Revista Borogodó

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Universidade Anhembi Morumbi | Curso de Jornalismo | 6º Semestre | Turma Vila Olímpia - Manhã | 2016/2

DENTRO DE CAMPO MULHERES ROMPEM BARREIRAS Meninos que desafiaram os estereótipos de gênero e escolheram a ginástica Entrevista exclusiva com Arthur Zanetti A presença feminina nos estádios NOVENTA MINUTOS DE SILÊNCIO as meninas que jogam futsal para surdos

Temas Contemporâneos _questão de gênero



quem faz? Revista produzida por alunos do 6º semestre do curso de Jornalismo da Universidade Anhembi Morumbi

Beatriz Pinheiro, é especialista em memes e consegue citar Los Hermanos e Dominó na mesma conversa.

Reitor Prof. Dr. Paolo Tommasini Pró-reitor Acadêmico Prof. Dr. Ricardo Fasti Diretor da escola de Ciências Humanas e Sociais Prof. Dr. Luis Alberto de Faria

Caroline Maciel, é guiada pela sensibilidade, fé e poesia. Gosta de cantar e fazer tapiocas.

Coordenador do curso de Jornalismo Prof. Dr. Nivaldo Ferraz Coordenador Adjunto do curso de Jornalismo Prof. Ms. Alexandre Possendoro Professora da disciplina e orientadora desta edição Profa. Ms. Cris Barbosa

Daiara Coelho, é viciada em problematizar, não consegue terminar séries e dança enquanto espera o ônibus.

Projeto gráfico Prof. Ms. Ricardo Senise Redação e diagramação Beatriz Pinheiro Caroline Maciel Daiara Coelho Fernanda Valente Vitória Bitencourt

Fernanda Valente, parece blogueira ‘look do dia’, mas corre da PM em manifestação.

Foto de capa Fernanda Valente Modelo Caroline Maciel Agradecimentos “Boca” Data desta edição

Vitória Bitencourt, é apaixonada por cultura geek, live-actions e tudo o que é trash.


editorial

quem somos A equipe é formada por mulheres que buscam promover reflexões na sociedade e apresentam, nesta edição da Borogodó, o tema esporte sob a ótica da questão de gênero. O objetivo não é restringir a veiculação ao círculo acadêmico porque acreditamos na democratização do conhecimento e temas como esse precisam ser discutidos. Até quando iremos permitir que as mulheres sejam vistas como inferiores aos homens por uma parcela da sociedade? Até quando a determinaremos o que é “coisa” de menino e de menina? Todos os dias mulheres são agredidas com palavras e ações. Integrantes da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros) são ridicularizados, violentados, mortos. Histórias são silenciadas. Julgamentos ferem. O machismo impera. Queremos uma nova realidade. Queremos uma sociedade igualitária, justa, democrática, que dialogue com todas as classes e círculos. Junte-se a nós. Reflita. Questione. Não se acomode. Não fique indiferente. Seja a diferença!

Quem foi que disse que ginástica é esporte de menina ou só meninos podem jogar futebol? Esses paradigmas estão se quebrando cada vez mais, hoje em dia somos livres para fazer escolhas, mas nem sempre essas escolhas são bem aceitas. Ainda há muito preconceito e desigualdade no esporte. Nesta edição, vamos falar sobre o desenvolvimento do futebol feminino no Brasil e das dificuldades e preconceitos enfrentados pela seleção feminina desportos surdos. Falaremos sobre meninos na ginástica, que muitas vezes tem a sexualidade contestada, mas com o apoio dos pais e familiares vêm se destacando no esporte sem ligar para julgamentos. Como crescimento do número de mulheres na arquibancada e na arbitragem, debateremos sobre assédio e comentários misóginos. A revista Borogodó se empenha em trazer discussões sobre assuntos considerados tabus para desconstruir preconceitos com seriedade e didática.

HOMOFOBIA ARBITRAGEM PRÊMIOS

DEDICAÇÃO CONQUISTA PARCERIA

LUTA

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REFLEXÕES

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MEDALHAS

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EMPODERAMENTO Ar te: Daiara Coelho


índice

• A ginástica artística vence o

preconceito | 6 • Entrevista: Arthur Zanetti | 8 • Crônica: representação LGBT nas Olimpíadas | 10 • Árbitras: as mulheres fora das quatro linhas | 11 • CAPA: Dentro de campo, as mulheres ultrapassam as barreiras de gênero | 14 • Mulheres nos estádios não é tabu, é realidade | 20 • Noventa minutos de silêncio: futebol de surdas | 23


Temas Contemporâneos _questão de gênero

A ginástica artística vence o preconceito Antes associado ao feminino, o esporte ganhou força entre os homens e quebrou a barreira dos gêneros Caroline Maciel

Ginástica Artística. Esporte que exige coordenação, equilíbrio. Esporte que encanta com suas belas apresentações. No início, somente os homens praticavam a modalidade, mas com o decorrer do tempo eles foram perdendo espaço para as mulheres. Diante desse cenário, as pessoas passaram a enxergar o esporte como feminino e por esse motivo ridicularizavam os homens que escolhiam fazer ginástica artística. Porém, o preconceito foi vencido e a categoria masculina foi ganhando força novamente. Daiane dos Santos continua sendo um nome marcante, mas também surgiram outros nomes em destaque, como o de Arthur Zanetti, Diego Hypólito e Arthur Nory, medalhistas das Olimpíadas do Rio 2016. O preconceito deu lugar à admiração, uma vontade de ser como esses grandes ídolos. A imagem negativa se tornou positiva. Essa mudança é notada por Matheus Ribeiro, um dos treinadores dos ginastas do Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP), da Prefeitura de São Paulo. “Faço ginástica artística desde os seis anos de idade. Já sofri muito preconceito nessa fase, principalmente dos amigos

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Foto: Caroline Maciel

Treinar com força e seguir os passos do ídolo é o caminho


da escola. Eles me chamavam de boiolinha, viado, menininha. Mas quando fui ficando mais velho, conforme a ginástica cresceu, o esporte se tornou algo almejado, independentemente de ser homem, mulher ou gay”, conta o técnico auxiliar. Ele acompanha o treino dos sete atletas de 11 a 14 anos, que competem em nível estadual e nacional: Patrick Sampaio, Júlio César Almeida, João Victor da Silva, Kayke Santos, Leonardo Barreto, Rogério Borges e Bruno Ferreira. Donos de muitas medalhas no individual e por equipes, eles receberam apoio da família e dos amigos quando optaram pela categoria.

“Conforme a ginástica cresceu, foi almejada pelas pessoas, independentemente de ser homem, mulher ou gay.” O ginasta Patrick Sampaio, 14 anos, campeão brasileiro no solo, comenta: “Eu via na TV os atletas e eu queria ser como eles. Foi a minha mãe que me incentivou a fazer ginástica artística e meus amigos acharam demais”. O treinador que acompanha os meninos há mais tempo, Caio Guilherme da Silva, explica: “Hoje as pessoas estão lidando melhor com a questão da homossexualidade, mas o preconceito que ainda existe, principalmente por parte dos pais, é com o fato dos atletas de ginástica artística serem baixos, porque eles têm medo de que

seus filhos não cresçam também”. Mas o preconceito é pequeno perto dos prêmios que o grupo já ganhou, que lotam a prateleira. Caio Guilherme da Silva tem motivos de sobra para se alegrar com o resultado de tantos

anos de trabalho. Ele afirma: “Para mim isso é uma missão. Eu não imaginava chegar até onde a gente chegou. Eu fico orgulhoso demais pelo que conquistamos até aqui e com a expectativa de até onde podemos chegar”.

SÃO PAULO: O CENTRO DA GINÁSTICA ARTÍSTICA A formação de novos ginastas brasileiros está concentrada em São Paulo, segundo a Federação Paulista de Ginástica. O estado conta com 41 entidades filiadas, nas quais acontecem os treinos de integrantes da seleção brasileira e medalhistas olímpicos. O Arthur Zanetti treina na Associação de Ginástica Di Thiene de Pais e Mestres (AGITH), em São Caetano do Sul, Diego Hypólito na ASA, em São Bernardo do Campo, e Arthur Nory no Esporte Clube Pinheiros, em São Paulo. Os sete atletas do Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP), sementes da ginástica artística no Brasil, são federados e confederados e estão cada vez melhores nas competições. Dentre tantos talentos, o ginasta Júlio César Almeida foi campeão paulista no solo na categoria juvenil.

CENTRO OLÍMPICO DE TREINAMENTO E PESQUISA O COTP é administrado pela Secretaria de Esportes, Lazer e Recreação da Prefeitura de São Paulo. O diferencial do espaço é a preocupação com o esporte de alto rendimento, principalmente olímpico, com treinamento específico e busca do aperfeiçoamento técnico dos atletas. Qualquer criança ou adolescente, residente do município e que esteja estudando, pode ingressar nos quadros do Centro Olímpico, por meio de processos seletivos na modalidade desejada, chamados de “peneiras”. Caso sejam aprovados, podem treinar lá gratuitamente e participar das principais competições municipais, estaduais, nacionais e internacionais de acordo com a faixa etária. Endereço Avenida Ibirapuera, 1315, Vila Clementino, São Paulo - SP Telefone: (11) 3396-6452/6468

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Temas Contemporâneos _questão de gênero

Para além das argolas: quem é Arthur Zanetti? Campeão olímpico, panamericano e mundial, o ginasta relembra sua trajetória e sonha ir mais além Caroline Maciel

Nascido em 16 de abril de 1990, em São Caetano do Sul (SP), Arthur Nabarrete Zanetti, pesa 63 kg e seus 1,56m de altura são pequenos perto do seu talento. Em 2012, foi o primeiro atleta brasileiro a ganhar uma medalha olímpica na ginástica artística, com o ouro nos Jogos de Londres, e em 2013 foi mais além quando se tornou o primeiro campeão mundial com o título inédito na Bélgica. Conseguiu mais um ouro panamericano,

Foto: Paulo Pinto/ Fotos Públicas (20/03/2014)

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em Toronto, no ano de 2015. Todas as medalhas conquistadas nas argolas, sua especialidade. E com a mesma força que segura as argolas nas competições, tem uma forte determinação para alcançar seus objetivos. Nas Olimpíadas do Rio 2016, a prata veio para completar as grandes conquistas da sua trajetória e auxiliado atualmente pelo técnico Marcos Goto, o ginasta quer continuar trazendo muito orgulho para o Brasil

e participar de mais um ciclo olímpico visando os Jogos de Tóquio, em 2020. BATE-BOLA Borogodó - Como surgiu o interesse pela ginástica artística? O que esse esporte significa para você? Arthur - A ginástica artística surgiu de repente na minha vida quando o meu professor de


A - O que me faz permanecer no esporte são os desafios. O meu objetivo é quebrar novos B - Quais os principais desafios recordes, como conseguir três que teve de enfrentar na medalhas nas argolas, que trajetória? ninguém tem. Quero fazer projetos e mostrar ainda mais A - Precisei superar o medo de a ginástica artística para as altura na infância para treinar novas gerações, que podem se nos aparelhos altos. A disciplina interessar por praticá-la. e as restrições alimentares em períodos importantes de treino B - Que conselho daria para também são desafios para mim. um garoto que quer praticar a modalidade? B - Qual foi a reação das pessoas B - Recebeu apoio da família, dos quando você disse que queria A - Em primeiro lugar, tenha fazer ginástica artística? Você disciplina, dedique-se, tenha amigos? Desde o início? já sofreu algum preconceito na respeito, força de vontade e A - Sim, o apoio da minha família sua trajetória pelo fato de ser estipule metas. Não treine só por foi essencial para eu estar até homem? treinar ou porque alguém está te hoje na ginástica artística. Tive obrigando, treine porque você momentos de dificuldades e A - A reação das pessoas era de gosta. Corra atrás para alcançar eles me ajudaram muito, porque espanto porque não conheciam o os seus objetivos e você chegará como eles sempre fizeram esporte. Nunca sofri preconceito lá. esporte também, sabem o por ser homem, mas muitos me falavam para fazer futebol, que Curiosidades sobre Arthur é o tradicional de todo menino. Zanetti Na época, eu optei mesmo assim pela ginástica e hoje em dia as Clube: Sociedade Esportiva, pessoas já apoiam as crianças que Recreativa e Cultural escolhem praticar a modalidade. Santa Maria, em São Caetano do Sul, São Paulo. B - O que as medalhas olímpicas Escolaridade: Formado nos jogos de Londres 2012 e do em Educação Física pela Rio 2016 significaram para você? Universidade de São Caetano do Sul (USCS) A - A Olimpíada de Londres é Estilo musical favorito: um marco na minha história, sertanejo porque estava participando pela Gênero de Filme: comédia primeira vez e já consegui o ouro. Livro: estilo autoajuda, como A medalha de prata na Olimpíada Transformando Suor em Ouro, do Rio 2016 é um marco diferente, do Bernardinho porque foi a primeira olimpíada Um ídolo na ginástica: Yuri no país e conseguir uma medalha van Gelder em casa é raro na história dos Time de futebol: São Paulo ginastas olímpicos. Eu fico muito Outros esportes: handebol e satisfeito por essas conquistas. vôlei Comida: carnes e massas B - Quais são as razões que te Passatempo: ir ao cinema fazem permanecer na ginástica Lugar para descansar: praia artística masculina? educação física, Sérgio Oliveira dos Santos, percebeu o meu biotipo e aconselhou a minha mãe a me levar para fazer um teste no clube que eu treino hoje. Passei, comecei a treinar e então foi crescendo a paixão pelo esporte. Quase ninguém conhecia a modalidade na época, inclusive eu e minha família, mas hoje a ginástica é a minha vida, tanto na parte pessoal quanto profissional e eu devo a ela todas as minhas conquistas.

quanto a presença dos familiares é importante para um atleta.

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_crônica

“O tapa na cara da sociedade” nos Jogos Olímpicos deste ano

Hesitei em escrever. Um pouco por medo de esbarrar na vala do desconhecido, outro pouco por não ser minha intenção tomar um lugar de fala. Me parece, no entanto, estritamente importante o diálogo para além de grupos seletos de pessoas com opinião igual ou parecida. Quando falamos em esporte, seja ele qual for, imediatamente são levantadas diversas pautas inclusivas, já que por si só, a prática envolve cidadania e desenvolvimento humano. Ainda assim, muitas vezes nos reduzimos às pautas sobre o direito das mulheres, dos negros e deficientes. Não me entendam mal, todas essas questões têm seu valor e devem ser debatidas e tratadas seriamente, mas não é só isso. O que quero dizer é que não podemos nos esquecer de um grupo alvo de enormes

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Fernanda Valente

preconceitos — os LGBTs (lésbicas, gays, bissexuais e trangêneros). Nesse quesito, os Jogos Olímpicos deste ano deram o famigerado “tapa na cara da sociedade”. Isso porque contou com o maior número de atletas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros assumidos. De acordo com o levantamento do site Outsports, plataforma dedicada aos esportistas LGBTs, ao todo 45 competidores declaram abertamente sua orientação sexual. E isso é muito representativo! O pedido de casamento seguido de um beijo entre a atleta de rugby Isadora Cerullo e sua namorada, Marjorie Enya, depois do último jogo da seleção feminina do Brasil, balançou as estruturas do mundo consevador, tornando-se o ponto alto da visibilidade LGBT. E ainda bem que houve esse episódio: orgulharme-ei de falar para a geração futura que eu assisti a isso. A i n d a assim, são t e m p o s sombrios, não há como negar. Assumir a orientação sexual para o grande público

não é tarefa fácil. Desde os primórdios da história dos esportes de competição sabe-se que é composto, em sua maioria, por homens heterossexuais. Coloque-se na posição dos atletas que expuseram ao mundo. Complicado. Embora tenha havido milhares de comentários positivos e incentivadores, há ainda os disseminadores de ódio e os machistas que parecem acreditar que a mulher tem como papel único e fundamental servílos. Nesta lógica, poderiam as meninas namorarem e casarem? Seria seguro? E os atletas gays? Pois bem, amigos, amigas, unimo-vos. Em tempos em que Trump é eleito presidente dos Estados Unidos e Temer toma posto no Brasil, políticas de incentivo e inclusivas estão na corda a bamba e o risco de retrocesso é grande. Por isso precisamos dialogar e continuar batendo palma aos atletas que, naturalmente já são foco de holofotes, decidem enfrentar todas as críticas e alvoroço midiático ao expor sua orientação. Adelante: a causa é legítima e merece ser espalhada para o mundo todo, nem que seja na luta, no grito, ouem um megafone.


Árbitras: as mulheres fora das quatro linhas Em São Paulo, a presença delas na arbitragem não chega a 7%

Foto: Daiara Coelho

Renata Ruel Xavier se apaixonou por futebol aos 14 anos, mas não queria jogar

Daiara Coelho

Piii!! Apitou o árbitro. No mesmo instante, foi dado o primeiro toque na bola. Assim começou a partida de um campeonato amador no Esporte Clube Pinheiros, localizado em um bairro de classe média alta da Zona Oeste de São Paulo. A atenção dos poucos torcedores era direcionada aos 22 jogadores na espera de um bom drible ou um gol. Em uma disputa, a bola foi chutada para fora e a bandeira subiu. Piii!! Lateral. Primeiro na bandeira laranja e amarela, os olhares se concentraram na figura de uniforme parada atrás da linha

que delimita o campo: Renata Ruel Xavier fazia parte das quatro pessoas da equipe de arbitragem daquele dia. Acostumada a ser a única mulher durante 90 minutos, a árbitra assistente compõe um pequeno e importante grupo: 39 mulheres árbitras do Estado de São Paulo. A quantidade não chega a 7% dos 560 árbitros cadastrados na Federação Paulista de Futebol e os números impressionam ainda mais quando analisamos a presença feminina em um dos principais campeonatos do Brasil, a série A1 do Paulista Masculino: na temporada de 2016, havia

apenas três profissionais. Se atualmente a diferença é espantosa, imagine em 1967, quando, pela primeira vez, uma mulher se formou em uma escola de árbitros. A mineira Léa Campos se aproveitou de uma falha na lei que proibia a prática de futebol por mulheres (vide box na próxima página) e se matriculou na Escola de Árbitros de Minas Gerais, mas, por medo de represálias, não compareceu à formatura. Ser uma das poucas alunas no curso de arbitragem também foi uma realidade conhecida pela

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gaúcha Andreza Vanni Mocelin, Proibição do futebol feminino no brasil árbitra há cinco anos. Na turma em que se formou só havia A prática de futebol por mulheres nunca foi facilmente outras duas mulheres, dentre aceita na sociedade brasileira. Segundo a professora doutora 60 alunos. Já a sala de Ruel era Heloisa Turini Bruhns, no livro “Futebol, Carnaval e Capoeira mais diversificada, tinha cerca de Entre as gingas do corpo brasileiro”, no século XIX, enquanto os vinte e cinco mulheres e algumas homens da elite aderiram ao esporte, as mulheres que passaram ainda continuam na carreira. a jogar pertenciam às classes mais baixas, já que às mulheres Além da pouca presença, ricas cabia apenas o lugar na arquibancada. As jogadoras as mulheres ainda enfrentam eram consideradas “grosseiras, sem classe e malcheirosas”. mais um obstáculo em campo: Durante o Estado Novo, em 14 de abril de 1941, o machismo. Enquanto Ruel se um decreto criado por Vargas definiu que as mulheres concentrava no jogo que ainda estavam proibidas de praticar qualquer esporte que não estava em 0x0, no lado de fora fosse compatível com as “condições de sua natureza”, do campo foi possível ouvir o como lutas, polo, rugby, baseball e futebol. O decreto foi comentário de um senhor que complementado pela Deliberação Número 7, em 1965, no revela o preconceito do dia a Regime Militar, reforçando a proibição desses desportos. dia: “era só o que faltava, uma Apenas em 1981, quatro anos antes da redemocratização, o mulher de juíza”. E a atitude não decreto foi revogado pelo Conselho Nacional de Desporto. se limita aos homens. “Às vezes, você faz um jogo e escuta da arquibancada uma mulher gritar ‘vai lavar louça, o que você está sinta ofendida, o departamento por jogo e a taxa de arbitragem fazendo aí?’” conta a árbitra, que jurídico entrará com uma ação é a mesma para os dois. Na série atua há doze anos. interpelada no Tribunal de Justiça A do Campeonato Brasileiro, o “No começo [da carreira], Desportiva, mas a ação cível e valor é de R$ 3 mil e 500 reais, ninguém te conhece, acham criminal fica por conta dela. independente do gênero, e a taxa que está perdida, que não é é paga ao profissional antes da competente, tem que se provar”. IGUALDADE SALARIAL partida. Mas ela acredita que as coisas estão mudando: “com o tempo, o De acordo com um ESTRUTURA DOS ESTÁDIOS respeito aumenta”. estudo do Instituto de Pesquisa Em campo, a atitude dos Econômica Aplicada (IPEA) A existência de banheiros jogadores e comissão técnica de 2014, mulheres ganham femininos e masculinos é tão varia. Enquanto alguns reclamam em média 30% menos do que comum em ambientes públicos de forma energética, na esperança os homens no Brasil e, para e privados que raramente nos de que, por serem mulheres, mudar essa realidade, há um preocupamos com a questão, elas cedam à pressão, outros movimento internacional em mas isso é diferente para elas. amenizam o tom e chegam até a favor da igualdade salarial. Já Poucos são os estádios que se desculpar pelos xingamentos no mundo do arbitragem, a possuem vestiários diferentes que escapam durante a partida. Se diferença de remuneração não para os árbitros, por mais que os os comentários tenha havido uma melhora. e x t r a p o l a r e m , “Às vezes, você faz um jogo Quando só há um banheiro, eles a profissional dão um jeitinho: alguém sempre pode procurar e escuta da arquibancada aguarda ao lado de fora. o Sindicato uma mulher gritar ‘vai lavar dos Árbitros de PREOCUPAÇÃO Futebol de São louça’.” Paulo. Segundo Para iniciar a carreira o presidente da SAFESP, Arthur é um problema. Alves Júnior de árbitra é preciso passar Alves Júnior, caso a árbitra se explica que os árbitros ganham na avaliação física ao final do

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curso. A CBF (Confederação Brasileira de Futebol) determina que elas precisam passar nos testes masculino e feminino para atuar nas duas categorias e, segundo o presidente da SAFESP Alves Júnior, entidade que também oferece cursos de arbitragem, a diferença entre os circuitos é o tempo de repouso e a intensidade dos exercícios. Atualmente, em São Paulo, se a árbitra passa no circuito feminino ela está apta a atuar nos jogos masculinos, mas a FPF pretende mudar essa realidade, o que preocupa as profissionais. Renata

Ruel defende que há diferenças entre a fisiologia do homem e da mulher e, por isso, é preciso focar nas especificidades de cada gênero. Poucas são as mulheres que conseguem terminar o circuito masculino com o mesmo tempo dos homens, o que não significa que não consigam estar no mesmo patamar durante os jogos, já que são contextos diferentes. Além do mais, muitas alunas se machucam ao tentar atingir a mesma marca que eles e a probabilidade de diminuir o número de profissionais em campo é grande.

MOMENTOS INESQUECÍVEIS As duas profissionais concordam quando o assunto é episódios marcantes. Para Renata e Andreza, é sempre muito especial contar com a presença dos familiares durante os jogos, unindo as duas coisas que mais amam: futebol e família. Emocionada, Renata fala que no momento do hino nacional os olhos brilham e ela tem a certeza de que está na profissão certa.

As mudanças propostas pela FPF podem ameaçar o futuro das mulheres fora das quatro linhas

13 Foto: Daiara Coelho


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Dentro de campo, as mulheres ultrapassam as barreiras de gênero Modalidade recente no Brasil, o futebol feminino supera dificuldades para conquistar resultados Beatriz Pinheiro

Foto: Beatriz Pinheiro

Mulheres ganharam espaço nos gramados

No “país do futebol”, tudo é motivo para bater uma bolinha. Coisa comum é ver garotos improvisando tampinhas, latas amassadas ou bolinhas de papel, na rua, na quadra ou na escola, para marcar seus primeiros gols. Recentemente, as garotas também ganharam esse espaço, e começaram a marcar presença em escolinhas de futebol, peneiras ou clubes de camisa.

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Aos poucos, os brasileiros voltam seu olhar ao futebol feminino e começam a entender que lugar de mulher é onde ela quiser - até mesmo dentro de campo. Mas nem sempre foi assim. Quando Aline Pellegrino descobriu o gosto por jogar futebol, precisou esconder o fato do pai, que a incentivava a acompanhar o esporte, mas apenas fora das quatro linhas. A

paixão era tanta que ela topava até mesmo ficar de castigo para ter a bola nos pés. “Ele ficava bravo porque eu só jogava com meninos na rua ou na escola. Aos 12 anos descobri perto de casa uma escolinha, comecei a treinar e meu pai acompanhava escondido, para não dar o braço a torcer. Quando ele viu que eu era boa, ligou para os clubes de São Paulo para saber se algum deles


tinha peneira”, recorda. Foi então que Aline começou a jogar no São Paulo e passou os 16 anos seguintes atuando dentro de campo. E ainda bem que o pai reconheceu o talento da filha: além de passagens expressivas por grandes clubes brasileiros e pelo futebol do exterior, a zagueira foi capitã da seleção brasileira por oito anos e conquistou a medalha de prata nas Olimpíadas de Atenas, em 2004, o vicecampeonato da Copa do Mundo, em 2007, e o título dos Jogos Pan-Americanos do mesmo ano, marcando seu nome na história do futebol feminino. Hoje, Pellê, como é carinhosamente chamada, coordena o departamento de futebol feminino da Federação Paulista de Futebol (FPF). A exatleta acredita que grande parte do aumento da popularidade do esporte entre meninas se deve a Marta e cia., e às boas atuações da seleção brasileira. Ao mesmo tempo, sabe que as condições para a prática da modalidade no país ainda têm muito a melhorar. O PONTAPÉ INICIAL Tudo começa na própria formação de atletas, ainda nas categorias de base. Para o empresário Douglas da Silva Horácio, que trabalha com gestão de carreira de esportistas, muitas vezes os critérios para avaliação inicial dos jogadores de diferentes gêneros são aplicados de maneira injusta, o que pode gerar resultados frustrantes. “Os critérios que são utilizados para medir a aptidão dos atletas são desproporcionais para homens e mulheres. Deve-se buscar o máximo do atleta, mas dentro

de suas limitações físicas no que diz respeito à comparação entre homem e mulher. Cobrar uma evolução de uma atleta feminina na mesma proporção de um atleta masculino, por questões físicas e biológicas, é injusto”, opina. Por outro lado, temos exemplos de trabalhos bem sucedidos na base do futebol feminino. É o caso do Centro Olímpico, que tem equipes desde a categoria sub-11 até o sub-20. O clube, inclusive, chegou até as semifinais do Campeonato Paulista deste ano com uma equipe totalmente composta por atletas com menos de 20 anos. O time também foi o que teve mais jogadoras presentes na última lista de convocadas pelo técnico Doriva Bueno para a seleção brasileira feminina sub-20. Atualmente no comando técnico da equipe principal,

“Critérios para medir a aptidão dos atletas são desproporcionais para homens e mulheres” Jonas Urias já passou por todas as categorias de base do clube, e sabe bem como são as peculiaridades da formação de atletas para o futebol feminino. O jovem treinador acredita que o trabalho a longo prazo acrescenta ao desenvolvimento individual das jogadoras, mas ainda falta estrutura na modalidade. “Infelizmente, o Centro Olímpico é um dos pouquíssimos lugares que tem categoria de base. Deveria ter muito mais

fomento à modalidade. Para ter base, precisa ter competição, para não montar um time sem ter o que disputar. O primeiro passo são as instituições, como as federações estaduais e a CBF, se mobilizarem e criarem torneios. Entenderem também qual é a realidade de cada esfera, para identificar qual deve ser o perfil desses campeonatos e fazer um trabalho a longo prazo para garantir o presente e o futuro”, apontou o técnico. De fato, faltam competições para que esses talentos sejam postos à prova. Para Aline Pellegrino, é de extrema importância criar torneios e um calendário específico para as categorias de base, para que as jogadoras não se percam na trajetória. “Hoje não temos no Brasil um campeonato de base. Tem algumas coisas pontuais, fora das federações. Se essa turma está sonhando com 10, 12, com 13 anos, elas vão jogar. Precisamos criar essa possibilidade e de alguma forma começar a criar competições. O primeiro passo é ter uma competição, senão não temos como atender a essa demanda”, declara. O CALENDÁRIO A questão do calendário, muito restrito, ainda é um dos principais problemas enfrentados pelas equipes femininas. Nem sempre é possível que os times disputem competições ao longo de toda a temporada, o que prejudica a continuidade do preparo físico, diminui o ritmo de jogo das atletas e, consequentemente, compromete a competitividade

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Foto: Beatriz Pinheiro

Público brasileiro lotou a Arena Corinthians para apoiar a seleção feminina nos Jogos Olímpicos

das partidas e o espetáculo futebolístico. É essa situação que vive o Santos, equipe de tradição no futebol feminino, que já teve atletas como Marta, Cristiane, Formiga e a própria Aline em seu elenco. Nesta temporada, participou do Campeonato Brasileiro, mas caiu na primeira fase, encerrada em fevereiro. Desde então participou do Paulistão, em que ficou com o

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vice-campeonato, e, eliminado da Copa do Brasil na segunda fase, em setembro, não volta a campo até a próxima temporada. O coordenador de futebol feminino do clube, Rubens Quintas, avaliou a situação e reconheceu a dificuldade de se manter uma equipe em alto nível sem um calendário completo. O elenco segue trabalhando para manter a forma física, mas é complicado trabalhar o ritmo de

jogo e de competição. “Realmente é uma coisa complicada essa questão. Essa lacuna que agora acontece conosco não é benéfica. Nós paramos em setembro, agora já estamos em novembro e seguimos só treinando. É difícil conseguir amistosos… Precisamos de um calendário que abrange, pelo menos, até o final de novembro”, disse. Com esse olhar, a


coordenadora de futebol feminino da FPF tem observado as necessidades dos clubes e busca implantar melhorias na modalidade no estado. Aline Pellegrino vem conversando com representantes das equipes paulistas e pretende dar mais atenção ao trabalho de base, além da criação de um calendário mais completo para a modalidade. Mesmo assim, ela lembra que a falta de jogos durante o

ano todo não é exclusividade entre as mulheres. No masculino, os times das divisões menores do futebol nacional ou estadual têm um calendário bem menor se comparado com clubes que disputam a Série A do Campeonato Brasileiro, por exemplo. “O problema é que poucas equipes conseguem jogar o campeonato inteiro. Não são todos os clubes que têm a vaga no Brasileiro, na Copa do Brasil,

na Libertadores, então na prática nem sempre o time consegue competir o ano todo. Precisamos fazer esse ajuste, para as equipes poderem jogar mais”, explica. CADA COISA EM SEU LUGAR Durante os Jogos Olímpicos do Rio 2016, não faltaram comparações, por parte da imprensa e da torcida, entre

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as seleções masculina e feminina. Tanto é que um dos símbolos do evento esportivo foi o garotinho que riscou o nome de Neymar de sua camisa amarelinha para substituir pelo nome de Marta, em um momento do torneio em que os homens não apresentavam seu melhor futebol e as mulheres tinham desempenho mais satisfatório. Aline Pellegrino, porém, acredita que essa comparação não é cabível, por diversas razões. A principal delas é que, enquanto o futebol masculino teve tempo para se consolidar, crescer e construir sua história, o feminino sofreu uma interrupção na trajetória. Por um decreto de 1941, durante

o Estado Novo, as mulheres foram proibidas de praticar o esporte, e a determinação só foi revogada em 1981. Essa lacuna histórica comprometeu o desenvolvimento da modalidade no Brasil. “A modalidade é muito nova. Começamos a ter um desenvolvimento de fato a partir da primeira Copa do Mundo, em 1991, por isso o olhar precisa ser diferente do futebol masculino, que já é uma modalidade consolidada. Se for para comparar, espera mais uns 60 anos”, diz. Enquanto o futebol masculino tem grande visibilidade, atrai investidores e movimenta milhões, as mulheres

ainda lutam por patrocínio, espaço na televisão e maior renda. A ex-capitã da seleção acredita que as duas realidades ainda estão muito distantes uma da outra para se buscar uma igualdade. Para ela, antes de se equiparar com os homens ou ganhar os mesmos salários astronômicos, as mulheres precisam mesmo é ter as mesmas chances de lutar pelo seu sonho. “A gente precisa ter um salário, uma estrutura e carteira assinada, mas isso não quer dizer que a gente vá ganhar 30 mil reais. O que a gente busca é a mesma oportunidade, o mesmo caminho para chegar nos mesmos objetivos”, finaliza.

Foto: Beatriz Pinheiro

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Diferentemente de jogos de Seleção, campeonatos menores ainda recebem pouco público


COMO FUNCIONOU O CALENDÁRIO DO FUTEBOL FEMININO EM 2016

Campeonato Brasileiro Com 20 clubes, a competição iniciou em 20 de janeiro e a primeira fase se encerrou no dia 17 de fevereiro - 12 clubes encerram sua participação no campeonato nesse ponto, com apenas cinco partidas disputadas. A segunda fase começou em 22 de março e foi até o dia 27 de abril, com mais seis partidas disputadas. Semifinais em 4 e 11/5, finais em 17 e 20/5. Apenas os finalistas jogam de janeiro a maio. Campeonato Paulista Disputado em quatro fases, com 14 clubes. O torneio começou no dia 9 de abril e a primeira fase se encerrou após 12 rodadas, no dia 18 de junho. Seis equipes param de jogar nesta etapa. Segunda fase em 25 de junho e 3 de julho. Quartas de final em 30 de julho e 6 de agosto. Semifinais em 13/14 de agosto e 21/8, finais em 25 e 28/8. Copa do Brasil Disputada em cinco fases, em jogos de turno e returno, com 32 clubes participantes. A competição teve início em 24/8 e a final aconteceu no dia 27/10. Copa Libertadores Com 12 clubes participantes, a edição de 2016 conta com dois representantes brasileiros, a Ferroviária e o Foz Cataratas-PR. O torneio acontece entre os dias 6 e 20 de dezembro, com uma fase de grupos, semifinal e final. Jogos Regionais e Jogos Abertos do Interior Competições que acontecem, respectivamente, em julho e setembro e reúnem as equipes do interior do estado. Os torneios duram 15 dias. Considerando que uma equipe disputasse todas as competições e chegasse até a final de todas elas, somaria, no total, 48 jogos na temporada.

MUDANÇAS NAS COMPETIÇÕES Copa Libertadores A Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) determinou, em estatuto divulgado em setembro deste ano, que os clubes que desejarem disputar a Copa Libertadores da América só poderão participar caso tenham uma equipe feminina. A medida será válida a partir de 2019, e a tendência é que, até lá, clubes de expressão que não trabalhem com a modalidade façam seus esforços para ter equipes femininas. A edição do torneio para mulheres é promovida pela Conmebol desde 2009. Campeonato Brasileiro O Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino de 2017 foi lançado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) com fórmula diferente em relação às edições anteriores. A competição será mais longa, com as equipes finalistas disputando 20 partidas. Além disso, os clubes participantes serão organizados em duas divisões, a Série A1 e Série A2, com 16 times em cada.

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Mulheres nos estádios não é um tabu, é uma realidade Hoje a torcida feminina divide o espaço com os homens Fernanda Valente

Para além do preconceito de gênero, as mulheres estão nos estádios, sim! E pode apostar que elas não só entendem de futebol como podem te dar uma aula. De acordo com a última pesquisa do IBOPE sobre a quantidade de torcedores, em 2003, cerca de 50% da torcida corintiana, por exemplo, já era composta de mulheres. Sabendo disso, a reportagem procurou algumas torcedoras para um bate papo sobre a vida dessas mulheres e como é a presença e atuação delas no estádio. DE ADOLESCENTES A MÃES Para torcer, não tem idade. Estudante de direito na Universidade São Paulo, Marina Arvigo, 21, é corintiana e mora em São Paulo há 3 anos. Marina cresceu ao lado do primo corintiano e acredita que por isso “pegou gosto” pelo futebol e pelo time. O primo sempre gostou de jogar futebol com ela, ele sempre na linha e ela, goleira. Com o passar dos anos, a avó, que sempre via as crianças brincarem, começou a levar Marina em treinos que aconteciam durante a semana, quando ela tinha 8 anos, mas logo parou. Era tudo escondido do pai, que achava que futebol era coisa “de menino”. Aos poucos, ela voltou a jogar, com 12 anos, no time do SESI que era onde estudava, e aí não dava pra esconder do pai. Assim,

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ele sabia mas não gostava. Agora, Marina conta que, como está na faculdade, precisa dividir bem o tempo entre lazer e obrigações. Desta forma, o futebol acabou ficando um pouco de lado. Na visão dela e de muitas torcedoras, o futebol feminino é pouco viabilizado e valorizado no Brasil e no mundo. “Não é que eu prefira o futebol masculino, mas é o que tá sempre passando. Você não vê muito o futebol feminino na mídia”, conta. NOS ESTÁDIOS Santista e fã da jogadora Andressinha, da Seleção Brasileira, a estudante Mariana Meneghelli, 17, mora em São Paulo e frequenta os estádios desde 2014, quando os pais começaram a deixar ela ir, isso porque até então eles tinham receio de violência. No começo, Mariana só assistia aos jogos masculinos, mas quando o futebol feminino começou a “aparecer” pra ela, como ela mesma diz, acabou fazendo o que chamou de “troca saudável”: assistindo mais ao futebol feminino. Mari tem o costume de ir aos jogos acompanhada do pai ou de amigos, porque se sente mais segura e acredita que assim previne assédios. Nunca foi assediada, mas rola “nem que seja só uma olhada, ou alguns ditos elogios, como gostosa”, conta. E continua, “já

sobre o preconceito, parece que ainda hoje é como se a mulher fosse no estádio só pra chamar atenção, e não para assistir o futebol. É frustrante”, desabafa. “FREQUENTO ESTÁDIOS DESDE 1982 COM SÓCRATES E CASAGRANDE: ÉPOCA DE OURO” “Todos os domingos após o almoço, meu pai, meu tio e um amigo dele que morava no nosso prédio saiam pra ir pros jogos. Eu comecei a perceber isso e logo acabava de comer e pedia pra ele me levar. Assim começou esse amor todo pelo Corinthians”, conta muito animada a psicóloga Mariana Cordovani, 41, logo no início do nosso bate-papo. Aos 16 anos, nos anos 90, a torcedora pediu para que o pai a levasse na quadra pra ficar sócia da torcida. “Ele não quis deixar porque tinha receio, afinal, havia poucas mulheres que frequentavam os estádios na época”, explica. Em 1992, quando completou 18 anos, diferentemente da maioria dos amigos, que planejavam tirar a carteira de motorista, a primeira coisa que fez foi associar à Gaviões da Fiel organizada do Corinthians. Era um enorme orgulho fazer parte daquela torcida “maravilhosa e que vivia pelo Corinthians”. No colégio, Mariana


Foto: Mariana Cordovani/arquivo pessoal

Foto: Marina Arvigo/arquivo pessoal

Marina Arvigo teve que esconder a paixão do pai

tinha um grande amigo que era da Gaviões e muitas vezes ia pra quadra com ele, dando início, assim, à vida na torcida organizada. “Quando entrei as coisas eram muito diferentes: quase não tinham mulheres na torcida e nos estádios, mas as que iam, eram completamente apaixonadas pelo Corinthians. Algumas são minhas amigas até hoje!”, diz. A paixão pelo time era tanta que o tema do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) de Mariana, em 2002, foi “Sport Club Corinthians Paulista, uma expressão do mito do herói”. No decorrer deste trabalho, ela acumulou diversas experiências marcantes como conhecer ex jogadores e frequentar a quadra semanalmente em busca de entrevistas e material para a pesquisa. No mínimo 4 vezes por semana ela estava com a Gaviões, acompanhando os ensaios, na boa feijoada, concentração para jogos etc. Foi no Movimento Fora

Desde cedo, o filho de Mariana é incentivado a amar o esporte

Dualib - um movimento político para derrubar o então presidente do clube que já estava no poder há muitos anos - que a psicóloga conheceu o marido, que é da Camisa 12. Hoje eles tem um filho de 6 anos, que também frequenta os estádios. Ela conta que atualmente há muitas mulheres fazendo parte das torcidas organizadas e aos poucos tem se conquistado alguns espaços importantes e aberto chance de diálogo, coisa que antes era bem difícil. No entanto, ela nunca teve medo de frequentar sozinha. “Eu me sentia super protegida, especialmente se estivesse com minha camisa dos Gaviões.”, conta. “Hoje eu não frequento tanto como antes, mas nem é por causa da torcida e sim dessa violência que temos visto entre as torcidas num geral”, explica. TORCIDAS ORGANIZADAS

preconceito “enraizado” e a forma como as torcidas organizadas se afastaram de seus “propósitos originais”, que seriam intervir e fiscalizar a política interna dos clubes. “Elas [as organizadas] não fazem mais isso, talvez por problemas de liderança, mas poucas são as que ainda não estão comprometidas com favores”, diz. Para ela, não há hoje uma proposta efetiva de diminuição da violência no futebol rolando, e isso faz com que dentro das organizadas isso vire uma briga de gangue. “O que temos visto como novidade, no entanto, são as mulheres que estão se organizando melhor em grupos para lutarem por seus direitos dentro do estádio. Isso tem sido discutido entre nós, coisa que não acontecia há uns dois anos”, afirma. QUANDO A PAIXÃO SE TORNA PROFISSÃO

A jornalista e corinthiana, Enquanto Leonor Machado (34), critica o

cursava

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administração, Gabriela Pasqualin sempre arrumava um jeitinho para ver o time do coração: o Palmeiras. Gabi, como gosta de ser chamada, aos 35 anos acumula experiência na carreira como apresentadora e repórter esportiva, com trabalhos na Rede Bandeirantes, ao lado da Renata Fan e Paloma Tocci, no programa Jogo Aberto e na Rede TV!, onde está atualmente, já tendo passado pelos programas Rede TV! Esporte, Bola Dividida e E-Games. Mas a paixão pelas arquibancadas começou mesmo quando ainda era uma pequena aprendiz de torcedora. Junto do pai, Gabi desde pequena frequentou os estádios para ver os jogos do time com “os próprios olhos” e tinha o hábito de assistir à cobertura na TV, para conferir os resultados, comentários e lances que podiam ter passado despercebido. Além disso, lia tudo o que era publicado nos jornais impressos. “Acredito que o jornalismo esportivo veio naturalmente de tanto que gosto de esportes!“, diz. Gabi decidiu fazer outra faculdade logo após terminar a primeira graduação e desde que optou por jornalismo, não parou.

por ser mulher, mas pelo ambiente de rivalidade mesmo. Com o tempo, o repórter passa a lidar melhor com isso, mas no começo, isso “pesa” um pouco na consciência. B - Então, não é tão recorrente sofrer preconceito?

mais machistas, mas quando junta muito homem, acho que não tem como escapar dessas “ofensas”. B - Podemos dizer que é tradição de família?

G - Em partes sim. Meu pai me leva para ver jogos desde que eu G - Desde que comecei a trabalhar me conheço “por gente”, dígamos no meio, nunca tive problemas assim. E eu levo meu filho. Ele com colegas da profissão também é palmeirense e gosta em relação à preconceito. Já muito não só de assistir, como torcedores… Claro que por ser jogar. mulher as “brincadeirinhas” são

BATE-BOLA Borogodó - Gabi, com a sua experiência em campo, literalmente, quais são as dificuldades encontradas na cobertura dos jogos? Gabi - Em emissoras de TV, normalmente a estrutura que nos é proporcionada não gera tantas dificuldades. Mas uma coisa que marca muito nos estádios é o fato dos torcedores xingarem a Foto: Gabriela Pasqualim/arquivo pessoal gente… Não necessariamente A profissão de Gabriela permitiu que conhecesse os ídolos, como a jogadora Marta

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Noventa minutos de silêncio Vice-campeãs mundial de futsal dos surdos, jogadoras lutam contra as barreiras da deficiência e da desigualdade para mostrar que o esporte é para todos Vitória Bitencourt

Foto: Vitória Bitencourt

O time treina uma vez por mês na cidade de Jundiaí, interior de São Paulo. Mesmo com poucos encontros, elas foram vice-campeãs mundiais em 2015

Qual criança nunca juntou primos, primas, vizinhos, amigos, para jogar futebol no campinho perto de casa, ou fez o chinelo de gol? Vibramos em frente à TV todo domingo, torcendo para nosso time preferido. Parece simples, não é? Mas ao nascer mulher e com deficiência auditiva isso fica um pouco mais complicado. Faça o teste: quando o jogo começar, coloque sua TV no mudo. É assim que Stefany Krebs, 18, artilheira do mundial 2015 para surdos, assiste o jogo - sem som. Aos 6 anos, Stefany jogou

futebol pela primeira vez com os primos em um ginásio perto de sua casa e lá descobriu sua paixão pelo futebol. Com o apoio dos pais, aos 12 anos, entrou no time de futsal feminino para ouvintes, ganhou medalhas e troféus como artilheira e melhor jogadora. Stefany se considera sortuda, já que para a maioria das meninas a inclusão e a adaptação dos surdos no esporte é difícil. Falta preparo por parte da equipe técnica que não sabe Libras, língua dos sinais, dificultando a comunicação. Para Carolina Matos de Liz, 21, foi um pouco mais complicado

já que além das dificuldades da deficiência, ainda sofreu muito preconceito por ser mulher. “Me falaram que futsal era coisa de menino e que eu deveria andar com meninas”. Aos 12 anos, parou de jogar e diz que se arrepende por ter se importado com o que os outros pensavam. “Até que um dia meu primo me chamou para treinar na escola dele e eu fui, afinal sentia falta de jogar e a paixão falou mais alto. Stefany e Carolina atualmente fazem parte da seleção brasileira feminina de

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futsal da Confederação Brasileira de Desportos de Surdos (CBDS). Elas têm como inspiração nomes como Cristiane, Andressinha, Thaisinha e Marta. Como no futebol e futsal feminino para ouvintes, essas meninas encontram barreiras e muita desigualdade. O técnico William Bitencourt explica que falta incentivo. “Na maioria das vezes temos que nos adaptar com locais e materiais para treinamento. Não conseguimos acompanhá-las durante o ano para monitoramento de treino, pois todas as viagens são feitas com dinheiro delas. Cada uma tem um trabalho ‘normal’ para manter-se e como moram em estados diferentes temos poucos

dias para treinar no ano, tentamos treinar uma vez no mês”. O time foi vice-campeão mundial de futsal dos surdos em 2015 perdendo apenas para a Rússia, mas o reconhecimento ainda está longe de acontecer. “Assim como acontece com o esporte para mulheres ouvintes, principalmente no futsal e futebol, ainda há pouco reconhecimento”, explica Carolina Matos. ”Falta reconhecimento do futebol feminino, salário não é igual do masculino, alguns machistas falam que os jogo femininos são fáceis ou não jogam como homens, sabe? As mulheres sofrem no esporte, pouco salário, treino e apoio”, acrescenta Stefany.

Apesar das dificuldades, o futsal transformou a vida dessas meninas, dando motivação e elevando a autoestima. No time, elas sentem-se acolhidas e jogam com amor em busca de seus sonhos. EXPERIÊNCIA No treino que acompanhei, um time masculino sub 15 foi convidado para jogar com as meninas. A partida foi justa e as equipes disputaram de igual para igual. Da arquibancada, pude ouvir comentários machistas sobre as atletas, que, mesmo perdendo o jogo, estavam muito satisfeitas com o resultado.

O futebol de campo ainda é um desafio para elas, que treinam para adquirir mais noção de espaço Foto: Vitória Bitencourt

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