Cadernos de Sociais
O número 4 dos Cadernos de Ciências Sociais traz uma entrevista com Domenico Losurdo, um dos mais importantes intelectuais marxistas da atualidade. P. 2
Maioridade Penal em discussão
Embora uma parcela significativa da sociedade venha se manifestando favorável a essa proposta, esse posicionamento reflete uma compreensão muitas vezes superficial do problema estimulado pela campanha promovida pela grande mídia, que estimula o sentimento de insegurança e o direciona contra os adolescentes. Página 4
Sociais
Jornal de
Curso de Ciências Sociais - Centro Universitário Fundação Santo André - Ano III - N° 9
Ciências
Informação que não se vende
Ato pede investimento na FSA
Estudantes e professores iniciaram grupo buscando alternativas para a crise financeira que vive a FSA, com objetivo de cobrar o poder público a investir na Instituição. Página 2
A aula é nas ruas Greve dos professores do Estado de São Paulo põe em debate o projeto de educação do país. Página 3
Natureza e Capitalismo
Problemas que presenciamos atualmente não podem ser resolvidos no âmbito da moral, tampouco ser atribuída ao Estado, à vontade política e empenho dos políticos. Página 12
Mulheres em Luta Temas relacionados à luta das mulheres e contra o machismo são o
tema das matérias em destaque nesta edição do Jornal de Ciências Sociais. P.6 - 11
Cuba e USA . Quais os perigos da reaproximação dos Estados Unidos e da ilha de Cuba? Será o fim do “socialismo” cubano e o fim de Castro? Página 13
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Jornal de Ciências Sociais - nº 9 maio de 2015
Editorial
Atos e lançamentos
O Jornal de Ciências Sociais chega ao número 9 e tem como fio condutor da edição o feminismo, com quatro matérias exclusivas que abordam temas como trabalho, violência e aborto, sempre com base em estudos e pensadores, com o objetivo de levar ao leitor não somente conhecimento, mas ferramentas para pensar e mudar o mundo. Na matéria “Produção e Reprodução: Considerações sobre a divisão sexual do trabalho”, de Patricia Rodrigues, cientista social formada pela USP, o assunto é abordado pela ótica marxista, promovendo uma discussão antropológica do trabalho como característica da ação humana. E m “ Vi o l ê n c i a c o n t r a a m u l h e r, n i n g u é m m e t e a colher?”, Mônica Silva Dias, estudante de Ciências Sociais da FSA, verifica a re l a ção s ocial d e gê ne ro e seus efeitos no que diz respeito ao entendimento do significado da violência contra a mulher. Iraci Lacerda, mestre em Letras pela USP, discute a descriminalização e a legalização do aborto, apontando a urgência do debate e os efeitos colaterais da
situação atual. A estudante de Ciências sociais da FSA, Bianca Capelloza, nos presenteia ainda com uma crítica do espetáculo de teatro Insubmissas, que reúne quatro grandes mulheres e cientistas para contar sua história dentro e fora da ciência. A greve dos professores iniciada em março e que chegou à marca de 92 dias, tornando-se a mais longa da história, também é abordada nesta edição, assim como a lei da terceirização, a redução da maioridade penal e a reaproximação dos Estados Unidos e Cuba, entre outros temas, sempre priorizando a reflexão e a disseminação da informação. Ainda nesta edição, apresentamos o lançamento dos Cadernos de Ciências Sociais número 4, com entrevista do filósofo marxista italiano Domenico Losurdo, além do livro de Eduardo Kaze, que em seu segundo trabalho busca dialogar com o machismo e o estranhamento dos indivíduos na sociedade contemporânea, por meio da voz de um jornalista descontrolado e viciado em entorpecentes. Boa leitura!
Jornal de
Sociais Ciências
Jornalista Responsável Eduardo Kaze - MTB: 62857 Colaboraram nesta edição:
Bianca Capelloza Bruno Marchetti Euller Felix da Silva Fabiola de Carvalho Pereira Silva Gabriel Sousa Soares Geraldo S. Pereira Guilherme Amaro Cesário Gustavo Paixão Iraci Lacerda Juarez Donizete Ambires Mônica Silva Dias Patricia Rodrigues Raphael Bueno Bernardo da Silva
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O Jornal de Ciências Sociais é uma publicação do Colegiado de Ciências Sociais da Fundação Santo André, distribuído gratuitamente.
Estudantes e Professores intensificam luta por investimentos públicos na FSA Raphael Bueno Bernardo da Silva
Graduado em História pela Fundação Santo André
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o início deste ano letivo, estudantes e professores, em parceria com o DAHG (Diretório Acadêmico Honestino Guimarães) iniciaram um grupo de estudos e de luta buscando alternativas para a crise financeira que vive a FSA, com o principal objetivo de cobrar o poder público, em suas diversas esferas, a investir novamente na Instituição. Com isso, foi formado o Comitê em Defesa da Fundação Santo André. A FSA é uma instituição pública e já recebeu subsídios municipais, que foram sendo aos poucos cortados até se extinguirem. Hoje o Centro Universitário sobrevive da cobrança de mensalidades, que sobem ano após ano. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96), não permite que o município invista o dinheiro destinado à Educação em Instituições de Ensino Superior sem antes atender todo o Ensino Fundamental. Contudo, verbas de outras pastas da Prefeitura podem ser investidas em serviços como manutenção e infraestrutura, jardinagem, iluminação, etc. Estes auxílios possibilitariam eliminar gastos significativos na FSA, assim proporcionando redução nos custos para os estudantes. Várias lutas neste sentido já foram travadas nas últimas semanas pelo Comitê.
Em 26 de março, ato na Fafil contou com a presença de centenas de alunos
No dia 26 de março, Dia Nacional de Lutas pela Educação, foi feito na FAFIL (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras) um Ato em Defesa da FSA Pública, contando com a presença de centenas de estudantes, professores da FSA e da rede pública e sociedade civil, o que mostrou mais uma vez a importância de nossa instituição para a região. Em abril, docentes, alunos e ex-alunos participaram da Conferência Municipal de Educação de Santo André para elaboração do Plano Municipal de Educação 2015/2025. Na ocasião, com muita luta e insistência, a Fundação foi incluída no Plano, que agora segue para apreciação da Câmara Municipal. Cabe agora aos
vereadores a aprovação final do texto até o dia 24 de junho. E cabe a todos nós a tarefa de cobrar cada um dos vereadores a aprovar o Plano tal como foi definido na Conferência. Se o Plano Municipal de Educação 2015/2025 for integralmente aprovado, com a FSA incluída, teremos respaldo legal para cobrar do poder público, ao menos nos próximos dez anos, investimentos em infraestrutura, manutenção e serviços em nossa instituição de ensino. Este é o momento de cobrar cada vereador, o executivo municipal e também as outras esferas do poder público, para afirmar a FSA como instituição realmente públicae acessível a todas e todos, fazendo valer novamente o legado de sua criação.
Cadernos de Ciências Sociais entrevista Domenico Losurdo O número 4 dos Cadernos de Ciências Sociais traz uma entrevista com Domenico Losurdo, um dos mais importantes intelectuais marxistas da atualidade, e uma homenagem a Clóvis Moura, intelectual e militante destacado na luta contra o preconceito racial, além de artigos sobre um amplo e diversificado quadro de temas, produzidos por pesquisadores de
diferentes universidades, brasileiras e estrangeiras: a repressão política pré e pós 1964; a interferência política norte-americana na América Latina e o papel do Brasil; a primavera árabe; a mobilidade nas cidades brasileiras; a precarização da força de trabalho; as novas formas de manifestação política; o pensamento de A. Gramsci, K. Mannheim e E. Mandel.
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Educação
Professores em greve
aula nas ruas
Poesia
Nota de um desacomodado Gustavo Paixão O sistema ilude Se mostra cruel e rude Atira no jovem negro Que brincava com bola de gude
Geraldo S. Pereira
Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André
Em vão? Não! Por todo meu Estado, Eduardo Peço perdão Você é leão pra tanta má compreensão Queremos reduzir a maioridade penal Sem trabalhar a educação?
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o último dia 13 de abril completaram-se 30 dias de greve dos professores do Estado de São Paulo. Trinta dias de muito trabalho por parte dos professores, através das subsedes do sindicato oficial (Apeoesp) e demais professores independentes (não sindicalizados), carregando consigo a consciência de classe necessária para construir esta luta. Até o momento o governo do Estado não se mostrou sensível às pautas solicitadas e não abriu negociação, reflexo este de uma linha política que não é recente, pois no Estado de São Paulo temos o mesmo partido (PSDB) há mais de 20 anos no poder, e o reflexo de sua atuação é a desvalorização das carreiras dos professores e principalmente a decadência do ensino público no Estado. Este ponto é crucial para o entendimento dessa mobilização, que já conta com adesão de quase 75% da categoria e tem levado às ruas de 40 a até 60 mil pessoas nas assembleias e atos convocados, sendo ignorados pela grande mídia e seus interesses de desmobilização de processos de luta que questionam as bases da desigualdade no país.
O que podemos chamar atenção nessa greve, especialmente dessa categoria, é que ela não fica limitada a questões salariais (nesse âmbito, o reajuste reivindicado visa equiparar os salários dos professores aos das demais categorias com ensino superior), mas é também uma paralisação para colocar em debate o projeto de educação que está posto – pois já dizia Darcy Ribeiro que “a crise na educação do Brasil não é uma crise, é um projeto”; pois bem, os professores em luta reivindicam também mudanças no ambiente escolar e defendem a pauta de uma educação que seja pública e de qualidade. Em uma de suas pautas podemos ver um exemplo claro desta questão: os professores lutam também por um mínimo de 25 alunos por turma, pois a realidade que muitos encontram é a de salas superlotadas, situação esta que se intensificou neste ano de 2015 com o fechamento de muitas turmas, resultando na formação de classes de até 60 alunos em uma sala de aula! A lógica que preside tais ações visa apenas cortes de gastos, pois se demitem milhares de professores ou ofertam-se contratos
precários que muito lembram as terceirizações, como é o caso dos professores temporários, contratados sem os benefícios da categoria e depois impedidos de lecionar por 200 dias, a chamada “duzentena”. Nesse ambiente torna-se impossível transmitir e apreender conhecimento. Esta é a realidade do sistema público de educação em São Paulo e podemos dizer do Brasil, salvo algumas exceções. Mas as recentes greves, como a vitoriosa mobilização dos professores e funcionários públicos do Paraná, demonstram que a precarização da educação é parte de um projeto mais generalizado, conduzido pela lógica de desgastar aquilo que é público, a fim de supostamente comprovar que se encontra qualidade somente em instituições privadas. Ou seja, mais um direito sendo naturalizado como privilégio de alguns. Sendo a educação a base de formação de todos os componentes de nossa sociedade, verifica-se que desde cedo é mantido apenas para a elite o privilégio de uma boa formação, enquanto a maioria permanece sem acesso a mecanismos que possam conduzir a um questionamento da realidade social.
E então Te pergunto qual é o troco? Escravizamos irmãos afro Só em troca de conforto? Assassinamos o direito da mulher Ilegalizando o aborto? Estou a bordo de um país Que não se importa com o pobre A greve dos professores tem morto.
um potencial que talvez a de outras categorias não consiga alcançar, que é a possibilidade efetiva de dialogar com diversos membros de nossa sociedade, não sendo limitada a sua categoria, e nesse ponto é que precisamos atuar. A realidade da educação no Brasil precisa de mudança e mais uma vez estamos em aula, dessa vez nas ruas; e como defendia um grande expoente da educação no Brasil e no mundo, o educador Paulo Freire, nas aulas ensinamos e também devemos aprender, e nessa importante mobilização dos professores devemos pôr em prática a solidariedade e a ação conjunta, pela transformação dessa sociedade de valores invertidos e de direitos negados, acreditar na educação como um dos elementos mais importantes dessa transformação, pois como Freire alertava: Se a educação sozinha não pode transformar a sociedade, tampouco sem ela a sociedade muda”. Sendo assim, apoiar aqueles que lutam, lutar lado a lado, aprender com eles novamente e fazer parte desta mudança, pode e provavelmente será a melhor das aulas para as gerações futuras.
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Maioridade Penal
Redução da Maioridade Penal Solução ou Ilusão?
Fabiola de Carvalho Pereira Silva e Mônica Silva Dias Estudantes de Ciências Sociais da Fundação Santo André
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o dia 22 de abril de 2015, o Diretório Acadêmico Honestino Guimarães, com o apoio do Colegiado de Ciências Sociais, promoveu na Fundação Santo André um debate sobre a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171/93, que propõe a redução da maioridade penal. O debate contou com a presença de Marco Antônio de Sousa (graduado em Ciências Sociais pela FSA, membro do Projeto Meninos e Meninas de Rua e do Conanda – Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua); Douglas Belchior (historiador, membro da UNEAFRO e do Conanda); Oswaldo de Oliveira Santos Junior (reverendo metodista e historiador) e Dra. Valdênia Aparecida Paulino (advogada e defensora de direitos humanos). O debate permitiu ampliar a compreensão do problema. Embora uma parcela significativa da sociedade venha se manifestando favorável a essa proposta, esse posicionamento reflete uma compreensão muitas vezes superficial do problema, assim como um desejo de vingança, ambos estimulados pela campanha massiva promovida pela grande mídia, que estimula o sentimento de insegurança e o direciona contra os adolescentes em conflito com a lei. De fato, ao contrário dessa visão e do que dizem os deputados que defendem a aprovação da emenda, aceitar a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, ou aumentar o tempo de internação dos adolescentes, é andar na contramão da história e da solução do problema da segurança pública no Brasil. Não há qualquer estudo que
Aceitar a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, ou aumentar o tempo de internação dos adolescentes, é andar na contramão
comprove que tais medidas diminuiriam os índices de violência ou mesmo gerariam uma maior sensação de segurança para a população. Ao invés disso, seriam um imensurável retrocesso para a sociedade brasileira, que sequer chegou a implementar integralmente o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a lei 12.594/2012 (que institui o Sinase). Pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça em 2012 revela que a maior parte dos atos infracionais cometidos por adolescentes, que levam à privação de liberdade, não envolve crimes com alto grau
de violência ou atentado contra a vida, mas são em sua maioria roubo, furto e tráfico. Os dados disponíveis evidenciam ainda que os(as) adolescentes, na realidade, são mais vitimas do que autores de violência: o ultimo Índice de Homicídio na Adolescência (IHA), de 2012, estima que mais de 42 mil adolescentes poderão ser vitimas de homicídio até 2019. O IHA mostrou ainda que adolescentes negros têm cerca de três vezes mais probabilidade de serem assassinados do que adolescentes brancos. Assim, a redução a maioridade penal somente pune ainda mais
aqueles que já são as principais vítimas da violência: jovens trabalhadores e negros. O Brasil já tem a quarta maior população carcerária do mundo, sem que isso tenha reduzido a violência; esta PEC reitera a mesma política de isolar pessoas “desagradáveis”. É sabido que, longe de ser espaço de ressocialização, o sistema penal não só não evita novas violências como tende a ampliá-las. Recentemente, a Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), o Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos de Crianças e Ado-
lescentes do Ceará (Fórum DCA) e o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA) denunciaram o estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por torturas sistemáticas no interior das Unidades Socioeducativas do Ceará, superlotação, episódios de dopagem coletiva e estupros cometidos por agentes públicos. Panorama muito parecido foi divulgado por Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e Coordenador Rio da Associação Juízes para DemoContinua >
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Terceirização
A intensificação da terceirização Guilherme Amaro Cesário
Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André
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Entre os adolescentes infratores, maior parte parou de estudar aos 14 anos
cracia, sobre os “educandários fluminenses”, caracterizados por ele como “campos de concentração” e “porta de entrada para o inferno”. É preciso, ainda, chamar a atenção para o fato de que a redução da maioridade penal passa também pela questão de gênero. Segundo Nana Queiroz, jornalista e autora do livro Presos que Menstruam, com lançamento previsto para julho de 2015 pela Record, as agressões e desassistências que as mulheres maiores de 18 anos enfrentam no sistema carcerário também recairão sobre as menores: “Dentro do sistema carcerário feminino, trabalham homens. Não se obedece a regra de que só mulheres deveriam trabalhar no sistema carcerário feminino. Isso é muito importante de notar, porque existem estupros na cadeia feminina cometidos por policiais. Não tem a denúncia formalizada do estupro, mas porque a mulher faz a ‘troca de favores’. De acordo com essas práticas, a mulher presta ‘favores sexuais’ para carcereiros e guardas e, em retorno, ela recebe algumas ‘regalias’, como mais acesso à comida, produtos de higiene pessoal, cigarros e até lugares melhores para dormir”. As meninas menores de idade estariam sujeitas à mesma situação, inclusive porque as mulheres encarceradas – diferente dos homens – são em sua maioria abandonadas por companheiros
e familiares. Também é importante pontuar que vários dos programas policiais que fazem campanha em favor da redução da maioridade penal são comandados por parlamentares que integram a “bancada da bala”; a maior parte dos integrantes dessa bancada é ou foi policial civil, militar ou federal. Entre os adolescentes infratores, a maior parte parou de estudar aos 14 anos, e 8% deles não chegaram sequer a ser alfabetizados. Este é, de fato, um dos verdadeiros problemas da criminalidade. É para a modificação desse quadro dramático que deveríamos voltar nossas energias. Cabe às organizações sociais e à imprensa séria oferecer informações e dados para que possamos nos posicionar e cobrar do Estado políticas que combatam a causa dos problemas e não apenas seus efeitos.
Para Ler:
Moreira, Fábio Mallart. Cadeias dominadas: Dinâmica de uma instituição em trajetórias de jovens detentos. Dissertação de mestrado em Antropologia Social, 2011, USP. Duarte, Yvone Magalhães (Coord.). Redução da Idade Penal: Socioeducação não se faz com prisão. Conselho Federal de Psicologia. 2013. Disponível em http://newpsi.bvs-psi.org.br/ebooks2010/pt/ Acervo_files/reducao-da-maioridade-penal-socioeducacao-nao-se-faz-com-prisao.pdf.
rimeiro de maio, dia dos trabalhadores, devemos comemorar? Com festa ou não, nossa autocracia burguesa vem desde 2004 gestando a continuidade dos ataques ao trabalho. Com o PL 4330/2004, – que já recebeu 240 emendas que não geraram grandes desvios do original – já se somam 891 projetos de lei, entre outras proposições, contrários aos trabalhadores. O PL 4330 foi criado pela figura “simpática” do deputado Sandro Mabel (PMDB/GO), cuja “proximidade” com a classe trabalhadora se evidencia nos cargos que ocupou em sindicatos patronais: Diretor do Sindicato das Indústrias de Massas e Biscoitos, São Paulo, 1980-1986; Presidente do Sindicato das Indústrias de Alimentação do Estado de Goiás, 1991-1996 O projeto do “Diretor/Presidente” foi aprovado com 230 votos a favor; às vésperas da “grande comemoração”, 01 de maio, também um “grande presente”: o plenário da Câmara referendou emenda que permite que empresas subcontratem para atividade-fim! Vejamos parte do projeto aprovado na noite sombria de quarta-feira, 22/04/2015. Como já mencionado, as empresas privadas antes impedidas de subcontratarem para sua atividade-fim, possuirão agora o aval da lei para fazê-lo; já o setor público só pode terceirizar suas atividades-meio. O Senado já sinalizou que poderá proibir a terceirização da atividade-fim, mas, caso essa possibilidade permaneça, a tendência será a ampliação para todos os trabalhadores das atrocidades, já bem conhecidas, causadas pela terceirização da atividade-meio: os trabalhadores serão fortemente afetados com baixas remunerações e escassos direitos/benefícios. Talvez o que se
PL 4330 foi criada pela figura “simpática” do deputado Sandro Mabel
possa “comemorar” no velório é que as empresas que subcontratam terceirizadas possuem responsabilidades jurídicas sobre os encargos trabalhistas; mas se trata de uma falsa segurança, já que, convenhamos, há inúmeras manobras para se livrar de parte do “defunto” (Ver projeto inteiro em: http:// www.camara.gov.br). Diversas pesquisas permitem identificar os efeitos da terceirização das atividades-meio: salários menores, principalmente na indústria e serviços, cortes de benefícios e direitos, além da maior intensificação do trabalho e do aumento das jornadas de trabalho. Advinha o efeito colateral? Desemprego, além de aumento do número e da letalidade de acidentes de trabalho As fraudes e as desregulamentações jurídicas reinam, como também a informalidade e alta rotatividade; no setor público, torna-se fonte de corrupção. Será a totalidade da classe trabalhadora arrastada para essa situação? O “sino fúnebre” faz-nos lembrar a observação de K. Marx e F. Engels em A Ideologia Alemã: “Como o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns e
que sintetiza a sociedade civil inteira de uma época, segue-se que todas as instituições coletivas são mediadas pelo Estado, adquirem por meio dele uma forma política. Daí a ilusão, como se a lei se baseasse na vontade e, mais ainda, na vontade separada de sua base real, na vontade livre.”. Deixemos a ilusão da vontade livre e captemos a base real, pois esse projeto vai ao Senado, pode voltar ao plenário antes de ser sancionado pela presidente, façamos valer a luta de classes!
Para Ler:
Câmara mantém terceirização de todas as atividades. Disponível em: http://www1.folha.uol.com. br/mercado/2015/04/1619938-camara-mantem-terceirizacao-de-todas-as-atividades-e-estende-direitos-ao-setor-publico.shtml Antunes, R. Espectros, falácias e falésias. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ opiniao/2013/11/1368894-ricardo-antunes-espectros-falacias-e-falesias.shtml Dossiê: Não ao PL 4330 da terceirização (artigos de diversos autores sobre esse projeto de lei e seus desdobramentos). Disponível em: http://blogdaboitempo. com.br/dossies-tematicos/dossie-terceirizacao/
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Feminismo
Produção e Reprodução: Considerações sobre a divisão sexual do trabalho Patricia Rodrigues
Cientista Social formada pela USP, pós-graduada em “Relações entre Poder Legislativo e Democracia no Brasil” e Militante da Marcha Mundial das Mulheres
A
noção moderna de trabalho nos remete a pelo menos duas definições, que trataremos no âmbito do escopo teórico do marxismo. A primeira definição nos remete a uma discussão antropológica de trabalho como característica da ação humana. Nesse sentido tomemos a definição de Karl Marx (18181883), para quem o trabalho é um ato que se passa entre homem e natureza, onde o homem coloca em movimento sua inteligência e força a fim de transformar as matérias da natureza, lhes dando uma forma útil. Ao mesmo tempo em que age sobre a natureza exterior modificando-a, ele modifica sua própria natureza desenvolvendo suas faculdades. A segunda definição nos remete ao caráter histórico/social do trabalho, que parte do fato de que as trocas entre homem e natureza se produzem em determinadas condições sociais que definem o modo de produção no tempo histórico, portanto ao trabalho que se desenvolve a partir dessas condições de produção, fundado seja na escravidão, servidão, produção artesanal, assalariamento ou outra forma histórica que venha a assumir. É sob a perspectiva histórica e social que abordamos aqui Entrada das mulheres no mercado de trabalho não só não resolveu as desigualdades entre homens e mulheres como reforçou a divisão sexual do trabalho a questão de gênero, com o enfrentamento da problemática adaptada historicamente e em do capital humano ao sistema ou o conceito de divisão sexual noção de que o trabalho proda “divisão sexual do trabalho”, cada sociedade. produtivo do capital e mão de do trabalho permitem esclare- dutivo pode ser mensurado e tomada como fator que estrutura O atual modelo de produção obra criadora de mais valor. cer que o tempo do trabalho valorizado e de que o trabalho e molda dinâmicas de desigual- se baseia na negação do traO desenvolvimento histórico assalariado ou remunerado é de cuidados e o trabalho domésdades entre homens e mulheres. balho doméstico de cuidados do conceito de trabalho foi na verdade condicionado pelo tico são fundados sobre uma como trabalho produtivo e o reinterpretado nos anos de 1970 tempo do trabalho doméstico e disponibilidade natural, materDa produção à reprodução: nosso sistema se equilibra in- com a introdução da dimensão de cuidados, o qual nem se con- na e conjugal das mulheres no O trabalho feminino como visibilizando as atividades que sexuada ou das relações sociais sidera como trabalho no sentido âmbito da família, estabelecen“desqualificação” sustentam o trabalho produtivo de sexo nas análises do traba- clássico, dotado que seria da do uma falsa dicotomia entre A divisão sexual do trabalho é – cuidados com as roupas, ali- lho, questionando categorias e incapacidade de extração do trabalho produtivo e trabalho reprodutivo. a forma da divisão do trabalho mentação, trabalho doméstico, conceitos clássicos da econo- mais-valor. Com efeito, não há necessariasocial que decorre das relações cuidado com crianças, entre mia política. O modelo clássico da econosociais de sexo e sua forma é outros, que garantem estrutura As relações sociais de sexo mia política está baseado na mente uma oposição de esferas.
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às trabalhadoras e trabalhadores, tendo em vista que as mulheres continuam trabalhando mais e ganhando menos. Na média, o salário das mulheres representa 70% menos do que o dos homens, conforme dados do IBGE/PNAD de 2011. Quanto mais alto é o nível de escolaridade, e quanto mais se sobe na escala salarial, maior tende a ser a desigualdade de remuneração entre homens e mulheres. É importante ressaltar que a discussão sobre a ocupação das mulheres no mercado de trabalho em funções precárias diz respeito não só à desqualificação de seu trabalho em decorrência da divisão sexual do trabalho, ou da existência “nata” de tarefas exclusivamente femininas, mas também ao fato de que, na medida em que as tarefas no sistema do capital vão sendo reorganizadas e ocupadas por mulheres, essas tarefas ganham o lugar da “desqualificação”. Karl Marx, para quem o trabalho é um ato que se passa entre homem e natureza
As duas dimensões não se separam, senão que estão imbricadas e têm implicações na construção e forma de organização espaços públicos, bem como na constituição da própria cidadania nos Estados modernos, evidenciando as desigualdades e impasses na formação da cidadania quando a questão de gênero é abordada. Isto é, os direitos que possibilitam a admissão das pessoas num dado sistema político não são distribuídos ou dados de maneira homogênea a ambos os gêneros. Ao entrarem massivamente no mercado de trabalho, as mulheres entram em um estado duplo, em que as funções do trabalho produtivo e reprodutivo são cumpridas de maneira simultânea, colocando em questionamento a separação oficial das esferas da vida privada, assalariada, política que regem nossa sociedade moderna. A imbricação dessas esferas permite desvendar as relações de trabalho das mulheres e feminização das funções no mundo produtivo, e entrever
as relações invisibilizadas que estruturam desde o trabalho doméstico até a divisão das tarefas nas diferentes relações sociais. Em muitos países, inclusive no Brasil, a entrada das mulheres no mercado de trabalho não só não resolveu as desigualdades entre homens e mulheres como reforçou a divisão sexual do trabalho, mantendo o padrão de desigualdade em relação à remuneração e aos postos ocupados pelas mesmas. Um estudo realizado pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) revela que a jornada de trabalho média dos homens é de 43,4 horas por semana, enquanto a das mulheres é de 36 horas. Ao todo, durante a semana, a jornada de trabalho feminina chega a 58 horas, enquanto a masculina atinge 52,9 horas. Ao somar o tempo que elas dispendem para o cuidado dos filhos e das tarefas domésticas, o tempo de trabalho das mulheres supera o dos homens em cinco horas por semana, o que significa dizer que as mulheres trabalham dez dias a mais por
ano que os homens. Há ainda que se debater o fato de que, dentro das relações de produção do capital, o trabalho feminino sofre uma bipolaridade entre uma pequena parte de mulheres que conseguiu acesso a postos mais altos de trabalho e por melhor remuneração, garantindo que as mesmas possam transpor suas tarefas domésticas e de cuidados a uma parcela imensa de mulheres pobres, que recebem menos e executam os trabalhos assalariados mais precários. No Brasil, como a renda das famílias aumentou, a demanda pelos serviços da trabalhadora doméstica também cresceu; esse setor hoje emprega mais de 6,7 milhões de mulheres contra 500 mil homens, o que coloca o Brasil como um dos maiores mercados de mão de obra doméstica. Como agravante, nossos espaços e serviços públicos não respondem à necessidade de compartilhar o trabalho reprodutivo. Há tanto um déficit de equipamentos como creches e escolas em período integral, como de serviços de saúde e apoio a idosos, restaurantes e
lavanderias coletivas. Um avanço importante nesse sentido foi a aprovação da Emenda Constitucional 72/2013, conhecida como PEC das Domésticas, que garante os mesmos direitos trabalhistas para as trabalhadoras domésticas. Um dos argumentos que aparece tanto do lado de quem critica como de quem defende a PEC é a alegação de que o espaço doméstico não é produtivo, não gera riquezas. Outras pessoas afirmam que com a aprovação da PEC haverá milhares de demissões, gerando uma “crise do cuidado” – termo que vem sendo utilizado para tratar de uma série de temas que têm como núcleo a recusa feminina em trabalhar de graça. Essa medida coloca em pauta a estrutura e dinâmica do trabalho doméstico na nossa sociedade. A equidade de direitos entre trabalho doméstico e outras formas de trabalho é um passo importante para quebrar a corrente que transfere a sobrecarga do trabalho doméstico e de cuidados sempre para o elo mais fraco, pelos benefícios diretos
Feminismo e luta de classes A teorização da divisão sexual do trabalho a partir das feministas marxistas trouxe à tona o questionamento de categorias clássicas da economia política e da sociologia que institucionalmente reforçam a invisibilidade das mulheres e contribuem com o reforço ideológico da naturalização das relações de sexo que empurram para o biológico, construções de opressão que na verdade são sociais. O debate acerca da divisão sexual do trabalho traz luz para o aprofundamento de temas da economia feminista e permite sobremaneira o avanço da luta das mulheres contra as desigualdades de gênero. Tal configuração repõe a luta das mulheres na categoria chave da luta de classes, de modo que o feminismo não pode eximir-se de debater na perspectiva de uma sociedade com igualdade entre homens e mulheres.
Para Ler:
Souza-Lobo, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2010.
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Feminismo
Violência contra a mulher ninguém mete a colher? Mônica Silva Dias
Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André
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ntegra o senso comum a ideia de que o conhecimento parte sempre do simples para o complexo. Muitas ciências ainda creem serem este o caminho do método científico. Karl Marx afirmou, em contraposição, que se parte, sempre, do concreto e do complexo. Desse modo, ao estudar a situação de violência vivenciada por mulheres nas regiões de manancial – Parque Andreense e Paranapiacaba em Santo André, SP –, por meio de entrevistas, consideramos que este contingente humano pertence a uma população estruturada de uma forma específica, e cujas relações sociais compõem o nó constituído pela santíssima trindade patriarcado, racismo e capitalismo, que gera e reproduz a violência. O patriarcado não representa apenas uma hierarquia entre homens e mulheres, mas envolve exploração e dominação, que neste contexto podem ser compreendidas como uma só realidade. Recusar o conceito de patriarcado subtrai a exploração-dominação, tornando invisível a desigualdade. O termo gênero foi introduzido como uma arma na luta contra o patriarcado e indica que a condição da mulher não está determinada pela natureza, pela biologia, ou pelo sexo, mas é decorrente de uma relação social. A subordinação da mulher não é natural, mas sim um fenômeno histórico que, portanto, pode ser superado. A violência contra as mulheres resulta da socialização e ideologia machista, que reforça esse
Violência contra as mulheres resulta da socialização e ideologia machista, que reforça esse sistema, que socializa o homem para dominar a mulher
sistema, que socializa o homem para dominar a mulher, e esta, para se submeter ao “poder do macho”. Esta relação banaliza a violência, tolera e até mesmo incentiva socialmente o exercício da virilidade baseada na força/dominação. Essa relação social de gênero e seus efeitos pôde ser verificada nas regiões de Parque Andreense e Paranapiacaba, similares no que diz respeito ao entendimento do significado da violência contra a mulher. A maioria dos(as) entrevistados(as) reconhece-a como uma prática física e verbal, que tem como lócus
principal o ambiente doméstico. Todavia, vale ressaltar que qualquer conduta que constranja, ofenda a integridade, cause dano, sofrimento físico, psicológico, sexual ou viole o bem-estar são formas de violência contra a mulher, e acontecem tanto em espaços privados quanto públicos. Essas várias formas de violência tendem a fazer parte de uma sequência crescente de episódios, do qual o homicídio é a manifestação mais extrema. Embora o comportamento violento apareça muitas vezes como natural, na realidade é fruto de processos histórico-
-culturais, e está intimamente imbricado com a estrutura classista e patriarcal, com a desigualdade social, econômica e de raça/etnia. A prática cotidiana da violência integra essas relações sociais, legitimando tais comportamentos e dificultando sua percepção imediata. Tais práticas são incluídas numa suposta “natureza humana” que exige o desempenho de papéis pré-determinados, correspondentes, como observa Saffiotti, às “imagens que a sociedade constrói do masculino e do feminino”. Os(as) entrevistados(as) afirmam que as mulheres que so-
frem violência e permanecem ao lado de seus agressores são motivadas pelo “medo”, ou por “falta vergonha na cara” ou ainda por que “gostam de apanhar”. Estas afirmações envolvem uma série de aspectos. Vários estudos evidenciam que a mulher submetida a uma relação abusiva tem muita dificuldade em se libertar, vivenciando o ciclo da violência, que se divide em três fases: tensão, explosão e reconciliação. Esse ciclo, frequente na vida da mulher que sofre com a violência doméstica, exprime a dificuldade que ela tem para
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Maria da Penha Maia Fernandes, biofarmacêutica que lutou por 20 anos para que seu marido agressor fosse condenado
encerrar a relação, por razões que vão das econômicas às de fundo emocional. A vergonha de denunciar e tornar público seu sofrimento também pode determinar o silêncio, inclusive pelo receio de ser considerada culpada. Afinal, se a sociedade sinaliza nesse sentido, como ela poderia pensar diferente? Se quisermos acabar com a violência doméstica, precisamos dar outros sinais, para que esta mulher possa se libertar. O discurso de que “lhes falta vergonha na cara” ou “gostam de apanhar” é extremamente agressivo e contribui fortemente para a normalização da violência contra a mulher. A afirmação de que mulher “gosta de apanhar” expressa um preconceito. Perigoso e maléfico, difícil de eliminar ou ressignificar, esse preconceito beneficia o sistema patriarcal, é uma arma poderosa, no processo de dominação-exploração, para assegurar o poder dos proprietários de meios de produção, que em geral são homens e, no Brasil, brancos. Dizer que “lhes falta vergonha na cara” é responsabilizar a vítima pela violência sofrida, absolvendo o agressor e reiterando todo contexto histórico-social no qual ela está inserida. O temor das mulheres não
é descabido. Dez mulheres são assassinadas por dia no Brasil, sendo que 41% dessas mortes acontecem dentro de casa. Esses números altíssimos colocam o país no 7º lugar do ranking mundial das agressões contra mulheres, e ainda há que se considerar que grande parte dos casos não chega ao conhecimento das autoridades. No que se refere à rede de proteção à mulher, destacam-se como serviços mais conhecidos pelos(as) entrevistados(as) a Delegacia da Mulher, Disque Denúncia 180 e Defensoria Pública, seguidos por Serviço de Saúde Especializado, Casa Abrigo e Vem Maria - Centro de Referência da Mulher em Santo André, que faz acolhimento de mulheres em situação de violência de gênero e risco de morte. A menção à Casa Abrigo e Vem Maria reflete o elevado índice de mulheres destas regiões que já foram acolhidas por estes serviços. À pergunta sobre quais mulheres na sua região estariam mais sujeitas às situações de violência, grande parte dos(as) entrevistado(as) afirmou que todas as mulheres, ou seja, o simples fato de ser mulher já é determinante para a agressão. Parte significativa observou que as mulheres pobres, negras,
jovens e idosas, nessa ordem, são mais suscetíveis à violência, reafirmando que dentro do segmento mulher há diferenças que colocam parte delas em maior situação de risco. É de interesse das classes dominantes que este sistema de dominação-exploração, constituído pela simbiose entre patriarcado-racismo-capitalismo, se perpetue, pois esta simbiose favorece a acumulação de capital: “é mais fácil pagar salários menores a um negro e a uma mulher. Mais fácil ainda será pagar salários ínfimos a uma mulher negra. Mal remunerada, esta mulher passará de duplamente discriminada para triplamente discriminada: mulher, negra e miserável”. Desenvolvem-se, deste modo, relações humanas predominantemente marcadas pelas desigualdades entre classes sociais, redobradas pelo sexismo e pelo racismo. A quase totalidade dos(as) entrevistados(as) conhece a Lei Maria da Penha, afirmando “que ela existe para defender e proteger a mulher”. Entretanto, é a percepção da impunidade que se destaca: acreditam que a lei poderia ser mais rígida e, portanto, punir adequadamente. Há, pois, o conhecimento da existência da lei, mas não a compreensão de que ela representa um avanço
histórico, ao estabelecer a violência contra a mulher como crime e colocar a mulher na condição de sujeito de direitos. Essa percepção de impunidade indica, primeiro, que, embora a lei exista, nem sempre é cumprida, pois tanto as mulheres têm dificuldades em fazer a denúncia, quanto, uma vez que esta ocorre, nem sempre é levada à frente pelos agentes da lei. Segundo, coloca a necessidade de uma análise mais detida dos sistemas penais e carcerários, que são instrumentos de consagração dos interesses das classes dominantes, consolidados nas normas jurídicas, e de perpetuação da desigualdade. Sabe-se também que esses sistemas não evitam novas violências; punem, em lugar de efetivar direitos e garantias individuais. Trata-se de sistemas também patriarcais, cujo caráter se manifesta nos julgamentos enviesados ou mesmo na intimidação da mulher que denuncia a violência. Esse necessário questionamento do sistema penal e carcerário não significa negligenciar que, para o rompimento do ciclo da violência
e para assegurar a vida da mulher, em muitos casos seja necessária a retirada do abusador/agressor do convívio social. A inclusão de dois itens voltados para o atendimento aos homens na Lei Maria da Penha reconhece a necessidade de ações que os incluam nesta discussão. Pois para eles também não há escolha neste sistema. Ao buscar reconhecer-se nos padrões hegemônicos da masculinidade, “ganham” a possibilidade de exercer o poder sobre as mulheres, mas também alienam sua própria humanidade. A maior parte dos homens negros e brancos são também explorados-dominados. Abaixo deles, contudo, há mulheres, mulheres e mulheres. Para que a lei seja cumprida é necessário, portanto, que a população se aproprie dela e da rede de atenção, que implica os serviços de saúde, educação, trabalho e renda, habitação, assistência e segurança. Mas o acesso à informação não é suficiente. É preciso uma transformação social profunda que supere o nó capitalismo-patriarcado-racismo.
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Feminismo
A atualidade e a urgência da descriminalização e legalização do aborto Iraci Lacerda
Graduada em Letras pela FSA; mestre em Letras pela USP; membro do Espaço Socialista
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m cada momento histórico o debate sobre o aborto assume uma importância. A referência mais relevante quanto à conquista de
direitos ocorreu em 1920, quando a “União Soviética tornou-se o primeiro país do mundo a dar a todas as mulheres a possibilidade legal e gratuita de interromper a gravidez” (Goldman, 2014, p. 305). Outro momento ocorreu entre 1936 e 1937, no Brasil, quando foi elaborado o Estatuto da Mulher, que buscava direitos trabalhistas como a Licença Maternidade especial de três meses e a garantia do recebimento “de vencimentos integrais em alguns casos e de terços de seu salário em outras circunstâncias, o mesmo ocorrendo com relação ao aborto preventivo ou acidental” (Saffioti, 2013, p. 368).
Do momento em que as mulheres, em uma parte do mundo, tiveram o direito ao aborto, passando pelo momento em que, em outra parte do mundo, acenou-se para que o direito trabalhista garantisse a Licença Médica também em caso de aborto, e chegando até hoje, muito já ocorreu. Mas, qual a importância desses fatos para a atualidade? Os avanços tecnológicos da época atual, se voltados para a coletividade, possibilitariam a produção de alimentos que eliminariam a fome no planeta, a erradicação de uma série de doenças e atenderiam todas as necessidades da classe trabalhadora. No entanto, no Brasil, mulheres ainda morrem por aborto inseguro. Além disso, há altos índices de mortalidade materna por hipertensão arterial, hemorragia, infecção pós-parto, diabetes, AIDS, malária, obesidade e, ainda, por causas decorrentes do tipo de parto. Em todos esses casos há orfandade e essas crianças correm risco 5 a 10 vezes maior do que as demais de morrer antes de completar dois anos. Considerar que sob a crise estrutural do capital a intensificação do trabalho tem imposto sobre toda a classe trabalhadora os mais variados cortes de direitos, e mais ainda sobre a mulher trabalhadora as mais violentas formas de consolidação de sua crise societal, é fundamental para entendermos alguns aspectos apontados contra a legalização e descriminalização do aborto no país. Os números demonstram que
são as mulheres trabalhadoras as maiores vítimas, e interessa-nos aqui o debate sobre o aborto realizado em condições inseguras. Pesquisa realizada pela UFRJ, em 2013, mostra que cerca de 1 milhão de abortos espontâneos ou induzidos (ambos associados à pobreza) ocorrem por ano. Os registros, quando ocorrem, de óbito e sequelas estão associados às práticas clandestinas e sem auxílio médico. Entre 2014 e 2015, cerca de 30 mulheres foram presas por praticarem aborto clandestino. A maioria delas foi denunciada pelos médicos que lhes prestavam socorro. Essa condição de clandestinidade reservada à mulher trabalhadora, que impõe situação desumana e degradante, serve para puni-la e isentar o homem de responsabilidade; além de estabelecer o preceito religioso do momento em que se origina a vida; reforça a procriação e não o prazer como elemento básico da sexualidade da mulher, impondo-lhe a maternidade e suas consequências de forma individual. Isso tudo busca excluir da mulher o direito de decisão sobre seu corpo e, consequentemente, sobre sua vida. Em nome de “preservar o feto”, abandonam-se mulheres à morte para reforçar o sistema patriarcal e a instituição família e fortalecer o Estado, que legitima o machismo para manter a lógica de exploração do capital. Abster-se do enfrentamento dessa violência é compactuar com a movimentação existente no Congresso Nacional para aprovar leis contrárias à vida da mulher e favoráveis, por exemplo, ao estupro, como o Estatuto do Nascituro. Além disso, faz-se urgente
lutar contra os cortes de verba dos governos federal, estaduais e municipais na área da Saúde (sem investimento nos hospitais que atendem casos de aborto legalizado, sem políticas públicas de prevenção, contracepção e de apoio à mulher em situação de violência) e contra o sucateamento da educação que, dentre outras questões, inviabiliza a disciplina de Educação Sexual nas universidades e escolas. Nessa sociedade de classes jamais estaremos livres dos mecanismos do capital de submeter intensamente parcelas da classe trabalhadora; no entanto, não podemos ficar inertes diante da intensificação da violência contra a mulher. Em momentos de avanços de posições conservadoras e reacionárias é fundamental fortalecer a luta para que, a partir de sua decisão de assumir a maternidade ou de realizar o aborto, a mulher possa usufruir de serviço público de qualidade. A mulher deve ter o direito e a condição necessária para decidir sobre sua vida! É urgente que os movimentos feministas e demais movimentos sociais se organizem contra todos esses cortes de verbas, impeçam que os recursos sigam para o pagamento da dívida pública que favorece a burguesia parasitária e os governos que os aplicam, para que possamos impor a decisão e a direção sobre questões básicas de nossas vidas na construção de outra sociedade.
Para Ler:
Goldman, Wendy. Mulher, Estado e Revolução. São Paulo: Boitempo, 2014. Saffioti, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
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Feminismo
Ciência, substantivo feminino Bianca Capelloza
Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André
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om o grupo de atores do Arte e Ciência no Palco, escrito e dirigido por homens, Oswaldo Mendes e Carlos Palma, o espetáculo Insubmissas – Mulheres na Ciência, dedicado a Heleieth Saffioti e com duração de 90 minutos, reúne quatro grandes mulheres e cientistas para contar sua história dentro e fora da ciência. A peça baseia-se livre e assumidamente em Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre. Essas mulheres são Hipátia de Alexandria (370-415 dC), nome original que na peça é alterado para Hipácia por motivos de sonoridade, líder da escola neoplatônica de Alexandria, vítima da intolerância cristã que a levou a ser apedrejada por ordem do patriarca Cirilo. “Hipátia sintetiza o percalço de todas as mulheres que se introduziram na comunidade científica”, define o autor Mendes; Marie Curie (1867-1934), a física francesa de origem polonesa que foi a primeira mulher titular de uma cátedra na Sorbonne, prêmio Nobel de Física em 1903 e de Química em 1911; Bertha Lutz (1894-1976), bióloga e advogada brasileira, ativa defensora da emancipação das mulheres; Rosalind Franklin (1920-1958), a físico-química inglesa cujos estudos em cristalografia foram decisivos para a descoberta do DNA. Segundo o autor, essas mulheres e cientistas sintetizam as trajetórias de inúmeras outras mulheres e cientistas, como Lise Meitner e Agnódice, citadas na peça para lembrar que a insubmissão, em maior ou menos intensidade, é tão antiga quanto a submissão imposta pelo que a socióloga brasileira Heleieth Saffioti chamou de “o poder do macho”. No palco, num cenário constituído por luzes amarelas e dezenas de rochas penduradas por cordas fixadas no teto, quatro
Espetáculo reúne quatro grandes mulheres e cientistas para contar sua história dentro e fora da ciência
mulheres são colocadas sem a possiblidade de saída e passam a conviver entre si e a conhecer um pouco mais as trajetórias pessoais e profissionais umas das outras. Tomando todo o cuidado para não esbarrarem nas rochas – que são sustentadas por teorias e hipóteses desencontradas –, elas se movimentam pelo cenário da forma mais sutil e interagem com as pedras a cada relato demonstrando em gestos a união das mulheres em uma dada situação. São elas mesmas que contam a sua difícil entrada e convivência na ciência em seu circulo machista, que reproduz preconceitos e intolerância contra a mulher. Surge então uma
voz masculina que conversa com as personagens em uma tentativa de compreendê-las em sua complexidade, as desafiando e com a tarefa de fazer observações pontuais como discutir a questão do papel feminino em uma sociedade patriarcal e machista, ausentando-se em seguida. Outros homens comparecem no decorrer da peça, mas só existem no espetáculo porque foram trazidos à cena por elas, e recebem o mesmo tratamento que a voz masculina. Claro que todos os homens são fundamentais para contar a história dessas quatro mulheres, mas o ponto de vista dominante em nenhum momento é deles. A não ser por
Esmeraldino de Souza, assistente de Adolfo e Bertha Lutz, pai e filha, que tem registrado no Museu Nacional seu depoimento não favorável a Bertha Lutz e seu temperamento. Esmeraldino, representado pelas vozes das outras personagens e só trazido à cena para dar espaço de argumentação a Bertha Lutz, traz a perspectiva do homem comum, ao reproduzir a discriminação e preconceitos. Ao longo da peça, a desafiante voz masculina do início chama, surpreendendo o publico, por Irène Juliot-Currie, filha de Marie e Pierre Currie, também cientista. A presença de Irène vai além da ciência, manifestando
todos os cuidados e preocupações, e até mesmo o ciúmes do amor filial, que tem como objetivo desfazer boatos sobre um caso amoroso de sua mãe com Paul Lanvegin, discípulo de Pierre Currie, seu pai, episodio que acaba por denunciar um dos preconceitos das sociedades machistas. O espetáculo, que esteve em cartaz no Teatro de Arena da Funarte Eugênio Kusnet, mostra cada uma dessas mulheres no seu tempo histórico e na condição feminina da época, rompendo preconceitos e barreiras que as tornaram marcos na ciência, na política e na luta emancipatória das mulheres através de séculos.
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Mundo Humano
Natureza e capitalismo um mundo humano a cada dia mais desumano Bruno Marchetti
Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André
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as duas primeiras semanas deste ano letivo do curso de Ciências Sociais na Fundação Santo André, houve uma série de atividades com temáticas diversas e complementares que envolveram a problemática de nosso mundo. Atividades estas que proporcionaram aos calouros e veteranos estímulos para intentar a compreensão das questões candentes de nossos dias e da essência de um mundo humano que a cada dia se torna mais desumano. Problemas que remetem à indagação sobre o motivo pelo qual os homens são o que são, ou melhor, o por quê a vida se passa dessa forma e não de maneira diferente, foram temas abordados e que buscaram ir para além da forma aparente das coisas e relações, buscando a lógica própria, as inter-relações das partes e sua totalidade permeada por contradições em permanente movimento. Entre os temas abordados, destacamos aqui a crise estrutural do capital e a questão ambiental, tratada em um interessantíssimo vídeo feito pelo aluno Rafael Churai sobre a exploração do trabalho e a devastação da natureza. Quando se trata de analisar os motivos pelos quais a natureza é devastada em uma velocidade antes nunca imaginada, duas categorias são largamente evocadas ad nauseam pelo modo de pensar dominante. A primeira delas afirma a primazia das ideias frente aos problemas concretos do mundo, de modo que um comportamento consciente de todos os indivíduos da sociedade proporcionaria
um tratamento mais respeitoso para com a natureza e, portanto, sua recuperação das agressões promovidas por todos. Seguindo este raciocínio, afirma-se a importância da conscientização de todos e do florescimento de bons valores para a proteção do meio ambiente. A segunda se baseia na pretensa neutralidade do Estado, que conjuntamente com as corporações, seria encarregado de tomar as medidas cabíveis para o maior controle e fiscalização das atividades que redundam na destruição do meio ambiente, advertindo-se sobre a necessidade da criação de leis mais rigorosas de controle dos recursos naturais. Dito de outro modo, atribui-se ao Estado a tarefa de controlar as relações capitalistas de produção no sentido de engendrar boas práticas de convívio harmônico entre homem e natureza (como se aquele não fosse parte desta) mantendo-se as bases concretas nas quais o capital pode se reproduzir. Isso equivale a dizer, equivocadamente, que é possível, numa sociedade dividida em classes sociais, permeada pelo trabalho assalariado, humanizar as relações sociais degradadas e degradantes que provêm da venda e compra da força de trabalho, isto é, que é possível criar mecanismos que permitam tratar mais adequadamente a natureza mantendo-se a exploração do homem pelo homem traduzida na compra e venda da força de trabalho e a consequente apropriação de mais-valia. Em relação à primeira questão, podemos, baseados no instrumental teórico elaborado
por Marx, Engels e Lukács, afirmar que não são as ideias que determinam a existência, mas ao contrário, as ideias são determinadas pela existência; somente um ser existente, e existente em um determinado modo, é capaz de pensar. E a existência do ser social tem por ato fundante o trabalho. Dessa maneira, a essência do nosso problema não se encontra nas ideias boas ou más que reproduzimos frente aos problemas ambientais. Contudo, se pensamos de forma individualista, mesquinha, ou de forma des-
... afirmamos, de forma categórica, não ser possível tratar a destruição da natureza sem considerar uma profunda e radical transformação social ... respeitosa para com a natureza, é exatamente porque nossas relações objetivas concretas nos levam a pensar dessa maneira. Podemos assinalar, então, que o primeiro pressuposto se baseia em uma forma incorreta de compreensão da realidade, que, refletindo o modo de pensar conservador burguês, impede o questionamento das relações sociais que produzem e mantêm as misérias sociais. Quanto à segunda concepção, está assentada na convicção neoliberal de ser o Estado a organização social que funda a sociedade, pairando acima das
classes sociais de forma neutra a fim de garantir a conformidade da ordem a todos os cidadãos. E mais, que sem o Estado não haveria forma civilizada de convivência entre os humanos, apenas a barbárie fundada na lei do mais forte na luta pela sobrevivência. Haveria, então, a necessidade de uma instituição para regular a vida entre os homens garantindo liberdade e igualdade entre todos eles. Ao nos voltarmos um pouco para a origem do Estado, verificaremos, contudo, que este se constitui como organização criada pelos próprios homens para exercer a dominação sobre os homens, para garantir a propriedade privada e as várias formas de violência que dela emanam. De sorte que esta instituição é a organização de uma classe para manter suas próprias condições de dominação e exploração sobre outra. Assim, afirmar que o Estado seria capaz de promover verdadeiros entraves à destruição causada ao ambiente pelas necessidades de expansão e lucro do capital não passa, a rigor, de tentar a quadratura do circulo, uma vez que é da natureza do estado a manutenção das relações alienadas que provêm da propriedade privada, de tal forma a garantir as condições de existência e expansão do capital, nucleadas pela exploração do homem pelo homem. Assim, os problemas que presenciamos atualmente não podem ser resolvidos no âmbito da moral, tampouco ser atribuída ao Estado, à vontade política e empenho dos políticos, as tarefas necessárias para o enfrentamento destes e outros
problemas, pois estes passam por outro campo. Se as bases materiais que permitem à humanidade se constituir enquanto humanidade por meio do trabalho se encontram sob a égide do capital, com tudo o que isso representa em termos de miséria material e espiritual para os homens, se as forças do capital transformam tudo em mercadoria, produzindo não para as necessidades humanas, mas para o lucro, afirmamos, de forma categórica, não ser possível tratar a destruição da natureza sem considerar uma profunda e radical transformação social. Apenas com a superação da propriedade privada, com o trabalho associado livre, diga-se, aquela forma de trabalho mais livre possível em que os homens põem suas forças individuais em conjunto sem a barbárie da exploração de um homem pelo outro, produzindo para o atendimento das necessidades humanas, somente a partir de um modo de convivência em que as relações sociais entre os homens não sejam constrangidas em função da exploração do homem pelo homem, os indivíduos poderão conviver de forma harmônica e se relacionar com a natureza de maneira autenticamente humana.
Para Ler: Tonet, I. Método científico uma abordagem ontológica. São Paulo. Instituto Lukács 2013. Kosik, K. Dialética do concreto. Paz e Terra 1976 Lukács, G. Introdução à uma estética marxista. Civilização brasileira 1968
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Relações Capitais
Cuba e Estados Unidos uma reaproximação perigosa Euller Felix da Silva
Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André
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assados 56 anos do triunfo da revolução socialista cubana e 53 de um embargo econômico, algo que muitos não acreditariam que poderia ocorrer está acontecendo: uma reaproximação entre Cuba e Estados Unidos. Os motivos que levaram os Estados Unidos a isso foram estritamente políticos, uma tentativa de enfraquecer a pequena ilha e por conseguinte derrubá-la. Passados 53 anos desde a implementação do embargo, sem sucesso na empreitada de derrubar o governo castrista, no início deste ano fomos surpreendidos com a notícia de que Cuba e Estados Unidos estavam se preparando para uma reabertura comercial da ilha. O que desencadeou este processo foi a libertação por parte de Cuba de um prisioneiro americano acusado de espionagem. O presidente dos Estados Unidos também libertou prisioneiros cubanos acusados de espionagem. E deste modo começaram as negociações para a reabertura da ilha pós-capitalista. O embargo econômico prejudicou Cuba em diversos sentidos, impedindo-a de negociar com diversos países. A situação piorou com o fim da URSS, que, em contraposição aos Estados Unidos, continuava a negociar com Cuba, auxiliando-a economicamente e fortalecendo-a politicamente. Com o fim da URSS a pequena ilha passou a enfrentar grandes problemas, visto que o seu maior comprador deixou de existir. Após ocorrer isto, Cuba foi obrigada a retroceder a algumas relações capitalistas, porém, tentando sempre manter as conquistas oriundas da revolução.
Confiança no povo cubano é o que mantém as esperanças de que os avanços conquistados pela ilha não sejam destruídos
Porém, o que podemos esperar desta reaproximação? Será o fim do “socialismo” cubano? O fim da era Castro será o fim dos avanços que Cuba conquistou? Estas e outras perguntas se colocam ao lermos as notícias sobre esta reaproximação. Mas há também outra indagação que devemos fazer: quais foram os motivos que levaram Cuba a se reaproximar dos Estados Unidos? Por que a ilha tem que escolher entre continuar da forma que está, com diversos problemas estruturais, ou se reaproximar do país que se apresentava como seu maior inimigo? O motivo mais forte
que faz com que Cuba tenha de fazer esta escolha é que não conseguiu efetivar de fato a transição para uma sociedade essencialmente socialista, onde os meios de produção fossem de fato controlados pelos trabalhadores, portanto, abolindo essencialmente o capital. Contribuiu para essa situação o fato de nenhum dos demais países latino-americanos terem realizado uma revolução de cunho socialista; em muitos sequer houve processo revolucionário neste sentido; os processos voltados a transformações, ainda que não necessariamente socialistas, foram bloquea-
dos pelas ditaduras militares, apoiadas e financiadas direta ou indiretamente pelo capital americano. A confiança no povo cubano é o que mantém as esperanças de que os avanços conquistados pela ilha – como os da medicina, da educação etc. – não sejam destruídos. Avanços estes que só foram possíveis, apesar de todas as dificuldades enfrentadas, por se tratar de uma sociedade em que a saúde e a educação não eram vistas como um negócio em que o principal objetivo é o lucro, e não as necessidades do povo. Assim como diversas outras
sociedades pós-capitalistas, como os países que compunham a URSS, viveram um retorno ao capitalismo, Cuba pode estar caminhando para este destino, visto que a reaproximação com os Estados Unidos tem o mesmo objetivo que o embargo econômico posto em 1962, o estrangulamento da revolução cubana, o fim de uma sociedade que, mesmo não sendo essencialmente socialista, trouxe conquistas que numa sociedade capitalistas não seriam possíveis, devido à busca desenfreada pelo lucro. A reaproximação é mais uma tentativa de assassinar a revolução cubana.
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Literatura e Sociedade
Moçambique em João Paulo Borges As literaturas africanas em Língua Portuguesa Juarez Donizete Ambires
Professor de Língua e Literatura Portuguesa da Fundação Santo André
A
s literaturas africanas em Língua Portuguesa são expressivas e contam com número apreciável de leitores no Brasil. Elas estão acontecendo em cinco países do continente africano (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau, Angola e Moçambique) e bem dialogam com muitos aspectos das estruturas sociais às quais pertencem. Uma destas estruturas é Moçambique, geografia banhada pelo Índico e anexada a Portugal por Vasco da Gama, quando de sua primeira viagem à Índia. Na atualidade, o nome mais conhecido daquela cultura é Mia Couto, escritor que, felizmente, não está só no país quando o assunto é o literário. Em Moçambique, acompanham-no outros que também fazem boa literatura e que, por isto, merecem atenção. É o caso de João Paulo Borges Coelho, a quem é preciso ler, conhecer, divulgar e editar no Brasil. O autor a que nos referimos é português de origem. Nasceu na cidade do Porto em 1955, mas adquiriu a cidadania moçambicana. Ele, entretanto, divide-se entre Portugal e Moçambique, fato que a profissão lhe permite. De formação João Paulo é historiador, vivendo do magistério desta ciência. Na Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, leciona História Contemporânea de Moçambique e da África Austral. Já, como convidado, ministra o mesmo curso no Mestrado em História da África da Universidade de Lisboa. Parte de sua literatura, por isto, dialoga com fatos históricos, habilmente os redimensionando em suas páginas, mas não enveredando para o romance histórico. É o que se tem, para exemplo, em As visitas do Dr. Valdez, livro de 2004 e de nossa predileção. Em junção ao que se disse, é preciso que se informe que, no livro
João Paulo Borges Coelho, a quem é preciso ler, conhecer, divulgar e editar no Brasil
em questão, o estilo do autor se filia à tradição narrativa. Noutros termos, é necessário que se afirme que não há em sua escrita uma recriação da linguagem como a ocorrida em Mia Couto. João Paulo tem seu estilo e, por isto, sua originalidade. O modo de narrar do escritor é simples e objetivo. Sua escrita se vale do discurso direito e do indireto e de frases de extensão mais reduzida. Por suas páginas, o leitor é conduzido em clima realista e em linguagem acessível e elegante. Na potencialidade do seu estilo, temos em As visitas do Dr. Valdez livro bem urdido e de leitura necessária. Ele nos traz ainda elementos de uma universalidade que se processa em Moçambique e àquele país pertencem. Por meio do enredo, a literatura e a história de uma sociedade dialogam e o literário realiza papel de importância. Ele traz para o seu universo fatos que, em sua
densidade humana e histórica, precisam ser depurados. Para tanto, processa-se um resgate e uma recriação. Com isto, passamos a conviver com uma saga familiar que remete o leitor ao período colonial de Moçambique. A mesma saga, porém, chega ao período da independência, episódio de óbvio, mas dialético rompimento com práticas e representações antigas. No texto construído por Borges, porém, o tempo cronológico é o compreendido entre a independência e a ida da personagem Caetana para Portugal, a terra dos que ficaram sem lugar com as colônias independentes. Na pontual cronologia, incursões são feitas a tempos anteriores mais próximos ou mais recuados, e um conteúdo vai se compondo e se descortinando. Do presente da narrativa volta-se a um passado que, em verdade, entrelaça a vida de duas famílias, tornando-as comple-
mentares. Entre ambas, entretanto, há o fosso da distância social que o modelo de exploração econômica impõe. Uma das famílias é a patronal e a outra, a dos servos. Na condição colonial, todavia, os patrões serão perpetuamente os senhores e os empregados, imutavelmente os serviçais. Esta é a ordem natural e, neste embate entre força e submissão, as posições são hierárquicas e herdadas de geração para geração. Por isto, cabe a todos conhecer seus devidos lugares e papéis e os viver na circularidade do tempo. A independência, contudo, chega, e, como já se disse, antigos vínculos se partem. Com o fato, uma pergunta paira: qual é o meu pertencimento? Patrões e empregados indagam-se sobre o fato e os primeiros temem a resposta. Por conta da guerra, Amélia, Caetana e Vicente deixaram o Ibo e as origens. A ilha é a base econômica e a história das famílias que se relacio-
nam, uma na servidão e a outra no senhorio. Por isto, senhores e servos ali se reconhecem e sabem seus lugares e práticas caracterizadoras. A Beira – cidade continental – será o novo. Nela, haverá inversões e os prenúncios de outra vida. Somente nela, Vicente – o empregado – pode ser Valdez, o antigo médico da família senhorial. Na extensão, somente nela um criado pode ser doutor, um jovem tornar-se um adulto e, por fim, um preto fazer-se de branco. Estes fatos escandalizam Caetana – a mãe grande. No novo orbe, a classe senhorial não mais se reconhece. Com a independência, o mundo moçambicano deve ficar livre dos colonizadores. Na nova ordem, as propriedades pertencem ao povo e o povo é negro. Não há lugar para brancos ou para os que assim se sintam, como é o caso da família de Caetana, na verdade um caldeamento de etnias. No mesmo histórico, seguindo a boa tradição colonial, branca é quase sempre a ascendência paterna, os homens da família, gente de procedência duvidosa e mesmo espúria. Sempre à cata de fortuna, frequentam o ilícito e enriquecem com o contrabando. Praticam ainda imposições à mão armada, atitudes nada meritórias, mas sempre tomadas, quando o interesse é a defesa da propriedade ou o do capital acumulado. Neste lastro de correlações, o livro de João Paulo vai se compondo e efetuando consistente diálogo entre o histórico e o literário. O fato lhe dá um caráter único e atraente, chamando à reflexão. Fica, por isto, nosso convite à sua leitura. João Paulo Borges é, entre nós, nome que começa a ecoar e As visitas do Dr. Valdez, livro que justifica atenções. Em sua potencialidade, o escrito ainda nos lembra da irmandade entre Brasil e Moçambique, fato que vale sempre recuperar e positivamente viver.
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Jornal de Ciências Sociais - nº 9 maio de 2015 15
Ciências Sociais na FSA
Estudantes de Ciências Sociais levam A pátria educadora versus resultados do Pibid a Encontro Nacional redução da carga horária
E
ntre as atividades desenvolvidas no PIBID (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Gabriel Sousa Soares Docência) de Sociologia, três serão apresentadas por estudantes da Fundação Santo André Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André no IV ENESEB (Encontro Nacional de Ensino de Sociologia na Educação Básica), que se realizará de 17 a 19 de julho próximo, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Parece que os ajustes ficais cidos em outras instituições da em São Leopoldo (RS). passaram às catracas da FSA e região, como o curso de Ciências já fazem parte dos nossos dias. Sociais, e até perda de emprego Os Brasis dentro do Brasil – A diversidade dentro de nós Começamos o ano preocupados dos profissionais. Luís Fernando Casimiro e com desafios: o Conselho UniNão podemos aceitar esse “plaversitário (órgão máximo da insno de austeridade”, que evidenA oficina buscou refletir sobre o processo originário do Brasil, a partir de sua formação com as diversas raças tituição), por proposta da reitoria, cia uma grande discordância em e povos, oriundos de diversos continentes, e a partir das quais se constituiu uma particularidade cultural de como forma de ajustar as contas relação ao discurso do Reitor, miscigenação única. Visa apontar as diferenças nas raízes culturais e direcionar para o seu ponto congruente de consolidação étnica. Tomando como base o livro O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, aborda as raízes nas da Fundação Santo André, aprovou prof. José Amilton de Souza, na matrizes tupi, lusa e afro como alicerces para o fomento de um povo novo. Seus vínculos, interesses, conflitos uma resolução exigindo a redução reunião do Conselho Universitáe uniões, capazes de gerar uma cultura rica e uniforme, sincrética e de reconhecimento para sua sociedade. da carga horária de vários cursos, rio de 05 de fevereiro deste ano: que deveriam passar de 24 horas/ “Fazer uma boa administração aula semanais para 20 horas/aula é dever de todos os gestores Um caso prático: o Pibid e a formação docente em Ciências Sociais semanais, sob pena de não serem diante das instituições que são Guilherme Amaro Cesário oferecidos em 2016. Sabemos há responsáveis. O nosso propósito Objetivou-se uma articulação entre os ensinos básico e superior das ciências sociais, particularmente sobre tempos que a FSA tem problemas é ir além da possibilidade desta o 1º de abril de 1964, através de mídias audiovisuais. Os materiais foram expostos em uma sala aberta à livre com suas dívidas, mas não somos boa administração, que seria um circulação dos(as) alunos(as), na qual alunos(as)-bolsistas mediavam a reflexão-discussão dos(as) alunos(as) nós alunos que devemos pagar grande feito, porém, buscamos sobre um conteúdo específico, exposto de formas diferentes. As imagens evidenciavam a repressão, exílio, essa conta. Afinal não a criamos, o compromisso de uma gestão prisões, “desaparecimentos”, tortura e assassinato dos ousaram se opor à ditadura, e também a resistência tampouco os nove cursos atingi- de excelência”. A contradição de parte da sociedade, através de depoimentos dos que recorreram à luta armada ou se manifestaram através dos pelo plano de austeridade da é enorme. Uma boa adminisde músicas, também disponíveis para audição. Foram exibidos, ainda, trechos do filme O Povo Brasileiro, reitoria: Ciências Sociais, História, tração e o compromisso com a de Darcy Ribeiro. Letras, Geografia, Pedagogia, excelência não combinam com Matemática, Química, Biologia a imposição de redução da carga Os Brasis dentro do Brasil – Uma introdução às culturas regionais no território brasileiro (matutino), Psicologia (matutino). horária, não combinam com o Bruno Adhmann Com exceção de Psicologia, todos tratamento do problema finanos demais cursos combinam a ceiro da instituição às custas da A oficina abordou o tema “culturas regionais brasileiras”, destacando tanto suas origens históricas quanto formação de bacharelado e licen- precarização de nove cursos. suas influências na atualidade. Com base no livro O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, consistiu em uma ciatura. Isto é, trata-se de cursos Devemos assumir uma postura condensação e adaptação didática da parte IV do livro, “Os Brasis na História”, abordando os reflexos atuais que formam professores, com contrária a essa resolução, não de determinadas culturas, a fim de proporcionar aos alunos do ensino médio um maior contato com as diverqualidade reconhecida. pagaremos pela crise! sidades culturais do Brasil e suas respectivas histórias, mas de modo a conectar o aluno e sua realidade com Essa resolução, tomada no ConSe o problema são as dificuldaessas culturas que nos influenciam no cotidiano, sem nosso conhecimento, de sorte a aproximar os alunos de selho Universitário sem passar des financeiras da FSA, a solução uma valorização cultural, pouco disseminada nos tempos atuais. por nenhuma discussão com mais viável seria buscar mais além de Cristian Moura (UFMG), os professores e estudantes dos recursos. Como? Por exemplo, a geógrafa e militante Regina cursos afetados, trata o problema cobrando da Prefeitura de Santo O Colegiado de Ciências Sociais população trabalhadora africana Lúcia Santos e Milton Barbosa, financeiro da FSA buscando cor- André o pagamento da subvenorganizou o curso de extensão no Brasil diante das políticas de militante histórico do Movimento tar custos, sem mostrar qualquer ção que, conforme a lei de criapreocupação com a qualidade dos ção da FSA, deve ser concedida História do Movimento Negro branqueamento financiadas e es- Negro Unificado (MNU). O curso relevou as conquistas cursos, particularmente daqueles anualmente e não é paga há anos; no Brasil neste primeiro semestre timuladas pelas classes burguesas é sabido que a Prefeitura pode (e de 2015. Considerando a especi- brasileiras. Também foram alvo obtidas até agora pelas lutas do mo- que formam professores. ficidade da formação social do de reflexão as particularidades da vimento negro, mas apontou para A redução da carga horária acar- deve), sem infringir qualquer lei, Brasil, foi privilegiada a natureza luta negra no Brasil em compara- a ampliação dessas conquistas em reta vários problemas pedagógi- contribuir, por exemplo, para os do movimento negro brasileiro ção com outros países, como os direção à emancipação humana. cos; dentre eles, a impossibilida- custos de manutenção, segurancomo expressão das lutas so- Estados Unidos, a resistência à Em oposição às reflexões propos- de de manter a simultaneidade ça, e mesmo pesquisa e extensão. Ao invés de medidas impostas ciais no país da organização dos ditadura civil-militar e a natureza tas pelas agendas institucionais que do bacharelado e da licenciatura, isto é, os cursos seriam obrigaque prejudicam os cursos, deveria quilombos às reivindicações das chamadas políticas atuais insistem em monopolizar a direção dos a escolher formar apenas o ser aberto o diálogo com os alunos posteriores às transformações de identidade étnico-cultural. dos movimentos de resistência, sudas relações de trabalho no final Contou-se com a presença de peramos as expectativas com mais bacharel (excluindo as discipli- e as planilhas de custos e receitas, do século XIX; foram destacadas pesquisadores hoje reconhecidos de uma centena de inscrições e com nas voltadas para a formação para uma análise minuciosa, para a imprensa negra, as frentes de formados pelos cursos de Ciên- larga frequência ao longo de sete docente) ou apenas o professor que pudéssemos juntos encontrar luta, as irmandades, além das cias Sociais e História da Funda- semanas de exposições e debates, (excluindo disciplinas da área saídas, sem comprometer os cursos manifestações políticas e culturais ção Santo André, como Deivison o que revela a possibilidade de específica do curso). O resultado já existentes. Precisamos abrir a univerque se transformaram em meios Mendes Faustino, Weber Lopes irmos muito além das conquistas seria a precarização dos cursos, alguns dos quais não são oferesidade. de resistência à marginalização da Góes e Renato Pereira Correia, até agora obtidas.
História do Movimento Negro
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Entrevista
Delírios narcóticos de um jornalista em descontrole Vivian Silva
Jornalista por formação e, atualmente, repórter do jornal Ponto Final e revista Dia Melhor “Abro os olhos e a conta do banco está vazia, o cartão de crédito estourado, o cigarro acaba e do baseado só resta uma ponta, o assento da cadeira se solta, o fio do carregador de celular arrebenta, olho para o lado e todas as roupas couberam numa mala... Estou na merda!”
C
om essa constatação, o narrador de Paris 20, livro do jornalista andreense Eduardo Kaze (formado em Ciências Sociais pela Fundação Santo André) tem início. Em uma conversa descontraída, no Bar do Bolacha (que a propósito é citado na trama), regada a cerveja e churrasco, o autor explicou ao Jornal de Ciências Sociais um pouco sobre seu processo criativo, drogas, sexo e rock´n´ roll. Jornal de Ciências Sociais: É um livro relativamente curto, a história não tem mais do que 100 páginas. Você é um autor econômico ou faltaram ideias, ou paciência? Kaze: Não acho que o mérito de um livro se defina pelo tamanho da lombada depois de impresso. Quero dizer, o que importa não é a história ser contada da melhor forma possível? Quando terminei o primeiro tratamento (primeiro tratamento quer dizer que ele acabou de escrever e olhou tudo pela primeira vez), tinha umas 180 páginas, mas esse livro me ensinou uma coisa: os textos têm que ser lapidados; a maioria tem potencial, mas tem que ser encontrado no meio de uma enxurrada de ideias e quimeras pessoais que o autor imprime na página. Então, é necessário abrir mão do ego e cortar páginas inteiras, capítulos inteiros, em nome do bom andamento da trama. JCS: O que você narra em Paris 20 aconteceu mesmo ou você inventou tudo?
KZ: Nem um, nem outro. É uma coisa que idealizei: um texto caracteristicamente jornalístico, com muitos advérbios, que conta uma verdade parcial - fica a cargo do leitor determinar o que considera real, ou não. Diria que 80% é pura alucinação. JCS: Você opta por não usar nomes no livro. Só a protagonista e pessoas famosas são tratadas pelo nome. Por quê? KZ: A ideia é demonstrar o tamanho da alienação do personagem central, quer dizer, ele não reconhece mais pessoas, só cargos: o fotógrafo, o motorista, o chefe... Não são indivíduos, são interlocutores. Quando ele dá nome para a mulher que ama - a única a ter nome, além de figuras famosas - demonstra em que patamar a colocou, ou seja, de alguém acima dele, superior (algo que comumente se faz em relação aos famosos) e que, por motivos psicológicos, ele termina reduzindo, para se sentir maior. É um thriller psicológico, não tenha dúvida, que dialoga com o machismo da sociedade e o estranhamento entre os indivíduos. JCS: Você fala muito de álcool e drogas no livro. Você acha que isso melhora o processo criativo? KZ: Parafraseando Hunter Thompson: não gosto de advogar drogas e álcool, mas pra mim funcionou. Não acho, claro, que isso é algo indispensável para o escritor ou para qualquer artista. Um escritor bêbado não é diferente de um escrivão bêbado, que não é diferente de um cabeleireiro bêbado, e por aí vai... Não há glamour algum em vomitar na sarjeta, e isso se aplica para qualquer um, artista ou não. Tem uma passagem no livro do Stephen King, chamado “Sobre a Escrita”, em que ele define muito bem o uso de drogas como “muleta literária”. Ele diz: “A ideia de que a criatividade e substâncias que alte-
ram a mente estão ligados é um dos grandes mitos pop-intelectuais do nosso tempo... Qualquer defesa de drogas e álcool como necessidade para embotar sensibilidades mais refinadas não passa de conversa autopiedosa para boi dormir”. E eu concordo com ele. JCS: Você inclui uma banda de punk rock na trama. Você curte esse tipo de música? KZ: Pra caralho! Na verdade, tenho até hoje uma banda e a mú-
sica sempre me acompanhou no processo de criação. Cito muitos trechos de música na narrativa do livro, e muitas vezes elas servem de ponto de apoio para as emoções dos personagens. Sempre fui daqueles que me alegro ou me entristeço de acordo com a trilha sonora e, portanto, quis imprimir isso neste texto. Eu cito (David) Bowie, Nofx, Dead Fish, Lou Reed... Até o Bono Vox dá uma aparecidinha (rs). JCS: E quando e como Paris 20 será publicado? KZ: A ideia é publicar em setem-
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bro, num esquema de distribuição gratuita em 20 pontos de Santo André. O livro será ilustrado e diagramado pelo Denis (Freitas) que faz trampos para revistas como a Superinteressante, e isso é o máximo. Teremos uma tiragem maior que a usual em editoras, por volta de cinco mil exemplares, e isso será possível por meio de um sistema editorial totalmente novo em relação às publicações deste gênero e que nos possibilitará dar o livro para o leitor, ao invés de vender. Mas não vou contar o plano todo, senão estraga a surpresa.
Denis Freitas é o responsável por dar “cara” aos personagens do livro. A ilustração acima é uma prévia do que o leitor encontrará em Paris 20, em setembro