Corrente 31

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Ano III — Número 31 - Mensal: março de 2020

Corrente d’Escrita Plantando Cultura * Santa Catarina * Brasil

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Senadinho Literário

CESAR LUIZ PASOLD


Editorial

Corrente d’Escrita

O último mês chamou-nos a atenção três temas que achamos por bem tratar no presente número de março no Corrente d’escrita. Trata-se do assunto aflorado na nossa capa—o Carnaval, que abordaremos através de um interessante texto do nosso já habitual amigo Deonísio da Silva. Não só por ser Carnaval, mas porque este ano os festejos deram muto que falar por abordarem temas sensíveis na nossa sociedade, nomeadamente a questão das religiões e da educação/ensino, trazendo para a ribalta os “muitos cristos crucificados” e a figura do “homem” da educação: Freire. Outro assunto que trataremos neste número é o do racismo. Assunto sempre atual, mas que, a partir de manifestações verificadas no mês passado nos estádios portugueses, contra um futebolista negro, colocou na pauta do dia, sobretudo na sociedade portuguesa, tão melindroso e sério assunto. Para o campo dos escritores hoje recebemos, no Senadinho Literário o acadêmico Cesar Luiz Pasold, membro de várias academias que marcam presença em Santa Catarina. E claro, como não podia deixar de ser, continuamos com nossas sugestões de como melhor escrever e falar a nossa língua comum, o Português, bem como, divulgamos alguns textos sobre como “escrever” contos, romances, etc.

Afonso Rocha—diretor Página 2


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Tema da capa… CARNAVAL, UMA FESTA DE INCLUSÃO SOCIAL. Deonísio da Silva *

Todas as sociedades sempre festejavam alguma coisa: a colheita, o nascimento de animais, os casamentos, o nascimento dos filhos etc. Os primeiros carnavais, ainda sem este nome, foram realizados entre os anos 600 e 520 a.C. na Grecia antiga, de onde foram trazidos para Roma e adaptados ou mesclados aos festejos pagaos. Palavras como “sol”, “estrela”, “ceu”, ”riqueza” e “felicidade” estiveram naqueles cantos antigos e chegaram aos sambas-enredos, depois de uma longa viagem, repleta de escalas em muitas naçoes, que tinham culturas diferenciadas e complexas formas de organizaçao. Nas duas culturas que mais influenciaram a nossa, a grega e a latina, as festas carnavalescas davam destaque nas homenagens aos deuses da fertilidade e da produçao. Na Roma antiga, Saturno, deus da agricultura; Baco, deus das vinhas, do vinho, da sensualidade; Ceres, deusa das flores e dos trigais: o etimo de seu nome ainda hoje permanece na palavra cereal. E, entre outros, Príapo, deus da fertilidade humana, pois o falo, tal como representado em Príapo, era indispensavel a procriaçao. A coisa mais parecida com o atual Carnaval, na Roma antiga, eram as saturnais. Tribunais, escolas, foruns e outras instituiçoes publicas fechavam as portas. O povo dançava alegremente ao lado de um barco que desfilava sobre rodas pelas ruas, o carrus navalis. Desfilar e sair da fila, destacar-se dentre os demais. A Igreja pos-se a organizar todas as festas pagas, no seculo IV, depois que o Cristianismo foi aceito como religiao oficial, disciplinando-as e por vezes deslocando-as, de acordo com os interesses dos novos donos do poder, agora associados ao poder imperial. Página 3

O Carnaval foi uma das festas deslocadas. Realizado entre 17 e 23 de Dezembro, veio a ter lugar a entrada da quaresma, separado da festa do deus Solis Invictus, o Sol Invicto, que por sua vez foi substituída pelo Natal. Os festejos autorizados pela Santa Se eram realizados a entrada da quaresma e em algumas culturas, como na luso-brasileira, tiveram originalmente a variante de entrudo, do latim introitus, entrada. Isto e, entrada da quaresma. No primeiro Carnaval autorizado pelo Papa, proliferaram as alegorias, as comparaçoes, as corridas de corcundas e de anoes, os atos de jogar farinha e ovos uns nos outros etc., que perduraram por seculos! A satira tambem teve seu lugar. Rainhas, princesas e outras autoridades eram representadas por celebres beldades, como as prostitutas mais conhecidas e devidamente disfarçadas no meio de mulheres virtuosas, sem excluir os bobos da corte, tambem misturados a outros bobos, tratados como reis nos desfiles. O Brasil faz o maior carnaval do mundo, e o Carnaval do Rio de Janeiro e anunciado como o maior espetaculo da Terra. Vemos tambem algumas influencias do carnaval italiano de Veneza, principalmente com os seus bailes de mascaras, que escondiam a identidade das pessoas, que assim podiam ser o que quisessem. Nao podemos esquecer que pessoa veio do latim persona e quer dizer justamente mascara. O carnaval brasileiro deve muito a Família Real portuguesa que para ca veio em 1808. Cont. pág. 07


de 2019

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O nosso convidado de hoje é professor Cesar Luiz Pasold, membro de várias academias, como veremos mais abaixo. Temos o grato prazer de com ele partilhar a convivência literária, já que ambos somos membros da Academia de Letras de Biguaçu. Aprendi a ver nele uma pessoa exemplar, sempre predisposto a procurar consensos e harmonia entre seus pares e confrades. Sua experiência é importante trazer aos nossos leitores, pelo que, de imediato, lhe passamos a palavra.

Cesar Luiz Pasold P. Títulos, e ano de publicação, das suas obras:

Telmo Vieira Ribeiro ( co-organizador—Joaçaba: UNOESC, 2015)Reflexoes sobre Teoria da Constituiçao e do Estado (Florianopolis: Insular,2013) ; R. Confome os registros em meu Curriculum ViEnsaios sobre Meio Ambiente e Direito Ambiental tae Lattes tenho , entre autoria e coautoria , 71 (Florianopolis: Insular, 2012); Direito Portuario, obras publicadas. Destas, destaco aqui as seguin- Regulaçao e Desenvolvimento( 2.ed. Belo Horites: zonte: Forum, 2011); ; Primeiros Ensaios de Teo1) Autoria : O Pensamento de Henrique Stodieck ria do Estado e da Constituiçao (Curitiba: Ju(org.-Joaçaba: UNOESC, 2016); Funçao Social do rua,2010) ; Direito e Processo- Estudos em HoEstado Contemporaneo (4 ed. Itajaí: Univali-2013 menagem ao Desembargador Norberto Ungaretti - e-book, disponível gratuitamente: http:// ( Fpolis: Conceito Editorial, 2007) . siaiapp28.univali.br/LstFree.aspx; Metodologia Vide listagem completa em : http:// da Pesquisa Jurídica: Teoria e Pratica (14 ediçoes lattes.cnpq.br/6851573982650146 revistas, atualizadas e ampliadas. Fpolis: EMais, 2018); Ensaio sobre a Etica de Norberto Bobbio (Fpolis: Conceito Editorial,2008); Liçoes Prelimi- Nome: CESAR LUIZ PASOLD nares de Direito Portuario (Florianopolis: Conceito Editorial, 2007); Metodologia da Comunicaçao Membro da Academia de Letras de Biguaçu; Academia , e de outras nos Trabalhos Científicos (Florianopolis: Concei(ver acima) to Editorial, 2007). Residência: Florianópolis/SC 2) Co-autoria, entre outras: Direito e os Desafios para o Terceiro Milenio ( Fpolis: EMais, 2019 – co Naturalidade: Blumenau/PR -autor e coorganizador); Antologia 2019 – Encan- Profissão: Professor universitário, advogado e cientista político tos e Encontros (Academia de Letras de Biguaçu); Data de nascimento: 17/07/1945 Antologia 2018—Biguaçu dos Meus Sonhos Estado civil: Casado (Academia de Letras de Biguaçu) Duas Teses de Página 4


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R. Sou um brasileiro que ama muito o seu País, sempre preocupado com a sua evoluçao social, política e economica, e principalmente com a manutençao de sua Democracia . Sou Mestre em Instituiçoes Políticas e Jurídicas pela Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC; Doutor em Direito do Estado pela Universidade de Sao Paulo -USP; Pos Doutor em Direitos Sociais- Enfase em Etica- pela Universidade Federal do Parana. Preocupo-me, outrossim, com a Saude Coletiva no Brasil ( isso, merce de minha formaçao como Sanitarista e Mestre em Saude Publica, ambos os títulos obtidos na Universidade de Sao Paulo tambem). Procuro produzir cronicas, ensaios e obras que tenham qualidade de forma e de conteudo e que seja uteis a Cultura e a Ciencia.

P. Entre essas obras, quais ou qual, a que considera ser a sua “melhor obra”, ou seja, aquela que considera ser a sua “marca” pública? Porquê? R. Funçao Social do Estado Contemporaneo (4 ed. Itajaí: Univali-2013- e-book, disponível gratuitamente : http://siaiapp28.univali.br/LstFree.aspx) = porque ela resume minha Tese de Doutorado em Direito do Estado pela Universidade de Sao Paulo, e tenho sinais evidentes de que e respeitada nos meios academicos e científicos pelo estilo didatico e pela logica de conteudo consistente, para meu saudavel orgulho e concomitante consciencia da responsabilidade disso decorrente. P. Embora sejamos confrades na Academia de Letras de Biguaçu, faça de conta que acabamos de nos conhecer. Como você se apresentaria, primeiro como cidadão e depois como escritor? Fale-nos um pouco da sua vida cívica pessoal, como escritor e como membro das várias academias. Página 5

P. Você integra diversas academias diversificadas. Como consegue essa pluralidade de participação? Consegue dar conta desse compromisso? Participar numa academia, independentemente de sua especialidade, o que representa para si? Acha que as academias estão a cumprir as funções para que foram constituídas? Não acha que existem mais academias que escritores? R. Pertenço atualmente as seguintes Academias: Academia de Letras de Palhoça ( Cadeira n. 04Patrono : Jorge Lacerda); Academia de Letras de Biguaçu (Cadeira n. 04- Patrono : Altino Flores); Academia Imbitubense de Letras e Artes ( Cadeira n. 20- Patrono : Jose Arthur Boiteux); Academia Catarinense de Letras Jurídicas ( Cadeira n. 01 – Patrono Henrique Stodieck), da qual estou Presidente , eleito que fui para um segundo mandato que se encerra em 31 de dezembro deste 2020); Academia Catarinense Maçonica de Letras ( cadeira n.29- Patrono Ari Kardec Bosco de Melo). Pertenci a Academia Desterrense de Letras ( ocupava a Cadeira n.20- Patrono Henrique Stodieck) que, infelizmente, foi extinta. As 5 Academias que integro, com prazer, cumprem adequadamente suas funçoes e merecem e recebem , cada vez mais, meu apoio e engajamento. Em minha opiniao NAO existem Academias de Letras demais, qualquer que seja o criterio invocado para tentar tal diagnostico. Pelo contrario


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movimento em favor da Literatura, das Artes e da guns momentos, componho poemas...mas os puCultura num País, como o Brasil, tao carente nes- blico muito pouco - sinto-me acanhado porque sa tríade. nao sei se consigo, sempre, separar adequadamente o Cientista do Poeta. P. É sabido que a cultura em geral, e particularmente a literatura, é tida como o “parente” P. Como “nasceu” em si essa apetência para mais pobre nas decisões dos gestores e diriescrever? Que idade tinha quando publicou o gentes públicos. Em seu entender, como está a seu primeiro trabalho? ser tratada a cultura em geral e especificamente a literatura em Santa Catarina? Em seu R. Como disse acima, desde os 16 anos componho entender o que precisa, eventualmente, de se cronicas e o faço sistematicamente ate hojefazer? ainda que as publique pouco- com tematica aberta a vida . Tenho o saudavel orgulho de em minha R. Precisamos estimular e participar ativamente juventude, durante 5 anos (dos 16 aos 21 anos, de todos os movimentos que visem a ampliaçao principalmente) tive uma Coluna semanal fixa quantitativa e qualitativa das açoes em prol da sob o timbre “CRONICA MODERNA (aos sabacultura e das artes ( e nao apenas da literatura) , dos) no Jornal “ O Estado” de Fpolis , o qual , infetanto em Santa Catarina quanto no Brasil. lizmente, encerrou suas atividades na decada de 1990. P. Entremos agora nas questões da sua escrita. Qual a área em que mais se sente melhor: P. Qual a obra que lhe deu mais “trabalho” esno conto; no romance ficcional; no romance crever? Porquê? histórico; na poesia; em outras áreas (indique quais) … R. Foi a primeira ediçao do Ensaio sobre a Etica de Norberto Bobbio (Fpolis: Conceito EditoriR. Como Escritor, alem de produzir, com prazer, al,2008), porque senti o imenso peso da responnas areas científicas de minhas formaçoes ( Direi- sabilidade de retratar a Etica do extraordinario e to, Teoria e Ciencia Política, Saude Publica) , com- genial italiano Norberto Bobbio, filosofo, cientista ponho cronicas sobre os temas mais variados, político e jurista. Atualmente estou atualizando-a desde os 16 anos de idade: e esse o meu genero para a segunda ediçao, sempre com muito prazer favorito e no qual me sinto confortavel. Em ale muito cuidado.

Academia de Letras de Biguaçu. Escritor Cesar Luz Pasold, de pé, segundo a contar da direita. Página 6


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P. Desenvolve algum trabalho relacionado à literatura / cultura, não obrigatoriamente a escrever livros? R. Nao.

FLORIANÓPOLIS Minha Linda

Floripa, como carinhosamente e chamada,

P. É sabido que “viver” da escrita não é uma cidade da magia e da beleza, comemora, a opção acessível à grande maioria dos autores. 23 de março, mais um aniversario. FundaPara si, essa questão está “resolvida”? Dá para da em 1673 pelo bandeirante Francisco viver da escrita? R. Nao sei se da para viver da escrita, porque nao vivo dela. Minhas profissoes ( Advogado, Professor Universitario) me remuneram adequadamente, como fruto de muito trabalho! Felizmente posso ser Escritor sem preocupaçao com a remuneraçao! P. Gostava de saber a sua opinião sobre a problemática da distribuição e/ou venda do livro. O livro impresso continuará, apesar dos ebooks e de outras plataformas digitais? R. Entendo que o Livro Escrito vai sobreviver mesmo com a cyber vida que assola o mundo nos tempos atuais. Ontem entrei numa Livraria aqui na Ilha de Santa Catarina, para comprar livros impressos para meu Filho caçula de 13 anos e para minha Neta de 3 anos....depois de escolhe-los, prazerosamente fiquei numa fila ( muitas eram as pessoas adquirindo livros IMPRESSOS) diante do caixa para pagar minhas compras. No que depender de mim, o Livro Escrito ficara sempre vivo e forte e exercendo sua funçao socio -cultural. P. Uma última questão: que mensagem deixaria para os demais académicos, escritores, leitores ou amantes da escrita? R. Permaneçam sempre ativos e comprometidos com a Cultura , a Literatura... as Artes... as Ciencias, enfim....com tudo o que significar a produçao responsavel da Inteligencia!!!

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dias Velho entao com o nome de Nossa Senhora do Desterro, depois mudou para Desterro e, ainda mais tarde, para Florianopolis, uma decisao imposta pelo ditador Floriano Peixoto. A mudança de nome sempre recebeu criticas, sobretudo pelos setores mais democraticos e existem ate propostas para nova mudança. Durante sua existencia, nestes 347 anos, a cidade atravessou varias mudanças, algumas delas bem radicais que chamaram a atençao do mundo, como foi o caso da Republica Catarinense ou Republica Juliana (1839) e, mais tarde (1889), quando os republicanos, liderados por Raulino Horn, Lauro Muller e Hercílio Luz, tomaram o governo do estado de Santa Catarina. Hoje, Florianopolis, capital do Estado de Santa Catarina, e uma das mais promissoras capitais, com um nível superior na qualidade de vida, com potenciais fontes de riqueza e de bem estar, quer para os residentes, quer para os inumeros visitantes de outros estados e do estrangeiro, sobretudo dos países do Mercosul. Tem uma via cultural de alto nível, uma diversidade de modernidade, sem choques com o passado historico multicultural e gentílico. Florianopolis começou por ser “açoriana” e hoje e mundana. Parabens FLORIPA.


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Uma história do Carnaval (Cont)

sao cinco, pois as festas vao de sexta a Quartafeira de Cinzas), o rico e o pobre, patroes e empregados, feios e bonitos, todos comportam-se como se fossem iguais. Os meses que antecedem o Carnaval sao de dieta para milhares de pessoas. Inverte-se o preceito: a abstinencia precede o Carnaval! As lipos tambem. Na Quarta-feira de Cinzas, volta a realidade, que somente sera abolida no proximo Carnaval.

Se os leitores sao ateus ou religiosos, isto nao vem ao caso, pois so alguem sem cultura nenhuma deixaria de reconhecer que a civilizaçao ocidental, para o bem ou para o mal, e herdeira de outras mais antigas, como a egípcia e a grecoromana, mas e principalmente judaico-crista, e O povo adorava a monarquia e nos desfiles homeessas duas ultimas estao presentes, explicita ou nageava tanto os deuses pagaos, incluindo o rei Momo, como rainhas e princesas, misturando-os implicitamente, em usos, costumes, cerimonias, festejos, efemerides e, principalmente, nas palaa divindades de diversas culturas. vras que proferimos ou calamos. A grande marca do carnaval e a inclusao social. * Professor, escritor, membro da Academia Catarinense So fica de fora quem quiser. Todos estao convida- de Letras. dos a festejar. Durante tres dias (que no Brasil

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6 Dicas para Escrever Para Crianças

tos das crianças. Quanto ao vocabulario: escreva naturalmente. Nao pense demais. Alguns de seus termos podem ser novos para os seus leitores, mas eles geralmente podem pegar o significado atraves do contexto. Ou se nao puderem, eles geralmente tem facil acesso a um dicionario. Foi assim que você aprendeu, no fim das contas. 3. Pare com referências da cultura pop. A menos que o site de mídia social ou a musica sensaçao entre os adolescentes seja crucial para a sua historia, nao se preocupe em coloca-las na historia. E raro um autor que consiga fazer isso sem soar desesperado por relevancia entre os jovens leitores. Na verdade, quanto mais voce faz referencia, mais voce parece desconectado a eles. O efeito sera muito pior anos mais tarde depois de todas essas referencias estiverem desatualizados. Isso nao significa que voce nao possa escrever sobre qualquer coisa velha, tambem. Ha uma diferença entre a historia e “Ola, crianças! Eu tambem sei o que e Facebook!”

Muitas pessoas pensam que para escrever para crianças elas precisam: nao ser muito assustador, usar uma linguagem mais simples, escrever sobre o que e ser uma criança nos dias de hoje. Mas essas ideias estao totalmente erradas. Aqui estao seis liçoes sobre a escrita para as crianças 4. Dê aos seus leitores uma sensação de poder. As crianças vivem em um mundo limitado por seu taque poderiam poupar algumas dores de cabeça. manho, seus conhecimentos, e as regras feitas pelos adultos. Deixe-os viver atraves de personagens que 1. Escreva para si mesmo. Vamos dizer que robos atletas sao a moda entre as podem quebrar algumas dessas limitaçoes. Enciclopecrianças agora. Mas talvez voce nao goste de esportes, dia Brown resolveu crimes. Harry Potter e amigos sale talvez voce nao se preocupe com robos. Voce nunca varam o mundo magico. Coraline Jones lutou com gostou. Entao, por que voce iria escrever sobre robos uma bruxa horrível. Todos eles viveram alguns periatletas agora? Por mais que voce queira encantar os gos que ninguem quer realmente experimentar, mas seus jovens leitores, seu coraçao nao vai estar nisso, e esses personagens triunfaram, e eles fizeram isso sem eles vao ver atraves de voce. Isto e, se voce for mesmo depender exclusivamente de adultos. E isso e basicacapaz de completar o manuscrito. A escrita ja tem de- mente o que as crianças querem – aquela sensaçao de safios suficientes. Escrever um livro que você não gos- que eles poderiam fazer algo epico se precisassem. taria de ler é injusto para você mesmo e duplamente Mostre-lhes que eles estao certos, dando-lhes persoinjusto para o leitor. Alem disso, os seus pressupostos nagens que vencem contra todas as probabilidades. O estao provavelmente errados. Escreva sobre o que que me leva a minha proxima dica. voce ama – o que voce ama agora e o que voce teria amado quando era uma criança. Voce vai encontrar 5. Personagens críveis são fundamentais. Nenhum personagem deve ser infalível. Se salvar o leitores que tambem adoram. dia sempre vem sem esforço para o protagonista, se ele nunca duvida de si mesmo, se ele nunca comete 2. Não trate seu público como bebês. As crianças sao realmente muito difíceis, e elas sao um erro que vai ter de corrigir, entao voce tem um muito mais espertas do que os adultos muitas vezes heroi chato em suas maos. As crianças esperam por esperam que sejam. Existem, certamente, limites, mas inspiraçao, e como ela vai encontrar se nao pode idennao assuma que voce nao pode escrever sobre morte tificar-se com o seu personagem principal? Se eles ou tragedias ou outros assuntos difíceis so porque os nao podem dizer a si mesmas: “Eu me senti assim seus leitores tem menos de 12 anos. Considere as tambem! Eu nao sou tao estupido afinal! “, entao, o obras de Roald Dahl: elas estao cheias de tristeza, seu heroi e inacreditavel, e voce vai perder a atençao mortes bizarras e adultos moralmente repreensíveis. do seu publico. Segue pág. Seguinte>> No entanto, seus livros e historias ainda sao os favoriPágina 9


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AS IDADES DE ROSA MARIA Quando tinha seis anos, em 1725, um navio negreiro trouxe-a de Africa e ela acabou vendida no Rio de Janeiro. Quando tinha catorze, o dono abriu-lhe as pernas e ensinou-lhe um oficio. Quando tinha quinze, foi comprada por uma fabrica de Ouro Preto, que passou a alugar o seu corpo aos garimpeiros. Quando tinha trinta, essa família vendeu-a a um sacerdote, que praticava nela os seus metodos de exorcismo e outros exercícios noturnos. Quando tinha trinta e dois, um dos demonios que habitavam o seu corpo fumou pelo seu cachimbo, uivou pela sua boca e fe-lo contorcer-se no chao. E por isso foi condenada a cem chicotadas na praça da cidade de Mariana, e o castigo deixou-lhe um braço paralisado para sempre. Quando tinha trinta e cinco, jejuou e rezou e mortificou a sua carne com um cilício, e a mae da Virgem Maria ensinou-a a ler. Segundo dizem, Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz foi a primeira negra alfabetizada no Brasil. Quando tinha trinta e sete, fundou um asilo para escravas abandonadas e putas fora de prazo, que financiava vendendo biscoitos amassados com a sua saliva, remedio infalível contra qualquer doença. Quando tinha quarenta, inumeros fieis assistiam os seus transes, onde ela dançava ao ritmo de um coro de anjos, envolta em fumo de tabaco, e onde o Menino Jesus mamava do seu peito. Quando tinha quarenta e dois, foi acusada de feitiçaria e presa na cadeia do Rio de Janeiro. Dicas para Escrever Para Crianças Quando tinha quarenta e tres, os teologos confirmaram que era feiticeira porque conse6. Leia livros infantis. guiu suportar sem uma queixa, durante muito No final de tudo, nao ha nenhum treinador de escrita melhor que um livro bem escrito. Voce pode se tempo, uma vela acesa sob a língua. preocupar que explorar as obras de autores ama- Quando tinha quarenta e quatro, foi enviada dos vai fazer a sua propria escrita menos original, para Lisboa e presa na cadeia da Santa Inquimas nada poderia estar mais longe da verdade. Ler os outros livros. Leia muitos deles e, em seguida, siçao. Entrou nas camaras de tortura para ser perguntar-se o que voce gostou sobre eles. Voce interrogada e nunca mais se soube dela. pode aprender uma coisa ou duas. Eu certamente aprendi. In www.dicasdeescrita.com.br Página 10

Eduardo Galeano, Espelhos – Uma História Quase Universal Divulgado in facebook.com/paulo.marques.7393


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MEU PAI, ERA TIRA (CONTO) Por David Gonçalves * MEU PAI nao era santo. Era tira. Minha mae, sim, uma santa. Voce pensou que era professor. Bobagem, um tira. Nem foi baleado por causa de política. Isso e invençao. Povo fala muito. Um tira mixuruca que vivia torturando os presos. Usava bigode, sim, estilo Hitler. Tinha prazer no que fazia. O penitente gemia, implorava, suava, cagava-se, mijava-se. Enquanto torturou pe de chinelo, o vento soprou a seu favor. Minha mae nao sabia nada disso: a janela de casa era seu horizonte. Eu nao sabia. Ainda era pequeno. Minha irma, tampouco. Mas se meteu com gente grauda, presos políticos, arrancando confissoes e dentes com alicate. Ele fazia o serviço sujo a mando dos grandoes. Os meninos da cidade tinham medo dele. Quando o encontravam pelas ruas, fugiam assustados. Logo, começaram a me temer. Eu nao sabia por que. Voce nao tem medo dele? Eu nao tinha. Ele nao te bate? Nao batia. Ele nao espanca a tua mae ate a morte? Nao espancava. Ele me traz bolos de coco e doce de abobora em forma de coraçao. Ah, e! Bem, teve uma vez… Jacira despontava bonita, seios redondinhos feitos peras verdes, as pernas arqueadas e morenas, e logo chamou atençao dos homens, que a pajeavam como princesa. Ela se deliciava, provocante, os vestidos cada vez mais curtos, quadris bamboleantes, olhos verdes oblíquos. Minha mae dizia: tome jeito, que gaviao nao tem pena de ninguem. Ela ria. Sabia muito bem se proteger. Ia a escola, mas nao estudava. Ficava no patio se mostrando. Os homens, olhos cobiçosos, rondavam, seguiam-na pelas ruas.

Por dias, la em casa, ninguem falou. A mae rezava, mas tinha medo. O pai saía cedo, uniformizado, rosto de marmore, so com uma xícara de cafe. Emagrecia. Voltava a noite, mais fechado ainda, exalando aguardente. Enquanto isso, Jacira melhorava. O brutamontes tinha levado o sorriso dela. Tinha levado tudo: a alegria, a poesia, os encantos. Tinha olhar assustado, fera acuada. So faltava ter um filho do demonio, maldizia minha mae. Eu me perguntava: o demonio podia ser pai? Choviam mulheres curiosas la em casa. Queriam saber dos pormenores. Fuxicavam. Teciam historias. Na cidade vizinha, um caso assim. Nascera um bebe com duas cabeças. Uma grande, outra menor. Um horror. Minha mae as expulsou, que fossem cuidar de suas vidas. Aí, fuxicavam mais, e mais. Estava gravida. Minha mae descabelava-se, rogando pragas. O pai tinha vontade de sova-la, mas nao conseguia. Nem trabalhava mais. Estava a procura do malfeitor. Nao descansaria ate encontra-lo, mesmo que fosse nos quintos do inferno. Lembro que ele jogou umas notas de dinheiro em cima da mesa e disse: va matar esse filho do cao, que nao quero ver esse diabo nascer. La foram minha mae e Jacira num onibus de linha para cidade vizinha e so voltaram noutro dia. Jacira estava cadaverica, andava com dificuldade. Esta feito, disse minha mae. O diabinho nao existe mais. O pai mastigava sal grosso no cocho da vida. A notícia estourou naquela tarde abafada de quartafeira. O pai arrastava o homem pelo calçamento, semimorto, feridas abertas. O povo espiava, uns euforicos, outros horrorizados. Quando chegou a delegacia, so restava o cadaver ensanguentado e sujo. Ordenou ao cabo Gabrielli – fosse buscar a filha. So pra dizer: eis aí o teu algoz reduzido ao po. Mais nao disse. O diabo grande estava morto.

Dias depois, ela fugiu de casa, uma sacolinha de roupa. Uma nuvem negra pesava sobre nos. Entao, enraivecido, o pai voltou a rotina de torturar presos. So que, desta vez, torturando figuroes conhecidos da política. Acabou sequestrado e moído de pancadas. Reconheceram o cadaver devido a uma tatuagem no ombro direito, uma Entao, aconteceu: foi encontrada na velha pedreira, en- caveira e dois punhais. tre cascalhos, estuprada, quase morta, arrebentada. O Minha mae? Fechou-se no casulo. Portas e janelas fechaestuprador dera como morta e, saciado, deixara-a aos das. Nao durou muito. Adoeceu e se foi: magra, seca, urubus. Era um local remoto, longe de qualquer habita- olhos encovados. Marido algoz, filha pecadora. çao. O caminho era por uma daquelas estradas estreitas, Jacira? Digo pra todo mundo que morreu. Mas e mentira. tortuosas, esburacadas, que mal passava o caminhao Pulou no lago. Afogou-se, eu digo. Mentira. Ela se afogou carregado de pedras, que nao levava a lugar algum a nao no puteiro em Foz do Iguaçu, dançando guaraneas e polser a propria pedreira. Eu vi. O pai a segurava nos bra- cas paraguaias, embebedando-se. Se esta feliz la: cada ços, uivava, olhos brancos de odio. Fazia bom tempo que qual vive como deseja. Ha muitas formas de morrer... a pedreira fora escavada. As unicas pessoas que passa- Meu pai nao era professor, nao. Era tira. O que eu faço? vam por la eram caçadores de lebres e porcos do mato. O Ah, outro dia te conto. pai a segurava nos braços e nao dizia nada. Perdera a * David Gonçalves é professor, escritor membro das fala, grunhia. Era um bicho. Academias Catarinense de Letras e Joinvillense de Letras.

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A livraria mais antiga do mundo fica em Lisboa suicidou-se no interior da livraria onde tinha começado a Foi distinguida pelo Guiness Word Records em 2011 e esta em funcionamento desde 1732. Quantas historias guarda a livraria mais antiga do mundo? Ninguem sabe, nem pode saber. Porque sao incontaveis as memorias de uma casa com quase 300 anos. Refugio de escritores, revolucionarios e conspiradores, o n.º 73 da rua Garrett (Lisboa) esta no Guiness Book. Assim que entramos na primeira sala, percebemos imediatamente que a Bertrand nao e uma livraria qualquer. Do lado direito, uma placa assinala o “Cantinho de Aquilino”, uma homenagem ao escritor Aquilino Ribeiro que ali gostava de ficar sossegado, a ler. Tambem Alexandre Herculano era frequentador assíduo da casa, para lançar os seus livros e participar nas tertulias diarias. O espaço acabava por funcionar como um clube literario, ponto de encontro de grandes vultos da literatura portuguesa. Por la passaram os intelectuais da Geraçao de 70, como Eça de Queiros, Antero de Quental, Ramalho Ortigao e Oliveira Martins. E tantos outros, ainda hoje. Nas muitas historias que se contam, de revolucionarios utopicos e conspiradores que aqui urdiam os seus planos, uma em especial ainda provoca calafrios: Jose Fontana, defensor dos trabalhadores e fundador da Associaçao Fraternidade Operaria, que mais tarde da origem ao Partido Socialista, Página 12

sua vida profissional. A Bertrand, fundada em 1732, nasceu como negocio de uma família francesa. Instalada primeiro na rua Direita do Loreto, em Lisboa, foi destruída pelo terramoto de 1755, mas a marca dos livros sobreviveu. A livraria foi entao transferida para perto da Capela da Nossa Senhora das Necessidades e, em 1773, renasce definitivamente no Chiado. Considerada uma das mais emblematicas livrarias portuguesas, a Bertrand da baixa pombalina foi oficialmente distinguida pelo Guiness Word Records em 2011 como a livraria mais antiga do mundo ainda em funcionamento. O certificado, exposto na loja em lugar de destaque, aconteceu quase por acaso, como começa por nos contar a peça que aqui trazemos. Com entrada pela Livraria ou pela Rua Anchieta, o Cafe Bertrand propoe uma ementa com pratos e criaçoes inspirados na cozinha portuguesa. Os apreciadores de vinhos nao se sentirao defraudados, a carta conta com mais de 60 referencias nacionais, de todas as regioes. Neste espaço intimista e tranquilo, onde os visitantes sao recebidos por um grande mural de Fernando Pessoa da autoria da artista Tamara Alves, o conceito e verdadeiramente livresco: os pratos que constam na ementa inspiramse em livros de gastronomia, de vinhos, de poesia.


Ano III — Número 31 - Mensal: março de 2020

istória Não apaguemos esta luz

PORTUGAL, É RACISTA? O passado colonial não faz de nós racistas. É tão histórica a atitude dos brancos que toleravam o comércio de homens como a dos que passaram a considerá-lo incompatível com a civilização e a olhar os negreiros como Alexandre Herculano os olhavam. A sociedade portuguesa tem abordado as questões do racismo a partir de incidentes recentes, quer em eventos desportivos, quer nos chamados bairros populares. Inclusive o tema teve honra de ser debatido em programas de TV, com intervenções diretas do público, de jornalistas, escritores e historiadores. É a partir desses debates que trazemos o assunto, com um artigo de fundo do historiador e romancista João Pedro Marques. “Nao estive em directo no ultimo Pros e Contras (programa de TV). A minha participaçao nesse programa limitou-se a uma pequena intervençao filmada e gravada uns dias antes, na qual eu disse duas coisas: em primeiro lugar que ha um exagero na susceptibilidade e reactividade de varias pessoas negras, de forma que qualquer reparo que lhes seja feito e imediatamente visto e sentido como uma manifestaçao de racismo; afirmei, em segundo lugar, que, num computo geral, Portugal nao e racista e que e errada a teoria muito difundida segundo a qual o país teria forçosamente de o ser por ter estado longamente envolvido no trafico transatlantico de escravos e num imperio colonial. O historiador Francisco Bethencourt, que esteve em directo no Pros e Contras, nao gostou dessa minha intervençao. Considerou que ela revelava “enorme insensibilidade ao fenomeno racista” e que era inaceitavel por ser um “processo de branqueamento dos problemas racistas”. Seria, alem disso, errada por eu (alegadamente) querer “dizer que o passado e o passado e nao tem qualquer reflexo no presente”. Mas Francisco Bethencourt esta a ver mal e a pensar pior. O facto de Portugal ter estado envolvido no trafico de escravos, de ter tido um imperio colonial e de, em determinado momento da sua historia, ter tido uma política orientada segundo ideologias e sentimentos racistas, nao significa Página 13

que os tenha agora. As sociedades podem arrepiar caminho, e muitas vezes fazem-no. Pense-se, por exemplo — e talvez seja esse o melhor exemplo —, nas atitudes ocidentais face a escravatura. Durante tres a quatro seculos as sociedades europeias que estabeleceram colonias nas Americas estiveram profundamente envolvidas no trafico de escravos e na exploraçao do trabalho de africanos em plantaçoes, minas, etc., e conviveram com isso sem grandes objecçoes ou questionamentos. Mas a partir do ultimo terço do seculo XVIII essas mesmas sociedades começaram a inverter a sua visao e a sua pratica, no que a escravatura diz respeito. E preciso relembrar mais uma vez que foram as sociedades ocidentais que primeiro a rejeitaram e combateram. Depois da sua aboliçao houve outras formas de coerçao e de exploraçao violenta do trabalho? Sim, houve. Mas tambem dessas praticas as sociedades ocidentais se foram demarcando e desviando. Francisco Bethencourt nao ve esse lado positivo da Historia, ou se o ve desvaloriza-o. Ja lhe fiz esse reparo em artigos a que preferiu nao responder e volto a faze-lo aqui. Bethencourt acusa-me e a outros de fazermos “branqueamentos” sem se dar conta de que e ele que faz obvios “escurecimentos”. Nao tem a visao calibrada. E uma especie de permanente advogado de acusaçao do passado. De qualquer modo, o que importa dizer e sublinhar e que nao ficamos marcados para todo o sempre e de forma indelevel por antigas praticas condenaveis. Ao contrario do que Francisco Bethencourt pensa, nao estou com isto a rejeitar o peso e a importancia da historia. Estou apenas a tentar que as pessoas olhem para um quadro mais completo, mais pleno, do que aquele que muitas vezes lhes e mostrado. E que se o trafico de escravos e historia, a sua aboliçao e os valores que a ela se associaram tambem o sao. E tanto historia o navio negreiro que carrega 300 escravos em Luanda como o esforço de um Sa da Bandeira para por fim a escravatura. E tao importante a data da chegada dos primeiros escravos negros a Lagos, como aquela em que Portugal começou efectivamente a apresar navios negreiros no mar. E tao historica a atitude dos brancos que toleravam o comercio de homens como a dos que passaram a abomina -lo, a considera-lo incompatível com a civilizaçao, e a olhar os negreiros como Alexandre Herculano os olhava, isto e,


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como criaturas a quem se devia “negar o sal e o lume, a agua e a hospitalidade” e das quais se devia fugir “como de empestados”. Francisco Bethencourt estara eventualmente esquecido de que houve gente no seculo XIX que escreveu nos jornais, discursou e legislou nas Cortes, ou andou nos navios de cruzeiro a combater pela libertaçao dos escravos negros. Isso tambem faz parte da nossa historia e reverte ou atenua o que de lamentavel havia na historia anterior. E o que neste contexto e valido para Portugal e igualmente valido para muitos outros países e situaçoes. Pense-se, por exemplo, no caso alemao. Nao e pelo facto de ter existido nas decadas de 1930-40 um regime hitleriano, com todas as suas violencias e atrocidades, que a Alemanha tem actualmente de ser nazi. Estou firmemente convencido de que o nao e e de os alemaes, no seu conjunto, o nao sao, o que nao quer dizer que nao existam nazis entre eles. O mesmo se passa quanto ao racismo entre nos. Portugal nao e, globalmente falando, um país racista, o que nao exclui que existam portugueses que o sao. Mas a nossa historia colonial nao nos condena inapelavelmente ao racismo. Tivemos um imperio? Sim, mas ja nao temos. Envolvemo-nos no trafico de escravos? Envolvemos, mas ha muito que ja nao estamos envolvidos. Tudo isso esta no passado. Esse passado deixou marcas? Sim, sem duvida, mas e preciso perceber que tambem dinamizou diversas alteraçoes ao nível das ideias, das sensibilidades e dos procedimentos.

Talvez seja por isso que o teor de racismo em Portugal e relativamente baixo a acreditar num recente estudo da Uniao Europeia (Being Black in the EU). Esse estudo passou despercebido porque nao resultou naquilo que os autoproclamados anti-racistas querem ouvir, mas e muito interessante porque mostra que tanto Portugal como o Reino Unido — que tambem teve um imperio colonial e um envolvimento extenso e profundo na escravatura —, apresentam níveis diminutos de comportamento racista quando comparados com países como a Finlandia ou o Luxemburgo, que nao tiveram imperios coloniais nem envolvimento no comercio negreiro. Ou seja, uma coisa nao e necessariamente consequencia da outra. E por todas estas razoes que Portugal nao e nem pode ser prisioneiro das partes negras da sua historia. As pessoas demarcam-se, inflectem, rejeitam, mudam, e as sociedades tambem. Mas para o percebermos e preciso abrir os olhos, por o cerebro a trabalhar e pensar fora da caixa, em vez de nos limitarmos a repetir chavoes. PS: Nao quero terminar este artigo sem referir que, na sua apariçao no Pros e Contras, Francisco Bethencourt foi pouco rigoroso com factos e numeros, o que e sempre um pecado num historiador. A sua afirmaçao de que “Portugal esteve envolvido no trafico de seis milhoes de escravos” para as Americas, por exemplo, esta errada, como ja referi por diversas vezes. Resulta do facto de ter adicionado os quantitativos de Portugal (4,5 milhoes) aos do Brasil independente (1,3 milhoes) e de ter arredondado para cima, o que mostra bem em que sentido vai o vies ou parcialidade da sua visao. E o tal “escurecimento” da historia a que eu me referi acima”.

Mulheres escravas brancas Página 14

In OBSERVADOR, 1 de março de 2020.


Ano III — Número 31 - Mensal: março de 2020 formou numa termologia para se referir a um assentamento urbano informal. A justificativa para a ocupaçao ha 120 anos e a mesma dos dias atuais, a falta de moradias. Os ex-soldados tinham a promessa que ao retornarem da batalha receberiam o soldo, mas o valor nunca foi pago. Sem diPrimeira favela brasileira surgiu há nheiro e local para morarem, eles invadiram um tre120 anos cho do morro, onde ficava uma chacara abandonada. Naquele momento, nascia a primeira favela brasileira. Em 1897, aproximadamente 10 mil soldados vol- Com os anos, outros assentamentos tambem passataram da Guerra de Canudos e se instalaram no ram a serem chamados de favelas, numa referencia a atual Morro da Providência, no Rio. O local, que já ocupaçao do Morro da Providencia. era habitado por ex-escravos, se transformou na primeira favela brasileira. As primeiras casas foram erguidas no sope do morro, seguindo o estilo das construçoes de Canudos. De alvenaria com paredes caiadas e telhados de madeira, as residencias foram engolidas pelo emprego dos proprios moradores. A maioria dos habitantes da comunidade da Favela trabalhavam numa pedreira no morro, que consumiu, literalmente, o terreno onde viviam. A mina funcionou ate 1968, quando ocorreu um desabamento que soterrou e matou 36 pessoas.

Barracos pendurados na pedreira do morro da Favela, em 1920 Foto: Reproduçao

Ha exatos 120 anos surgia a primeira favela brasileira, que ainda nao era chamada desta forma. O pequeno assentamento, formado inicialmente por ex-escravos, ganhou a partir de 1897 uma grande quantidade de novos moradores, criando uma verdadeira comunidade. Localizada no atual Morro da Providencia, no Rio de Janeiro, a ocupaçao inicialmente se restringia a algumas dezenas de casebres, que ao longo do ano receberam mais de 10 mil novos vizinhos, em especial exsoldados que retornavam da Guerra de Canudos. Os primeiros moradores do assentamento no eram habitantes do antigo cortiço "Cabeça de Porco", que havia sido demolido tempos antes. Ainda sem nome, a area ocupada logo ganhou um apelido dos ex-combatentes. O conglomerado de pequenas casas passou a ser chamado de Favela, numa referencia ao nome do morro onde os soldados haviam montado acampamento durante a guerra. Favela e o nome popular da Cnidoscolus quercifolius, uma planta endemica da regiao nordeste brasileira. Se no passado a palavra era um nome proprio, atualmente se transPágina 15

Em novembro de 1904, a prefeitura do Rio de Janeiro decidiu desocupar o morro da Favela, que estava numa area invadida. O problema e que no mesmo período ocorreu a Revolta da Vacina e devido ao caos generalizado na cidade, a reintegraçao de posse foi suspensa. Focada em combater os disturbios pelas ruas cariocas, a prefeitura pos a desocupaçao da area em segundo plano. Outra preocupaçao da entao administraçao publica era o fato de que muitos habitantes daquela comunidade haviam participado da Revolta e considerassem a reintegraçao como uma "puniçao" pelo ato.

Datada de 1900, foto do morro da Favela mostra a area ocupada atras do Quartel General - Foto: Reproduçao


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Perfil

Sou o que sou… Afonso Rocha

Ó MAR SALGADO… Mais que mar salgado, sou um mar doente, abandonado, quase morto. Sou o fundão do que nada presta; do que está imundo; do que está podre; daquilo que os humanos não se aproveitam mais. Sou o depósito das fezes e do mijo; dos pneus gastos; dos combustíveis; dos eletrodomésticos; dos colchões e mantas; do calçado velho e gasto; dos canudinhos, das caixas e sacos e dos outros plásticos descartáveis; das camisinhas do prazer de mil cores e sabores e dos frascos de cheiro; dos cotonetes. Sou a tumba dos doentes terminais, dos assassinatos, dos mortos; dos tresloucados; dos bêbados e dos entorpecidos; dos irresponsáveis e das crianças espavoridas, desamparadas e que vagueiam sem tino. Sou fonte de sal; de vida, das vidas que geram dentro de mim; de prazeres acalorados; de aventuras merecidas. Sou poço de sofrimentos; de lamentos; de aflições. Sou, fruto de irresponsabilidades humanas, a solução para todos os vossos males e crimes. Um dia, também eu, tratado assim, irei morrer... Afonso Rocha Página 16


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Fotos com História

Recordando a criança que todos fomos

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Florianópolis Santa Catarina Brasil +55 48 991 311 560 narealgana@gmail.com www.issuu.com/correntedescrita Fundador e diretor: Afonso Rocha

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Em defesa da (nossa) língua Deonísio Da Silva *

DE ONDE VEM PERIGUETE

grafar "piriguete" e nao "periguete", como faz o Dicionario Aurelio.

De todo modo, para as mulheres, periguete e aquela Faz alguns anos uma nova palavra entrou para a lín- piranha que olha para seu marido ou namorado, prongua portuguesa. E periguete. ta a desfruta-lo. E ela so o quer por um dia! E desta vez nao veio de um dos berços habituais mais Para os homens, a ancestral da periguete, moça boniferteis, a cidade do Rio de Janeiro, especialmente suas ta, de roupas, gestos e modos sensuais, foi antecipada praias e bairros, em particular Ipanema. nos versos de Chico Buarque, gravados tambem por Gal Costa, na voz de quem ficava mais convincente a Das metropoles que mais influenciam a vida nacional, transformaçao da mulher, que deixava de ser coisa o Rio de Janeiro e o mais prodigo em fornecer novas para coisificar o homem: “Se acaso me quiseres,/ Sou palavras e expressoes, desde os tempos em que, no dessas mulheres/ Que so dizem sim/ Por uma coisa a alvorecer do seculo XIX, o rei Dom Joao VI fixou aqui toa/ Uma noitada boa/ Um cinema ou botequim/ E, se as cortes portuguesas e sua numerosa comitiva, mutiveres renda/ Aceito uma prenda,/ Qualquer coisa dando a capital de Salvador para o Rio. assim.(...) Mas na manha seguinte/ Nao conta ate vinNo seculo seguinte, a transferencia da capital para te:/ Te afasta de mim,/ Pois ja nao vales nada,/ Es paBrasília nao tirou do Rio essa supremacia cultural, gina virada,/ Descartada do meu folhetim.” que hoje divide com Sao Paulo, nao com Brasília. As Freneticas deram outro colorido aos versos de ChiOs cariocas, usualmente irreverentes e bem- co Buarque: “Eu sei que eu sou/ Bonita e gostosa/ E humorados, encarregam-se de bater os tambores da sei que voce/ Me olha e me quer/ Eu sou uma fera/ patria, fazendo de sua cidade e de seus bairros as De pele macia/ Cuidado garoto!/ Eu sou perigosa...” Ao contrario dos homens, a mulher, talvez por instinprincipais caixas de ressonancia do Brasil. to materno, nela inarredavel, quer proteger a vítima e Nascidas na praia e depois levadas as novelas da tele- reitera os avisos: “Eu tenho um veneno/ No doce da visao, especialmente a novela das oito, as novas pala- boca/ Eu tenho um demonio / Guardado no peito/ Eu vras e expressoes se espalham por todo o territorio tenho uma faca/ No brilho dos olhos/ Eu tenho uma nacional. louca/ Dentro de mim...” A principal disseminadora e a TV Globo, como antes era a Radio Nacional. Antes de vir para o Rio, de onde se alastrou para todos os Estados, periguete surgiu nos bairros de Salvador, na Bahia, que, por ser cidade eminentemente turística, sofre grande influencia do ingles. Periguete formou-se da adaptaçao do portugues peri (go) e do ingles "girl", gerando "peri(gosa) girl", "peri girl" e por fim "piriguete" (na fala) e "periguete" (na escrita) dizem as fontes pesquisadas, todas controversas, dando Salvador (BA) como o berço desta nova palavra. A formaçao de novas palavras tem complexas sutilezas. Em "Neguinha sim, nigrinha nao" , por exemplo, o professor Luís Mott da " negrinha" e "nigrinha" como sinonimos de "piriguete". Mott e professor titular (aposentado) da UFBA e referencia em publicaçoes sobre as sexualidades outrora tidas como ilegítimas, como era o caso da homossexualidade. Ele prefere

A perigosa tornou-se periguete. As palavras, como as arvores e os dentes, tem raízes. Algumas sao muito profundas e e preciso pesquisar para encontra-las. Desde meus verdes anos aplico-me a esse trabalho encantador! * Professor e escritor.


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Pecador, me confesso! é, antes de mais, um grito de revolta contra a impunidade dos criminosos que poluem a nossa civilização. Mulheres, homens, crianças, idosos; comunidade LGBT; negros, índios, ciganos, imigrantes e todos os demais desprotegidos são perseguidos, violentados, agredidos, estuprados e mesmo assassinados e, na maioria das vezes, quando descobertos, ficam impunes aos rigores da lei e da justiça. E a sociedade, nem sempre responde da melhor forma. A omissão, também é um crime. Afonso Rocha passeiase pela sua própria experiência de vida, mas também pela de todos nós, como comunidade, para que se dinamize e reforce a forma de combater estas mazelas, estes crimes bárbaros, já considerados como o holocausto do século XXI. Disponível em livro e e-book (pdf) Página 23


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Poesia numa roda de amigos. Uma coletânea de poemas e outros pensamentos de Afonso Rocha, enriquecida pelo contributo de mais seis poetas naturais do Brasil, Cabo Verde, Portugal, Moçambique, Angola e Galiza, refletindo a poesia no espaço da lusofonia, até porque “tem loucuras que a gente só faz com muita maturidade”. TROVAS AO VENTO 2014, 140 P. Preço na loja: R$ 25,00

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Segundo o livro de recordes, esta livraria portuguesa, localizada em Lisboa, é a mais antiga do mundo—veja artigo na pág. 14

Casa dos Livros e da Leitura Página 26


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