O D'us de Espinoza, de Manuel Barreiro

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O D’us de

Espinoza Poesia

Poesia Manuel Barreiro 2


Ficha Técnica

Título

O D’us de Espinoza Autor

Manuel Barreiro Género

Poesia Conceção da capa, arranjo e formatação de texto

José Sepúlveda

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Publicado em E-book ISSUU Manuel Barreiro

Aos meus dedicados avรณs, pelo seu zelo e cuidado para comigo

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A mente humana ĂŠ parte do intelecto infinito de Deus Baruk Espinoza

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Manuel Barreiro De seu nome, Manuel Dias Barreiro, nasceu na freguesia de Ferral (Viveiro), Montalegre a 6 de Novembro de 1962. Estudou em Braga e depois em Coimbra, tendo-se formado em Direito. Exerce como Advogado. Vive no Gerês, num lugar encantador, que o ajuda a lembrar o céu. Tem escritos diversos livros: . Esta Palavra Montanha . Caminho das Urzes . Rosmaninho . Quando metade da Noite é Serra . Planalto I . Planalto II Todos estes livros são de poesia. Foi fundador da CALIDUM, Clube de Autores minhoto-galaicos.

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Dedica-se também à música, exprimindo essa sua tendência tocando Bagpipe (Gaita de Foles) numa Associação de Gaiteiros. O seu gosto pelas leitura e conhecimento dos povos, sobretudo de tudo que se relaciona com Israel, de cuja religião é professo seguidor, leva a que se saiba exprimir em oito línguas diferentes. Dedica-se também ao estudo da Cultura Judaica em Portugal. Participou na elaboração dum estudo da presença Celta e dos Buri, na região do Gerês e Montalegre. É um ativista da proteção do Gerês e do seu Parque Natural e vem lutando pela preservação da flora autóctone em toda a Serra. Foi o iniciador do movimento contra a plantação de eucaliptos e de mimosas em toda a envolvente do Parque Natural. Gosta de parafrasear Espinoza, um filósofo que muito aprecia: D’us é Natureza. Gosta do apoio que lhe é dado pela sua companheira de vida, Fátima Teixeira, transmontana como ele e uma fonte de inspiração.

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Duas palavras Quando conheci Manuel Barreiro, lá vinha ele de Bagpipe ao ombro para dar um pouco de vida na apresentação do primeiro livro duma autora bracarense, na qual participei e cuja autora apoiei no seu início literário. Não tardou a que o convidasse a participar numa das sessões poéticas, que designamos por Mar à Tona em Poesia e que era promovida pelo Grupo de Poetas Poveiros e Amigos da Póvoa, no Diana Bar, Biblioteca da Praia, na Póvoa de Varzim. A partir daí, a nossa amizade foi-se alicerçando e a curiosidade pelos seus escritos também. Recordo bem quando, entusiasmado, queria criar um grupo de tertúlia poética em Braga a cujo convite para participar tive que declinar pela distância. Não desistiu e veio a formar o CALIDUM, cuja atividade dinamiza e acompanha com carinho. Defensor acérrimo do Parque nacional do Gerês, tem vindo a lutar para que o mesmo seja preservado, lutando pela proibição à cultura de mimosas e eucaliptos em todo o seu espaço.

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Gosta de escrever poesia livre, quando vagueia pelos recantos lindos da serra, brindando-nos depois com textos poéticos profundos e de grande beleza. A sua filosofia muito peculiar surpreende-nos e não nos deixa indiferentes ao trabalho que ao longo dos anos vem desenvolvendo no panorama literário. É vê-lo a frequentar saraus e tertúlias, exibindo sempre com a sua bagpipe, que gosta de partilhar com os amigos e conhecidos. É por isso que vos convido a ler e a conhecer o autor que, sendo diferente, não desiste de alcançar o lugar a que tem direito dentro do ambiente poético onde, por norma, se enquadram a maioria dos seus escritos. José Sepúlveda

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1 Plantem flores, Muitas flores, Se o mundo acabar Deixamo-lo às flores. Como o teu deus Que amava o sorriso das crianças O deixou às crianças Antes de o matarem. Como o céu está lindo. Olha para o firmamento... É lá que nós estamos. Nós e a noite E esta brisa do vento. Será que ele nos vê... Emite a mesma sensação do pensamento. De certeza que foi de lá que viemos. Apetece tanto voltar para lá. Há viagens que nunca devíamos ter feito. Ficam-nos no peito. E depois ficamos a olhar para o céu Deste jeito. Acordamos para receber a nossa parte De vida e de tempo. E só sabemos que estamos vivos 11


Porque acordámos. Só há firmamento Mesmo até para além do firmamento. Nem que sonhes Que de lá sais Os teus sonhos continuam lá dentro. Fazem-me lembrar Os dias de chuva Onde cada gota que cai É um pensamento que se vai. Água com que se lava a alma... Todos temos uma asa Que nos leva de regresso a casa. Se eu quiser deixar de sentir Como hei-de sentir quando quiser sentir... O medo quando se cresce É deixar de ser menino, Perder o sorriso de que o teu deus tanto gostava Antes de o matarem. Planta flores, Muitas flores, Se o mundo acabar Havemos de vê-las lá de cima. Que desespero tão grande tenho, De ter em mim, O não te poder ter para sempre.

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2 Um dos maiores sonhos é sonhar. Se quando penso em ti Pudesses sentir Os meus pensamentos A beijarem-te os lábios,. E pudesses sentir-me junto de ti. Compreenderias porque te tenho dito Que há dias Em que as palavras chovem Como a chuva E se escreve sobre a chuva. Mas não é sobre a chuva que se está a escrever... E noutros, florescem como as flores E se dizem coisas sobre as flores. E também não é sobre flores Que se está a escrever. Às vezes há dias sem palavras. E não há nada com que se possa dizer O que se quer dizer. E era sobre o que se quer dizer Que se gostava de dizer. Sabem lá as pessoas No que está a pensar Quem está a pensar. 13


Ai se se pudesse ver a alma, O pensamento... Se se pudesse ver quem gosta de nós Assim como conseguimos ver de quem gostamos. O que é preciso é sonhar, Porque uma parte de mim Não precisa de andar nem de estradas Para ir até ti. Vou em pensamento, Em saudade... Também é ir.

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3 Nunca hás de saber Porque falo com a lua. Nunca o hás-de saber... Ela nunca to dirá. Eu também não. Para não estragar a magia do luar. Porque há coisas que se dizem Quando se não dizem. E quero que saibas Que te amo sem to dizer. Uma palavra é mais linda, às vezes, quando se parece Com o silêncio, E se diz não se dizendo, Como um olhar silencioso que diz tudo. São as palavras que não nos dizem, Mas que gostamos de ouvir. Hei-de pôr nome de pessoas às coisas, Já pus tantos nomes de coisas Às pessoas... A ti, Continuarei a chamar--te E a tratar-te Pelo nome que te inventei. 15


Há coisas que basta um homem para as criar, Como D'us foi suficiente, sem mais ninguém, Para criar o mundo. Há coisas e palavras Que só um homem Pode dar a uma mulher. À moda antiga. Quando se amava e amava para toda a vida. Mesmo quando a vida não nos amava, Mas se amava a vida. Pobres e rústicos, Filhos de Adão e Eva. E toda a gente tinha um amor, o destino a cumprir. Foi Adão que criou o Amor... Ao pedir que Eva fosse criada, E Eva o aceitou. Valentes, como dois adolescentes Que queriam criar um novo mundo, Mas o mundo já existia. D'us sem o saber Moldou um ser sozinho. Tudo estava bem quando era só barro. O problema surgiu Quando do barro se fez carne e alma, Igual a nós, E faltou alguém a quem amar. D'us só criou o barro, o homem, a mulher e a alma. A carne, a carne meu amor, 16


Foi quem criou o amor. Coisas que vêm na Bíblia, Que D'us não quer que se saiba, E que por lapso num livro escreveu, Mas que a Lua que todas as noites fala comigo E com Ele, Em segredo Me contou.

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4 Como era feliz Quando acreditava Que o mar Era um mar. E que a praia se deitava Sobre a areia do areal. Quando na verdade É a areia do areal Que se deita sobre a praia. Como era feliz ser feliz. E tinha fé em tudo o que me contavam Porque ainda não tinha perdido a fé Naquilo que não me contavam. E era um sábio Daquilo que sabia. Sabes, Ainda continuo a acreditar Naquela história de amor Que a janela do meu quarto Cada ano, dia a dia, mês a mês Me contava... A paixão das flores do prado que eu via Da janela Pelo sol 18


Que nunca me via. E morriam nos seus braços. Uma a uma, Como se tivessem todas o direito E o dever De assim morrerem. E certos abraços serem assim Uma coisa parecida com a Eternidade. Até tenho falado com a janela do meu quarto Sobre isso E sobre ti. É por isso que as flores Só nascem com sorriso E alma... como quando te conheci. É para não terem juízo. Olha...apaixonarem-se pelo sol... Que loucura... Para o que lhes havia de dar. Só elas e eu Que me apaixonei por ti, Sol da minha vida, E quero também morrer nos teus braços. E ainda não sei Se é por eu as ver todos os dias Apaixonarem-se pelo sol, Ou se são elas Que me vêem à janela a amar-te também assim Ou se as coisas na natureza Infelizmente ou feliz 19


Como a gota de orvalho de todos os dias Que cai nas folhas delas e em mim E depois se evapora, Como se dar vida tivesse que ser um gesto Que se dá todos os dias em segredo, Têm que ser mesmo assim... Às vezes ama-se ...ama-se profundamente, E fica-se à espera que nos respondam Mais de uma vida, À espera que nos digam o mesmo. E isso faz-nos morrer depressa, Como se vivêssemos com tanta pressa. E a alma chega até a fugir de nós Deixando o nosso corpo para trás. E vive-se e volta-se a viver as vezes Que forem precisas, Morre-se E não nos deixam morrer. Sente-se uma fogueirinha no coração, Começa-se tudo de novo, Vai-se para onde nunca estive Para donde vim. E no início e no fim Lá estás tu Como as flores do prado Que vejo da minha janela E fazem todos os anos o mesmo. Se isso não é amor... É o sol, as flores, o prado 20


E tu. Quantas vezes sinto Que alguém me enganou Dando-me a vida errada, A que era minha, era outra Diferente da que me calhou. A quem seria que a entregou... Será que é feliz... Só sei Que se não fosse a saudade Nenhum amor seria eterno. Quem ama muito Chega até a viver menos tempo Do que o tempo que ama. Como a luz está para a chama da candeia E se espalha no Universo e vive Infinitamente, Mesmo depois de o pavio se queimar. E vai amar pelo Infinito, infinitamente, Porque só o amor, a luz e o Infinito São infinitos. Quantas vezes a chuva chama por mim, Para eu ir à rua, E a luz da lua e do sol, Só para me verem e abraçarem. Gestos que cada vez as pessoas menos me dão, É aí que sinto o amor que as coisas têm por mim. Como se o meu destino Fosse voltar à natureza, 21


Ao corpo de onde vim. Porque a nossa verdadeira mãe, A que verdadeiramente nos pare, É a Natureza. E até no dia do meu aniversário Fico com a sensação de ainda não ter nascido, Porque desejo voltar a fazer anos Para o ano que vem. É que só se nasce enquanto ainda não se nasceu. Depois de nascer Nunca mais se nasce. Quem me dera festejar o aniversário anterior Ao ano do dia em que nasci, E o outro, e os outros anteriores a esse... No tempo em que eu era um anjo E festejavam o meu aniversário no Céu. E me davam como prenda Prendas que um anjo nunca consegue encontrar pela Terra. E todos me desejavam por lá Que nascesse o mais tarde possível por cá. E nasce-se triste e a chorar E aos berros, Como consta que nasci, E ninguém sabe explicar, Dizem uma coisa qualquer A que chamam medicina, Ciência de que ninguém necessita por lá. Só eu sei: 22


Não me deixaram trazer para esta vida Os brinquedos Que tinha recebido nos outros aniversários No Céu. Sei lá quantos aniversários ainda me faltam Para com eles e os anjos poder voltar a brincar. É Novembro, Ficou a janela, E o prado, Coisas que o tempo teima em não querer, As flores e o sol partiram... Como se nunca tivessem existido. Ter saudade no dia de anos em Novembro É porque valeu a pena viver. Sinceramente, com o tempo, só se festeja, o dia em que se amou.

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5 Só são lindas as lágrimas de amor... As que toda a gente devia chorar. Os dias horríveis Também têm um fim. Aprendem com os felizes. Já não tenho saudade. Já não tenho saudades Das andorinhas, Nem das folhas de Outono caídas no chão. Só me lembro de ti Que vias as andorinhas chegar E as folhas de Outono cair. E nunca me dizias que mais um ano passara. Como se o tempo e o mundo fossem em ti. És a minha saudade... O longe que se olha, Ao olhar o longe, A dor que se sente, Quando se sente a dor. A ausência, O vazio, O não ter nada. A falta que se sente de alguém Quando se sente a falta de alguém. 24


O que não se consegue explicar E tem explicação. E pergunto ao vento que embala Se as almas boas Quando vão para o Paraíso Sobem com a mesma ternura Das folhas de Outono Que caem das árvores. Se tudo isso É como aquilo que sinto por ti... Só são mesmo lindas As lágrimas de amor, As minhas, As que não consigo ver, As tuas, As que me deixaste ver. Às vezes peço tanto, tanto mesmo, Ao vento Que me leve as saudades de ti, Mas não leva... E olho à minha volta E pergunto: Será que o vento és tu...

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6 A solidão que há Nas palavras que não se dizem. A coisa mais vazia que há É uma alma que não se enche… Somos o leito de um rio seco, Um vento gelado, Uma noite escura Que nunca consegue ver o dia. E somos tantos lado a lado, Mas cada um, um só, Uma corda, Um nó. A falta de dó. Que não se desata. E aguardamos silenciosos, Sentados nos degraus da vida, Por uma palavra. Mais do que nós, falam os pássaros, As árvores umas com as outras… E nesse banco de jardim Sentimos a ânsia de água

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Que têm as ervas que estiolam de calor ao nosso lado. Elas que como nós, Vieram apenas até ao jardim para viver. E morre-se assim… O ano segue lacónico, silencioso, E no inverno sentimos o frio, o abandono Das mesmas ervas que enregelam. Pior, é quando chega a Primavera… E não temos com quem falar. Somos nós quem cria o Outono… E caímos desiludidos Como as folhas E morrem no chão com elas Os sentimentos que já não temos. Depois vem o Natal, Nesta letargia, nesta calma… E não há um abraço sequer Que nos chegue à alma… E apetece-nos entrar pelo Presépio adentro E falar com todos os bonecos. É pena que a mitologia não seja realidade. Apetece-me fechar os olhos Deixar de ver E acreditar apenas naquilo que vejo. Fico a pensar… Quanto o Universo deve 27


À beleza que há na Terra. Deve ser o único sítio onde se ama. Eu era um deus Até me apaixonar. Amar, seja qual for a distância, É o ponto mais chegado entre dois seres.

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7 Acordar…é um milagre tamanho. É pegar numa escada E ir colher os frutos da vida Que a vida semeia. Só é nosso o nosso existir. Nada se cria, nada se perde, Tudo se transforma… Sabe-se lá se com a vida se passa assim… Sei lá se morrendo nos morre a alma de vez… E a gente trá-la dentro de nós e não aproveita. Por isso, quando acordas és a coisa mais importante Da tua existência. Mesmo que quando te deitas o não sejas Porque acreditas que o amanhã já existe, Quando, afinal, ainda nem existe. E julgues que a Lua É o único ser sem canseiras. Às vezes apetece-me ir à Lua e não sei se queres ir comigo… E dizes-me até nunca mais, Mas é só um até já. O amor é tão lindo quando é amor. 29


A casa dos meus avós, era linda e a casa dos meus avós, Quando era a casa dos meus avós. E gostava dos meus brinquedos que sobram por lá E agora amo. Por isso, adoro, adoro mesmo Falar com as árvores. Os brinquedos de então eram feitos com bocadinhos de árvores… Assim como quando o teu olhar me diz coisas. E estás quando não estás. Porque imaginar é completar a obra da natureza. Assim como as árvores completam os sonhos. E os teus olhos criam saudade. E tu és a união de tanto. Abraços que chegam à alma Só o teu olhar os consegue dar. Quase me esganam por dentro. Todos os dias nasce um novo dia, um dia novo, Trá-lo consigo. Se a gente pudesse deixar a alguém quando parte O tempo que ainda gostaria de viver… Legava-o À fonte da minha aldeia Para que não houvesse lá sede Até à eternidade. Por isso, adoro o Outono. Parece que o nevoeiro nos quer abraçar e agasalhar 30


Ou namorar connosco. E mesmo a alma mais solitária e abandonada, Como a minha, Tem a sensação de ser amada por alguém, A natureza. E quando se acorda, O tal acordar…, Fácil é sentir isso, Difícil é dizê-lo. Cabe aos poetas, aos músicos, aos pastores Fazê-lo. Para o viver, cá estamos nós, Envoltos no nevoeiro.

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8 O sorriso é o único órgão interno que se consegue ver de fora. É tão importante o amor. E a saudade… Mas a maior qualidade do mundo É a bondade. É ser-se humano. É ter-se um dia do tamanho de um ano. E uma vida feita de instantes. Inocente como dantes. Sentir-se à volta aquela neblina, Calma e pacífica, Como as viagens que faço Quando me visito a mim mesmo E já não me via há tanto tempo... Sentir que as árvores e os animais E as ideias e os ideais Também são seres humanos. E devem ser tratados assim. E falar com a natureza Com a mesma certeza De estar certo quando se tem a certeza de estar certo Falar-se com a natureza. A árvore que como um pai protector 32


Suporta o calor do sol Para dar sombra a quem se abriga Dá o mesmo abraço bondoso Do pai que te abraçou. A água que corre na água e mata a sede Tem o mesmo fôlego Do amor que te beijou. Até o pequeno gato que vem deitar-se no teu colo à lareira Traz o mesmo afecto dos dias de namoro Em que éramos um E vinhas, como o gato, deitar-te à minha beira. E não há palavras mais doces, suaves e bondosas do que o calor Sossegado Que emana do borralho sonolento De uma chaminé numa casa de montanha. E a gente fica ali, como se andasse por longe, Sem sair dali. O longe que venha até nós… Não nos apetece partir. Estamos a ouvir o que o borralho nos diz E o gato que ronrona e não se percebe o que diz. Ouvimos o que não ouvimos E não ouvimos o que ouvimos. O imenso respeito que tenho pela Criação… Acompanhar dia a dia A gestação de um fruto numa árvore, Seguir o brotar de uma flor numa planta, 33


Ver a erva a crescer num prado, Coisas que mal se vêm, Tem o mesmo encanto Da gestação que vai acontecendo De um filho no ventre da sua mãe. E fico a imaginar estas coisas loucas Que não são loucas, Mas chamemos-lhe assim. São mais loucas do que são se forem sentidas assim… E imagino que dentro do ventre que o gera O coraçãozito, os olhitos, as mãozinhas, os pezinhos, Os bracinhos da criança que vai surgindo, Criada à imagem de um D´us, o mais verdadeiro, a sua mãe, São feitos, com bondade, Com pedacinhos dos mesmos órgãos do corpo da sua mãe, Que os reparte docemente com ela. Ser gerado é uma doação de bondade. E rezo, rezo profundamente, Já que é lindo, E ela consegue sorrir para dentro, E me faz sonhar, Que o sorriso dessa criança um dia Seja igual ao sorriso Que tem agora a sua mãe… 34


9 Não ter nada Já é ter nada. Ver e ouvir, Ter saudades e desejar, Sonhar e ter esperança Foram as formas que se encontrou De se ter o que se não tem. Há quem caminhe E finja racionalmente que a terra não é redonda, Para não ter que enfrentar um dia A desilusão de ter andado tanto, tanto, tanto E na outra metade da face da Terra e das coisas Voltar ao ponto donde partiu. Andar, andar, andar É errar, Errar por aí, Mesmo que se encontre o que se julga ser a solução. Resolver a vida, os desenganos É não resolver. Do outro lado de um muro que se escalou Há outro muro que tem que se descer. Por isso, somos todos iguais na felicidade e na dor, Todos temos um muro na vida. 35


A felicidade estĂĄ sempre do outro lado da infelicidade. Como se as coisas para existirem Tivessem que ser feitas metade Com o seu oposto. Somos todos a soma de um sim e de um nĂŁo.

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10 Se eu pudesse viajar no tempo Como o tempo faz quando lhe apetece, E fazer coisas que me apetecem, Coisas que o tempo me faz, Queria poder voltar contigo Ao dia do meu primeiro amor Para que fosses tu o meu primeiro amor. E regressar à eternidade que foi A minha primeira paixão E fazer de ti a minha grande paixão. Viajar no futuro Ao tempo em que se poderá andar de mão dada na Lua E sermos o primeiro par de namorados A beijar-se na Lua. Sermos luar. Que lindo será Todas as noites O luar reflectir-se na Terra Com nós dois a beijarmo-nos lá e cá… E na noite do S. João Toda a gente suspirar de encanto: Olha que lindo balão!

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11 Ponte da Misarela-Montalegre Sabes... Sofre-se tanto Incompreensivelmente, Que até parece impossível Conseguir sofrer-se tanto. Como se a essa dor não coubesse razão. Olha, Apeteceu-me... Apeteceu-me mesmo muito Dizer a alguém que a amo... E lembrei-me de ti. Sim, de ti que já não vejo há muito, Nem voltei a ouvir, Nem voltei a sentir. Se calhar o verdadeiro amor é aquele que se consegue esquecer. Como é estranho... A pessoa a quem me apeteceu dizer Que a amo Estar escondida… A maior felicidade, Também 38


A vi um dia No olhar do nosso cão Que corria atrás Da sombra de uma borboleta. Trazia essa felicidade escondida Fora dele que corria E dentro de mim que a via. E o beijo mais apaixonado Senti-o No arco da ponte Do rio que atravessa a nossa aldeia. Mesmo quem parte continua a ser de uma aldeia. Já viste a intensidade Com que ambas as metades do arco da ponte Se beijam… É ela que não deixa a ponte cair. Os beijos tornam-se eternos para que as pontes não caiam. Como nos beijámos Sobre a ponte da nossa aldeia... Tanto que o beijo nunca mais acaba... Ah como a natureza é bela... Só ela sabe guardar as sementes. Como nós. E julgamos que não o sabemos. Até nos lembrarmos... Beija-me eternamente, Inconsciente e esquecida, Lá longe onde estiveres, 39


Para poder atravessar novamente o rio. Ir até ti. Dar-te um beijo Sobre o beijo eterno, apaixonado, Que se dão uma à outra As metades do arco Da ponte da nossa aldeia. E seguiremos amando-nos, Até sermos velhinhos, Sabendo que um dia, morrendo, tudo acabará. Mas fingimos que não o sabemos. Os arcos também sabem que a ponte há-de cair. Mas continuam a beijar-se.

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12 Digam-me, Quem foi que inventou o coup de foudre, O primeiro sorriso, o primeiro olá, O primeiro beijo mandado, O primeiro até depois, A última paixão que foi chegando, As lindas mensagens de amor, Que se leem e releem, E são ainda mais lindas que os poemas Mais lindos Dos antigos e actuais poetas universais, O amor é a única coisa que já existe, mas que háde vir. As mãos nas mãos, A falta que me fazes, A alegria de ter ver chegar ao longe, Embora venhas ainda longe, E estejas longe, E o eu estou aqui. O gosto de ti, O és meu, O és minha, O mexer no cabelo um do outro, 41


A piada inocente que um diz E faz ambos rir, O hiii que piada, O és a mais linda do mundo, O não gosto que digas isto... Não gosto que faças aquilo. Um não gostar de que se gosta. Quem foi que criou tudo isto... Ninguém mo diz, Ninguém sabe... Amar, como o teu sorriso, é um sem se saber Saber porquê. Quando morrer Hei de perguntar a D'us Se foi Ele... E se Ele não souber... É porque Estas coisas Não têm mesmo explicação. E somos inexplicáveis. Nenhuma flor é linda Se não lho dissermos. Assim se vem vendo da lua o luar, E o que tem. Sente-se, Mas nenhum de nós pergunta ao outro de onde vem... 42


O amanhã ainda não existe, Mas há tanta esperança Quando se diz ... Até amanhã. Há coisas que se dizem E são silêncio...

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13 Há um mar Muito maior do que o mar No olhar De quem revê estas montanhas. Porque para além delas ainda há o céu, a noite, o dia, Tu E o todo mar. São ondas enormes Estes montes por onde andaste Como não as havia no oceano. E mesmo quando Se sente um vazio tamanho E se fica só, sem ti, Só com as paredes do corpo, É porque a alma não é bem minha e também se evade. Em Terra ou no mar o que faz falta é sonhar, saber voar. Sabe-se lá se nem o vento me ouve, Nunca responde. E lança-se um grito E como tantas coisas não sei para onde vai o grito Após o grito. Porque a única certeza que tenho 44


É que também não sei para onde fomos Ao percorrer estas serras. Como a luz do sol desse dia Que não nos disse para onde ia, Após o pôr- do -sol. Nem o luar que guardaste numa caixinha. Sei lá, agora, qual delas é Das luzes que estou a ver no Universo. Só me lembro que como tu era luz. Deve ser alguma, sei lá… A saudade é uma dor universal individual, cosmológica. Fica-se sem saber tantas coisas Nestes montes… Muitas mais do que na praia à beira-mar. O importante é que as urzes nunca deixem de florir.

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14 Quando chega a Primavera E a alma já cá está, E os abraços São dados por dentro, Nada de mim está à espera Porque já é o que era. E vem a brisa do vento E com ela as andorinhas, O verde sai do seu ninho, O amor devagarinho Quer tomar conta do mundo, E não há quem lhe faça frente, Toma conta de tudo e de tudo. E eu que poderia falar, Calo-me e fico mudo, Dizer o quê E a quem, Se ninguém ouve o que não digo. Ai quando chega a Primavera E já não se fica à espera E os dias crescem de propósito Para que os dias tenham mais tempo. Deixo de lado o que sinto, Sentir é apenas um sentimento, O mais importante é a vida. 46


Viver é na Primavera Um vento parecido ao vento. Os beijos são dados por fora. Passa o tempo, Passam as horas, E a prova de que o amor existe Para quem nos vê Junto à praia, O olhar passa por cima, Não és tu, nem eu, É o mar...

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15 O único grande amor da minha vida Foi o meu amor. Amei esta aquela a outra Em todas as partes da raça humana Como se o mundo fosse só um. E todas as pessoas fossem uma. Mas afinal Só amei o que amei. Como se bastasse amar apenas uma vez. Um homem também sabe oferecer flores, Escrever poesia, Dançar, Tirar fotos a pontes, Amar por dias Tanto quanto se deveria amar toda a vida. Ninguém consegue ser intenso O tempo todo. Há momentos, Há horas, Há esta aquela a outra. E são essas que são momentos intensos de amor. Por isso fujo, Vou tirar fotos a pontes, Por esse mundo fora. O amor é uma chama, 48


Só queima por momentos Em cada momento. Se ficasse seria uma ilusão como as outras. Assim, fujo E deixo-te o que querias. É só teu. Só queríamos Um do outro Poesia.

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16 Para quê esperar tanto… Se tudo é sonhar, sonhar, sonhar… Ama-se ontem, hoje, amanhã, Ama-se tanto… E no final, Sabe-se lá, Foi tudo um sonho, E nunca se sabe se valeu sequer a pena Sonhar. Pelo menos amou-se. E amar se não é muito Sempre é mais do que sonhar que se ama. Felizes são as estrelas, Também sonham, Também têm os seus amores, Mas durante o dia Ninguém adivinha o que lhes vai na alma. Foi um deus que as castigou, Criou as noites de luar nos dias de Verão, Para não se rirem de mim.

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17 Deixa lá... Melhores dias hão-de vir. Se não for hoje É amanhã. Senão... Será ontem. Ou um outro ontem qualquer Em que foste feliz. Os dias são todos iguais Só mudam as ocasiões. Nunca um dia deixou de nascer Só porque o anterior não tivesse mais fim. Ganha esperança, Imagina o amor que há Dentro de uma árvore Para que um pedaço de lenha Consiga dar uma flor. E o esforço que os anjos fazem Todos os dias Para enrolar o tolde negro e pesado Da noite Para que consigas ter a luz do dia. Bem sei que tudo o que digo Para te animar é mentira, É apenas poesia... 51


Mas quem sabe Se acreditares Afinal Seja verdade. Ouvir chover, Só por si, Já é ser Um começo do rio. Junto à foz a gente percebe Que todos os mares começam Lá longe Numa pequena nascente.

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18 Já amo as flores que vão nascer No meu jardim. As que ainda não perdi. As que já são minhas Porque as quero ver nascer Na Primavera. Ai as coisas que eu desejo ver nascer Em cada Primavera... As que o sol e o mau tempo Ainda não destruíram. Tu Que já o és, Mas serás minha. As noites de amor que faremos. Aquelas em que o amor nos há-de fazer A ambos. As coisas lindas Como as pessoas São sempre lindas e pessoas Se forem feitas com amor, Meu amor. Assim te fiz a ti. Que venha a Primavera! Que venha mesmo! Igual e diferente às dos anos passados. 53


Igual por estar Ă tua espera, Diferente Por ainda nĂŁo terem nascido as tais flores... Que sempre foram minhas Sem o serem. Foram feitas para ti Quando vieres na Primavera...

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19 A falta que me faz a tua escuridão. Como poderia ver as estrelas que tens contigo, Nesse teu céu que és tu, Se só fosses luz... E dia E momentos em que estamos afastados. As estrelas só se vêm à noite, Lembras-te? A luz esconde o que há para além do firmamento, Como as estrelas e o amor. Deixa lá... Hei-de amar-te À minha maneira, Sem a tua autorização. Farei amor contigo sem dares por isso. Beijar-te-ei às escondidas E sem ti. E serás minha Porque assim o desejei. Só se ama quem se quer Quando se pode. Só amamos quem nos quer Se quisermos. Somos deuses de nós mesmos Tantas vezes. 55


E isso enerva os deuses. Temos a escuridão Da noite e da alma... Vemos coisas no céu Que mais ninguém consegue ver. E ver é querer ver. Diferente e possível É olhar O teu olhar.

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20 Já morri o que vivi. Quando muito apenas tenho para viver O que ainda terei para viver. Não, já não ligo a recordações, O tempo que gasto nelas É-me tirado da vida. Recordar é uma dupla ilusão, Nem se vive outra vez Nem se vive o que se tem para viver. Ninguém adivinha o futuro, Mas pode esquecer-se o passado. E terei tantos dias para morrer Como para viver. Daqui até ao final... Olhar para os campos Dá-me a imutável tristeza De perceber que um dia deixarão de ser meus. E tudo isso me ajuda a perceber A razão porque as coisas Não se riem, nem falam, nem se queixam... A natureza ensinou-lhes há muito Que só se é dono das coisas por uns tempos, Depois voltam a ser livres. Mais donos dos meus campos, do que eu, São os pássaros que por lá passam. 57


21 Hás de morrer E a Primavera vai voltar. Como se nada tivesses acontecido. Como vês O ser mais perfeito da natureza é a Primavera. O resto morre no Outono. E só serve para morrer no Outono. Os grandes deuses foram todos assassinados Na Primavera. Cada um teve o seu Inverno para nascer. Nasceram todos no mesmo dia, 25 de Dezembro. Tudo é natureza, Solstício e equinócio. O resto é imaginação E querer mandar no mundo. Que mania. Que grande mania! Haverá sempre alguém A imaginar Quem o criou. Quem o criou... Pior: e aos outros! Como se os outros precisassem de opinião Para existirem. 58


Pobre imbecil, Quem o criou Foi a natureza e nada mais. Se fosse outra criatura Aparecia sempre à mesa, Com uma prenda, No dia do teu aniversário. Desde que se inventou o amor Nenhuma religião me faz falta.

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22 Tenho dentro de mim essa dor, Tão só, E não é solidão... Logo, vou adormecer cedinho. Hoje vou ao teu encontro mais cedo. Mas estás tão longe de mim. Vou sonhar. Vou sonhar contigo Já que é a única hipótese que tenho De voltar a estar contigo. Vou imaginar que sou o poeta Alberto Caeiro Que anda pelos campos Guardando sonhos e rebanhos. Aquele que fala com o vento… Como tenho pena do vento, Coitado, será que também ele Consegue sonhar? Dizem que tem um amor lá longe E nunca a consegue encontrar. Sabes, os animais e as plantas Têm uma alma também. Até as pedras a têm, As que não são de atirar a ninguém. Há coisas que só se vêem sozinho, 60


Sonhando, nem que seja acordado. Só assim consigo adivinhar O respeito que as árvores têm umas pelas outras. São os seres vivos mais inteligentes. Têm dentro delas uma paz, uma dignidade... Ás vezes apetece-me perguntar às árvores Se elas também se amam? Umas ao lado das outras, Abraçadas, Até que a morte as separe... Se isso não é um verdadeiro amor... Há juras que se fazem Sem se dizer uma palavra, Sem sequer se saber falar. Numa língua Que a Humanidade esqueceu, Aquela com que amava Antes de aprender a falar. Queres saber o que é a saudade? É aquela árvore solitária, Lá longe, No cimo do monte, A olhar para o pôr-do-sol. A contemplar o passado. Quem não consegue esquecer é tão parecido com ela. Se o Céu existe Deve estar cheio de árvores. São santas, não fazem mal a ninguém. 61


Quando morrem a alma delas Decerto que vai para lá. Sei que noutra vida Eu e tu fomos duas árvores... Como um druida, Ando à tua procura na floresta. Procuro, mas nunca te encontro. Será que o vento também ele enlouqueceu Fazendo o mesmo... Coitado, às vezes, Anda louco pela floresta À procura da árvore dele. Nunca mo disse... Dizem-mo as árvores que o vêm. Pergunta incessantemente a cada uma Se alguma delas É ela. Vento, aquilo que a gente leva É o que se traz consigo De algum lado passado: Não há poesia para além de Alberto Caeiro Nem filosofia para além de Espinoza. Só deseja quem tem desejo. Há saudades que só as tem quem tem saudade. Todos somos uma árvore solitária. Há uma serra só nossa. 62


Sei lá o que é ser sábio… Se se aprende tanto a ouvir a água das fontes Como numa escola qualquer. Nenhum livro contém todas as regras da física Que a natureza tem. É uma sabedoria só dela Que nos vai largando aos poucos. Não é por acaso que se oferece uma flor a quem se ama. Ou que um prado serve de cama. Ninguém ama sem amor. Só há uma coisa que ninguém pode fazer por mim: Amar por mim. O resto…todo é possível. E não vem escrito nos livros. Mas a água das fontes e eu, E as árvores que namoram Umas com as outras na serra, sabemos bem que é assim.

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23 Com o tempo, Só com o tempo, Se descobre Que bonito não é o intenso, Mas sim, o que é imenso. O mar, o céu, o firmamento, O quanto tempo se amou E não o quanto se amou. O sorriso. Mais lindo que uma rosa, o jardim extenso. Com o tempo, Com o tempo Se apercebe Que cada vez Há cada vez Cada vez menos tempo. E é tanto Não se ter quase nada. Que ter, afinal, é ainda se ter tempo Para ter tempo Para se ter Ter quase nada. E fecho os olhos Para te ver Já que estás perto. 64


Fecho Para te amar. E abro-os Para ver se te vejo Quando estás longe. Abro para te amar. Os olhos são como o amor, Não têm hora nem local Para amar. Sabes, o que há de mais belo nas tempestades São estes momentos de paz. Que seria eu sem o tempo...

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