Ponto de Observação: breves considerações Palavras chave: Ponto de observação, fixo, móvel, centro, periferia, obra de arte, ponto de fuga, observador, hipertexto, Giotto, instalação, bizantina, mosaicos, sujeito, objeto, Santo Apolinário, renascimento, Leonardo da Vinci, Jan van Eyck, Velásquez, Merzbau, Antonio Manuel, Cildo Meireles.
O ponto de observação fixo é aquele que está ligado ao ponto de fuga e tem um lugar fixo na pintura. Possui um centro e o observador não deve se deslocar. Um exemplo é a Igreja de Santo Apolinário. O observador está sempre frente a frente com o mosaico. É a arte Bizantina. Giotto, algum tempo mais tarde criou pinturas que são verdadeiros hipertextos. Não há ponto fixo para a leitura da obra. Não tem um começo estabelecido. O observador vê a pintura como um todo. Bons exemplos são os afrescos da Igreja de São Francisco de Assis. Jan van Eyck no início do renascimento pinta o “Casal Arnolfini” dentro de um quarto que é um paralelogramo e no espelho podemos ver o observador, nós. Todos se olham mas o ponto de observação ainda é fixo. “A última ceia” de Leonardo da Vinci é exemplar quando se quer pensar em uma pintura que também é instalação. Ela foi feita de forma que os monges faziam suas refeições junto ao Cristo e os 12 apóstolos. Mas não paramos aí. Velásquez apresenta ao mundo “ As meninas” e todos olham para o público menos o cão, que dorme. Ele institui um sistema que deixa sempre a dúvida do tema que ele está pintando. Será o casal de reis? Todas estas obras de arte pedem um ponto de observação fixo, mas no inicio do século XX, as instalações criam o ponto de observação móvel. O observador tem que se deslocar e geralmente percorre um espaço. Podemos dizer que nestes casos, como “Merzbau” de Kurt Schwitters, “Desvio para o vermelho” de Cildo Meireles e “ O fantasma” de Antonio Manuel não possuem ponto de observação fixo. O observador deve caminhar pelo espaço como achar conveniente. É preciso destacar que nem todas as instalações possuem ponto de observação móvel, onde não há centro nem periferia, mas usamos os melhores exemplos para apresentar o Ponto de observação móvel.
Ponto de Observação: breves considerações
O Ponto de Observação , entendido pelo viés contemporâneo sempre existiu nas artes visuais e podemos apontar alguns aspectos relacionados a ele, como ponto fixo ou móvel, determinante de um isolamento do público ou não e a relação do centro e da periferia na obra de arte. Como ponto de observação fixo, entendo aquele local determinado pela obra, no qual o observador tem que se colocar para ler o que lhe está sendo proposto. É o caso da pintura com um ponto de fuga. O ponto de observação móvel se aproxima mais do século XX, porque no início da modernidade, o público já não era mais induzido a ocupar um ponto de observação fixo. Um público isolado pode ser aquele que se coloca obrigatoriamente diante da obra com um ponto de fuga, e como dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço, é preciso que naquele local só haja um observador. O público não isolado, por sua vez, é aquele que está dentro ou diante de uma obra que trabalha com o hipertexto. É o caso de afrescos de Giotto ou instalações contemporâneas. O centro e a periferia estão dentro da obra ou fora dela. Um centro pode ser o local onde está o ponto de fuga, que determina nosso olhar e todo o sistema hierárquico dentro da pintura. O centro não identificável, logo, periferia também aparece nos trabalhos de Giotto e em inúmeras obras desde o início do século XX. A arte paleocristã, que obriga o fruidor a ficar frente a frente com os mosaicos, é um excelente exemplo também para o ponto de observação fixo. Como um desdobramento da incorporação da doutrina cristã pelo mundo romano, a pintura bizantina elaborou um espaço pictórico de certa forma simples, mas nem por isso pobre. Os fundos quase sempre dourados e as figuras colocadas lado a lado, no mesmo plano, mantinham o observador posicionado de frente para a pintura, ambos estáticos: sujeito e objeto.
A Igreja de santo Apolinário – sec VI . Varias imagens.
( Como podem ver, esta foto tem direitos autorais para alamy. Mas foi a melhor que achei, então, meu muito obrigado). possui as laterais da nave ilustradas com mosaicos. As figuras ficam lado a lado contra um fundo dourado e sem profundidade. O mundo era visto como um enfrentamento entre as figuras que detinham o poder religioso e político e nós, os observadores. Para podermos perceber todo o conjunto dos mosaicos precisamos nos deslocar, em direção à abside, mas a posição de cada um é clara e não deixa dúvidas. O pensamento implícito nestes mosaicos é hierárquico. Há que se caminhar passo a passo dentro da igreja, figura após figura, com o conjunto numa seqüência linear, até alcançar a figura do imperador e da imperatriz. Existe um princípio, um meio e o fim, logo há uma hierarquia e uma definição clara do que é o centro e a periferia. O conteúdo determina quem é um e quem é o outro, assim como define a hierarquia, por mais belos ou interessantes que sejam todos os elementos componentes dos mosaicos. Há um isolamento relativo, mas o nosso isolamento pode ser determinado pelo das figuras da parede. Mas vejamos onde, nós observadores reais, poderíamos estar nesta igreja: todos alinhados, lado a lado, parados ou caminhando para alcançar o ápice de observação, mas não estamos isolados. Há a possibilidade de um convívio com a pintura sem que seja necessária a exclusão de um outro observador, porque embora linear, a leitura permite que se faça pouco a pouco. É preciso, no entanto caminhar paulatinamente para a leitura dos mosaicos.
O interior da igreja possui um grande conjunto de cada lado. Um único e grande trabalho de cada lado da igreja. Não há como começar a leitura dos mosaicos a não ser pelo começo para que se forme a idéia do que é o conjunto. Resumindo: dentro desta igreja, o observador deve caminhar para chegar ao final da grande imagem. Ela não é fragmentada e impõe o caminhar dentro da igreja. Comparando com uma pintura de Giotto, “O exorcismo dos demônios de Arezzo” c. 1296
percebemos que este afresco não pede nem impõe o isolamento do observador, um ponto de observação único e muito menos determina o local do centro, logo, entendemos que tudo pode ser centro e/ou periferia naquele afresco. Como isso acontece? A pintura encontra-se dentro da igreja de Assis e apresenta uma das etapas da vida de São Francisco.
Afrescos de Giotto. Basilica de São Francisco de Assis, Umbria, Itália. C.1296 Ao entrar na igreja poder-se-ia ter a impressão de que toda ela é uma grande pintura não linear, porque o seu interior é completamente ocupado por imagens e muito embora as diferentes passagens da vida do santo( o chamamos de santo mas a Igreja não o reconhece) lá estejam representadas, é bem verdade que se pode olhar uma por uma e não cronologicamente e muito menos a partir de algum local determinado pela arquitetura ou pela hierarquia entre elas. A leitura das pinturas desta igreja, segundo a nossa vontade não linear nos remete ao que hoje entendemos como hipertexto, formadores da grande pintura que é toda a igreja, porque encontramos fragmentos, isto é, os afrescos separados por recursos arquitetônicos. Podemos fruir as pinturas de duas formas, mas nem sempre uma está necessariamente ligada à outra. A primeira é a possibilidade de leitura não linear de todas as pinturas da igreja. É dado ao observador a possibilidade de começar a visita por onde lhe convier e desta forma cada um constrói a história que lhe é própria. O deslocamento físico do observador segue o caminho que lhe for conveniente e assim o ponto de observação é móvel no espaço, porque se não é importante alcançar um ponto máximo de realização da obra, não há centro nem periferia. Os observadores também não precisam se isolar podendo assim como nas pinturas, se sobrepor, olhar por cima do ombro do outro. Algumas pinturas permitem que se passeie por elas sem preocupação de linearidade e assim estará mais próxima do hipertexto. Giotto foi um artista que o prenunciou. A condição e a leitura de cada afresco segue a escolha de cada
um. O “Exorcismo dos demônios de Arezzo” mostra uma cena que não privilegia nenhum ponto interno. Podemos começar a leitura pelas casas, pelos demônios, pelo santo ou pelas pessoas na porta da cidadela, porque não há nesta pintura um local mais importante do que outro. Uma pintura como esta não determina um só observador frente a ela e acredito, que muito pelo contrário, ela nos diz que há sempre a possibilidade de muitas pessoas a estarem olhando ao mesmo tempo. Não é como a arte bizantina. Isso se mostra evidente nas casas que estão do lado direito da pintura escolhida para análise. Todas elas estão dispostas num canto, aparentemente desorganizadas e chamam tanto a atenção do observador quanto a figura do próprio santo, mas mais interessante é que estando todas elas aparentemente caóticas, também podem ser entendidas como a representação de um conjunto de pontos de observação e assim, simultaneamente, os observadores fruem o mesmo espaço visual e real do lado de fora da pintura. Se não há nenhuma indicação hierárquica, se não é importante seguir um passo após o outro, a pintura de Giotto está mais para hipertexto do que para linearidade. Uma outra questão que se coloca importante é que esta maneira de organizar o espaço interno da igreja foi, de certa forma, apropriada pela contemporaneidade, porque podemos vê-la como sendo uma grande instalação, se partimos da premissa de que o ponto de observação podendo se deslocar, não sendo fixo e não havendo centro e nem periferia e que cada detalhe do espaço não foi desprezado, estamos olhando para uma obra bastante contemporânea. Muito diferente é o Renascimento, que determina locais específicos e fixos de observação de sua produção, à exceção dos retratos de Dürer, por exemplo, que usava o recurso do olhar do objeto na altura do olho do sujeito e assim, com um truque de ótica, induz o observador a se deslocar e ser observado pelo objeto, numa inversão dos papéis até então definidos de sujeito( o observador) e objeto( a pintura). A procura de um espaço simulador de três dimensões durante o Renascimento, de certa forma, colocava sempre a nós, observadores, em pontos bem definidos na realidade fora da tela, mas rigoroso, ele com muita clareza questionou o lugar do observador e do observado. A “Última Ceia” , Leonardo da Vinci.. sec XV.
de Leonardo da Vinci foi pintada de modo a integrar aqueles que ali faziam suas refeições a esse espaço artificial. Suas linhas obrigavam os religiosos a se sentarem em suas posições determinadas a fim de poderem compartilhar o alimento com o filho de Deus e seus apóstolos. Os pontos de observação eram rígidos e definitivos. O número de pessoas no refeitório era limitado pela sua relação interna, proporcional ao esquema geométrico do afresco. O espaço dentro e fora da pintura era bem delineado e impunham o rigor do século XVI com o ponto de fuga que dirige nosso olhar para o alto da cabeça de Cristo, sendo então ele a figura central de toda a pintura, é a tentativa, bem sucedida, de integrar o observador à cena, logo, lhe confere uma dimensão de quase instalação, apesar do ponto de observação ser fixo. O centro é bem determinado e não isola os observadores, já que no espaço de duas dimensões ilude-se a tridimensionalidade característica da época e essa ilusão é reforçada pelo real espaço do refeitório, com os monges se alimentando em comunhão com Cristo e seus seguidores. Estamos discutindo o espaço usando a pintura como referência e não pela arquitetura ou escultura e a maior razão é que por ser absolutamente ilusória a sensação de tridimensionalidade naquela, ela foi muito bem pensada, refletida e realizada desde o Renascimento.
No século XV ( 1434) ainda não tão sofisticado quanto a pintura de da Vinci, o pintor Jan van Eyck, executou o “Casal Arnolfini”
e apresentou inúmeras questões espaciais. Até hoje nos debruçamos sobre esses ícones e os estudamos como ponto de partida não só da arte mas da maneira de se pensar o mundo naquela época. A construção desta pintura é um paralelogramo onde estão inseridos cinco personagens: o casal e as duas testemunhas que poderia sermos nós mesmos, já que o espaço é simbólico e um espelho. Há um contínuo rebatimento do espaço pictórico dentro dele mesmo, mas ainda assim ele nos pergunta: onde estamos? Diante da pintura devemos, porém considerar que não seria de qualquer lugar que poderíamos estar dentro da tela, mas somente se estivéssemos defronte do casal. Assim sendo, o ponto de observação é fixo, e a pintura não permite entrada por qualquer ponto. Ela tem uma trajetória circular, mas não pode ser como um hipertexto. Seu centro está exatamente colocado no espelho. Nesta mesma direção, no século XVII Velásquez pintou “As Meninas”
Esta tela é mais ousada do que todas as outras do Renascimento, porque não questiona a figura do pintor já que privilegia este em detrimento dos supostos reis que estavam naquela ocasião sendo retratados, possíveis observadores. Todos na cena nos olham, menos o cão, que dorme. Quem observa quem? Quem está refletido no espelho ao fundo? A pintura nos mostra que para além da tela, há uma possibilidade de existência real ou mesmo fictícia, que é a porta aberta e por onde está, pintada em movimento congelado, uma pessoa saindo. A discussão do espaço é marcante nesta obra, mas por outro lado, mesmo assim ela nos impõe um local de onde devemos olhá-la. De fato, a entrada para a leitura não pode deixar de ser pelo pintor, figura mais imponente e marcante da pintura, mas o conjunto não chega a ser circular como em van Eyck, porque se pode fugir pela porta dos fundos. Há uma discussão entre o espaço ilusório e o real, ainda que pintura. Um auto-retrato é sempre um dado de realidade.
Esta imagem de As Meninas, destaca a proporção áurea e o movimento das figuras retratadas.
Se até agora falamos de pintura, o fizemos sempre pensando no espaço, no deslocamento, no observador, logo, falamos na verdade de três dimensões e principalmente com o olhar dirigido para o que hoje são as instalações. Entendemos que todo o percurso da arte no ocidente, de maneira linear ou não, está inter-relacionada, muito embora os procedimentos artísticos possam ser diferentes. O espaço da pintura não exclui a arquitetura nem a escultura, mas foi no início do século XX que o primeiro começou a ser formulado e que resultou nas instalações. Merzbau, de Kurt Schwitters, inicio sec XX
foi o estopim. Seu primeiro trabalho, a bem da verdade, não era uma instalação mas uma escultura surrealista, e só quando a refez, me 1923 é que o trabalho começou a se expandir para o espaço real. Vejamos o que vem a ser o espaço de uma instalação. A maioria delas não determina pontos de observação fixos, havendo o deslocamento quase sempre necessário do observador pelo espaço e também a informação é dada de tal maneira que se pode acessar por qualquer local. Raramente isolam o observador, muito embora não seja uma regra, mesmo porque no contemporâneo quase não existem mais regras. O isolamento pode ser uma opção ou uma escolha do artista ou do público. Via de regra, a instalação tem pontos de observação móveis, pede o deslocamento do observador, não o isola e está atuando como um hipertexto. Bons exemplos são “O Fantasma” de Antonio Manuel e “ Desvio para o vermelho” de Cildo Meirelles, muito embora ambos nos “ empurrem “ para um ponto máximo.
Fantasma. Antonio Manuel. Fotg. Wilton Montenegro Decada de 90
Desvio para o vermelho. Cildo Meirelles ( não está completo nesta foto). No primeiro seria o local onde o artista coloca a fotografia e a lanterna e no segundo onde Cildo coloca a torneira com a água vermelha. Mas, nem uma nem a outra instalação pedem obrigatoriamente que se chegue até esse local hierárquico, porque elas vivem com sua potência máxima independente desse local de explicação ou desvendamento da obra. Em momento algum temos que chegar até a torneira ou até a foto para que completemos os trabalhos. Podemos ir até onde quisermos sem afetar a leitura do trabalho. No trabalho de Cildo, vamos caminhando de certa forma à maneira da igreja de Assis, olhando cada um de seus componentes na ordem que nos convém, criando nossa própria linearidade. “ O Fantasma” de Antonio, nos envolve completamente e passamos a fazer parte desse personagem, o fantasma que ele criou e explodiu. Caminhamos dentro do hipertexto. Mais do que qualquer outro trabalho que se possa usar como exemplo, é quase como estar dentro de um sistema virtual, onde tudo pode acontecer. Somos observadores observados e estamos dentro do trabalho, vivendo o hipertexto, que é condição inerente ao trabalho. Estar no hipertexto de Antonio Manuel é mais do que estar assistindo a um filme não linear( o que pela sua própria temporalidade corriqueira e comercial torna-o linear) ou navegar pela internet. Estar no “Fantasma” é estar dentro de Matrix. É puro hipertexto.