor dos direitos fundamentais. A constatação, no entanto, de que as liberdades só se concebem em relação aos demais indivíduos alarga as perspectivas de dominação e de proteção. O Estado, antes devedor quanto à sua própria conduta, é agora devedor de uma proteção eficaz dos direitos fundamentais, com obrigação de agir, para que sejam respeitados nos mais diferentes domínios, físicos os virtuais”38. O dilema é a impossibilidade de se criar filhos em uma bolha de isolamento digital, buscando impedir todo e qualquer reparte telemático, sabido ser a personalidade individual moldada juntamente com a personalidade coletiva. Estima-se que em brevíssimo espaço de tempo todos terão algum tipo de participação e comparecimento na rede web, de modo que a qualidade dos teores lá existentes estará em constante avaliação. O sharenting não adentrou na esfera legal devido à recentidade. Perdura a tradição do controle parental e a presunção de os genitores buscarem o melhor interesse da prole, pelo que desconsiderada, até o momento, uma resposta jurídica em decorrência desta prática. A manejar o tema, encontra-se, ainda, o direito ao esquecimento, a traduzir-se na reivindicação de alguns de terem seus nomes apagados dos mecanismos de buscas no ambiente virtual, sob certas circunstâncias. O debate iniciou-se no ano de 2014, no leading case Mario Costeja González versus Google Spain e Google Inc, solvido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia que assentou o direito à desindexação de resultados em provedor de aplicação de busca por violação à privacidade, em favor do postulante39. No Brasil, a matéria foi ventilada pela primeira vez em julgamento realizado em 2013, no Superior Tribunal de Justiça, no qual se discutiu os limites da responsabilidade dos provedores de hospedagem de sítios de relacionamento social referentes às notícias endereçadas pelos usuários violadoras de direitos autorais. Na ocasião, entendeu-se que não se poderia exigir do referido provedor a fiscalização antecipada de cada nova mensagem, não só pela impossibilidade 38 Editorial do Jornal O Estado de São Paulo, de 25 de abril de 2018, Espaço Aberto. 39 http://www.contributoria.com/issue/2015-05/54f59102d077e7c21b000096.html.Acesso: 3/2/2018. A decisão da Corte Europeia fundou-se na Diretiva 95/46/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de outubro de 1995, relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados. A normativa resguarda o direito de retificação e até o apagamento de informações inverídicas, incorretas ou incompletas. Consideraram os juízes que mesmo uma informação lícita, pode, com o transcurso temporal, tornar-se incompatível coma diretiva, hipótese na qual há de prevalecer o esquecimento.

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técnica e prática de assim se proceder, mas, sobretudo, pelo risco de tolhimento da liberdade de pensamento e expressão. Nesse diapasão, ao ser comunicado do conteúdo potencialmente ilícito ou ofensivo ao direito autoral, deveria ser ele removido preventivamente no prazo de 24 horas a fim de que se tivesse tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações do denunciante, antes da supressão em definitivo. Posteriormente, outros julgados do Superior Tribunal de Justiça Brasileiro – Resp 1.334.097/RJ - reconheceram o esquecimento no tocante aos réus absolvidos em processo criminal, que têm o “direito de não se submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram, por si, inesquecíveis feridas”. Na esteira desse entendimento, o Supremo Tribunal Federal assentou que após o devido cumprimento da sanção pelo condenado, afigura-se inadmissível atribuir à condenação status de perpetuidade, razão pela qual, reabilitado o sentenciado, seus antecedentes criminais devem ser apagados, bem assim as menções ao agravo praticado - HC 126315/SP. No presente momento, refugindo da seara penal, tramita no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário com Agravo nº 833.248/RJ, ao qual foi dada à matéria repercussão geral - entendida esta como de interesse de toda a sociedade e não apenas das partes litigantes - a versar sobre o direito ao esquecimento. Naqueles autos discute-se a veiculação de programa televisivo relacionado ao homicídio da irmã dos recorrentes ocorrido nos anos de 1950 e muito divulgado à época. O processo pende de julgamento e nele reivindica-se indenização por danos morais40. Sem embargo, o direito de ser esquecido contempla maior latitude e alcança toda e qualquer publicação desautorizada pelo sujeito referido que quer apagar o cyber passado, nomeadamente se o informe data da infância ou adolescência. Ser esquecido há de ser compreendido como o direito ao silêncio sobre eventos e fatos da vida pregressa da pessoa e que não necessariamente dizem respeito às condutas delituosas pretéritas porventura cometidas. Nesses termos, restringir, hermeneuticamente, garantia tão relevante à seara criminal, amesquinha seu alcance e apequena bens fundamentalizados e clausulados como pétreos. Tampouco, se presta o esquecimento somente para o aforamento de ações cíveis de danos morais; ele abarca os impactos da “celebridade nefasta”, “da celebridade mortal”, que desestrutura a personalidade e corrói o Homem.

40 Uma abordagem sobre o direito ao esquecimento no ordenamento jurídico brasileiro a partir de uma análise jurisprudencial está em: SANTOS NETO, Antonio Tavares dos Santos. O Direito ao Esquecimento: uma exigência contemporânea. Monografia de Mestrado apresentada à Universidade de Brasília –UNB- Faculdade de Direito. Brasília: 2015.

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Em sede normativa internacional, a Convenção das Nações Unidas para os Direitos da Criança reconheceu a existência do direito à privacidade, resguardando-o. 41 Há, pois, no âmbito da Sociedade das Nações um consenso geral de proteção aos infantes. Imperioso, porém que as legislações nacionais estendam o âmbito de proteção ao plano virtual. Exemplos legislativos como a FERPA - The Family Educational Rights and Privacy Act (FERPA) (20 U.S.C. § 1232g; 34 CFR Part 99), lei federal norte-americana de 1974, que protege a privacidade dos registros pedagógicos dos estudantes, merece citação. A norma aplica-se às escolas que recebem fundos orçamentários provenientes do Departamento de Educação dos Estados

41 “Article 16. No child shall be subjected to arbitrary or unlawful interference with his or her privacy, family, home or correspondence, nor to unlaw full attacks on his or her honor and reputation.” A versão brasileira ratificada pelo Brasil com a edição do Decreto n° 99.710, de 21 de novembro de 1990 recebeu a seguinte redação: “1. Nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação. 2. A criança tem direito à proteção da lei contra essas interferências ou atentados”.

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Unidos.42 Mencione-se, igualmente, a COPPA - The Children’s Online Privacy Protection Act, de 1998, que estatui uma série de condicionantes à coleta de in-

42 Segundo informe do Departamento de Educação norte-americano: “FERPA gives parents certain rights with respect to their children’s education records. These rights transfer to the student when he or she reaches the age of 18 or attends a school beyond the high school level. Students to whom the rights have transferred are “eligible students.” Parents or eligible students have the right to inspect and review the student’s education records maintained by the school. Schools are not required to provide copies of records unless, for reasons such as great distance, it is impossible for parents or eligible students to review the records. Schools may charge a fee for copies. Parents or eligible students have the right to request that a school correct records which they believe to be inaccurate or misleading. If the school decides not to amend the record, the parent or eligible student then has the right to a formal hearing. After the hearing, if the school still decides not to amend the record, the parent or eligible student has the right to place a statement with the record setting forth his or her view about the contested information. Generally, schools must have written permission from the parent or eligible student in order to release any information from a student’s education record. However, FERPA allows schools to disclose those records, without consent, to the following parties or under the following conditions (34 CFR § 99.31): School officials with legitimate educational interest; other schools to which a student is transferring; specified officials for audit or evaluation purposes; appropriate parties in connection with financial aid to a student; organizations conducting certain studies for or on behalf of the school; accrediting organizations; to comply with a judicial order or lawfully issued subpoena; appropriate officials in cases of health and safety emergencies; and state and local authorities, within a juvenile justice system, pursuant to specific State law. Schools may disclose, without consent, “directory” information such as a student’s name, address, telephone number, date and place of birth, honors and awards, and dates of attendance. However, schools must tell parents and eligible students about directory information and allow parents and eligible students a reasonable amount of time to request that the school not disclose directory information about them. Schools must notify parents and eligible students annually of their rights under FERPA. The actual means of notification (special letter, inclusion in a PTA bulletin, student handbook, or newspaper article) is left to the discretion of each school).” In: https://www2.ed.gov/policy/gen/guid/fpco/ferpa/index.html. Acesso: 7/5/2018.

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formações pessoais de crianças abaixo de 13 anos pelos operadores de websites comerciais43 No Brasil, o Marco Civil da Internet - Lei n° 12.965/2014 – trouxe no seu bojo o postulado, no art. 3° inciso II. O art. 8° equilibra-o com a liberdade de expressão nas comunicações, de modo que, ambos os valores, devem ser sopesados constantemente, em caso de conflito. Concernente ao sharentig, o controle estatal ou mesmo das próprias empresas responsáveis pelas mídias virtuais só é desejável para coibir excessos, preservando-se o poder parental e a liberdade de expressão dele decorrente. Indesejável que aspectos da vida doméstica da educação familiar passem por filtros ou censuras do Poder Público, contudo, fundamental a preservação do círculo concêntrico existencial do ser humano, principalmente, se vulnerável e frágil como os púberes e impúberes. A Lei Maior Brasileira franqueia a liberdade das ideias e da palavra, não obstante, há de se atentar para os limites da confidencialidade de outrem, mormente dos incapazes. Cumpre obstar o exercício abusivo da parentalidade e suas 43 “With a primary goal of guarding the private information of children online, COPPA sets forth five specific provisions that guide fair business practices related to the solicitation, access, and use of children’s private information by websites that are intended for children. The five provisions of COPPA are: Requirement for privacy policies; obtaining verifiable parent consent; providing the opportunity to review; controlling child access; protecting confidentiality”. In: https:// study.com/academy/lesson/childrens-online-privacy-protection-act-coppa-definition-compliance.html. Acesso: 7/5/2018. O texto integral da Lei está na Federal Register,Vol.78, nº. 12/Thursday. January 17, 2013/ Rules and Regulations, pp.3972-4014. Consultar, ainda, o sítio: https://www.ecfr.gov/cgi-bin/ tex-idx?SID=4939e77a1a1a08c1c.... Uma abordagem em português a respeito do Children’s Online Privacy Protection Act está em: REINALDO FILHO, Demócrito. A atualização da lei americana de proteção dos dados das crianças na internet. In: Revista Forense. Volume 418. Julho-Dezembro de 2013, pp. 399-403. Escreve o autor que o novo regulamento da COPPA, “clarifica algumas regras da Lei, especialmente no que concerne às tecnologias de localização geográfica e applets para dispositivos móveis (aparelhos celulares), estabelecendo o seguinte: a) que o conceito de “informação pessoal” (personal information), para fins de aplicação da COPPA, incluem dados de localização geográfica, fotografias e arquivos de áudio e vídeo (que contenham voz ou imagem de crianças); b) que os terceiros que integram os sistemas de adverstising networks também se submetem às regras da COPPA; c) que a coleta de informações de crianças através de ‘plug ins’ instalados através do site, também necessita do consentimento dos pais; d) que o consentimento dos pais, exigido antes que se possa realizar qualquer coleta de informações de crianças, pode ser obtido por outros meios que permitam a verificação da identidade deles, como cartões de identificação expedidos pelo governo, videoconferência e sistema de pagamento on line; e) que os chamados ‘persistent identifiers’, a exemplo de números de IP (IP adresses) e senhas de aparelhos móveis, também são consideradas protegidas pela Lei; f) que os operadores de websites direcionados ao público infantil devem adotar procedimentos seguros para o armazenamento e retenção dos dados de crianças, que só devem ser armazenados pelo tempo razoavelmente necessário para a execução de uma determinada atividade.” Op. Cit, pp. 401-402.

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consequências, por vezes violadoras 44, momento no qual a intervenção estatal, propedêutica e pedagógica, deve ser buscada45. As leis vigentes refletem a velha tradição do pátrio poder e os noveis enfrentamentos cibernéticos do século XXI, ainda não foram devidamente estudados pelos doutrinadores jurídicos, nem valorados exaustivamente pelos tribunais, devido à escassa judicialização. O certo é serem as crianças e os adolescentes sujeitos de direitos, devendo ter sua imagem, individualidade e privacidade respeitadas pelos pais, guardiões legais e educadores. Nesse contexto, não se pode admitir todo e qualquer compartilhamento de imagens e histórias filiais como aceitáveis. 46 Relembre-se não serem os direitos paternos e maternos absolutos, limitados que estão pelos os da

44 O Código Civil Brasileiro é taxativo ao determinar as hipóteses de perda do poder familiar. In litteris: “Art. 1.637. Se o pai ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha. Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a dois anos de prisão.” “Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I. castigar imoderadamente o filho; II. deixar o filho em abandono; III. praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV. incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente; V. entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção.” 45 Como bem observado por Stacey Steinberg: “ [...] parents are not always protectors; their disclosures online may harm their children, whether intentionally or not. A parent’s own decision to share a child’s personal information online is a potential source of harm that has gone largely unaddressed. Children not only have interests in protecting negative information about themselves on their parent’s newsfeed, but also may not agree with a parent’s decision to share any personal information – negative or positive – about them in the online word. There is no “opt-out”link for children and split-second decisions made by their parents will result in indelible digital footprints. While adults have the ability to set their own parameters when sharing their personal information in the virtual world, children are not afforded such control over their digital footprint unless there are limits on parents.” A autora informa que no estado da Califórnia, USA, foi aprovada recentemente uma lei que garante aos menores apagar postagens dos fóruns digitais, porém, o escopo legal só alcança as publicações feitas por eles e não pelos pais. Sharentig: Children’s Privacy in the Age of Social Media. Op. Cit, pp. 843-844. 46 No campo do direito à intimidade são tutelados, dentre outros, os seguintes bens: confidências, informes de ordem pessoal (dados pessoais), recordações pessoais, memórias, diários, relações familiares, lembranças de família, vida amorosa ou conjugal, saúde (física e mental), afeições, entretenimentos, costumes domésticos. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da Personalidade. 7ªed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp. 11-112.

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própria prole.47 Relembre-se, igualmente, caber aos genitores a responsabilidade de educar e proteger seus rebentos, ex vi do art. 1.634 do Código Civil Brasileiro combinado com 22 e 98, II, da Lei nº 8.069/90, nunca expô-los ou fragilizá-los.48 Afinal, em tempos de modernidade líquida, as alternativas conciliatórias entre as garantias individuais e a potestas virtual familiar defrontam-se com um “admirável mundo novo”, no qual o ser humano se vê através dos olhos dos outros, um panopticon às avessas, que apresenta cenários inimagináveis e se esbate com a temida memória permanente, a atemporalidade e as infinitas redescobertas. O mais dramático, porém, é a perda de controle do sujeito sobre a própria história numa sociedade permanentemente conectada.

47 A mitigação do poder familiar foi firmada no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90 - art. 16 - que, na esteira da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, conferiu-lhes os direitos de opinião, expressão, crença e culto religioso, participação na vida política, bem como autorizou-lhes a buscar refúgio, auxílio e orientação, de modo que, quando seus direitos colidirem com o dos representantes legais têm acesso à justiça plena – arts.141, caput, 142, parágrafo único, e 201, V e VIII. 48 Versa o art. 1.634 do Código Civil sobre o poder familiar, definido como o conjunto de direitos e deveres legais e morais atribuídos aos pais, no tocante à pessoa e aos bens dos filhos menores, que principia desde o nascimento. Leia-se o dispositivo: “Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos I - dirigir-lhes a criação e a educação; II - exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior V - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município VI - nomear- lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII - representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento VIII - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha.” Por seu turno, a mencionada Lei nº 8.069/90, estatui nos artigos 22 e 98, inciso II que: “ Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendolhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.” E, “Art.98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; III - em razão de sua conduta.” (Grifei)

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O ALICIAMENTO DE MENORES PARA FINS SEXUAIS: DA CRIMINOLOGIA AO CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS Pedro Miguel Freitas

Doutor em Direito. Docente universitário. Investigador no Centro de Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos (DH-CII) e no Centro de Investigação em Justiça e Governação (JusGov). Email: pedrofernandesfreitas@gmail.com.

1. Sumário O objeto deste estudo é o aliciamento de menores para fins sexuais, no sentido que lhe foi conferido pela Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto. Em 2015, foi incriminado no artigo 176.º-A do Código Penal (CP) o recurso a tecnologias de informação e de comunicação com vista ao aliciamento de menores para fins sexuais. A novidade desta norma, não só pela matéria em si, mas pela referência explícita às novas tecnologias, providencia a ocasião para uma análise dogmática, em especial para compreender as nuances dos elementos típicos usados, bem como para um aprofundamento dos elementos criminológicos que lhe subjazem. A definição extrajurídica do aliciamento de menores para fins sexuais, ou, para usar outra expressão, o cybergrooming, o seu modus operandi, as características do agente do crime e da vítima serão alguns dos aspetos abordados e que servirão de alicerce para a desconstrução analítica do artigo 176.º-A do CP. Na verdade, é patente que uma visão multidisciplinar constitui, sem dúvida, uma mais-valia para uma compreensão mais abrangente sobre um fenómeno que ultrapassa a esfera jurídica e que por isso demanda uma análise metadisciplinar que incremente a eficácia das políticas de prevenção e repressão do comportamento em análise.

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A aliciamento de menores para fins sexuais: da criminologia ao Código Penal português Pedro Miguel Freitas

2. Introdução Antes de adentrarmos na configuração típico-penal do comportamento de aliciamento de menores para fins sexuais, importa contextualizar este fenómeno e compreender algumas das suas caraterísticas. É indesmentível o papel da tecnologia e meios de comunicação eletrónicos na transmutação da criminalidade dita tradicional e na conceção de uma criminalidade absolutamente nova. No contexto da globalização, o surgimento do ciberespaço constituiu, e assim permanece até aos dias de hoje, a plataforma que sustenta a economia global e o avanço científico, a cultura e a comunicação, enfim, o modo de vivência comunitária que, direta ou indiretamente, enforma o dia-a-dia da humanidade. O mesmo vale, em maior ou menor medida, para a prática de comportamentos criminosos, v.g., aliciamento de menores para fins sexuais.

3. Grooming online O uso do ciberespaço como instrumento para prática de crimes contra a autodeterminação sexual das crianças constitui uma realidade incontornável que se explica essencialmente por dois fatores: por um lado, há uma exposição cada vez mais precoce das crianças às novas tecnologias e ao ciberespaço, tornando-se estes autênticos “nativos digitais”1 para quem os sistemas informáticos, a internet e ciberespaço são parte integral da sua vida e seu modo de ser; mas, por outro lado, os ofensores sexuais, mesmo que “imigrantes digitais”2 para usar a terminologia de Marc Prensky, deparam-se com um ambiente – o digital – onde as suas próprias inibições são mais facilmente ultrapassadas e as oportunidades de contato com crianças se multiplicam. Quando falamos de grooming queremos referir-nos ao “processo pelo qual uma pessoa prepara uma criança, adultos relevantes e o contexto para o abuso dessa mesma criança. Objetivos específicos incluem o acesso à criança, a sua anuência e manutenção do segredo para evitar exposição. Este processo serve para fortalecer o padrão abusivo do ofensor, uma vez que pode ser usado como meio de justificação ou negação das suas ações”3. A comissão deste alicia1 Expressão cunhada por Prensky, Marc, Digital Natives, Digital Immigrants Part 1, “On the Horizon”, Vol. 9, n.º 5, 2001, p. 1, para significar o facto de estudantes de hoje falarem nativamente a linguagem digital dos computadores, jogos de vídeo e internet. 2 Aqueles que não nasceram num mundo digital, mas a ele se tiveram de adaptar, ainda que sem esquecer as raízes não digitais. Cf. Prensky, Marc, Digital Natives, Digital Immigrants Part 1, “On the Horizon”, Vol. 9, n.º 5, 2001, p. 3. 3 Tradução nossa de Craven, Samantha, Brown, Sarah e Gilchris, Elizabeth, Sexual grooming of children: Review of literature and theoretical considerations, “Journal of Sexual Aggression, Vol. 12, n.º. 3, 2006, p. 297.

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mento poderá realizar-se presencialmente ou por meios digitais, nomeadamente redes sociais4. Neste último caso teremos o grooming online. Segundo um estudo levado a cabo Wolak et al.5, suportado na análise de 129 casos de crimes sexuais cometidos contra jovens depois de um encontro marcado pela internet, podem destacar-se os seguintes resultados quanto às vítimas: • • • •

76% tinham entre 13 e 15 anos; 75% eram do sexo feminino; 61% viviam com ambos os pais biológicos; 50% diziam estar apaixonados ou próximos do ofensor. Quanto ao agressor:

• • • • • •

99% eram do sexo masculino; 41% tinham 26 a 39 anos; 51% mentiram quanto à sua idade ou aparência física; 79% falavam com a vítima por telefone; 48% enviavam fotos à vítima; 47% ofereciam dinheiro ou presentes. Quanto ao comportamento em si:

• • •

em 76% dos casos o ofensor conheceu a vítima numa sala de chat; a comunicação online durou entre 1 a 6 meses em 48% dos casos; houve um encontro presencial inicial em 74% dos casos e em 89% houve contatos sexuais tais como cópula ou coito oral; apenas em 21% dos casos o agressor recorreu a violência, ameaça de violência ou coação.

4 MCCARTHY, John e GAUNT, Nathan, «But I Was Only Looking...», Responding Effectively to On-line Child Pornography Offenders, https://www.oii.ox.ac.uk/archive/downloads/research/ cybersafety/papers/john_mccarthy.pdf, acedido em 1 de março de 2018. 5 WOLAK, Janis, FINKELHOR, David e MITCHELL, Kimberly, Internet-initiated sex crimes against minors: implications for prevention based on findings from a national study, “The Journal of adolescent health”, Vol. 35, n.º 5, 2004, pp. 424.e11–424.e20.

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3. O crime de aliciamento de menores para fins sexuais: uma análise dogmática O crime de aliciamento de menores para fins sexuais surge no artigo 176.º-A do CP, tendo sido introduzido pela Lei n.º 103/20156. Esta lei constituiu um autêntico pacote legislativo que trouxe consigo mudanças importantes em matéria da prevenção e repressão dos crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual dos menores, alterando não apenas o Código Penal, mas também a Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, a Lei n.º 67/98, de 26 de outubro, e a Lei n.º 37/2008, de 6 de agosto, criando igualmente um sistema de registo de identificação criminal de condenados pela prática de crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menor. É de mencionar igualmente dois instrumentos importantíssimos para a redação do atual artigo 176.º-A do Código Penal. Em primeiro lugar, a Convenção de Lanzarote que, no seu artigo 23.º, instou os Estados a criminalizar o ato intencional de proposta, através de tecnologias de informação e comunicação, de um encontro a uma criança com a finalidade de cometer um ato sexual ou produzir pornografia de menores, desde que o agente do crime fosse adulto e essa proposta fosse seguida de atos materiais que visassem tal encontro. Também o artigo 6.º da Directiva 2011/92/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, seguiu a mesma tónica definindo o aliciamento de crianças para fins sexuais como uma proposta de um adulto, feita por intermédio das tecnologias da informação e da comunicação, para se encontrar com uma criança que ainda não tenha atingido a maioridade sexual, com o intuito de praticar atos sexuais com uma criança ou produzir pornografia infantil, se essa proposta for seguida de actos materiais conducentes ao encontro. Com a incriminação do aliciamento de menores para fins sexuais pretendeu o legislador tutelar a autodeterminação sexual do menor de 18 anos. Tendo por referência o bem jurídico tutelado, pode categorizar-se o crime como simples e de perigo abstrato.

6 Na sua origem estiveram o Projeto de Lei n.º 886/XII-4.ª do PCP, o Projeto de Lei n.º 772/XII/4.ª do OS e a Proposta de Lei n.º 305/XII. São ainda de destacar a Convenção do Conselho da Europa para a Protecção das Crianças contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, celebrada em Lanzarote, em 25 de outubro de 2007, e a Directiva 2011/92/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, relativa à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil, e que substitui a Decisão-Quadro 2004/68/JAI do Conselho.

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Relativamente ao agente, estamos perante um crime específico próprio ou puro7 que só pode ser consumado pelo agente que seja maior de idade, independentemente do seu género sexual. Consagra-se deste modo um elemento típico relativo ao autor que diz respeito a uma qualidade especial que tem de possuir: a idade. Assim, não é criminalmente punível o ato de aliciamento de menores para fins sexuais cometido por um agente menor de 18 anos. Também não é admissível a responsabilidade jurídico-penal de pessoas coletivas por este crime, embora o mesmo não aconteça face um crime que está umbilicalmente ligado a este, o de pornografia de menores, previsto no artigo imediatamente anterior (art.º 176.º do CP). A conduta penalmente relevante é a de aliciamento de menor8, por meio de tecnologias de informação e de comunicação, para encontro visando a prática de quaisquer dos atos compreendidos nos números 1 e 2 do artigo 171.º e nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 176.º do CP. O aliciamento, ou o verbo “aliciar”, surge em mais seis crimes do Código Penal9, a saber: tráfico de pessoas (art.º 160.º), abuso sexual de crianças (art.º 171.º), lenocínio de menores (art.º 175.º), pornografia de menores (art.º 176.º), burla relativa a trabalho ou emprego (art.º 222.º), ligações com o estrangeiro (art.º 331.º). O aliciamento pressupõe, no entendimento de Paulo Pinto de Albuquerque, a abordagem da criança, v.g., por meio de conversa com teor sexual ou troca de fotos ou filmes com teor sexual10. A nosso ver, o ato de aliciamento ainda que pressuponha uma abordagem, vai além disso. No contexto deste tipo legal de crime, aliciar significará seduzir, atrair ou persuadir um menor para que se encontre com o agente do crime. Dado que o iter criminis vem explicitado no tipo – “por meio de tecnologias de informação e de comunicação” – e, portanto, só pratica o crime de aliciamento de menores para fins sexuais quem recorrer a tecnologias de informação e de comunicação, estamos perante um crime de execução vinculada. É igualmente um 7 No sentido que se trata de um crime comum Albuquerque, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2015, p. 705. 8 Cabe notar que, como afirma Albuquerque, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2015, p. 705, o aliciamento é por si mesmo um ato de execução de outros tipos legais de crime como o abuso sexual ou pornografia de menores, assumindo no artigo 176.º-A do CP a natureza de elemento típico (artigo 22.º, n.º 2, al. c). Por outras palavras, o legislador entendeu conveniente antecipar a tutela penal incriminando autonomamente um ato de execução de um outro crime. 9 Não referimos o crime de aliciamento de forças armadas, previsto no artigo 237.º do CP, dada a sua revogação operada pela Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro. 10 Cf. Albuquerque, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2015, p. 705.

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A aliciamento de menores para fins sexuais: da criminologia ao Código Penal português Pedro Miguel Freitas

crime de mera atividade por não se exigir algo para além da conduta do agente. Nas palavras de Figueiredo Dias, os crimes de resultado pressupõem uma “alteração externa espácio-temporalmente distinta da conduta”11, ao passo que os de mera atividade se consomem com a execução de um comportamento. In casu, é suficiente para a consumação típica o comportamento de aliciamento dirigido à marcação de um encontro com o menor para fins sexuais. Perante a regra exposta no artigo 13.º do Código Penal, somos a admitir que a dimensão subjetiva do ilícito se preencherá somente com o dolo. Mas neste domínio, impõe-se uma menção a um elemento subjetivo especial que não se refere a elementos do tipo objetivo de ilícito e que surge como uma exigência típica que acresce ao dolo do tipo. O encontro deve visar a prática de ato sexual ou a produção de pornografia de menores com menor. Classifica-se então como um crime de ato cortado ou mutilado de dois atos12 dado que a conduta típica do agente visa ou tem por objetivo a concretização de um resultado adicional através de uma conduta posterior. O número 2 do artigo 176.º-A do CP introduz uma forma agravada do crime de aliciamento de menores para fins sexuais punindo com pena de prisão entre 1 mês e 2 anos o agente nas hipóteses em que aliciamento seja seguido de atos materiais conducentes ao encontro. O crime de aliciamento de menores para fins sexuais encontra-se numa relação lógico-jurídica de subsidiariedade perante o crime de abuso sexual de crianças e o de pornografia de menores13. Quer-se com isto dizer que, perante esta pluralidade de normas incriminadoras aplicáveis14, é de se afirmar a subsidiariedade implícita ou tácita entre os crimes em questão já que os elementos típicos descritos no aliciamento de menores para fins sexuais representam uma etapa prévia dos restantes crimes aludidos.

11 Cf. Dias, Figueiredo, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Questões fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 306. 12 Sobre este conceito, cf. Roxin, Claus, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Madrid, Civitas, 1997, p. 317 e Mir Puig, Santiago Derecho Penal, Parte General, 10.ª ed., Barcelona, Editorial Reppertor, 2015, p. 235. No entanto Dias, Figueiredo, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Questões fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 380-381, prefere equiparar os crimes de intenção aos de resultado cortado, opondo-se, se bem vemos as coisas, ao surgimento de uma categoria dogmática como a dos crimes de ato cortado. 13 Cf. Albuquerque, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2015, p. 705. 14 Cf. Santos, Manuel Simas e Leal-Henriques, Manuel, Noções de direito penal, 4.ª ed., Rei dos Livros, 2011, p. 154 e Dias, Figueiredo, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Questões fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, p. 992.

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Uma última palavra para dar conta de que não é concebível a aplicação da figura do crime continuado ao aliciamento de menores para fins sexuais por estarmos perante um bem jurídico eminentemente pessoal (artigo 30.º, n.º 2 e 3.º).

4. O crime de aliciamento de menores para fins sexuais no direito português e no direito supranacional Tomando em consideração a redação normativa quer do artigo 23.º da Convenção de Lanzarote quer do artigo 6.º da Directiva 2011/92/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Dezembro de 2011, é imediatamente percetível uma diferença fulcral entre estas duas normas e aquela prevista no Código Penal português. Uma diferença que nos leva a considerar que o legislador português optou por uma tutela ainda mais antecipada do bem jurídico em causa. Senão veja-se. A punição do aliciamento de crianças para fins sexuais na Convenção de Lanzarote e na Directiva 2011/92/EU está dependente de “essa proposta [ser] seguida de actos materiais que visem [um] encontro” e de “a proposta [ser] seguida de actos materiais conducentes ao encontro”, respetivamente. Esta exigência típica é erigida no direito penal português não a um elemento típico do crime fundamental de aliciamento de menores para fins sexuais, mas a um motivo de agravação da moldura abstrata aplicável ao crime fundamental.

5. Considerações finais É fundamental uma maior consciencialização e preparação dos adultos que lidam com crianças, v.g. pais, professores, profissionais de saúde, para dessa forma melhor identificarem fatores de risco e mitigarem a possibilidade de concretização desses mesmos riscos. O legislador penal português enveredou por um caminho de antecipação da tutela jurídica do bem jurídico posto em crise com o crime que é aqui objeto de análise. Não será certamente opção que consiga esquivar-se a críticas, pelo menos por parte daqueles que assumam uma visão mais garantista, mas precisamente por estarmos perante um âmbito de aplicação mais alargado o direito penal situa-se no limiar daquilo que é constitucionalmente admissível, tornando superlativa a atuação preventiva no campo extrajurídico.

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Referências Bibliográficas Albuquerque, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2015. Dias, Figueiredo, Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Questões fundamentais, A doutrina geral do crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2012. Craven, Samantha, Brown, Sarah e Gilchris, Elizabeth, Sexual grooming of children: Review of literature and theoretical considerations, “Journal of Sexual Aggression, Vol. 12, n.º. 3, 2006, pp. 287-299. McCarthy, John e Gaunt, Nathan, But I Was Only Looking...”, Responding Effectively to On-line Child Pornography Offenders, https:// www.oii.ox.ac.uk/archive/downloads/research/cybersafety/papers/john_ mccarthy.pdf, acedido em 1 de março de 2018. Mir Puig, Santiago Derecho Penal, Parte General, 10.ª ed., Barcelona, Editorial Reppertor, 2015. Prensky, Marc, Digital Natives, Digital Immigrants Part 1, “On the Horizon”, Vol. 9, n.º 5, 2001, pp. 1-6. Roxin, Claus, Derecho Penal, Parte General, Tomo I, Madrid, Civitas, 1997. Santos, Manuel Simas e Leal-Henriques, Manuel, Noções de direito penal, 4.ª ed., Rei dos Livros, 2011. Wolak, Janis, Finkelhor, David e Mitchell, Kimberly, Internet-initiated sex crimes against minors: implications for prevention based on findings from a national study, “The Journal of adolescent health”, Vol. 35, n.º 5, 2004, pp. 424.e11–424.e20.

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AS PLATAFORMAS DE CROWDFUNDING E O FINANCIAMENTO DE PROJETOS CULTURAIS Suzana Fernandes da Costa

Doutora em Direito Financeiro e Tributário. Advogada especialista em direito fiscal na SFC ADVOGADOS SP, RL. Docente Convidada da Escola Superior de Gestão do IPCA.

1. Crowdfunding – noção e modalidades O crowdfunding ou financiamento colaborativo, encontra-se regulado em Portugal pela Lei n.º 102/2015, de 24 de agosto (Lei do Financiamento Colaborativo – LFC). Segundo o n.º 2 desta lei “o financiamento colaborativo é o tipo de financiamento de entidades, ou das suas atividades e projetos, através do seu registo em plataformas eletrónicas acessíveis através da Internet, a partir das quais procedem à angariação de parcelas de investimento provenientes de um ou vários investidores individuais”. Esta nova forma de financiamento das pessoas singulares e coletivas utiliza exclusivamente plataformas digitais como forma de angariação de patrocínios ou donativos, e deve ser gerida por uma entidade autorizada para o efeito. O crowdfunding português apresenta-se com quatro modalidades, especificadas no art.º 3.º da LFC, e que são: a “O financiamento colaborativo através de donativo, pelo qual a entidade financiada recebe um donativo, com ou sem a entrega de uma contrapartida não pecuniária;

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As plataformas de Crowdfunding e o financiamento de projetos culturais Suzana Fernandes da Costa

b O financiamento colaborativo com recompensa, pelo qual a entidade financiada fica obrigada à prestação do produto ou serviço financiado, em contrapartida pelo financiamento obtido; c O financiamento colaborativo de capital, pelo qual a entidade financiada remunera o financiamento obtido através de uma participação no respetivo capital social, distribuição de dividendos ou partilha de lucros; d O financiamento colaborativo por empréstimo, através do qual a entidade financiada remunera o financiamento obtido através do pagamento de juros fixados no momento da angariação”. O crowdfunding é uma modalidade de financiamento ainda pouco explorada pelos operadores jurídicos e económicos portugueses mas apresenta a potencialidade de ver viabilizados projetos que de outra forma não conseguiriam obter receita para a sua execução. A nosso ver é particularmente interessante para o financiamento de projetos de índole cultural (como a montagem de um espetáculo, a edição de um disco ou de um livro), mas também pode ser especialmente adequado a projetos de cariz social e mesmo a testar no mercado a viabilidade de um novo produto ou serviço.

2. A regulamentação do crowdfunding em Portugal

O crowdfunding é um fenómeno relativamente recente no nosso ordenamento jurídico, só se encontrando autonomizado na lei desde 24 de agosto de 2015, com a publicação da lei n.º 102/2015 (LFC). Pese embora este diploma tenha desenhados os aspetos mais relevantes do financiamento colaborativo, foi necessária a sua regulamentação. Num primeiro momento foi publicada a portaria 344/2015, de 12 de outubro, que estabeleceu as regras aplicáveis ao procedimento de comunicação prévia de início de atividade das plataformas de financiamento colaborativo nas modalidades de donativo e/ou com recompensa. Já a regulamentação das modalidades de empréstimo ou capital, bastante mais complexa, já que se relaciona com o próprio regime das entidades de intermediação financeira, só viria a ocorrer com o Regulamento n.º 1/2016 da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM)1. Em 2018, dois anos após a entrada em vigor da LFC, houve necessidade de rever alguns aspetos do regime jurídico e criar um regime sancionatório específico, 1 Disponível no sítio <http://www.cmvm.pt/>.

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tendo sido aprovada a lei n.º 3/2018 de 09 de fevereiro, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação2. Conclui-se assim que o quadro legal do financiamento colaborativo português só ficou completo no início de 2018, estando agora disponíveis as regras que permitem aos potenciais investidores e beneficiários o recurso a esta nova figura jurídica.

3. As plataformas de financiamento colaborativo Como dissemos supra, faz parte da noção de financiamento colaborativo o exercício desta atividade por plataformas especificamente criadas para o efeito. Segundo o art.º 4.º da LFC podem ser titulares de plataformas de financiamento colaborativo quaisquer pessoas coletivas ou estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada (EIRL). As plataformas estão sujeitas a registo, que difere consoante a modalidade de crowdfunding. Nos termos do art.º 12.º da LFC, as plataformas de financiamento colaborativo através de donativo ou com recompensa devem comunicar previamente o início da sua atividade à Direção-Geral das Atividades Económicas3. O procedimento de comunicação prévia realiza-se por via desmaterializada, não importando o pagamento de taxas administrativas, e veio a ser definido na portaria 344/2015, de 12 de outubro. Já o acesso à atividade de intermediação de financiamento colaborativo de capital ou por empréstimo é realizado mediante registo prévio das entidades gestoras das plataformas eletrónicas junto da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). Esta entidade é responsável pela regulação, supervisão e fiscalização desta atividade, assim como pela averiguação das respetivas infrações, instrução processual e aplicação de coimas e sanções acessórias. O legislador teve o cuidado de regulamentar os principais deveres das entidades gestoras das plataformas eletrónicas4 e criar também regras respeitantes a conflitos de interesses (art.º 11.º), para salvaguardar a independência e transparência do sistema. Já as plataformas propiamente ditas não podem fornecer aconselhamento 2 Esta lei altera artigos 10.º, 12.º e 15.º da lei do financiamento colaborativo, cria um pesado regime sancionatório, e identifica como entidades competentes em matéria de capital ou empréstimo, a CMVM, e na modalidade de donativo ou recompensa, a ASAE (Autoridade de Segurança Alimentar e Económica). 3 Podemos encontrar os procedimentos para o registo na modalidade de donativo/recompensa em: <http://www.cmvm.pt/pt/SDI/DossierDeRegisto/crowdfunding/Pages/crowdfunding_docs. aspx> . Algumas das plataformas já registadas são: PPL, accelerate-azores, colmeia, novobancocrowdfunding, crowdfunding.pt e portugalcrowd.pt. 4 Como o de assegurar aos investidores o acesso a informação relativa aos produtos colocados através dos respetivos sítios ou portais na Internet, a confidencialidade e o cumprimento da LCF.

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ou recomendações quanto aos investimentos a realizar através dos respetivos sítios ou portais na Internet; compensar os seus dirigentes ou trabalhadores pela oferta ou volume de vendas de produtos disponibilizados ou referências nos respetivos portais nem gerir fundos de investimento ou deter valores mobiliários. A adesão de um beneficiário de financiamento a uma determinada plataforma de crowdfunding é realizada “por contrato reduzido a escrito e disponível de forma desmaterializada através da plataforma, do qual deve constar a identificação das partes, as modalidades de financiamento colaborativo a utilizar, a identificação do projeto ou atividade a financiar e o montante e prazo da angariação, bem como os instrumentos financeiros a utilizar para proceder à angariação” (art.º 6.º LFC). Podem ser beneficiários das plataformas de financiamento colaborativo “quaisquer pessoas singulares ou coletivas, nacionais ou estrangeiras, interessadas na angariação de fundos para as suas atividades ou projetos através desta modalidade de financiamento” (art.º 7.º LFC). O beneficiário deve contactar a plataforma e convencer a entidade gestora a criar uma campanha de crowdfunding - o que dependerá da qualidade da ideia, dos materiais de divulgação, da base de contactos do beneficiários, entre outros fatores. Aprovada a proposta, a campanha é lançada na plataforma, devendo constar um montante a angariar e um prazo limite. No decurso da campanha as condições poderão ser alteradas uma única vez. De acordo com a lei, os beneficiários do financiamento colaborativo devem comunicar e manter atualizada junto das plataformas, para efeitos de transmissão de informação aos potenciais investidores, a sua identificação, natureza jurídica, contactos, sede ou domicílio, bem como a identidade dos seus titulares de órgãos de gestão, quando aplicável. Desde o final do mês de maio de 2018, esta informação deve ser compatibilizada com o chamado Regulamento Geral de Proteção de Dados5, devendo as plataformas obter o consentimento do titular dos dados nos termos da lei. Uma importante desvantagem do regime português consta o art.º 9.º da LFC – se o beneficiário não atingir as metas propostas no prazo constante da oferta deve proceder à devolução dos montantes que tiver recebido entretanto. Há, no entanto plataformas, como a PPL, que permitem transformar o valor pago em donativo sem que se processe a devolução. Outras limitações importantes constam do art.º 13.º: cada oferta apenas pode ser disponibilizada numa única plataforma de financiamento colaborativo

5 Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE.

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e está sujeita a um limite máximo de angariação que não pode exceder 10 (dez) vezes o valor global da atividade a financiar6.

4. Regime sancionatório do crowdfunding Como já referimos supra, a lei n.º 3/2018 de 09 de fevereiro veio criar o regime sancionatório do crowdfunding. O legislador decidiu diferenciar as modalidades de donativo/recompensa, por um lado, e de capital/empréstimo, por outro, optado por criar sanções mais gravosas para as duas últimas modalidades, como se vê nos seguintes quadros: Donativo/recompensa

Coimas aplicáveis

Contraordenação muito grave7

€1500 a €3750 (pessoa singular), e €5000 a €44 000 (pessoa coletiva).

Contraordenação grave8

€750 a €2500 (pessoa singular), e €2500 a €16 000 (pessoa coletiva).

Contraordenação leve9

€300 a €1000 (pessoa singular) e €1200 a €8000 (pessoa coletiva).

Por seu lado, nas contraordenações fiscalizadas pela CMVM são estas as coimas: Capital/empréstimo:

Coimas aplicáveis

Contraordenação muito grave

10

€5000 a €1.000.000.

Contraordenação grave11

€2500 e € 500.000

Contraordenação leve

€1000 e € 200.000

12

6 Para uma análise do regime do crowdfunding em Espanha ver MORENO SERRANO, Enrique e CAZORLA GONZÁLEZ-SERRANO, Luis (coord.): Crowdfunding: aspectos legales, Thomson Reuters Aranzadi, 2016. 7 V,g, a realização de atos ou o exercício de atividades de financiamento colaborativo sem a comunicação de início de atividade da plataforma. 8 Como a prestação, comunicação ou divulgação, por qualquer meio, de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita, ou a omissão dessa prestação de informação 9 Por ex.º a violação do regime de publicidade relativo às ofertas 10 Por ex.º, o exercício de atividades de financiamento colaborativo sem o respetivo registo junto da CMVM. 11 Por ex.º, violação das regras de prestação de informação. 12 Por ex.º, a violação das regras de publicidade relativas às ofertas.

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A lei que alterou a LFC prevê também, nos artigos 5.º, 9.º, a possibilidade de aplicação de sanções acessórias e determina que a tentativa e negligência também sejam puníveis.

5. O crowdfunding e o financiamento e projetos culturais Na área cultural são conhecidas as dificuldades de sobrevivência de artistas e entidades coletivas. O financiamento de projetos culturais reveste múltiplas modalidades, tais como patrocínios, donativos, receitas de bilheteira, subsídios, empréstimos a fundo perdido, dotações de entidades públicas, receitas provenientes da venda de bens e prestações de serviços entre outras. Os diversos agentes culturais podem recorrer ao financiamento colaborativo para obter as receitas necessárias à realização de alguns dos seus projetos. São já muitas, por ex.º, as bandas que recorreram às plataformas nacionais e estrangeiras para poder financiar a produção de um disco ou de um determinado espetáculo13. Um caso famoso, que diríamos tratar-se de um crowdfunding em sentido impróprio (porque não passou por uma plataforma externa de financiamento colaborativo), foi a campanha do Museu Nacional de Arte Antiga com o nome “Vamos pôr o Sequeira no lugar certo” e que permitiu a angariação de fundos para a aquisição de uma importante obra de arte14. Uma dificuldade que pode surgir na esfera dos beneficiários é como tratar juridicamente as quantias recebidas através da plataforma e se de um ponto de vista fiscal há algum descritivo específico a colocar nas faturas. De acordo com o art.º 10.º da LFC, “aplicam-se plenamente às relações jurídicas subjacentes ao financiamento colaborativo, em particular na relação estabelecida entre os beneficiários do financiamento e os investidores, os regimes correspondentes aos tipos contratuais celebrados com recurso às plataformas de financiamento colaborativo, nomeadamente a doação, compra e venda, prestação de serviços, emissão e transação de valores mobiliários e mútuo, bem como as disposições sobre proteção da propriedade intelectual, quando relevantes”. Ou seja, os contratos celebrados entre o promotor e o apoiante reconduzem-se a contratos-tipo, que tem o seu regime jurídico e fiscal já previsto noutras normas15. 13 Ver alguns caso de sucesso em https://ppl.com.pt/sucesso/todos. 14 Mais informações aqui: <http://www.museudearteantiga.pt/exposicoes/vamos-por-o-sequeira-no-lugar-certo>. 15 Será o caso da doação (prevista no art.º 940.º Código Civil), da compra e venda (874.º-939.º Código Civil), da prestação de serviços (1154.º-1156.º Código Civil), da emissão e transação de valores mobiliários (arts. 80.º-84.º Código dos Valores Mobiliários) do mútuo (arts. 1142.º-1151.º Código Civil e da proteção da propriedade intelectual (Código da Propriedade Industrial).

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Significa isto que, nuns casos, as entidades culturais vão fazer a pré-venda de um bem (como um disco, um livro ou o bilhete para um espetáculo), noutros vão solicitar donativos (quando recompensas não ultrapassem 5% do valor do bem) e terão também situações de patrocínio. Nas modalidades de capital terão um financiamento estrutural com entrada de novos sócios e na modalidade de empréstimo terão de devolver o valor mutuado com juros. Em todos estes casos o beneficiário do financiamento colaborativo deve estar coletado de forma a poder emitir faturas, recibos ou faturas-recibo de acordo com as normas fiscais.

6. Conclusões I O crowdfunding é uma forma de financiamento que reveste quatro modalidades e que utiliza exclusivamente plataformas digitais. II Os beneficiários devem assinar contrato eletrónico com detentores da plataforma digital. III As plataformas tem que se registar e cumprir os requisitos impostos pela lei do financiamento colaborativo IV Só com a lei n.º 3/2018, de 09 de fevereiro, foi criado um regime sancionatório aplicável aos beneficiários e aos detentores das plataformas de financiamento colaborativo. V As entidades culturais podem e devem usar o financiamento colaborativo para a viabilização de projetos e a edição de obras artísticas.

Referências Bibliográficas BELEZAS, Fernando: Crowdfunding: Regime Jurídico do Financiamento Colaborativo, Almedina, 2017. MORENO SERRANO, Enrique e CAZORLA GONZÁLEZ-SERRANO, Luis (coord.): Crowdfunding: aspectos legales, Thomson Reuters Aranzadi, 2016. SOTO MOYA, María del Mar, Tributación del Crowdfunding, Tirant to Blanch, 2018.

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Webgrafia 1. http://www.cmvm.pt/pt/SDI/DossierDeRegisto/crowdfunding/Pages/ crowdfunding_docs.aspx acedido 27.06.2018 2. http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/Legislacaonacional/Regulamentos/ Pages/Reg2016_1.aspx, acedido 27.06.2018 3. https://www.gofundme.com/, acedido 27.06.2018 4. https://www.indiegogo.com, acedido 27.06.2018 5. http://www.infocrowdsourcing.com/plataformas/, acedido 27.06.2018 6. http://www.museudearteantiga.pt/exposicoes/vamos-por-o-sequeira-no-lugar-certo, acedido 27.06.2018 7. https://ppl.com.pt/sucesso/todos, acedido 27.06.2018 8. http://www.theguardian.com/culture-professionals-network/culture-professionals-blog/2014/aug/20/crowdfunding-arts-top-tips-experts, acedido 27.06.2018 9. www.verkami.com, acedido 27.06.2018

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