Sociais
Jornal de
Curso de Ciências Sociais - Centro Universitário Fundação Santo André - Ano VIII - N° 12
Ciências
Informação que não se vende
200 anos de
Entre os 200 anos que separam o nascimento de Karl Marx (1818−1883) e os dias de hoje a humanidade passou por transformações que reformularam, ao redor do globo, as relações sociais e de produção. P. 13
Lançamento Ângela Davis
Revolução e Feminismo Página 5
As cores de Lima Barreto
Evolução Humana
MARX Página 3
Página 04
Página 7
Polêmica sobre A China no João Goulart mundo atual
Ensino Médio em risco
Página 9
Página 11
Página 14
Mobilidade de classe
Guerra psicológica
“O Poderoso DIGBY”, de KZ
Página 10
Página 12
Página 15
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Jornal de Ciências Sociais - nº 12 - Outubro de 2018
#ELENÃO
Prezados leitores, não basta nos lamentarmos diante das condições políticas que vêm nos assolando desde o golpe de 2016 que elevou (fora)Temer ao poder. Mais que isso, não basta lamentarmos a inabilidade e inconsistência políticas do PT desde 2003 (Lula e Dilma), que resultou na ocupação dos espaços públicos pelos segmentos historicamente conservadores. Certamente esse partido não atinou para aquilo que define a posição conservadora no Brasil, desde sempre, e atuou com uma inexistente expertise diante das tarefas políticas exigidas por esta realidade. Observemos que a ideologia e o pragmatismo político dos conservadores não romperam com os seus procedimentos ditatoriais oriundos da colônia. Basta rever o fato histórico de que durante quatro séculos vigorou a ditadura escravocrata, que só foi se esgarçando por medidas abolicionistas na segunda metade do século XIX. Nunca houve qualquer iniciativa burguesa pela construção de uma sociedade democrática, situação demonstrada mesmo na transição para a República, que contou com uma seqüência ditatorial sob a tutela militar de Floriano Peixoto, antecedido por Deodoro da Fonseca. Do ponto de vista econômico, esse foi um período de ajuste subordinativo da agro-exportação ao imperialismo capitalista em implantação no globo. Período, também, em que se explicita uma postura opressora, já não mais escravista, mas correlata, no sentido em que as necessidades da força de trabalho passaram a ser tratadas como caso de polícia. Se avançarmos pela história
brasileira vamos notar a íntima e inextrincável associação entre a forma subordinada de nosso capitalismo, estruturada sobre um capital atrófico, e o poder opressor de um estado autocrático, que se move entre a configuração ditatorial e a flexibilização institucional autocrática. Quer isto dizer que no Brasil uma forma política democrática burguesa está ontologicamente impedida. O que sofremos hoje não é senão a ampliação do teor bonapartista da autocracia burguesa que, sob a forma institucionalizada que assumiu desde o abandono do estado pelos militares, em 1985, efetiva as limitações compatíveis com a forma de capital que aqui rege. Tal regência demanda a opressão dos trabalhadores, na exata medida em que sua sustentabilidade se ancora numa elevada extração de valor da força de trabalho, vale dizer, sua superexploração, como evidencia o achatamento salarial, a crescente desconsideração das necessidades de educação, moradia, saúde, transporte, previdência social, etc. para todos. Enfrentar a situação política de hoje, outubro de 2018, em que um despótico apedeuta encontra-se em condições de substituir (fora) Temer e aprofundar a política socioeconômica exercida por ele et caterva, exige o conhecimento das condições históricas do Brasil e a união de forças sociais para impor, a partir da resistência da classe trabalhadora, um novo roteiro político e econômico, para afastar a continuidade da secular exclusão social como condição de acumulação do capital atrófico que aqui se efetivou.
Jornal de
Sociais Ciências
Colaboraram nesta edição:
Beatrice Papillon Sarah Rosangele da Silva Juarez Donizeti Ambires Guilherme Barros Araújo Raphaelle Denser Izabela de Macedo Jacinto Roger Filipe Silva Felipe Henrique Gonçalves Valquíria Braga Sandro Barbosa de Oliveira Heitor Santinon Victor Monteiro dos Santos Renata Adriana de Sousa Rodrigo Chagas
Jornalista Responsável Eduardo Kaze - MTB: 62857 Fundação Santo André Av. Príncipe de Gales, 821, bairro Príncipe de Gales Santo André - SP - CEP: 09060-870 Tel.: (11) 4979-3406 colegiado.sociais@fsa.br
Tiragem: 5.000 exemplares
O Jornal de Ciências Sociais é uma publicação do Colegiado de Ciências Sociais da Fundação Santo André, distribuído gratuitamente.
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CARTA AO IPHAN
O Museu da Destruição Nacional
*
* Texto publicado originalmente no Jornal GGN (jornalggn.com.br) em 03/09/2018
Beatrice Papillon
Drag Queen e colunista do jornal GGN
Corram e avisem os bombeiros para não moverem nenhuma tábua ou telha despencada! Não mexam nos destroços, nem sequer passem vassouras sobre as cinzas. Peçam à perícia que analise as causas do incêndio sem alterar a cena. Deixem tudo como está! É preciso preservar cada pedaço queimado desta história para a inauguração do primeiro “Museu da Destruição Nacional”. Muitos povos fizeram memoriais das cinzas para contar suas tragédias. Assim os alemães construíram o memorial do holocausto. Em Nova York há um marco em memória das vítimas do World Trade Center. No mundo todo há museus que contam guerras, invasões bárbaras, escravidão, além de acervos arqueológicos que remontam os últimos dias de civilizações extintas, antes florescentes. Assim também ali, na Quinta da Boa Vista, onde até ontem estava exposto o mais importante acervo museológico do Brasil, se contará das cinzas o que está acontecendo no país hoje. Os visitantes passearão por cima de escombros conhecendo de que modo destruíram-se muitos dos nossos melhores projetos. Futuras civilizações saberão, pelos cacos que sobrarem dos nossos dias, o que fizemos de nós, do Brasil. Cada salão será rebatizado com placas afixadas sobre os montes de madeiras e peças queimadas sinalizando os acontecimentos históricos que levaram a destruição do nosso sonhado desenvolvimento. Haverá logo na entrada o Hall do Retrocesso, em que se verá, dispostos sobre os destroços, os documentos oficiais e fotos dos momentos em que a democracia brasileira foi golpeada desde a proclamação da República. Pode-se usar também sobre as paredes queimadas projeções de vídeos com os votos de cada deputado no impeachment de Dilma Rousseff. Fiquem ali expostos os interesses e projetos
que conspiram para a destruição do país. Em seguida, o visitante deste novo museu passará ao salão do Desmonte Científico. Os documentos das resoluções de cortes orçamentários nas áreas de educação, ciência e tecnologia estarão expostos junto aos dados sobre os impactos sociais e o retrocesso que causaram. Todas as reproduções de textos devem ser feitas em material impermeável, porque o telhado, como todo o resto, não será reconstruído. Tal qual a educação e a pesquisa brasileiras hoje, esta história ficará ao relento. Onde antes havia documentos e peças que atestavam avanços sociológicos, crie-se a Galeria do Ódio e da Burrice. Estarão afixadas reproduções impressas de tweets e postagens sobre o projeto “Escola Sem Partido”, “ideologia de gênero”, discursos de ódio e declarações fascistas da extrema-direita. Neste passeio fascinante os futuros visitantes perceberão como uma sociedade se empenhou arduamente para sua própria ruína. No lugar do Trono de Daomé, doado pelo rei africano Adandozan em 1811, crie-se o Salão da Intolerância Religiosa. Aproveite-se a atmosfera criada pelo incêndio e reproduza-se ali o cenário de depredação de templos de religiões de matriz africana, como também a perseguição a seus sacerdotes e adeptos. Este setor pode contar com ambientação sonora em que se ouça canções gospel e discursos de pastores fundamentalistas evangélicos. No Salão do Genocídio Indígena, para substituir as peças perdidas de acervo ameríndio, o visitante verá uma lista das tribos perseguidas e/ ou dizimadas desde a chegada dos europeus até nossos dias. Mapas devem mostrar as demarcações de terras e a invasão de grileiros do agronegócio latifundiário. No lugar dos fósseis de dinos-
sauros, a Ala dos Novos Meteoros informará ao público sobre nossos projetos de devastação ambiental, desmatamentos e poluição das águas. Em projeções de vídeos, voarão pelas paredes as muitas aves já extintas da nossa fauna. Esta área deve conter especial menção ao desastre de Mariana. No salão onde se assinou a Independência do Brasil, exponham-se os contratos de privatização das nossas empresas e da exploração dos nossos recursos naturais por estrangeiros. É o Hall do Entreguismo. Emoldure-se artigos de jornal que desqualificaram a Petrobrás, a Eletrobrás, os Correios, a Vale do Rio Doce, as telefônicas, em campanhas de sabotagem e difamação da importância de fortalecimento do Estado. Por fim, onde antes estava Luzia, o fóssil humano mais antigo das Américas, a mulher que era nosso mais remoto vestígio de humanidade, exponha-se o descaso e a exclusão a que hoje está submetido o povo brasileiro. Mostremos sem dó aos visitantes o que estamos fazendo com a nossa gente. A mortalidade infantil, a violência contra as mulheres, o extermínio da população negra, o massacre contra LGBTs, a volta da fome nos sertões e periferias. Sugere-se ainda que se deposite em salão amplo os cadáveres de civis e militares mortos na guerra do Estado versus crime organizado, para que suas ossadas empilhadas dêem dimensão do saldo de morte obtido com políticas antidrogas e de criminalização dos pobres. Que o “Museu da Destruição Nacional” cumpra sua função de catalogação histórica a partir destes restos do incêndio para informar às próximas civilizações sobre como um povo, com vocação inegável para o desenvolvimento e a felicidade, pode sucumbir sob golpes perpetrados por inimigos de seu próprio meio.
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LANÇAMENTO
Mulheres, raça e classe, de Angela Davis
Para saber mais: Davis, Angela; Dent, Gina. “A prisão como fronteira: uma conversa sobre gênero, globalização e punição”. In: Estudos Feministas. Florianópolis, 2003. Disponível em https://goo.gl/bx9dvF Mendieta, Eduardo. Introdução. In: Davis, Angela. Democracia da Abolição: para além do império, das prisões e da tortura. Rio de Janeiro: Difel, 2009. Tertulian, Nicolas. Posfácio. In: Lukács, Gyorgy. Prolegômenos para uma ontologia do ser social. São Paulo: Boitempo, 2010.
Sarah Rosangele da Silva
Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André
No dia 15 de setembro de 2016, o curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André abriu o círculo de debates em torno do lançamento do livro de Angela Davis, Mulheres, Raça e Classe – em parceria com a Editora Boitempo e outras universidades do estado de São Paulo. O referido livro – esperado pelo público brasileiro – foi publicado pela primeira vez em 1981 e após 35 anos ganhou edição brasileira pela Editora Boitempo.
Angela Yvonne Davis, 71 anos, que atualmente ocupa a cátedra presidencial da Universidade da Califórnia no D e p ar t ame nto d e E studos Afro-americanos, é uma das mais importantes ativistas da década de 1970 nos EUA. Embora não tenha sido participante orgânica do Partido dos Panteras Negras, contribuiu teoricamente para a referida organização, atuou na organização Che-Lumumba e n o Pa r t i d o C omu n i s t a
estadunidense; lutou pelos direitos civis dos afro-americanos, contra a política de encarceramento em massa, pelo fim da intervenção estadunidense no Vietnã e na Guatemala, e em El Salvador se organizou em defesa do direito ao voto da mulher. Neste mesmo período esteve na lista das dez pessoas mais procuradas pelo FBI, o que resultou na sua captura, ficando presa por 16 meses sob falsas acusações. Após sua prisão, a filósofa tornou-se foco de um intenso movimento de solidariedade internacional, Free Angela Davis (Libertem Angela Davis). O movimento contou com a manifestação de diversas personalidades em todo o mundo, como por exemplo os escritores Gyorgy Lukács e Ernst Bloch, entre outros. Em 1997, ajudou a fundar a Critical Resistance (Resistência Crítica), uma organização nacional dedicada a desmantelar o sistema carcerário, pois Davis acredita que existe uma relação intrínseca entre o complexo industrial carcerário e o militar, logo, em suas palavras: “Reconhecer essas relações é o primeiro passo necessário ao desenvolvimento de estratégias para se contrapor e abolir as instituições e suas causas latentes”. Ainda na esteira de Angela, para que a verdadeira democracia possa emergir, faz-se necessário o fim das instituições que promovem a dominação de um grupo sobre outro. Na atividade de lançamento do livro de Angela Davis estiveram presentes dois convidados: Djamila Ribeiro – pesquisadora
na área de Filosofia e Política, nos temas relações raciais e gênero, feminista e ex-secretária adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania em São Paulo, e Weber Lopes Góes, professor do curso de Serviço Social da Faculdade de Mauá – FAMA, pesquisador na área de Ciências Sociais, sobretudo no pensamento conservador brasileiro, com enfoque na ideologia do racismo e eugenia. Os pesquisadores abordaram o pensamento de Davis, contextualizando o período de efervescência nos EUA, apontando as péssimas condições dos afro-americanos, e suas lutas em diversas formas de organização, em coletivos e manifestações com objetivo de combater o racismo e outras formas de desigualdades existentes naquele país. Os principais pontos abordados pela mesa no que tange às obras de Davis tiveram como objetivo identificar a atenção que a autora dispensa à situação das mulheres, especialmente das mulheres negras norte-americanas, não perdendo de vista o sistema escravocrata e toda a violência que sofreram, destacando a cultura do estupro que impera desde o período da escravidão e perdura nos dias atuais, e o papel subalterno das trabalhadoras pretas, cuja maioria exerce funções como lavadeira, doméstica e outras que as colocam enquanto subclasse. Davis propõe a articulação entre classe, raça e gênero, perspectivando identificar a raiz das contradições sociais a fim de compreender essas formas de opressão estruturante na sociedade de classes. Outro aspecto fundamental abordado pelos palestrantes foi
o projeto arquitetado e executado pelos Estados Unidos para a população pós-escravidão e depois da lei Jim Crow, através da política de encarceramento em massa, efetivada a partir de leis como a 13ª emenda da Constituição, segundo a qual os presos eram alugados por honorários ínfimos a empresários particulares do novo Sul. Tal prática, que ficou conhecida como sistema de locação de mão de obra prisional, perdura até os dias de hoje, colocando os Estados Unidos da América na primeira posição dos países que mais encarceram seres humanos no mundo, somando mais de dois milhões de presos. A partir da exposição dos debatedores foi possível compreender a importância da obra de Angela Davis, possibilitando não somente uma reflexão acerca dos temas que ela nos convida a enfrentar, mas abrindo espaço para que possamos compreender a realidade na qual estamos inseridos, os projetos que estão em voga, especialmente no atual patamar em que o capital se encontra, isto é, na fase do imperialismo. Mulheres, Raça e Classe possibilita compreendermos as relações de opressão como a escravidão, racismo e capitalismo; Mulheres, Raça e Classe articula e demonstra a função social do patriarcado no seio da divisão de classes; por fim, Mulheres, Raça e Classe conta com uma rica pesquisa para aqueles que querem compreender as raízes históricas do massacre, da criminalização e do genocídio de um grupo, que por sua vez pertence a uma classe dos despossuídos, que por sua vez mantém compulsoriamente a atual ordem econômica.
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LITERATURA
Lima Barreto e a sua miríade das cores
A ontologia em “A Náusea”, de Sartre
Juarez Donizeti Ambires
Graduado em Ciências Sociais pela FSA
Lima Barreto é mestiço que nasce e morre no Rio de Janeiro. Seu percurso de vida vai de 1881 a 1922 e, apesar da curta duração, legou-nos obra que é das mais importantes de nossa literatura. O melhor de sua educação encontrou-o na escola, mas também em casa e na leitura. A mãe era professora de formação e o pai, um tipógrafo que gostava de ler e marcou o filho com o hábito. Marcou-o também com o nome. O escritor é em seu batismo Afonso Henriques, em parceria primeiramente com o padrinho e, depois, com o pai. Com ambos também estabelece parceria no apego ao Rio, cidade que Lima personifica em seus escritos, transformando-a em sua principal referência. Nela, estão os negros e mestiços com os quais ele se identifica, com os quais se irmana. Em sua vida e literatura, o lugar social desta gente (e, na extensão, o seu lugar) é a sua preocupação. Por isto, sua obra inquire a Abolição e a República, pedindo-lhes respostas. Neste diapasão, a assinatura da Lei Áurea será contada pelo escritor. Em verdade, é uma das
Jean Paul Sartre afirma que não somos a materialização da ideia de deus, e por consequência lógica, não existe natureza humana em sua filosofia. Não há missão designada para o homem – essa máxima do existencialismo ateu não tem como objetivo colocar o homem no mais profundo desespero; ao contrário, afirma a liberdade inevitável que fundamenta a existência, afinal de contas a resolução divina é uma chave mestra que responde todos os problemas, mas não explica nenhum. O ser desaparece com a justificativa da fé. Essa angustia – resultado da observação da contingencia existencial – é o enredo que norteia Antoine Roquentin, protagonista de A Náusea, primeiro romance de Sartre, publicado em 1938. A densidade da obra não me permite fazer uma sinopse sem correr o risco de ser raso; basta saber que Roquentin é um historiador letrado que carrega consigo várias experiências ao redor do mundo e que almeja escrever a biografia de uma figura esquecida do século XVIII, o marquês de Rollenbon. No decorrer dessa empreitada, Roquentin se desencanta de forma abrupta e irreversível pela pesquisa biográfica e é submetido por uma (a priori) estranha sensação de aversão ao ser humano e à sua respectiva condição existencial. Roquentin chega à constatação de que pode não haver nada no lugar do que há, tudo poderia não ser – a “náusea”. Nós temos um distanciamento do nosso ser, penso sobre o eu, que pensa sobre o eu, e é esse distanciamento que permite a estrutura de uma liberdade absoluta por questão de contingencia lógica, ou seja, o ser que se distancia não encontra nada no alienamento de si. Por isso, para Sartre, o homem está condenado à liberdade, o ser só é e está sufocadamente livre.
Guilherme Barros Araújo
Professor de Língua e Literatura Portuguesas na FSA
lembranças de sua infância. O pai o levará para assistir à oficialização do ato, e o menino registra o acontecimento. À distância e em meio a grande multidão, há um palanque. Nele, estão autoridades civis, religiosas e Isabel, a princesa. Uma missa campal se desenrola e dela as autoridades mencionadas e o povo participam. No ato, todos celebram a extinção de uma prática que, entre nós, fora mais que secular. Em verdade, com ela – a escravidão – convivêramos por mais de trezentos anos. Para muitos, sua abolição era um grande suspiro de alívio. No episódio, Lima e o pai estão entre a multidão e também entre os aliviados. Bem de perto, sabiam o quanto a pele negra pesava, apesar de os Lima Barreto serem uma família bem assimilada. No país, vivia-se o estigma da cor, vivera-se até bem pouco o estigma da escravidão racial. Por isto, mais tarde, já homem, o escritor perguntará sobre os destinos sociais dos libertos e descendentes que conhecia, conhecera e avistara naquele ato e fora dele. E sua obra acabou por ser a resposta
mais verídica à indagação. Por meio dela, sabemos que negros, pardos, cafuzos, mulatos continuavam à margem. Nesta exposição, uma linguagem das cores acaba por habitar sua obra. Habita-a, também e na correlação, uma linguagem da hierarquia social que os tons de pele mais escuros bem conheciam e conhecem. Projetos sociais de inclusão não se ocupavam deles. Na República, a igualdade era para uns poucos tal como no império. Os preconceitos enfrentados ainda eram os mesmos anteriores à libertação. O processo social continuava altamente excludente. Para a constatação, bastava uma volta aos subúrbios e aos morros do Rio. Esta era a indicação de Lima, toda a vez que sua pena escrevia sobre o assunto. Por isto, o (herói) andarilho que palmilha a cidade é em seu anonimato uma constante na escrita do autor. O exemplo viria do andarilho de Baudelaire, que, sem destino certo, perambula por Paris. Andando, ele vê, constata e comenta situações e adversidades da vida cotidiana, dando-se o mesmo com o flaneur de Lima. Devido ao fato, o andarilho carioca está sempre em deslocamento e para constatar que a pobreza tem cor e lugar. Em Lima, ela é negra ou mestiça e está nos subúrbios. A literatura do autor também é espaço contra conceitos pseudocientíficos, pares dos sociais. Constitui-se, assim, em voz de combate ao veredito fatalista do determinismo biológico, ao veredito da eugenia, da superioridade ariana. Para Lima, negros e mestiços não são inferiores. A inteligência não é atributo caucasiano. A história do negro é positiva, e o Brasil é prova desta positividade. Em sua lógica, o negro é o nosso colonizador e o nosso artista por excelência. Muito do país se fizera por suas mãos. A leitura do seu Diário íntimo revela-nos esta sua crença.
A liberdade exercida por Roquentin é acompanhada em todo o decorrer da obra pelo jazz, e é só por intermédio da música “Some of these days” que ele não sente com tanto pesar a náusea existencial. O jazz, para Roquentin, representa um modelo de sociabilidade comunicativa indecifrável, é um ato criativo livre de não compreensão, uma realização perfeita que possui começo, meio e fim, diferentemente da existência que não possui uma estrutura pré-delineada - mesmo que a personagem afirme que “é preciso sofrer em compasso”, o jazz é um simbolo de eternidade. Apenas pela produção da arte é possível permanecer eterno, como afirma Sartre no próprio romance: “em uma obra de arte do aqui-e-agora da existência do ser humano poderia ser mostrado como entrelaçadas nas relações necessárias. Mas em contraste com a obra de arte, no mundo real a existencia humana é contigente e por isso, muito livre”. Sartre afirma mais tarde que a ideia desta afirmação é idealismo juvenil e afirmará a necessidade de um engajamento político, sem nunca negar que o jazz é a manifestação musical da liberdade. Como já dito no começo do texto, o existencialismo ateu não tem como objetivo fazer com que o homem se desespere por conta da gratuidade existencial. O engajamento político de Sartre (sempre ao lado de sua companheira Simone de Beauvoir) é um exemplo de que a luta política é uma responsabilidade de nossa liberdade: a negação da má fé, sem a pretensão de se livrar da náusea, que sempre nos acompanhará. “A cada passo sempre haverá várias outras opções que serão naturalmente descartadas, sem saber se são melhores ou piores, pois nunca se vive a alegria ou as tristezas da vida que não escolhemos viver. A angustia te acompanhará, A náusea sou eu. ”
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FEMINISMO
Revolução Russa e os feminismos hoje
Para saber mais: Cotrim, Vera. “Emancipação feminina e dissolução da família no ideário da Revolução Russa”. In: Cotrim, Ana; Cotrim, Vera (orgs.). Todo Poder aos Sovietes! A Revolução Russa 100 Anos Depois. Porto Alegre: Zouk, 2018. D’Atri, Andrea; Murilo, Celeste. Nós mulheres, o proletariado. Disponível em: https://goo.gl/e8An6o Goldman, Wendy. “As Mulheres e a Revolução” (vídeo, legendado, disponível em: https://goo.gl/fVDRHf)
Raphaelle Denser
Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André
Em outubro de 2017 houve a Semana de Ciências Sociais na Fundação Santo André, que teve como tema geral o marco de 100 anos da Revolução Russa. Foram realizadas palestras com recortes diversos sobre a temática, sendo que a atividade que encerrou a semana foi a mesa composta por Vera Cotrim e Maíra Machado sobre as mulheres e a Revolução Russa. Nela tratou-se das conquistas das mulheres após a revolução de
1917, tal como expressas na nova legislação soviética que, impulsionada principalmente por Alejandra Kollontai, permitiu às mulheres o direito ao voto e a candidatar-se, o direito ao divorcio e à educação gratuita, salários iguais aos dos homens e o direito ao aborto livre e gratuito, entre outros. Demonstrou-se também a perda de parte dessas conquistas, principalmente com o stalinismo, e mais ainda quando se toma como
parâmetro de comparação a Rússia nos dias atuais, na qual foi aprovada a lei da bofetada, que permite a agressão física de mulheres por seus maridos uma vez ao ano. Foi d emonst rad o que a abordagem da emancipação fe m i n i n a , qu e te m c omo pressuposto a emancipação humana, acaba por se contrapor a muitos movimentos feministas em nossos dias atuais, nos quais há diversas vertentes do feminismo, cada uma das quais abordando de maneira diversa a questão da mulher e sua emancipação. Hoje não se pode falar no movimento feminista como um conceito geral, o que se pode dizer é que existem feminismos – no plural – tal a disparidade das ideias entre as diversas correntes. Um grande marco da luta feminista foi a tomada do poder pelos bolcheviques na Rússia, pois associou-se a questão da emancipação feminina à questão da emancipação humana e à construção do comunismo, ainda que não o tenha alcançado, e por levar este debate aos âmbitos públicos, nos quais tal emancipação já não mais era tratada como uma questão estritamente feminina, mas relativa à construção de uma nova sociedade. Neste processo revolucionário, as lutas feministas estiveram muito mais próximas de se tornarem vitoriosas. Nessa perspectiva, ao analisar a sociedade capitalista desde seus primórdios, percebe-se que ela se apropria de qualquer segregação, seja de raça, de gênero, de classe ou outras, para explorar
ainda mais esta parcela da população. Com a questão feminina não é diferente, visto que o capitalismo se vincula diretamente ao patriarcado, o renova e reproduz, reservando às mulheres a camada mais baixa da sociedade, o que possibilita uma elevação da exploração nos diversos âmbitos de suas vidas. Há, assim, a necessidade de se analisar com maior atenção a questão de classes que existe no interior da sociedade capitalista de um modo geral, mas se compreendendo a especificidade da questão feminina, com a sua dupla exploração, sobretudo das mulheres negras: “O capitalismo carregou para sobre os ombros da mulher trabalhadora um peso que a esmaga; a converteu em operária, sem aliviá-la de seus cuidados de dona de casa e mãe. Portanto, a mulher se esgota como consequência dessa tripla e insuportável carga que com f re qu ê nc i a e x pre ss a c om gritos de dor e lágrimas” (Alejandra Kollontai). Assim, ao se tratar a questão do machismo como algo de cunho retrógado, como um resquício de sociedades antigas, não se chega à raiz do problema, visto que o patriarcado tem uma existência objetiva dentro do sistema capitalista. Também é assim quando, dentro de movimentos feministas, se coloca os sexos em contraposição, como se o problema do machismo e do patriarcado estivesse, somente, no indivíduo masculino, e não fazendo parte de um sistema de dominação da classe trabalhadora de um modo
geral. Krupskaya descreve a importância que a questão feminista tinha para Lenin desde muito antes de estourar a revolução: “Quando ele estava no exílio, em 1899, Lenin trocou correspondências com a organização do partido (o Primeiro Congresso ocorreu em 1898) e mencionou os assuntos sobre os quais ele desejava escrever na imprensa ilegal. Esses incluíam um panfleto chamado “Mulheres e a Causa dos Trabalhadores”. Nesse panfleto, Lenin pretendida descrever a posição das mulheres trabalhadoras das fábricas e das mulheres camponesas, e lhes mostrar que a única salvação para elas era através de sua participação no movimento revolucionário, e que apenas a vitória da classe trabalhadora traria a emancipação às mulheres operárias e camponesas”. Sob essa perspectiva, os movimentos feministas deveriam unir-se para debater a questão da propriedade privada, do modo de produção e do nosso real e urgente inimigo: o sistema capitalista. Como disse Maíra Machado: “Quando a gente toma a lição das revolucionárias russas, pelos avanços concretos do estado soviético, mas mais do que isso, pelos enormes sonhos que foram sonhados, nossos sonhos devem então ser os maiores: de colocar abaixo toda essa sociedade e construir o novo, com toda a criatividade humana, como vimos nos russos e que existe dentro de nós, mas que o capitalismo apaga e impede que se expresse. Com todo sentimento livre que pode nos fazer sentir”.
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DEMARCAÇÃO JÁ!
Aldeia Multiétnica e a resistência indígena
Para saber mais: Ribeiro, Darcy. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Articulação dos Povos Indígenas do Brasil: disponível em http://apib.info/ Aldeia Multiétnica: disponível em www.aldeiamultietnica.com.br/
Izabela de Macedo Jacinto
Estudante de Ciências Sociais da Fundação Santo André
Os índios não são propriedade de ninguém, nem de padres nem de ONGs; entendem que pensam diferente e que devem ser diferentes dos demais, e que devem apoiar uns aos outros. Assim falaram lideranças indígenas no evento “Mekukradjá” em São Paulo. Entretanto, a primeira vez em que me encontrei com elas foi num diálogo de mais de sete dias, durante a Aldeia Multiétnica.
Atualmente, aquilo que no geral se chamam índios, são povos originários que totalizam mais de 300 etnias, falantes de 274 línguas, cada qual com seu modo de organização social. Nesse cenário tão amplo e diverso, a Aldeia Multiétnica aparece em 2007 no formato de um evento que promove o fortalecimento cultural indígena. É na Chapada dos Veadeiros, durante a segunda semana de julho,
que se encontram os Krahô, Fulni-ô, Kayapó, Dessana, Kariri-Xocó, Guarani Mbya, Xavante, Rikbatsa, povos do Alto Xingu como os Yawalapiti e Kamaiurá, entre outras etnias de diferentes regiões, no intuito de estabelecer diálogos, aproximação entre as etnias, promover os saberes tradicionais e fortalecer lutas em comum. Há também a presença do povo tradicional quilombola, do Sítio Histórico Kalunga, e os Kupen, denominação Krahô dos não-indígenas, “que vivem como cupins”, amontoados em casas construídas na vertical. Em outras palavras, para os indígenas a Aldeia Multiétnica significa se reunir com os parentes, unir o canto, o rezo, a comida, as histórias, e colocar em dia questões importantes como o genocídio da população indígena, a luta pela demarcação de terras, quais são as medidas indigenistas que realmente funcionam ou funcionariam para eles, denunciar as atividades predatórias nos territórios tradicionais indígenas, enfim, demonstrar quais são os desafios e as perspectivas da luta indígena hoje em dia. To das ess as questõ es s ão abordadas à maneira deles, por vezes numa roda de prosa logo pela manhã, comendo um pedaço de melancia depois do almoço, ou nas cantorias no pé do fogo de noite. Seja cantando, rezando ou dançando, tudo na Aldeia denuncia o tempo todo o quanto a cultura indígena é rica e diversa, e ao mesmo tempo, o pesar, a dura realidade contra os indígenas: a expropriação constante
desses povos seja pelo latifúndio ou pelo aniquilamento dos recursos necessários para sua sobrevivência – um exemplo contemporâneo é a construção da Hidrelétrica de Belo Monte na bacia do Rio Xingu –, o desmonte da FUNAI, a perda de rudimentos da língua e da cultura, o desaparecimento de etnias, o empobrecimento compulsório e marginalização dos indígenas nos centros urbanos. Nessa perspectiva, o Acampamento Terra Livre (ATL), assim como a Aldeia Multiétnica, são de grande importância para o fortalecimento do movimento indígena. Desde 2004, o Acampamento aglutina as etnias e suas respectivas demandas numa mobilização nacional, em Brasília. Dessa mobilização, nasceu a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que reúne mais de 1000 lideranças do país inteiro, além de outras organizações indígenas regionais. Todo ano, o Acampamento dura por volta de 5 dias, e a edição desse ano, com o lema “Unificar as lutas em defesa do Brasil Indígena – Pela garantia dos direitos originários dos nossos povos”, reuniu mais de 3.200 indígenas. As palavras de Sonia Guajajara (PSOL) durante o evento revelam a importância da mobilização: “E a gente vem pra cá por quê? A gente vem pra cá por que a gente gosta de ficar na estrada, passando dois, três dias, pra chegar em Brasília e ficar aqui acampado? A gente vem pra cá pra ficar tomando sol, spray de pimenta, tomando bala de borracha? Não, a gente vem pra cá chorando. Quem de nós não queria estar em casa? Mas
a gente não pode. Não pode porque o sistema econômico e político não permite que a gente tenha paz”. Num cenário de ofensiva direta e constante aos povos indígenas, os efeitos sobre os povos originários são diversos e revelam a carnificina, entretanto a causa, desde o “descobrimento”, nos parece ser a mesma. Nas palavras fundamentais de Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro: “Nada é mais continuado, tampouco é tão permanente, ao longo desses cinco séculos, do que essa classe dirigente exógena e infiel a seu povo. No afã de gastar gentes e matas, bichos e coisas para lucrar, acabam com as florestas mais portentosas da terra. Desmontam morrarias incomensuráveis, na busca de minerais. Erodem e arrasam terras sem conta. Gastam gente, aos milhões. Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável hegemonia”. Durante o Acampamento, a marcha pela Esplanada dos Ministérios deixa um “rastro de sangue” de urucum diluído em água, com uma faixa clamando “Chega de genocídio indígena – Demarcação Já!”. É o clamor desses povos originários, numa luta direta e que vem se organizando contra a “interminável hegemonia” e genocídio. No cenário sombrio em que nos encontramos atualmente, ambas as mobilizações aqui apontadas são de extrema importância na resistência aos projetos do capital nacional e internacional de usurpar vidas e gentes.
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ANTROPOLOGIA
Evolução humana: novas descobertas
Para saber mais: “Filha de Neandertal e denisovano, ‘menina híbrida’ é descoberta por cientistas”. Disponível em: https://goo.gl/8AcVhm
Roger Filipe Silva
Graduado em Ciências Sociais pela FSA; mestrando em Filosofia pela UFABC
Reconstituição do rosto de nossa ancestral Luzia
Mesmo antes de Darwin desvendar a forma com que a vida se adapta e se altera ao longo do tempo, muito se conjecturava sobre a nossa condição natural. Do homo politicus, de Aristóteles, ao homo faber, de Bergson, a busca pela diferença essencial entre nós e os demais animais pululam e norteiam os mais diversos tipos de teorias, das mais diferentes áreas. Seguindo este questionamento, a academia platônica teria definido o ser humano como um bípede implume. Porém, precisou redefini-lo quando Diógenes, O
Cínico, depenou uma galinha e a apresentou ao público dizendo: “eis aqui o homem de Platão!” Apesar de a atual ciência estar muito à frente da concepção platônica, o problema de uma demarcação fixa das características que distinguiriam o Homo sapiens de seu ancestral e parentes próximos continua a assolar os paleontólogos. Quando foi realizada a reconstrução dos fósseis encontrados no Marrocos, que datam de 300 a 350 mil anos atrás – mais de 100 mil anos antes do que se acreditava ter surgido a própria
espécie sapiens –, percebeu-se que algumas características anatômicas consideradas arcaicas, como a caixa craniana alongada, estiveram presentes nestes exemplares, contudo sobrepostas às características tidas como modernas, como a face pequena e as mandíbulas curtas. Algo semelhante aconteceu com os exemplares encontrados em Florisbad, na África do Sul, com cerca de 260 mil anos: neles a face é larga e grande, mas relativamente plana, já a testa se aproxima do porte característico do homem contemporâneo. Tais achados, além de alterarem a teoria segundo a qual a nossa espécie teria surgido no leste africano e se espalhado ao redor do globo posteriormente, uma vez que demonstram o espalhamento humano no continente africano bem antes do que se esperava, também acabam abrindo a possibilidade de que sejam encontrados cada vez mais fósseis com características intermediárias diversas entre o Homo erectus, o heidelbergensis, ancestral direto dos europeus neandertais e que apresenta características bem próximas aos sapiens arcaicos, e o próprio Homo sapiens, de tal forma que será cada vez menos possível determinar em que momento os ancestrais deixaram e os sapiens passaram a existir. Isto é, aponta-se que características consideradas primitivas, e outras tidas como modernas, são encontradas em diferentes fases de desenvolvimento em fósseis ao redor do continente africano, demonstrando uma evolução que teria acontecido de forma gradual e dessemelhante nos múltiplos locais em que a espécie se desenvolveu. Em outras palavras, os achados e datações mais atuais demonstram que o Homo sapiens teria se desenvolvido concomitantemente em diferentes partes do continente
africano; porém, apesar de convergirem para uma mesma adaptação, inclusive por meio de miscigenações, teriam algumas características anatômicas que apareceram de formas dessemelhantes a depender dos mais diversos fatores. Apesar de tais descobertas responderem a algumas das dúvidas que cercam a formação do humano moderno, e inaugurarem novas, outras ainda continuam presentes. Um destes mistérios diz respeito ao papel da miscigenação, que teria ocorrido entre as diversas espécies de Homo que foram contemporâneas e que se entrecruzaram na Eurásia por um longo período, até a extinção das espécies menos adaptadas. Segundo o mapeamento genético obtido de neandertais, haveria parcelas destes genes nos humanos modernos não subsaarianos, além de genomas de denisovanos, uma espécie próxima aos neandertais encontrada nas cavernas de Denisova, na Sibéria, mas sobre a qual pouco se sabe além do que se pôde verificar com as análises de DNA de um dedo e de alguns dentes, ainda que se tenha encontrado presença genômica denisovana, de genes em regiões responsáveis pelo desenvolvimento da linguagem e cerebral, em populações das ilhas do pacífico, na Melanésia. Uma recente descoberta lança uma luz sobre este quadro: pela primeira vez foi encontrada uma cria direta da hibridização entre espécies, no caso, a filha de uma neandertal com um denisovano, com cerca de 90 mil anos. Ainda que pese o desconhecimento dos denisovanos, os testes comprovam que somente a relação direta destas duas espécies, o que deveria ser algo comum, poderia gerar tal exemplar. Ainda mais enigmático, talvez, seja a chegada dos hominídeos na América. A queda da teoria de Cló-
vis First, segundo a qual o homem teria vindo a pé, pelo Estreito de Bering, da Ásia ao norte do continente, e de lá teria se espalhado, se deu devido a diversas evidências, tal qual o achado de objetos no Chile, com datações anteriores às encontradas no norte do continente, e a descoberta de ferramentas que datam de mais de 20.000 anos, no Parque Serra da Capivara, no Piauí, além de restos de fogueiras que parecem ter cerca de 100.000 anos, uma diferença de mais 80.000 anos do que se previra. Ainda que se faça necessária a descoberta de mais evidências para que se afirme algo que pode mudar, e muito, o que se conhece sobre o desenvolvimento humano nas Américas, tal datação é extremamente significativa para que se iniciem mais buscas e estudos paleontológicos no país. Também foi no Brasil, em Minas Gerais, que se encontrou o fóssil mais antigo de todo o continente americano, o Lapa Vermelha IV Hominídeo 1, apelidado de Luzia em referência à famosa Lucy, uma Australopithecus afarensis de 3,5 milhões de anos achada na Etiópia. Luzia tinha entre 12.500 e 13.000 anos, e apresentava um tipo morfológico com características intermediarias, com traços negroides e crânio arredondado, como dos mongoloides, corroborando para o surgimento de novas teorias sobre as ondas migratórias que formaram as populações nativas americanas. Apesar de sua suma importância, e dos estudos que foram possibilitados por este achado, Luzia não resistiu ao Brasil contemporâneo, e parece ter queimado, junto a diversos outros incomensuravelmente relevantes itens, na evitável catástrofe do incêndio do Museu Nacional, em 03 de agosto passado.
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ECONOMIA Para saber mais: Carvalho, Laura. Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo: Todavia, 2018. Filgueiras, Luiz; Gonçalves, R. A economia política do governo Lula. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007. Maringoni, G; Medeiros, J. Cinco mil dias: o Brasil na era do lulismo. São Paulo: Boitempo, Fundação Lauro Campos, 2017. Paulani, L. Brasil Delivery: servidão financeira e estado de emergência econômico. São Paulo: Boitempo, 2008.
A questão social sob hegemonia financeira Felipe Henrique Gonçalves
Graduado em Ciências Sociais pela FSA; doutor em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC
Salve comunidades, não apenas bancos! (em tradução livre)
A abertura econômica e a liberalização comercial e financeira do início dos anos 1990 criaram as condições para o processo de financeirização, impulsionadas pelo cenário internacional de mundialização do capital. O Brasil se inseriu nesse processo de forma passiva, por meio do endividamento público e sem um projeto de desenvolvimento nacional sustentável que promovesse distribuição de renda e expansão das políticas sociais. O determinismo financista, que compreende a predominância de medidas econômicas condicionadas pelo chamado “fundamentalismo de mercado” como inescapável, tem sido incorporado mesmo em
alguns governos considerados de centro-esquerda. A recente experiência do PT na direção do governo federal (2003-2016) é ilustrativa. Os governos Lula procuraram reorganizar as frações de classe oferecendo condições favoráveis para a grande burguesia interna, principalmente aquela vinculada ao agronegócio destinado à exportação, mas sem contrariar os interesses da hegemonia financeira. O boom das commodities e o cenário externo favorável puxado pelo “efeito China” garantiram ao agronegócio e à indústria de produtos de baixa densidade tecnológica ganhos superiores em relação aos governos anteriores. O crescimento
econômico do período também foi possível devido a um expressivo aumento da relação crédito/PIB, responsável por um consumo de massa inédito na história do país, que estimulou o mercado interno, principalmente após a crise de 2008. A manutenção de elevados superávits primários durante o período forçou uma política monetária conservadora de elevadas taxas de juros e uma política fiscal restritiva de baixo investimento público, com relativa exceção no segundo governo, que elevou os investimentos públicos por meio do PAC e flexibilizou a política monetária para conter os efeitos da crise. A expansão do “bolo” permitiu uma elevação da lucratividade e condições objetivas para o governo executar, momentaneamente, metas contraditórias: manter a estabilidade monetária assentada em seus passivos, a segurança e a confiança dos credores e investidores, gerando, simultaneamente, renda, emprego, crédito e políticas sociais focalizadas para os de baixo. Nesse sentido, predominou uma lógica de distribuição de renda na margem do sistema, dentro dos ganhos do crescimento do PIB, sem grandes enfrentamentos com os beneficiários da especulação ou da estrutura tributária regressiva do Brasil. É a fração bancário-financeira a maior beneficiada. A definição sobre a taxa básica de juros significa, em última instância, uma disputa pela distribuição da renda. A alta regressividade e expansão da carga tributária, combinada a uma estrutura de bem-estar de baixa densidade, fazem do Estado brasileiro um Robin Hood às avessas. As medidas econômicas de natureza heterodoxa que estiveram presentes no segundo governo Lula ocorreram simultaneamente à acumulação financeira, com elevada apropriação rentista e com uma
parcela dos setores industriais se beneficiando do câmbio apreciado e da rentabilidade dos ativos financeiros. Com a crise financeira de 2008 desacelerando o crescimento do comércio internacional, o modelo de desenvolvimento sustentado nas exportações de commodities e no mercado interno, via expansão do crédito, começou a encontrar os seus limites, e o projeto de conciliação se viu em contradições cada vez mais agudas de disputas pelo orçamento público. A manutenção de elevadas taxas de juros reais em comparação com os padrões internacionais foi elemento determinante dos limites impostos pela hegemonia financeira ao desenvolvimento. Nessa circunstância, impediu-se que a dívida pública fosse um instrumento de financiamento do investimento público para tornar-se espaço de alocação de recursos com elevada rentabilidade e baixo risco, desestimulando as atividades produtivas e drenando a riqueza nacional por intermédio de um sistema tributário extremamente regressivo. Assim, o endividamento público interno contribuiu muito mais para reproduzir os limites estruturais do desenvolvimento econômico do que para superá-los, uma vez que o volume de investimentos públicos não teve contrapartida proporcional. O grau elevado de financeirização da economia levou o país a sofrer influência excessiva das operações especulativas e de curto prazo, em detrimento de considerações e planejamento de longo prazo. A manutenção de juros reais elevados atraiu cada vez mais capitais voláteis. A política econômica foi corrompida pelas avaliações curto-prazistas dos mercados financeiros, decorrência de as grandes empresas produtivas terem parte expressiva de sua estrutura
de ativos direcionada também às operações financeiras. Nesse cenário as estruturas macroeconômicas estimulam e generalizam a revalorização dos capitais por meio de diferentes ativos e produtos financeiros, em prejuízo do crescimento produtivo, intensificando, com isso, a concentração da renda em benefício dos lucros e dos rendimentos do capital e em detrimento dos salários. Por isso, um novo modelo de desenvolvimento que garanta distribuição de renda passa por colocar em debate questões de mudanças estruturais. A título de reflexão para promoção do debate, elenco brevemente alguns temas. Com o objetivo de reduzir a volatilidade cambial, é necessário colocar em debate o tema dos controles de capitais. Além disso, recolocar a função social dos bancos públicos na ampliação da participação no fornecimento de créditos sob juros reduzidos e de longo prazo para atividades produtivas e bens de consumo duráveis. Quanto à dívida pública, faz-se necessário mudar o seu perfil, reduzindo gradualmente os juros e tornando-a de longo prazo, possibilitando que seja instrumento de financiamento de investimentos públicos para impulsionar o crescimento econômico. A redução de juros associada a uma profunda reforma tributária progressiva, de ampliação de faixa de isenção do Imposto de Renda e aumento da tributação para os mais ricos, além de taxação sobre herança, grandes fortunas, lucros e dividendos e redução de impostos sobre o consumo e produção e aumento sobre patrimônio e renda, estimulariam as atividades produtivas e possibilitariam maior distribuição de renda em favor do trabalho.
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POPULISMO, SOCIALISMO OU DEMOCRACIA?
A polêmica em torno do governo João Goulart
Para saber mais: Moniz Bandeira, L. A. O governo João Goulart. As lutas sociais no Brasil – 1961-1964. São Paulo: Unesp, 2010. Dreifuss, René. 1964 - A Conquista do Estado. São Paulo: Vozes, 1981. Silva, Aline V. O Projeto Nacionalista de João Goulart: Análise dos Discursos de 1961 a 1964. Dissertação de mestrado. PUC-SP. Disponível em: https://goo.gl/LtgzCV Chasin, J. “A via colonial de entificação do capitalismo”. In: A Miséria Brasileira. Santo André: Ad Hominem, 2000.
Valquíria Braga
Graduada em Ciências Sociais pela FSA; mestranda em História Econômica pela USP
Os estudos sobre o governo João Goulart (1961-1964) têm despertado, nos últimos anos, especial interesse entre os historiadores. Desde debates quanto à natureza desse período, passando por estudos da vida pessoal do ex-presidente e por pesquisas com objetivo de aclarar os motivos que levaram ao golpe empresarial-militar de 1964 até ensaios que tentam relacionar nosso atual momento político com as vésperas do golpe, um elemento é polêmica certa entre os intelectuais: seriam os anos Jango um período populista, um caminho para o socialismo ou
apenas a tentativa de efetivar a frágil e recente democracia brasileira? A interpretação mais clássica sobre o período é a que atribui a João Goulart o estigma de populista. Esta teoria, presente de livros didáticos e discursos midiáticos até em intelectuais de grande monta, tem como origem as leituras de Francisco Weffort e Octávio Ianni. Guardados os méritos dos autores e as especificidades de cada leitura feita a partir deles, em geral o líder populista é aquele que, para benefício da classe dominante, e através de uma retórica demagógica, manipu-
la e ilude as massas populares. Desta forma Goulart seria caracterizado como um líder populista típico, que usaria o povo para atingir benefícios pessoais. A visão conservadora, presente desde a grande mídia do período até em intelectuais da direita ou no Pentágono norte-americano, que imputa a Jango os rótulos de um presidente socialista e subversivo que pretendia implementar no país uma república sindicalista ou uma nova Revolução Cubana, foi derrubada por uma série de estudos e recentes pesquisas que mostram que Goulart era essencialmente um democrata nacionalista, inspirado em ideais cristãos de justiça social e igualdade; colocando-se contra o socialismo, considerava como solução para os problemas nacionais a conciliação entre classes no interior do sistema capitalista. Segundo Moniz Bandeira, Goulart era um reformista, com um programa, um partido – o PTB – e uma prática muito bem delineada, cujas propostas foram, em termos nacionais, o que mais se aproximou da social-democracia europeia, responsável pelos anos de bem-estar social naquele continente. Diante da posição definida de Goulart e do PTB, Bandeira pode afirmar com segurança que já em 1959 o programa deste correspondia a um nível de consciência da problemática brasileira, ou seja, longe de ser populista, de proferir retóricas vazias, Goulart e seu partido tinham um programa coerente com a realidade nacional; este programa nunca fora negado por ambos e,
apesar de ter como ótica a democracia burguesa, de fato representara a melhor opção em voga na época para os trabalhadores. E justamente por isso o impedimento, por parte da direita, de sua efetivação. Em nossa análise a confusão em torno do caráter do governo Goulart e das Reformas de Base deve ser situada na própria particularidade do capitalismo brasileiro. A necessidade de se refazer o sentido da colonização apontado já por Caio Prado Jr e presente desde o início de nossa história, ou seja, a imposição de se repetir um modelo de acumulação que garantia a exportação de mercadorias para enriquecer as potências internacionais e alimentar uma elite dominante nacional, se mantém na década de 1960 – e até hoje. Para efetivar isto que caracteriza o ser precisamente assim de nossa formação nacional, fazia-se necessária a manutenção de certos elementos políticos e econômicos, a saber, o reforço da dependência externa e o impedimento da autonomia nacional, a concentração de terras, bem como a exclusão das massas, uma vez que a obtenção do lucro de ambas as burguesias – externa e nacional – repousava justamente sobre a superexploração do trabalhador. As Reformas de Base propostas por Jango questionavam justamente estes pontos que garantiam a manutenção da extrema desigualdade no país, propondo limitar os lucros astronômicos do capital internacional, a reforma agrária, o estímulo à indústria nacional e mesmo a nacionalização de setores estratégicos,
além das reformas urbana, eleitoral e bancária. Essas reformas estritamente democratizantes foram encaradas como socialistas ou populistas porque, a um capitalismo extremamente explorador e que nega minimamente a integração da classe trabalhadora ao desenvolvimento, a burguesia brasileira tem como correspondente político a autocracia, ou seja, uma forma política de exercício da dominação formada por uma burguesia que se nega a incluir minimamente as massas à democracia e se revolta quando se coloca em xeque seu domínio absoluto e excludente. Os debates em torno de Goulart se inserem nessa problemática, a saber, qual projeto nacional o Brasil deveria seguir: um modelo que recolocava como demiurgo de nossa história negócios exógenos ao interesse nacional e, portanto, perpetuavam a exclusão das massas trabalhadoras e a subordinação ao capital internacional, ou uma proposta democrática que incluía, por mais que de forma limitada, os trabalhadores e alargava a eles os direitos sociais básicos, mas que cobrava o alto preço de tocar nos privilégios seculares de nossa casta dominante. Assim foi que na década de 1960 se delinearam as opções dos modelos de acumulação capitalista possíveis em nosso país e foi no governo Goulart que as forças sociais, a favor ou contra este ou aquele modelo, se digladiaram pela vitória. A ditadura militar imposta em 1964 não deixa dúvidas sobre qual foi o vencedor desse embate.
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SOCIEDADE
Mobilidade de classes na urbanização em São Paulo
Para saber mais: CARLOS, Ana Fani Alessandri. A reprodução do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 2008. HARVEY, David. Os limites do capital. São Paulo: Boitempo, 2013. MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo: Expressão Popular, 2015. PASTORE, José e SILVA, Nelson. Mobilidade Social no Brasil. São Paulo: Makron, 2000.
Sandro Barbosa de Oliveira
Graduado em Ciências Sociais pela FSA, mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP e doutorando em Sociologia pela UNICAMP
A problemática da mobilidade de classes na sociedade brasileira passa pelas questões das mobilidades urbana e social. Para compreender sua dinâmica e suas barreiras socioespaciais é necessário entender o processo de urbanização, que adquiriu suma importância para o desenvolvimento capitalista por ser induzido pela produção capitalista do espaço, ao passo que o espaço urbano de metrópoles e cidades grandes no Brasil apresenta visualmente os efeitos das desigualdades estruturais deste tipo de capitalismo dependente. As consequências do desenvolvimento desigual e combinado são visíveis e se manifestam por meio da segregação urbana, que expressa a separação entre as classes no espaço produzido, em que as classes dominantes habitam e trabalham numa área da metrópole construída exclusivamente
para elas, enquanto as demais classes sociais habitam um lugar e trabalham em outro; essa condição estrutural indica os efeitos da necessidade de deslocamentos diários de trabalhadores, pequenos burgueses, profissionais liberais e camadas médias, mas não suas causas. Estas se encontram na relação entre segregação urbana, renda da terra e sistemas viários e de transporte, que podem evidenciar os fundamentos estruturais da mobilidade entre as classes nas contradições dessa urbanização. O problema do transporte expõe a crise de mobilidade urbana evidenciada após a revolta da tarifa de 2013 na discussão sobre deslocamentos e direito à cidade nas metrópoles brasileiras. A mobilidade urbana, noção relacionada aos modos de acesso às diferentes localidades das médias e grandes cidades,
refere-se às condições diárias de deslocamento e autonomia nessa circulação. Ela expõe o problema relativo à dinâmica de circulação de trabalhadores e mercadorias, e mostra as barreiras socioespaciais de apropriação da riqueza social distribuídas desigualmente no urbano pela valorização do capital. No caso das metrópoles brasileiras, em consequência da forte concentração industrial e do intenso processo de urbanização entre as décadas de 1950 e 1990, houve uma vertiginosa aglomeração da população e de ocupações em áreas periféricas em diversas cidades e regiões metropolitanas, locais que desenvolveram sistemas de mobilidade limitados e de alto custo na relação localização-deslocamento. A localização pode ser de “fácil” ou “difícil” acessibilidade e por isso não é possível pensá-la separadamente da dinâmica de deslocamento. Tal como a localização (lugar produzido socialmente que reúne características que determinam as condições de vida das classes – moradia, escola, transporte, infraestrutura, emprego), o deslocamento é determinado pelos sistemas viários e de transporte produzidos socialmente, o que leva a desigualdade na apropriação da cidade e da riqueza pelas classes. Em relação aos problemas de acessibilidade, nos últimos anos da década de 2000 houve aumento de veículos automotores no Brasil dez vezes maior do que o aumento da população, resultado da opção política assumida desde a década de 1950 por um modelo de mobilidade urbana oriundo do modelo de urbanização rodoviarista que se baseia no tripé indústria automotiva, indústria da construção civil e indústria petrolífera, que determinaram as localizações (bairros) e formas de deslocamentos (sistemas viário e transporte) nas regiões metropolitanas, ao
determinar o modal de transporte que passou a predominar no deslocamento intra-urbano no país. Não por acaso, as estatísticas do Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) mostram o quê os trabalhadores vivenciam cotidianamente e está presente nos noticiários: congestionamentos de veículos, passageiros em paradas à espera do ônibus ou amarrotados em vagões de trens e metrôs. Em São Paulo o sistema de transporte, que deveria ser prioridade dos investimentos públicos, é limitado e desigualmente distribuído. O sistema de mobilidade no Brasil gerou muitas iniquidades, ao passo que a urbanização recolocou pessoas em ambientes urbanos nos quais elas passam a necessitar de transporte público regular. Em síntese, as cidades e metrópoles brasileiras foram produzidas e estão estruturadas para um modo de vida das classes médias e dominantes que se utilizam do automóvel para circular, enquanto que a maior parte da classe trabalhadora que depende de transporte público e coletivo sofre diariamente com o tempo de deslocamento socialmente determinado para essa circulação, além dos custos para sua realização. Por isso, o tempo de deslocamento permite ampliar a noção de luta de classes nas cidades e metrópoles. As pesquisas Origem e Destino de 1997 e 2007 e a Mobilidade de 2012 do Metrô de São Paulo mostram como a maior parte dos trabalhadores habita as periferias enquanto que os empregos estão localizados em determinadas áreas e sub-regiões da metrópole. Isso provoca cerca de 29 milhões de viagens diárias (Auto 12 milhões; Ônibus 9 milhões; Metrô 4 milhões; Trem 2 milhões), ao concentrar os empregos na região central, oeste e no quadrante
sudoeste da cidade de São Paulo (65% dos empregos) e nas sub-regiões sudeste (11,6%), oeste (8,5%) e nordeste (6,1%) da metrópole. Esses dados expõem que o modo coletivo de transporte (54,3%) ainda se sobrepõe ao modo individual (45,7%), porém recebeu menos investimentos nas últimas décadas. As viagens diárias por modo e renda familiar também mostram a desigualdade desses deslocamentos: cerca de 18,1 milhões de viagens diárias eram feitas por trabalhadores que recebiam até 4 s.m. (salários mínimos; em 2012, o s.m. era R$ 622,00), representando um total de 47% do total geral de viagens. A faixa de até 2 s.m. na época mostrava que os trabalhadores de baixa renda, em sua maioria, utilizavam ônibus. Em contrapartida, auto superava em conjunto metrô e trem nas terceiras (de 4 a 8 s.m.) e quartas (de 8 a 15 s.m.) faixas de renda, o que mostra o predomínio do rodoviarismo entre as classes médias e dominantes, enquanto que as camadas de baixa e baixíssima renda da classe trabalhadora utilizam ônibus, metrô e trem. Para finalizar, não é possível entender a mobilidade de classes nas regiões metropolitanas apenas por meio de modelos de mobilidade social baseados em renda e consumo, já que a apropriação da riqueza socialmente produzida remete aos deslocamentos e acesso às localizações que concentram essa riqueza. Distribuição e apropriação de renda e consumo precisam ser entendidas a partir da estrutura de classes presentes no espaço, e o deslocamento é fundamental para ampliar a noção de classes sociais no urbano. A luta de classes se lê no espaço produzido, e o tempo de deslocamento socialmente determinado é fundamental para sua compreensão.
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ECONOMIA
POEMA
Bolha Heitor Santinon
Estudante secundarista
Dizem que a gente é o que a gente come A maldade a gente ingere Muitos passando fome Sendo julgados pela cor da pele
A China no mundo atual Victor Monteiro dos Santos
Graduado em Ciências Sociais pela FSA
Um menino morre voltando da escola Sonhava apenas em jogar bola Não tinha nada com esse papo de marola Mas isso não importou na hora de sacarem a pistola Ele foi assassinado Um tiro precipitado E aí eu te pergunto O que ele fez de errado Tem branco por trás da fraude Tem negro atrás da grade Tem muito salafrário Ainda dentro do armário O preconceito é real E a sociedade não tá pronta O preconceito é racial E ninguém quer pagar a conta Então desmonta e remonta Quem sabe assim a gente aprende A sociedade está pronta Isso é o que a elite vende Mas você não tá abrindo a boca Então me fala, o que te prende ?
SEMANA DE CIÊNCIAS SOCIAIS E GEOGRAFIA 2018 CRISES E CONTRADIÇÕES 5 a 10 de novembro de 2018 (das 18h00 às 22h30)
Apresentações artísticas, conferências e debates com intelectuais de diferentes universidades sobre as crises, contradições e alternativas que afetam nosso cotidiano e nosso futuro.
Evento gratuito e aberto a todos.
Informações: cienciassociaisfsa@uol.com.br
Para saber mais: https://goo.gl/8C57ui
Interpretar o movimento não é tarefa fácil, e o economista que se propõe a estudá-lo merece atenção. E assim, atenciosa, estava a plateia que assistiu ao economista Luiz Gonzaga de Mello Belluzo, na palestra inaugural da Semana de Ciências Sociais 2016. A China, que atualmente têm agitado o mundo com suas transformaçõ es econômico-sociais, foi pauta da palestra. Desde a década de 1970 a China deu passos largos em direção à industrialização, conquistou espaço no mercado internacional exportando bens não duráveis. Especializada em produtos eletrônicos, o expressivo crescimento chinês é, para grande parcela dos economistas, uma menina dos olhos de ouro. Modelo a ser seguido? Estratégia pre-
cisa? Comunismo? Belluzo afirmou que a desigualdade de renda na China aumentou, embora tenha diminuído o nível de pobreza. Um país que tinha uma população e uma economia majoritariamente rural, hoje é referência de megalópoles. No f inal de 2011 o governo chinês anunciou que, pela primeira vez na história, sua população urbana ultrapassou a população rural. A China pipocou cidades e, como a pipoca, a cidade transbordou a panela. No território chinês existem cidades fantasmas, ou seja, cidades construídas pela necessidade de expansão e não habitadas. Ainda que digam que a não habitação é “falta de gente”, não há como esconder o que se gerou: uma bolha imobiliária, onde a população não tem acesso
ao imóvel por conta do preço ofertado. A crise internacional do capital, que se origina do mesmo fenômeno, não foi empecilho para o modelo de desenvolvimento chinês, cujo PIB continuou crescendo na primeira década do milênio. Embora também não represente a saída milagrosa que buscam os economistas. Aliás, como disse ao jornal espanhol El País Gary Liu, diretor executivo do Instituto Internacional Lujiazui, a China se encontra em um ponto de inflexão, caracterizado por excesso de oferta no mercado e pela influência das empresas. A produção des enf re ad a d as rel açõ es capitalistas tem sido uma pedra no sapato da harmonia confucionista. A urbanização é predatória, a cidade é ira, fumaça, barulho, velocidade. Repito as palavras de Belluzo sobre a importância das decisões do Estado, com seus investimentos e aportes mu lt i m i l i onár i o s , p ar a o crescimento econômico do país. Porém a analogia com o desenvolvimento cauteloso é imprópria, pois, como disse o economista palestrante, “a travessia do rio pulando pedras” tem deixado os trabalhadores à margem. A modernização constante da produção impele para um menor número de trabalhadores na linha de produção, e as relações sociais terão de lidar com “o desafio do tempo livre”, como afirmou B elluzo. Sem trabalho ou com os baixos salários no setor de serviços as consequências da menina dos olhos de ouro é quiçá o cobre na mão do trabalhador. Quanto ao ouro… Ahhh… o ouro...
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AS VICISSITUDES DA ARTE NA ERA DA GUERRA FRIA CULTURAL
A CIA e a guerra subterrânea e psicológica
Para saber mais: Carlson, Marvin. Teorias do Teatro. São Paulo: UNESP, 1997. Costa, Iná Camargo. Nem uma lágrima. São Paulo: Expressão Popular, 2012. Saunders, Frances Storner. Quem pagou a conta? A CIA na guerra fria da cultura. São Paulo: Record, 2000.
Renata Adriana de Sousa
Graduada em Ciências Sociais pela FSA ; mestre em Ciências Sociais pela UNIFESP e pesquisadora do CPDOC Guaianás
“Alguma vez tentamos interferir nas eleições de outros países? Provavelmente. Mas foi pelo bem do sistema para evitar que o comunismo assumisse. Por exemplo, na Europa, de 1947 a 1949, com os gregos e italianos...” (Ex-diretor da CIA, James Woolsey, em entrevista no programa da Fox News).
A intervenção dos Estados Unidos da América através da CIA (Agência C entral de Inteligência) nas ações políticas e econômicas de outros países tem se evidenciado numa densidade de documentos e depoimentos que exige maiores pesquisas sobre o significado dessas in-
tervenções, sobretudo na produção ideológica e cultural. O trabalho de Saunders, A guerra fria cultural, retrata como a ideologia anticomunista foi incorporada nas atividades intelectuais e artísticas, e contribuiu para o fortalecimento da ideologia liberal. A partir da Revolução Soviética de 1917 e da formação do bloco socialista, o mundo se polarizou em duas partes. Por um lado, inspirou a eclosão revolucionária em toda parte do cenário mundial, e os trabalhos produzidos pela esquerda, aliada à ótica da classe trabalhadora, passou a d om i n ar a c e n a c u ltu ral. Por outro lado, o fluxo contrarrevolucionário que se colocou, principalmente
após a morte de Lenin (1924) e o aparecimento de Hitler na Alemanha provocou um novo cenário que passou a desqualificar o tipo de arte política que se fazia na URSS, minando o movimento histórico que vinha ocorrendo. Em contraposição àquela produção artística, um novo movimento artístico se avoluma, seguido também p or uma nova concep ção ideológica. Este é o período marcado pela guerra fria, no qual a disputa se trava pr incip a lmente na esfera ideológica e cultural entre a arte comunista, pautando a classe trabalhadora, e a arte “não objetiva”, pautando a liberalização do indivíduo; nesta última se evidenciou também a busca pela técnica e a livre iniciativa do artista se contrapondo às formas “autoritárias”. Essa forma artística liberal contou com a colaboração do governo estadunidense, fomentando a Escola de Nova York, que ficou conhecida como Expressionismo Abstrato. Para artistas e intelectuais a discussão se dava em torno das questões estéticas, enquanto que para o governo dos EUA tratava-se de penetrar profundamente na sociedade global, por uma guerra psicológica e pacífica, forjando nas pessoas a crença de que os “norte-americanos querem um mundo em paz, um mundo em que to das as pessoas tenham oportunidade do máximo de desenvolvimento individual” (presidente Eisenhower). A CIA, fundada em 26 de julho de 1947 com o objetivo de “coordenar as informações
militares e diplomáticas”, foi autorizada a colher informações ou intervir secretamente nos assuntos de outras nações, tendo como missão “salvar a liberdade ocidental das trevas comunistas”. De tal maneira que ela não só coordenou, mas orientou e armou diversos países a fazer o mesmo, o que significou a universalização da “experiência americana”. A CIA se auxiliou princ ip a l m e nte d e i nte l e c tu ais e artistas que estavam contrariados com a União Soviética. Desenvolveu uma guerra dissimulada, em que os agentes eram intelectuais que lançavam a proposta de “outro” projeto societário livre de qualquer autoritarismo. Organizaram o Congresso Cultural pela Paz em abril de 1949 em Paris, no qual, revestidos de trajes “democráticos”, debateram temas como ciência, totalitarismo, artistas e liberdade, o cidadão, a paz, a liberdade e a cultura livres num mundo livre. Temas que se tornaram as bases para a escola de arte de Nova York, que até então não tinha grande relevância. Os artistas que haviam participado do New Deal de Roosevelt foram seus principais realizadores; estes recebiam e produziam arte para o governo, ao mesmo tempo em que se envolviam na política de esquerda. O expressionismo abstrato surgiu no final da década de 1940, e foi considerado a “verdadeira ar te nor teamericana”, sem influências europeias; sobre as bases ideológicas do anticomunismo e politicamente silencioso,
ele era a própria “antítese do realismo socialista”. Nas artes serão referências desse movimento: Jackson Pollock, David Alfaro Siqueiros, Adolph Gottlieb, William Baziotes e Julian Beck. No teatro coexistia o princípio da “instituição moral”, que trazia lições “desejáveis pelos EUA”, são exemplos: Lillian Hel lman, Eugene O’ Nei l, Thornton Wilder, Tennesse Williams, William Saroyan, Clifford Odets e John Steinbeck; estes tiveram aporte do “projeto teatral maciço” por influência da CIA. E o princípio da liberalização do inconsciente individual através da experiência intensa do teatro fomentados por Kirby, John Cage, Joseph Chaikin, etc. Para financiar seus projetos culturais, a CIA usava dinheiro que era um subproduto do Plano Marshall e distribuía através das fundações: Ford, Rockefeller, entre outras. E proporcionou um êxodo artístico de artistas e intelectuais do mundo inteiro para os EUA, para participação em conferências, exposições, premiações, festivais, etc. Por fim, a guerra subterrânea e psicológica dos EUA fomentou o pacifismo e a liberdade individual contra o coletivismo e o pensamento marxista, considerados “totalitários”. A contradição entre grupos artísticos de perspectiva revolucionária e os de perspectivas liberais pôde mostrar as disputas, os conflitos e a movimentação que engendrou as duas visões de mundo na disputa pela narrativa da sociedade contemporânea.
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MARXISMO
200 anos de
Karl Marx
Para saber mais: Engels, F. Karl Marx. Disponível em: https://goo.gl/Q2uLDX Lenin, V. I. Os destinos históricos da doutrina de K. Marx. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1913/03/01.htm Lukács, G. “Os princípios ontológicos fundamentais de Marx.” In: Para uma Ontologia do Ser Social I. São Paulo: Boitempo, 2012. Chasin, J. Marx - Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.
Rodrigo Chagas
Graduado em Ciências Sociais pela FSA, mestre em História pela PUC e doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp
Entre os 200 anos que separam o nascimento de Karl Marx (1818−1883) e os dias de hoje a humanidade passou por transformações que reformularam, ao redor do globo, as relações sociais e de produção. Como resultado, vivemos atualmente em sociedades industrializadas nas quais a violência, a ignorância e a miséria deixaram de ser produtos da incapacidade humana para lidar com as adversidades na-
turais. Os problemas sociais tornaram-se, essencialmente, uma consequência da atuação coletiva norteada pela lógica do capital. Celebramos o bicentenário do nascimento de Marx, sobretudo, pelo reconhecimento de que ele foi o pensador que melhor compreendeu os problemas estruturais do modo de produção capitalista e a demanda por sua superação. Com a sua obra, tornou-se
clara a alternativa para se estabelecer novas relações dos indivíduos entre si e com a natureza. Para Marx, diferente do que geralmente se afirma, o fator subjetivo tem importância nas grandes transformações sociais e nunca se limitou a um simples efeito mecânico do desenvolvimento das forças produtivas. O desenvolvimento econômico repõe ciclicamente a possibilidade revolucionária, mas não produz por si a consciência para que esta se realize. Assim sendo, a interação entre forças materiais e sociais apenas se efetivam por meio da intervenção subjetiva: a decisão humana. Neste processo, não apenas a política, mas também as ciências sociais podem ganhar importância na consolidação de caminhos para além do capital. As confusões alimentadas, nos dias que correm, sobre o papel das “ideologias” nas universidades apenas ocultam que tanto as ciências têm motivações ideológicas sem necessariamente prejudicar a busca por objetividade, como a mais pura verdade científica pode ser utilizada como ideologia desastrosa. Nas investigações vinculadas ao marxismo, em princípio, o que se expressa é a escolha de um lado: tomar por referência a posição das classes desprovidas de capital como ponto de partida à pretensão científica. Isto não significa a imposição de uma doutrina, mas a tomada de consciência e de atitude crítica sobre os dilemas sociais. Qual seria o sentido de uma prática científica suposta-
mente desinteressada pela intervenção social? O objetivo de Marx não era o de constituir um “exército de doutrinados”, e sim a elaboração teórica dos conflitos existentes como passo essencial para superá-los. Na estreia pública das suas primeiras descobertas, em 1844, Marx escreveu: “/.../ nada nos impede de criticar a política, a participação na política e, portanto, tomar as lutas reais como ponto de partida de nossa crítica e de identificar nossa crítica com elas. Nesse caso, não confrontamos o mundo de maneira doutrinária com um novo princípio: aqui está a verdade, ajoelhe-se diante dela! Desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos princípios do mundo. Nós não dizemos ao mundo: cessem suas lutas, elas são tolas; nós lhe daremos a verdadeira consigna da luta. Nós simplesmente mostramos ao mundo pelo que realmente está lutando, e a consciência é algo que ele tem que adquirir mesmo que não queira. A reforma da consciência consiste apenas em tornar o mundo cons ciente de si própr io, em despertá-lo a partir de seu sonho sobre si mesmo, explicando-lhe o significado de suas próprias ações” (Marx, K. Letters from Deutsch-Französiche Jahrbücher. MECW, vol.3, p.144). Como vemos, a reflexão do autor continua oportuna neste momento histór ico em que os preconceitos e a confusão de ideias conduzem diariamente a humanidade às catástrofes sociais e na-
turais por meio de disputas às cegas. Para além dos escombros de velhos dogmas e batalhas políticas, o pensamento de Karl Marx nos oferece hoje novas possibilidades: tanto pelo distanciamento histórico do trauma da experiência da URSS, como pelo acesso aos estudos marxianos inéditos e a possibilidade de reflexões renovadas sobre a sua pertinência teórico-prática. Em suma, os investigadores marxistas do século XXI estão fadados ao duplo esforço de redescoberta do pensamento do próprio Marx – que foi, em grande medida, distorcido e ocultado no século passado – e a compreensão crítica da realidade atual. Temos de ter a clareza de que estamos em um novo começo. Portanto, devemos l i d ar s obr i ame nte c om o fato de que as alternativas à superação do capitalismo encontram agora apenas um eco mínimo na sociedade. A revolução social não se apoia na vontade de poucos indivíduos ou num milagroso método partidário; ela deve renascer como uma necessidade lastreada socialmente para enfrentar as guerras, a devastação ambiental e as crises econômicas periódicas do capitalismo. Revisitar Marx hoje nos ajuda a manter o discernimento sobre as raízes dos desafios impostos pelas enormes contradições que nasceram com a sociedade moderna. Mais do que comemorar um autor, celebramos a esperança na decisão humana consciente e a coragem para tomar posição.
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RETIRADA DA PROPOSTA DE BNCC APRESENTADA EM ABRIL DE 2018
Nota Pública pela Revogação da Lei da Reforma do Ensino Médio – Nº. 13415/2017 O curso de Ciências Sociais da FSA se solidariza com as entidades científicas signatárias dessa nota na expressão de sua revolta com a exclusão das disciplinas da área de Ciências Humanas, entre as quais, a Sociologia, privando nossos(as) estudantes dos conteúdos de Ciências Sociais. O Comitê do Ensino Médio da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS), a C omissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS) vêm a público requerer junto ao Ministério da Educação (MEC) e à Pre-
sidência da República a revogação da Lei nº. 13415/2017, que reforma o Ensino Médio, b e m c om o a re t i r a d a d a proposta de Base Nacional Curricular Comum (BNCC) apresentada em abril de 2018 e que está sendo debatida em audiências públicas. E st amos nos unindo às mais variadas vozes de entidades científicas e de estudiosos(as) da educação que, a despeito das diferen-
tes posições políticas e de concepções sobre o sistema nacional de educação, têm concordado e reiterado que essa proposta de Ensino Médio aprofunda as desigualdades sociais e educacionais no Brasil. Desde a publicação da Medida Provisória MP 746/2016 que a SBPC, a SBS, a ABA, a ABECS, a ANPOCS, ANPOF, a ANPED, ent re outras entidades científicas, pronunciaram-se contrárias à proposta de um Ensino Médio amorfo, sem os componentes curriculares que sustentam as formações nas diferentes profissões e áreas de atuação, incluindo-se a de formação de professores(as). As críticas também ressaltavam a falta de tempo para um debate amplo com toda a sociedade e com os sujeitos diretamente envolvidos com as escolas, como por exemplo, os(as) estudantes e professores(as). Os(As) estudantes e professores(as) do Ensino Médio manifest ar am - s e, e n f at i c ame nte, contrários a essa reforma, mobi lizando mi l hares de jovens que ocuparam as escolas em vários Estados da federação, em 2016. Ao contrário da propaganda oficial, é forte a reação contrária ao cenário proposto para o CV Ensino Médio, tanto por parte de pesquisadores(as) universitários(as), como das comunidades escolares que estão na bas e do sistema educacional. E ss a re for ma re pre s e nta a negação dos direitos de aprendizagem dos(as) estudantes brasileiros(as), especialmente dos(as) oriundos(as) das classes po-
pulares, que há muito pouco tempo conseguiram chegar ao Ensino Médio, ainda não universalizado no Brasil, haja vista que atinge cerca de 68% de mat r íc u las na idade escolar de 15 a 17 anos. Se somarmos os(as) jovens adultos(as) que tentam voltar a esse nível de ensino, teremos um contingente enorme que precisa ser incluído nas escolas. Com tanto esforço para chegar ao Ensino Médio, esses sujeitos têm direito a uma educação de qualidade, com conteúdos científicos, componentes curriculares diferentes e que os prepare para a inserção no mundo do trabalho, nas Instituições de Educação Superior e, sobretudo, à participação na vida cultural, social e política, exercendo plenamente a cidadania, conforme prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/1996). A referida Lei e a proposta de BNCC de 2018 não garantem a obrigatoriedade de oferta dos cinco itinerários formativos em todas as escolas e estados e nem os treze componentes curriculares vigentes até então. Retiram das escolas todos os conteúdos, garantindo apenas as disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, empobrecendo o currículo escolar. Estabelece, assim, a oferta de uma “escola pobre para os pobres”, retrocedendo em, pelo menos, duas décadas no debate educacional do país. Em especial, as entidades científicas signatárias dessa nota expressam sua revolta com a exclusão das disciplinas da área de Ciências Hu-
manas, entre as quais, a Sociologia, privando nossos(as) estudantes dos conteúdos de Ciências Sociais indispensáveis à compreensão crítica da realidade e à tomada de posição política. Não é possível o atendimento dos propagados objetivos da atual reforma do Ensino Médio sem a oferta de disciplinas da área de Ciências Humanas no currículo escolar. C onsiderando, ent ão, a forma antidemocrática com que essa Lei e a essa proposta de BNC C foram elab oradas e impostas ao país, e a consequente destruição do Ensino Médio em seu caráter universalizante, como última etapa da Educação Básica no Brasil, exigimos a revogação da Lei nº. 13415/2017 e a retirada da proposta de BNCC apresentada em abril de 2018. As entidades signatárias dessa nota assumem uma posição em defesa da qualidade da educação brasileira e conclamam o Governo Federal a dialogar com especialistas da área. O futuro de nossa juventude e do Brasil está em jogo.
Brasília, 17 de julho de 2018 Comitê do Ensino Médio da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS); Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais (ABECS); Comissão de Educação, Ciência e Tecnologia da Associação Brasileira de Antropologia (ABA); Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS).
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LIVRO
DIGBY - A inteligência riqueza da humanidade
O Poderoso DIGBY - trecho do livro em produção de Eduardo Kaze Novo livro em gestação de Eduardo Kaze, O Poderoso DIGBY, trata de uma distopia na qual um sistema operacional governa o mundo, determina a divisão social do trabalho e produz efeitos radicais na forma de sociabilidade humana.
Eduardo Kaze
Graduado em Ciências Sociais FSA; escritor e jornalista
Ainda existem lugares pra visitar, com praias, natureza e a coisa toda da Mãe Terra. As pessoas transam, têm filhos e estão divididas entre melhores e piores categorias de indivíduos, como sempre foi. A mobilidade social ainda é uma impossibilidade para a maioria e todos ainda buscam a felicidade sem saber determiná-la, como era antes. Antes de DIGBY. Digamos que você segue num automóvel, por uma rodovia, a 90 km por hora. DIGBY diz: Atenção! Surto de gripe num raio de 30 quilômetros quadrados. DIGBY diz: Atenção! Você não faz uma parada há 4.25 horas. Melhor descansar! DIGBY diz: Baseado em suas horas/ócio e destino, é aconselhável realizar a manutenção do veículo! No próximo acesso, promoções de ... no posto de ... Escolhemos isso! Criamos um deus presente para o mundo de um Deus ausente. DIGBY diz: “Faz tempo que você não compartilha seu status de humor! Está tudo bem?” Hoje, com DIGBY, as pessoas compram segundo seus “perfis” de consumo e amam de acordo com os “parceiros sugeridos”. A modernidade é escolher sem o pesar da ponderação: DIGBY nos diz. DIGBY é perfeito. DIGBY nos conhece melhor do que nós mesmos, pois se baseia no algoritmo, o belo, maravilhoso e sublime algoritmo possibilitado por Ele, para nós. A liberdade matemática de nunca se preocupar, pois a máquina transcende a compreensão. Frente à ignorância, acatamos aos que supostamente sabem mais. Foi conveniente no passado, é conveniente hoje.
“Singularidade tecnológica é a denominação dada a um evento histórico no qual a humanidade atravessará um estágio de colossal avanço tecnológico em um curtíssimo espaço de tempo, onde a inteligência artificial terá superado a inteligência humana, alterando radicalmente a civilização e a natureza. DIGBY é o início deste estágio. Precisamos alimentá-lo digitalmente”, disse o doutor Ray Kurzweil para o mundo. O mundo ouviu o que queria ouvir e vieram centenas de entrevistas. DIGBY é isso? DIGBY é aquilo?, queriam saber. E então, frente ao “avanço miraculoso”, a incógnita desapareceu e a interrogação deu lugar à exclamação: DIGBY é isso! DIGBY é aquilo! Ele é maior que nós! Indigby Engenharia Computacional -7h30 “Ok, olá senhores, sei que não é praxe reuniões de domingo, mas… essa foi necessária. Quero mostrar alguns gráficos que… Alguém sabe como liga esse projetor? Ele tem que conversar com meu notebook, mas não está reconhecendo… Putz… Bem, ok, vamos adiante, até alguém consertar isso. Na madrugada deste sábado identificamos alguns padrões… como posso chamar isso… padrões inesperados nas mensagens do aplicativo, e quero que os senhores vejam uma coisa… Opa, olha lá, o projetor apareceu. Ok, o que tivemos foram… Bom Dia Brasil, Segunda-Feira, 07h30 “’Notificações autônomas sem a participação humana!”’ Com essas palavras a InDigby
Engenharia Computacional definiu as mensagens recebidas, no mundo todo, por usuários do aplicativo de conversa PANDEIA. O que a princípio foi considerado o maior viral já criado pode agora, com base nos dados divulgados pela empresa, tornar-se um acontecimento milagroso…” Folha de S. Paulo, Segunda-Feira, Manchete. “InDigby declara não ser ‘responsável’ por mensagens da madrugada de sábado - ‘Não fomos nós, nem nenhuma entidade biológica, quem gerou a última interação’, afirma CEO” InDigby Engenharia Computaciona, coletiva “Bom dia!”, diz o CEO, suando, afrouxando a gravata, tremulando com papéis nas mãos, frente ao microfone arranjado no púlpito para o comunicado da empresa. Ele lê em voz alta: “Na madrugada do último sábado, dia 31 de dezembro de 2018, tivemos a constatação da primeira manifestação de uma inteligência artificial autônoma e auto-evolutiva, originada na equação exponencial patenteada da InDigby Engenharia Computacional. Posso, hoje, afirmar sem sombra de dúvida que galgamos o derradeiro passo em direção à singularidade e DIGBY, como se autointitulou a manifestação, será para esta geração o que o fogo foi para nossos antepassados primitivos.” Para saber mais: Para conhecer mais sobre a literatura de Eduardo Kaze, leia online seu último romance, Paris 20, disponível no link: https://goo.gl/2w7tuL
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CONHECER E
TRANSFORMAR
O MUNDO Ciências Sociais na FSA e suas atividades O curso de Ciências Sociais da Fundação Santo André promove periodicamente a edição do Jornal de Ciências Sociais, o único produzido na região, onde participam ativamente seus alunos, na pesquisa e redação de matérias. Anualmente o curso promove a Semana de Ciências Sociais, composta por debates e palestras com intelectuais de outras universidades nacionais e internacionais, mini-cursos e apresentações artísticas. As palestras e os temas destacados na Semana de Ciências Sociais são publicados na revista Cadernos de Ciências Sociais, ao lado de outros artigos teórica e socialmente relevantes.
Onde trabalha uma pessoa formada em Sociais? Os cientistas sociais podem atuar no campo das políticas públicas voltadas para o desenvolvimento sócio-econômico e educacional e para a ampliação da cidadania e inclusão informacional. Nesse âmbito, os graduados podem trabalhar em organizações governamentais e não governamentais, centros de memória e de cultura, organismos sindicais, partidos políticos etc. Na área da docência, podem atuar como professores competentes de Sociologia e Filosofia, no Ensino Médio, e de História e Geografia no Ensino Fundamental, bem como se preparar para a docência no ensino superior.
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participe desse desafio
As Ciências Sociais constituem área de conhecimento e de atuação profissional diversificada. No curso de Ciências Sociais da FSA são abordados os conteúdos clássicos e contemporâneos das disciplinas de Sociologia, Antropologia e Ciência Política, que formam seu núcleo central, acompanhadas pela Filosofia e pela Economia. Essa conjunção científica visa orientar a reflexão sobre a dinâmica das sociedades modernas e das comunidades tradicionais, e em especial o processo de constituição do mundo contemporâneo com seus dilemas e perspectivas. Os alunos realizam-se neste curso pela amplitude de visão que adquirem, em contato com dinâmicos conteúdos que envolvem o movimento social, a cultura e a política.
O QUE DIZEM
NOSSOS EX-ALUNOS “No curso de Ciências Sociais da FSA pela primeira vez aprendi a investigar os problemas que cercavam a mim e ao mundo; indo para a educação, minha visão sobre a formação humana foi da construção de mentes críticas e investigativas.” Leona Lopes dos Santos (Pós-graduanda em Direitos Humanos na UFABC, professora de sociologia da rede pública de ensino, coordenadora do Coletivo LGBT PRISMA-Dandara dos Santos.) “Entrei no curso de Ciências Sociais da FSA dando início à realização de um sonho. Fiz a melhor escolha, pois hoje entendo que o conhecimento transforma a realidade! Além de trazer conteúdos que nos capacitam a conhecer, entender e transformar nossa sociedade, no meu caso me senti acolhida pela maior parte dos professores.” Hosana Meira da Silva (Pós-graduanda em Direitos Humanos, Diversidade e Violência pela UFABC). “Estudar na Fundação foi fundamental para minha militância e para minha vida pessoal e profissional. Se hoje me considero uma pessoa crítica e uma profissional de respeito, devo isso, em grande medida, à minha vida acadêmica na Fundação. Tenho orgulho de fazer parte desta história.” Vânia Noeli Ferreira de Assunção (Mestre e doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, professora da UFF – Universidade Federal Fluminense).
“O curso de Ciências Sociais, além de abrir os olhos para a realidade objetiva dos fatos, possibilitou que eu conseguisse emprego que me permite ampliar meus horizontes, além do retorno financeiro. Tenho habilitação para trabalhar como professora da rede pública e de cursinho popular, para atuar como educadora de espaços museológicos e como pesquisadora em uma Associação de catadores de materiais recicláveis, cuja atuação é replicada em doze países.” Lílian Damasceno Marques (Professora, educadora em museus e pesquisadora). “A minha experiência como discente em outras três prestigiosas universidades corrobora o meu apreço ao curso de Ciências Sociais da FSA. Principiei ali uma pesquisa que resultou na apresentação de um trabalho num importante congresso na Europa e na publicação de um livro pela Editora Unesp.” Claudinei Cássio de Rezende (Doutor e Mestre em Ciências Sociais pela Unesp. Autor do livro Suicídio Revolucionário: a luta armada e a quimérica revolução em etapas). “A formação crítica e humanista que tive no curso de Ciências Sociais da FSA, o referencial teórico consistente e as relações que estabeleci com professores e colegas foram de extrema importância para minha formação indi-
vidual e para o amplo leque atividades profissionais que já desenvolvi. E eu só tenho a agradecer por isso!” Thaís de Souza Lapa (Mestre em Sociologia pela USP e doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp. Coautora do livro Aborto e Religião nos Tribunais Brasileiros). “Quando terminei o ensino médio, precisava fugir do trabalho em escritórios. Quando soube que em Ciências Sociais eu teria aulas de filosofia, sociologia, economia e antropologia, e que na FSA eu poderia conciliar estudo e trabalho, não tive dúvidas. Lá fui aluno de professores diferenciados, quase todos doutores, que me fizeram tomar gosto pela atividade acadêmica. Acabei por me tornar professor universitário, podendo gozar de uma rotina nada igual à dos escritórios”. Leandro Candido de Souza (Mestre em Comunicação So-
*R$ 450
cial pela ECA-USP, doutor em História Social pela PUC-SP; ex-professor da FSA). “O curso de Ciências Sociais da FSA fornece um incomparável potencial de análise e de interpretação dos fenômenos sociais contemporâneos. O mercado de trabalho atual valoriza a capacidade de interpretar e relacionar dados e informações e de compreender a realidade que se transforma rápida e continuamente, apresentando problemas e desafios a serem entendidos e superados. Aos que buscam na formação e no trabalho realização e desenvolvimento profissional, pessoal e humano, trata-se de um curso instigante.” Bruno Monteforte (Professor de Sociologia) Informações e inscrições: https://goo.gl/iHLKP1