Camões

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GRANDES PROTAGONISTAS DA HISTÓRIA DE PORTUGAL

LUÍS VAZ DE

CA M Õ E S



G R A N D E S P R O TAG O N I S TA S DA H I ST Ó R I A D E P O RT U G A L


© Editora Planeta DeAgostini, S.A. | Lisboa | 2004 Direitos reservados para a língua portuguesa AUTORIA: Manuel Margarido REVISÃO CIENTÍFICA: António Paço REVISÃO TIPOGRÁFICA: Laurinda Brandão PROJECTO GRÁFICO: Alexandra Paulino PAGINAÇÃO: Alexandra Paulino IMPRESSÃO: Cayfosa – Quebecor Santa Perpètua de Mogoda [Barcelona] Impresso em Espanha – Printed in Spain Depósito Legal 203369/03 ISBN 972-747-880-8


G R A N D E S P R O TAG O N I S TA S DA H I ST Ó R I A D E P O RT U G A L

LUÍS VAZ DE CAMÕES

Manuel Margarido


A GLÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA

CAMÕES LÊ OS LUSÍADAS

Quase tudo é obscuro no conhecimento factual da vida de Luís Vaz de Camões. Não se sabe o local do seu nascimento, por exemplo, nem a data. Pensa-se que terá nascido em 1524, ou no ano seguinte. Como diz Hernâni Cidade: «O que nem ele nem ninguém nos dá de decisivo é a indicação do local e da data do seu nascimento. Como sucedeu com Homero, várias localidades disputam a glória de ser seu berço, mas Lisboa e Coimbra com mais probabilidades. Deixemos a discussão aos mais interessados pelas glórias locais do que pelo legado do Poeta, e digamos que as duas cidades têm, para seu orgulho, pábulo que baste: Coimbra, por ter-lhe condicionado o seu honesto estudo de humanista; Lisboa, a sua longa experiência social.»

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AS ORIGENS Camões nasce, portanto, no início do reinado de D. João III, filho de D. Manuel, o Venturoso. Sabe-se, com segurança, que o seu pai foi Simão Vaz de Camões e a mãe Maria de Sá de Macedo, da família escalabitana dos Macedos. A linhagem dos Camões em Portugal, oriundos que eram de Castela, remonta à segunda metade do século xiv. Tendo D. Fernando, o Formoso, tomado partido na disputa entre Pedro I e Henrique II pelo trono vizinho, vieram os partidários do primeiro, apoiado pelo monarca português e derrotado na contenda, refugiar-se em terras lusas. Nesse contingente de foragidos encontrava-se um tal Vasco Pires de Camões, galego fidalgo que se acolhe na corte de Lisboa em 1370 e depressa vai prosperar na sua pátria de exílio. Vasco Pires, trisavô do poeta, recebe, ao longo dos primeiros anos de estada em Portugal, diversas benesses e ricos privilégios da parte de D. Fernando. Logo em 1373 é-lhe doada a Quinta do Judeu, próxima de Santarém, e os bens de um fidalgo que apoiara D. Henrique II. Cinco anos depois, o fidalgo foragido é agraciado com diversas outras propriedades no Alentejo. Em 1380, Vasco Pires de Camões já é alcaide-mor de Portalegre, e sê-lo-á de Óbidos em 1383, detendo igualmente os senhorios das vilas do Sardoal e de Constância, Marvão e Amêndoa. Os ventos da fortuna mudarão, porém, para Vasco Pires de Camões, o primeiro representante da família em terras portuguesas. Quando se dá a crise da sucessão do trono português, vai naturalmente apoiar as pretensões

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de D. Beatriz, casada com o monarca espanhol e filha dos reis portugueses D. Fernando e D. Leonor Teles, a quem Vasco tantos favores devia, contra D. João, Mestre de Avis. À época, Vasco era alcaide do castelo de Alenquer e vai resistir às investidas do futuro rei de Portugal, que cerca a sua defesa. De acordo com a Crónica do Condestável, de Fernão Lopes, D. João parte de Lisboa «não mais que com duzentas ou trezentas lanças e poucos homens de pé e besteiros, e se foi a Alenquer sobre Vasco Pires». Rezam os relatos, e as insinuações que o tempo deixou, que o alcaide tentou negociar a ren dição a troco de uma soma de dinheiro. O que é certo é que o fidalgo renitente acabou derrotado, tendo perdido, em 1384, uma quantidade significativa dos seus bens e propriedades e mantendo, ainda assim, importantes terras no Alentejo, que converte em morgadios.

D. JOÃO I

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UMA LINHAGEM DE NOBRES O que se torna particularmente interessante na genealogia do grande poeta seu descendente é a propensão de Vasco Pires de Camões para a poesia, dentro do âmbito da tradição galaico-portuguesa, estando alguns dos seus versos recolhidos no Cancioneiro de Baena, no qual, sob o nome de Vasco Lopes de Camões, demonstra uma veia irónica e acintosa, em versos de sabor espontâneo escritos em castelhano. Vasco Pires de Camões deixou três descendentes D. AFONSO V

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do seu casamento com uma filha do português Gonçalo


Tenreiro, capitão de Armada. O segundo deles, João Vaz, viria a servir D. Afonso V, o Africano, nas pelejas do Norte de África e de Castela. Pelo lado dos antepassados tinha já Luís uma grande tradição de pena e espada. João Vaz passou grande parte da sua vida em Coimbra, de onde se estabelece a sólida ligação da família àquela cidade, tendo chegado a procurador às cortes e corregedor da comarca, cargos de grande importância administrativa que o colocavam na elite do reino. A sua importância revela-se, de resto, na especial nobreza e requinte escultórico da sua sepultura, na crasta da Sé de Coimbra. Filho de João Vaz, Antão será o avô do poeta. Tal como os antepassados, também ele firmará a sua reputação pelas armas lutando nas campanhas das Índias. Viria a casar com D. Guiomar da Gama, que pertencia à família de Vasco da Gama. Embora remota, esta ligação entre as famílias do grande nauta dos Descobrimentos e o poeta que os glorificou para a eternidade não deixa de ser significativa. Antão Vaz terá dois filhos. O primeiro, Simão Vaz de Camões, viria a tornar-se um importante funcionário da administração real, com título de «cavaleiro-fidalgo da casa real» – não propriamente um fidalgo, como alega Aquilino Ribeiro – responsável pelos serviços de armazenamento das rotas da Guiné e da Índia, cargo que envolveria, certamente, elevado grau de confiança. Em 1529 D. João III atribui-lhe o direito de «cidadão de Lisboa», em reconhecimento do seu mérito. Simão Vaz casa com Ana de Macedo, que pertencia à casa dos Macedos de Santarém, como se referiu.

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A família de Camões era pobre, bastante pobre, e ao longo da vida Luís não cessa de piorar a sua condição. É assinalável o facto de que Simão virá a recuperar para a família a Quinta do Judeu, que pertencera ao primeiro representante da família em Portugal. Após o casamento em Santarém, Simão e Ana virão viver para Lisboa, onde aquele desempenha funções que, como se viu, são relevantes. Do seu casamento nascerá Luís Vaz de Camões, seu filho único, admitindo-se que as complicações do parto tenham impedido a Ana de Macedo nova concepção. O segundo filho de Antão Vaz chama-se Bento de Camões. Da profunda obscuridade que envolve a maior parte da vida do imortal poeta, talvez tenha tido grande importância este tio na sua formação.

O humanismo renascentista em Portugal Os Descobrimentos desencadearam uma nova mentalidade em Portugal e em toda a Europa. As ideias dos autores clássicos da Antiguidade quanto à natureza do Mundo foram abaladas. As navegações e o experimentalismo baseado no conhecimento pela observação factual vieram dar uma luz nova às antigas ideias de Plínio ou de Ptolomeu. Novos povos, novas terras, outras gentes foram reconhecidos. A percepção de que o Mundo era um globo, que todos os mares o abraçavam, e que a comunicação entre continentes era

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possível por via marítima acabou com as «fronteiras» mentais

O homem

até aí existentes. Esta «revolução» foi-se produzindo pouco

do RENAS-

a pouco, mas encontra-se no momento histórico certo com a cor-

CIMENTO

procurou

rente humanista que começava a varrer a Europa. Em Portugal

uma visão

o humanismo foi introduzido por mestres italianos: Mateus

total do

Pisano, Estêvão de Nápoles e Cataldo Parísio Sículo, no qual a

universo

literatura tem um peso importante. Não foi uma transição fácil entre o pensamento clássico e a modernidade humanista. Em primeiro lugar pelo paradoxo de serem os humanistas defensores dos valores da Antiguidade Clássica, crentes no conhecimento antigo, presente no pensamento de Sá de Miranda ou de Francisco de Holanda. Defensores de uma posição intermédia, que cultivava o classicismo mas que se entusiasmava com a náutica e as suas maravi -

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lhosas descobertas, seriam D. João de Castro, João de Barros ou Pedro Nunes. Já Duarte Pacheco Pereira e Garcia da Horta eram ardorosos defensores (e empreendedores) dos novos conhecimentos adquiridos pelos Portugueses. O velho conhecimento clássico manteve, ainda, bastante influência em Portugal, mas foi, pouco a pouco, perdendo terreno para um humanismo que reconhecia nas descobertas, na ciência que se estava a formar, no reconhecimento de um novo mundo, temas para o progresso civilizacional. Inicia-se um progressivo trânsito na troca de informações, auxiliado pela imprensa, que era técnica recente, e pelas viagens de estrangeiros a Portugal e de portugueses (como Damião de Góis) pela Europa. Lisboa era, no dealbar do século XVI, talvez o mais importante centro de novos conhecimentos científicos do velho continente.

FACTOS OBSCUROS Terá nascido Luís Vaz de Camões em Lisboa? A incógnita permanecerá para sempre. Muitos historiadores inclinam-se para Coimbra. Aquilino Ribeiro refuta, apontando Lisboa. O seu pai administrava os armazéns da Gui né e da Índia, na capital. Residia na Mouraria, fora das muralhas antigas mas dentro do núcleo central da cidade. É bem possível que tenha sido no antigo bairro lisboeta, reminescente de evocações de épocas antigas, da melopeia triste da ocupação árabe, que Luís viu a luz do mundo.

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O PORTO

A partir daí a dedução é igualmente o único caminho para

DE

LISBOA

traçar o seu percurso infantil. Luís nasce alegadamente fidalgo, segundo os primeiros biógrafos. Mas, como afirma António José Saraiva, «um “escudeiro” era um reles lacaio de um fidalgo, recrutado geralmente entre indivíduos de condição baixa, embora vivendo segundo o código da nobreza e com pretensões [...]: era uma gente vadia, que se alimentava das migalhas dos fidalgos, imitando os seus modos na esperança de uma promoção que era uma verdadeira lotaria. “Rascões”, lhes chamava Gil Vicente. Mas não se confundiam com o povo e não sabiam o que era trabalhar».

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Camões provinha de um grupo social de baixa categoria, dependente do reconhecimento do trabalho e dos favores que se recebem dos conhecimentos e das relações privilegiadas. Na expressão de Jorge de Sena, Camões sentia-se nobre «mas perdido numa massa enorme de aristocratas socialmente sem estado, e para sustentar os quais não havia Índias que chegassem, nem comendas, tenças, capitanias, etc.». Desde logo os astros são-lhe desfavoráveis, à luz do conhecimento da época. Pois não estava previsto pelos D. JOÃO III

astrólogos um dilúvio de proporções bíblicas para 1524? Desde o ano anterior que a Europa estava aterrorizada com esta perspectiva, propiciada pela conjugação dos astros no signo de Peixes. O mundo marcado pelo conhecimento supersticioso medieval predominava sobre o empirismo renascentista que começava a nascer. Camões virá a registar sobre o tem po do seu nascimento, dando voz à sua sentimentalidade depressiva, a expressão Estrelas

infelices.

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Sabe-se que em 1526, teria o poeta dois anos (ou apenas um), ocorre em Lisboa um terramoto pavoroso. Não se comparando àquele que, dois séculos mais tarde, destruiu Lisboa, foi motivo suficiente para arrastar a corte de D. João III para Coimbra. Logo no ano seguinte a cidade é assolada por um surto de peste que leva o rei a determinar o prolongamento da estada na cidade do Mondego por tempo indefinido, até que as condições sanitárias permitissem o regresso à capital.

UM TIO PODEROSO Parece crível que, à semelhança dos funcionários da corte, Simão Vaz de Camões tenha rumado com o seu rei para o centro do país. Aí encontrava vantagens especiais. Podiam habitar o velho solar do seu avô, João Vaz. Contudo, a situação parece ter vindo a revelar-se ruinosa. Como era costume da época, as famílias com maior capacidade económica eram obrigadas a receber os elementos da corte que não possuíam meios de subsistência próprios. Terá sido a generosidade de Simão Vaz de Camões no acolhimento de cortesãos motivo para o seu rápido declínio financeiro. Poder-se-ia falar de ruína. É talvez a esta situação particular de Simão Vaz que Gil Vicente, contemporâneo do pai do poeta, se refere na peça Divisa da

Cidade de Coimbra, mencionando a dívida de um fidalgo pobre ao hospedeiro, nunca cobrada: «Pior voz tem Simão Vaz, tesoureiro e capelão...». Alvitra-se mesmo que terá

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sido a precária situação financeira de Simão que levou o rei a condoer-se, sabendo que o sacrifício havia sido feito em prol dos interesses da corte, designando-o, em 1529, «cidadão de Lisboa», com os privilégios inerentes a essa condição. A corte regressa à capital em 1529. Com ela terá vindo Simão Vaz de Camões, em virtude das suas responsabilidades. Mas não se sabe se o rapazito de quatro ou O núcleo histórico

cinco anos acompanhou os pais ou se ficou em Coimbra,

de COIMBRA

já ao cuidado de seu tio, Bento de Camões.

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Este tio era uma importante figura no panorama social coimbrão. Ingressara novo no mosteiro de Santa Cruz, dedicando-se a uma carreira erudita e monástica. Este mosteiro era uma relevante instituição de estudos, talvez a mais importante à época. Com a reforma geral do ensino promovida em 1527, D. João III iria alterar profundamente a organização do mosteiro de Santa Cruz. Na década de 30 de Quinhentos, Bento de Camões tornar-se-ia o primeiro prior geral e chanceler da Universidade de Coimbra. Podemos, deste modo, perceber a posição social do tio de Camões, ao mesmo tempo que se adivinha a sua profunda erudição e capacidade de mando.

ESTUDANTE EM COIMBRA Não existem provas documentais que assegurem ter Camões estudado em Coimbra. Porém, tudo leva a crer que sim. Desde logo o cargo do tio propiciava que um rapaz fidalgote, mas de família pobre, pudesse estudar de modo capaz, sem os custos que de outro modo teria de sustentar; o temperamento que o poeta viria a revelar mais tarde devia, por outro lado, fazer-se sentir na infância, demonstrando dotes de inteligência e curiosidade intelectual que levaram certamente a família a querer dar-lhe boa formação escolar; finalmente, a erudição patenteada na obra camoniana (em particular a visível preparação clássica) é significativa do aprofundamento dos estudos de Luís Vaz.

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É plausível que o tio tenha ensinado as primeiras letras ao sobrinho, que ingressará num dos colégios de Coimbra, talvez o colégio de Todos-os-Santos. No princípio da adolescência inicia estudos que o levariam à obtenção hipotética de um grau académico. Dada a referência a Camões, em algumas fontes, como bacharel latino, houve quem nisso encontrasse a prova de que o poeta teria culminado os estudos com a obtenção desse título, facto que não é documentalmente confirmado. Certo é que Camões poderá ter tido, em Coimbra, oportunidade para desenvolver uma considerável erudição que marcaria indelevelmente a sua obra. Os docentes, em virtude da reforma do ensino, eram de grande qualidade (os chamados mestres parisienses, por haverem estudado na Universidade de Paris). O adolescente pode provavelmente assim estudar Gramática, Retórica e Dialéctica, Lógica e Filosofia, além do Latim, que era basilar nos estudos da época. Teve igualmente a possibilidade de contactar com a obra dos clássicos gregos e romanos, dos árabes e hebreus. Não nos esqueçamos da importância da biblioteca do mosteiro de Santa Cruz e podemos imaginar a viva curiosidade do jovem para quem o conhecimento só pode ter sido um impulso poderoso. Como afirma Hernâni Cidade: «Camões [...] tem acesso às obras de Petrarca – a quem toma por modelo –, Bembo, Garcilaso, Ariosto, Tasso, Bernardim Ribeiro, entre outros. Domina a literatura clássica da Grécia e Roma; lê latim, sabe italiano e escreve o castelhano.» Refira-se que alguns historiadores refutam a hipótese de Camões ter estudado em Coimbra. Em primeiro

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Dois temas filosóficos caros a Camões: A

FORTUNA

E O

AMOR, aqui

simbolizados por Cupido equilibrado sobre uma esfera e que dirige, a seu bel-prazer, o seu caminho soprando numa vela, que representa a aliança entre o engenho e a sorte

lugar o seu nome não consta nos registos. Depois, como explica António José Saraiva, «nem era preciso ser universitário para adquirir a bagagem de conhecimentos, verdadeiramente notável, que Luís de Camões revela nas suas obras. Basta lembrar o nome de homens que não terão frequentado a universidade, como João de Barros, geógrafo, historiador, linguista, humanista, que aliás foi uma das principais fontes de Camões. Havia nessa época métodos de estudo das letras que não na universidade». Aquilino Ribeiro, na sua obra de referência Camões

Fabuloso e Verdadeiro, refuta a tese dos estudos em Coimbra de forma veemente.

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Petrarca e Camões Francesco Petrarca nasce em Arezzo, Itália, em Julho de 1304. Com oito anos parte com a sua família para França. Após a morte do pai, na época em que estudava leis, toma votos eclesiásticos menores, no ano de 1330. Teria sido na Sexta-Feira Santa de 1327 que vislumbrou a mulher idealizada, a célebre Laura que vai marcar a sua obra. Nela se exprimem as características que tanto hão-de influenciar os poetas do Renascimento, e em particular Camões. Uma expressão lírica intensa PETRARCA

de sentimentos puros e idealizados. Com Boccaccio, seu contemporâneo, Petrarca vai redescobrir o valor da cultura clássica, operando uma fusão entre as divindades do panteão antigo e as figuras tutelares do cristianismo, prática muito presente na obra de Camões, que muito bebeu da influência do poeta italiano. Na senda de Petrarca, muitos escritores do Renascimento vão dar expressão à racionalização artística (uma forma de sublimação) das emoções amorosas, jogando na tensão entre a alma e a pulsão erótica. Camões atinge uma dimensão única dentro desta lógica formal pela capacidade de organizar no poema paradoxos, antíteses e jogos semânticos que elevam a sua lírica a níveis de excepcional qualidade artística.

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A CAMINHO DE LISBOA Perto dos 20 anos, Camões concluiria os seus estudos. Nada mais o prenderia às margens do Mondego – a crer na maior parte dos historiadores –, nem sequer uma hipotética carreira eclesiástica, talvez desejada pelo tio, certamente contrariada por um temperamento fogoso e amigo da estúrdia, que deveria ter sobejas ocasiões de se revelar na vida juvenil do estudante de Coimbra. No dealbar da idade adulta, sem profissão, sem cargo e sem folga financeira, é Lisboa, onde vivem os pais, que vai atrair Camões. Na capital encontram-se todas as razões para que o jovem pudesse ter esperança num futuro promissor e à medida do seu talento. Parte de Coimbra, da qual, a avaliar por algumas estrofes, guardará enorme saudade.

Doces e claras águas do Mondego, Doce repouso da minha lembrança Onde a comprida e pérfida esperança Longo tempo após si me trouxe cego. De vós me aparto, sim; porém não nego, Que inda a longa memória que me alcança, Me não deixa de vós fazer mudança, Mas quanto mais me alongo mais me achego. Como era o jovem Luís Vaz que chega a Lisboa por volta de 1542? Era certamente um espírito muito vivo, de temperamento apaixonado. Aliava uma formação cultu-

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ral muito superior à maior parte dos seus contemporâneos a um aspecto físico que seria muito apreciado nos anos seguintes pelas donzelas mais ilustres do reino. Homem elegante e atraente, de cabelo arruivado e olhos grandes, sabia falar, sabia estar. Tinha ainda as qualidades de um exímio espadachim e de um voluntarioso lutador. Enfim, era um fidalgo muito atraente, capaz de fazer as melhores amizades e de despertar secretas paixões. Pena era que fosse pobre. De novo, no dizer de António José Saraiva: «Um pária, sem clã, sem protecções, sem respeitabilidade social, sem modo de vida certo.»

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UMA MOCIDADE APAIXONADA

VISTA DE LISBOA, em 1572, da autoria de Braun

Em Lisboa, o jovem Camões vai soltar as rédeas do seu espírito irrequieto. Se é um rapaz culto, é igualmente um grande amigo das festas, das rondas nocturnas pelas tabernas, do galanteio fácil. A sua têmpera ajuda a fazer amigos. E a meter-se em sarilhos. Nos meses seguintes entrega-se à ociosidade, o que nem seria mal visto para um jovem da sua condição, mesmo sem dinheiro. De novo, de acordo com António José Saraiva: «As mulheres que conheceu [...] foram as rameiras; por companheiros teve arruaceiros que se chocavam em bandos na Lisboa nocturna da época, de mistura com os embarcadiços de passagem.»

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A EMBRIAGUEZ DA CAPITAL Luís continua a versejar, certamente, mas o melhor da sua atenção vai para os amores ocasionais com moças de baixa condição, para as surtidas nocturnas onde sempre havia lugar para uma briga e para a afirmação da camaradagem. Noites em que as bebidas, as conversas e as arruaças se confundiam. Nesta época faz amizades decisivas, como a que estabelece com D. Manuel de Portugal, poeta e neto do bispo de Évora. D. Manuel, pela sua posição social, será certamente um dos introdutores de Luís na corte. Lisboa é pequena, e toda a gente que importa acaba por se conhecer. Nos Pátios de Comédias, onde se encenavam pequenas peças e autos e se faziam despiques de poesia, Camões conhece António Ribeiro Chiado, franciscano e poeta, que vai identificar no jovem o talento e, sobretudo, a valentia desses anos de juventude. Estima-se que é o poeta Chiado quem inventa a alcunha de «Trinca-Fortes» para designar Camões, querendo com ela significar que o moço era dado a bater-se e a dobrar os fortalhaços que o enfrentassem. Os divertimentos da época eram, como se percebe, de enorme agrado do filho de Simão Vaz. Por um lado, as querelas poéticas, os duelos no versejo, estimulavam a sua criatividade e talento; por outro, os prazeres mundanos satisfaziam o seu temperamento apaixonado e aventureiro, capaz de correr mil riscos por uma boa aventura. A consciência dos limites deste tipo de vida não é de todo alheia a Camões, que dele acabará por se lamen-

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tar, sabendo certamente que o seu talento a mais o destinava. As noites passadas na taberna do Malcozinhado, regadas a vinho e alegradas por mulheres fáceis, deixam-lhe um travo de desilusão que ele acaba por referir. A famosa designação da taberna é um nome inventado pelo próprio poeta para referir, possivelmente, uma das barracas que se encontravam na Ribeira, frequentada por populares, mulheres de pouca virtude, fidalgos indolentes. Como diz Camões: «Eu o crismei há poucos dias e lhe pus o nome de Malcozinhado, porque sempre acharei nele que comer, quer bem, quer mal.» Ao mesmo tempo que o diverte e entusiasma, a vida de Lisboa parece-lhe algo de putrefacto, como descreve longamente, num registo pejado de ironia e desencanto, numa carta a um amigo:

A ALCOVITEIRA, de Vermeer de Delft, 1656

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«E, para verdes, digo que há cá dama tão dama que, pelo ser de muitos, se a um mostra bom rosto, porque lhe quer bem, aos outros não mostra ruim, porque lhe não quer mal.»

UMA MUDANÇA DECISIVA Numa comparação entre a agitação citadina e o bucolismo campestre, de que supostamente o amigo a quem escrevia se queixava, mostra o poeta saudades de uma vida mais recatada, evocando Vergílio: «Como vos parece, Senhor, que se pode viver entre estes, que não seja milhor essa vida que vos enfada, essa quietação branda, com um dormir à sombra de uma árvore e ao tom de um robeiro, ouvindo a harmonia dos passarinhos, em braços com os Sonetos de Petrarca, Arcádia de Sannazzaro, Éclogas de Vergílio, onde vedes aquilo que vedes? Se a vós, Senhor, essa vida vos não contenta, vinde trocar pela minha, que eu vos tornarei o que for bem.» Na expressão «onde vedes aquilo que vedes» pode perceber-se o desencanto de Camões perante um mundo novo que acaba de descobrir, que o atrai, mas onde percebe que tudo é um jogo de aparências, uma rede de falsidades, onde nada do que se vê é aquilo que parece. Em breve, porém, a vida de Luís vai mudar, proporcionando-lhe os anos de maior felicidade, ou pelo menos de mais profundo encantamento de toda a sua vida. Aos vinte e poucos anos, Camões vai ser introduzido na corte.

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Bem parecido, elegante e cheio de espírito, relacionado com algumas importantes figuras da fidalguia, a entrada de Ca mões nos círculos da corte seria apenas uma questão de tempo. Referiu-se já a amizade que nutria por Manuel de Portugal, filho do conde de Vimioso. Deverá ter sido este amigo o pro motor da sua apresentação no Paço da Rainha em Xabregas, onde D. Catarina, mulher de D. João III, organizava a sua vida mundana, e no palácio da infanta D. Maria, irmã do rei. Entrar nestes círculos, onde se encontrava a

D. CATARINA

elite social e cultural do tempo, não era fácil. A simples condição, um elevado estatuto, não eram, só por si, suficientes. Nos salões de D. Catarina e de D. Maria o que mais importava era quem apresentava quem e que reputação tinha o candidato. Luís Vaz, possivelmente pela influência de D. Manuel de Portugal, mas também certamente por uma reputação emergente enquanto versejador, conseguiu transpor o delicado filtro que o aproximava do centro da cultura e da sociedade da época.

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Sá de Miranda Francisco de Sá de Miranda nasce em Coimbra, cerca de 1481, no reinado de D. João II. Estudou no colégio de Santa Cruz de Coimbra, onde se distinguiu pela sua capacidade intelectual. Estuda leis em Lisboa, alcançando o grau de doutor em Direito, tornando-se docente da Universidade. Em breve, pelo valor do seu espírito e pela sua ligação à nobreza, passa a frequentar a corte, onde se vai dedicar, no quadro dos divertimentos muito apreciados na época, à prática da poesia, na qual imediatamente se distingue. No tempo em que Camões começa a frequentar os meios palacianos, Sá de Miranda é um nome venerado no domínio da arte poética. Homem do Renascimento, Sá de Miranda é em breve atraído pela necessidade de conhecimento característica dos inquietos espíritos humanistas. Tem de conhecer Mundo. Passará cerca de cinco anos em Itália, onde conhece os maiores espíritos literários e se familiariza com as novas tendências do género e da métrica. Será o introdutor, no nosso país, do decassílabo italiano. Camões beberá fundamente do conhecimento proporcionado por Sá de Miranda. Sá de Miranda é senhor de uma grande cultura humanista, que o vai conduzir à crítica de algumas práticas da Igreja, nomeadamente a concessão SÁ DE MIRANDA

de indulgências, nisso se aproximando do pensamento luterano. A sua cultura é dominantemente renascentista, integrando o movimento que alarga os horizontes da cultura à incorporação dos clássicos gregos e romanos.

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Espírito crítico, Sá de Miranda vai conhecer, ainda em vida, o violento retrocesso cultural promovido durante o reinado de D. João III. Opor-se-á ao fanatismo obscurantista da Contra-Reforma. Desiludido com a vida da capital, refugia-se no Minho, em Duas Igrejas, no concelho de Vila Verde. Casa com D. Briolanja de Azevedo. Recebe a comenda de Duas Igrejas, que o desafoga financeiramente, e vive anos felizes dedicando-se à família e à escrita. Segue atentamente a vida do país, tecendo comentários críticos sempre que tal se proporcionava. Os seus últimos anos são marcados por grandes desgostos, nomeadamente pela morte da mulher e de um filho. A morte do príncipe D. João, protector das letras e seu especial amigo, deixa-o igualmente mergulhado em tristeza. Sá de Miranda morre em 1558, estando sepultado na igreja de S. Martinho de Carrazedo.

O ESPLENDOR DA CORTE Dando continuidade ao brilho da corte manuelina, que conhece um grande desenvolvimento das artes e da literatura, os primeiros anos do reinado de D. João III brilham pelo requinte e sofisticação, albergando os melhores espíritos do seu tempo. Tanto em Xabregas, Paço da Rainha, como em Santa Clara, palácio de D. Maria, as actividades culturais eram o motivo que reunia a fina flor da juventude da época. A poesia, o teatro e a música conci-

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tavam alegres serões que serviam de pretexto para o entretecer de laços, vínculos, amizades. E, é claro, para uma interminável roda de jogos amorosos nos quais o poeta possivelmente se terá envolvido, com a paixão desmesurada característica do seu temperamento. Certamente que foi bem aceite. Para lá da figura e do talento, avultava a facilidade de expressão em castelhano, a língua franca da corte, e o conhecimento do latim, espécie de santo e senha que distinguia as pessoas verdadeiramente interessantes. Neste ambiente vai fazer diversos amigos, como Francisco de Morais, poeta e novelista, autor de um romance de cavalaria muito apreciado à época,

Palmeirim de Inglaterra. Estabelece igualmente amizade com D. Francisco de Noronha, que fora embaixador em Paris e camareiro-mor da rainha D. Catarina. As amizades seriam determinantes para afirmar a sua posição no selectivo meio da corte. No entanto, foi sobretudo a ROMANCES DE CAVALARIA,

muito apreciados na época

facilidade que Luís tinha em responder aos motes das damas com voltas graciosas e requintadas que o fez ser apreciado. O costume da época permitia às donzelas entregarem a um praticante da arte poética um tema (um mote) para receberem uma resposta em verso que supostamente desenvolvia esse tema de modo elegante e galanteador, a volta ou glosa.

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UMA RESPOSTA SEMPRE PRONTA Atente-se na resposta que Camões dá a D. Francisca de Aragão, que lhe sugere um complicado mote: «Mas porém a que cuidados?» D. Francisca não era uma donzela qualquer. De fulgurante beleza e elevada erudição, brilhava a grande altura na corte de D. Catarina, a ponto de ser o tema de vibrantes poemas dos melhores versejadores do seu tempo, como Pêro de Andrade Caminha e o próprio D. Manuel de Portugal. Segundo a descreve o seu futuro marido, D. João de Borja, D. Francisca «es tenida por la mujer que mejor ha sabido hacer el oficio de dama que ha havido en nuestro tiempo en Portugal». Pois ao tema do mote, responde Camões com três glosas, a última das quais se revela de enorme beleza:

Se as penas que Amor me deu Vêm por tão suaves meios, Não há que temer receios, Que vale um cuidado meu Por mil descansos alheios. Ter nuns olhos tão formosos Os sentidos elevados, Bem sei que em baixos estados São cuidados perigosos. Mas, porém, ah! que cuidados! Torna-se evidente o talento de Luís Vaz na corte. Algumas invejas se despertarão entre os menos afortunados pelo génio. Fala-se no despeito de Pêro de Andrade

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VÉNUS E

CUPIDO

Caminha. As donzelas reparam nele, devem disputar o favor de umas estrofes numa folha de papel. O poeta vive num clima de exaltação, ao mesmo tempo romântica e intelectual, duas vertentes que nunca nele se afastarão. Contudo, não pode esquecer a sua condição social. Fidalgo pobre, poucas ou nenhumas esperanças deverá acalentar de um dia vir a pertencer plenamente àquele mundo que o fascina. Porém, deixar-se-á levar pelo entusiasmo da sua juvenilidade. Pagará caro por isso.

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A MISTERIOSA NATÉRCIA Há, no estabelecimento de uma biografia camoniana, uma questão pendente (entre muitas outras, é certo), sobre a qual muitos historiadores se debruçaram. Quem era Natércia, a presumível primeira grande paixão de Luís Vaz na corte, que o levou a escrever alguns dos mais belos poemas de amor deste período da sua vida? Parece claro que a Natércia presente em diversos poemas é um anagrama, ou seja, um nome composto com todas as letras de outro nome, o qual seria Catarina, que naquela época se escrevia Caterina. Este amor desco berto na obra do poeta tem um recorte bastante lendário, como aliás muitos outros acontecimentos que podemos deduzir na sua atribulada vida. Segundo alguns investigadores, terá sido na Sexta-Feira Santa de 1544, na igreja das Chagas, que Camões se apaixona perdidamente por Natércia, aliás Catarina. Na corte existiam diversas Catarinas, entre as quais Catarina de Ataíde, dama de grande importância e aia da rainha. Alvitrou-se ainda a possibilidade de ser uma prima remota de Luís, da família dos Gamas. Mais tarde, as atenções dos investigadores incidem sobre uma outra Ca tarina de Ataíde, filha de D. António de Lima Ataíde, camareiro-mor do infante D. Duarte. Catarina era dama da rainha. Além disso tinha outra particularidade: era muito nova! Teria entre 12 e 14 anos quando se inflamaram os ânimos de Luís, que já entrara nos 20. Não deve, porém, estranhar-se a criação de um vínculo amoroso com a rapariga que, na expressão de

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Camões, tinha tão «tenra idade», ou «tenros anos» («Quem cuidara que uns tão tenros anos/E uma tal claridade, que excedia/Quanto podem cuidar peitos humanos; [...]»). Dama da corte, Catarina de Ataíde estaria na altura da vida em que se iniciavam os jogos de coqueteria e de sedução, aos quais a sua presumível beleza ajudava. É identificável, nos versos de Luís, uma alternância de sentimentos, que vão desde o ciúme à devoção, do galanteio à recriminação: «Ah, Natércia cruel! Quem te desvia/Esse cuidado teu do meu cuidado?/Se tanto hei-de penar desenganado,/Enganado de ti, viver queria. [...]» Isto faz supor ter sido o namoro marcado pelos encontros e desencontros próprios dos jogos amorosos da adolescência na corte, mais dados à experimentação dos limites dos códigos de conduta que a um vínculo profundo. Porém, na sua poesia Camões exprime um amor desmedido e exacerbado por Natércia, com a carga de paixão própria de uma linguagem poética. Aquilino Ribeiro coloca fortemente em causa esta versão «romântica» de uma ligação a uma dama da corte, que se lhe afigura impossível dada a baixa condição do jovem poeta. De resto, contesta mesmo que Luís Vaz de Camões tenha alguma vez frequentado a corte. A ser assim, surge uma pergunta à qual António José Saraiva responde, perante a enorme bagagem de conhecimentos do poeta: «Este tipo de cultura só podia adquirir-se à época de viva voz, em rodas de iniciados que passavam de mão em mão livrinhos raros ou cancioneiros manuscritos. É evidente, portanto, que Camões conviveu com letrados ou amadores das letras, na sua juventude [...] Não era, evi-

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dentemente, na taberna ou no bordel do “Malcozinhado”, onde ele era assíduo, que se formavam tais rodas, mas sim em círculos palacianos ou satélites.»

Perdido de amores Neste soneto, Camões exprime com grande elegância e profundidade o sentimento amoroso. Seria Catarina de Ataíde quem o inspirou? Julga-me toda a gente por perdido, Vendo-me, tão entregue a meu cuidado, Andar sempre dos homens apartado, E de humanos comércios esquecido. Mas eu, que tenho o mundo conhecido, E quase que sobre ele ando dobrado, Tenho por baixo, rústico e enganado Quem não é com meu mal engrandecido. Vá revolvendo a terra o mar e o vento, Honras busque e riquezas a outra gente, Vencendo ferro, fogo, frio e calma; Que eu por amor somente me contento De trazer esculpido eternamente Vosso formoso gesto dentro da alma.

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O FIM DE UMA ILUSÃO Como parece evidente, tal namoro, a ter acontecido, não podia durar muito. A diferença de condição social entre Luís Vaz e Catarina de Ataíde era demasiado óbvia, numa época em que os casamentos se ditavam, àquele nível social, por razões de conveniência económica e de posição. Camões não era conveniente, era pobre. Nada DAMA DA CORTE

tinha de seu, excepto a guarida em casa dos pais. Sem profissão definida, a não ser o pouco honroso título de aio de D. António de Noronha, só pode ter sido severamente proibido de manter qualquer espécie de veleidade relativamente à ama de D. Catarina. A própria moça perderia a sua posição na corte se tal enleio tivesse continuidade. Parece que D. Catarina de Ataíde, a Natércia de tantos versos apaixonados, sofreu um grande desgosto com o apartamento do jovem e fogoso poeta. Terá mesmo rejeitado futuras propostas de casamento. Sabe-se que morreu muito nova, com cerca de 25 anos, tuberculosa (doença simbolicamente muito associada aos males do coração), deixando inconsoláveis os que a conheciam e apreciavam os seus talentos.

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A ela, como futuramente à Dinamene da Índia, se aplicaria com justeza o soneto excepcional, que ainda hoje perdura como uma das peças maiores da arte camoniana:

Alma minha, gentil que te partiste Tão cedo, desta vida descontente, Repousa lá no Céu, eternamente E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente Que já nos olhos meus tão puro viste. E se vires que pode merecer-te Alguma cousa a dor que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te, Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou. Luís Vaz de Camões fica, assim, arredado dos amo res desta Natércia secreta, que a sua sentimentalidade traduz na poesia. Mas era novo, e novos amores viriam. É o que parece ter acontecido pouco depois.

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Amor ardente Um dos sonetos mais impressivos de toda a arte lírica camoniana, influenciado pela escola petrarquista, é uma obra-prima da literatura portuguesa e universal, que aborda a temática amorosa. Amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor?

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PAIXÃO E DESGRAÇA

NA POESIA, a fúria dos ventos; na vida, a fúria dos sentimentos

Estamos no domínio da lenda. Aceitando que Luís Vaz de Camões frequentava a corte, surgiu, no trabalho de alguns historiadores, uma hipótese romântica de contornos maravilhosos e trágicos. A falta de conhecimento directo da maior parte dos factos da vida do poeta permite a liberdade de imaginar esta cena que, a ter ocorrido, explicaria muito do seu destino e poesia.

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A INFANTA D. MARIA Na corte, Luís Vaz já houvera experimentado as alegrias e as agruras do amor, o amor que aparece nos seus sonetos escrito com maiúscula, como se o sentimento tivesse nome próprio, identidade divina. Agora, um outro enlevo, mais profundo e inatingível, vai marcar de modo dramático a vida do poeta. D. Maria, irmã de D. João III, tem uma história singular, de verdadeiros contornos teatrais. Já viúvo pela segunda vez, o rei D. Manuel enceta diligências para obter de Carlos V de Espanha a mão da irmã do monarca castelhano, D. Leonor de Áustria, para casar com o seu príncipe herdeiro. Ao ver o retrato da futura nora, D. Manuel muda de ideias e decide casar ele mesmo com a belíssima infanta, alegando que o seu filho não tem qualidades suficientes. A ideia é aceite por Carlos V e causa grande embaraço na corte de Lisboa, sem falar na mal disfarçada tristeza que D. João III sente em relação ao pai, que deste modo lhe rouba a bela princesa. D. Maria é a geração única deste matrimónio, e o seu pai apenas lhe sobrevive dois anos. Podia ser filha de seu irmão, D. João, a quem a sua mãe fora destinada. Segundo consta, após a morte do marido D. Leonor vai envolver-se amorosamente com o seu primeiro noivo, agora enteado. A relação gera descontentamento e vozes pedem que o matrimónio entre ambos se realize, ainda que pouco convencional. Porém, aquele que agora era monarca em breve se entedia deste enleio e a pouco e pouco afasta-se de D. Leonor. Mais tarde aceita a propos-

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ta de Carlos V para que a irmรฃ se venha a casar com Fran-

CASAMENTO

cisco I de Franรงa. A rainha de Portugal seria agora rainha

de D. Manuel com D. Leonor

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de França. Mas perde, com esta decisão política de seu irmão, a filha D. Maria, que D. João III não permite que saia de Portugal com a mãe. Nem ela, nem a portentosa herança que a criança herdara de D. Manuel. D. João III viria a casar com uma irmã de D. Leonor, D. Catarina, tia de Maria. Será esta mulher, de carácter reservado e sentido prático, a criar a sobrinha, a quem, de resto, proporcionou uma excelente educação, que se traduziria, mais tarde, num requinte de espírito, raro e admirado. A jovem era, aliás na senda de sua mãe, de uma extrema beleza para os padrões da época. Dela se descreve a «formosura suavíssima, bem revelada na alvura da pele, no azul celeste dos olhos vívidos e na cor loura dos cabelos». Algumas pinturas subsistentes que a retratam apontam de facto para essa beleza. Contudo, essa não era a sua maior qualidade.

UM ESPÍRITO RARO De uma cultura refinada e personalidade vincada, desde cedo que D. Maria vivia de forma independente dos seus tutores, mantendo no palácio de Santa Clara um séquito próprio e sobretudo recebendo a fina flor das artes do país. Era um ambiente onde se entrecruzavam a elevada craveira intelectual digna de uma academia com a beleza e a juventude nata daquele tempo. Aí Camões sentiu que se encontrava numa espécie de paraíso pessoal.

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Não é de estranhar que se tenha estabelecido uma afinidade intelectual entre Luís Vaz e D. Maria, apesar das diferenças sociais que os separavam. Afinal, o jovem poeta era um dos mais brilhantes espíritos que frequentavam a corte, e naquele meio, protector do talento e da graciosidade, o jovem Camões teria alguma liberdade de con-

INFANTA

tacto com tão insigne senhora.

D. MARIA

Deveria igualmente comover o coração sentimental de Luís a desdita da princesa. Afastada da mãe, toda a vida manifestaria o desejo de a voltar a ver, desejo esse contrariado pela necessidade de manter nos cofres da coroa a espantosa fortuna que D. Maria herdara. Esse foi, possivelmen te, o motivo pelo qual se viu impedida de casar com vários pretendentes, entre os quais estava Filipe II, herdeiro de Espanha, filho de Carlos V e futuro Filipe I de Portugal. As razões de Estado não permitiam que tal dote seguisse para Madrid. Assim, no lugar de Maria, Filipe II viria a casar-se com uma filha de D. João III, igualmente chamada Maria, sua sobrinha. De novo o desapontamento tomba sobre a vida da bela princesa.

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Segundo consta, D. Maria depressa percebeu o talento do poeta. Este, por seu lado, descobre na infanta a elevação espiritual e intelectual capaz de compreender a dimensão dos seus sonhos e dos seus projectos. Na história da vida de Camões são mais as sombras do desconhecimento que as luzes da revelação. Mas foi tentador, ao longo dos séculos, descobrir na sua poesia, e em pequenos outros sinais, o despontar de uma paixão do poeta pela requintada princesa. Alvitra-se que da admi ração passaram à cumplicidade. E que Luís a ela vai confidenciar o embrião da sua obra maior, Os Lusíadas. Descobrem-se, em sonetos, hipotéticos retratos de D. Maria:

Um mover de olhos, brando e piedoso, Sem ver de quê; um riso brando e honesto, Quase forçado; um doce e humilde gesto, De qualquer alegria duvidoso; Um despejo quieto e vergonhoso; Um repouso gravíssimo e modesto; Uma pura bondade, manifesto Indício da alma, limpo e gracioso; Um encolhido ousar; uma brandura; Um medo sem ter culpa; um ar sereno; Um longo e obediente sofrimento: Esta foi a celeste formosura Da minha Circe, e o mágico veneno Que pôde transformar meu pensamento.

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PROXIMIDADE Ao longo dos tempos foi-se constituindo um fundo de lenda sobre este relacionamento amoroso, que seria necessariamente platónico, como é evidente. Também se enfabularam cenas de encontros discretos, nos quais o poeta lia as suas obras à princesa desditada, compreen-

ROSTO da edição de 1598 das Rimas de Luís de Camões

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dendo esta a magnitude do seu talento e apercebendo-se, a pouco e pouco, dos afectos crescentes do pobre fidalgo. Alvitrou-se mesmo que, perante a beleza da poesia de Camões, D. Maria teria chegado a chorar, declarando ser ele o maior de todos os poetas. Terá continuado por algum tempo a afinidade intelectual e a inclinação afectiva entre a princesa e o poeta,

A BELA INFANTA

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conjugação que hoje nos parece mais crível à luz da historiografia do Romantismo que à crua realidade das convenções sociais da época. Mas a íntima decisão de Camões em tornar-se um grande poeta talvez justifique a ideia da sublimação de um impulso amoroso impossível como seria a afeição por D. Maria. Por outro lado, apesar da sua posição social, poderia D. Maria ter apreciado para além das razões puramente estéticas a sincera e apaixonada devoção de um homem que, para ela, tinha um talento excepcional. Não nos podemos esquecer da grande erudição e educação artística da princesa, e do valor que ela daria às manifestações de genialidade.

Esses cabelos louros e escolhidos, Que o ser ao áureo sol estão tirando, Esse ar imenso adonde naufragando Estão continuamente os meus sentidos, Esses furtados olhos, tão fingidos Que minha vida e morte estão causando, Essa divina graça que, em falando, Finge os meus pensamentos não ser cridos. Esse compasso certo, essa medida, Que faz dobrar no corpo a gentileza A divindade em terra tão subida, Mostrem já piedade e não crueza, Que são laços que Amor tece na vida, Sendo em mim sofrimento, em vós dureza.

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Neste soneto, toda a semântica que referencia a mulher amada aponta para uma pessoa de elevada posição social, ao mesmo tempo que se adequa à descrição física de D. Maria e, sobretudo, à distância intransponível que separa o poeta da princesa.

UM AMOR INTERDITO A ter de facto acontecido, como é suposição de muitos, esta afinidade, caminhando para a paixão, tinha de terminar. Se Camões se vira afastado de Catarina de Ataíde por diferença de estatuto social, imagine-se o

fos-

so que o apartava de uma infanta de Portugal. Ao que parece, Luís, personalidade viva, sempre em movimento e constantemente rodeado de amigos, terá deixado escapar algumas inconfidências. O perigo que corria era, porém, mortal. Não era caso único que jovens, ainda que nobres, tivessem sido condenados à morte por passarem a fronteira do decoro. Alvitra-se que a história chegou aos ouvidos da rainha e que D. Maria, alarmada com o perigo que corria Luís Vaz, o terá avisado. Mais uma vez, a narrativa tem demasiados contornos de romance. Seja como for, uma possibilidade se coloca: Camões foi afastado da corte por «amores com uma dama do Paço». E a medida, que o obriga a manter-se distante da corte, é suficientemente severa para pensar que o estatuto social da «dama» seria elevado. É certo que jamais se designaria D. Maria como

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«dama do Paço». Nisso vêem alguns motivo para consi derar que a punição se deveu aos amores de Camões por Catarina de Ataíde; outros defendem que a expressão se destina a proteger a identidade de D. Maria. Mas é preciso ser cauteloso. António Sérgio contesta claramente a ideia de que Camões se tenha «exilado» por questões amorosas, como defendia o historiador José Maria Rodrigues. E vai mais longe: associar a poesia camoniana aos acontecimentos da sua vida é extrapolar a veia poética para o plano da realidade pessoal. Hernâni Cidade questiona-se: «serão tais desterros impostos como penalidade ou apenas ausências da terra onde se preferia estar, tantas vezes na linguagem do tempo, designadas com aquela palavra?» É provável que assim tenha sido, se bem que, com o seu estilo de vida boémio, libertino e belicoso, Camões tivesse múltiplas razões para fugir de Lis-

CENA DA VIDA NA CORTE

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Um último encontro Terão Luís Vaz e a hipotética amada ousado um último encon tro? Arriscaram a reputação ela, a vida ele, numa madrugada de despedida? É o que apetece pensar, lendo este soberbo soneto, onde o tema do afastamento se exprime de modo pungente. Aquela triste e leda madrugada, Cheia toda de mágoa e de piedade, Enquanto houver no mundo saudade, Quero que seja sempre celebrada. Ela só, quando amena e marchetada, Saía, dando à terra claridade, Viu apartar-se de uma outra vontade, Que nunca poderá ver-se apartada; Ela só, viu as lágrimas em fio Que de uns e de outros olhos derivadas, Juntando-se, formaram largo rio; Ela ouviu as palavras magoadas Que poderão tornar o fogo frio, E dar descanso às almas condenadas.

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boa. Para todos os efeitos, a vida de Luís Vaz iria mudar. Era o adeus aos lugares queridos em que vivera. Os saraus nos quais conhecera os melhores espíritos do reino, para não falar das mais belas donzelas. Ou mesmo das mais oferecidas, cuja preferência (ou oportunidade) lhe marcavam as noites de boémia. Não durara mais que dois ou três anos esta vida descuidada e intensa, que vai para sempre moldar a personalidade do poeta, revestindo-a de uma melancólica nostalgia de um tempo dourado que jamais voltaria.

BANIDO

Em 1546 Camões sai de Lisboa e parte para uma espécie de exílio interno, sendo obrigado a permanecer a uma certa distância da capital. Vai constrangido, amargurado e certamente nostálgico dos luminosos dias. As razões deste afastamento talvez não se possam reduzir aos «amores com uma dama do paço». O poeta tinha escrito um auto, uma peça teatral, chamada Auto de El-Rei Seleuco. Ignora-se a data da execução da obra e mesmo da sua representação. Aventa-se que tenha sido encenada em 1545, na casa de Estácio da Veiga, homem de grande importância na corte. E há quem veja no enredo da peça, nitidamente baseado numa peça de Plutarco, uma acintosa crítica à tumultuosa relação entre D. João III e D. Leonor de Áustria, facto que teria so-

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bremaneira desagradado ao rei. Esta interpretação parece duvidosa, mas ainda assim de considerar. Apesar de não ser um género maior na sua obra, Camões escreverá ainda dois outros autos ao gosto vicentino, Comédia de Filode-

mo e Comédia dos Enfatriões. Seja como for, Luís Vaz encontrava-se longe de Lisboa e dela afastado para longe. Para onde? Até hoje não há certezas. Seria forçosamente nas margens do Tejo, a avaliar pelos poemas que o poeta nos legou a partir do seu exílio. Os trabalhos de investigação têm apontado diversos lugares, cada um deles reivindicando a glória de haver albergado, ainda que de modo efémero, o poeta. Houve quem propusesse Santarém, por ser casa de família, onde talvez se encontrasse sua mãe; outros, apoiando-se em documentos, palpitaram que Coimbra: apesar de não se encontrar nas margens do Tejo, seria o local mais provável, beneficiando do apoio de seu tio, SANTARÉM em meados do século xvi

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D. Bento; muitos confiaram na possibilidade de Constância, em virtude de lá haver uma casa de família; falou-se


até de Abrantes. Finalmente foi defendida a hipótese de Belver, com as plausíveis razões de que a geografia local correspondia muito mais à descrição enunciada nos poemas camoneanos que qualquer outra das localidades.

UMA LONGA ESPERA

Seja qual for o lugar onde o banido jovem se refugiou, o certo é que a escrita se intensifica, com uma produção poética assinalável, marcada pelas saudades, pela nostalgia, pelo sentimento de impotência perante a roda da fortuna que o deixara no isolamento e abandono. Após a natural revolta, ter-se-á seguido a resignação abatida. Depois, Luís, com o vigor da juventude e a crença inflexível no seu talento, começa a recuperar. E é no papel, sob a forma poética, que acaba por reflectir nos acontecimentos que o haviam transformado num homem afastado do convívio dos que mais gostava e admirava. Datará provavelmente desta época a amarga reflexão constante na Écloga II, em que duas personagens, Agrário e Almeno, dialogam. É significativo o trecho de Agrário:

Perigos, línguas más, murmurações, Ciúmes, arruídos, competências, Temores, mortes, nojos, perdições. Estas são verdadeiras penitências De quem põe o desejo onde não deve,

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De quem engana alheias inocências. Mas isto tem Amor, que não se escreve Senão onde é lícito e custoso; E onde é mor o perigo, mais se atreve. A reveladora afirmação «De quem põe o desejo onde não deve» contextualiza toda a estrofe à luz do drama que Camões terá vivido em relação a D. Maria. Nas margens do Tejo, Luís escreve e aborrece-se. Longe vão os seus pensamentos de idealismo bucólico, quando, mergulhado na agitação da vida lisboeta, escrevia a um amigo invejando-lhe a virgiliana condição rural. No seu exílio experimenta o tédio e anseia percorrer o curso das águas que o Tejo leva até Lisboa. Contudo, é neste período da sua vida que vai compor alguns dos seus mais belos poemas, imbuídos de uma graça e de um primor es-

NAS MARGENS DO

TEJO

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tético que os elevam aos grandes momentos da sua obra.

Lembranças, que lembrais meu bem passado, Para que sinta mais o mal presente, Deixai-me, se quereis, viver contente, Não me deixeis morrer em tal estado. Mas se também de tudo é ordenado Viver, como se vê, tão descontente, Venha, se vier, o bem por acidente, E dê a morte fim ao meu cuidado. Que muito melhor é perder a vida Perdendo-se as lembranças da memória, Pois fazem tanto dano ao pensamento. Assim que nada perde quem perdida A esperança traz de sua glória Se esta vida há-de ser sempre em tormento. Sentimentos de culpa. Lembranças amargas. Visão funesta de um futuro que se adivinha negro. A exacerbada sensibilidade poética de Luís vai exprimir-se em toda a sua plenitude nestes sonetos de exílio, onde as horas amargas da solidão lhe devem pesar muito.

[...] Perdi numa hora tudo quanto em termos Tão vagarosos e largos, alcancei; [...]. Mas o castigo imposto a Luís acabaria por terminar.

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Saudades No seu exílio campestre, Camões compôs diversos sonetos de sabor bucólico e tonalidade vergiliana, plenos de graça e domínio formal, como este em que invoca a natureza para compreender o seu sentimento de saudade. Alegres campos, verdes arvoredos, Claras e frescas águas de cristal, Que em vós os debuxais ao natural, Discorrendo da altura dos rochedos; Silvestres montes, ásperos penedos, Compostos em concerto desigual: Sabei que, sem licença de meu mal, Já não podeis fazer meus olhos ledos. E, pois me já não vedes como vistes, Não me alegrem verduras deleitosas Nem águas que correndo alegres vêm. Semearei em vós lembranças tristes, Renegando-vos com lágrimas saudosas, E nascerão saudades de meu bem.

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O SOLDADO QUE PERDE UM OLHO

SOLDADO POETA – a peleja nas armas e nas letras

Estando Camões no seu triste exílio, escrevendo e sentindo-se infeliz, apartado do mundo que tanto amara, da animada vida na capital onde o seu espírito e a vibrante juventude que o impregnava o tornavam estimado, quando não amado, pessoa amiga vem dizer-lhe que o castigo findara. Não se sabe quem, nem quando. Mais uma vez, é como se a vida do poeta fosse uma espécie de tela em branco, apenas com alguns traços esboçados, sobre os quais todos podem dar a sua pincelada.

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DE VOLTA A LISBOA Podemos sentir a excitação que se apoderou de Luís quando recebeu a notícia. Era um homem novo, que penara a solidão da vida campestre durante talvez três anos. Tinha agora cerca de um quarto de século, estava no apogeu da juventude, as «musas» tinham-no abençoado com uma perfeição de escrita que não cessara de depurar no seu longo afastamento. Poderia ele voltar à corte? Poderia reconquistar os corações que cativara, especialmente o grande amor que o mantinha cativo? É provável que os sentimentos do poeta fossem paradoxais, mas o que importava era rumar a Lisboa o quanto antes. Camões dirige-se à capital, ao longo do rio Tejo, que fora personagem principal nos seus poemas de exílio. Mal chega, deverá ter usado todos os seus conhecimentos, visto que pouca influência tinha, para voltar a entrar na corte. É possível que tenha instado D. Manuel de Portugal, ou D. Francisco de Noronha, amigos importantes e de reputação sem mácula, a franquearem-lhe as portas dos círculos literários e culturais, mas também das tabernas, dos arruaceiros e dos embarcadiços, sem falar das rameiras que tanto prezava. Numa carta, «passa Camões a ocupar-se das damas de aluguer. Há muito que dizer delas, posto que alguns julguem que com estas “É só pagar e andar.” Camões, como se vai ver, não as conhecia apenas como freguês pagante, mas como boémio que frequentava e vivia o seu mundo, como homem que tinha olhos para as apreciar», segundo António José Saraiva.

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Contudo, as evasivas chegaram. Com a diplomacia possível, fizeram-lhe sentir que, com a sua idade, deveria dar provas de valor militar nas praças de África se quisesse envergar vestes de varão, ou seja, antes de entrar no paço teria de fazer carreira de armas. Tornar-se expedicionário no Norte de África era inteiramente alheio aos desejos de Luís Vaz. Possivelmen te tal ideia jamais lhe teria passado pela cabeça. Naquele tempo os Portugueses mantinham diversas praças africanas sob seu domínio, num estado de conflito latente com os Árabes, mais que de guerra declarada. Era uma boa ocasião para os jovens nobres lusitanos praticarem as artes bélicas e clamarem feitos valorosos. O valor económico da presença portuguesa nestas paragens era quase inexistente (pelo contrário, seria

TÂNGER, conquistada em 1471

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mesmo ruinoso para os cofres do Estado) e a importância estratégica pouco relevante. Aliás, será no reinado de D. João III que quase todas as posições dos Portugueses na África saariana serão abandonadas.

«ONDE VÁS, LUÍS?» Neste ano de 1549 (ou 1550), com cerca de 25 anos, Luís Vaz de Camões encontra-se numa encruzilhada. Sem profissão útil, não tem rendimento garantido e as amizades, benévolas, é certo, olhariam para ele com a mal disfarçada estranheza que sempre provoca um ser que, aos olhos dos outros, deveria já ser um pouco excêntrico. Sem um protector capaz de o alcandorar aos voos a que aspira, Luís pergunta-se para onde ir. «Onde vás, Luís?» Talvez como nenhum outro testemunho, a partida de Camões para África certifique o seu ardente desejo de voltar. Se essa era a condição imposta, pois havia que cumpri-la. Por outro lado, o seu arrebatamento natural devia encontrar nesta expedição um ideal de nobilitação. Quem sabe se, por excepcionais feitos de armas, por algum acto heróico e grandioso, não ganharia o respeito dos maiores do seu país? Haveria algum feito de bravura que pudesse apagar a distância? Camões não era, a meio dos seus 20 anos, apenas um poeta de talento excepcional, mal avaliado pelos contemporâneos. Era também um homem feito, forte e destemido, habituado a lidar com armas e experimentado em

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querelas e rixas de rua. Uma temporada na carreira das armas não o atemorizava. Talvez mesmo o estimulasse, até porque o seu espírito, sedento de conhecimento e de novas, deveria aspirar ao contacto com aquelas terras onde tantos portugueses se haviam coberto de honra. Talvez o projecto de Os Lusíadas já ocupasse a sua mente, estando mesmo algumas estrofes já escritas. Sem nada a perder, Luís parte para Ceuta. Antes da largada, poderá ter escrito estas nostálgicas estrofes:

Partir não me atrevo, Que me lembram mágoas; Se me levam águas, Nos olhos as levo. Se vou ao Tejo Para me despedir, Não me posso ir Sem ver meu desejo, E quando o vejo, Partir não me atrevo; Se me levam águas Nos olhos as levo. Se de saudade Morrerei ou não, Meus olhos dirão De mi a verdade. Por eles me atrevo A lançar às águas,

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Que mostrem as mágoas Que nesta alma levo. As águas que em vão Me fazem chorar, Se elas são do mar, Estas de amor são. Por elas relevo Todas minhas mágoas; Que se força de águas Me leva, eu as levo. Todas me entristecem, Todas são salgadas; Porém as choradas Doces me parecem. Correi, doces águas, Que se em vós me enlevo, Não doem as mágoas Que no peito levo.

EM CEUTA Luís Vaz sai da barra do Tejo numa armada, certamente numerosa, que vai levar alguns dias a chegar a Ceuta. Não se sabe quando, mas pensa-se que terá feito escala num dos portos algarvios, talvez Lagos, talvez Portimão.

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CEUTA

À chegada a Ceuta, toda e qualquer esperança de uma jornada gloriosa em terras africanas se desvanece em pouco tempo. A ronceira vida dos homens de armas, em condições climatéricas hostis, com dificuldades de abastecimentos, comendo mal e pelejando em recontros inconsequentes com os mouros depressa o vão enfastiar. Não se podia pedir, de igual modo, uma vivência intelectual e espiritual num meio rude, entre homens rudes. Camões vai entregar-se, de novo, àquilo que melhor sabe fazer. Escreve. Numa carta a um amigo, provavelmen te D. António de Noronha, dedica-se a longas e elípticas confabulações filosóficas, onde são já patentes a sua desilusão com o género humano e o cepticismo ante o futuro.

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E por tão triste me tenho Que, se sentisse alegria, De triste não viveria, Porque a tal sorte vim, Que não vejo bem algum Em quanto vejo, Que não nasceu para mim; E por não sentir nenhum, Nenhum desejo. Decididamente, Camões não é um homem feliz na praça de Ceuta. Experimenta os sentimentos contraditórios da sua existência. Desejando ardentemente ser aceite e querido num mundo que fora o seu, procura, tem o desí-

Gravura fantasiosa que representa CAMÕES NUMA LUTA EM

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CEUTA


gnio paradoxal de viver «apartado do mundo», num afastamento onde possa viver em paz a sua dor. Mas a dor irá marcá-lo inesperadamente de forma cruel e definitiva. Os fados, o termo a que com frequência se refere ao seu destino, ainda se vão virar mais contra ele. É seguro que Camões se envolveu em diversas pelejas que, mais do que combates militares de grande magnitude, seriam sortidas militares rápidas e esporádicas, ou respostas a provocações. Nelas não se deve ter acanhado. Escreverá uma carta, já na Índia, onde se vangloria de nunca ter negado «conversações» deste género: «Ajuntou-se a isto acharem-me sempre na pele a virtude de Aquiles, que não podia ser cortada senão pela sola dos pés. As quais, de me não as verem nunca, me fizeram ver as de muitos, e não enjeitar conversações da mesma impressão, a quem fracos punham mau nome, vingando com a língua o que não podiam com o braço.»

A PERDA DE UM OLHO Uma vez mais, os ventos sopram contra ele, ou os deuses, como Luís gostava de pensar. Num recontro é ferido com gravidade no rosto, lesão que lhe provoca a perda de um olho e o desfigura para sempre. Fica Luís de Camões à beira de morrer, o que não é de admirar se se avaliarem as condições sanitárias e os conhecimentos médicos da época. Acabará por sarar, mas o ferimento provoca um retorno antecipado a Lisboa.

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Ao longo dos tempos muito se especulou sobre qual seria o olho perdido por Camões. A gravura inserta nas primeiras edições de Os Lusíadas mostrava-nos um vazio no lugar do olho esquerdo. Porém, aconteceu que foram invertidas as chapas da gravura na altura da impressão, pelo que só mais tarde se deu conta de que o olho perdido era o direito.

DESENHO AGUARELADO

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Às agruras temporárias desta segunda espécie de exílio, juntava agora Luís a amargura de uma mutilação definitiva. Para sempre estava perdido o encanto daqueles olhos grandes e expressivos que tanto impressionaram as damas de qualquer origem. O fulgor de um rosto vibrante e intenso era agora a expressão de uma repulsiva cara desfigurada. Se os seus anseios de aceitação social estavam já hipotecados, como se sentiria agora Luís perante os desígnios que almejava?

A importância do olhar A temática do olhar é recorrente na poesia camoniana, havendo estrofes que se referem quase explicitamente à perda de um dos olhos e de como esse acontecimento pode ser sublimado pela elevação do espírito. O poeta vai encarar a sua mutilação como algo que, de certo modo, o eleva sobre os outros. Falta-lhe um olho, sobra-lhe a agudeza do olhar: Sem olhos vi o mal claro Que dos olhos se seguiu: Pois cara sem olhos viu Olhos que lhe custaram caro. De olhos não faço menção, Pois quereis que olhos não sejam, Vendo-vos, olhos sobejam, Não vos vendo, olhos não são.

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REGRESSO A UMA LISBOA DIFERENTE Ao chegar a Lisboa, por volta de 1550, Luís encontra uma sociedade em rápida mutação. É uma mudança que contra ele se virará. Em 1536, após grande dispêndio de verbas dos cofres da nação, a Santa Sé autoriza a instalação do Santo Ofício em Portugal. A Inquisição chegara para aterrorizar as almas durante mais de dois séculos. Quatro anos depois, estabelece-se no país a Companhia de Jesus. Com os inacianos opera-se uma profunda mudança de mentalidade em toda a sociedade portuguesa, a começar pela corte de D. João III.

INÁCIO DE LOYOLA AOS PÉS DE

PAULO III. Dois símbolos da Contra-Reforma

Onde antes imperava o humanismo renascentista, aberto ao conhecimento dos autores clássicos e do mundo antigo, às novas ideias e práticas vindas da Europa e,

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sobretudo, à maravilhosa gesta de conhecimento científico proporcionada pela saga dos Descobrimentos, fermenta agora o obscurantismo, a superstição e o medo instigados pelo espírito da Contra-Reforma. Os jesuítas muito depressa tomam conta dos cargos eclesiásticos mais importantes na corte. Tornam-se confessores, conselheiros, educadores, administradores. A sua influência alastra pelo reino como fogo em palha seca. Na própria educação do infante D. João, o único herdeiro masculino ao trono de Portugal que sobrevivera à extensa prole de D. João III, se pode verificar como os tempos mudaram. Para a formação do jovem príncipe, D. João III chamara à corte Damião de Góis, o mais insigne humanista português e um dos maiores vultos intelectuais da Europa do seu tempo. Damião de Góis abandona os seus cargos no estrangeiro, aliás de enorme relevo, e ruma a Lisboa para se ocupar da tarefa de educar o príncipe, mester que se revestia de enorme importância social ao tempo. Contra o ilustre humanista, os jesuítas não perdem tempo. Insidiosamente, o padre Simão Rodrigues denuncia-o à Inquisição de Évora, alegando simpatias heréticas daquele para com o protestantismo. Homem do mundo, Góis conhecera Lutero, com quem debatera ideias, mas estava longe de ter perdido a fé católica. Esse facto era, porém, irrelevante face à intriga. O brilhante espírito renascentista é afastado, tomando o seu lugar António Pinheiro, da confiança dos jesuítas, que se revelará um homem de enorme cobiça pelo poder, vindo a ocupar destacadas posições no Estado.

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Este António Pinheiro virá mais tarde a cruzar-se no cami nho de Camões. Quanto a Damião de Góis, resta-lhe a consolação dada pelo rei. Será guarda-mor da Torre do Tombo. Nem esse facto o salvaguarda das mãos da Inquisição. Após a morte do monarca, é preso em 1572, com 70 anos, e condenado por heresia a prisão perpétua. No cárcere ainda será denunciado, entre outros, por Pêro de Andrade Caminha, o poeta cortesão denegridor de Camões. Libertado devido talvez à provecta idade, é assassinado em Janeiro de 1574.

D. João III Filho de D. Manuel I, D. João III será o décimo quinto rei de Portugal. Desde novo recebe instrução de carácter humanista, com mestres de grande craveira como Luís Teixeira e o médico Tomás de Torres. Durante a juventude, duvidava-se das capacidades do futuro monarca. Seu pai chega a declará-lo «néscio», pouco dotado de capacidade inte lectual. Porém é educado nos assuntos da governação, como pertencia aos ditames da descendência régia. D. João III será aclamado rei aos 19 anos, vindo a casar com uma irmã de D. Leonor, D. Catarina de Áustria. Durante o reinado de D. João III assiste-se a uma dramática alteração da estrutura do poder, caminhando-se para o absolutismo real, ao mesmo tempo que as ideias do humanismo do Renascimento

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serão rapidamente substituídas pela Contra-Reforma, pelo poder dos jesuítas e pela instauração da Inquisição em Portugal, facto que merece o empenho pessoal do monarca. É no reinado de D. João III que a extensão do império começa, de certo modo, a implodir (à excepção do Brasil, face ao qual o monarca é o primeiro a fazer uma tentativa séria de valo rização e de exploração, com o sistema de capitanias). Nos territórios orientais, os ataques dos Otomanos e dos Árabes tornam-se cada vez mais frequentes, combatendo a situação monopolista imposta pelos Portugueses. Em virtude do enorme esforço financeiro empregue na manutenção das praças do Norte de África, que não eram, de modo algum, produtivas, D. João III decide abandonar os territórios de Arzila, Azamor, Alcácer-Ceguer e Safim, criando uma legião de nobres e homens de armas desempregados. Com o filho de D. Manuel, o absolutismo torna-se uma forma de governo. Com ele apenas despacham um secretário de Estado, António Carneiro, apoiado por dois dos filhos deste. A legião de súbditos, em parte vindos das praças de África, noutra parte nobres caídos em infortúnio financeiro pela perda de poder das grandes famílias do reino, aumenta, representando para os cofres nacionais um esforço hercúleo que nem os rendimentos da Índia conseguiam prover. Não admira que no reinado de D. João III tenham ocorrido graves crises financeiras, sempre colmatadas com a ruinosa solução dos empréstimos externos. É nas relações com Espanha que se revela a maior debi lidade de D. João III. Alinhando descuidadamente com as manobras de Carlos V, estreita de tal modo os laços de parentesco entre as duas coroas que deixa iminente a possibi-

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lidade de o reino espanhol se apoderar da coroa portuguesa. Tendo tido diversos filhos varões, todos morrerão (mesmo um filho natural). O único dos seus filhos que chega a procriar, D. João, casa com uma filha de Carlos V e morre antes de o seu descendente, neto de D. João III, nascer. Este, por sua vez, morrerá muito novo. Era D. Sebastião. Espanha pôde então tomar a coroa de Portugal. Outra das vertentes da política de D. João III foi a estreita relação que estabeleceu com o papado, pagando uma soma gigantesca para a instauração da Inquisição em Portugal e permitindo a introdução do espírito da Contra-Reforma, tendo os jesuítas entrado (com poderosa presença) no nosso país durante o seu reinado. Releve-se a seu favor que, durante os primeiros anos de poder, D. João III é um grande apoiante das artes na senda, aliás, da corte de seu pai. Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, Pedro Nunes, João de Castro e João de Ruão, entre outros, brilharão Portada do

na corte e conhecerão a sua protecção. Pro-

REGIMENTO

cede igualmente à reforma da Universidade portuguesa e cria

DO

SANTO

OFÍCIO

o Colégio das Artes. Os seus últimos anos de reinado, contudo,

de 1640,

estão bem longe do brilho renascentista, mergulhados na

que

obscuridade trazida pelos jesuítas e pela Inquisição.

aperfeiçoa os de 1552 e 1613

Com D. João III assiste-se à passagem abrupta de um período luminoso, do apogeu da história de Portugal, para o declínio económico e moral.

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UMA SOCIEDADE EM MUDANÇA Quando Camões chega a Lisboa, toda a cultura social estava em acelerada mutação. As perseguições, as denúncias, os autos-de-fé contaminavam a vida da cidade com um verdadeiro espírito de medo, em que todos podiam ser delatores de todos a partir de denúncias ridículas, ditadas pela superstição ou pelo medo. O povo mal conseguia compreender o que se passava, mas acompanhava os sinais da mudança procurando o recato, o falar discreto, a presença reforçada nos ofícios religiosos. Ninguém andava contente. Além disso, as finanças de Portugal caminhavam de mal para pior. As desastrosas decisões de D. João III a

PROCISSÃO DO AUTO-DE-FÉ,

a sair do palácio dos Estaus, a sede da Inquisição, no Rossio em Lisboa

nível económico haviam mergulhado o país numa grave crise, onde a falta de dinheiro nos cofres do Estado ameaçava tornar-se uma doença crónica. Para colmatar as enormes despesas com a vasta legião de funcionários que gravitavam à volta da corte, as fortunas despendidas nas relações com a Santa Sé, os rios de dinheiro gastos nas praças do Norte de África e as riquezas geradas pelo florescente comércio com a Índia não chegavam. Assim, o monarca, já imbuído do espírito absolutista, pouco e mal aconselhado, vai recorrer com uma alarmante frequência aos empréstimos externos,

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que têm como consequência o agravamento das condições de vida da população em geral. Nada melhor para a manutenção da ordem que a existência de um poder «espiritual» com instrumentos para exercer a justiça, manter a ordem, atemorizar os renitentes. Se a alta nobreza perdia influência, resmungava com as dificuldades e dependia cada vez mais do poder real; se o povo passava por agruras inimagináveis à luz dos valores de hoje; estavam lá a Inquisição para impor a ordem e os jesuítas para aplacar as almas. D. João III havia assegurado o seu poder. O reino, contudo, entrara em declínio. A vida na corte também havia mudado. Rapidamente se vão desvanescendo os sinais de apreço pelas artes e pelas letras, as festas e os saraus onde os belos espíritos se manifestavam. O rei e os mais destacados membros da nobreza estão inteiramente dominados pelos representantes da Companhia de Jesus, como o padre Simão Rodrigues, que se torna confessor do monarca. Mesmo o cardeal D. Henrique, irmão de D. João III, que antagonizara os inacianos, é agora, após ter sido designado inquisidor-geral, um indefectível seguidor dos Apóstolos, como a si mesmos se designavam os membros da companhia. Como se sabe, D. Henrique terá um papel crucial no período da perda de independência de Portugal. A rainha velava pelos costumes. Agora, a música, o teatro, a poesia, as práticas de galanteria eram consideradas doenças para a alma e alçapões para os abismos do inferno. É este novo clima que Luís vai encontrar na sua chegada a Lisboa.

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Damião de Góis Damião de Góis é consi derado um dos grandes vultos do humanismo europeu, estabelecendo pontes culturais de primeira importância entre a elite ilustrada portuguesa e os meios culturais mais avançados na Europa seiscentista. Tal como Erasmo ou Dührer, este grande renascentista respirava um ambiente de ciência e liberdade intelectual. Damião de Góis nas ceu em Alenquer, em 1502. Tendo ficado órfão aos 11 anos, torna-se moço de câmara na

DAMIÃO

corte de D. Manuel I. As qualidades de espírito do jovem cedo

DE

GÓIS

atraíram a atenção de D. João III, que o nomeou escrivão da feitoria na Flandres, quando era feitor Rui Fernandes de Almada e, mais tarde, o enviou em negócios a várias cortes da Europa, «servio nas partes da Alemanha, Frandes, Brabante e Holanda en negoçeos de muita importancia aonde foi tão quisto e aceyto que o tinhão todos por seu natural». Assoberbado pela «curiosidade e desejo que tinha de co nhecer o mundo», conheceu e privou com algumas das mais destacadas figuras da sua época em todo o continente europeu, como Martinho Lutero, Erasmo de Roterdão e Melancton.

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Damião de Góis viveu em Basileia junto de Erasmo e estudou na Universidade de Pádua. Prosseguiu os seus estudos em Lovaina, onde publicou vários trabalhos: os Comentarii rerum gestarum in India e o Fides, religio moresque Aethioporum sub imperio Preciosi Joanni. Antes já havia desistido do cargo de tesoureiro da Casa da Índia, que lhe havia sido atribuído por D. João III, justamente para prosseguir os seus estudos. Retornou o grande humanista a Portugal, em 1545, tendo sido designado guarda-mor da Torre do Tombo. É encarregue de escrever a Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, apesar de não ser o cronista-mor do reino. A obra que produz, extremamente cuidada e fundamentada, é de uma enorme qua lidade. Escreverá ainda a Crónica do Príncipe Dom João o Segundo do Nome. Foi ainda um apaixonado cultor da música e do convívio com os espíritos mais eruditos da sua época em Lisboa. A Inquisição promove a sua desCRÓNICA DO

FELICÍSSIMO

graça. Foi preso pelo Santo Ofício (denunciado por Sebastião Rodrigues de Azevedo), acusado de ser

REI

espírito heterodoxo. Em 1574 será achado morto na sua casa

D. MANUEL

de Alenquer, suspeitando-se de assassinato. Historiador e diplomata, viajante e funcionário régio, Góis foi o espírito mais moderno e iluminado do seu tempo em Portugal e o porta-voz das novas ideias humanistas, um homem do Renascimento e um dos mais eruditos do seu tempo.

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UM REGRESSO TRÁGICO

VISTA DE LISBOA

Ao chegar à capital, Camões deve já trazer consigo a pala negra que lhe recobre o olho estropiado e afasta o olhar alheio da horrível visão de uma cavidade escura e funda. Não vem apenas mutilado. É, certamente, um homem ferido na alma, envergonhado, cada vez mais imerso num mundo próprio, onde ecoa a voz que lhe dita os versos, o génio que organiza os poemas. Contudo, não perde o desejo, quase como se de uma obsessão se tratasse, de voltar aos lugares e às pessoas que amara. É como uma borboleta em torno de uma luz, como aliás refere um dos seus poemas.

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DESFIGURADO Neste ano de 1550, Camões parece tentar a sua sorte na Índia, alistando-se para embarcar numa das frotas que em breve partiriam. Mas tal não acontece, e mais uma vez a roda da história lhe será funesta. Que fazer, então? É ainda uma pessoa orgulhosa do seu talento, absolutamente crente da sua missão de poeta, investida no desígnio de escrever uma obra que, dando corpo à sua vastíssima erudição, glorificasse a saga marítima dos Lusitanos. Contudo, o jovem imberbe e altivo que, anos antes, causara brado em Lisboa, havia mudado. Era agora um homem feito, de considerável envergadura, barba ruiva, bigode, cabelo grande. Perdera o brilho da mocidade. Conservava apenas um olho, que mantinha ainda o olhar cálido e inquieto de outrora. O outro estava tapado por uma pala negra, simbolizando o negrume do seu destino. Como o aceitariam sendo pobre, proscrito, mutilado? No entanto, Camões vai tentar. A primeira abordagem que faz é a mais lógica. Procura aproximar-se da corte do príncipe D. João, único filho varão de D. João III, que por essa época desenvolve uma grande afeição pela poesia e se torna protector dos poetas, entre os quais Francisco Sá de Miranda, D. Manuel de Portugal, amigo de Camões, Fernando da Silveira e João Lopes Leitão, entre muitos outros. Com o príncipe D. João a poesia ganhava novo impulso. Havia que tentar, pensou Luís. Até porque tinha consciência nítida da sua superioridade sobre os restantes vates do reino. Além disso, portava consigo um projecto do maior interesse nacional: um poema que glo-

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rificava os Descobrimentos, a gesta lusitana e, pormenor com alguma importância, a casa de Avis. Mais do que a glória, contudo, talvez procurasse uma pequena tença ou até uma malga de sopa.

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UM ESFORÇO INÚTIL Camões vai utilizar todos os recursos para voltar a ser aceite: a influência dos amigos, a pressão de conhecimentos nas altas esferas, mas também a lisonja. E quem melhor para ser lisonjeado que o tutor de estudos do príncipe, o famigerado D. António Pinheiro? Pois é a ele que Camões dirige um soneto laudatório, manifestamente exagerado no tom, que nos chocaria se não tivéssemos presentes as vicissitudes que enfrentava Luís Vaz.

[...] E, fazendo a sua dor ilustre engano, A Júpiter pediu que o verdadeiro Preço da nobre palma e do loureiro A seu pinheiro desse, soberano. [...] Oh! ditoso pinheiro! Oh! mais ditoso Quem se vir coroar da folha vossa, Cantando à vossa sombra verso eterno! A última estrofe é bem exemplificativa do esforço que o poeta faz para impressionar Pinheiro, ao mesmo tempo que, implicitamente, lhe promete criar, à sua sombra, «verso eterno». Estaria Camões a pensar no poema épico que já então elaborava? De nada lhe vão valer, porém, estes rebaixamentos da arte, estas cedências de conveniência. O ambiente cultural, social e religioso havia mudado, o humanismo renascentista de Camões seria certamente encarado como um perigo, uma ameaça de corrupção dos espíritos, por aqueles que tutelavam a educação do príncipe. Que o

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jovem herdeiro do trono se dedicasse às belas letras, daí não viria mal ao Mundo. Mas admitir um homem que manifestamente se desenquadrava do espírito fanatizado do tempo, isso era outra coisa. Sem pretextos de carácter normativo, como os que antes o tinham levado ao Norte de África, as portas foram-lhe sendo fechadas de modo dissimulado, menos franco, de certo modo ainda mais frustrante. Camões compreende que não vale a pena continuar a insistir.

CAMÕES tenta impressionar D. António Pinheiro

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NOS SALÕES DE D. MARIA A infanta não perdera, com as profundas alterações sociais que estavam em curso, o costume de se fazer rodear de actores, poetas e músicos em Santa Clara. O seu estatuto e independência de espírito assim o permitiam. Lembrar-se-ia ela do arrebatado Luís Vaz? Talvez sim. Um belo dia é-lhe feito saber que seria bem recebido nos salões da senhora dos cabelos claros. Podemos imaginar a emoção do poeta, o seu nervosismo, as dúvidas e receios que o assaltaram. Como iria a senhora do seu destino acolher aquele homem tão mudado, ao ponto da desfiguração? Como suportaria ele o olhar de D. Maria, mantendo a compostura e os modos próprios de um ambiente de corte? Deve ter sido com o coração aos pulos que Luís Vaz entrou em Santa Clara para encontrar, anos depois, a irmã de D. João III. Nos salões é provável que o olhassem com estranheza. Todos se questionariam como poderia aquele homem quase taciturno ter sido a brilhante estrela de anos atrás. Alguns, que ainda o conheciam dos anos felizes, espantavam-se em ver como mudara o rapaz luminoso de antes. Estamos, de certo modo, no domínio da efabulação. Não existem registos que nos comprovem a cena, apenas indícios. Sinais que contam ter D. Maria recebido Luís de Camões com toda a deferência e consideração, chamando-o junto de si, pedindo-lhe narrativa dos anos transcorridos. Não lhe permite que se ajoelhe, dizendo-lhe que ele era da casa.

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RETRATO FEITO EM

GOA

A medo, Camões terá perguntado se não lhe parecia ele outro com aquele terrível ferimento, que tanto o desfigurava, ao que D. Maria responderia ser esse um sinal de maior glória a somar ao seu talento.

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Há um soneto escrito por Luís de Camões que, de certo modo, pode transmitir os sentimentos decorrentes deste reencontro:

Vós, que de olhos suaves e serenos Com justa causa a vida cativais, E que os outros cuidados condenais Por indevidos, baixos e pequenos; Se de Amor os domésticos venenos, Nunca provados, quero que sintais, Que é tanto mais o amor despois que amais, Quanto são mais as causas de ser menos; E não presuma alguém que algum defeito Quando na cousa amada se apresenta, Possa diminuir o amor perfeito; Antes o dobra mais; e se atormenta, Pouco a pouco desculpa o brando peito; Que amor com seus contrários se acrescenta.

TRAGÉDIA Luís de Camões foi ficando por Lisboa. Adiado estava o hipotético projecto de demandar a Índia em busca de duvidosas riquezas, de glórias improváveis. E esse foi o seu infortúnio, não ter saído da cidade do Tejo antes que algo de terrível acontecesse. Mas o épico poeta esta-

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va destinado aos mais negros desígnios. Neste caso, devido a um impulso escusado, a uma irreflectida atitude que só se explica num homem que, à beira dos 30 anos, guardava em si tanta genialidade como uma impulsiva natureza. A 16 de Junho de 1552, quinta-feira, Lisboa enga-

PROCISSÃO. Chegada

lana-se para ver passar a procissão do Corpo de Deus. É

das relíquias

uma data litúrgica marcante e um dos acontecimentos

de Santa Auta

mais importantes do ano, no qual se apresentam todas as pessoas de importância no reino, as quais o povo vem ver

à igreja de Madre de Deus

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passar. Multidões acotovelam-se para ver o cortejo que, saindo da Sé, serpenteava ao longo das estreitas ruas da época até chegar ao convento de São Domingos, um pouco acima da praça do Rossio, na capital. Aí se ajoelhavam e oravam os penitentes, retornando depois a procissão ao ponto de partida, a Sé de Lisboa. O rei seguia a pé, acompanhado do príncipe D. João, atrás da riquíssima custódia de ouro que encerrava a hóstia sagrada. Na peugada do monarca marchavam a passo lento os mais ilustres dignitários da igreja, as corporações de ofícios, as confrarias e irmandades, os representantes do poder civil e militar. A procissão era de tal modo importante que a Câmara lhe destinava todos os anos uma verba especial.

PRISÃO Luís de Camões encontrava-se no local, certamente para observar um acontecimento que, pela sua excepcionalidade, a todos atraía e agradava. Estava a pé e trazia consigo uma arma branca. A multidão agitava-se, esticando o pescoço para ver melhor. De repente, mesmo ao pé de Luís Vaz, sente-se alvoroço. Dois embuçados desencadeavam arruaça com um homem que, por se encontrar a cavalo, deveria ter certamente alguma importância e estar em funções. Então, num vislumbre fatal, Camões reconhece os embuçados como seus amigos, ou pelo menos co -

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nhecidos, ao mesmo tempo que o cavaleiro desembainha a espada e se prepara para os ferir. Sem hesitar, Luís Vaz, o mesmo Luís das arruaças que anos atrás lhe haviam conferido a alcunha de «Trinca-Fortes», saca do punhal e ataca o cavaleiro, ferindo-o severamente. Os embuçados, os amigos que protegera, fogem a sete pés. Camões fica no local. Não se afasta. Enfrenta as consequências. O impulsivo Camões acabara de ferir Gonçalo Borges, criado de arreios do rei, de espírito arruaceiro. Entenda-se que ser criado do rei estava longe do desprestígio. Pelo contrário, era um dos inúmeros cargos de pouca utilidade criados para empregar com dignidade e distinção os filhos da nobreza que dependia cada vez mais das benesses reais. Gonçalo Borges era, pois, figura em Lis-

VISTA DO ROSSIO. À esquerda, a igreja de

boa, embora provavelmente mais estroina e certamente

S. Domingos;

muito mais inútil que o pobre poeta.

à direita,

O que era pior para Luís Vaz é que tinha cometido um crime de sangue na via pública, com o rei na cidade e,

o hospital de Todos-os-Santos

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ainda por cima, nas proximidades. Tal acto configurava um crime de lesa-majestade e era punido com a pena de morte. Imediatamente prendem Camões e é levado às pressas para a cadeia do Tronco, que ficava muito próxima, entrando-se nela por uma estreita viela que ainda hoje existe, embocada na Rua das Portas de Santo Antão. Preso. Luís Vaz de Camões está preso, nas mais miseráveis condições que se possam imaginar. A cadeia do Tronco não passa de uma enxovia cercada de grades, onde não eram encarcerados os nobres, onde qualquer sinal de conforto, como uma vela ou a limpeza dos dejectos, se consegue apenas à força de corrupção dos carcereiros. Com ele mais 18 homens foram de leva.

O PREÇO DA LIBERDADE Devido a uma verba entregue de acordo com o regulamento, lá consegue o poeta ter uma vela garantida, mais pena e tinta. Durante os seus primeiros dias entrega-se a um desespero profundo. Depois começa a escre ver, deste modo expurgando o seu sofrimento:

Tristezas! Compassar tristes gemidos! Passo a noite e o dia imaginando; Nesta escura cova estou cuidando De me ver com meus dias tão perdidos!

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Vão passando, como sombra, escondidos, E sem fruto nenhum irem deixando, Mais que os ver passando e rodando Com a roda da fortuna os meus sentidos. Nestas imaginações, triste, comigo Estou, na alma enlevado, que não s(i)ento Se com alguém falando estou, o que digo. Se vem alguém estar, no pensamento Nem sei dizer de mim neste tormento Se estou fora de mim, se estou comigo.

HISTÓRIA DO DESCOBRIMENTO E

CONQUISTA

DA ÍNDIA PELOS

PORTUGUESES

Amigos acorreram à prisão, visitando-o. Não era de todo vulgar que um fidalgo, ainda que de baixa condição, se encontrasse na cadeia do Tronco. Possivelmente algum deles lhe terá levado uns poucos livros, entre os quais, conta a lenda, se encontraria a História do Descobrimento

e Conquista da Índia pelos Portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda, que permanece até hoje uma fonte incontornável do período áureo dos Descobrimentos. Não terá sido, por isso, infrutífera a passagem do poeta pela prisão. O livro de Castanheda dá-lhe informação de carácter vital para a elaboração do poema épico, para a narrativa de Os Lusíadas.

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Após longos nove meses de negro encarceramento, os esforços dos amigos para a sua libertação acabam por dar resultado. Gonçalo Borges é persuadido a pronunciar o seu perdão, uma vez que do ferimento não resultara qualquer dano duradouro. Munidos de uma declaração de perdão, requereram ao rei a mesma graça para com Luís Vaz de Camões. Finalmente, em nome de D. João III, é-lhe passada uma Carta de Perdão, implicando o pagamento de quatro mil réis para os fundos da Piedade, quantia decerto impossível de ser paga pelo poeta mas que terá sido adiantada por amigos, talvez os condes de Linhares e Vimioso. No que diz respeito à parte do crime que envolvia o delicado assunto da lesa-majestade, é imposto ao desafortunado Luís Vaz que parta para a Índia na primeira armada a largar do Tejo. Por volta do dia 7 de Março, o prisioneiro é libertado. Mal pode conter a sua alegria. Mas, de novo, a angústia se atravessa no seu caminho. A próxima armada da Índia partia dentro de duas semanas.

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NO CAMINHO DA ÍNDIA

MAPA do Índico, de inspiração ptolomaica

Camões passara nove meses na prisão do Tronco. De lá viera certamente fragilizado, fraco de forças, subalimentado. No entanto, o seu ardente espírito continuava febril, criativo, esperançoso. Os dilemas agora eram de ordem prática. Neste transe da sua vida não podia questionar que a única saída possível era o rumo do Oriente, onde talvez pudesse restabelecer a sua reputação e, quem sabe, arranjar meios de fortuna, glória, ou pelo menos de subsistência condigna. Mas como partir, se nem roupas tinha?

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PARTIDA Nas vésperas de partir, o poeta tem de resolver pro blemas ínfimos, mas que para ele eram de monta. Como adquirir o vestuário e os alimentos necessários ao embarque? Mais uma vez os amigos lhe devem ter valido. A sua posição era, porém, muito precária. Não embarca Luís Vaz como capitão, ou, ao menos, com uma posição de destaque. Pelo contrário, sairá de Lisboa como escudeiro, posto que o equiparava à marinhagem vulgar. Em nada se distingue de um simples marinheiro do povo, arregimentado à pressa a troco da liberdade. Tem a obrigação de servir durante cinco anos. O destino que espera Luís Vaz conhece-o ele bem. Lutar nas ardilosas querelas comuns à presença portuguesa no Oriente; sofrer a insalubridade dos porões e os maus tratos das viagens; conviver com gente que não é capaz de com ele dialogar, quanto mais de reconhecer o seu talento; esperar uma quimérica oportunidade de fortuna, fruto de algum saque mais opulento. Em Março de 1553, a armada de Fernão Álvares Cabral sai da barra do Tejo. Nela segue o poeta, para um destino que se viria a revelar repleto de agruras mas igualmente pleno de glória poética. Parte com o coração amargurado e com uma nova perspectiva de vida, que já não lhe permite alimentar sonhos de um futuro dourado. No seu monumental poema épico, Os Lusíadas , Camões coloca na perspectiva da armada de Vasco da Gama os sentimentos que, como é evidente, o assolaram naquele momento:

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ARMADA DE 1553, na qual partiu Camões

Já a vista pouco a pouco se desterra Daqueles pátrios montes que ficavam; Ficava o caro Tejo e a fresca serra De Sintra, e nela os olhos se alongavam. Ficava-nos também na amada terra O coração, que as mágoas lá deixavam; E já depois que tudo se escondeu, Não vimos mais, enfim, que mar e céu.

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A BORDO Não deixa de ser curioso que Camões tenha lar- gado o Tejo com poucos dias de diferença da armada de Vasco da Gama, ainda que mais de 50 anos depois. De certo modo, a sua viagem reproduz a heróica gesta descobridora do Almirante, facto que, por certo, vai permitir ao poeta

A VIDA a bordo das naus

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uma reconstituição extremamente vívida da

jornada,

que ele genialmente verterá em registo poético. Tal como a pequena armada do nauta de Sines, a frota em que segue Camões cumpre a rota das Índias sem grandes variações. Parece seguro que Luís Vaz seguia na nau capitânia, a São Bento, comandada por Fernão Álvares Cabral, capitão-mor da expedição. Com ele navegavam mais três naus, uma vez que a quarta, a Santo António, seria consumida pelo fogo ainda na barra de Lisboa. Nos primeiros dias, a viagem decorre bonançosa. Mas parece que, em pleno Atlântico, uma tempestade dispersa a frota, obrigando cada uma das naus a seguir um rumo diferente. É a São Bento , a nau capitânia em que seguia Camões, que melhor se adapta às condições adversas, conseguindo prosseguir a sua rota até à Índia sem contratempos de maior. Podemos imaginar a vida de Luís Vaz a bordo. Tem quase 30 anos. Ainda está em pleno fulgor da idade, mas já temperado por inúmeros infortúnios que o tornam melancólico. Nos dias de hoje dir-se-ia que podia estar deprimido. De que falaria ele com os homens a bordo, ao longo dos penosos meses da travessia? Decerto que não poderia entabular conversação sobre poesia, revelar o poema épico que trazia inscrito na alma, trocar chistes espirituosos com referências eruditas. Era uma vida marcada pela dureza das condições climáticas, pela falta de alimento, pelos parasitas e pelo cheiro infecto da podridão dos porões. As doenças dizimavam muitos homens ao longo da viagem e era precisa grande robustez para lhes resistir. Camões era, porém, um

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homem ainda muito forte. Em Os Lusíadas dá-nos conta, de forma brutal, dos tormentos do escorbuto:

Apodrecia cum fétido e bruto Cheiro, que o ar vizinho inficionava. Não tínhamos ali médico astuto, Sururgião sutil menos se achava; Mas qualquer, neste ofício pouco instruto, Pola carne já podre assi cortava Como se fora morta; e bem convinha, Pois que morto ficava quem a tinha. Enfim, que nesta incógnita espessura Deixámos para sempre os companheiros Que, em tal caminho e em tanta desventura, Foram sempre connosco aventureiros.

O VELHO DO RESTELO Todas as impressões que a viagem proporcionou a Luís de Camões serão inscritas no seu grande poema épico. Como se sabe, a acção do poema tem o seu núcleo central na viagem de Vasco da Gama no descobrimento do caminho marítimo para a Índia, cume da gesta dos Portugueses, da sua própria natureza e glória, que faz de

Os Lusíadas um poema que exalta a epopeia lusitana. Contudo, ao transpor a acção para o tempo do Ga ma, Camões apoia-se tanto no saber erudito que adqui-

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A despedida

riu ao longo da sua vida como na experiência que agora atravessa ao percorrer a rota da Índia. Parece, assim, evidente que algumas das reflexões inscritas no poema teriam mais a ver com o tempo de Camões que com a época do final de Quatrocentos, quando

dos navegantes é assombrada pela voz de descrédito do VELHO DO

RESTELO

o almirante de Sines alcança as costas da Índia. É o caso do episódio conhecido como «o velho do Restelo», que vai marcar a cultura nacional com um simbolismo incon tornável. É patente, à luz da historiografia contemporânea,

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que as palavras da personagem camoniana se aplicariam mais ao declínio do período de D. João III que à pujança vigorosa do melhor período do reinado de seu pai:

Mas um velho de aspeito venerando, Que ficava nas praias, entre a gente, Postos em nós os olhos, meneando Três vezes a cabeça, descontente, A voz pesada um pouco alevantando, Que nós no mar ouvimos claramente Cum saber só de experiências feito, Tais palavras tirou do experto peito: — Ó glória de mandar! ó vã cobiça Desta vaidade a quem chamamos fama! Ó fraudulento gosto que se atiça Cûa aura popular que honra se chama! Que castigo tamanho, e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentos, Que crueldades neles exprimentas! Na personagem inesquecível do velho do Restelo não se deverá talvez ver a presença de uma voz conservadora, incrédula perante a importância e as vantagens dos Descobrimentos. Talvez seja apenas o ressentimento do poeta num tempo em que a exaltação das grandes proezas marítimas dera já lugar a um mundo de corrupção, pequenos interesses e grandes esbanjamentos. Mundo esse no qual Camões se sentia profundamente injustiçado.

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O ADAMASTOR A viagem seguiu de porto em porto, percorrendo a rota da Índias. Tudo maravilhava Luís de Camões. Navegam pela costa ocidental africana abaixo, depois rumam a Cabo Verde, onde se abastecem de mantimentos e água na ilha de Santiago. Seguem até ao golfo da Guiné, iniciando, de seguida, a volta larga, a rota descoberta pelos Portugueses que, virando o bordo a sudoeste, os atirava para o largo do Atlântico até atingirem os ventos favoráveis que os levariam à ponta sul do continente africano. Só deste modo podiam evitar os ventos e as correntes con-

COSTA DE

ÁFRICA

até à costa da Guiné

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ADAMASTOR enfrentado pelo Gama

trárias, mas os perigos dos mares austrais eram terríveis. O poeta coloca na voz de Vasco da Gama a narrativa, em que este tenta descrever ao sultão de Melinde os perigos do mar:

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Contar-te longamente as perigosas Cousas do mar, que os homens não entendem, Súbitas trovoadas temerosas, Relampados que o ar em fogo acendem, Negros chuveiros, noites tenebrosas, Bramidos de trovões, que o mundo fendem, Não menos é trabalho que grande erro, Ainda que tivesse a voz de ferro. Numa estrofe de oito versos Camões transmite, com uma sensibilidade que apenas lhe poderia advir de uma experiência pessoal, os perigos e os terrores que os homens do mar passavam nos mares do Sul até chegarem a bom porto. Depois vinha o Cabo. Que fora das Tormentas e era, agora, da Boa Esperança. Numa das mais conhecidas cenas de Os Lusíadas, o poeta decide, de modo a dramatizar as horríveis dificuldades vividas pelos Portugueses na transposição do cabo, antropomorfizar a formação geológica. É assim que cria a personagem do Adamastor, navegante castigado pelos deuses e agora dedicado a aterrorizar os nautas:

Eu sou aquele oculto e grande cabo A quem chamais vós outros Tormentório, Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo, Plínio e quantos passaram fui notório. Aqui toda a africana costa acabo Neste meu nunca visto promontório, Que pera o Pólo Antártico se estende, A quem vossa ousadia tanto ofende.

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Para Camões, a passagem do cabo das Tormentas é o sinal de que, no fantasiado conflito entre os deuses, a balança teria acabado por pender a favor dos Portugueses, assim se cumprindo o desígnio da predestinação da gente lusitana, amada e protegida pelas divindades poderosas. A justaposição da plêiade de referências às divindades da Antiguidade e às referências do cristianismo é uma constante na obra, revelando o homem do Renascimento que Camões, acima de tudo, nunca deixará de ser.

O FIM DA JORNADA A viagem de Camões a caminho da Índia é, de certo modo, compreensível na descrição que o poeta nos dá no núcleo central de Os

Lusíadas. Deve ter-se sentido impotente perante as tempestades, exasperado nas calmarias, sofredor nos longos dias de autêntica luta pela sobrevivência no porão e no convés. As tempestades ha viam marcado a jornada, e delas Luís deixa testemunho:

TEMPESTADE no mar

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O céu fere com gritos nisto a gente, Com súbito tremor e desacordo, Que no romper da vela, a nau pendente Toma grão soma de água pelo bordo. «Alija – disse o mestre rijamente, – Alija tudo ao mar, não falte acordo! Vão outros dar à bomba, não cessando! À bomba, que nos imos alagando!» Correm logo os soldados animosos A dar à bomba, e, tanto que chegaram, Os balanços, que os mares temerosos Deram à nau, num bordo os derribaram. Três marinheiros, duros e forçosos, A menear o leme não bastaram; Talhas lhe punham de ua ˜ e doutra parte, Sem aproveitar dos homens força e arte. Agora sobre as ondas os subiam As ondas de Neptuno furibundo, Agora a ver parece que deciam às íntimas entranhas do profundo. No final de Setembro, a nau São Bento chega a Goa, levando consigo Camões. O poeta devia estar exausto, uma exaustão física e anímica que era comum aos marinheiros que passavam pela provação de uma viagem tão longa e atribulada. Naquele ano de 1553 as tempestades ao largo do cabo da Boa Esperança haviam sido particularmente severas, derrubando o ânimo dos homens, que apenas desejavam já chegar a terra sem cuidarem de qualquer

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outra benesse do destino. Mas a Camões não devia certamente escapar a fraca sorte que um escudeiro podia esperar nas terras da Ásia. Haviam transcorrido «seis meses de má vida por esse mar». À luz da dimensão temporal contemporânea, dificilmente podemos imaginar a violência a que se sujeitavam os embarcados nas naus por um período tão considerável. Contudo, conseguimos seguramente sentir o alívio que experimentavam quando chegavam ao porto de destino, mesmo que aquilo que os esperava não fosse mais que uma nova forma de miséria e pobreza. A alegria com que as armadas eram recebidas em Goa não deixava de ser enganadora. Os homens não possuíam, na maior parte dos casos, uma moeda sequer para comprar comida. Não tinham onde se albergar. Muitos acabavam por pernoitar nos navios que, em virtude da longa travessia, abominavam. Os que têm algo de seu vendem-no imediatamente. Alguns morrerão de fome.

CAMÕES INSTALA-SE EM GOA Ao chegar à cidade que constituía a principal capitania e sede do poder administrativo português na Índia, Camões não conhecerá as agruras dos mais humildes soldados. Era um homem do mundo, tinha alguns amigos e parentes. Vários deles estavam em Goa. Primos da família Camões vão recebê-lo de braços abertos, proporcionando-lhe, desde logo, condições de conforto e, sobretudo, de

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repouso, absolutamente necessário para recuperar da difícil viagem. Entre eles contava-se João de Camões, filho de Pedro Alves de Camões, que possuía o morgado de Camões em Alenquer. Uma alimentação cuidada e o descanso merecido vão operar maravilhas no estado de espírito do poeta, que se vangloria de viver «mais venerado que os touros de Merceana, e mais quieto que a cela de um frade pregador». Era um início auspicioso.

VISTA DE GOA

Ao longo de dois meses, Luís vai passar um belo tempo de vida despreocupada, ociosa, absorvendo o que o rodeia, bebendo avidamente os cheiros, os sabores e as cores que o envolviam, como seria característico do seu espírito irrequieto e curioso. Terá visitado Goa, observando com a maior atenção a cidade que para ele constituía um mundo novo. Goa era, à época, uma urbe plenamente desenvolvida, com inúmeras edificações militares e civis portuguesas, onde se cruzava uma turba cosmopolita oriunda de todas as partes do mundo oriental e da Arábia. Ali convergiam mercadores da Arábia, da Pérsia, de Bengala, da Arménia, do reino de Pegu, do Ceilão e de Malaca, da ilha de Java e da China. Num pequeno território governa-

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do com mão de ferro pelos Portugueses, todos viam oportunidades de negócio num ambiente de grande liberalidade, à maneira da costa do Malabar que os Portugueses depressa adoptaram, vendo as vantagens que o comércio com gentes tão diferentes lhes trazia.

MERCADO em Goa

A liberdade religiosa era absolutamente respeitada e todas as crenças se toleravam, dos hindus aos cristãos, dos muçulmanos aos judeus. Afinal, essa era a tradição milenar dos povos do Índico. Cinquenta anos após a chegada dos Portugueses à Índia, estes tinham percebido que, desde que detivessem o poder e a força, nenhum mal viria ao Mundo se fossem brandos e cordatos com os povos exóticos com os quais conviviam. É neste lugar nevrálgico para a presença dos Portugueses no Índico que Ca mões toma pela primeira vez contacto com a realidade do Oriente. Teria, por obrigação, de servir durante cinco anos. Na verdade, aqui se deteria muito mais tempo.

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Resumo sinóptico de Os Lusíadas CANTO I Proposição (estrofes 1 a 3). Revela a intenção do poema: celebrar os feitos lusitanos, navegações e conquistas. Invocação (estrofes 4 e 5) às ninfas do Tejo (Tágides) para que dêem inspiração. Dedicatória (estrofes 6 a 18) ao rei D. Sebastião. Narração (a partir da estrofe 19). Concílio dos deuses sobre a ousada decisão dos Portugueses: devem favorecê-los ou impedi-los? Júpiter é favorável; Baco, ferrenhamente contrário; também são a favor Marte e Vénus, esta vendo nos Portugueses a raça latina descendente de seu filho Eneias. Baco, derrotado na assembleia divina, põe em acção a

CONCÍLIO

sua hostilidade contra os Lusos, procurando impedir que che-

DOS DEUSES

guem à sua Índia, e para isto se valendo da gente africana, que lhes arma ciladas. CANTO II Chegada a Mombaça, onde continuam as hostilidades de Baco na traição dos Mouros: os navegadores seriam sacrificados se acedessem ao pérfido convite do rei para desembarcarem. Vénus, porém, de novo os salva, intercedendo junto a Júpiter. Retrato de Vénus (36) «Os crespos fios d'ouro se esparziam/pelo colo». Júpiter profetiza os gloriosos feitos lusíadas no Oriente (44 e seg.) e envia Mercúrio a Melinde, a fim de predispor os na-

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turais desta cidade a bem acolherem os Portugueses, o que se cumpre. O rei de Melinde pede ao Gama que lhe narre a história de Portugal. CANTO III Invocação à musa da eloquência e da epopeia, Calíope, e logo a narração do Gama «Entre a Zona que o Cancro senho reia». Geografia e história de Portugal. Destaque para a Batalha de Ourique, a guerra contra os Mouros, a Batalha do Salado e, sobretudo, o episódio de Inês de Castro (118-135) «Que depois de ser morta foi Rainha». MORTE DE INÊS DE

CASTRO

CANTO IV Prossegue a narração do Gama, com relevo para Nuno Álvares Pereira e as batalhas contra os Castelhanos, sobretudo a de Aljubarrota (28) «Deu sinal a trombeta Castelhana,/Horrendo, fero, ingente e temeroso», as conquistas na África, a Batalha de Toro, o reinado de D. Manuel e seu sonho do domínio das Índias, a partida para o Oriente e as famosas imprecações do velho do Restelo (94-104) «Ó glória de mandar! Ó vã cobiça», que em clímax inspirado encerram o canto. CANTO V Partida da expedição do Gama. A tromba marinha (19-23). Na ilha de Santa Helena; aventura de Fernão Veloso. O gigante Adamastor (38-60). Conclusão da narração do Gama.

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CANTO VI Festas aos Lusos em Melinde e partida da frota para Calecute. Novas insídias de Baco, junto a Neptuno, no fundo dos mares. Descrição do reino de Neptuno (8-14). Fernão Veloso narra o episódio dos Doze de Inglaterra (42-69) para distrair a monotonia a bordo. Tempestade provocada por Baco (70 e seg.), com nova intervenção de Vénus (85 e seg.), que amaina o furor dos ventos. Chegada a Calecute (92), acção de graças do Gama (93-94) e elogio da verdadeira glória, a dos que enfrentam «trabalhos graves e temores», «tempestades e ondas cruas». CANTO VII Chegada à Índia. Elogio de Portugal pelo poeta. Descrição da Índia. Encontro com o mouro Monçaide, que descreve a Índia (31-41). Portugueses recebidos pelo regente dos reinos, o Catual, o Samorim. Troca de gentilezas e informações. O poeta novamente invoca as musas (78 e seg.) para, inspirado, prosseguir no canto. CANTO VIII Paulo da Gama, irmão de Vasco, narra ao Catual a história dos heróis portugueses (Luso, Ulisses, Viriato, Sertório, D. Henrique,

VASCO DA

Afonso Henriques, Egas Moniz, etc.). Baco insiste na persegui-

GAMA E O

ção, instigando em sonhos os chefes dos nativos. Hostilida-

SAMORIM

des, retenção do Gama em terra, que só se liberta a poder de dinheiro (93-96), «o poder corruptor do vil metal» (96-99).

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CANTO IX Retenção de Álvaro e Diogo, portadores da «fazenda», mero pretexto para se deterem os descobridores europeus. Por fim, libertados, recolhem às naus que preparam a volta à pátria. Vénus resolve premiar os heróis (18 e seg.) com prazeres divinos: a Ilha dos Amores (51-87) e seu simbolismo (88-95). CANTO X Banquete de Tétis aos Portugueses, na ilha dos Amores. Canta uma ninfa profecias de Proteu. Nova invocação do poeta VÉNUS E GAMA NA ILHA DOS

AMORES

a Calíope (8-9), que permita condigna conclusão do poema. Relembrança das profecias da Ninfa; glórias futuras de Portugal no Oriente (10-73). Tétis mostra a Gama a máquina do Mundo, como a viu Ptolomeu (76-142), céus e terras, com destaque para a ilha de São Tomé (109-119). Partida da ilha dos Amores e regresso a Portugal. Desalento do poeta (145): «No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho/Destemperada, e a voz enrouquecida» por «cantar a gente surda e endurecida». Fala final a D. Sebastião e conclusão do poema. (elaborado por José Pedro Luft, historiador brasileiro)

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SOLDADO AO SERVIÇO DA COROA

CEILÃO - lutas em terras longínquas

Pouco depois de chegar a Goa, Luís de Camões vê-se envolvido em missões militares que definiam claramente o seu estatuto. Escudeiro, teria de lutar. É o que fará, não se sabe se com entusiasmo, se já com mal contido enfado ante as desgraças das pugnas militares que muito haverão de magoar a sua sensibilidade de poeta e de humanista, a ponto de descrever os horrores da guerra nos seus poemas.

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CONTRA O REI DE CHAMBÉ Na época em que Camões chega a Goa, D. Afonso de Noronha, vice-rei da Índia, prepara uma expedição militar naval contra o rei de Chambé, mais conhecido como o «rei da pimenta». Este senhor local não tinha, de facto, grande importância, quer pela dimensão do seu território, quer pelo seu poder económico ou militar. Representava, contudo, uma ameaça à livre circulação das mercadorias portuguesas, atacando os navios portugueses isolados sempre que tinha oportunidade e obrigando à escolta das naus carregadas de especiarias. D. Afonso de Noronha só precisava de um motivo, e ele surgiu no emaranhado de alianças que marcavam as relações diplomáticas dos Portugueses com os diversos reinos da costa do Malabar. O intrépido rei de Chambé atacou o reino de Pocá, que prestava vassalagem à coroa de el-rei D. João III. Deste modo estavam reunidas as condições para uma sortida militar. O vice-rei organizou então uma operação de grande envergadura. Reuniu uma armada de mais de uma centena de navios, de diversas tipologias – desde naus a cara velas até galeotas e galeões. Ao comando de tão formidável armada seguiam os mais destacados capitães de Goa. Luís Vaz embarcou na frota, pronto para o combate, mas sem qualquer cargo que o distinguisse. A frota sai de Goa em Novembro e dirige-se a sul, aportando a Cananor, onde Camões, metido no meio dos mais altos dignitários da comitiva, presta homenagem à sepultura de D. Henrique de Meneses, antigo vice-rei da

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Índia. De novo regressam ao mar, rumando até Cochim, onde são decididos os planos da batalha. E estes são terríveis, como se veio a verificar. Os Portugueses vão destruir pelo fogo e pela metralha as casas, as árvores, tudo o que vive, fazendo, de passagem, alguns prisioneiros e perdendo uns poucos de homens. A vitória é total. Regressados a Cochim, recebem mensageiros do rei de Chambé, que anuncia render-se incondicionalmente. A expedição durara entre dois a três meses, pelo que a armada terá regressado a Goa em Fevereiro de 1554.

COCHIM

Camões vai citar este episódio, no qual participou, sem que haja registo de qualquer acidente ou feito seu:

Foi logo necessário termos guerra: Uma ilha, que o Rei de Porcá tem,

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E que o Rei da Pimenta lhe tomara, Fomos tomar-lha e sucedeu-nos bem. Com uma grossa Armada, que juntara O Viso-Rei, de Goa nos partimos Com toda a gente de armas que se achara. E com pouco trabalho destruímos A gente no curvo arco exercitada: Com morte, com incêndios os punimos. [...]

COMBATES VÃOS A partir de Goa, os Portugueses tinham de vigiar as costas do Malabar, tanto a sul como a norte. É nessa missão que se vai empenhar, mal Camões regressa da bem sucedida missão contra o «rei da pimenta», Fernando de Meneses, filho do vice-rei. É ainda um jovem, mas tem já uma grande autoridade e convida o poeta a participar na expedição. Luís Vaz não hesita. A armada do Norte sai de Goa ainda no mês de Fevereiro, dirigindo-se ao golfo Pérsico. Trata-se de uma poderosa força de mais de 1000 homens e para cima de 30 embarcações. Camões terá sido especialmente considerado pelo comandante da frota, visto que lhe dedica um soneto enaltecendo as suas qualidades. Deve sentir-se fascinado por estas novas paragens, para ele em absoluto desconhecidas.

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Conhecerá as águas do golfo Pérsico, combatendo com gentios, derrotando corsários e apresando valioso saque, do qual Luís não verá uma moeda. Na refrega com as galés de Ali-Cheloby, importante corsário daquelas paragens, Camões assiste impotente ao assassinato dos inimigos sobreviventes, que são atirados ao mar sem misericórdia, episódio que o impressiona profundamente. Em Outubro de 1554 regressam a Goa. À chegada, mudara o vice-rei. D. Afonso de Noronha fora destituído por graves acusações de corrupção,

D. AFONSO DE

NORONHA

situação vulgar naquele tempo e naquelas paragens. Em seu lugar, ocupa o cargo D. Pedro de Mascarenhas que, encontrando-se já em idade avançada, aceita a contragosto a missão. Apesar disso, desde logo o fidalgo decide cortar a direito, impondo princípios de organização, racionalidade e austeridade em tudo estranhos à corrupção e ao aproveitamento dos bens públicos que grassava na capital da costa indiana. Recusando o tráfico de influências, a pressão dos jesuítas, já então uma poderosa força presente no terreno, D. Pedro de Mascarenhas vai imprimir uma forte, ainda que efémera, marca de probidade na administração de Goa.

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ENFADO SUBLIMADO NA ESCRITA Ao enfrentar a Companhia de Jesus, o vice-rei estava a meter-se em grandes trabalhos. Os inacianos dominavam postos importantes no controlo da administração pública, com incidência profunda nas actividades comerciais, de que retiravam generosas rendas, ao mesmo tempo que exerciam um poder eclesiástico cada vez maior. Enquanto teve saúde, o velho fidalgo não cedeu. D. Pedro de Mascarenhas vai, entre outras medidas, decidir-se pela perseguição do corsário Safar, outro aventureiro que afligia o tráfego naval português. Sob o comando de Manuel de Vasconcelos, Camões embarca em mais

HOMENS DE ARMAS

a bordo

de uma nau

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esta expedição, que se faz ao largo de Goa em Fevereiro de 1555, e dirige-se ao largo do Monte Feliz onde permanece durante seis longos meses. Não se sabe se chegou a ocorrer refrega, mas o certo é que a longa estada naquelas paragens, provocando mortes atrás de mortes entre os homens das naus lusitanas, vai encher Camões de enfado que, como lhe era hábito, seria vertido em poema:

Aqui me achei gastando uns tristes dias, Tristes, forçados, maus e solitários, De trabalho, dor e de ira cheios: Não tendo tão somente por contrários A vida, o sol ardente, as águas frias, Os ares grossos, férvidos e feios, Mas os meus pensamentos, que são meios Para enganar a própria natureza, Também vi contra mi: Trazendo-me à memória Alguma já passada e breve glória Que eu já no mundo vi, quando vivi; Por me dobrar dos males a aspreza, Por mostrar-me que havia No mundo muitas horas de alegria [...]. Depois de visitarem Mombaça, os navios chegam a Mascate, para proteger as naus que transitavam entre Ormuz e Goa. Aí chega de novo Luís de Camões, em Setembro de 1555. Estivera mais seis meses no mar, mas a sua longa tarefa de cinco anos parecia nunca mais chegar ao fim. Vinha doente e desanimado. Valia-lhe que, nestas

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viagens tão ociosas como deprimentes, entrecortadas por combates episódicos que ainda mais o deviam incomodar, ia escrevendo o seu poema épico, Os Lusíadas.

DE NOVO EM GOA, E FELIZ

Ao chegar a Goa, Camões é surpreendido por uma nova mudança na administração do território. D. Pedro de Mascarenhas não resistira às vicissitudes da idade e à exi gência do cargo. Morre e, no seu lugar, surge Francisco Barreto, que manterá com o poeta uma relação que até hoje é discutida pelos historiadores. Para uns, terá sido ele o autor da injusta decisão de «desterrar» Camões para Malaca. Para outros não se pode, de modo algum, falar em desterro, antes numa oportunidade de fazer uma «viagem de mercê» que possibilitasse ao barbudo vate amealhar uma soma significativa nas paragens do Extremo Oriente onde, nesta altura, era mais fácil fazer fortuna. Certo é que Francisco Barreto foi muito estimado pela sua acção enquanto governador e amplamente admirado pelas suas qualidades de homem. Pouco depois da sua chegada, nos festejos de São João, um foguete incendeia o galeão São Mateus, alastrando de imediato a seis galeões, quatro caravelas e duas galés, o que representava uma catástrofe. À cabeça do combate ao incêndio distinguiu-se a figura de Francisco Barreto, que chegou mes-

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mo a oferecer as suas jóias aos que mais se haviam destacado no ataque às chamas. A admiração que tal gesto provocou foi geral. Dele dirá Diogo do Couto: «liberal, camarada oficioso, e sempre propenso a perdoar as ofensas recebidas». Luís de Camões parece de novo feliz, talvez pela influência do novo governador. Nas festas organizadas em honra de Francisco Barreto, o poeta vai apresentar o auto Comédia de

Filodemo, a sua segunda obra dramática. Finalmente agora Camões consegue estar sossegado. Tem tempo para ir avançando na sua obra maior, que deveria então estar já muito adiantada na escrita. Teria uma vida sem qualquer espécie de luxos mas, ainda assim,

Rosto da

com o mínimo de confortos. Morada, comida e bebida. Al-

COMÉDIA

guns amigos. Conversas e galhofas. E a presença de uma

DE

FILODEMO

jovem que lhe alegrava as horas, uma escrava mestiça, provavelmente originária das costas de Moçambique, que surge referida com o nome de Bárbara.

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Diogo do Couto Cronista excepcional, testemunha privilegiada da presença portuguesa no Oriente, Diogo do Couto nasce 1542, em Lisboa, em pleno vigor do Renascimento cultural e literário. Tendo educação jesuítica, estuda Latim e Retórica no colégio de Santo Antão. Será moço de câmara na corte antes de partir para a Índia em 1559, seguindo a carreira das armas. Como soldado participará, ao longo de uma década, em pugnas diversas que se destinam a consolidar a presença portuguesa no subcontinente indiano. DIOGO DO

COUTO

Antes de regressar ao Oriente, retorna a Portugal por dois anos. No decurso da viagem que o conduz a Lisboa vai descobrir Camões em Moçambique, com dívidas e sem dinheiro para voltar. Diogo do Couto, entre outros, disponibiliza-se a ajudar o poeta, que deste modo poderá apresentar na capital a sua obra maior. Não é de estranhar este gesto, visto que Diogo do Couto era, também ele, vocacionado para as letras, além de ser um homem de acção. Não fora apenas Camões a viver as duas condições.

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De novo em Goa, é nomeado guarda-mor do arquivo da Torre do Tombo da Índia, sendo-lhe cometida a missão de continuar as Décadas de João de Barros. Estes relatos serão a sua principal obra, conjuntamente com o famoso Diálogo do Soldado Prático, acerada crítica à presença dos Portugueses na Ásia. Diogo do Couto sabia do que falava, pois assistira durante largos anos à corrupção, mau funcionamento e ganância que grassava entre muitos dos ocidentais que mandavam em Goa. Deste modo, e não perdoando a ninguém, fosse qual fosse a sua posição, vai denunciar as prepotências que os mais poderosos exercem sobre os gentios e mesmo sobre os portu gueses de baixa condição, os solda-

TRATADO

dos práticos (experientes), paus para toda a obra na inexorável

DE TODAS

marcha da máquina colonial. Esta denúncia dos desvios e das traições, das deslealdades e dos actos desonrosos é-nos transmitida em diálogos de extrema acuidade, travados entre um funcionário da Coroa, um fidalgo e um velho militar. Numa linguagem muito directa, quase crua, de grande sim-

AS COISAS SUCEDIDAS AO VALOROSO CAPITÃO

VASCO DA

GAMA

plicidade, Diogo do Couto traça um fresco de ampla envergadura, não hesitando em descer ao pormenor de carácter chistoso, à pequena história ilustrativa, ao episódio grotesco. Morre em Goa em 1616.

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UMA ESCRAVA QUE O CATIVA MULHER MAMELUCA

A grande miscigenação operada ao longo dos Des-

da costa

cobrimentos pelos Portugueses conhecia em Goa uma ale-

de África

gre permissividade. Mulheres de todas as cores e credos confluíam na localidade com usos, costumes e liberdades muito diferentes das europeias. Além do mais, preferiam os portugueses, a quem se entregavam de bom grado e com orgulho de se relacionarem com aqueles homens brancos. Não se tratava, em qualquer caso, de alguma forma de prostituição, mas simplesmente um estabelecimento de relações que, pelo seu carácter socialmente estranho aos valores que os portugueses conheciam, muito os confundiam e agradavam. Como esperar que o ainda jovem Luís Vaz, que sempre fora atraído pelos encantos femininos, pudesse deixar de se enredar nos doces braços de uma jovem

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que, por certo, lhe prodigalizaria carinhos de que há muito se desabituara? Não admira, pois, que Bárbara surja cantada num dos seus poemas:

Aquela cativa, que me tem cativo porque nela vivo, já não quer que viva. Eu nunca vi rosa em suaves molhos, que para meus olhos fosse mais fermosa. Nem no campo flores, nem no céu estrelas me parecem belas como os meus amores. Rosto singular, olhos sossegados, pretos e cansados, mas não de matar. Üa graça viva, que neles lhe mora, para ser senhora de quem é cativa... Pretos os cabelos, onde o povo vão perde opinião que os louros são belos.

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Pretidão de Amor, tão doce a figura, que a neve lhe jura que trocara a cor. Leda mansidão que o siso acompanha; bem parece estranha, mas bárbora não. Presença serena que a tormenta amansa; nela, enfim, descansa toda a minha pena. Esta é a cativa que me tem cativo. E pois nela vivo, é força que viva. Estava o poeta nestes enlevos, sereno e entregue a uma vida que por uma vez era tranquila, quando tem de partir na armada do Sul, rumo a Oriente. Era sua obrigação embarcar, como lhe fora ordenado. Afinal, não haviam ainda expirado os cinco anos a que se encontrava obrigado. De Goa, Camões ruma para leste. Levará muito tempo a voltar.

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À BEIRA DO FIM, SURGE A OBRA

CAMÕES. Gravura de A. Paulus, 1624

Luís Vaz de Camões parte para o Extremo Oriente em Abril de 1556. Talvez procure, desta vez, a fortuna que sempre lhe fugira. Não deve ter contudo muitas ilusões. A única aspiração que na verdade deve alimentar é o termo do seu longo poema épico, a obra a que consagrou o talento. Em breve quase lhe custaria a vida.

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A CAMINHO DE TERRAS EXÓTICAS Camões embarca na armada de D. João Pereira, capitão de Malaca. Com a frota seguiam alguns navios de comércio, entre eles o veleiro do mercador Francisco Martins, que tinha especial licença para fazer negócios no Extremo Oriente, o «trato da China». É possível, mas não certo, que o poeta tenha seguido no navio comercial. De Goa passam em escala por Cochim, velejam ao largo do Ceilão, até aportarem em Malaca, que era o ponto nevrálgico das rotas do Oriente distante. A fortaleza é palco de ardente actividade comercial, desenfreada ganância e de fortunas que se fazem com rapidez e sem pudor. Aqui quem manda são os capitães-mercadores e os comerciantes de ocasião, aqueles capazes de fazer o que, com propriedade, a língua portuguesa viria a designar como «negócios da China».

OS NEGÓCIOS DA CHINA: «baixela ricamente dourada, seda solta e tecida, ouro, almique, aljofre, cobre e porcelana»

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O navio de Francisco Martins terá estado igualmente em Ternate, ilha de especiarias e de comércio franco, que ostentava um vulcão, descrito por Camões:

Com força desusada Aquenta o fogo eterno Uma Ilha, nas partes do Oriente, De estranhos habitada, Aonde o duro Inverno Os campos reverdece alegremente. A Lusitana Gente Por armas sanguinosas Tem dela o senhorio. Cercada está de um rio De marítimas águas saudosas: Das ervas que aqui nascem, Os gados juntamente e os olhos pascem. Não podemos deixar de notar o olhar do homem que nunca deixará de ser curioso e de se espantar com as novas paragens do Mundo e, por outro lado, o mal disfarçado desencanto com que fala das «armas sanguinosas» da Lusitana Gente.

NAS ILHAS DAS ESPECIARIAS Em Ternate permanece até Fevereiro de 1557 Luís Vaz. A ilha é capitaneada por um homem brutal e cobiçoso,

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Duarte de Eça, que se porta com tal ferocidade que chega a prender o rei local e a sua família para lhes ficar com a fortuna. Essa ganância vai gerar uma revolta contra os portugueses, na qual Camões se envolve, sendo ferido.

Aqui minha ventura Quis que uma grande parte Da vida, que eu não tinha, se passasse; Para que a sepultura Nas mãos do fero Marte De sangue e de lembranças matizasse Na sua viagem pelas ilhas das especiarias, Camões estará igualmente na ilha de Banda, e também em Amboina. Especula-se com a ideia de que o poeta, nestas suas andanças pelas rotas comerciais do Extremo Oriente, tenha finalmente enriquecido. Não se sabe se é verdade, embora pareça certo que ganhou algum dinheiro, mais do que vira provavelmente em toda a sua vida. Talvez tivesse parte do lucro dos negócios do capitão do navio, o que lhe teria permitido juntar uma soma considerável, ainda que ínfima se comparada com os lucros de Francisco Martins. Estes «negócios da China» são bem descritos por Garcia da Orta: «E sabei que as mercadorias que dela vêm, são: leitos de prata e baixela ricamente dourada, seda solta e tecida, ouro, almique, aljofre, cobre e porcelana, que vale às vezes tanto, que é mais que prata duas vezes.» Se ganhou muito dinheiro, mais depressa o gastou, com a falta de habilidade que revelaria sempre para lidar com as coisas materiais. Pêro Moniz afirma, mesmo: «Nem

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a enchente de bens que lá granjeou o pôde livrar que em terra não gastasse o seu liberalmente.» Com anos de privações atrás de si, e os bolsos de repente cheios, não resiste Luís Vaz à tentação de, também ele, gastar com fartura, ostentar com volúpia. Quem o condenaria?

CHEGA A MACAU Sem que haja registos que possam explicar os motivos, Camões dirige-se a Macau. O território não era ainda possessão portuguesa, mas antes uma base dos piratas

MACAU

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dos mares da China. É possível que no acordo entre o vice-rei da Índia e Francisco Martins estivesse a imposição de eliminar a pirataria do território, que causava muito dano às práticas comerciais. De facto, a partir de Macau, os CAMÕES NA GRUTA DE

MACAU

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homens de Cham-Si-Lau (assim se chamava o cabecilha dos piratas) mantinham bloqueados os portos da China.


É Fernão Mendes Pinto quem relata ter a frota do mercador perseguido os piratas, que tiveram de abandonar o território apressadamente, tendo o seu chefe cometido suicídio. Como recompensa, o imperador da China oferece Macau de presente aos Portugueses. Ora isto ocorre em 1557, ano da chegada de Camões ao território, que deve ter participado na expedição punitiva que culmina com o recebimento de Macau para a coroa de el-rei. Em Macau Luís Vaz permanece até Outubro de 1559, gastando, segundo testemunhas, somas consideráveis de dinheiro e suscitando algumas invejas e alcovitices. Afirma-se mesmo que se tornou boémio, desregrado, inconveniente. Não se saberá se assim foi. Uma das figuras lendárias presentes na vida de Camões é Dinamene, quiçá chinesa, quiçá escrava, com quem terá mantido um romance e a quem dedicou alguns sonetos. Dinamene é exaltada mais pelo seu carácter e qualidades morais que pela beleza. Rodrigues Lapa, na obra Líricas, afirma que, para Camões, a asiática «foi das coisas mais suaves da sua vida, uma nota de amorosa mansidão na sua existência turbulenta». Certo é que em Macau descobre um lugar para se isolar e escrever. Talvez farto do convívio dos homens, talvez cansado dos mexericos, provavelmente tendo gasto todo o seu dinheiro, Camões encontra uma gruta que se tornará lendária, a gruta de Camões em Macau, que o poeta descreve num soneto:

Onde acharei lugar tão apartado E tão isento em tudo de ventura,

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Que, não digo eu de humana criatura, Mas nem de feras seja frequentado? Algum bosque medonho e carregado, Ou selva solitária, triste, e escura Sem fonte clara ou plácida verdura, Enfim, lugar conforme o meu cuidado? Porque ali, nas entranhas dos penedos, Em vida morto, sepultado em vida, Me queixe copiosa e livremente; Que, pois a minha vida é sem medida, Ali triste serei em dias ledos E dias tristes me farão contente. Na solidão da gruta, composta por duas rochas que sustentam uma outra que as recobre, avistando o mar e as ilhas de Taipa e de Lintão, o poeta medita no seu destino, o espírito de novo mergulhado em negras amarguras. Segundo a lenda, aqui vai trabalhar com afinco na finalização de Os Lusíadas.

UM TRISTE REGRESSO As atribulações com a justiça ou com os poderes fácticos, que foram uma constante ao longo da sua vida, não tinham ainda acabado para o poeta.

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Por razão indeterminada, o capitão de uma nau, que exerceria provisoriamente a justiça num território que ainda não passaria de um conjunto de abarracamentos, vai dar-lhe voz de prisão. Sob detenção, embarca numa Nau da Prata e da Seda (designação que se atribuía aos navios que destas mercadorias se carregavam) rumo à costa indiana, na viagem de retorno de 1559. Estamos em Outubro. Nos baixios da foz do rio Mecom (Mecong), no Camboja, território do actual Vietname, naufraga o navio em que segue Luís Vaz mais a sua preciosa carga: o manuscrito de Os Lusíadas. É deste modo que o próprio Camões descreve o terrível episódio:

Vês, passa por Comboja Mecom, rio Que Capitão das Águas se interpreta, Tantas recebe de outro só no estio, Que alaga os campos longos e inquieta; Tem as enchentes, quais o Nilo frio; A gente dele crê, como indiscreta, Que pena e glória têm depois da morte Os brutos animais de toda a sorte. Este receberá, plácido e brando No seu regaço o Canto, que molhado Vem do naufrágio triste e miserando Dos procelosos baixos escapado; Das fomes, dos perigos grandes, quando Será o injusto mando executado Naquele, cuja Lira sonorosa Será mais afamada que ditosa.

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NAUFRÁGIO e salvamento

Nadando com o vigor emprestado pela necessida de de salvar a vida e a obra, em águas bem mais calmas que as representações do episódio costumam retratar, Luís Vaz deve ter passado por horas de angústia. Conta a lenda que, para salvar o manuscrito do poema épico, Camões deixa Dinamene entregue ao seu des-

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tino. Terá morrido, para grande desgosto de Luís, que a chorará para sempre.

Ah! minha Dinamene! Assim deixaste Quem não deixara nunca de querer-te! Ah! Ninfa! Já não posso ver-te, Tão asinha esta vida desprezaste! Como já pera sempre te apartaste De quem tão longe estava de perder-te? Puderam estas ondas defender-te Que não visses quem tanto magoaste? Nem falar-te somente a dura Morte Me deixou, que tão cedo o negro manto Em teus olhos deitado consentiste! Oh mar! oh céu! oh minha escura sorte! Que pena sentirei que valha tanto, Que inda tenho por pouco o viver triste? Camões salva-se e ficará durante muito tempo nestas terras, sem se saber como consegue sobreviver, o que viu, como se sentiu. Muito menos se sabe de que modo retornou a Malaca, sendo possível que algum navio português de passagem tenha aceitado levá-lo a troco dos serviços de homem de armas que ainda era. Sem nada de seu a não ser um manuscrito que mais ninguém conhecia, Camões chega a Malaca em 1561, de onde segue para Goa, em Maio ou Junho. Não perdera a

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NA PRISÃO

sua condição de prisioneiro, e mal chega é imediatamente

em Goa

conduzido à cadeia do Tronco de Goa, ainda mais mise-

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rável que a de Lisboa. Bem pode Camões enviar poemas laudatórios a D. Constantino de Bragança, agora vice-rei. Nada o comove, e Camões é esquecido.

A memória do cárcere Camões conheceu a realidade dos condenados ao cárcere e dela retirou toda a amarga sensibilidade dos prisioneiros sem esperança: Em prisões baixas fui um tempo atado, Vergonhoso castigo dos meus erros; Inda agora arrojando levo os ferros, Que a morte, a meu pesar, tem já quebrado. Sacrifiquei a vida a meu cuidado, Que amor não quer cordeiros nem bezerros; Vi mágoas, vi misérias, vi desterros: Parece-me que estava assim ordenado. Contentei-me com pouco, conhecendo Que era o contentamento vergonhoso, Só por ver que cousa era o viver ledo. Mas, minha estrela, que eu já agora entendo, A morte cega, e o caso duvidoso Me fizeram de gostos haver medo.

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UM DESEJO DE PARTIR Contudo, as voltas do mundo irão mudar a favor do poeta. Morre D. Constantino de Bragança e, no seu lugar, assume a governação D. Francisco Coutinho, 2.º conde de Redondo, que conhecia bem o poeta dos tempos felizes da corte e apreciava o seu talento. Imediatamente o liberta e recebe afectuosamente, procurando inteirar-se da sua condição. Esta breve alegria é de novo toldada. No início de 1562 chega ao território Miguel Rodrigues Coutinho, o «Fios Secos» de alcunha, militar de grande valentia mas, igualmente, agiota. Seis anos antes emprestara algum dinheiro a Luís, aquando da partida deste para o Extremo Oriente. Pois agora queria-o de volta, ou então o poeta voltava à prisão do Tronco. E assim foi, com a condição de só de lá sair quando pagasse a dívida. Triste sina a de Camões, a quem nem o seu amigo D. Francisco Coutinho podia valer, dado o melindre do cargo que ocupava. Foram os amigos do poeta que convenceram o agiota dos motivos de Luís Vaz. Naufragara e portanto perdera tudo, estando impossibilitado de pagar. A contragosto, Miguel Coutinho cedeu. Camões pode agora descansar, na companhia dos amigos antigos, como João Lopes Leitão, Vasco de Ataíde ou Jorge de Moura, e dos novos amigos que vai fazendo, entre os quais Garcia da Orta, humanista, médico e botânico com quase 70 anos à época, de extrema importância no desenvolvimento das ciências naturais e no conhe cimento científico no século XVI. Deverá ter-lhe mostrado

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a sua obra Colóquio dos

Simples e das Drogas que muito deve ter impressiona do o culto poeta, que ela bora um poema para seu antefácio. Ao que parece, foi por influência de Camões que o vice-rei deu alvará de privilégio de impressão da obra ao velho sábio. Os anos passam. Luís sente-se a ficar velho. Está sobretudo farto da vida corrupta de Goa onde, a par da ostensiva demonstração da riqueza, todos parecem que rer tirar o maior partido de pequenos e grandes esquemas

Rosto da

de enriquecimento às custas dos outros, quando não do

1.ª edição de

próprio reino. Acima de tudo, o poeta que ele é deseja ver publicada a sua obra.

COLÓQUIO DOS SIMPLES E DAS DROGAS

Decide voltar à pátria. Acompanhá-lo-ia um jau, ou javanês, natural da ilha de Java. O seu nome era António, mas para sempre ficaria conhecido como Jau. O poeta haveria de catequizá-lo e libertá-lo, ficando a ele ligado por laços de grande amizade e trazendo-o consigo para Lisboa. Em 1567 Camões parte com o capitão Pedro Barreto Rolim para Moçambique, obtendo deste um empréstimo de 200 cruzados. Muito caro lhe saiu.

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A GLÓRIA DO POEMA. A HUMILDE MORTE Já em Moçambique, Pedro Barreto Rolim vai sujeitar Camões às piores humilhações, em nome da dívida brigam e o poeta é preso. Serão Diogo do Couto e outros amigos que entretanto chegaram a Moçambique que acudirão a Luís de Camões, fazendo uma colecta que reuniu o dinheiro necessário para pagar a dívida. Camões quase não tem que vestir, apresentando-se num estado miserável e famélico. Contudo, nesses dois anos tivera a energia suficiente para rever Os Lusíadas, estando agora a obra acabada. A sua energia criadora não se encontrava, porém, esgotada. Diogo do Couto refere que Camões tinha também um manuscrito para «um livro mui douto, de muita erudição, que intitulou Parnaso de Luís de Camões, porque continha muita poesia, filosofia e outras ciências». Infelizmente esta obra perdeu-se, tendo sido roubada. Em Novembro de 1569 Camões abandona Moçambique, a bordo da nau Santa Clara de D. António de Noronha. Chegam a Lisboa em Abril de 1570. Camões olhava agora com comoção a cidade onde a maior parte dos seus sonhos tinha nascido e morrido. Estivera afastado 17 anos. Era agora um desconhecido na capital do império. Sentia-se velho, era pobre, não conhecia influentes. Foi viver provavelmente para a Calçada de Santana, com a sua mãe, que estava em idade avançada e era igualmente pobre. O ambiente em Lisboa era igualmente deprimente. À pavorosa peste do ano anterior acresciam os graves problemas económicos da população criados pelo jovem rei e pelas suas medidas estouvadas. Este jovem, a quem

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Camões dedicará um fervor quase religioso e deslocado das reais qualidades do monarca, chama-se D. Sebastião.

Neste contexto, como conseguiu Luís Vaz de Camões obter permissão para a publicação do seu poema épico? É altamente provável que os conhecimentos antigos ain-

CAMÕES LÊ OS LUSÍADAS a D. Sebastião

da pudessem ter dado uma preciosa ajuda. Não é de excluir que D. Francisca de Aragão, que sempre apreciara Camões e o seu talento e era amiga de Pedro de Alcáçova Carneiro, escrivão da puridade da confiança de D. Sebastião, tivesse intercedido. Mais provável é que tenha sido a ajuda do conde do Vimioso a desbloquear a publicação. Impante de orgulho, o jovem monarca deve ter sido convencido com argumentos que lhe agradariam. A sua vaidade seria certamente agraciada com a descrição da gesta dos

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Descobrimentos, da glória dos seus antepassados, na qual D. Sebastião se revia e desejava continuar, com os desastrosos resultados que a História demonstra. Após obtida licença régia, foi o poema épico analisado pela Inquisição, na pessoa do censor, frei Bartolomeu Ferreira, o qual, embora reprovando a utilização de «Deuses dos gentios» na narrativa, aceita que se tratava de um meio de «ornar o estilo poético». Foi por isso o livro considerado «digno de se imprimir». Com o alvará, D. Sebastião concede uma tença anual de 15 000 réis, «em respeito aos serviços prestados na Índia e pela suficiência que mostrou no livro sobre as coisas de tal lugar». Inicialmente por um período de três anos, esta renda será renovada, em 1578, até à morte do poeta e depois transmitida para a sua mãe. Era muito pouco dinheiro àquela época (aproximadamente 40 réis por dia, quando um carpinteiro ganhava 160 réis diários) e, ainda por cima, pago sempre com enormes D. SEBASTIÃO

atrasos. É desta tença que Luís Vaz de Camões vive até ao fim dos seus dias. Fica também na lenda que o poeta sobreviveria graças às esmolas que o seu criado Jau recolhia nas ruas.

144


No entanto, seu sonho fora cumprido, com o título

Os Lusíadas, de Luís de Camões. Seguidamente escrevia na capa: «Com privilégio real. Impressos em Lisboa, com licença da santa Inquisição, e do Ordinário: em casa de António Gõçalvez, Impressor, 1572.» Os primeiros 200 exemplares estão cheios de erros tipográficos e de cortes da censura, que só serão repostos na 4.ª edição de 1608.

Rosto da 1.ª edição de OS LUSÍADAS

145


A obra foi recebida com extremo agrado pelos mais cultos espíritos de Lisboa. Em breve a sua fama chega a diversas partes da Europa, sendo elogiada por Tasso, em Itália, e por Ronsard, em Espanha. Secretamente, talvez Camões tenha desejado que D. Maria o tivesse lido. A infanta morre em 1577. Em 1578 dá-se o desastre de Alcácer Quibir. Camões deve ter ficado destroçado com mais este desgosto, que lhe leva o jovem de quem esperava o renascer da glória nacional, o monarca Desejado. A sua saúde deteriora-se. Não resiste à peste de 1579. Febril, escreveria a D. Francisco de Noronha: «Enfim

CAMÕES acompanhado por sua mãe e o fiel Jau

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acabarei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha Pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela.»

Foge-me, pouco a pouco, a curta vida, Se por acaso é verdade que inda vivo; [...] Choro pelo passado; e, enquanto falo, Se me passam os dias passo a passo. Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena. E da peste morre no ano seguinte. É enterrado na colina de Santana, no cemitério que aí existia junto ao convento. O seu corpo deve ter sido largado à terra numa leva de outras vítimas da peste. Os seus ossos perdem-se. Assim o tratou a Pátria. Nesse mesmo ano, Portugal perde a independência.

TÚMULO DE CAMÕES NOS JERÓNIMOS. É duvidoso que contenha os ossos do poeta

147


Erros meus, má fortuna, amor ardente em minha perdição se conjuraram; os erros e a fortuna sobejaram, que para mim bastava amor somente. Tudo passei; mas tenho tão presente a grande dor das cousas que passaram, que as magoadas iras me ensinaram a não querer já nunca ser contente. Errei todo o discurso de meus anos; dei causa que a Fortuna castigasse as minhas mal fundadas esperanças. De amor não vi senão breves enganos... oh! quem tanto pudesse, que fartasse este meu duro Génio de vinganças!

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CRONOLOGIA

LUÍS DE CAMÕES de José Malhoa

149


CRONOLOGIA c. 1546 Talvez devido aos seus amores com a infanta D. Maria, Camões sai de Lisboa e parte para uma espécie de exílio, longe da capital.

c. 1524/25 Nasce Camões em Lisboa, ou Coimbra.

c. 1542 Provável chegada do jovem Camões a Lisboa, depois de concluir os seus estudos. Graças à sua erudição e talento consegue entrar nos círculos cultos da corte, nos salões de D. Catarina e D. Maria.

c. 1544

c. 1549

Na igreja das Chagas, na Sexta-

Camões volta a Lisboa, onde é

-Feira Santa, apaixona-se Camões

«aconselhado» a dar provas de valor

por Natércia, anagrama de Caterina

militar nas praças de África. Parte

(Catarina), de quem é obrigado

para Ceuta onde, numa escaramuça,

a afastar-se devido à posição social

perde um olho. Camões fica à beira

da jovem.

da morte. Acaba por curar-se, mas

150


CRONOLOGIA o ferimento provoca o retorno

É imediatamente preso na cadeia do

antecipado à capital.

Tronco, onde permanece nove meses, ao fim dos quais recebe uma carta de perdão do rei com a obrigação de pagamento de 4000 réis e de servir na Índia por três anos.

1553 No início de Março Camões sai da prisão e dentro de duas semanas parte para a Índia, na armada de Fernão Álvares Cabral. No final de Setembro chega a Goa, após seis duros meses no mar.

c. 1550 Já em Lisboa, o poeta alista-se com o intuito de partir para a Índia, mas tal não se concretiza. Volta a aproximar-se da corte. O projecto de Os Lusíadas já pairaria no seu espírito.

1552 A 16 de Junho, quinta-feira, durante a procissão do Corpo de Deus,

Durante dois meses recupera forças

Camões fere Gonçalo Borges, criado

em casa de primos, entre eles João

de arreios do rei, ao proteger dois

de Camões. Em Novembro sai de

embuçados, talvez seus amigos.

Goa na frota que o vice-rei D. Afonso

151


CRONOLOGIA

de Noronha organiza para combater

que dura mais de seis meses.

o rei de Chambé.

De volta a Goa, em Setembro, Camões vive um tempo de descanso.

1554

Avança na escrita de Os Lusíadas,

Por volta de Fevereiro a armada está

que o tem acompanhado em todas

de volta, vitoriosa. Logo de seguida

estas aventuras. Bárbara é a cativa

Camões é convidado a participar na

que o tem cativo.

expedição organizada por Fernando de Meneses ao golfo Pérsico. Os

1556

combates sucedem-se e em Outubro

De novo parte, rumo ao Oriente,

chegam, de novo vitoriosos, a Goa.

na armada de D. João Pereira.

1555

1557

Em Fevereiro, sob o comando

Em Ternate, numa escaramuça con-

de Manuel de Vasconcelos, segue

tra os portugueses, Camões é ferido.

na expedição contra o corsário Safar,

Segue viagem para o Oriente, e nes-

152


CRONOLOGIA tas andanças talvez tenha feito

o navio naufraga. Camões consegue

fortuna, que depressa delapidaria

salvar-se com o seu precioso

em Macau, onde chega ainda nesse

manuscrito.

ano. Aí terá encontrado numa gruta o lugar sossegado onde continuaria a sua obra épica. Encontra também um novo amor, Dinamene.

1561 Sem se saber como, chega a Malaca,

1559

de onde segue para Goa em Maio

Em Outubro, por motivos incertos, o

ou Junho. Mal chega, é preso

capitão de uma nau dá-lhe voz de

na cadeia do Tronco de Goa pois,

prisão, pelo que segue, sob custódia,

apesar do tempo decorrido, tem

para Goa. Ao largo do rio Mecong,

ainda o estatuto de prisioneiro.

153


CRONOLOGIA Recebe perdão quando D. Francisco

1567

Coutinho, seu amigo dos tempos da

Cansado da vida em Goa, quer

corte em Lisboa, é nomeado vice-rei.

voltar a Lisboa. Parte para Moçambique com o capitão Pedro Barreto Rolim, que lhe concede um empréstimo de 200 cruzados.

1569 Em Moçambique, Pedro Barreto Rolim sujeita Camões às piores humilhações em nome da dívida. Camões é preso. Diogo do Couto e outros amigos fazem uma colecta e conseguem pagar a famigerada dívida e a viagem de regresso. O poeta parte de Moçambique em Novembro, na nau de D. António de Noronha.

1562 A liberdade foi de curta duração.

1570

No início do ano chega a Goa Miguel

Camões chega a Lisboa em Abril.

Rodrigues Coutinho, que exige o

Estivera afastado 17 anos. Provavel-

pagamento de uma dívida com seis

mente terá ido viver com a sua mãe

anos. Camões ficará preso até os

na Calçada de Santana. Com cerca

seus amigos intercederem por si

de 45 anos, Camões era pobre e es-

e a dívida ser perdoada. Seguem-se

tava velho, mas ainda tinha alguns

tempos mais tranquilos, de convívio

amigos. Será por sua influência que

e trabalho.

se viria a publicar o poema épico.

154


CRONOLOGIA 1595 Publicação das Rimas (Rythmas).

1587 Edição dos autos Comédia de El-Rei Seleuco, do Comédia de Filodemo e Comédia de Anfitriões.

1572 Os Lusíadas são finalmente impressos e recebidos com extremo agrado pela elite cultural de Lisboa. Em breve a sua fama se espalharia por toda a Europa. Com o alvará de impressão, Camões passa a receber uma tença anual de 15 000 réis.

1580 Camões não resiste à peste e dela morre, possivelmente a 10 de Junho. O seu corpo é enterrado no cemitério situado na colina de Santana.

155


BIBLIOGRAFIA BELL, Aubrey F. G., Luís de Camões, trad. do inglês por A. A. Dória, Porto, 1936 BRAGA, Teófilo, Camões. A Obra Lírica e Épica, Porto, 1911 CARVALHO, Joaquim de, «Estudos sobre as leituras filosóficas de Camões», in Lusitânia, 1952 CASTRO, Armando, Camões e a Sociedade do Seu Tempo, Lisboa, 1980 CIDADE, Hernâni, Luís de Camões. I – O Lírico, Lisboa, 1936, Luís de Camões. II – O Épico, Lisboa, 1950, e Luís de Camões. III – Os Autos e o Teatro do Seu Tempo – As Cartas e Seu Conteúdo Biográfico, Lisboa, 1956 COELHO, Jacinto do Prado, «Camões: um lírico do transcendente», in A Letra e o Leitor, Lisboa, 1969 DIAS, J. S. da Silva, Camões no Portugal de Quinhentos, Lisboa, 1981 DOMINGUES, Mário, Camões. A Sua Vida e a Sua Época, Lisboa, 2.ª edição, 1980 GONÇALVES, F. Rebelo, A Fala do Velho do Restelo – Aspectos Clássicos Deste Episódio Camoniano, Lisboa, 1933 LINS, Álvaro, Ensaio sobre Camões e a Epopeia como Romance Histórico, Porto, 1972 MACEDO, J. Borges de, «Os Lusíadas» e a História, Lisboa, 1979 MATOS, Maria Vitalina Leal de, Introdução à Poesia de Camões, Lisboa, 1980; O Canto na Poesia

156


BIBLIOGRAFIA Épica e Lírica de Camões – Estudo da Isotopia Enunciativa, Paris, 1981 RIBEIRO, Aquilino, Luís de Camões, Fabuloso, Verdadeiro, Bertrand, Lisboa, 1974 RODRIGUES, José Maria, Fontes d' «Os Lusíadas», Lisboa, 1913 SARAIVA, António José, Luís de Camões, Lisboa, 1997 SÉRGIO, António, «Questão Prévia de Um Ignorante aos Prefaciadores da Lírica de Camões», in Ensaios, tomo IV, Lisboa, 1934 STORCK, Wilhelm, Vida e Obra de Luís de Camões, trad. anotada por Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Lisboa, 1897

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ÍNDICE

LUÍS VAZ DE CAMÕES 7

A GLÓRIA

33 UMA RESPOSTA SEMPRE PRONTA

DA LÍNGUA PORTUGUESA

35 A MISTERIOSA NATÉRCIA

8 AS ORIGENS

37 Perdido de amores

10 UMA LINHAGEM DE NOBRES

38 O FIM DE UMA ILUSÃO

12 O humanismo renascentista

40 Amor ardente

em Portugal

PAIXÃO E DESGRAÇA

14 FACTOS OBSCUROS

41

17 UM TIO PODEROSO

42 A INFANTA D. MARIA

19 ESTUDANTE EM COIMBRA

44 UM ESPÍRITO RARO

22 Petrarca e Camões

47 PROXIMIDADE

23 A CAMINHO DE LISBOA

50 UM AMOR INTERDITO 52 Um último encontro

25

UMA MOCIDADE

53 BANIDO

APAIXONADA

55 UMA LONGA ESPERA

26 A EMBRIAGUEZ DA CAPITAL

58 Saudades

28 UMA MUDANÇA DECISIVA 30 Sá de Miranda 31 O ESPLENDOR DA CORTE

158

59

O SOLDADO QUE PERDE UM OLHO


ÍNDICE 60 DE VOLTA A LISBOA

113

SOLDADO AO SERVIÇO DA COROA

62 «ONDE VÁS, LUÍS?» 64 EM CEUTA

114 CONTRA O REI DE CHAMBÉ

67 A PERDA DE UM OLHO

116 COMBATES VÃOS

69 A importância do olhar

118 ENFADO SUBLIMADO NA ESCRITA

70 REGRESSO

120 DE NOVO EM GOA, E FELIZ

A UMA LISBOA DIFERENTE 72 D. João III

122 Diogo do Couto 124 UMA ESCRAVA QUE O CATIVA

75 UMA SOCIEDADE EM MUDANÇA 77 Damião de Góis

127

À BEIRA DO FIM, SURGE A OBRA

79

UM REGRESSO TRÁGICO

128 A CAMINHO DE TERRAS EXÓTICAS

80 DESFIGURADO

129 NAS ILHAS DAS ESPECIARIAS

82 UM ESFORÇO INÚTIL

131 CHEGA A MACAU

84 NOS SALÕES DE D. MARIA

134 UM TRISTE REGRESSO

86 TRAGÉDIA

139 A memória do cárcere

88 PRISÃO

140 UM DESEJO DE PARTIR

90 O PREÇO DA LIBERDADE

142 A GLÓRIA DO POEMA. A HUMILDE MORTE

93

NO CAMINHO DA ÍNDIA

94 PARTIDA

149 CRONOLOGIA

96 A BORDO 98 O VELHO DO RESTELO

156 BIBLIOGRAFIA

101 O ADAMASTOR 104 O FIM DA JORNADA 106 CAMÕES INSTALA-SE EM GOA 109 Resumo sinóptico de Os Lusíadas

159



GRANDES PROTAGONISTAS

DA HISTÓRIA DE PORTUGAL

Com um poema épico, um homem vai selar a identidade nacional. Luís Vaz de Camões, o príncipe das letras portuguesas, incendiou com a sua escrita a alma lusitana. E tem confundida a data da sua morte com o Dia de Portugal. Tanto mais é de espantar esta identificação entre a nação e o poeta quanto, em vida, a fortuna lhe foi madrasta e todas as portas se lhe iam fechando. É verdade que por «Erros meus, má fortuna, amor ardente», tudo em sua perdição se conjurou. Mas também não é menos certo que os contemporâneos do escritor nunca compreenderam, e muito menos recompensaram, o seu talento. Era brigão, mulherengo, arrebatado e emotivo. Por isso criou inimigos, gerou animosidades, cavou incompreensões. Mas consigo carregava igualmente a funda erudição, o génio criador, o sentido de um desígnio: nobilitar Portugal e a sua gesta. Morreu pobre, cansado, precocemente envelhecido. Só o tempo lhe dará o lugar que ocupa nas letras e no imaginário de uma nação: o lugar cimeiro.


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