Roberto luiz Colaço
Comunicação, Estudos e Consultoria Florianópolis - 2013
C683m Colaço, Roberto Luiz Mundo virado : revirando a América do Sul / textos, fotos e ilustrações: Roberto Luiz Colaço. – Florianópolis : Ed. do autor, 2013. 168p. : il. ISBN: 978-85-66525-01-4 1. Colaço, Roberto Luiz – Viagens. 2. América do Sul – Descrições e viagens. 3. Diário de viagens. 4. Viagens – América do Sul. I. Título. CDU: 910.4(8) Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
Textos, fotos e ilustrações: Roberto Luiz Colaço Projeto gráfico: Maria José Hesseine Coelho Diagramação: Cristiane Cardoso Capa: Bruna Ferencz Revisão: Cláudia Regina Pinheiro Pires Criação e manutenção do site www.mundovirado.com.br: Jonathas Mello Impressão: Gráfica Pallotti
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QUEM SOMOS
Altiplano. Bolívia. 2007.
O livro Durante seis anos (de 2006 a 2011) – um pouco a cada ano – rodei, em um pequeno motor home, quase 200.000 Km por alguns países da América do Sul (Brasil, Paraguai, Uruguai, Argentina, Chile, Peru, Bolívia, Venezuela e Guiana).
Monte Roraima. Venezuela. 2011.
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Congado. Brasil. 2006.
Nessas andanças, meio “desgarrado”, viajando quase sempre sozinho, algumas vezes rodando mais de dez horas por dia, durante dias, percorri, em viagens diversas, a Costa Atlântica, o Sertão Nordestino, a Gran Sabana Venezuelana, o Planalto Central do Brasil, o Chaco Argentino, o Deserto do Atacama, o Altiplano Boliviano e Peruano, a Patagônia e a Floresta Amazônica. Por entre estes grandes “biomas”, os cenários, como filme em câmera lenta, foram mostrando gentes e bichos, cidades e comunidades. Desvelando harmonias e desarmonias. Em 2012, apareceu um câncer na minha vida e tive que pegar um atalho por uma estrada muito louca, cheia de quimioterapias, cirurgias e um montão de gente amiga ajudando a “desatolar”. A eles ofereço este livro. Para aproveitar o tempo, enquanto esperava novos ventos para por as “rodas a rodar” novamente,
montei uma exposição de fotos/textos e selecionei algumas anotações do site www.mundovirado.com.br (que mantenho atualizado) para organizar este livro. No livro coloquei a exposição, que já estava na rua há algum tempo. Também coloquei 52 histórias sobre minhas viagens e nelas há de tudo um pouco e o que é melhor: é tudo verdade (por mais que você duvide). Nestes seis anos viajando, ajudei Charles Darwin a melhorar sua teoria sobre a origem das espécies; vi morcego dormindo em pé, vivenciei o massacre dos libertários de Humberstone; viajei com Carlos Drumond de Andrade até a Ilha de Marajó; brinquei de “pega ladrão” com redemoinhos do altiplano; conheci uma mulher que vendia a alma e outra que me contou o grande segredo da Casca D’Anta Baixa. O fio condutor disso tudo? Talvez seja ver o mundo como ele está: VIRADO. Quem leu o rascunho acha que eu deveria dizer por que, no livro, as histórias não seguem uma ordem cronológica. Eu também acho, só que não sei exatamente por que iniciei por 2008 (Patagônia), depois 2010 (Pantanal) e por aí a fora. Bem, pra não complicar, cada um olha na ordem que quiser. Boa leitura.
E eu Meu nome é Roberto Luiz Colaço. Nasci 27 graus ao sul e 51 a oeste da imaginária linha de Greenwich (em Capinzal), no dia 17 de julho de 1950.
Barra da Lagoa 2010. Florianópolis. SC/Brasil.
Com dois anos caí da escada e quebrei a clavícula esquerda. Trinta anos depois caí de moto e quebrei a clavícula direita. Em 1955, aos cinco anos, comecei a usar óculos para corrigir a miopia. Quarenta e cinco anos depois fiz cirurgia para livrar-me dos óculos. Em 1965, com quinze anos, sai da casa de meus pais para estudar. Com vinte, entrei na Faculdade e com vinte e cinco, comecei a trabalhar. Em 2010, com sessenta anos e trinta e cinco de trabalho, me aposentei. Em 1980, com trinta anos, viajei de moto 25 mil Km pelo Brasil e, com trinta e cinco, fui conhecer Cuba. Em 2000, já aos cinquenta, comprei um saxofone para aprender a tocar e um pranchão para aprender a surfar. Com cinquenta e cinco comprei uma Casa Rodante para viajar. Em 2020, com setenta anos, largo a Banda Gafieiralight onde toco e inicio carreira solo e em 2040, com noventa, paro de surfar, de viajar e vou ouvir e contar histórias. Em 2050, aos cem anos, finalmente, pretendo descansar.
Banda Gafieiralight. Da (E) para (D): Fancello, Ana, Eu, Ane, Segalin, Marcelo Frias, Marcelo Carioca e Pedrinho.
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COMEÇOU ASSIM...
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Na casa onde passei a infância havia uma enorme escrivaninha de madeira envernizada. Entre a escrivaninha e a janela, uma cadeira giratória também de madeira com uma almofada de couro. Sobre a escrivaninha, um vidro tomava quase toda a superfície do tampo e por baixo, um enorme mapa-múndi desenhado em um papel amarelado. Ficava horas e horas viajando naquele mundo de papel. Um dia, tentando subir na cadeira, escorreguei e caí. Improvisei então dois degraus pelo lado da frente da escrivaninha onde, de pé, eu alcançava o tampo e olhava o mapa de cabeça para baixo. No mapa, aprendi onde fica “socorraM”, e também que o “lisarB” fica na “acirémA”. Mas tinha que espichar o corpo para alcançar o lugar que mais me encantava. Era um lugar branco, de um branco brilhante como uma luz e ficava lá no lado de cima do mundo e nele estava escrito “LUS”. Aos seis anos fui para a escola. Sentávamos dois alunos em cada carteira, e uma tarde por semana a professora distribuía um enorme Atlas Geográfico para cada carteira. Acostumado com o mundo lá de casa, usava um espelhinho oval para, pelo reflexo, ver o mundo da escola. Foi meu segundo contato com um mapa-múndi.
...vendo o Mundo Virado
Mapa de Desliens Como todo mundo insistia que era meu olhar, e não o mundo que estava virado, acharam por bem me enquadrar num enorme óculos com lentes “de fundo de garrafa”. No início não gostei, mas logo fiz sucesso usando as lentes para, no sol, queimar papéis ou torrar formigas. Daí veio meu interesse pelo estudo dos ângulos, longitudes e latitudes. Em 2005, já com 55 anos, entre o folhear de uma e outra revista em um consultório geriátrico voltei a pensar: mais quatro anos chego aos 60 e me aposento. O que fazer então? Como fazer a transição? De repente, uma foto chamou a atenção. Nela, um campo gramado e embaixo de uma árvore um mo-
tor home (que me habituei chamar Casa Rodante). Enquanto lia a matéria lembrei que há uns 15 anos pensei seriamente: em vez de apartamento, comprar e morar numa casa sobre rodas. Ficou como mais um sonho de um quarentão. Olhei, um a um, os seis pacientes que estavam na sala. Olhei a secretária que, pela quinta vez, me olhou com olhos se desculpando pelo atraso do médico. Procurei outra revista. Abri e li “sobre dar um tempo na vida, fazer um período sabático”. Interessante. Mas quem tem coragem de sair pelo mundo, desgarrar-se de tudo por um tempo? Ah! se eu tivesse 30 anos a menos...
Aquarela. Meu primeiro mapa-mĂşndi.
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Impaciente pela minha paciência em estar ali passivo, levantei mais uma vez para tomar água e não sei por que lembrei-me de um poema do Raul Seixas que dizia assim: “Eu é que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dente, esperando a morte chegar...”. Voltei ao meu lugar e na mesma revista uma reportagem sobre como registrar uma viagem em aquarelas. Completou-se a trilogia: motor home – período sabático – aquarelas. Nove meses depois, em agosto de 2006, revisei pela milésima vez a lista de tarefas e finalmente saí, para uma viagem de quatro meses pelo Brasil, em um pequeno furgão transformado em Casa Rodante. Aposentadoria? O que fazer depois? Como completar a transição? Xi... com esta correria toda esqueci de pensar sobre isto. A partir de então, pareceu-me, mais que nunca, que o mundo é redondo mesmo - e se for como parece ser - quanto mais se roda mais perto se está do mesmo lugar. Peter Nichols, em seu livro “Uma viagem para loucos”, diz que Ismael, o marinheiro de Moby Dick, ao completar a volta ao mundo, pergunta-se: “Para aonde conduz toda essa circunavegação?”, e responde: “Apenas nos leva a passar por incontáveis perigos até que voltemos exatamente ao ponto de onde partimos”. Além de redondo, também parece que está virado, de cabeça para baixo. Quase sempre, “mundo virado” aparece como inversão, subversão da ordem, seja econômica, ambiental, social, daquilo que está ordenado. E, não são poucos os “subversivos”, coincidentemente, quase todos vivendo do “lado de baixo do Equador”. O argentino Quino, criador de Mafalda, coloca a pequena contestadora relacionando subdesenvolvimento com o mundo de ponta cabeça. O quadro “América Invertida”, de 1943, do artista uruguaio Torres Garcia, retrata a América do Sul de “cabeça para baixo” representando a necessidade de criarmos alternativas a partir do Sul.
Em 1567, o cartógrafo Nicolas Desliens, fez um mapa-múndi tal como ele o via: virado. Desliens, ironicamente, dizia aos que lhe contestavam. “Se a Terra é redonda tanto faz como é representada”. Humberto Ecco, em seu “A ilha do dia anterior” assinala que o meridiano de Greenwich, assim como as demais longitudes e latitudes são apenas convenções, como tantas outras, mais afinadas com intrigas mundanas do que com o universo. No decorrer da história, filósofos, profetas e políticos, convencionaram mais de uma dezena de locais por onde passaria o primeiro meridiano. “Ptolomeu fê-lo passar por Alexandria, no Egito. Ismael Abulfeda assinala-o em Cádiz. Alfonso, Pigafetta e Herrera em Toledo; Copérnico coloca-o em Fruemburgo; Kleper em Uranisburgo; Luís XIII fixa a linha na parte mais ocidental da Ilha do Ferro, e assim por diante”. Em 2007, no noroeste da Argentina, conheci uma família francesa que viajava pela América do Sul em uma Casa Rodante. Tornamo-nos amigos, mas cada vez que eu falava sobre o “mundo virado” eles sorriam e, “a francesa”, mudavam de assunto. Tempos depois, surpreso, recebi uma foto deles com o “Mundo virado”. A tese continua fazendo adeptos. Um amigo mandou um mapa das Américas, em forma de ampulheta, com cálculos precisos “provando” que o Pólo Norte está menor que o Pólo Sul porque, estando embaixo, pinga. Outro quer porque quer que eu coloque no livro que as ferraduras foram inventadas para que, no Hemisfério Norte, os cavalos não despencassem. Um terceiro, argentino de Córdoba, lembrou que pela lei dos gases, de Boyle-Mariotte e Gay-Lussac, o ar quente sobe e o frio desce. Como o ar da Patagônia é mais frio, desce, logo, “no hay dudas” (não há dúvidas): a Patagônia está do lado de cima. Quando bate a dúvida e o medo do ridículo, tiro do bolso e (re)leio um conselho de Eduardo Galeano: “Escrever o que se vive é coisa de pouca ou nenhuma graça. O desafio está em viver o que se escreve” e sigo adiante.
Ushuaia: Início ou fim?
Objetos de viagens.
De que lado estou?
Continuando...
Família francesa (des)vira o mundo.
Tem que ter um projeto? Entre o ter e o não ter, passei um tempo esboçando alguns. Lembro que um era pesquisar sobre os nomes dos bares que eu encontrasse pelo caminho. Logo me dei conta de que, se parasse em cada boteco, correria o risco de não completar nenhuma viagem. Mesmo assim, aprendi que ter um plano é muito importante, por isso planejo cada viagem com todo cuidado. Mas, aprendi também que, um plano não é um trilho e sim uma trilha, com rumo, que admite e prevê atalhos e desvios. E, por melhor que seja, sem concretizar-se, não passa de um simples plano. Pronto, está aberta minha trilha. O resto é pôr o plano em prática. No meu caso, colocar as rodas a rodar. Não me guio muito por guias convencionais. Li um sobre o Peru e a Bolívia que, preconceituosamente, dizia que em tal rua de La Paz “só tinha índio e turista”. Outro, que consultei sobre uma rota específica, respondeu que eu não passaria com chuva e sem tração 4x4 pela Transoceânica, na selva amazônica peruana. Passei. Gonçalo Cadilhe, um viajante português que escreve sobre suas viagens disse “sem guia, espero perder menos tempo com lugares de assombro pré-assegurado; e surpreender-me assombrado em lugares não mencionados no guia”. Como não tenho muita paciência de pesquisar na internet e em alguns lugares por onde ando, em que não há sequer luz elétrica quanto mais internet, levo sempre uma bússola e um pequeno Atlas Geográfico Escolar. Por meio dele vou acompanhando o relevo, a vegetação, os recursos naturais e outras coisas. Em Sicuani, uma pequena cidade perto de Cuzco, no Peru, deixei a Casa Rodante em uma oficina “de fundo de quintal” para vir ao Brasil buscar uma peça que tinha quebrado. Por dez dias Juan, o mecânico, cuidou da casa, trocou a peça e, ao final, em troca de tudo, pediu-me, como quem pede um tesouro, o velho Atlas para “hacer un regalo a su hijo” (“dar um presente a seu filho”).
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A casa rodante A escolha do veículo Para um “marinheiro de primeira viagem” como eu, a escolha do veículo foi, ao mesmo tempo, prazerosa e angustiante. Novo ou usado? Grande, médio ou pequeno? Marca X ou Y? Tração dianteira ou traseira? 2x4 ou 4x4? Com chassi ou monobloco? Comprar e construir ou comprar já construída? Eu necessitava de um único veículo para ir ao trabalho, viajar e morar, um veiculo rápido, leve e fácil de manobrar, com uma boa rede de assistência técnica na América Latina, um preço razoável e em bom estado para durar muito tempo.
Projeto: vista de cima.
A construção da Casa
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Da compra até a primeira viagem foram quatro meses para transformar um furgão para transporte de cargas em uma confortável Casa Rodante. Primeiro, foi colocado um assoalho com compensado naval. Depois, para fortalecer a carroceria, foram soldadas várias barras de ferro. Em seguida, foi colocada a tubulação para a parte elétrica e hidráulica. Para o isolamento térmico e acústico foram usadas placas de isopor de até 15 cm de espessura e uma manta térmica de 12 mm. Então, a lataria foi cortada para a colocação das janelas. Para completar o isolamento, foram colocadas chapas de compensado de 10 mm e, por último, uma forração de fórmica. E, finalmente, foi feita a regulamentação no Detran, da transformação de Furgão para Casa Rodante.
Projeto: vista lateral direita.
Tralhas & Tralhas
Furgão para cargas.
Reforço na lataria e tubulação hidráulica/elétrica.
Isolamento térmico/acústico.
Abertura das janelas.
Compensado naval e fórmica.
Energia solar/painel fotovoltaico.
Depois da escolha do veículo e a construção da casa, chegou a hora de decidir como equipá-la e que utensílios levar. Uma máquina de lavar roupas ou uma biruta para verificar a direção do vento? Levei a biruta e, no lugar da máquina, um balde e uma cordinha para servir como varal. Levo também, termômetro de máximas e mínimas para acompanhar as variações de temperaturas de tempos em tempos; bússola; Atlas Geográfico da América do Sul; lupa de bolso; mochilas; mapas e duas lanternas, uma grande e uma de bolso. Além disso, coloquei grade nos faróis dianteiros e radiador, protetor do tanque de combustível, dois pneus sobressalentes, cambão (para rebocar) de três metros e um cabo de aço de ½ polegada e dez metros de comprimento. Levo ainda dois triângulos para sinalização e um adesivo 90 Km/h . Ainda, equipei a casa com duas bombas d’água; vaso sanitário; geladeira; aquecedor de água; fogão; forno elétrico; televisão; inversor; conversor e um climatizador instalado sobre a cama. No teto fiz uma varanda e instalei um painel fotovoltaico.
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Rodando em uma Casa Rodante 42 graus acima de zero/Piauí.
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Algumas vezes penso que inventaram o mundo redondo só para que a gente pudesse rodar nele. Outras, como bom canceriano, acho que tenho um pé na Lua (ou na estrada) e outro em casa. Por umas e por outras, nesta cruzada resolvi rodar levando a casa junto. Rodar em uma Casa Rodante como a minha tem suas peculiaridades. A primeira delas é que se mora num espaço reduzido. Minha casa tem 2m x 4m, e nestes 8 m2 tenho: quarto com cama grande, TV e guarda-roupa; cozinha com fogão, pia, geladeira, mesa e armários para louças e comidas; sala de estar com TV e aparelho de som; banheiro com sanitário, pia e chuveiro com água quente; escritório com computador e estante para livros, mapas, máquina fotográfica e material de aquarela; adega com capacidade para 6 garrafas e uma despensa enorme onde guardo cadeiras de praia, peças de reposição, estoque de alimentos, caixa de ferramentas, barraca para visitas, lembranças de viagens, etc. Como a casa não é muito grande tive que adaptar o espaço entre a sala de estar e o hall para fazer musculação e estudar saxofone. Tenho ainda, no porão, uma caixa d’água com 140 litros de água potável, e na varanda, levo um pranchão de surf. Quando recebo visitas... Bem, quando recebo visitas... A segunda peculiaridade é que este espaço, além de reduzido, é também móvel e, sempre, antes que se mova, tenho que colocar cada coisa no seu lugar. Passando por onde passei, é quase um milagre ainda
8 graus abaixo de zero/Patagônia.
Hall, sala de musculação e estúdio de música.
Sala de TV e escritório.
Cozinha (esq.) e sala de jantar (dir.).
não ter quebrado uma cafeteira de vidro e as duas taças de cristal que levo. Não sei bem qual a relação, mas lembro que no lugar onde trabalhava, tinha um cara que se orgulhava de, em 38 anos de serviço, “nunca ter carimbado nenhum documento de cabeça para baixo”. Colocar cada coisa no seu lugar é um exercício de memória para sempre (re)colocar as coisas nos mesmos lugares, o que não é fácil em se tratando de uma miniquitinete que se movimenta. Procuro levar, e levo, a cada viagem, menos coisas, mas mesmo assim, sempre acho que levo mais do que necessito.
Administrar uma casa significa fazer comida, faxina, ir ao supermercado, consertar o encanamento, trocar lâmpadas, lavar a louça, a roupa, e tudo (ufa!) mais que se faz para manter uma casa. Fazer uma viagem longa de carro exige manter o carro. Calibrar pneus, abastecer, trocar óleos e filtros, fazer revisões periódicas, confiar em oficinas e mecânicos, e mais uma lista interminável de tarefas que se renova a cada dia. Viajar, sozinho, em uma casa montada sobre um carro, é fazer tudo isso e tomar sozinho, todas as decisões - desde onde estacionar até que país conhecer
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Guarda-roupas
Tomando sol na varanda.
- e assumir as consequências. Lembro de uma noite, em Aríca, no norte do Chile, onde fui dormir viajando para o Peru e acordei entrando na Bolívia. Para não desanimar ninguém que esteja pensando em se tornar um viajante independente, lembro que viajar só, seja em uma Casa Rodante ou não, é decidir por conta e risco se você quer dormir em frente a uma praia escutando as ondas do mar, ou quer ver o pôr-do-sol do alto de uma colina, ou quem sabe, ambos. Você decide. De todo modo, viajar, viajar só, em dupla, família ou comboio são opções (e muitas vezes necessidades) que se colocam a cada viagem e cada uma tem vantagens e desvantagens. O que não se pode esquecer jamais é que, como diz Hannah Arendt: “a condição que nos torna humanos é o fato de estarmos em relação uns com os outros”.
Cozinha e quarto.
Banheiro.
Guarda-louças e adega. 19
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PATAGテ年IA
2008
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Pés grandes e Virados Enquanto finalizava os preparativos para ir à Patagônia, me perguntava se não estaria apenas executando uma rotina, um calendário pré-fixado. Alguma coisa dizia que não. Ano passado fui até Cuzco que, dizem, é onde fica o umbigo do mundo. Se tem umbigo, tem cabeça e pé e, se tem pé e cabeça, um dos dois poderia estar na Patagônia. Lembrei das anotações de Bruce Chatwin, viajante e escritor inglês que perambulou pela Patagônia por uns seis meses na década de 70 e escreveu um livro relatando suas andanças. Não sei bem o que buscava, se fósseis de brontossauros ou o começo do mundo, ou ambos. Sei que acabou encontrando um unicórnio “de pescoço grosso e corpo delgado” no Cerro de los Índios. Também vi um, só que na hora da foto, ele, talvez por timidez, recolheu a cabeça dentro do pescoço. Assim, interessei-me mais pela conversa de Chatwin com o Padre Manuel Palácios, que contou que “um ancestral do homem viveu na Terra do Fogo antes do australopiteco africano” e, “o último deles foi visto em 1928”. O livro de Chatwin faz referências também a Florentino Ameghino, importante antropólogo argentino, que montou um museu e defendeu a origem sul americana de algumas espécies. Durante a viagem vi o museu, mas não encontrei o padre. Histórias como a do Padre Palácios e pesquisas como as de Florentino questionam se a “marcha” da humanidade começou mesmo na África e há 20 mil anos cruzou o Estreito de Bering para chegar ao Alaska e dali ao sul até as beiras da Antártida. A tese inversa, que coloca o início de tudo no extremo sul da Patagônia, é tentadora. Seriamos todos filhos dos antípodas, os homens de pés virados que habitavam o “lado de baixo” da Terra?
Unicórnio tímido. Ruta 40.
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Um arco-íris ilumina a noite. El Calafate. Argentina.
Rangendo, a Casa Rodante pende e meus pés escorregam até encontrarem a parede ao sul. Num instante, o vento vira e minha cabeça escorrega e bate contra a parede ao norte. A cama vira gangorra e a ca-be-ça-so-be-e-os-pés-des-cem-e-a-ca-be-ça-des-ce-e-os-pés-so-bem e ambos batem nas paredes. Nem é necessário consultar o GPS, tenho que imbicar de frente para o Atlântico e fugir do vento forte e gelado que vem do Pacifico pela Cordilheira dos Andes. Coloco o capote corta-vento, as luvas, e o gorro. Acendo a lanterna, corro lá fora, tiro os
Los Andes. Chile.
Minha primeira noite na Patagônia calços das rodas e recalculo onde recolocá-los. Volto, ligo o motor e manobro até sentir o vento forte bater de frente na porta dos fundos. Vou para a “cama-doce-cama” e sinto a cabeça mais baixa que os pés. Mudo de lado, não adianta. Levanto, procuro o nível, coloco-o no painel e, da maldita bolha, só vejo uma nesga que mais parece o canto de um olho esverdeado a me espiar. Devo estar inclinado uns 20 graus norte-sul. Pego novamente a lanterna e saio em busca de mais calços para nivelar a Casa. Consigo duas pedrinhas e três galhos secos. Antes que as pilhas da lanterna, já
El Calafate. Argentina.
cansadas de tudo isso, finjam-se de descarregadas e apaguem, faço rápido um cocuruto na frente das rodas traseiras. Ligo o motor e acelero forte, mais forte. Subiuuuuu, subiu e ... atolou. Largo tudo e volto para a cama, na passagem pela cozinha pego uma garrafa de vinho e um cálice de cristal. Dizem que ambos, o vinho e o cristal, são bons para o equilíbrio. Deve ser verdade pois, depois de algum tempo e uma segunda garrafa, espio lá fora e tudo parece no seu lugar: o gelo continua azul, leões-marinhos bocejam no quintal de casa e um arco-íris ilumina a noite.
Ushuaia. Argentina.
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As cores do outono. Lapataia. Ushuaia.
No momento que coloquei as rodas na estrada me convenci, definitivamente, cada viagem é uma viagem e, à Patagônia, única. Aos 38 graus latitude sul, perto de Bahia Blanca, encontrei um norte-americano que tinha saído da Califórnia há quatro meses em uma motocicleta. Escrevia para uma revista de turismo e queria saber o que melhor simbolizaria esse “lugar no fim do mundo”. O americano, com sua Harley Davison, rodava, por dia, o dobro que eu na Casa Rodante. Em compensação, em cada lugar, eu ficava metade do tempo dele. Assim, como na fábula da corrida entre a tartaruga e a lebre, ultrapassando e sendo ultrapassado, percorremos quase 3 mil Km emparelhados. A cada parada, quanto mais avançávamos naquele deserto geográfico e humano, ele, invariavelmente, voltava à questão sobre o que simbolizaria a Patagônia. Parecia obstinado em sintetizar aquela imensidão, talvez para torná-la menor de modo que coubesse dentro dos limites humanos. Reencontrei-o pela última vez em um pequeno restaurante em Ushuaia, comendo centolla - uma espécie de lagosta gigante deliciosa e cara. De repente, como que engasgado com a comida picante, o “gringo” levantou-se e foi direto até a parede situada as minhas costas onde havia uma enorme tela pintada a óleo, com o verniz já ressecado pelo tempo e a moldura carcomida pela umidade. Nela, uma planície imensa, marrom-escuro, quase sem vegetação, ocupava toda a metade inferior da tela. Na outra
A lebre e a tartaruga
O Norte cada vez mais longe.
metade, havia um céu cinza-escuro, quase chumbo. No centro, lá longe, onde as retas se encontram, “un gaucho, con sus dos caballos” (um gaúcho com seus dois cavalos) desapareciam no horizonte. “Isto é a Patagônia, esta é a síntese”, disse entre eufórico pela descoberta e melancólico pelo que descobrira. Virei-me, olhei o quadro escuro, mas me vieram aos olhos todas as cores – vermelhas, verdes, azuis, amarelo ouro, púrpura, ocre – que a natureza usou para colorir as folhas caducas dos bosques da Patagô-
O Sul no horizonte.
nia neste outono. Definitivamente, aquela pintura era apenas uma parte da Patagônia. A outra é cheia de pássaros, guanacos, emas, leões-marinhos, pinguins, coelhos e mais uma infinidade de bichos do ar, da terra e do mar. No dia seguinte, ele despachou a moto em um cargueiro e voltou de avião para casa. Eu, atravessei os Andes e, no Chile, fui até Nieblas, na tranquila e bela Bahia do Corral, onde o rio Valdívia encontra o Oceano Pacífico.
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Bom dia, Não tem o Seu Zé Perri? Aquele aviador que parava ali no campinho do Campeche antes de ir pro sul da Argentina? Descobri onde ele conheceu o cara que vivia num mundinho tão pequeno que a cada hora tinha um pôr-do-sol. Ontem, um pouco depois de Ushuaia, em Lapataia, que é onde as águas se encontram e engolem a Terra, eu e o acendedor de lampião vimos - da varanda da casa rodande - o sol nascer no Atlântico e morrer no Pacífico.
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Boa noite, Entre o nascente e o poente só deu tempo pra eu contar que no Campeche tem uma avenida chamada Pequeno Príncipe, e ele pra dizer que foi demitido depois que a luz elétrica chegou a Lapataia. Depois disso, anoiteceu e, uma vez mais, viramos as cadeiras para o leste para ver mais um dia amanhecer. Bom dia.
Um jovem naturalista
Em 28 dias percorri 13.500 Km, rodando em média 800 Km por dia. Mesmo assim, ou por isto mesmo, consegui chegar no tempo e lugar certo para ver o nascente, o poente e o nascente novamente com o acendedor de lampiões, amigo do “Seu-Zé-Perri”, que é como chamavam a Saint Exuperry, na Ilha onde moro.
Tinha anotado o pedido de um amigo para entregar um pequeno pacote a um inglês que deveria estar em uma embarcação ancorada aqui no Puerto de San Julian. Encontrei-o em uma bodega perto do cais e, enquanto comíamos os alfajores que estavam no pacote que meu amigo mandara, Charles Darwin, que era como se chamava o inglês, permanecia quieto, talvez pensando em como equacionar o dilema entre religião e ciência. Fiquei em dúvida se deveria propor um brinde pela sua publicação da “Origem das espécies”. Mas, como estava falando com um fantasma e fantasmas, quando bebem, nunca se sabe o que pode acontecer, achei melhor trocar de assunto. Perguntei como estavam suas pesquisas e marcamos de nos encontrarmos à tarde, no Beagle, o veleiro da Marinha Inglesa em que ele passaria cinco anos viajando. No Beagle, mostrou-me alguns exemplares de sua coleção de vertebrados. Nos quatro primeiros frascos havia, respectivamente, já dissecadas, uma pata de sapo, uma asa de gavião, uma nadadeira de tartaruga e uma asa de morcego, e no quinto vidro, um braço humano feito de Pau Brasil. Como o cheiro de formol estava forte, subimos ao convés e, às 17 horas em ponto, nos foi servido um chá. Ele, alheio a tudo, explicava que as extremidades (nadadeiras,
asas, braços, etc.) dos vertebrados tinham a mesma origem anatômica que, ao longo do tempo, foram modificando-se e adaptando-se ao ambiente. Contei das pesquisas sobre o “mundo virado” e ele pareceu concordar que sua teoria tinha uma lacuna por não considerar a hipótese de o mundo estar invertido. Encorajado, disse-lhe então que, como o mundo está de ponta cabeça, os ursos que vivem no pólo norte (embaixo), por exemplo, para adaptar-se, criaram garras para agarrar-se e não cair para fora do mundo. E que os pinguins que vivem no pólo sul (em cima) só têm nadadeiras, pois não correm o risco de despencar e extinguir-se. Mostrei-lhe uma cópia do mapa de Nicolas Desliens, de 1567, no qual representa o mundo invertido. Desliens, ironicamente, dizia aos que lhe contestavam: “Se a terra é redonda tanto faz como é representada”. Quando ia falar sobre os morcegos que, no hemisfério sul, ao contrário dos do norte, dormem de dia e em pé, Darwin levantou-se e secamente disse: “a tese do mundo virado é boa, mas correríamos o risco de a França ficar em cima da Inglaterra, o que é inaceitável para o Império” e a conversa terminou ali. Como já era tarde, segui para Río Gallegos. Tentei dormir em um posto de serviços da YPF na entrada da cidade, mas havia música alta, e a noite toda. Às 4h da madrugada tive que procurar outro lugar para dormir.
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Quem avisa amigo é...
Duas Bicicletas na Ruta 40
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A mítica “ruta 40” começa (ou termina) no oceano Atlântico, um pouco ao norte do Estreito de Magalhães, na divisa sul da Argentina com o Chile e vai, beirando a Cordilheira dos Andes, até a fronteira norte da Argentina com a Bolívia. De “cabo a rabo”, nos seus 4.500 Km, tem metade asfalto e metade pedregulhos soltos ou “de rípio”, como dizem “los hermanos”. Amigos franceses - misturando um francês, que entendo pouco, com um espanhol que eles falam mal – me disseram para pegar uma balsa no estreito de Magalhães, entre Porvenir e Punta Arenas, mas que “Il n’a plus barcaça landi” (não há barco nas segundas). Por um “pequeno erro” de tradução, troquei landi por lua e, achando que os franceses tinham endoidado, errei o caminho e entrei na Ruta 40 e por ela rodei 1.500 Km durante sete dias, 700 deles sacolejando por entre a poeira que entrava por todo lado e as pedras que batiam na lataria o tempo todo.
Ciclista na Ruta 40. Argentina.
O saldo foi um para-brisa quebrado, dois tanques de água potável furados e um pneu rasgado, mas valeu a pena, e como valeu. No quarto dia, no pior trecho, a uns 350 Km depois de El Calafate e outros 350 antes de Perito Moreno, encontro um casal de ciclistas, com duas crianças pequenas, que avança, carregado como burro de carga, 50 Km por dia, dispostos a vencer os 4.500 Km desta estrada que rasga a Argentina do sul ao norte. Ofereço carona, eles agradecem, mas recusam. Aceitam um café quente, feito na hora, enquanto trocamos informações sobre as condições do tempo, das estradas e dos locais mais seguros para pernoites. Lá fora, o vento gripado, não venta, tosse e espirra cristais de gelo. Dentro da Casa Rodante, as crianças, exaustas, se encostam e dormem. Eu e o casal de desconhecidos, sedentos por contar e ouvir histórias, atravessamos a noite falando sobre coisas que, como dizia o poeta Adoniram Barbosa, “nóis não entende nada”. Ruta 40. Patagônia.
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