Fatos relevantes em saúde Esta seção procura evidenciar fatos na área da Saúde que representem um marco a partir do qual novos caminhos poderão ser trilhados. Os fatos aqui apresentados são pioneiros ou instigantes e sempre trarão informações úteis aos profissionais da área da Saúde. Luis Fernando Aranha Camargo Editor da seção
Infecções fatais por E. coli na Europa: aspectos microbiológicos e clínicos Marinês Dalla Valle Martino1, Fernando Gatti de Menezes2 Laboratório de Microbiologia do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. Serviço de Controle de Infecções Hospitalares do Hospital Israelita Albert Einstein – HIAE, São Paulo (SP), Brasil. 1 2
Surtos por agentes infecciosos ocorrem com frequência e muitos têm hoje o potencial para disseminação global em virtude das características de mobilidade da população mundial. A maioria emerge em países em desenvolvimento, relacionada a condições sanitárias precoces e com disseminação associada à falta de recursos para contenção. Este ano, houve relato de surto com alta taxa de letalidade em uma das regiões mais ricas da Europa. Além do inusitado da origem geográfica, chamou a atenção a alta letalidade relacionada às infecções. A seguir, um breve resumo dos principais aspectos clínicos e microbiológicos do surto.
O surto na Alemanha associado à Escherichia coli O104:H4 No dia 22 de Maio de 2011, a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi notificada pela Alemanha da ocorrência de um grave surto de infecção, que, desde a segunda semana daquele mês, havia causado 276 casos de síndrome hemolítico-urêmica (SHU) e 3 mortes. Naquele momento, o agente suspeito era a Escherichia coli O104:H4 e, apesar das investigações sobre a fonte ainda não serem conclusivas, considerava-se como provável a contaminação de pepinos provenientes da Espanha. Assim, o Instituto Robert Koch, da Alemanha, recomen-
dava, entre as medidas de precauções, a não ingestão de pepinos, tomates e folhas(1).
E. coli O104:H4
A E. coli, que é uma espécie da família Enterobacteriaceae; além de ser uma bactéria encontrada na microbiota normal do intestino, pode estar associada a quadros intestinais e extraintestinais. Dentre as E. coli diarrreiogênicas, tem-se a E. coli enteropatogênica (EPEC), E. coli enterotoxigênica (ETEC), E. coli enteroagregrativa (EAEC), E. coli enteroinvasora (EIEC) e E. coli produtora da toxina de shiga (STEC)(2,3). A STEC tem essa denominação, uma vez que produz toxinas similares àquela produzida pela Shigella dysenteriae 1 (STx1e STx2), podendo também ser denominada de VTEC (E. coli produtora de verotoxina) pela ação nas células Vero. Compreende ainda a E. coli entero-hemorrágica, cujo sorotipo O157:H7 é referido como de maior importância clínica patogênica. Causam diarreias geralmente associadas ao consumo de água e de alimentos contaminados, principalmente crus ou mal passados, já que a temperatura de 70°C é capaz de inativar a toxina. Após extenso estudo sobre o agente associado a esse surto, chegou-se a conclusão de que existia maior similaridade com a E. coli enteroagregativa, uma vez que apresentava diversos plasmídeos de virulência comuns a essa categoria (aggA, aggR, set1, pic, aap), porém, também detectou-se a presença da toxina de shiga Stx2 (vtx2a) característica de E. coli entero-hemorrágica. Essa combinação sugere a presença de um novo isolado denominado E. coli enteroagregativa hemorrágica (EAHEC), produtor ainda de beta-lactamase de espectro estendido (CTX-M-15). Na rotina laboratorial diagnóstica, a caracterização desse agente oferece dificuldades. As amostras de fezes
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devem ser colhidas em frasco estéril e encaminhadas ao laboratório em swab com o meio de Cary Blair em temperatura ambiente. Pode-se fazer o isolamento do agente e a caracterização do sorotipo, mas o diagnóstico etiológico definitivo necessita de complementação por meio de estudo molecular, já que não se disponibilizam, na rotina, métodos de imunoenzimáticos e nem imunocromatográficos para detecção da toxina. Assim, casos suspeitos devem ser informados ao laboratório, uma vez que essa pesquisa não é realizada na coprocultura habitual. Quanto à origem do surto, ficou atribuída à contaminação de brotos de feijão e sementes germinadas oriundos de uma fazenda orgânica no norte da Alemanha. Ainda, o alerta lançado contra alfaces, pepinos e tomates causou um prejuízo de centenas de milhões de euros aos agricultores europeus, cujo ressarcimento ainda não está acordado entre as partes. A Comissão Europeia anunciou que aumentará em 30% a proposta de indenização aos agricultores prejudicados pelos alertas dos alemães e pelo surto. A primeira oferta, de € 150 milhões (cerca de R$ 347 milhões), foi rejeitada pelo grupo.
E, agora, o surto na França
Apesar do decréscimo dos casos na Alemanha desde Junho, foram relatados casos também associados a E. coli O104 em uma região de Bordeaux, na França. As investigações iniciais não identificaram qualquer dado epidemiológico comum entre os pacientes. Em uma abordagem mais ampla, viu-se que a maior parte desses pacientes havia participado de uma festividade numa escola. Entre os alimentos servidos naquela ocasião, nove pacientes haviam comido brotos de produção local e, provavelmente, as sementes haviam sido adquiridas de um produtor do Reino Unido, sem relação com a Alemanha. As características clínicas e microbiológicas eram as mesmas identificadas na Alemanha(4,5).
Quando suspeitar dessa infecção?
Os principais sintomas são: diarreia, caracterizada pela presença de três ou mais episódios de fezes com consistência líquida ou pastosa (que pode evoluir para disenteria, ou seja, presença de sangue ou muco nas fezes), cólicas abdominais, vômitos e, raramente, febre (menor que 38,5°C), em pacientes provenientes da Alemanha (principalmente) e outros países da Europa ou que tiveram contato com viajantes procedentes dessas regiões nos últimos 10 dias. Casos relacionados à viagem a Alemanha também foram notificados em outros 15 países: Áustria, Canadá, República Tcheca, Dinamarca, França, Grécia, Luxemburgo, Holanda, Noruega, Po-
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lônia, Espanha, Suécia, Suíça, Reino Unido e Estados Unidos. Dados posteriores da OMS (1o de Julho de 2011) informaram que o surto acometeu 4.137 pacientes, levando 50 pacientes a óbito (mortalidade de 1,2%). De uma forma geral, o surto atingiu, principalmente, adultos (média etária de 43 anos), do sexo feminino (cerca de 68%), que evoluíram para uma complicação grave, conhecida como síndrome hemolítico-urêmico em 25% dos casos. O período de incubação (entre a exposição ao agente e o início dos sintomas) varia entre 1 a 10 dias, com média entre 3 a 4 dias. A evolução natural da doença corresponde à recuperação completa e sem sequelas em 10 dias, porém, o quadro pode agravar-se em 5 a 7 dias após o início da diarreia na forma de SHU. A SHU corresponde a um quadro grave de anemia hemolítica microangiopática (hemoglobina < 10g/dL ou hematócrito < 30% ou queda > 5% no hematócrito; pesquisa de esquizócitos > 2/campo 100x; coombs direto negativo, haptoglobina < 10 mg/dL, DHL elevado, aumento de bilirrubina indireta podem estar presentes ou não); plaquetopenia (< 150.000/mm3); sem consumo de fatores de coagulação, ou seja, TTPa, TP, AP e RNI normais (diferenciação de coagulação intravascular disseminada) e insuficiência renal(6).
E o tratamento?
De forma geral, pela elevada morbidade da evolução clínica, recomenda-se a internação de todos os pacientes e, no caso de SHU, a internação em Unidade de Terapia Intensiva. Com relação ao tratamento, recomenda-se: hidratação, reposição de eletrólitos e, principalmente, a não introdução de antibioticoterapia pelo risco de aumento de SHU, assim como se contraindica o uso de fármacos com atividade antiperistáltica. Nos casos de SHU, recomenda-se a avaliação de nefrologista sobre a necessidade de suporte dialítico.
Como prevenir?
Quanto a recomendações para viajantes à Alemanha e outros países da Europa: a OMS não recomenda a restrição de viagens, porém, orienta que se evite o consumo de tomates, pepinos, folhas de verduras, brotos de alfafa e feijão crus(7). De forma geral, preferir sempre alimentos bem cozidos. As recomendações para prevenção de qualquer diarreia e outras doenças de origem alimentar são: a) higienizar as mãos antes e após usar o banheiro, trocar fraldas, cuidar de doentes, preparo ou ingestão de alimentos, contato com animais ou com o meio ambiente, após contato com lixo;
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b) cozinhar, fritar ou assar muito bem os alimentos (atingir temperatura superior a 70ºC); c) manter a higiene da cozinha, não misturando alimentos cozidos com crus; d) evitar o consumo de leite e suco não pasteurizados, assim como água mineral de origem clandestina; e) evitar a prática da natação em lagos, piscinas, rios ou outras coleções hídricas nos locais com surtos de diarreia.
REFERÊNCIAS 1. Robert Koch Institut. EHEC O104:H4 [Internet]. 2011 [cited 2011 Jul 25]. Available from: http://www.rki.de/cln_169/nn_217400/EN/Home/EHECO104 ,templateId=raw,property=publicationFile.pdf/EHECO104.pdf. 2. Brzuszkiewicz E, Thürmer A, Schuldes J, Leimbach A, Liesegang H, Meyer FD, et al. Genome sequence analyses of two isolates from the recent Escherichia coli outbreak in Germany reveal the emergence of a new pathotype: EnteroAggregative-Haemorrhagic Escherichia coli (EAHEC). Arch Microbiol. 2011 Jun 29. [Epub ahead of print]
3. Frank C, Werber D, Cramer JP, Askar M, Faber M, Heiden MA, Bernard H, Fruth A, Prager R, Spode A, Wadl M, Zoufaly A, Jordan S, Stark K, Krause G; the HUS Investigation Team. Epidemic Profile of Shiga-Toxin-Producing Escherichia coli O104:H4 Outbreak in Germany - Preliminary Report. N Engl J Med. 2011 Jun 22. [Epub ahead of print] 4. European Centre for Disease Prevention and Control. Cluster of haemolytic uremic syndrome (HUS) in Bordeaux, France [Internet]. Stockholm: ECDC; 2011 [cited 2011 Jun 7] Available from: http://www.ecdc.europa.eu/en/ publications/Publications/2011June29_RA_JOINT_EFSA_STEC_France.pdf. 5. Bielaszewska M, Mellmann A, Zhang W, Köck R, Fruth A, Bauwens A, et al. Characterisation of the Escherichia coli strain associated with an outbreak of haemolytic uraemic syndrome in Germany, 2011: a microbiological study. Lancet Infect Dis. 2011 Jun 22. [Epub ahead of print] 6. São Paulo (Estado). Secretaria da Saúde. Centro de Vigilância Epidemiológica “Prof. Alexandre Vranjac”. Surto de síndrome hemolítico-urêmica associado à Escherichia coli O104:H4, na Alemanha, maio-junho de 2011 [Internet] [citado 2011 Jun 7]. Disponível em: http://www.cve.saude.sp.gov.br/htm/hidrica/ SHU11_ALERTA0507.pdf 7. World Health Organization. Outbreaks of E. coli O104:H4 infection: update 28 [Internet] [cited 2011 Jun 7] Available from: http://www.euro.who.int/ en/what-we-do/health-topics/emergencies/international-health-regulations/ outbreaks-of-e.-coli-o104h4-infection.
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