O Aguadeiro - Cordel - Cia Laboro

Page 1

“Na peleja de todo vivente em romaria nesta terra ainda agreste, a sede, os pés rachados e as mãos calejadas, serão sempre os sinais luminosos a indicar rumo certo ao maravilhoso e inevitável encontro do Aguadeiro... “

O AGUA DEIRO


O BEATO Um belo chamado ouvia desde menino: Seguir os passos de Cristo é o que sonhava Sabino! Sempre fora dotado de sabedoria. Dava conselhos e consolo a quem o ouvia. Pra se ordenar tinha que estudar e ser aceito. Mas em sua família e na sua cor o povo só via defeito... Mesmo sem o título da comunhão sacramental, Possuía, fazia tempo, a comunhão espiritual! Desde jovem, nas rezas e na Escritura era perito. Agora anda ensinando leitura e Jesus a todo e qualquer distrito. Almeja formar uma fraterna agremiação Onde todo que trabalha come em feliz associação!


Misericórdia, amor e fraternidade são sua devoção. Esse é o trabalho de Sabino Sacramento da Anunciação! Pensa: “o mundo tá virado aqui no sertão!” Quer revirar esse mundo em fé, trabalho e pão. Pra ele pouco importa origem ou filiação. É o Beato Sabino que recebe a todos no coração! Sua engenhosidade ajuda o povo que melhora a lavoura. Aquela gente cultiva a terra, a fé e a saúde entesoura. Segue Beato Sabino sua vereda bendita. Seu trabalho é visto como atividade ilícita, Onde quem mais trabalha morre de fome, Porque não tem terra, nem sobrenome. Aquela comunidade de trabalho e união É buscada por muitos como oásis no sertão, Despertanto a ira dos ricos na sua ambição. Sabino, então, sofre triste perseguição. E, pra evitar que o povo sofra retaliação, Refugia-se no amor do Sagrado Coração. Não era padre, frei, nem jesuíta! Falava de Jesus sem palavra erudita. Se a criatura estava falada ou desvalida Pra ele, jamais acabada ou falida... Peregrina pregando o amor nessa secura E leva aos que encontra a água da candura.

O AGUADEIRO


A IR A E D E Z BEN

Jerusa, menina ainda em fulô, Sabia de ervas pra todo tipo de dor. Estava no seu sangue aquelas sabedorias, Pois vivia nas matas sua remota família. Caboclos, índios, isso não importa registrar! Jerusa, menina das ervas, vozes se punha a escutar. Ninguém lhe dava ouvidos quando dizia Que só sabia das ervas porque as vozes ouvia! Por Jerusa, agora menina moça e formosa, A família decide: “tu vais ser religiosa!” Mais ainda, as vozes lhe serviam de alento Nas noites de solidão naquele convento.


Jerusa cismava num só pensamento: ‘Como Deus podia apreciar tamanho sofrimento?” E quanto mais falava das vozes que ouvia, Mais era afastada de todos e até da luz do dia! Um dia, no convento, sua família convocada. Ali não era lugar pra quem com o além conversava. Jerusa é libertada dos muros do convento. Sua família, porém, a promete em casamento... O moço tem boa figura e nobre religião. Jerusa sonha, enfim, sossegar seu coração. Conta ao noivo das vozes que ouve, com carinho... ‘Arreda, Satanás!” Gritava o moço já pelo caminho. Queria ficar perto do Criador e da Natureza Onde podia ouvir as vozes com mais clareza. Sua família não quer saber de ervas nem das vozes ouvidas! Jerusa agora é tratada como abestada, doida varrida. Naquela penosa situação, Jerusa tem sede de compreensão. A mãe, aflita, busca endireitar o juízo da filha. Na medicina ou no terreiro, procura nova trilha... Jerusa procura entender a mãezinha. Suas vozes dizem: “compreende e caminha!” Consigo mesma pensa: “Ah, Jesus! Quando tiver idade, Saio pelo mundo ensinando seu amor e verdade.”


O CORDELISTA

O sol fagulhante do meio dia Estala no chão e em toda anatomia. Num casebre, choro de criança que nascia Naquela secura, soava como triste melodia. Se o Sol para a vida é alimento, Ali só se via desdita e sofrimento. Casa cheia de criança e panela vazia! Sozinha, a mãe reza e pede a Deus: “sabedoria!” O filho mais novo precisa ser doado Pra não morrer de fome e nem adoentado. Coisa difícil, por amor de todos, um filho entregar! Quem sabe assim cresce e pode até se educar?


A mãe se vai com um grupo de retirantes. Mãe e filho ficam cada vez mais distantes... Pela família nova é batizado e se refaz. Sua graça? Cândido Sereno da Paz! Naquela casa a comida é abundante E o menino vai crescendo inteligente... É um menino meio amarelo e mirrado. Cedo conhece os livros e logo fica letrado! Pra tudo que sente e vê vai logo fazendo versinho. Na alegria ou na dor esse é o Menino Candinho. Com sua inocência e pureza de flor, Onde passa deixa perfume de amor. Candinho em tudo presta atenção! Passarinho, gente, mato e avião. Ouve algo que estala em brasa seu coração: “Candinho não é nosso mano de sangue não!” Sente o peito trincando feito a terra do sertão. Nada versou, ficando mudo feito chão. Mas o menino não tinha aquele nome à toa! Sua fé é radiante e a dor não o atordoa. Começa, então, a versar em sua jornada. Agradece o cuidado daquela família amada, Mas sonhava com mãe que o deu de presente. Seu coração era mesmo resplandecente!


O LAVRADOR Francisco desde menino lavra e semeia. E, pra onde vai, toda a gente sua pessoa apreceia. Aprendeu com a família o ofício de lavrador. Bendiz a terra, planta e colhe com amor! Orgulha-se de vestir de verde a terra nua; Nas noites tem por companheira a lua. Francisco espia e aprende com a natureza: Olha a nuvem, escuta o vento com esperteza. Sabe o mês, o dia e a hora de semear. Dá notícia inté de chuva que vai chegar! Confia em Deus e na terra com sustança... Sua fé nada abala, é colheita em abundância.


Francisco, trabalhador arretado e valente! É madrugada e lá vai ele no seu batente; Do pai, vai herdar o amor pela terra e o sítio. Sem tempo pra tristezas, inicia seu plantio. Agradece ao céu pela família e pela terra em oração. Diante do brilho da lua, vai-se embora solidão... Sua foice passa feito fogo na colheita, Já a sua face forma estranha careta. Ganha, então, o apelido de Chico Labareda! Aquele nome daria nova cara a sua vivenda. Uma proposta de compra veio bater à porta. “A resposta é não! Sou Francisco dos Campos Horta.” Chico tira da terra seu sustento e alegria! Louva a Deus no trabalho de todo o dia. Tinha macaxeira, milho e bananal, Mas avança o grande canavial. Chico tinha a chama do bom trabalho. Agora também chega o algodão querendo atalho. Chico Labareda resiste feito chama em brasa! E, em meio a tanto aperreio, a chuva se atrasa.. Pensava ele: “isso é fase, como a lua minguante, Logo passa e a terra volta a ser verdejante.” Chico mantém sua lealdade para com o Pai!Derrama toda a tristeza numa lágrima que cai...


A REPENTISTA Gaita, rabeca e viola ouvia desde menina! Foi crescendo em meio à melodia, Corina. De família numerosa, a maioria era rapaz. Queria tocar, mas diziam: “nasceu mulher, não é capaz.” Seu nome do meio era Lira, sabia esperar… Aprendeu a tocar e versar só de escutar. Nas festanças toda música era cariciosa. Podia ser arrasta-pé e até religiosa; No coco de embolada ficava contente, Mas se espalhava mesmo era no repente! Para Corina não existia, no mundo, barulho. Na Natureza, com os ouvidos caía, em mergulho.


Em suas canções evoca a ternura feminina Que, mesmo dilacerada no sentimento, é heroína; Não se entristece, nem se revolta de seu destino; Porque toda mulher tem no coração o gérmen Divino. Vez em quando é desafiada por desavisado repentista. Versa e toca fazendo o moço procurar ortopedista. Corina já é moça feita e precisa de pretendente. Parecia um sonho! Aquele noivo era um presente! Rezou e pediu tanto a São João Batista Que lhe apareceu um acordeonista. Vestida de branco e véu de filó, Agora é Corina Lira Rondó. Corina e o amado são só alegria! Sua casa é festa e folia. Ela tem sede de cantoria e amor; Ele satisfaz Corina no seu clamor. A fama dos dois percorre o sertão! Mas o marido sonha em cair no estradão.

O AGUADEIRO


O VAQUEIRO

Numa terra castigada pelo sol faiscante, Vive um trabalhador igualmente causticante. Pequeno e magro, no descanso é desajeitado, Mas intrépido para a ação quando solicitado. O mais bravo dos habitantes desta região É o vaqueiro, cabra mais valente do sertão. Raimundo quer o pai acompanhar; A mãe quer que o menino vá estudar. Não adianta! Põe-se o aboio a ouvir... Lá vai Raimundo o gado perseguir! Aprende com a mãe a ler e escrever e, Com o pai, a viola e o gado tanger.


Junto ao pai aprende um ofício e a ser honrado; A mãe ensina as letras e o dever com o Sagrado. Ainda jovem já tem montaria a contento. É o destemido alazão, Corcelino Pé de Vento! Seguem os dois juntos no trabalho de aboiar. Assim é a vida de Raimundo Valente Aguiar! Costura e enfeita o couro do próprio gibão; Sua reza é o bem no pensamento e na mão. Calado, ágil, astuto, mas um tanto retraído... Por isso, Raimundo Raposa é seu apelido. Tem com o rebanho um trato especial; Aprende na caatinga a amar todo animal. Raimundo honra o trabalho e o dever; Louva a Deus, que faz o rebanho crescer. Seu aboio canta e conta a vida no mato. Roga a Deus: “não me falte comida no prato.” Sua viola embala e chama a gadaria; Seguem ao longe a toada da melodia

O AGUADEIRO


O RETIRANTE Deolindo vai viver o amor! Seu filho chega quase num andor. Ao céu agradece tanto favor; Está só começando seu labor. De sede, experimenta um torpor; A solidão faz dele um viajor… Naquela paisagem vespertina Uma moça luzia feito lamparina! Era o sol que embelezava aquela figura, Ou seria o sol que de tudo fazia fritura? Sua voz era doce feito rapadura E seu cabelo, ah... balançava com ternura.


Como seria o nome daquele desmantelo de menina? Deolindo cismava: “Será Elza, Lia, Maria ou Vitalina?” Cabra macho que era, se ofereceu pra levar seu caçuá. E, desde então, um pelo outro, passaram a se encantar. Um dia vai buscar água na cacimba. E agora só se vê os dois, pra baixo e pra cima! Casaram-se e encheram a casa de flor! Logo veio um menino enfeitar aquele amor. Arrendou um pedaço de terra formosa. Rosalinda era esposa e mãe carinhosa... Deolindo nem reclamava do sol e de sua luz; Com Rosalinda o sol era amarelo feito cuscuz. A terra agreste sente um sopro ardente. Faíscou uma febre que pegou muita gente! Emplastro, simpatia e muita vela. Rosalinda, triste, quer que a febre seja nela. Vem o doutor e passa remédio caro, Mesmo assim a família diz adeus ao filho raro.

O AGUADEIRO


A Cia Espírita Laboro, pela estética de sua singela poesia e sensibilidade, tão típicas de suas produções, faz um novo e grato convite... Uma encantadora e comovente romaria! Nela, o ambiente agreste, a secura e a desolação não serão o fio condutor a sinalizar o rumo ou a essência de nossas dores ou os desafios impostos por nossas próprias Quimeras. Não... Serão luzes, brilhos, ainda que tímidos, a indicar o lugar onde já reside a fonte abundante a nós ofertada, sempre, pelo Aguadeiro. Vamos então, juntos, beber dessa água derramada em fartura! Jesus nos espera calmamente...

AUTORIA DOS CORDÉIS:

Érica Veloso

ILUSTRAÇÃO PERSONAGENS:

Geraldo Mendes Veloso REVISÃO:

Vilmar Vilaça DIAGRAMAÇÃO:

Júlio Corradi w w w.c i a l a b oro.c om .br


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.