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Os ativos digitais avançam e formam um novo ecossistema financeiro que rompe vários estigmas do mercado no Brasil e no mundo. Entender esse universo é essencial para conseguir integrá-lo e tirar proveito dele.
CriPtoativos:
sua empresa pode e deve fazer parte desse universo
A INSEGuRANçA que rodeou, no início, o bitcoin deu lugar ao surgimento de um ecossistema totalmente novo e do qual emergem modelos de negócios que desafiam a estrutura financeira tradicional. Criado em 2008, o bitcoin é o mais popular dos criptoativos e é apenas a ponta de um iceberg chamado ativos digitais. Com base em blockchain, que mantém registros de forma confiável e imutável, é um mercado que se desenvolveu de modo acelerado nos últimos anos. De acordo com a Statista1, o número de criptoativos saltou de 66 em 2013 para 10.397 em fevereiro deste ano.
Esse mercado extrapola o universo dos criptoativos descentralizados, ainda que sejam eles os que mais têm chamado a atenção. Há também os ativos estáveis, ou stablecoins, e as CBDCs (do inglês central bank digital currency), que são os ativos digitais emitidas pelos bancos centrais. Cada uma delas tem suas particularidades e desempenha papéis diferentes. Compreender a criptoeconomia, que ganha cada vez mais força, é essencial para conseguir integrá-la e tirar proveito dela – e as possibilidades vão muito além de investimentos.
“Como toda inovação, no mercado financeiro e de pagamentos, os criptoativos têm inúmeras possibilidades de uso e oportunidades de negócio”, diz Carol Elizabeth Conway, diretora Regulatória e Institucional do Grupo UOL PagSeguro e diretora da Abranet. A primeira e mais óbvia utilidade é ser usada como forma de investimento, muitas vezes de alto risco, mas com possibilidade de ótimo retorno financeiro. “Nesses casos, conforme parecer recente da CVM [Comissão de Valores Mobiliários], os criptoativos seriam investimentos quando classificados como valores mobiliários, o que os sujeita à regulação da entidade”, detalha.
Outra finalidade é o fluxo internacional de valores (international flow of money). “Por ser uma área ainda muito cara e burocratizada, o uso de criptos tem exercido um importante papel. Vale lembrar que
O fOcO da aBranEt
A Associação Brasileira de Internet entende que a aprovação, em 29/11, do Projeto de Lei (PL) 4401/2021, que regulamenta as operações com ativos virtuais no Brasil, representa um avanço para o setor financeiro do país. Como já passou pelo Senado, a matéria segue para sanção presidencial ainda no governo Bolsonaro. A Abranet é favorável a esta regulamentação, já que a delimitação de conceitos e processos vai proporcionar segurança jurídica não somente ao setor de finanças, mas para toda a população brasileira.
Para a Abranet, “a aprovação do PL é um marco para o setor financeiro nacional e insere o Brasil em um grupo seleto de países que possuem uma legislação específica para regulamentar criptoativos. A expectativa da associação é de que o texto aprovado pelo Congresso entre em breve em vigor e que o regulador atue ativamente na elaboração das diretrizes mais detalhadas sobre o tema.”
A Abranet está estruturando um grupo de trabalho (GT) para discutir a criptoeconomia. A partir da formalização do GT, haverá uma ampla discussão sobre o tema. “Vamos trabalhar buscando o que é melhor para o ecossistema e, de forma isenta, fazer propostas para os reguladores e para o ecossistema”, aponta Karen Duque, head de Políticas Públicas da Bitso no Brasil e que participa da criação do GT.
É necessário também um processo de educação, que passa por desmistificar alguns pontos, como o de que cripto não é sobre pirâmide ou golpe, e mostrar como as transações usando os ativos digitais são mais baratas, mais rápidas e dão acesso à bancarização.
no Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), está sendo implementado projeto experimental com Pix internacional, que tem potencial de ser uma iniciativa complementar e de sucesso”, aponta Conway.
A terceira utilidade dos criptoativos, segundo a diretora da Abranet, é como forma de proteger o dinheiro de oscilações diárias drásticas ou inflação. Em países que enfrentam muita volatilidade econômica e monetária, os criptoativos podem ser ativos de reserva de valor. Isso é comum por meio do uso de criptos que se baseiam no dólar.
“Uma quarta, mais polêmica, seria como meio de pagamento. Hoje, esse uso ainda traz riscos, como a desintermediação bancária e, principalmente, por não existir um arcabouço jurídico vigente no tema, que assegure PLD [Prevenção à Lavagem de Dinheiro], KYC [Conheça seu Cliente, na sigla em inglês para Know Your Customer] e outros controles típicos do setor. Para isso ocorrer no Brasil, será necessário um marco legal, empoderamento do Banco Central do Brasil e sua atuação regulatória proporcional. Além disso, podem viabilizar as negociações remotas, como certificações NFT [si-
Carol ElizabEth Conway Diretora Regulatória e Institucional do Grupo UOL PagSeguro e diretora da Abranet
gla para Non-Fungible Token, ou Token Não-Fungível], contratos digitais (smart contracts) e outros incontáveis tipos de usos em negociações regionais e internacionais”, pondera a executiva.
divErsOs ativOs
Em uma explicação resumida, ativo digital é todo aquele ativo emitido única e exclusi-
Os passOs dO rEal digital
Do ponto de vista do Banco Central do Brasil, a CBDC (do inglês central bank digital currency) é mais que uma nova forma de pagamento. “CBDC é um tema novo, e cada país tem uma definição diferente. Mas todos concordam que a moeda digital é expressão da moeda soberana”, afirmou Fabio Araujo, coordenador da iniciativa do Real Digital do Banco Central do Brasil (BCB), durante o Febraban Tech.
Trata-se de uma expressão do real junto com uma infraestrutura que interconecta serviços financeiros de hoje com novos serviços financeiros, do futuro, baseados em blockchain, web 3.0 e novas tecnologias. “A CBDC tem o papel de ser a expressão digital do real, controlada pelo BCB, o que reduz riscos e dá estabilidade. A CBDC é ativo fiduciário, mas na sua expressão digital, que é diferente de um criptoativo”, explicou Thamilla Talarico, sócia-líder de blockchain e cripto da EY Brasil, também em palestra no Febraban Tech.
Na criação do real digital, uma das preocupações é com relação ao passivo nos bancos. Existe todo um arcabouço para garantir que o dinheiro depositado hoje esteja no banco para quando se quiser sacar. Ao tokenizar os depósitos bancários, registrar os depósitos em wallets, no ambiente digital, o passivo será também do banco, apontou Araujo.
Atualmente, os criptoativos têm funcionado mais como investimentos e não como meios de pagamentos. “Hoje, há o mesmo número de investidores em criptoativos que temos na B3. Caminhamos para entender que criptoativos vão ocupar espaço com muita força, mas ainda como investimentos”, ressaltou Talarico. Para ela, o fenômeno da tokenização, dando valor aos ativos para negociar e até para racionalizar digitalmente, é uma tendência forte. “Vamos caminhar para uma economia cada vez mais tokenizada e com diferentes tipos de tokens habitando este universo”, explicou a executiva.
O foco da CBDC nacional será o varejo, para que pessoas façam transações e, principalmente, contratos inteligentes,
vamente em formato digital e, para sacá-la, é preciso fazer a conversão para o ativo fiduciário. Os criptoativos de livre flutuação têm no bitcoin seu principal expoente. Eles são descentralizados e o valor desse tipo de asset digital é definido, basicamente, por demanda e por procura. Por isso, ele apresenta tanta volatilidade.
Os criptoativos, relembra Karen Duque, head de Políticas Públicas da Bitso no Brasil e que na Abranet participa de um grupo de trabalho focado em cripto, decorrem de um projeto que começou a partir de uma histórica desconfiança de instituições tradicionais. “Satoshi Nakamoto, em seu famoso white paper, arruma o problema do duplo pagamento, garantindo através de uma série de marcas públicas em um livro-razão, sendo público e imutável”, conta. Nakamoto é o pseudônimo da pessoa – ou grupo – que criou o bitcoin (BTC), o primeiro criptoativo do mundo. Para tentar eliminar o problema de volatilidade, as stablecoins nascem atreladas a um valor equivalente a um ativo fiduciário forte, como a USDC, que, assim como a USDT, é uma stablecoin referenciada no dólar americano, sendo que a USDT é executada na blockchain Ethereum (ERC-20) e a USDC é executada em várias blockchain. Durante o Febraban Tech, o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, afirmou que o Brasil deve lançar o real digital em 2024 (leia mais no box Os passos do real digital nesta página).
A redução do uso do papel moeda é uma das diretrizes para o real digital, que pretende tirar proveito do ecossistema de negócios de open finance. Extensão do real físico, o real digital será emitido pelo Banco Central, tendo custódia e distribuição pelo sistema de pagamentos. Tratase de um dinheiro programável que vai incentivar, entre outros, os contratos inteligentes. O BCB também espera prevenir e combater a lavagem de dinheiro.
A expectativa com relação ao real digital é seu uso para fomentar novos modelos de negócios. Diferentemente dos criptoativos, o real digital será emitido e circulado de forma centralizada como uma versão virtual da moeda soberana. “Com isso, se abre uma série de novos modelos de negócios e o estímulo ainda maior ao crescimento do va-
assinalou Araujo, do Banco Central. Ele disse que se espera também que o real digital inclua mais gente no mercado de investimentos e de crédito, como o Pix fez com transações digitais.
Ainda assim, Thamilla Talarico, da EY Brasil, diz que o foco principal não estará, a exemplo do que outros países fizeram, nas transações instantâneas – até porque o Brasil já conta com o Pix. “O BCB está olhando para a programabilidade para pagamento. A entrega contra pagamento é uma delas, tanto para ativos digitais como para ativos tokenizados. Hoje, você pode tokenizar uma debênture, uma ação, um imóvel. Os tokens representam a sua parcela naquele imóvel”, explicou Talarico.
“É a evolução natural e nossa CBDC não vai olhar para pagamento instantâneo, porque temos o Pix, mas vamos olhar para open finance, para serviços mais especializados e tendo o real digital como dinheiro programável. Com infraestrutura de programabilidade e liquidação mais eficiente de pagamentos, será possível colocarmos o primeiro pé na web 3. E é o caminho natural”, acrescentou a executiva da EY Brasil.
Fabio Araujo disse que há uma relação muito próxima entre Pix, open banking e real digital. “O Pix claramente foi a porta de entrada para as pessoas que começam a ter acesso a serviços de pagamento. Open banking é um passo adicional em direção à economia da informação, porque no open banking e no open finance você pode usar dados para ajudar a produzir serviços financeiros que possam te conhecer melhor e apontar o melhor produto”, explicou.
“Um passo além é como vou gerir o contrato, e aí entra a plataforma de liquidação inteligente, que é a CBDC. Com isso, você fecha o ciclo. Você traz as pessoas com Pix, você usa os dados para melhorar a adequação do serviços financeiros e com smart contract pode desenhar serviços adequados e oferecer dentro de ambiente DLT (sigla para Distributed Ledger Technology ou tecnologia de livro-razão distribuído). Assim, fecha o arco de democratização financeira”, finalizou o coordenador da iniciativa do Real Digital do Banco Central do Brasil.
rejo e consumo online”, pontua Carol Elizabeth Conway, da Abranet e do Grupo UOL PagSeguro. Ela ressalta que uma das vertentes é incluir no sistema pessoas que não são atendidas por serviços bancários.
Já Karen Duque destaca a necessidade de educar as pessoas sobre esse assunto, que não é trivial. Quando surgiu, a discussão sobre criptoativos era restrita a um grupo seleto e com foco em investimentos. Eram entusiastas e early adopters, mas hoje o círculo é muito maior. “As pessoas estão olhando não apenas para investimentos, mas como forma de proteção de investimentos versus inflação e como método de pagamento, começando a comprar coisas com criptoativo”, assinala Duque.
Citando o levantamento 2022 Global Crypto Adoption Index, a executiva da Bitso diz que o Brasil é o sétimo mercado de cripto no mundo, um salto em comparação com a 14ª posição em 2021. “Olhando para o mercado brasileiro, somente neste ano, os brasileiros investiram 200% a mais do que investiram em 2021 em cripto. Um quarto dos brasileiros está disposto a comprar serviços ou produtos usando cripto.”
No espectro mais amplo dos criptoativos, com estruturas descentralizadas, é possível esperar que a prestação de serviços de ativos virtuais tenha muitas vertentes – tais como intermediação, emissão, custódia, negociação e liquidação. “Por isso, podem gerar diversos novos negócios e beneficiar inúmeros mercados, principalmente o sistema financeiro, o sistema de pagamentos, o setor de investimentos, o setor varejista, dentre outros”, enumera Conway. Como consequência, espera-se que haja mais inclusão financeira, concorrência e eficiência.
As discussões incluem ainda identidade digital, assinatura digital, smart contracts, uso de algoritmos para automatizar processos a partir de técnicas de inteligência artificial, de aprendizado de máquina e de processamento de linguagem natural, além de metaverso. Esses são exemplos de temas inovadores que dialogam com ativos virtuais.
O que ainda está em debate é como tornar o cripto útil para ser usado além de investimentos e o que ele pode resolver na vida das pessoas. Para Ivo Corrêa, sócio da XVV Advogados e coordenador do comitê jurídico na Abranet, houve um amadurecimento muito grande do mercado, levando à compreensão desse ecossistema. “Cripto é uma realidade que chegou para ficar; é um novo tipo de ativo que pode resolver problemas que existiam para fazer transações”, afirma.
Se antes havia muita desconfiança, hoje, o cenário é outro e a tendência é de crescimento. “Finanças descentralizadas, cripto, tokenização… tudo isso vai acontecer e as pessoas começam a compreender. Os bancos são termômetros e eles estão abrindo exchanges e lançando ativos”, completa Corrêa.
MarcO lEgal
O maior avanço dos criptoativos está diretamente ligado à segurança jurídica. Regular é um caminho para garantir que as preocupações que se tinham sejam combatidas e mitigadas. Aprovado em 29 de novembro, o projeto de lei 4401/21 deve conferir legitimidade e trazer regras específicas para o setor.
O PL estipula diretrizes para a regulamentação da prestação de serviços de ativos virtuais (criptoativos). A questão da segregação patrimonial das exchanges, a mais polêmica, foi rejeitada.
A análise que o mercado faz é de que se trata de um projeto bastante amplo, um “guarda-chuva”, trazendo definições do que são os ativos, as atividades das exchanges e o que elas podem fazer e estabelecendo que haverá um órgão do Poder Executivo para regular. Informalmente, todos apontam que o Banco Central assumirá este papel. “É um projeto geral, cuja ideia é dar um marco legal, focado nas empresas que oferecem serviços de
KarEn DuquE Head de Políticas Públicas da Bitso no Brasil e integrante de grupo de trabalho na Abranet com foco em cripto
ivo Corrêa Sócio da XVV Advogados e coordenador do comitê jurídico na Abranet
compra e venda para garantir a legitimidade da atividade e a fiscalização”, resume Ivo Corrêa.
A aprovação deve aumentar a segurança para o investidor e criar um marco legal, o que atrai investidores maiores. “A expectativa regulatória e do mercado é que, quando os criptos funcionarem como meio de investimentos, serão de competência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Se forem adotados como meio de pagamento, espera-se que caberá ao BCB. Parece simples, mas há zonas cinzentas”, aponta Carol Conway.
Uma adoção maior dos criptos estava na dependência da aprovação de um marco principiológico tal qual o PL 4401/21, seguido por ato do Poder Executivo que divida as competências entre CVM e Banco Central do Brasil para, na sequência, emitirem uma regulação no tema, cada qual na sua esfera de competência. “O real digital e o Pix internacional também podem, indiretamente, afetar essas expectativas e gerar um impulso para a adoção de criptos pelos brasileiros”, pontua Conway.
Em outubro, a CVM divulgou o Parecer de Orientação 402, sobre criptoativos e o mercado de valores mobiliários. O parecer consolidou o entendimento da autarquia sobre as normas aplicáveis aos criptoativos que forem considerados valores mobiliários. Além disso, o documento apresentou os limites de atuação do regulador, indicando as possíveis formas de normatizar, fiscalizar, supervisionar e disciplinar agentes de mercado.
A caracterização de criptoativos é descrita como ativos representados digitalmente, protegidos por criptografia, que podem ser objeto de transações executadas e armazenadas por meio de tecnologias de livro-razão distribuído (DLTs, sigla para distributed ledger technologies). Também apontou que, usualmente, criptoativos (ou a sua propriedade) são representados por tokens, que são títulos digitais intangíveis.
Outra faceta do marco legal dos criptos é que ele coloca o Brasil muito à frente de outros países, porque poucas nações regulam de maneira direta esse mercado. “O Banco Central tem tido uma postura mais aberta que outros bancos centrais e tem deixado claro que se interessa pelo tema, que tem relevância e que será útil. O BCB tem se posicionado muito abertamente sobre cripto”, avalia Corrêa.
Na mesma linha, Karen Duque, da Bitso, afirma que o PL tem a possibilidade de colocar o País na vanguarda. “Não estamos olhando aqui para a regulamentação que vai tentar modificar a tecnologia; não regular blockchain ou um ativo específico, mas, sim, a forma de atuar dos intermediários, olhando para segurança, para o funcionamento do ecossistema e não para a tecnologia”, destaca. A regulamentação vai guiar a forma como as empresas vão atuar no ecossistema dos criptoativos.
Como enfatiza Karen Duque, existe uma relação direta entre regulamentar o mercado para aumentar a confiança e massificar o uso. A comparação mais fácil e direta é com o início da internet, que, em um primeiro momento, também trouxe desconfiança, e foi preciso chancelar a legalidade da atividade. •