MAITE CARRANZA
Palavras Envenenadas Tradução Carla Raqueli Navas Lorenzoni
Ă€s mulheres que sofrem.
PRIMEIRA PARTE A garota que assistia a Friends
O
dia em que completei 19 anos foi como qualquer outro. Claro que tinha consciência de que estava ficando um ano mais velha, mas não fazia diferença, afinal, fazendo um balanço do próximo ano que tinha de comemorar, era exatamente igual ao ano anterior, ou seja, desnecessário. Apesar de tudo, tentei ver o lado positivo e acabei concluindo que valia a pena fazer aniversário, pois, no mínimo, ganharia um presente. No entanto, dispensei as velinhas, pois me trazem saudades, recordações e o compromisso pessoal de ser feliz. Uma estupidez. Não quis dar um peso especial à data porque minha vida não era digna de fogos. Mantive a minha rotina: levantar, fazer exercícios, tomar banho, tomar o café da manhã, estudar, comer, assistir um pouco de televisão e esperar a visita surpresa com um sorriso. Não foi difícil, pois me conformo com pouco. Uma semana antes ele me perguntou se eu tinha algum capricho ou desejo especial. Sei que estava disposto a me presentear com qualquer coisa, um vestido, um par de sapatos, um iPod. Mas o que eu queria não podia ser comprado. 11
12
PALAVRAS ENVENENADAS
Pedi, então, que me levasse à praia. Sonhava em saltar no mar de cima de uma rocha, mergulhar com os olhos bem abertos, nadar crawl até ficar sem fôlego e descansar flutuando sobre as cristas de espuma das ondas. Queria me sentir leve, desaparecer como um peixe e me perder no horizonte até que meu corpo branco fosse apenas um ponto distante que salpicasse a monotonia do azul. Ele me disse que talvez algum dia, e me presenteou com a nona temporada de Friends. Admito que alimentou minhas esperanças.
1. Salvador Lozano
O
subinspetor Lozano está parado diante da porta do apartamento da família Molina, recuperando o fôlego. Vestiu-se com o blazer cinza que estreou no casamento de seu filho, há sete anos e com a gravata de seda com brilhos avermelhados. Sente-se incômodo e no último momento tem a impressão de que talvez a gravata seja muito extravagante. Sempre sofre por causa de suas roupas. Ao levantar o braço para tocar a campainha, descobre que suas mãos estão suando. Não gosta de visitar ninguém sem justificativa, mas deve fazer isso. Trata-se de uma visita de cortesia. Caso não a fizesse acabaria lamentando por ter deixado essa porta aberta e o preço seriam várias noites de insônia. Enxuga as palmas das mãos com um lenço de papel que encontra no bolso da calça, está ofegante. Em razão do peso e da idade, custou-lhe subir os três andares, mas é um homem decidido e, por maior que seja a angústia que a situação cause, precisa dar uma explicação à família Molina. Não podem saber por intermédio de terceiros, e o telefone é, sem dúvida, um meio de comunicação frio. Sendo assim, limpa a garganta como faz antes de um interrogatório e aperta firmemente o interruptor da campainha. Ele se sente responsável por 13
14
PALAVRAS ENVENENADAS
esse caso, fala para si mesmo enquanto espera que abram a porta, do pesadelo que um dia os surpreendeu e a traição que lhes foi roubando a vontade de viver, são como doentes terminais que contam os dias. Mas mesmo assim, às vezes, é possível notar no fundo de seu olhar uma faísca de esperança disposta a brilhar com qualquer pista. Esperam um milagre, um corpo. Ninguém abre a porta, talvez não estejam em casa. Volta a tentar e, desta vez, deixa que o timbre soe, estridentemente, por um bom tempo. Enquanto procura ouvir qualquer barulho que venha do outro lado, pensa que talvez os tenha decepcionado. Tudo está silencioso. Não deve ter ninguém em casa. Enquanto espera, enumera – mentalmente – uma bolsa abandonada, um caso arquivado sem corpo, um número de processo esquecido e a fotografia de uma garota sorridente que está amarelando dentro de uma pasta repleta de papéis inúteis, abarrotados de declarações inúteis, perdidos entre pistas inúteis. Sem nenhum indício. De repente, alguém abre a porta, desconfiada, protegida atrás de uma correntinha de segurança. De dentro, da escuridão de um saguão inóspito, uma voz pergunta quem é. É a voz de Nuria Solís. Os Molina vivem em um apartamento do Ensanche1 de Barcelona, decorado com discrição, sem ostentação ou dissonâncias, de cores claras e moderação oriental. Antes era confortável, mas, pouco a pouco, foi se tornando um espaço obsoleto. As paredes com as pinturas descascadas, os móveis cobertos pelo pó, a persiana da sala de jantar quebrada há dois anos, sem que ninguém ainda a tenha consertado. A cozinha é fria, funcional, das que atendem às necessidades básicas. Nunca 1 Ensanche: bairro nobre de Barcelona. (N. da T.)
A GAROTA QUE ASSISTIA A FRIENDS 15
cheira a refogados nem a caldos. Às vezes, ele tem a impressão de que está visitando a casa de mortos‑vivos que morreram há quatro anos e que se mantêm artificialmente com vida. Os garotos são calados, discretos e medrosos, impróprio para a idade. Os gêmeos, desengonçados e tímidos, completaram 15 anos, a mesma idade de Bárbara quando desapareceu, mas é como se não existissem. Passam despercebidos, falam por gestos e desviam o olhar quando há visitas. Aprenderam a não incomodar a dor de seus pais. Tiveram a infância interrompida. Nuria Solís o recebe sempre com a mesma pergunta: “Encontraram Bárbara?”. Não há nada mais desanimador que um não, mas já não há mais perguntas. — Vim me despedir – Nuria Solís demora a reagir, como se não tivesse entendido. E nada de convidá-lo a entrar. Tirou a correntinha da porta, mas ficou paralisada, como se tivesse levado uma bofetada. — Para se despedir? – repete sem acreditar. Salvador Lozano, calmamente, fecha a porta e entra na sala sem ser convidado. — Seu marido está? Nuria Solís tem 43 anos e é enfermeira. Quando Salvador Lozano a conheceu, tinha 39 anos e era uma mulher linda. Agora, seu cabelo já está grisalho, veste‑se de forma descuidada e respira por obrigação. — Não, não, ainda não chegou, está trabalhando – responde. “É o normal”, pensa Lozano. Pelas manhãs as pessoas costumam trabalhar, como ele, que está cumprindo com sua obrigação, entretanto, em seu caso, lamentavelmente, talvez seja pela última vez. — Se estiver de acordo, então explico para a senhora – senta-se e pede a ela que também se sente, como se estivesse
16
PALAVRAS ENVENENADAS
em sua própria casa, e não o contrário. Nuria Solís, obediente, senta-se e escuta – ou finge que escuta. Faz tempo que ouve a mesma resposta para uma única pergunta e, uma vez formulada, desconecta‑se e deixa que as palavras fluam e se percam. — Amanhã completarei 65 anos, esperei até o último dia, mas devo aposentar-me – comunica-lhe sem pestanejar. “Quanto antes, melhor, assim não há mal-entendidos”, pensa. Ela olha Lozano com olhos deslocados e o rosto misterioso, tanto que não consegue entender se compreendeu sua simples explicação. O subinspetor confirma que preferia falar com Pepe Molina. — Isso quer dizer que não irão procurá‑la mais? – pergunta Nuria lentamente. — Não, não – apressa‑se Lozano. – Agora o caso estará sob responsabilidade de meu substituto. Ele será o novo encarregado da investigação e manterá contato com vocês. Nuria parece aliviada por alguns minutos, mas logo se altera. — Quem é a pessoa? – o subinspetor tenta ser convincente, mas sua voz soa falsa. — É um jovem entusiasmado, muito bem preparado, o subinspetor Sureda. Estou certo de que terá mais sorte do que eu tive – desejou dizer profissionalismo, mas não quis mentir. O futuro subinspetor Sureda, que acabou de completar 31 anos e tem um futuro brilhante, pode contribuir com entusiasmo, mas não com profissionalismo. Nuria, atordoada, cala‑se. Talvez esteja refletindo sobre essas dúvidas que ele não apresentou. É uma mulher assustada. Quando está com seu marido não tem interesse em conversar, deixa que ele conduza a conversa. Ele não se deixou abater a tal ponto. O marido perdeu a força dos primeiros meses, a força da obsessão por encontrar Bárbara que, inclusive, levou-o
A GAROTA QUE ASSISTIA A FRIENDS 17
a interferir nas investigações, mas agora já está mais calmo e resignado com a perda. Tem um temperamento bem diferente. Sofre com dignidade, enquanto ela adoece em razão da falta de dignidade. Lembra um pintinho molhado na chuva. Nuria Solís se acomoda e se rende a seus pensamentos. Nada mais lhe importa. Já não se preocupa em agradar os outros. Gostaria de a ter conhecido antes de perder a filha e a vontade de viver. A incerteza lhe absorveu a sensatez. Nuria Solís não disse nada e se remexeu, inquieta, na cadeira. É evidente que lhe falta algo. — Teria de falar com meu marido – diz bruscamente. — Ele tem a cabeça no lugar – admite. O subinspetor Lozano pensa o mesmo, mas reconhece que seria uma indelicadeza de sua parte corrigi-la, afirmando que ela é uma interlocutora tão importante como o marido. No entanto, Nuria já havia se levantado, pegou o celular que estava sobre a mesinha e fez uma ligação. — Pepe? – exclama com voz chorosa. Sua expressão muda enquanto o escuta. — Não, desculpe-me, sei que está trabalhando, mas o inspetor Lozano está aqui – fica calada e trêmula por alguns segundos e volta a falar com voz insegura, a mesma insegurança com que enfrenta o inacreditável vazio de uma ausência. — Não, não há nenhuma novidade sobre Bárbara – esclarece. — Mas ele queria se despedir de você, pois está se aposentando. Está certo – conclui, depois de uma longa explicação do marido. Sua expressão ficou mais relaxada, provavelmente seu marido tenha dado uma solução ao problema que era incapaz de resolver sozinha. Terminou a ligação com uma luz nos olhos, aliviada por ter se desfeito de um peso imprevisto. — Ele disse que irá vê-lo pessoalmente – o subinspetor sabe que o fará, pois é um homem de
18
PALAVRAS ENVENENADAS
iniciativa e com a agenda organizada. É representante de joias. Sabe como tratar seus clientes e organizar seu tempo. Apesar de viajar constantemente, organiza‑se para estar com a esposa e os filhos e cuidar da família. Dedicou sua atenção inclusive ao cachorro, que tiveram de tirar de casa, pois fazia com que se lembrassem muito de Bárbara. É um homem enérgico, dinâmico, que encabeçava as manifestações pela filha sempre na primeira fila, cartaz nas mãos, incansável. Levanta-se. Não há motivos para prolongar a visita. Já está tudo dito e, além do mais, Nuria esqueceu as regras elementares de etiqueta e nem sequer ofereceu um cafezinho. “O pior momento já passou”, fala para si mesmo, relaxando. Caminham em silêncio até a porta e, de repente, antes de abri-la, Nuria para, vira para o policial e o abraça. Lozano não sabe como reagir e fica parado, com os braços caídos. Aos poucos se deixa contaminar pela emoção e a envolve, protegendo-a com sua afetuosa benevolência. É frágil como uma menina, uma menina maltratada. Ficam assim, abraçados, como em uma última despedida. — Obrigada – murmura Nuria. E se separa dele, deixando em seu peito uma suave sensação de que se dissolveu a acidez de seu fracasso. Devolveu-lhe com simplicidade o agradecimento que os policiais nunca esperam, mas que sempre desejam. Entendeu o esforço que fez para ir até a sua casa para despedir-se. Sabe que para ele também não é agradável a ideia de abandonar o caso de Bárbara, de passá-lo a outros que mexerão em lembranças com entusiasmo, mas sem uma pitada de delicadeza. Com a porta entreaberta, ela sorri entre lágrimas e, por alguns instantes, ele pode intuir que seu sorriso, anteriormente, era radiante e vivo, como a da fotografia de Bárbara que ele olhou tantas vezes.