Paris20

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REDATORIA

GONZO www.redatoriagonzo.com.br

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Catalogação na fonte Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166 K23 Kaze, Eduardo Paris 20 / Eduardo Kaze – São Paulo: Córrego, 2016. 144 p.; 11,5 × 18 cm ISBN 978-85-67240-51-0 1. Romance brasileiro. 2. Literatura brasileira. II. Título. CDD 869.93 Índice para catálogo sistemático I. Literatura brasileira: prosa

Capa: Denis Freitas

3ª Edição

Editora Córrego Largo do Paissandu, 72 – cj. 1603 Centro – São Paulo – SP cep 01034-010 (11) 3313 8420


Sugere-se a leitura deste livro acompanhada de vinho e mĂşsica. -5-


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“When the going gets weird, the weird turn pro.� Hunter S. Thompson -7-



Sumário

Parte um Parte dois Parte três Parte quatro Posfácio

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Parte 1

Pura e límpida broxoze Abro os olhos e a conta do banco está vazia, o cartão de crédito estourado, o cigarro acaba e do baseado só resta uma ponta, o encosto da cadeira se solta, o fio do carregador de celular arrebenta, olho para o lado e todas as roupas couberam numa mala... Estou na merda! Sei disso e sei também que não existe esse negócio de iluminação. O entendimento não surge como uma lâmpada piscando na mente, fulgurando a escuridão do âmago; é antes um gás que se forma no intestino e culmina no rabo; uma explosão de metano te chutando o traseiro como quem diz: “andale, pendejo!”. Têm sido tempos ansiosos, e senti os primeiros sintomas na cama. Duas falhas seguidas... Pura e límpida broxoze... Estava chapado, confesso, mas, por mais atraente que a desculpa do não consigo trepar quando cheiro cocaína pareça, sei que há algo errado. Algo impedindo meu pau de ficar duro, me botando pra baixo, figurativa e literalmente. - 11 -


Punheta matutina Minha rotina consiste em tomar café e depois um banho, mas a imagem do meu rosto no espelho, mórbido, e dos pelos do peito, todos encarapinhados e suados, colados no corpo, o saco estendido, balançando no ar... me fazem entrar o mais rápido possível no chuveiro. Acredito na capacidade revigorante da água, e o banho normalmente exerce esse poder sobre mim. O cheiro do sabonete, a água quente inflamando as costas e escorrendo pelas pernas, a punheta matutina lubrificada com condicionador de cabelo... Isso me anima. Mas não animou! Passo o café, torro um pão com margarina na frigideira e vou para o quintal. Pelado, fumo a última bagana, sentado numa cadeira de praia. Trabalho é trabalho A rotina de trabalho consiste em enrolar o máximo de tempo possível, com a página do Word aberta e cheia de caracteres para desbaratinar o chefe. Ler e-mails, responder e, ocasionalmente, escrever. Sou jornalista! Trabalho num jornal de bairro no 2° Subdistrito de Santo André, no ABC paulista - que é uma espécie de Detroit canarinho. As fábricas se foram, a glória também. Restou a população: proletários cujos filhos o tempo distorceu e travestiu de empreendedores do novo milênio, uma geração que almeja dominar o mundo. Querem o poder e tudo o que vem com ele. Se juntam numa associação de alta classe e um palestrante diz que o sucesso é 5% inspiração e 95% transpiração. - 12 -


Amém! A meritocracia salvará os abastados, e os incapazes que desçam de nossas costas - mas tudo de maneira diplomática. O expediente é relativamente curto: sete horas, com uma hora de almoço. Depois disso, o costume é ir pro Bolacha, um boteco que, reza a lenda, nasceu de uma aposta – o dono, antes frentista de posto de gasolina, teria supostamente ganhado uma bolada na loteria; abriu o bar. No começo, o espaço era menor, com uma pequena churrasqueira portátil na entrada, agora, possui dois ambientes: um pra sinuca e outro pra jogar cacheta. Há uma grande fornalha de tijolos e o churrasco é prática diária. A hora do Bolacha está cada vez mais próxima quando meu chefe me chama. Vai me passar um jabá. Puto! Faltam só 30 minutos pra minha alforria... Jabás são aquelas reportagens elogiativas, que mostram como a empresa surgiu, o que conquistou, o que pretende conquistar e, acima de tudo, é acompanhada por fotos sorridentes do proprietário peito de pomba, que corta a barba igual ao Tony Stark, do Homem de Ferro. A filha dele é a gerente e sua esposa está em algum shopping fazendo compras. Ele assegura que sua família trouxe “a modernidade para a região”, mas só asfaltaram as ruas pelas quais seus próprios ônibus passariam, cobrando tarifas exorbitantes dos mesmos trabalhadores que a construíram. É isso! “Sua pauta caiu”, diz meu chefe, “seu entrevistado teve um imprevisto e desmarcou.” - 13 -


Eu nem sabia que tinha uma pauta... Que chato, respondo, ponderando qual seria esse imprevisto. Imagino o empresário num iate, só para fazer sombra, só por estar, eis o imprevisto. “Vai pra Câmara e vê se arranca uma declaração do novo presidente!”, determina o chefe, se referindo ao vereador que assumira recentemente o cargo na Casa. Ok! Levo o fotógrafo? “Não! Pega esse dinheiro e vai de ônibus. A redação está sem carro e sem fotógrafo hoje!” Duzentos metros andando, um Viação São José e outros noventa metros depois e estou na Câmara dos Vereadores. O plenário de Santo André tem um nome gozado, que, homenageando um parlamentar antigo, logra na placa de entrada: Plenário João Raposo Resende Filho – Vereador Zinho. A cacofonia não podia cair melhor à estatura moral dos magistrados. Alias, sempre que entrevisto alguém, especialmente políticos, mantenho a impassível questão em mente: “por que esse viado está mentindo pra mim?”. O chefe do Legislativo passa e o pego pelo braço. Pergunto se podemos conversar, mas parece que o glamour lhe afetou o cérebro. Sua baita cabeça careca, com orelhas estilo Dunga, dos sete anões, sob a corcunda proeminente. “Vou falar no púlpito agora, não posso! Depois, depois eu falo.” Foda-se! Decido abandonar a pauta e usar o dinheiro do ônibus pra beber tudo o que os dez reais embolsados pu- 14 -


derem pagar. Não vou ficar aqui nesse despropósito. Depois escrevo qualquer coisa. Ninguém se lembra das palavras exatas dos políticos, e eles sempre se repetem, igual aos jogadores de futebol na beira do campo. E tenho dito! Os lábios são vermelhos Em Santo André, como na maior parte dos lugares que se dizem urbanizados, as pessoas andam como zumbis. O contato visual é restrito e o físico proibido. Dirigir a palavra à qualquer desconhecido é uma quebra inaceitável no script social. Nesses casos, o abordado tem o direito de apertar o passo e se afastar o mais rápido possível. Mal educado é você, que tentou contato humano com alguém fora de seu círculo de convivência. Fora das fratrias da modernidade. Estou num bar que toca forró tomando cerveja e avisto do outro lado da rua um colega jornalista. Ele se aproxima. Estava na Câmara. Diz que o presidente surtou no meio da sessão. Tirou o pau pra fora e, batendo com ele na mesa, gritou “eu tenho o saco roxo!” Depois, caiu duro no chão, o vereador, não o pinto. Parece que teve um derrame. Uma veia estoura próximo ao sistema límbico do cérebro do parlamentar e anos de decoro vão pelo ralo em menos de um minuto. É isso que acontece: Você passa a vida agindo como um palerma educado, e termina seus dias recebendo massagem cardíaca, todo cagado, sem calças, na frente dos maiores abutres da imprensa regional. Não se pode esperar muita dignidade na morte. - 15 -


É quando você percebe que a vida não será como num filme. No fim, diferentemente de uma série de televisão, não haverá clips feitos por fãs, com imagens de seus melhores momentos, acompanhados de músicas emocionantes. Nenhuma moral da história, nenhuma incógnita, desfecho, NADA! Só o velho esgotamento, estúpido de sempre, te fazendo inchar e feder. O sol começa a cair e as calçadas dão lugar a cadeiras e mesas. Os bares, utilizando a frente das lojas ao seu redor, fechadas pelo horário, transformam o centro comercial da cidade numa zona. Bêbados se aglomeram e entornam garrafas de cerveja acompanhadas de porções de torresmo e azeitonas. Os puteiros das vielas que cruzam a avenida reverberam o som do funk e luzes das fachadas vazam para além do beco. Cheiro onipresente de esgoto no ar e tudo parece sempre sujo, mesmo quando limpo. Crianças vendedoras de balas passam de mesa em mesa oferecendo o produto. Cheiradores não se dão ao trabalho de ir ao banheiro: estendem a farinha na mão e mandam ali mesmo. Maconheiros dão pequenos tapas, segurando a fumaça até o limite da apneia. Além disso, tem a surdez parcial experimentada, pois, de um lado está o trânsito berrando, com suas buzinas e motores, e, do outro, a música do videokê, explodindo com a força de uma paulada na orelha. Estou aqui porque os dez reais obtidos na redação se esvaíram em poucas doses de conhaque enquanto eu buscava um jeito de finalizar a pauta. Precisei de algumas ligações à cobrar, mas um colega fotógrafo correspondeu às expectativas: prometera-me cerveja e fotos exclusivas do “chefe saco roxo”, como está sendo chamado - 16 -


o vereador falecido desde seu ataque no plenário, em troca de futuras indicações para pautas no meu jornal. É, eu posso fazer isso por ele. No meio fio, fumo um cigarro serrado e espero. Observo o outro lado da rua e um negro enorme se aproxima de um nordestino, oferece relógios num tabuleiro e apregoa, se esforçando no português: “Vunte e qüinco”. “Não quero essa bosta!”, responde o nordestino. “Cuinze reás” “Volta pra África, seu macaco”, brada o oprimido, agora no papel de opressor. Ninguém dá mole pra ninguém num mundo duro. É a vida... Há uma garota no balcão com pernas longilíneas e brancas, com uma tatuagem ocupando toda coxa e na qual se vê um rosto de mulher fumando o cigarro com a expressão de uma chapada que acabou de transar com um batalhão. Vejo isso exposto abaixo da bermuda que, curta, deixa vazar o forro dos bolsos. São as maiores pernas que já vi, e as mais bonitas. Sou um cachorro no cio... Os seios, redondos e protuberantes, são cobertos por uma insignificante blusinha de lantejoulas. Os lábios são vermelhos. Os olhos têm um tom de preto-jabuticaba, nem parecem ter íris. Feição delicada, com nariz pequeno e pontudo. Boca de morder. Cabelos negros, lisos e curtos, como os da Valentina de Crepax. Ela escolhe uma mesa. Ela pede conhaque com cacau e gelo. - 17 -


Ela chama essa bebida de Arnold Layne. Ela erradia liberdade. Ela vira e me encara. Ela sorri. Eu correspondo. Estou no céu... “E aí, brow...”, grita meu colega ao chegar, tocando meu ombro, trazendo o chão de volta. “Faz tempo hein”, diz ele, constatando o óbvio. Digo que é verdade. Nos cumprimentamos com abraços e seguimos para a mesa. Pedimos bebidas e elas voltam com um guardanapo rabiscado: “Sheila 5396-2222”. “Don Juan...”, declara o colega, se rendendo ao clichê. Tiro os olhos do bilhete e a garota desapareceu. Ponho o guardanapo no bolso, brindamos e selecionamos fotos do saco roxo. “Você vai falar de mim pro seu chefe, né?”, pergunta. Claro que vou. Amanhã, provavelmente... SHEILA – 5396-2222 A redação do jornal no qual trabalho fica em cima de um açougue, e o odor de gordura crua, principalmente em dias quentes, aflige. Sem maconha, sem meu ritual de fumar um baseado antes do trampo, estou uma pilha. A cerveja do dia anterior se mantém parada no estômago, parece, como um caroço rançoso e azedo. Escrevo sobre o chefe saco roxo com base no que ouvi e incluo na - 18 -


reportagem a foto que consegui. O pinto foi desfocado. A legenda dirá Presidente bate com o pau na mesa. O editor vai vetar, mas que se dane. Entre todas as linhas escritas, o guardanapo do dia anterior se interpõe. “Na última sessão...” SHEILA – 5396-2222... “... recém empossado...” SHEILA – 53962222... E por aí vai! Sheila. Sheila. Sheila. O que digo pra Sheila? “Oi, sou o cara do bar, do centro, você me deu seu telefone...” “Oi, baby, você me deu seu telefone ontem. Que tal sairmos e...” “Advinha quem é? É o cara que você deu o telefone ontem, no bar...” Há, claro, a possibilidade dela ter estado chapada e nem se lembrar de mim. Isso seria constrangedor. “Oi, você me deu seu telefone...” “Sério? Nem me lembro disso. Por favor, não ligue mais, eu estava bem louca...” CARALHO! O devaneio é interrompido pela voz grave e embolada do meu chefe. O governador vai visitar uma fábrica no município e ele quer uma matéria. “Vai lá!”, ordena. Não há escolha. - 19 -


Sem cheiro de carne podre O sol fervilha no céu e a rua parece um microondas gigante. É como se esquentassemos de dentro pra fora, mas é um alívio sair da frente do computador, não estar sentado na cadeira que, quando suo, dá a sensação da bunda estar molhada. Respirar o ar sem cheiro de carne podre é igualmente positivo. O carro do jornal é um Ford Fiesta caindo aos pedaços. Nas portas e no capo dianteiro, adesivos determinam: IMPRENSA. Essa é a melhor maneira de evitar roubos. Ninguém rouba um carro adesivado. Isso, e o fato do fiestinha se camuflar perfeitamente como sucata. Seguimos, eu e o motorista, acompanhados pelo fotógrafo no banco de trás, chacoalhando no carro sem molas. O Saara vai invadir a Europa No pátio de uma das maiores empresas do ramo do cobre da América Latina, sediada na cidade pela isenção absurda de impostos que lhe é dada, o governador roda, acompanhado de assessores, diretores e puxa-sacos em geral, fingindo interesse nos índices de crescimento da indústria. A imprensa vai atrás, em carreata. “Nosso cobre foi utilizado na construção de uma estação da Nasa”, diz empolgado um dos diretores da empresa ao governador, que não chega a bocejar, mas, caso não tivesse de manter a compostura, certamente emendaria: “beleza, foda-se! Me diz agora como ajudar vocês a me ajudarem a ganhar dinheiro com essa porra!” Ele somente diz: “excelente!” - 20 -


A visita se estende e chega à hora de enterrar a cápsula do tempo. Não entendo a razão, mas parece que vão deixar algo que julgam importante para as futuras gerações. São otimistas os desgraçados! Quem disse que teremos gerações futuras? De acordo com um texto que li, “até 2020, secas e outros extremos climáticos serão lugar-comum. Até 2040, o Saara vai invadir a Europa, e Berlim será tão quente quanto Bagdá. Atlanta acabará se transformando em uma selva de trepadeiras kudzu. Phoenix se tornará um lugar inabitável, assim como partes do deserto de Beijing. A falta de alimentos fará com que milhões de pessoas se dirijam para o norte, elevando as tensões políticas. Com as dificuldades de sobrevivência e as migrações em massa, virão as epidemias. Até 2100, a população da Terra encolherá dos atuais 6,6 bilhões de habitantes para cerca de 500 milhões, sendo que a maior parte dos sobreviventes habitará altas latitudes – Canadá, Islândia, Escandinávia, Bacia Ártica”. Eles fecham a cápsula com uma martelada conjunta, tão patética e simbólica, que o operário tem de finalizar o serviço enquanto os chefes se dirigem para o microfone. Agora, eles rasgam seda uns para os outros, dão as mãos, lentamente, para saírem juntos nas fotos, e deixam secretárias e assessores em contato para finalizar acordos reptilianos que jamais aparecerão no jornal. Verto água pelos poros, pedindo para que tudo acabe logo. Penso que Berlim será tão quente quanto Bagdá. E lá vem o governador. Entre sovacos e braços suados, o jornalista se embrenha em busca de uma aspas. Seguranças limitam os esfomeados periodiqueiros enquanto o político segue - 21 -


marchando, com sua cara de esfinge e nariz de abutre. As perguntas saltam praticamente sem dono e os gravadores se aplicam para captar o áudio. Um repórter questiona sobre a seca em São Paulo. “Esse assunto não é para agora, estamos seguros”, determina o político, entrando no carro guiado por lacaios, partindo, acelerando, levantando poeira como quem busca obnubilar novas dúvidas sobre a própria honestidade - coisa escassa na figura. Não é bom, nem ruim Não volto para a redação depois da pauta com o governador. Arrasto o fotógrafo e o motorista direto para o Bolacha. Se perguntarem, a coletiva atrasou, e ponto. Passamos num caixa eletrônico e consultamos o saldo. O pagamento caiu. O glorioso pagamento... A primeira coisa que peço é um maço de cigarros e duas cervejas. Copos americanos. Uma dose de conhaque e um espeto de carne no prato. Ao lado do bar está a delegacia de homicídios de Santo André. De tempos em tempos, quando algum crime escabroso acontece na cidade, equipes de grandes emissoras abarrotam a rua e dão ao delegado alguns momentos de glória e fama. A cidade entra em evidência e os pacatos cidadãos têm sobre o que falar por um tempo. Não é bom nem ruim, é apenas fato. O atendente traz nosso pedido. Tim-Tim! E por aí vai... Por volta das onze e meia da noite nossa mesa ainda atravanca a calçada e o atendente varre o bar vazio. A - 22 -


saideira é pedida. Com dinheiro no bolso a imaginação flui com liberdade. A liberdade consumista que tanto amamos. O destino inevitável de três em cada cinco bêbados solteiros é mencionado. Ninguém se opõe. Seguimos com o carro do jornal, rumo ao Casablanca, um puteiro honesto, com garotas relativamente bacanas. Não demora, o fotógrafo coloca em pauta outro ímpeto originado na bebedeira: drogas. “Comi ela na outra vez que vim aqui” Na biqueira, quem serve o faz de maneira rápida e indolor. “Quer o quê?”, questiona o portador da sacola com o recheio mais bem cotado da favela. Seis farinhas!, respondo, oferecendo três notas de vinte. Ele recebe a grana, eu recebo os pinos, enfio no bolso e parto em passos rápidos por entre as vielas. Na rua, o carro da redação me aguarda. Embarco pela porta de trás e a primeira pergunta, que abrolha em uníssono, é:“e aí, rolou?”. Lógico que rolou. Distribuo os pinos. O motorista pede ao fotógrafo que segure o volante enquanto ele estica uma carreira sobre a carteira, habilidade de cooperação adquirida ao longo de anos de prática que permite ao nosso piloto, mesmo em movimento, cheirar sem problemas. Ele emite um rugido de asco: “Pura argamassa essa porra!” Paciência... É o que tem pra hoje. A argamassa funciona bem. Apesar do gosto amargo e a certeza de tratar-se de uma mistura irresponsável de - 23 -


substâncias diversas, a dormência nos dentes e a energia hiperativa demonstra que ao menos alguma cocaína está presente. Ou xilocaína! Ou qualquer outra “ina”. “Quando na música eles falam: ‘tem um lugar diferente lá depois da saideira’, estão falando da galera que pega um pó’”, disserta o fotógrafo, se referindo a uma canção. “Vocês assistiram aquele vídeo no YouTube que fala que toda a obra do Tarantino é interligada”, começa um tópico individual o motorista, sem dar atenção ao monólogo do fotógrafo. “‘É tomando uma gelada que segura a bebedeira’”, continua o fotógrafo.“Isso só pode ser naquela hora em que você já está com o fígado blindado de tanto mandar...” “É com o Selton Mello e o Seu Jorge”, desenvolve o motorista. “Eles vão mostrando uma porrada de semelhanças entre os filmes do Tarantino, nomes que se repetem e tal, dizendo que ele quis criar um universo... Já viu Sin City?” Travado no banco de trás, observo calado a linha do trem por cima do viaduto de Utinga sem dar atenção aos solilóquios desconexos que se desenrolam à frente. Num descampado, ao lado da estação de trens, a penumbra é quebrada por ocasionais acenderes de isqueiro, promovidos pelos fumadores de pedra. Pessoas mais iludidas podem pensar que está ocorrendo um acasalamento de vagalumes. Eu não! - 24 -


Minha inocência é uma lembrança longínqua. Uma relíquia empoeirada, largada entre livros e garrafas na estante. O souvenir de uma época remota, a planta que já não se rega e, breve e irremediavelmente, morrerá por completo. “‘Tem homem que vira macaco e mulher que vira freira’ é quando a galera fica alucinada, saca?”, insiste o fotógrafo. O motorista explicava as similaridades presentes em Pulp Fiction e Kil Bill quando estacionamos no Casablanca. O porteiro aparenta ter uns quinze anos de idade. Bigodinho ralo, pele morena e cabelos raspados nas laterais e curtos em cima. De terno e gravata, com o porte físico de um pernilongo, apresenta os preços: “a entrada é trinta, com cerveja à vontade. O programa é noventa meia-hora e cento e vinte hora inteira”. Entrega as comandas, anota os nomes, abre a porta. São dezenas de homens e as garotas circulam em número desproporcional, se esforçando para distinguir os que somente vão para beber e apalpar uns peitos e bundas dos que estão dispostos a pagar pela trepada. O som, propositalmente alto, reproduz Madonna. “Like a Virgin...” “Em Cães de Aluguel, os personagens estão tomando café e discutindo esse som, já em...”, persiste o motorista, gritando e babando, abordando a tese do campo unificado dos filmes do Tarantino. Me encho daquilo e vou para o balcão. Não tem nada mais incômodo que um tagarela cheirado. Apresento a comanda e pego cerveja. - 25 -


Os palcos são ocupados por mastros de poledance e danças ocorrem simultaneamente. Alguns clientes pagam por elas, outros aproveitam a fortuna alheia e acompanham os shows pseudoprivados. Estou com os últimos... “Essa morena é um espetáculo!”, diz o fotógrafo, se aproximando e sentando ao meu lado. “Comi ela na outra vez que vim aqui. Se você xavecar um pouco, ela dá até o cu. Pelo menos pra mim deu...” A morena tem peitinhos adolescentes. Rubro-negro é o tema do seu corpo, coberto por uma descabida calcinha fio dental. Corpinho mignon que se movimenta com a agilidade de um réptil, serpenteando no mastro. Cabelos vastos rodopiam pesados, cada fio com vontade própria. Ela atira as pernas para cima e as engancha no poste, deixa o tronco pendular e gira suave, até aterrissar no palco. Estou seduzido quando uma ruiva se aproxima e me embuceta contra o balcão. Ela anuncia seu nome falso e pergunta o meu. Ofereço um gole da cerveja. “Não podemos tomar dessas... Só posso pegar long neck”, afirma. Quanto custa a long neck? “Quinze reais.” O beicinho da puta é resultado de anos de treinamento na arte de abrir as mais avarentas carteiras. Ela me conta que está ali há pouco tempo, que veio de São José do Rio Preto e confessa pintar os cabelos. “Menos lá embaixo! Quer ver? São loirinhos...”, declara, apertando meu pau por cima da calça. A levo para o sofá. A cocaína circula no meu corpo e a bebida equilibra o ânimo. Penso em pedir uísque, mas o preço e a quali- 26 -


dade da bebida não condizem. Nunca peça uísque num puteiro! “O que você faz?”, pergunta a puta. Sou jornalista. Ela nunca deu pra um jornalista. Eu duvido, mas ela garante. Claro que garante... Carícias genitais e papos sem cabimento No quarto, sou intimado a tomar banho. Deixo a água cair no corpo e a puta vem. Acaricia meu saco, subindo as mãos e excitando meu pau. Deslizo por seu corpo e chupo seus peitos. A encurralo na parede. “Calma, não sem camisinha.” Ela sai do chuveiro. Vai pra a cama. “Se enxuga, gostoso!” Deito. “Seu pau é o maior que já vi”, mente, enquanto se esforça pra mantê-lo em pé. Quer cheirar?, pergunto. Ela assente, interrompendo os trabalhos. Estico quatro carreiras sobre o criado-mudo. Mando uma e ela outra. A segunda rodada está garantida. Ela volta à minha rola, ainda meia-bomba, e coloca a camisinha. “Você tem que relaxar, querido.” Percebo rigidez moderada no membro e parto pra cima. Meto alguns minutos, suo como um condenado nesse curto período e gozo de um orgasmo falho e sem graça, com o pinto mole. Caio pro lado me sentindo um frouxo e a puta, profissional que é, me acaricia o peito - 27 -


e diz que foi ótimo. Agradeço a falsidade e vou para o criado-mudo. Cheiro e passo o canudo. “Tem um cara que vem aqui e paga só pra conversarmos!”, diz ela. Fico pior ainda. “Ainda estou com a trolha dura” No salão, não encontro o motorista e o fotógrafo. Estão no programa. A puta se despede e volta ao trabalho. Pego cerveja e bebo metade num gole só. Quinze minutos se passam e eles aparecem. Vamos para a área de fumantes. Estou zonzo e os safados não param de falar nas proezas sexuais que empreenderam. O fotógrafo realmente acredita ter ganhado o telefone da puta por paixão. O motorista, mais orgulhoso ainda, garante que fez “a mina gritar de dor” com o tamanho do pau. Eu, estirado numa cadeira, fumo. É a terceira vez que não consigo direito. “Acho que vou pegar mais uma”, declara o motorista, “ainda estou com a trolha dura”. Uma ânsia nasce em meu estômago e percorre minha laringe. Vomito num vaso de margaridas. É melhor eu esperar no carro. Ninguém discorda. Um estado de quase morte O sábado passa como se não existisse e no domingo consigo voltar a me alimentar e respirar em paz. Minhas - 28 -


ressacas normalmente são assim: um estado de quase morte, incapacitador, enjoado e de cabeça pulsante. Já faz parte da rotina semanal. Corinthians e Palmeiras se enfrentam no Pacaembu e o jogo é transmitido pela TV. Assisto isso, revezando com seriados. Nenhum dos dois me atrai muito... Ligo para um cara que vende maconha e entrega em casa. Como de costume, ele recebe o pedido e determina: “Vinte minutinhos!” O prazo sempre estoura. O jogo chega ao intervalo e Anthony Bourdain, em outro canal, come carne apimentada num bar sujo em Chengdu. Tenho inveja do trabalho dele, rodando pelo mundo, experimentado a vida em colheradas largas, enquanto estou aqui, tomando sopa com um garfo. A campainha toca. É meu beck! Vou melhorar agora. Não há remédio melhor para a melancolia do que um bom baseado. Seu apetite se reestabelece, o humor fica menos exigente e as músicas soam melhor. É a alegria em forma de cigarro. Busco na carteira uma seda e me deparo com o telefone de Sheila, no guardanapo. Não liguei! É tarde demais. Ela não se lembra de mim. Com a desenvoltura com que fizera aquilo, quero dizer, me dar seu telefone, deve fazê-lo sempre... Sou só mais um dentre um monte de caras ligando pra ela. Imagino filas de pretendentes, segurando flores, presentes e bombons... Sheila realiza a triagem, atirando os demais aos crocodilos... Não quero ser devorado por nenhum animal pré-hisórico. - 29 -


Que seja... Enrolo o baseado e assisto o contato sendo queimado, tragada após tragada. Fumo o cigarro todo, me certificando da extinção completa dos vestígios de Sheila. Frente ao risco de ser jogado aos jacarés, ante o sucesso de sair com a mulher dos meus sonhos, opto pela segunda alternativa, atestando minha covardia e asseverando minha força de autossabotagem. Adormeço e sonho que uma arma portada por mim dispara em meu próprio pé. Não seria preciso nenhum Freud para entender essa... Segunda-feira gloriosa de nosso deus No trabalho, me arrependo de ter queimado o telefone e procuro por Sheilas no Facebook. A busca retorna centenas de resultados. Confiro foto por foto de perfil, abrindo aquelas em que o usuário utiliza algum desenho genérico para se identificar. Minha pesquisa beira a obsessão alucinada, minutos, horas, sei lá... Mas a encontro. A encontro e adiciono. Agora é esperar. Sem crise. Esquecer. Voltar ao trabalho. Ver o que dizem as manchetes desta segunda-feira gloriosa de nosso deus... “Al Qaeda divulga lista de alvos de ataques terroristas”, se lê no R7. Porque diabos eles fariam isso? Segundo a notícia, se trata de um memorando passado aos seguidores do grupo. “Na lista, a organização dá instruções de como montar um carro-bomba utilizando materiais que não levantam suspeitas.” Que beleza, gostaria de aprender... Quais seriam meus alvos?

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“Protestos contra a Copa podem ser contidos com jatos de água e tinta em SP”, mancheta o G1. “Os protestos contra a Copa do Mundo realizados em São Paulo poderão ser contidos com jatos de água, tinta colorida e gás lacrimogêneo. O contrato para a compra de quatro caminhões que disparam os jatos deverá ser assinado ainda nesta semana”, assinala o lead da matéria. Filhos da puta... “Esses caminhões geralmente são usados quando se tem a presença de vândalos violentos”, defeca pela boca o comandante-geral da PM. “A ideia é que os vândalos sejam identificados pela tinta. O jato atinge até 60 metros”, continua o escroto. “Não significa que essa estratégia será utilizada todas às vezes. Só quando for necessário”, finaliza a besta. E quem decide quando é necessário? Quem determina quem são os vândalos? Identificar manifestantes pela tinta? Vocês são realmente uns doentes... Vou para a sessão de entretenimento. “Atriz passa por problemas em cirurgia para aumentar o bumbum: ‘Fiquei deformada’!” É triste! Continuo: “‘Tarado me agarrou duas vezes no metrô’, diz vítima sobre preso em SP”, destaca a Folha. “Uma vendedora de 33 anos descia de um vagão lotado na estação Sé do Metrô, no centro da capital paulista, quando foi agarrada por um outro passageiro”. - 31 -


Será o mesmo que gozou na perna de uma mina e colocou a culpa no aperto? “O vagão estava muito lotado, não deu pra segurar”, disse o punheteiro. Segundo ele, a inspiração veio de um grupo de babacas que aproveitam a lotação para encoxar a mulherada, filmar e colocar na internet. É uma das ações conjuntas mais ridícula de que já tive notícia. Vi um vídeo desses uma vez e lá estava o imbecil, com um pinto insignificante pra fora, passando em uma mulher de uns 45 anos. Ela não percebe, mas o palhaço esporra, volta o celular para o próprio rosto e dá um sorriso bocó. No Japão, o fetiche pela esporrada no trem é tão grande que tem hotel oferecendo suítes temáticas com aparência de vagão. Eles chamam de “a encoxada de chikan”. Esse mundo está fodido! Enfio o fone de ouvido e procuro músicas no YouTube. Ouço California Dreams, numa versão em punk rock do Hi Standard. Meu chefe chega. “Bom dia”, diz ele para a geral. Ninguém responde. Entro no Facebook e há uma solicitação de amizade. Clico no ícone com duas pessoinhas e um pequeno “1” destacado em vermelho abaixo. “Sheila aceitou sua solicitação de amizade.” “0 amigos em comum.” Envio um “tudo bem?”, ela visualiza, e nada. Sem resposta. - 32 -


A revista está um horror O almoço ocorre numa churrascaria. Uma permuta que o jornal tem: publica anúncios pomposos da “melhor picanha da região” e, em troca, alimenta seu pessoal. “Coca-Cola grátis no rodízio”, por apenas R$ 29,90. “O que vai ser capa?”, pergunta a diagramadora, aceitando um pão de alho. Não faço ideia. “A foto da primeira pode ser a que fiz na campanha de doação sangue”, propõe o fotógrafo. “Todo mundo gosta dessas porcarias, e o prefeito foi.” Aceito um corte de cordeiro. “A revista está um horror!”, comenta a diagramadora, se referindo à uma de nossas publicações. Aceito o queijo coalho. “Se passarmos de uma hora, vai ter que pagar o estacionamento”, se preocupa o motorista. “Come rápido!”, sugere. Ninguém dá bola. O dono da churrascaria se aproxima e aborda a diagramadora. Ele quer mais publicidade. “São quase dez rodízios diários”, explica ele, “tá difícil, não vale a pena pra mim do jeito que está”. Ela afirma que conversará com o chefe, de novo... Pelo visto, nosso trabalho não está valendo nem um prato de comida.

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Aceito a costela e peço para o garçom encher o prato. Nunca se sabe quando se terá a última refeição, ainda mais sendo jornalista... O cachorro recebe mais cafunés Na minha rua tem um cachorro marrom que é provavelmente o ser mais sociável que já vi. “Ele é gay!”, costuma explicar a dona. “É castrado!”, afirma. O cachorro tem um belo porte. Parece um cruzamento de pastor alemão com labrador. Estou no portão fumando e ele vem até mim. Dou uns tapinhas em sua cabeça. Bom garoto! Estaciona um carro em frente à casa ao lado e o cachorro vai até ele. Desembarcam o vizinho e sua namorada. O cachorro recebe mais cafunés. Eles abrem a garagem e entram a pé. O cão observa, se volta para o carro, cheira a roda e derrama um vigoroso mijo na borracha preta. Esse é o máximo que se pode esperar de um relacionamento: um breve momento de carinho, seguido da demarcação de território de uma das partes. Normalmente, o cachorro vence. No computador, lento como uma carroça, a mensagem de Sheila continua visualizada e não respondida. Não que eu seja um destes paspalhos internéticos, incapazes de largar seus Iphones e que entram em parafuso quando não são prontamente respondidos, mas apresento meus momentos. Será que a mensagem visualizada e não respondida é o mal do século 21? - 34 -


Sem dúvida, existem muitos psicanalistas lucrando com isso. Parece que equivale a bater o telefone na sua cara ou ser largado plantado num restaurante, beliscando pão e tomando água. Não caio nessa. Mas, que é um pé no saco, é! Encanação gera encanação! Apanho o moletom e resolvo dar um rolê. Por onde será que Sheila costuma rodar? Ela passa empurrando um carrinho de bebê Gosto de parques e há um relativamente perto de casa, com árvores, academia ao ar livre, pista de cooper, quadras, natureza, pássaros, insetos e pessoas. É bom pra tomar vinho e fumar um bamba vendo o sol se pôr. É o que faço! O primeiro gole desce azedo e seco. Trago o cigarro e a sensação de asco regurgitivo é apaziguada. Passo uma goma em uma ponta e acendo. Em quatro ou cinco pegas ela se esvai. Desaparece no ar, em brasa. Volto para a garrafa e seu conteúdo escorrega suave pela garganta. Sentado num banco de cimento, rodeado de pernilongos, assisto a cidade desaparecer junto com o dia. No horizonte, dezenas de prédios são como sombras, um desenho em técnica vazada. Os pássaros já pousaram e as pessoas começam a abandonar o parque, rumo à suas casas. Talvez haja um jantar esperando, talvez apenas um sofá vazio. Atrás de mim, ouço uma voz familiar. É uma garota da época da escola. Segunda série, se não - 35 -


me engano. Minha namorada infantil... Ela passa empurrando um carrinho de bebê. A criança veste rosa e está semicoberta por uma manta. Ela teve uma filha. Reparo na aliança em seu anelar esquerdo. Está casada. Seu olhar encontra o meu. Não me reconhece. Fita rapidamente meu rosto e desvia, segue apressada. Quando a conheci, ela era a criatura mais bonita na sala de aula. Na época, um oftalmologista recomendou à minha mãe que eu usasse óculos de leitura. Eles aumentavam levemente a imagem à distância. Olhava para a garota e, quando os tirava, me dava conta de quanto ela era pequenina e delicada. Naqueles tempos, quando seu olhar encontrara o meu, por entre os dedos que me tapavam a cara, debruçada na mesa, tentando disfarçar a paquera, ela retribuiu com um gesto similar e um sorriso. Algo mudou desde aquela época. Mudou comigo. Em casa, mais tarde, fiz a primeira e última pergunta sobre relacionamentos para meu pai. Quis saber como se conquista uma garota. Ele me mandou dar um presente... Com ela funcionou, mas o tempo passou e, até hoje, tudo que sempre fiz foi comprar o afeto das pessoas, às vezes, à custa do meu próprio. A garrafa está quase no fim. Um gato passa caminhando, distraído, andar macio... Quando se dá conta de minha presença, sai em disparada. Sete vidas uma ova! Um guarda do parque aparece. “Não é permitido beber aqui”, avisa. Dou o gole derradeiro, babo um pouco, arroto o mais alto que posso e sigo meu caminho. Abandonoo recipiente vazio. Acendo um cigarro. Melhor dormir. - 36 -


Aproveitar o sono etílico que acaba com a ansiedade e promove a azia. Melhor começar a pensar em coisas boas. O vinho ajuda neste quesito. O baseado tambÊm. Quero meu computador. Quero Sheila. ***

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Publicado após os incidentes de Paris 20, no jornal Vitrine Andreense

O diabo entre nós Jota Medeiros

N

a redação do Vitrine Andreense este periodiqueiro corria contra o tempo para preparar a nova reportagem do jornal. O tema: Paris 20 – delírios narcóticos de um jornalista em descontrole. O que aconteceu? Quais os limites da loucura? Estamos seguros, ou o ocorrido abrirá precedentes? Muitas questões, pouquíssimas respostas. As autoridades tratavam o assunto como quem pisa em ovos, limitando a prática jornalística. “A imprensa obstrui o bom andamento da investigação”, justificavam. Minha pauta, pelo jeito, iria por água abaixo. “Define logo se essa matéria sai ou não sai”, cobrava meu editor. “Se não tiver nada novo, vou derrubar”, ameaçava ainda. O dead line me batia à porta, a coisa estava F*... Os bons deuses do jornalismo, contudo, anteciparam-se ao infortúnio e uma boa alma na corporação militar – que assumo, estava me devendo uma – surge via telefone com o pote de ouro do fim do arco-íris. “Medeiros”, disse ele, “se eu te der uns arquivos do computador do Jornalista de Santo André ajuda nessa porra de matéria? Você para de me encher o saco?”. Falando em saco, o meu esvaziou num pujante orgasmo de alívio após essa ligação. Uma pessoa perturbada Encontrei minha fonte ao melhor estilo Watergate, numa garagem escura e sem câmeras. O material foi - 38 -


entregue em um pendrive. “Isso é confidencial pra caralho”, sou informado, “se meu nome vazar, você está fodido, já sabe”. Apanho o dispositivo sem titubear. “Estamos quites, fica tranquilo”, digo. O conteúdo do pendrive me faz broxar após a gozada. Havia anotações. Duas pastas com meia dúzia de fotos malucas e algumas músicas (Bowie, Reed, Clapton). Conteúdo escasso... A sociedade está doente Dada a falta do material, optei por consultar um especialista e tentar tirar leite daquela pedra. Procurei por Elisabeth Fawcett, psiquiatra com consultório na cidade e que, em outras vezes, já havia me socorrido na criação de profiles. Apresentei a ela a seleção de trechos que considerei mais pertinentes e as imagens. Segundo a psiquiatra, as passagens não demonstram o caráter do Jornalista de Santo André, tampouco as fotos. Merda! “O que vejo é uma pessoa extremamente perturbada, em busca desesperada por algo para amar. Isso é mais comum do que se pensa e, podemos afirmar, sem erro, que pelo menos um terço da população se encaixa nesse quadro. As relações no interior da nossa sociedade estão completamente estranhadas. Ou seja, as pessoas não conseguem se reconhecer como indivíduos e, partindo desse fundamento, passam a não identificar os outros. Isso gera todo tipo de distorções e perversões que consideramos execráveis hoje. Mas não podemos pensar em termos de culpa singular. A estrutura social baseada na exploração do trabalho, junto ao não reconhecimento dos indivíduos como produtores da própria vida, é a principal culpada”, explicou a doutora. - 39 -


Confesso, queria ter ouvido as palavras “monstro”, “lunático”, “drogado”, “doente”, “psicopata”. Mas não é assim que a banda toca. Fawcett me explicou o que ela chama de “doença da normalidade”. Afirmou que em nossa sociedade a patologia só pode ser definida em termos da falta de ajustamento individual ao estilo de vida de seu meio. “A ideologia vigente é a de que tudo o que uma sociedade precisa é funcionar, os problemas jamais estão no fundamento, só no fato, logo, a doença mental, por exemplo, é um fenômeno isolado, sem qualquer relação com a estrutura social - mas isso está errado: é nosso sistema social que aliena o indivíduo”. Nas fotos do celular, insanidade Mas e as fotos, o que dizem do Jornalista? De acordo com Fawcett, não se pode identificar a psique de alguém por base no conteúdo que ela gera, especialmente hoje. “É só passear um pouco pelo Facebook pra perceber que o que as pessoas publicam é, de fato, insano. Antes, os diários eram trancados com cadeado, hoje, todos fazem questão de compartilhar suas esperanças, frustrações e, em maior número, futilidades. Só porque o jornalista fez fotos simulando coisas meio malucas, como um cigarro morto, ou rostos com óculos e copos, sanitários, bebendo em público... não podemos determiná-lo como desajustado. A mídia gosta de especular e estão criando um monstro para perseguir”.

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Par te 2

Meu bar e de Sheila Há um bar no centro da cidade, ao lado da estação de trens, cujo nome ficou fundado como “nosso bar”. Meu bar e de Sheila. Sheila que respondera minhas mensagens e aceitara minha amizade online. Na primeira vez que nos encontramos, comemos comida japonesa (e eu odeio comida japonesa). Na mesma noite, tomamos saquê e decidimos passar em sua casa, onde, segundo ela, havia uma cápsula de cocaína inteira. E havia. Rua Paris, explicou ela. “Bem pertinho daqui”, disse. E era. Sheila mora sozinha. Sheila é linda e compartilha de meus vícios e aprecia minhas virtudes. Sheila me permitiu dormir em sua cama. Me emprestou sua escova de dentes... Perco dois dias de trabalho e não sou demitido. No bar, no presente, mato um uísque e peço outro. - 41 -


Um bêbado tenta descer o degrau que leva à calçada e cai. Ninguém o levanta. Os transeuntes desviam desinteressados. Ele se esforça, escora na parede, ergue os quadris primeiro, impulsiona para trás e deixa a inércia fazer o resto. Semiereto, segue em passos arqueados e desengonçados, sabe-se lá pra onde. Sheila chega. Sua maneira de andar faz parecer que ela está sempre de salto alto. Os passos são largos e rápidos, com desenvoltura, e as pontas dos pés sempre tocam o chão primeiro. “Resquícios do balé”, diz ela. Ela vê meu uísque e quer um também. Brindamos e ela avisa: “Hoje quero endoidar!” Eu brindo a isso. Damos as mãos e eu as repouso em minha coxa. Ela se inclina e beija meus lábios. A puxo para mais perto e ela sorri, fazendo com que eu beije seus dentes. Nossas bocas se abrem e as línguas entram em ação. Aperto sua cintura com uma mão e o pescoço com a outra. Desencaixamos e nos olhamos. Recostamos na cadeira. “Adoro você.” Eu também, baby! “A resposta certa é: ‘eu te adoro também’, para não parecer que você adora a si mesmo”, explica. Sheila é cheia de informações. Tenho dois estômagos À noite, estamos nos fundos de um posto de gasolina bebendo cerveja e cheirando cocaína. Esses recintos atraem toda classe de notívagos, pois ficam abertos 24 - 42 -


horas e vendem bebida. Alguns estão ali para se mocozar da possível abordagem policial, usando o álibi do goró. Outros, por ambos os motivos, como é nosso caso. “Vendi até coisas de casa quando fumava pedra. Fui internada à força pelo meu pai, mas, no fundo, eu mesma queria, saca?”, conta Sheila. Comigo foi igual. A única diferença é que não sei bem se queria ser internado. Nem fodendo! Pela bagunça que se formou em meu quarto, após a invasão abrupta dos enfermeiros da clínica, que me aplicaram uma injeção de sossega-leão após muita luta, acredito que não fui por vontade própria. “Algumas pessoas nascem em pares”, declara ela, sem contexto. “Não é sempre que se encontram, mas quando acontece, nunca se separam.” Ela me entrega o cartão do banco e pede para que eu pegue mais cervejas, e um maço de cigarros. Eu sei a senha. É quase igual à minha. Na geladeira, pego duas latas. Peço à balconista um L&M. Volto. Ao nosso lado tem um grupo de playboys fazendo esquenta para a balada country. Suponho isso pela picape na qual estão encostados, cheia de adesivos com touros sendo laçados por vaqueiros. Eles se agitam ao som de um sertanejo universitário horrível. “Perto de papai você é santinha. Quando o sogrão não tá, você perde a linha”, grunhe o cantor. Um loirinho, de chapéu e calça jeans, com a fivela do cinto do tamanho do escudo do Capitão América é o mais exaltado e se gaba de sua última peripécia sexual. - 43 -


“Ela não queria”, diz ele. “Liguei o som do carro no último e enfiei a mão na bucetinha dela. Ela gemeu e tentou me afastar. Abocanhei o pescoço dela e ela começou a amolecer. Ela estava com uma camisa de botões. Arranquei todos, num puxão, e comecei a chupar os peitos”, relata. Os amigos ovacionam. “Ela cravou as unhas nas minhas costas, e aí endoidei”, continua o vaqueiro. “Botei o bichão pra fora e comecei a bater uma. Fiz ela chupar. ‘Se morder, te quebro uma costela’, eu disse. A putinha tava quase chorando no meu pau, aí puxei ela pra cima, levantei a saia, coloquei a calcinha de lado e soquei rola. Falou que não queria, mas gemeu gostoso no bichão.” Os amigos levantam os copos de Smirnoff com Schweppes, apoiando. “Elas sempre querem, são umas putas enrustidas. Chegam de roupinha curta e o caralho a quatro, e vem dizer que não quer foder? É grupo!”, afirma outro vaqueiro. Todos concordam. “Vamos pegar umas brejas e ir pra minha casa”, determina Sheila. Eu apoio, apanhando novamente o cartão. Entro e compro as latas. A atendente pergunta se vou beber sozinho. Digo que tenho dois estômagos, tipo os bois. Quando saio, Sheila está no grupo de cowboys debatendo com o loirinho. Ele a chama de vadiazinha metida à besta. Ela acerta uma joelhada certeira nos bagos do imbecil. Ele cai, com as mãos tentando conter a dor excruciante que lhe sobe pela barriga, atingindo as costas e convertendo o machão num saco de carne, inerte. Ele não vai conseguir usar o bichão tão cedo. Os amigos não reagem. Jamais viram uma mulher decidida – ou - 44 -


ao menos nunca foram atingidos por uma. Sheila cospe no moribundo. “Machista nojento!”, diz ela, vindo ao meu encontro. Nos abraçamos e seguimos caminhando, tranquilos. Não vamos trepar hoje! A casa dela é grande, possui dois andares. Um sobrado. Sheila é professora do ensino infantil. Cuida de crianças de creche. Seus pais morreram e lhe deixaram a casa: a mãe, vítima de hepatite, o pai, de embolia pulmonar. Isso não a impediu de fumar e compartilhar canudos. “Quer uma agora?”, grita Sheila, da cozinha, se referindo à cerveja. Claro que quero. Ela volta com as latas e senta ao meu lado, no sofá. Esticamos duas carreiras sobre a capa de um DVD. Mandamos. Abro minha lata e Sheila passa a dançar ao som de Smiths, que sai do notebook. “Take me out tonight. Where there´s music and there´s people”, solicita Morrissey. Ela flutua quando dança, levantando os braços, entrelaçando-os no ar, sorrindo deliciosa... Vê-la se mexer faz com que meu pau responda, como se um sinal invisível fosse emitido dela, fazendo-o colocar-se em posição de combate. Tesão via wi-fi. Ajeito a ereção dentro da calça e Sheila percebe. “Não vamos trepar hoje!”, assevera ela. Sem problemas, querida, estou chapado pra caralho. A música acaba e começa outra, desta vez, uma eletrônica. Sheila volta a se sentar. Dá um gole na cerveja. Passa a vasculhar o Facebook no celular. - 45 -


“É muita babaquice!”, diz ela. O que é babaquice, baby? “Esse povo, reclamando que não vai poder trabalhar direito esse ano, por causa da Copa. É cômico! São as mesmas pessoas que amam feriados prolongados e reclamam toda segunda-feira. São uns esquizofrênicos!”, diagnostica, colocando um tiro nas costas da mão esquerda e mandando com a narina direita. Ela me passa a cápsula e faço o mesmo. Mais um gole de cerveja. Essa gente só quer atenção. Ela sorri e me beija. Após a primeira vez que saí com Sheila, ela sumiu por três dias. Apesar de eu saber que, naquela semana, ela programara uma arrumação na casa, somente pensava, enquanto isso ocorria, se ela estava pensando em mim. Era como se eu tivesse de possuir todos os aspectos, trejeitos, sinapses e orifícios de Sheila para me sentir gostado. Sugar da vida dela a vida que me faltava, de supetão, sem esforço, em vez de lutar por mim mesmo. De três em três minutos eu atualizava a página do Facebook. Observava se Sheila estava online, se havia lido minha mensagem, e, caso estivesse, caso houvesse lido, imaginava a razão do silêncio, da falta de resposta... E de repente, lá estava Sheila, deitada na cama e coberta com um enorme corpo masculino, rígido, brusco e musculoso, fazendo-a gemer enquanto a penetra, primeiro pela frente, depois, num movimento rápido, jogando-a de quatro e arrebitando-lhe a bunda com um puxão de cabelos, por trás, fodendo sua buceta, seu rabo, fazendo-a gozar. “Não vamos trepar hoje!”, repete ela, subindo no meu colo. - 46 -


“Não vamos trepar hoje!” Sheila desabotoando minha calça. “Não vamos trepar hoje!” Tirando minha camisa. “Não vamos trepar hoje!” Sheila tirando a calça. “Não vamos trepar hoje!” Despindo-se da camiseta. Acomodando-se e a penetração acontecendo. Um sublime movimento de vai e vem, sob os sons de suspiros e gemidos. Ela quebra a promessa de não trepar, e eu agradeço aos céus. O tempo voa quando a gente está se divertindo Chego ao jornal sem vestígios da ressaca. Era disso que eu precisava. É disso que normalmente todos em crise precisam: de uma foda. E eu fodi! Fodi e vim direto para o trabalho. Sheila me deu uma cópia da chave. Me pegou de surpresa. Esse grau de envolvimento me deixa inseguro, com o cu na mão. Mas, desta vez, estou tranquilo. Não há nada para estragar. Somos dois ferrados. Somos os mesmos organismos patológicos. Da mesma raça. Ela é minha mitose. Eu sou a mitose dela. Estamos ambos no fundo de um poço, alcoólicos e fodidos. A redação está uma confusão. Vou até os fundos do prédio, uma sacada contígua a uma sala empanzinada de livros e edições antigas do jornal, e encontro o motorista, fumando. Acompanho-o. - 47 -


“O chefe não vem hoje”, diz ele, soltando fumaça. “Não disse por quê! Só disse que tinha uma reunião.” Ótimo! É ótimo ficar sem o chefe. Posso passar o dia bundando na internet. Além do que, minha aparente falta de ressaca pode ser apenas um engodo do meu corpo. Uma piada de mau-gosto. Eu me sentaria na cadeira e, entre uma frase e outra, enquanto digito, meu coração explode, o sangue vaza pela boca e os gases acumulados do meu intestino se libertam numa flatulência barulhenta. Caio duro no chão. Serei lembrado como o sujeito que morreu peidando no meio do expediente. Meu nome será um mero “aquele cara, lembra?” Mantenho na morte o que fui durante toda a vida: um cara. É assustador, mas reconfortante. Não se pode condenar a inação do nada. Termino meu cigarro e vou para o computador. Há uma mensagem de Sheila. “Te adoro! Vem me ver depois do trabalho?” Prometo responder mais tarde. Me pergunto o que ela faz acordada a esta hora. A deixei dormindo. Dei um beijo em sua bochecha e saí... Mas NÃO! Não dou continuidade ao pensamento e nem à conversa. Me contenho. Isso é sábio. Em se falando de relacionamentos, menos é mais – até o dia em que isso se inverte. Abro meu Outlook e baixo os novos e-mails. Uma enxurrada de inutilidades invade a caixa de entrada, entre elas, uma do meu chefe. - 48 -


“Quero uma matéria sobre barrigas de aluguel para a próxima edição.” Essa é a comunicação do meu chefe. É o método dele. Gosto de pensar que recebo pistas ao invés de pautas. Mas no fim das contas, não passa de uma preguiça filha da puta da parte dele. A justificativa é: “se eu tivesse que pesquisar, eu mesmo faria”. Até parece... Ele sabe que terei de pensar em todos os aspectos da reportagem, as fontes, os temas e blablablá... Busco minha agenda e a vasculho em busca de assessorias médicas. Será que barriga de aluguel é legal? Vou ter que achar um advogado. Obstetrícia lida com a área de reprodução? Busco uma fonte com o contato que tenho na faculdade de medicina da região. Nunca anoto os nomes! MERDA! Ele pede que eu envie um e-mail com a solicitação. Já aviso que precisarei de uma paciente que tenha passado pelo procedimento. “Ok, manda o e-mail”, finaliza ele. Obedeço e está na hora do almoço. O tempo voa quando a gente está se divertindo. #soquenão. Nem que esse bebê nascesse com duas cabeças Volto do almoço e há um recado colado no monitor: “O assessor da faculdade de medicina ligou. Ele achou uma mulher que fez a barriga de aluguel e um médico”. - 49 -


Que eficiência, isso é raro! No Facebook, Sheila publicou uma foto de si mesma. Uma selfie, como todos chamam. Ela aparece deitada. A visão da câmera é a mesma que se tem quando se está trepando por cima. Cara de safada. Seus peitos parecem ainda maiores deste ângulo e centenas de likes foram associados à postagem. Uma caralhada de caralhudos. Não conheço nenhum, nem de vista. Pilantras. Urubus malditos. Me concentro no trabalho e ligo para o telefone que o assessor passou. Uma voz feminina atende. Explico o mote da matéria. Ela explica que cedeu o útero para uma prima que não podia ter filhos. Você pega os espermatozoides do pai e os óvulos da mãe. Mistura tudo num tubo e planta no útero da pessoa que será exclusivamente uma incubadora gigante. Não há traços genéticos da gestante no bebê. É bem bizarro, se parar para pensar. A incubadora diz que topa fazer a reportagem, por dois mil reais. Querida, digo a ela, não pagaria dois mil reais por uma reportagem com você nem que esse bebê nascesse com duas cabeças ou você o devorasse depois do parto! “Um mil”, barganha. Nem fodendo. Você não sabe como funciona o jornalismo? Somos filantropos. Os lucros são revertidos - 50 -


para as vítimas de Boris Casoy. A ligação fica muda. Ela não entende nada e acaba cedendo a entrevista. Em menos de quinze minutos arranjo um advogado: “É legal sim! Claro que é legal a barriga de aluguel, certamente é, estou certo de que não há nenhum empecilho jurídico, mas, se tiver, não é tipo: ‘nossa, que dificuldade terrível...’ Dá-se um jeitinho pra qualquer pendenga nesse país”, explica. Falo ainda com um especialista em fertilização que afirma: “você coloca a porra na porra, e a porra nasce”. Jogo rápido, tudo por telefone. A reportagem será ilustrada por um infográfico horroroso, com um bebê desenhado em 3D, boiando no útero e parecendo um alien em formação. Dever cumprido. Um café. Mais cigarros. Fim. Forças sobrenaturais são muito meritocráticas Após o trabalho, Sheila inventa de irmos à Umbanda. “É a festa da Sete Saias”, explica. “Você pode se consultar com a pomba-gira, perguntar o que quiser!” Eu não acredito nisso, baby! “Temos que levar uma garrafa de vinho Lambrusco cada um, sete rosas coloridas e três variedades de frutas vermelhas.” Não sei se é boa ideia... “Minha mãe incorporava”, diz Sheila. “Antes de morrer, falou pro meu pai: ‘cuidado com a Sheila!, ela vai - 51 -


engravidar nova’. Sacanagem! Depois disso, ele não saía mais do meu pé, até que... morreu.” Parece que deu certo, baby, você nunca engravidou... “Vamos, vamos, vamos... Quero que você vá comigo!” Titubeio com um pé na aceitação. Dou um google e a pesquisa me revela que a pomba gira Sete Saias é especialista em assuntos do coração. É a deusa do amor e a ela recorrem as moças desesperadas por um homem. Em uma das versões de sua história, Sete Saias fez greve de fome até a morte por uma paixão proibida. Shakespeare não teria inventado melhor. Apanhamos um táxi no centro após as compras, com destino ao terreiro, na cidade vizinha de São Bernardo do Campo. Digo a Sheila que a consulta saiu cara. Digo que as forças sobrenaturais são muito meritocráticas. “Deixa de ser bobo! Eu pago no meu cartão, depois você me paga, tá?”, define minha nova contadora. “Podemos tomar umas brejas por lá, numa padaria que tem ao lado.” Dá tempo de voltar pra casa depois e pedir comida... Ela se inclina e beija meu rosto. Tento retribuir, buscando sua boca, mas encontro a outra face. Uma casa como qualquer outra casa “Deu meia noite / a lua se escondeu / fui lá na encruzilhada / ouvi uma gargalhada / e a Padilha apareceu / Alaruê, alaruê, alaruê / É mojubá, é mojubá, é mojubá / Ela é Odara / quem tem fé em pomba-gira / É só pedir que ela dá”, é entoado ao som dos atabaques. O batuque - 52 -


é intenso e penetrante. A decoração remete a um santuário, ornamentado com flores e velas coloridas: vermelhas, azuis, verdes, roxas... O terreiro é arranjado sob uma tenda, erguida nos fundos de uma casa comum de bairro. Uma casa como qualquer outra casa. O teto é decorado com tecidos e há um frenesi no ar, incitando a esperança e a fé dos que seguem o ritmo dos tambores. DOOM DOOM DOOM DOOM Aos poucos, figuras libidinosas e performáticas passam a circular, fumando cigarros e bebericando vinhos. São chamadas entidades: homens e mulheres cujos corpos são cedidos para o usufruto de um espírito, no caso, da categoria da cigana Sete Saias. “Minha mãe também incorporava!”, repete-se Sheila, entusiasmada com o show. Você já disse, gata. “Quer sair um pouco, pra tomarmos uma cerveja? Quero comer, estou varada de fome. Ainda vai levar um tempinho até começarem as consultas, quer dizer, a Gira...” A padaria é ao lado, seguindo uns duzentos metros na rua, virando à esquerda e descendo uma ladeira. Um local bacana, limpo, com funcionários padronizados e cardápios plastificados. “Uma cerveja!”, decide Sheila, conferindo o menu e dirigindo-se ao garçom. “Racha uma porção de pasteizinhos comigo?”, pergunta ela pra mim. Só consigo comer quando fumo um, baby, mas pega que eu engulo. - 53 -


“Pode crer, você não come...”, lembra ela, voltando-se para o garçom: “Tem do que?” “Só de carne!” Sendo assim, vai de carne. “E a cerveja, Brahma”, inclui ela. Uma das coisas que gosto em Sheila é ela não ser nada delicada, pelo contrário, é a personificação do desastre. Certa vez, esperávamos o trem e saracoteávamos na plataforma da estação Tamanduateí, quando nos trombamos e bam! O iPhone dela voa nos trilhos. O trem se aproxima e passa por cima do aparelho. Assistimos aflitos a longa cobra metálica passar. “Porra, mano, você é foda!” Não deve ter pegado, acho que respondi. O trem passa e está tudo bem, resgatamos o iPhone sem nenhum arranhão. Sheila disse, naquele dia, que isso foi uma manifestação do meu subconsciente. “Você está tentando subjetivamente me aprisionar no seu mundo, e isso passa por destruir o meu”, argumentou em tom de brincadeira. Hoje, à caminho do terreiro, ela caiu, escorregou na faixa de pedestres e rolou no chão, sujando a blusinha branca, o que nos levou até o shopping para adquirir uma nova vestimenta. Oh, sim, claro! Tem esta: o branco é obrigatório nessa festa da Umbanda. Ao menos a camisa... Ela me fez comprar ainda uma gravata rosa. “Não sei se tem que ser borboleta, vamos levar a normal mesmo...”, disse ela à vendedora. Agora, ela derruba o maço de cigarros pela janela, no estacionamento da padaria. - 54 -


“Caralho, calma aí, vou lá buscar.” O garçom chega enquanto Sheila sai. Traz os pastéis e a cerveja. Quero um conhaque com cacau e gelo, digo. Ele pede o número da comanda. A comanda está na bolsa de Sheila. Puxo o zíper e lá está, em letras garrafais: 57. Informo ao garçom. Puxo a comanda e há uma foto sob ela. Bem embaixo da comanda, uma foto impressa em computador estampa um rosto negro e barbudo, de feição máscula e viril. “Cara de macho”, teria definido minha mãe. Sheila dobra a entrada e eu fecho a bolsa. Arranjo-a, inócua e intocada. “Preciso parar de me desastrar tanto”, diz ela. “Hoje tá osso!” Osso..., repercuto. “Pega um pastel”, oferece. Pego. Chega o conhaque. Sheila se serve. Me passa. Sorrio, bebo, e questiono: O que você vai mesmo perguntar pra entidade?

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Esse homem será o seu fim A Gira começa e nós temos senhas. “Me dá a minha”, solicita Sheila. Tenho a 16 e a 17. Ela apanha a 17. O nome dos que não estão incorporados e auxiliam as entidades, seguindo-as com bebidas e fumo, é cambonos. Um cambono chama meu número e me busca. Sheila, ficara eu sabendo antes, já frequentava este terreiro. Minha consulta é com a pomba-gira que ela queria pegar, com a qual já havia falado. A pomba que lhe pedira uma foto do foco de seu desejo. Ela trouxe o cara da foto... “O que você quer de mim”, questiona a entidade, com decoro, em fala pausada e concentrada. Respondo que estou apaixonado, e que a minha paixão está aqui, hoje, buscando abrir os caminhos de outro cara, que, acho, ela quer. “E você a quer? Já se perguntou se a sua atitude com as mulheres é certa?” Como exatamente eu deveria proceder? A entidade emudece, enche os pulmões de ar e o solta com força, bufando. “Você não está em condições de ser atendido, por favor saia”, me diz a Sete Saias. Junto as mãos, como quem reza, e me despeço, saindo do terreiro. No quintal da casa, igual a qualquer casa, fumo um cigarro. Sheila ainda é consultada e entrega a foto do cara, dizendo algo ao ouvido da entidade. - 56 -


Há um ruído onipresente de vozes, crianças correndo, gritos surgidos e desnutridos no nada, quando a pomba-gira que me atendera vem ao quintal. Todos se calam. Ela traz uma vela vermelha, apanha minhas mãos e as faz segurar a vela, guiando-a por meu corpo. Ela estanca na testa, aproxima a vela, diz palavras ininteligíveis e parte; desce a pequena escada que leva aos fundos, se aproxima de Sheila e cochicha em seu ouvido o que me parece ser: “Esse homem será o seu fim, tire ele daqui, ele não está em condições.” Sheila vem e me pede pra sair. A aguardo do lado de fora pelo tempo de um novo cigarro. Ela aparece e quer saber: “O que você fez?”. Nada, baby. Ela acredita. Abandonamos a Gira, queremos nossa cama. “Eu devia ter escolhido a sua senha”, me diz ela. Desculpe, baby, não queria foder com isso... Sou uma garotinha apaixonada Sheila e eu partilhamos de um prazer em comum: pedir comida em casa. A atendente do restaurante pergunta o número do telefone, olha o cadastro e examina: “Paris, 20?”. Esse é o endereço. Isso soa bem pra mim. “Essa parada na gira me deixou encasquetada!”, diz Sheila. Sei que não fui desrespeitoso de maneira nenhuma, afirmo, mas vai saber o que se passou na cabeça da entidade...

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“Com certeza ela tem lá suas razões. O que exatamente você disse a ela?” Nada demais! Ela questionou minha maneira de tratar as mulheres: “Já se perguntou se sua atitude com as mulheres é certa?”. Então perguntei, com a maior humildade do mundo, como deveria proceder, e ela emendou um: “Você não está em condições de ser atendido, por favor saia”. “Ela disse que você estava bêbado, mas eu sei quando você está bêbado! Você é chato pra caralho quando está bêbado.” Todo mundo é... A buzina da moto retumba em frente ao portão e sabemos que a comida chegou. Comemos e o clima parece pesado. A TV passa um programa de culinária e a casa está tensa, como se uma corda estivesse sendo esticada demais e estivesse prestes a arrebentar na cara. Sinto-me, pela primeira vez, um intruso na vida de Sheila, quando, pegando fôlego, como quem ensaia declarar a verdade há muito tempo e afinal aspira coragem, ela conta que pretende ir embora no meio do ano. Estamos no sofá e ela faz o anúncio com sagrada calma e decisão. Diz que não importa o que aconteça, irá de qualquer jeito. “Vou dar esse rolê. É uma parada que preciso fazer por mim, saca?”. Saco!, respondo arregando, com um frio na barriga, pensando nela longe, transando com um batalhão em cada nova cidade. É fácil se enfiar numa situação catastrófica. Saber que há um trem em alta velocidade seguindo no mesmo trilho - 58 -


que o seu, na direção oposta, e não fazer nada para evitar a colisão. É uma adoração cega. Uma síndrome do messias. Me disseram certa vez que as mulheres costumam gostar de caras problemáticos por acreditarem que com elas será diferente. É uma maneira estúpida de se sentir especial. No fim, elas só percebem que são ordinárias como todo mundo, e a vergonha pela ingenuidade é maior que a recompensa por ter passado alguns momentos em suspensão mental. Alguns momentos de alegria infantil. Sou uma garotinha apaixonada. Sheila me pede para ajudar a traçar seu roteiro de viagem. Propõe só por propor, como quem dá uma recompensa, um prêmio de participação. Ela quer ir para o México, cruzando a América Latina. Concordo que é uma trip interessante. Tem muito o que se ver... Praias... Culinária... Experiências... Conhecer gente nova... Novos ares... Amigos... Coloquem meu pau na guilhotina. Aceito ajudar. Covarde! Covarde! Covarde! - 59 -


E eu que esperava não anular minha vontade em benefício à dela neste relacionamento, me coloco de quatro e permito ser currado. Quando ela goza eu gozo De barriga cheia, nos aconchegamos no quintal dos fundos, numa esteira, assistindo ao céu. As mãos dadas, os dedos entrelaçados se roçando. Acendo um baseado e passo para Sheila. Ela traga e não me devolve, o deposita no cinzeiro e sobe em meu colo. Eu a agarro com força pela bunda e inverto a posição, indo pra cima dela. Cravo os dentes em seu queixo e puxo seus cabelos. Arranco sua camiseta de dormir, velha e puída, e ataco seus seios. Tiro minhas calças e levo o pau até sua boca. A faço chupar até engasgar. As calças de Sheila se perdem no processo e meto em sua buceta com a rigidez de um mastro. A adrenalina faz isso. Faz o sexo ficar melhor. Cuspo em sua cara e lhe estampo um tapa. O estalo é mais alto que a força e ela pede que eu faça com mais força. Acerto o outro lado ao mesmo tempo em que bombo no ritmo de uma britadeira. Penso em leões fodendo na savana. Minhas unhas afundam nas costas de Sheila. Ela gosta disso e tenta retribuir. Lhe acerto a cara novamente. Ela pede mais, mais, mais mais mais minha rola crescendo e ficando do tamanho do Empire State Building. Suas coxas estão vermelhas e amanhã terão vergões no formato da minha mão. Agarro seu pescoço e aperto, estrangulando-a. Ela adora isso! Eu continuo. Continuo, continuo continuo continuo... Quando ela goza eu gozo e a violência se reverte no estranho carinho pós-trepada dos seres humanos - bichos na intimidade, lordes em público. - 60 -


É um dia perfeito Pela manhã, Sheila dorme profundamente. Tomou uma bela canseira. Dou-lhe um beijo, sem acordá-la, e saio, vou para o trabalho. Meu coração bate alegre, como se a névoa escura que o envolvia se dissipasse. Não há nenhuma treva em mim, apenas luz, cores e nenhum som incomoda. Apenas um dia perfeito. Quero fazer um piquenique no parque, alimentar os animais no zoológico, ir ao cinema e viver para sempre. Parece um dia perfeito e estou feliz por estar com ela, que me faz esquecer de mim mesmo. You just keep me hanging on, cantarolo. You’re going reap just what you sow, cantarolo. É um dia perfeito Na redação, chego antes de todos. Sento e ligo o computador. “Aumente seu pênis”, logra o primeiro e-mail de minha caixa de entrada. Excluir! “Voo concêntrico das mariposas ajuda a desmistificar aquecimento global” Como é possível acreditar nisso? Excluir! “Liberdade e o futuro da internet” chama minha atenção. Um ciberativista, exilado no equador, fará uma videoconferência em São Paulo, anuncia o release.

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Parece que o cara publicou uns documentos secretos do governo norte-americano. Se voltar para os braços do Tio Sam, pegará prisão perpétua, no mínimo. O evento é promovido em parceria por uma editora e a Prefeitura. A imagem anexa do e-mail da Secretaria de Cultura aponta o quanto a iniciativa é inovadora e pertinente: a bandeira dos Estados unidos é estampada no esparadrapo em cruz que tapa a boca do palestrante famoso. O exilado internacional. A administração fazendo sua parte no incremento do debate social. Olhem pra mim, sou um político comprometido. O livro promovido pela editora é uma coletânea de conversas entre ciberativistas. Pois é, existe ativismo online. Hoje, mais do que nunca. A tática é mais ou menos tomar a arma do adversário e bater nele com ela. Se a internet existe, e é usada como ferramenta de dominação, nada mais justo do que usar essa mesma internet como elemento de contra-ataque. É o que acontece, ou mais ou menos isso. Foi dito certa vez que as pessoas fazem, mesmo sem saberem como fazer. A internet é isso! Não importa como funciona o mecanismo de busca do Google, contanto que funcione. Se perdermos uma privacidadezinha aqui, outra ali, durante o processo, que seja. Um preço baixo a se pagar pelo progresso. Um mal necessário. O telefone toca e é meu chefe. “Teve um tiroteio na 2o DP”, diz ele. “Uma confusão dos diabos, com três mortes”, diz ele. Vai pra lá”, diz ele. Droga! Merda! Queria realmente ver essa parada da internet, mas tudo bem, nada vai tirar meu humor - 62 -


hoje, nem mesmo um triplo homicídio numa delegacia provinciana. Como dizem, quem não pauta, é pautado. Meu chefe chegou primeiro, ponto pra ele. Chafurdando o próprio excremento O caso do tiroteio na delegacia é o mais escatológico possível: Cidadãos comuns aguardam para realizar procedimentos de caráter policial. Boletins de Ocorrência, registros de perda, entre outros. Um homem, de capacete e vestido de preto, adentra a delegacia aos berros. Em pânico, uma pequena multidão busca abrigo nas áreas internas da DP. O escrivão se assusta, acha que é um ataque, e saca a arma. Dispara e atinge duas pessoas. Dois moradores da região. Um investigador ouve a confusão e entra na muvuca. Atira, sem querer, no colega escrivão. Cessado o frenesi, descobre-se: o indivíduo que invadiu a delegacia mascarado é policial. Ele fugia de assaltantes e parou ali buscando socorro. Uma cena ridícula que terminou em três mortes ridículas. Os assaltantes foram os únicos que saíram ilesos. Realizo a cobertura mal e parcamente, rápido, para voltar pra Sheila. Apanho aspas do delegado falando que não vai falar nada. Um ou outro espectador frio, que ouviu os tiros enquanto fritava ovo e se escondeu embaixo da mesa. A dona de casa fofoqueira que “já vinha alertando sobre o risco desta maledeta delegacia”. Finalizo a apuração com o saco do tamanho de uma jaca. Perco duas horas de minha vida nisso. Quero Sheila. Quero Sheila e tudo o que isso implica: casa, filhos, noivado, casamento, finais de semana em família, churrascos dominicais e promessas de amor eterno. - 63 -


Chega de trabalho, chega de redação, vou pra casa. Só existe uma coisa que quero e sei exatamente onde está. Passa das duas da tarde, então perdi o almoço na churrascaria com o pessoal do jornal. Isso também não tira o meu humor. Acendo um baseado, despreocupado, e sigo, pois a polícia está ocupada hoje, chafurdando o próprio excremento. Ele está lá nos fundos “Matei um cara!” é a primeira coisa que ouço de Sheila ao entrar. Deixo minha bolsa no chão e peço que ela repita. “Matei um cara, porra!”, repete ela. Minha interrogação permanece. “Um cara, eu matei...”, diz novamente Sheila, desabando no sofá e levando as mãos ao rosto. Me junto a ela e a abraço. Os soluços começam antes do choro. A afago. A afasto. Como assim, matou um cara? “Ele está lá nos fundos”, revela Sheila. O que um cara estava fazendo aqui? “Eu tive que fazer!” O que um cara estava fazendo aqui, com ela? Só a deixei sozinha por algumas horas, como pode ser... - 64 -


Mentirosa! Mentirosa! Mentirosa! “Tive que fazer!” Sheila trouxe um cara pra dentro de casa. “Foi inevitável” Sheila matou um cara que trouxe pra cá! Que desgraça! Vou para os fundos e olho o defunto. É o cara da foto, do candomblé. “A gente precisa se livrar do corpo!”, determina ela. Você transou com ele? “Quanto tempo leva pra um corpo começar a feder?” Depende do corpo. “Acho que ninguém viu ele entrar comigo. Certeza, ninguém viu.” Alguns corpos fedem mais. “Não podemos ser presos!” Alguns corpos nascem para feder... “Eu amo você!” Vamos enterrar embaixo do piso da lavanderia. Depois cimentamos por cima e acabou. “Eu amo você!” Eu também te amo, baby!

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Isso são vampiros A ideia de enterrar é ruim. Teríamos de destruir a lavanderia inteira... Gerar quilos de detritos, e depois ainda cimentar por cima... Seria um parto. Melhor serrar e espalhar os pedaços! Sheila o matara estrangulado e tive medo de perguntar como, mas há uma série de procedimentos e materiais necessários. “Não acho que seja ruim matar uma pessoa!”, diz, conformada. Precisarei de alguns metros de plástico e uns sacos de lixo. “Gente que não respeita os sentimentos dos outros...” Uma serra de arco. Acendo um cigarro. “Não acho mesmo! Tem quem merece!” Fita adesiva. Como é o nome daquela fita cinza? “Usurpadores que usam pessoas como mera via de lazer...” Vou ter que dessangrar o corpo! Preciso de uma corda e alguns baldes. “Às vezes o amor aparece, mas o destruímos antes de descobrir...” Não deve ser diferente do que se faz com um porco. “Relacionamentos são como isqueiros: bons enquanto ainda têm fogo. O problema é que normalmente os perdemos por aí, cheios de gás...” - 66 -


Apanho uma tesoura e corto as roupas. Raspo, escovo, corto tudo que é sujo. Aprendi isso em Dexter. “Seremos eternos. Lendas! Nunca morreremos.” Isso são vampiros, baby. Essa eu vi em Clube da Luta. Dou o cartão pra Sheila e a mando fazer as compras em lugares diferentes, para não levantar suspeita. Nunca entre com as sacolas da loja anterior na loja nova, aviso. Ela finalmente se cala e sai. Acho que estou achando demais Acordo mais cedo pra terminar o serviço antes de ir pro trabalho. Abandono a cabeça num terreno baldio. Claro, ela está devidamente embalada, assim como as outras quatorze partes, todas dispensadas em locais de pouca movimentação. Coube tudo em uma mala e uma mochila. Quinze foi o número de vezes que consegui dividir o corpo. Deve ser igual ao número de vezes que se pode dobrar um papel. Retalho em seis cortes de braço, incluindo as mãos, o antebraço e a parte do bíceps. As pernas são outros seis pacotes: pés, canelas e área do quadríceps. O tronco foi o mais difícil! Pensei em separar as costelas da coluna, criando quatro partes, ou seja, dois conjuntos de costelas, uma bacia e a coluna. Mas a coluna ficaria enorme! Uma cobra gigante e desajeitada; além do que, teria de serrar doze costelas de cada lado. Sheila sugeriu que serrasse entre elas, dividindo em três: um corte abaixo do esterno e um acima da bacia. Foi o que fiz. As vísceras couberam num saco que dispensei - 67 -


no lixo de um açougue que abate galinhas – ninguém sabe a diferença entre restos de bicho e de gente. Ficou genial! Chego ao jornal e há uma viatura em frente que quase me faz cagar nas calças. Me aproximo e eles dão a partida e saem. Estavam colhendo contribuições. Apanhando um dinheirinho nos estabelecimentos para garantir a segurança que deveriam prestar normalmente. Complementando o orçamento. Ganham muito pouco... Estão mal armados. Usam carros velhos e capengas. Até as fardas estão um fiasco. Parece que a estrutura física da polícia está consoante à ideológica: é um amontoado de velharias estúpidas e sem cabimento. Ouço meu nome sendo chamado da varanda da redação. É o fotógrafo. Ele faz sinal para que eu espere e corre pra dentro, dá a volta e desce. Aproveito e acendo um cigarro. “Vem comigo”, diz ele, seguindo pela calçada, bêbado, pra lá e pra cá. No carro, estacionado na rua lateral, o motorista está esperando. “Tem uma coletiva na Prefeitura”, avisa o fotógrafo. “Mandaram a gente pra lá”. Que seja. Partimos. No banco dianteiro, o fotógrafo abre um cantil e entorna um gole. Passa para trás. Recuso. É cedo pra caralho, digo. “Foda-se!”, retruca ele. Aceito. Penso no que já passei esta manhã e me sinto merecedor de um gole.

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“Estou virado”, informa o fotógrafo. “Voltei naquele puteiro ontem. Chapei o coco... Vai ter que me orientar nas fotos. Me coloca na frente do que precisarmos fotografar, e eu clico, beleza?” Passo o cantil para o motorista. A coletiva é no quarto andar. Pegamos o elevador e somos recebidos pelo assessor. Ele me entrega o release. “Santo André instala mais três câmeras de videomonitoramento” é o título. “Santo André acaba de instalar mais três câmeras de videomonitoramento na cidade. Os equipamentos estão localizados em pontos estratégicos que atendem demandas da população nos bairros Vila Metalúrgica, Camilópolis e Bangu, onde ainda há maior incidência de crimes”, assinala o texto. Minhas tripas dão um nó. O prefeito chega acompanhado do secretário de Segurança. Cumprimentos carinhosos e insinceros são empreendidos. Todos se sentam e a coletiva começa. “Quem pratica um delito não quer ser visto e preso. Com o aumento de nosso poder de fiscalização eletrônica, poderemos inibir a ação dos criminosos”, afirma o secretário. O prefeito concorda e parece um joão bobo, indo pra frente e pra trás enquanto consente. A babação termina e eu me antecipo às perguntas: Quanto tempo as imagens ficam arquivadas no provedor? “Ficam armazenadas por 30 dias, todas criptografadas, e só podem ser retiradas com ordem judicial. Após

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este período, elas são automaticamente apagadas pelo computador”, explica o secretário. Quais os critérios para a abordagem de um suspeito?, atropelo a pergunta de um colega. “Que ele seja suspeito”, graceja o secretário. Retribuo com um sorriso chocho. Ele continua: “a circulação sem sentido, sem motivação, chama a atenção. Você percebe que a pessoa está rodando sem destino definido, perdendo tempo, então, nesse caso, a guarda é alertada para ficar atenta”, complementa. Passo o olho na lista de ruas em que as câmeras estão instaladas. Está no release. Agora são 44 espalhadas pela cidade. Puxo pela memória e acho que não estive em nenhuma delas. Acho que não fui flagrado. Não abandonei nenhum resto de corpo frente a nenhuma câmera. Acho que estou seguro. Mas acho que estou achando demais... Todos riem De volta à Paris 20, durmo e a agonia vem me visitar em sonho. Estou na faculdade, na sala de aula, e a angústia paira sobre as carteiras vazias ao redor. Busco alívio na janela, que dá para um enorme jardim e, quando retorno, não há professor. É como se nunca tivesse tido. Sou puxado pela mão e caio num prédio corporativo. Portas de vidro. As reuniões parecem um filme mudo. Forço a entrada de uma das salas e os fundos dela dão num lugar lisérgico, com uma garrafa em proporções de monumento, esguichando vinho, igual a um chafariz. Uma garota se aproxima. Sei que a amo, mas não vejo seu rosto. Ela me beija, e sua boca tem gosto de bunda. Engasgo e tusso um catarro vermelho. Ela está amarrada, nua, em - 70 -


uma enorme roleta vertical, tal qual num jogo da televisão japonesa, girando. Atiro algumas facas. Uma plateia aparece. Todos riem. Subi sem chinelos Existe uma variedade relativamente pequena de lances que me acordam. Primeiro é a desidratação – uma secura mortal que tira o ar –, segundo, o nariz entupido, parecendo uma margarita de tanto pó remanescente – já tirei uns bons pedaços de cocaína da napa! Se fosse numa situação em que ainda suportasse drogas no organismo, que não pela madrugada, certamente esticaria e mandaria de novo. Nunca aconteceu. Por fim, o frio é mais um fator que me desperta. E foi o frio que me despertou. A cama fria. A cama vazia. O lado de Sheila vazio. Nenhum som. A janela deixa uma fresta de vento entrar que acerta minha canela. Esqueci essa fresta na janela ontem. Ponho os pés no chão e não tem chinelos. Subi sem chinelos. Saio e o corredor ainda está escuro. Volto e busco o celular. São cinco da manhã. Chamo por Sheila. Sem resposta. O som da minha voz na casa vazia, reverberando nos cantos, sumindo e mutacionando-se num silvo, me dá calafrios. Caminho com a sensação de alguém no calcanhar, acompanhando-me pelo cangote. Abraçando-me aos poucos, devagar, me envolvendo... Acendo a luz do banheiro e o stalker desaparece. Levanto a tampa e mijo. Mijo sem querer mijar, por costume. Levo a mão à descarga e - 71 -


recordo da falta d’água em São Paulo. Vou direto pra pia. O armarinho do espelho está aberto. Apanho uma aspirina e entorno com água da torneira. Jogo-a em meu rosto. Pego a toalha. Seco. Fecho o armarinho e reflito no espelho. Reflito no espelho e a palavra “Sheila” surge escrita em minha testa. Viro o rosto e a palavra vai para minha orelha direita, depois esquerda. Segue para a boca e de volta para a testa. Está escrita no espelho. Está escrita no espelho com batom vermelho. Sheila fica linda de batom vermelho. Está escrito no espelho com o batom vermelho dela: Fico com o disco do Pixinguinha,

adeus! Sheila :* <3

Através da lente amarela do meu Ray Ban Trocando em miúdos, guardo o que é Dela com a certeza de ter sido abandonado. O celular Dela sumiu e só dá caixa postal. Tiro da vista tudo que me lembre Ela. Cinzeiros, maços, copos... Conquisto a casa. Deixo apenas a mensagem no espelho. Um lembrete Dela. Ligo no trabalho e digo que estou doente. Uma gripe fodida. Não quero contaminar a redação. Eles fingem que entendem e eu que acredito. Sobreviverão sem mim. Tem grana numa gaveta. Arranjo uma ponta e saio. Através da lente amarela do meu Ray Ban, o dia parece feliz. Os fones de ouvido levam o som de um ukulele ao meu ouvido, suave, uma melodia carregada de esperança. “I used to thing that I could not go on. And life was nothing but an awful song...”, proclama a letra. - 72 -


Acendo a bagana em busca de apaziguar o coração. Sem sucesso. Ela... Ela está comigo ainda. Ela que é uma alma livre. Uma alma capaz de abandonar a tristeza e seguir em frente. Eu guardo raízes como uma sequoia gigante. Não quero nada das coisas, a não ser ficar diante delas, contemplando sem desejo, com a vontade amortecida. Isso não tem nada a ver com medo, como na paralisia, mas com conformismo, como na comodidade. Sou estático. Me vem uma vontade incontrolável de escrever uma carta. Vou a um bar e peço cerveja, papel e caneta. Ganho apenas dois deles e passo a redigir num guardanapo. “Amor, vivo num turbilhão desde que optei pela vibração da vaidade. Uma permanente colisão de grupos e conluios, um contínuo fluxo e refluxo de opiniões conflitantes. Tudo é absurdo, mas nada é chocante, porque todos se acostumam a tudo. Aqui o bom, o mau, o belo, o feio, a verdade, a virtude, têm uma existência apenas local e limitada. Começo a sentir a embriaguez a que essa vida agitada e tumultuosa me condena. Com tal quantidade de objetos desfilando diante de meus olhos, eu vou ficando aturdido. De todas as coisas que me atraem, nenhuma toca o meu coração, embora todas juntas perturbem meus sentimentos, de modo a fazer que eu esqueça o que sou. Não sei, a cada dia, o que vou amar no dia seguinte. Vejo apenas fantasmas que rondam meus olhos e desaparecem assim que os tento agarrar”. Assino: Saint-Preux. - 73 -


Quantas pessoas posso ser? Peço uma dose de vodca. Dobro o guardanapo e enfio no bolso. Minha bebida chega e uma Kombi estaciona em frente. Desce dela um pessoal esquisito. Bermudas xadrez, cabelos coloridos, verde, azul... Tatuagens. Óculos escuros. Pedem cerveja, quatro garrafas de uma vez para abastecer sete caras. Tomam o primeiro copo de uma talagada. É evidente que celebram. Brindam, gritam. São uma banda! Quando tive uma banda, não cheguei a isso. O ano era mil novecentos e guaraná de rolha. Eu e mais quatro judiávamos de nossos instrumentos e cordas vocais. O baixo sofria em minhas mãos. As músicas autorais expressavam exatamente o que éramos: moleques tentando entender o mundo por intermédio da raiva. Tínhamos uma ideologia própria, fundada nos limites de nosso círculo de amizades e conhecimento, e que funcionava perfeitamente pelo fato de não ter conteúdo algum e todos fingirem compreendê-la como se fosse um texto rígido. Chamávamos de A Brisa, e sempre que o incômodo surgia na galera, em qualquer situação, tal nome era evocado como lei. Uma lei justificada na ignorância de todos em relação a ela mesma. Uma personificação da fábula da roupa invisível do rei, que somente os inteligentes podiam ver. Ninguém da banda jamais assumiu que não via aquela roupa, e mal sabíamos que tantas outras vestes invisíveis viriam tomar o lugar desta no decorrer de nossas vidas separadas. Eu ainda carrego meus trajes ocultos. - 74 -


Tomo coragem e me aproximo dos Valas, como percebo ser o nome do conjunto, estampado em algumas camisetas num logotipo alegre: escrito em fonte Jokerman, envolto de estrelas, numa estrutura oval nas cores azul e amarelo. Abaixo, se vê caricaturas dos membros do grupo, com enormes cabeças e corpos insignificantes. Seria uma metáfora perfeita do culto à racionalidade, mas não é. Os garotos passam a tomar pinga. Pergunto o que comemoram. Eles têm um show em Montevidéu. Eu nunca estive no Uruguai... ***

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Publicado após os incidentes de Paris 20, no jornal Vitrine Andreese

Quem é o Jornalista? A conversa filosófica de Fawcett, apesar de teoricamente útil, me emputeceu. Quero me aprofundar no Jornalista de Santo André como cara (opa, isso soou meio estranho), quero sondar seu universo pessoal e ver seus lugares. Conhecer seus amigos, ter a impressão que tiveram. É isso que faço. Quase dá pra sentir pena! Na Chácara Pignatari, localizada no 2° Subdistrito da cidade, marco de me encontrar com um colega do Jornalista. Um motorista. Chego mais cedo que o combinado propositalmente para conversar com os funcionários do parque, descobrir se já o viram aqui antes, já que seu “diário” inclui uma passagem sobre o lugar: “Hoje, no parque, Jéssica passou com um carrinho de bebê. Ela não me reconheceu. Olhou assustada e fugiu. Acho que viu minha garrafa. Aquilo meio que foi chato, chato pra caralho pra mim, afinal, já fomos próximos em outro lugar, noutro tempo...” Um parque de merda! Vejo um senhor varrendo as folhas e me aproximo, mostro a foto do Jornalista. “Ele tava sempre aí”, conta o funcionário, “vinha de caderninho na mão,bebia e pitava uns cigarrinho fininho aí. Era maconha, tem uma baita cara de chibabeiro esse rapaz”, acrescenta.

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O motorista chega. Luiz Américo trabalhou incontáveis vezes ao lado do Jornalista que, segundo ele, obteve nesta época profundo conhecimento da cidade. “Nem sei quantas vezes sai em pauta com ele. Uma porrada, na verdade... Cinco anos trampando juntos, né... Rodamos essa cidade todinha e ensinei todos os caminhos e atalhos que conheço pra ele. Na boa, nunca saquei nada. Bom, é foda... É quem você menos espera, né! Igual naquele filme do Edward Norton com o Richard Gere, como é o nome mesmo? Esse filme é o melhor...”. Realmente, acho que posso entender a falta de esperança do Jornalista. O parque que frenquentara é um horror e a promessa de reforma ainda soa vaga. Seu trabalho: num jornal de bairro, cujo capital é 100% baseado na venda de anúncios - ou seja, quem manda é o cliente, que tem sempre razão. Sua vida amorosa: um desastre, como demonstraram os fatos recentes. Profissional regular Mais tarde, encontro o editor do Jornalista, Demetrius Carvalho, responsável pela contratação do mesmo. Sua descrição é sucinta, algo que alguém que não quer se comprometer diria: “Profissional regular, nada especial, mas sempre fez o que pedíamos. Um pouco irritadinho, sim, mas, de qualquer maneira, acho que ainda é cedo pra tirar qualquer conclusão. Você é macaco velho, Medeiros, sabe como são as coisas. A manchete vale um caminhão”, descreve.

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Por ali mesmo, na sede do jornal, abordo a diagramadora, Denise Luz, que levanta uma possibilidade arrepiante. “ Nunca, nunquinha mesmo que eu ia imaginar isso. Aqui, com a gente, sempre foi um cara tranquilo. Às vezes até trazia esfihinhas pro pessoal da redação... Ai credo, agora arrepia só de pensar... comer aquelas esfihinhas...” Estou de saída quando Gustavo Queiroz, fotógrafo da casa, corre e me aborda. “Ei cara”, diz ele, “me encontra mais tarde no Bolacha, descobri umas paradas que talvez te ajudem nessa matéria...”

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Par te 3

Tosco tem que ir tocando no caminho Passo na Paris 20 e pego a mala que me serve. Vou ao banheiro e apanho a escova de dentes. A mensagem Dela ainda está no espelho. A odeio por quase um segundo, tal qual o poeta sem ideologia, e depois a amo mais. Não tive as cores para lhe prender, nem as coisas. Ceguei no escuro do mundo, tentando me transformar no que a agradaria. Meus sonhos ruins não terão acalanto matutino. Os pelos, o gosto, tudo que não me deixa em paz... O som do aplicativo de conversa no celular, uma campainha discreta, que soa como se estivesse longe, ecoando, é quase um vício – Ela do outro lado. Sei que buscarei o aparelho no bolso quando ouvir pelas ruas, nas mãos alheias, o bendito estalido. Talvez nunca deixe de buscar, mesmo no silêncio. A Kombi da banda me aguarda em frente e a buzina berra, insistente, apressando aquele que reportará a viagem em troca da viagem. Os convenci de que sou um jornalista renomado. Sou na verdade um mentiroso. Fito o espelho novamente, a mensagem, com sensação de desamparo. Um enjoo na barriga, um engasgo. Imagino as marcas de outras mãos em suas coxas. A con- 79 -


versa na cama, narizes colados um no do outro, com as cabeças recostadas no travesseiro, olhos encontrados, beijos de selinho pela manhã, não serão meu privilégio. A buzina de novo. Acendo um cigarro. Desço as escadas. Admiro a sala. Acaricio o sofá e vejo marcas de sexo nele. Abandono o cigarro no cinzeiro. Saio e bato a porta atrás de mim, fazendo um calafrio percorrer minha espinha. Na Kombi, a banda está sorridente. O mundo está pronto pra eles. Está pronto pra mim. Mas eu estou pronto para o mundo? Embarco e partimos. Só quando já estamos saindo da cidade o empresário me explica a rota: de Santo André a Montevidéu, em três paradas. Uma apresentação em cada para levantar a verba. Curitiba, Florianópolis e Porto Alegre, respectivamente. Encontraríamos com algumas das outras bandas em alguns dos picos. Que outras bandas, questiono. O empresário leva a mão à cabeça e a bate contra a testa. “Não te falei? Será um puta festival de bandas de punk rock e hardcore em Montevidéu. Umas bandas grandes e tal... Mas a gente que é tosco, tem que ir tocando no caminho pra conseguir chegar. E tem gente tosca vindo de todo lado pra essa porra de festival. A galera se comunica pela internet e arma shows em conjunto, que dão mais grana e público. Essa trip vai dar uma baita história pra você, jornalista”. E assim, sou batizado: jornalista. Tenho uma identidade de grupo. Sou o Jornalista. - 80 -


Percorreríamos agora 419 quilômetros rumo à Curitiba, apertados entre instrumentos e equipamentos de som. Eu, o empresário, o guitarra/vocal, o batera e o baixista, estamos nos assentos traseiros, dois caras da equipe técnica vão à frente, revezando o volante. O empresário deve ter um pouco mais de trinta e cinco anos de idade. Sua cara me lembra um pouco a minha: barba preta, nariz protuberante, orelhas largas e queixo curto, cabelos ralos na frente e rebeldes atrás, óculos escuros ao dia e coloridos ao anoitecer. Logo saquei que já tinha passado por muitas barras. Ninguém se joga numa viagem de quase dois mil quilômetros numa Kombi sem a devida bagagem. O batera é o estereótipo perfeito do batera: Olhos fundos e cabeça raspada. Braços compridos e finos, coloridos por tatuagens que se estendem por todo seu tronco, preenchendo o peito e a barriga. Orelhas enormes, varadas, cada uma, por um alargador de 16 milímetros. Fuma maconha como se fosse um mantra, e, reza a lenda, foi o primeiro indivíduo da história a ter uma overdose de beck. Todos concordam que isso é só estória. O guitarra/vocal parece trazido diretamente de um tempo passado, perdido entre Seattle e a Califórnia. Cabelos pintados de roxo, óculos femininos enormes e arredondados, blusa de flanela e camiseta manufaturada por ele mesmo, com os dizeres “Viva La Vala”. Bermuda xadrez e um suspensório pendurado por pura estética. Fuma cigarros Camel, porque seu rock star morto preferido fumava essa marca. Está no nível de expoentes consagrados do alcoolismo, talvez superando alguns. - 81 -


O baixista tem um nariz mágico, um aspirador voraz, e isso parece incrível, pois é o mais corpulento do grupo, sempre acima dos dois dígitos de peso. De fato, parece mesmo é que ele navega entre as paixões dos companheiros: fuma com o batera, bebe com o guitarra e cheira com todo mundo. É o que chamo de “Copo Humano”: aquele ser sem o qual o grupo se dissiparia, igual a água sem um receptáculo. Você é do tipo que saca as pessoas, penso de mim, para mim mesmo. “Tem que ouvir nosso som”, decreta o empresário, enfiando fones nas minhas orelhas. “Se vai escrever sobre a gente, tem que ouvir a parada!”, desenvolve, passando para mim uma carteira com um tiro estendido em cima. Recebo a nota e mando. Um cheirador experiente sabe que a cocaína fica armazenada nas vias nasais por um período após a aspirada com o canudo. Os dentes dormentes ganham longevidade a cada nova fungada e, então, percebe-se que o nariz é bem esperto, reservando a carreira em parcelas para serem aproveitadas de acordo com a necessidade. É com uma fungada dessas, que respingam na garganta e dão ânsia, que começo a ouvir a música. A caixa metralha. Vocal, baixo e guitarra entram, juntos, no andamento. Um riff veloz e impiedoso, alternando as notas em tempos rápidos. Um wah-wah faz o chão e mantém o grupo circunscrito na métrica da melodia. A voz rouca do guitarrista anuncia: “Compram sua pobreza, não a sua opinião. Sua audiência, não a sua atenção...”. A bateria incita o breque. A letra continua: - 82 -


“Doses distorcidas de amor, vendem mais cerveja que o calor...”. A sensação é de um redemoinho sensorial, e sou tragado para uma fita de Möbius auditiva, me tirando e levando de volta ao mesmo ponto. O segundo ato se inicia: “Ostentação do que digamos, não precisamos e queremos...”. A segunda música começa devagar, som de ondas do mar, num tema dedilhado. “Eu corria através de você, com medo de me perder, na cidade da normalidade”, proclama a voz, suave, quase espectral. “Você corria através de mim, perdendo o seu medo enfim, e talvez a natalidade salve....” O enredo é conduzido delicadamente para o desfecho: “e todos irão convir, não andarei por aí, mais só...” Eu não teria dito melhor. Experimentar tudo e nunca ter nada Amarelo e preto são as cores da fachada do primeiro pico a se apresentar os Valas. Uma porta dupla, de uns dois metros de largura por três de altura, está ocupada por um gordão de rabo de cavalo e camiseta de heavy metal, que recolhe os ingressos. O empresário se aproxima dele, lhe fala ao ouvido e acena pra gente. Estamos liberados. Foram seis horas de viagem. O suficiente para ficar mais doido que o Bozo. O interior do local parece um galpão. As paredes foram cobertas com uma espuma que um dia deve ter sido líquida. Essas paradas são atiradas nas paredes por um canhão que parece um aspirador de pó gigante invertido. - 83 -


A ideia é isolar o som. Não funciona muito bem e até a música do DJ vaza pra fora – não fosse o fato de estar alocado numa rua estritamente industrial, certamente já teria sido lacrado por algum órgão municipal. O palco é passível de invasão e certamente, quando as bandas começarem a tocar, se converterá em trampolim para os moshes da molecada, na faixa dos vinte e poucos anos, que ocupa cada centímetro quadrado do salão. Seguimos direto para o camarim, carregando o equipamento. Sabe aqueles camarins repletos de frutas, com cabimento adequado para cada músico, com espelhos e mesas de comida? Não é o que temos. Quatro bandas dividem o mesmo espaço e pelos cantos vemos músicos afinando seus instrumentos, cordas vocais sendo aquecidas, baseados rolando de mão em mão. Somos recebidos com expansivos “aeeeee, caralho”, “a vala chegou!”, “agora fodeu...”. O empresário me pega pelo braço. “Cola aqui!”, diz ele, “vou te apresentar uma parada”. Seguimos pra fora do camarim, cruzamos o salão e damos numa escada, restrita por uma corrente de plástico. Transpomos o obstáculo facilmente e, galgando os degraus, chegamos ao piso superior. “Já experimentou heroína?”, indaga ele. Nunca! “Da hora! Tá a fim? É uma parada difícil de achar, consegui com uns caras que vieram de Amsterdã.” - 84 -


Pondero o risco, com tantos astros do rock mortos pela injeção, e aceito. “Maravilha”, comemora o empresário. “Eu trouxe seringas descartáveis, vamos sentar ali...” Quando a colher se aquece ao fogo do isqueiro, o pó branco se liquefaz. O nó do garrote no braço exerce pressão quando, esticado na extremidade, pelos dentes, revela as veias. A agulha é inserida devagar. Uma dor aguda e ligeira. Primeiro se puxa, misturando o sangue ao entorpecente, depois se injeta. O calor percorre meu braço e é como se um orgasmo ocorresse no corpo. “É como trepar com Deus”, define o empresário, deixando-se cair pra trás e deitando no chão. Faço o mesmo e o prazer me possui. Estou num ônibus que segue até deparar-se com uma rua inundada pela enchente. Ele pega o caminho alternativo, onde passa por um canteiro, beirando um precipício. Caímos. Nada acontece e chegamos ao destino. Estou com pessoas que não conheço. Seguimos por diversas ruas. Sou transportado para a casa de um artista famoso. É uma casa muito luxuosa. Muitas outras pessoas estão aqui. Vou ao banheiro e suas paredes são todas de vidro, dando visão do lado de fora ao sanitário masculino. Quero mijar, mas pessoas começam a passar enquanto estou tentando. Começo a menear os braços, para descobrir se o vidro somente me dá a visão de fora, ou se de fora é possível ver dentro; descubro que é. Sigo para um banheiro ao lado, mas é o banheiro feminino. Entro e existem centenas de abelhas lá. Eu fujo e acabo num barzinho. Estou fumando e jogo o cigarro no chão. Alguém me repreende. Uma banda se apresenta - 85 -


e é hora do intervalo, onde todos devem se retirar do bar. Quando saio, encontro pessoas jogando video game numa casa abandonada. A entrada da casa é extremamente complicada, e é necessário passar por parapeitos de prédios altos; escadas em ruínas... Me transformo no Batman e, junto do Coringa, desço do batmóvel e corro em direção a uma casa onde um crime aconteceu. Sua entrada está toda fodida. Uma das fechaduras foi arrombada e é possível ver a lingueta. Coringa desaparece e, quando abro a porta, só há neve e pessoas brincando. Uma bola de gelo voa em minha direção e me acerta o olho. Desperto e estou sozinho. Tento levantar, mas peso uma tonelada. Estou morto? Estou paralisado? Não! É o chão, gelado, que me deixou dormente. O empresário volta. “Hey, campeão, na boa?” Digo que não consigo me mexer. Ele vem e me coloca de pé. O sangue volta a circular. “A regra de ouro”, diz o empresário, apertando-me as bochechas com uma das mãos, encarando, “é experimentar tudo e nunca ter nada. Não esqueça que isso não deve se repetir, ou você acaba morto em uma banheira ou afogado no próprio vômito”. Sou liberto e levo um tapa no traseiro. Estou bem, como se não tivesse acontecido nada. Mas que beleza de droga! “Vamos descer, chapa! As bandas vão começar daqui a pouco e somos a segunda”

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O empresário mata seu uísque Encosto no balcão e peço cerveja. Uma garota se aproxima. Cabelos azuis, na altura do pescoço, muito lisos, cortados de maneira a deixá-los com aparência desgrenhada. Maquiagem pesada num rosto branco, com sombra e lápis preto nos olhos, verdes. Tatuagens saltam no decote providenciado pelo que parece ser um corpete, mas é para ser usado socialmente. Saia curta e meia arrastão preta. Botas longas e um salto-alto para disfarçar a estatura dos prováveis menos de 19 anos de idade. Chamam esse personagem de suicide girl. “Você está com os Valas!?”, pergunta ela, afirmando. Digo que sim, recebo a cerveja e ela um drink rosa. Vamos até uma área com sofá. Ela quer saber do empresário. Olho na direção dele, dialogando com uma gótica gostosa, e percebo: ele é desses comedores sortudos. Tem o pau dourado. A língua inquieta... A suicide girl veio por ele, e ele veio por si mesmo. Ela quer somente ele, e nada além dele; ele idem. O empresário observa de longe. Faz sinal para mim e pede que eu me aproxime. Atendo, pedindo licença para a suicide, que pareceu descontente por não ter sido ela o alvo do chamamento. “Essa mina é doida”, começa ele, envolvendo meu ombro com um dos braços. “Me persegue pra caralho... Se você comer ela e tirar ela do meu pé, vai ser um favor pessoal que me faz”, explana, oferecendo um aperto de mão, de maneira tão natural, que nem parece uma proposta absurda.

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A primeira banda encerra e se despede. O empresário mata seu uísque de uma talagada só. “É a gente agora, porra!”, diz, enxugando a boca com as costas da mão. “Vamos botar pra foder!”, brada, me segurando pelos ombros com ambas as mãos, sacudindo. Ele corre para trás do palco. A suicide girl volta. “Ele é uma figura, não acha?” E como... Não demora, o palco está livre e os instrumentos dos Valas preparados. As luzes se apagam e, quando acendem novamente, o empresário está no centro do palco, apoiado no tripé de microfone: “Dos confins andreenses da vala escura, trazemos para vossa apreciação a música etílica dos adoradores da loucura. A percepção aguçada dos lambedores de sapo... A disposição incessante dos canudeiros... Com vocês... VALAS!” O público urra! O filho da puta é um baita showman. Vende o peixe muito bem. A banda entra e a suicide girl me arrasta. “Vem”, diz ela, “já vi esse show um milhão de vezes!” É minha primeira vez, mas deixo pra lá...

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Avise seu amigo Se sou uma vingança, ou não, nem me importo... Aceito de bom grado seus lábios e os periféricos que o complementam. Servir de consolo não me traz constrangimento. A suicide enfia as mãos em minha calça e estou pronto. Desafivela meu cinto, abre minha calça, e se põe de joelhos. A cena de submissão traz o espelho da Paris 20 e Ela à minha cabeça. Meu pau ameaça ceder e mudo o foco. A suicide sabe o que faz, e o faz com destreza. Chupa enquanto masturba com uma das mãos e apara o saco com a outra, alternando numa massagem quase tântrica. O vai e vem de sua cabeça parece uma dança... Alerto sobre a iminente gozada e ela aumenta o ritmo. Meu cu se tenciona na medida para liberar a próstata e ejetar o esperma. Ela engole. Limpa os cantos da boca enquanto se levanta e anuncia, já caminhando de volta para dentro da casa: “Vou querer uma carona até Floripa. Avise seu amigo!” Que mundo é esse? A senha é 3584 Quando retorno, a banda está se despedindo. Perdi o show. Estão no camarim. “Vamos dormir na casa de um dos caras da banda de abertura, e sair pela manhã. Vamos pra lá daqui a pouco, assim que eu pegar nossa paga, e continuamos o rolê”, explica o empresário. “Pega o meu cartão e compra umas cervejas pra gente levar, a senha é 3584.” - 89 -


Conto sobre a suicide girl. Ele diz que é por minha conta e risco, mas não se opõe. “Leva se quiser. Só deixa claro que não vou pegar. Se você não trepar com ela, ela vai ter que se contentar com os caras do operacional”, declara, dando uma piscadela. Que mundo é esse? Várias carreiras estendidas Tóxica. Atmosfera tóxica é a melhor definição do interior da casa do cara da banda que nos dá abrigo. Fumaças variadas, indo do narguile ao mesclado de maconha e crack, se embaralham e é difícil discernir quais substâncias se está ou não ingerindo. Tem mais gente do que o necessário. Minhas mãos estão suando e gases se formam no intestino. Estou alerta há muito tempo... O dono da casa é um gordo enorme, de uns dois metros, barbado, cabelos compridos, na altura da cintura, ruivos. É como ver um viking. Ele me passa uma caixa de DVD com várias carreiras estendidas. “Regredimos para o estado animal, brow”, divaga o viking, “somos coletores, esperando a fruta cair da árvore. Olha o SUS! As pessoas imploram pra serem atendidas. Ficam a vida inteira numa fila invisível e, quando chega a vez delas – e se chega em tempo –, estancam em frente ao consultório, como se fosse um oráculo, reverenciando os médicos como quem reverencia um semideus. Aí, de repente, as portas se fecham e os doutores desaparecem. Se fosse num seriado gringo, veríamos eles fazendo uma ressuscitação ou alguma emergência - 90 -


complexa pra caralho. Mas, na verdade, a única ressuscitação que os putos estão fazendo é a deles mesmos, à base de café e biscoitos... Mas como vai condenar os caras? Uma burguesada acostumada a leite com pêra. Eles nem te olham na cara. Quando tenho que ir numa consulta dessas, invento que estou com uma dor no cu só pra mostrar o rabo e peidar nesses filhos da puta”. Concordo sem falar nada, tentando infectar meu interlocutor com silêncio. Não funciona. “Uma vez acordei com o braço direito paralisado. Não conseguia falar, só balbuciava, saca, brow?! Fui na porcaria do hospital e, quando cheguei, a parada tinha passado. Parecia um derrame, sei lá... Aí o viado do médico chega e me diz, num castelhano tosco, que devia ser uma zica sem explicação no meu sistema circulatório. Perguntou se eu fazia alguma atividade motora. Disse que toco guitarra. E essa foi a receita dele: ‘Isso, isso, toque la guitarra’”, explica o viking, tentando, sem sucesso, imitar o sotaque. “Pior que funcionou”, complementa, dando de ombros e entornando rum direto da garrafa na boca. De repente, o viking levanta, num pulo, agilidade difícil de se ver num ser tão grande. “Vem aqui, brow, tenho uma parada fina pra te apresentar”, explica ele, seguindo para a cozinha. Hemingway não curtia? “La Louche é o nome do ritual tradicional para se tomar absinto”, diz o viking, apanhando os ingredientes: uma - 91 -


garrafa verde e oblonga, dois copos, duas taças, duas colheres e açúcar. Ele me pede um isqueiro. “Em Paris, no século 19, os grandes poetas tomavam absinto. Eles chamavam de ‘Fada Verde’”. Ele põe o líquido verde em dois copos e me entrega um, com uma das colheres. “Coloca uma cara de absinto na taça, depois pega uma colherada de açúcar. O resto do absinto do copo, vai jogando aos poucos em cima do açúcar e pondo fogo, deixando cair na taça”, explica. “Rimbaud tomava isso, brow”, continua ele. “Verlaine também, e ele uma vez quase desceu o cacete na mulher por causa disso. Depois, largou ela e foi morar com o Rimbaud. Doidão, atirou com um revólver no pulso do amigo por que achou que os textos novos dele eram uma merda.” O fogo é azulado e ralo, quase invisível. “Van Gogh cortou a orelha porque estava chapado de absinto, brow. Ele ficou puto por que o Gauguin estava ignorando ele; pegou a navalha e começou a ameaçar o coitado. Acabou que cortou a própria orelha, embrulhou e deu de presente pra uma prostituta” O resultado do drink tem aparência leitosa. “Coloca gelo nisso aí e manda ver”, diz o viking. Viramos em uma talagada e reiniciamos o processo. “Hemingway também curtia absinto, mas, afinal, o que o Hemingway não curtia?”

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Sangue tem gosto de ferro Quando a baqueta ataca o prato, o som estridente atravessa o espaço/tempo e chega em mim como uma agulha no tímpano. A caixa é a segunda vítima e as cordas do contrabaixo resmungam ao fundo, acompanhando a velocidade ensandecida do bumbo. A guitarra faz parecer que um enxame de vespas se aproxima e as conversas tentam se ajustar ao ritmo irresponsável do hard core. Pessoas sacodem a cabeça em volta dos músicos da jam session improvisada com integrantes de várias bandas, na sala. O empresário berra ao microfone com um talento que irrita – é um puta vocalista... O viking batalha contra as seis cordas e as toca com tanta força que, creio, poderia estar tirando o mesmo som de um machado. É como ver um espancamento. O batera é o nosso batera e a suicide girl comanda o baixo. Ela arranjou com quem trepar, como previra o empresário; um cara do operacional da outra banda, tornando minha carona e participação irrelevantes para ela... Vertigens esverdeadas me tomam a visão. Perdi a conta de quantos absintos tomamos. O viking está ótimo. Deve ter algo a ver com a gordura corporal auxiliar na absorção do álcool. Dou por mim e estou atirado numa cadeira, escorado na mesa, na cozinha, bem mais distante da cena da banda do que pensei. Estou com a percepção escangalhada. “Sou tão ateu, que se um dia Jesus Cristo aparecesse na minha frente, eu procuraria antes um psiquiatra do - 93 -


que uma igreja”, diz o empresário ao microfone. Não peguei o contexto, mas a frase é interessante. “VAI, CARALHOOO!”, grita alguém. O viking introduz na guitarra. O empresário entra: “Amanheceu mais uma vez, é hora de acordar para vencer”. Sigo o conselho velado e tento me colocar em pé. Fracasso. Visualizo, distante, o banheiro. A porta está semiaberta. Minhas entranhas reviram e o vômito é iminente. Um sonho lúcido? Sou um onironauta! Faço força e é como se o corpo fosse movido pela alma, dois passos à frente. Vejo uma valsa sendo interpretada no lavabo... Lavabo! Lava rabo... Vou para o lava rabo. Tranco a porta antes de desabar ao lado da privada. O som da banda impede que percebam, mas minha cabeça racha o vaso sanitário quando bate nele enquanto caio. Com a bochecha no tapetinho, felizmente não há frio. Um filete vermelho escorre e me empapa a sobrancelha. Sangue tem gosto de ferro. Ferritina é uma proteína globular que se instala no fígado! Take your protein pills and put your helmet on. - 94 -


Contagem regressiva... Ground control? Ten... Ground control? Nine... For here am I sitting in a tin can... Eight... Sou um onironauta! Seven... Morfeu está comigo. Six... Oneiros o acompanha. Five... Major Tom, é você? Check ignition, and may God’s love be with you Four... Ground control? Three... You’ve really made the grade Two... The papers want to know whose shirts you wear One... Os jornais sempre querem saber... Zero... - 95 -


É comum alimentar a fantasia “Abra seus olhos.” “Abra seus olhos.” Quanto tempo se passou? “Abra os olhos, baby.” Meu sangue coagula em velocidade anormal, sempre coagulou. Tomo Aspirina por causa disso. Dizem que ajuda, mas nunca consultei um especialista... “Você é absolutamente perfeito, assim como é!” Aos dezesseis anos tive uma crise enquanto esperava o trem. Meus pulmões travaram. Tromboembolismo, é o nome. Se é na cabeça, é um AVC; no coração, um enfarte... Você começa a ficar azul, por causa da hipóxia, enquanto o ar se torna raro e sua respiração parece uma locomotiva. Chamam isso de taquipneia. O coração dispara e estamos taquicárdicos. Abro minha bolsa e apanho uma cartela dos abençoados comprimidos de ácido acetilsalicílico; talvez a melhor invenção da medicina, depois da penicilina. São facilmente destacáveis e eu realizo o procedimento seis vezes. Três gramas amargas mastigadas e engolidas. Isso salvou minha vida no passado. O fato de ter sangue da espessura de calda de chocolate correndo nas veias salvou minha vida hoje. “Eu salvei sua vida, baby...” Meu sangue se condensou antes da buceta que abri na cabeça providenciar um choque hipovolêmico. “Besteira, gato...” - 96 -


Apago mais uma vez, e é como morrer... Ombros de gigante atingem a porta e ela resiste. De novo, e ela resiste, uma solada chapada, e ela resiste. “Tem um trinco aí, caralho, abre essa porra”, urram do outro lado. Forço meus músculos mas eles estão na mesma onda de resistência da porta: inabaláveis. Será paralisia do sono? Um investimento em conjunto de três brutamontes surte efeito e o arrombamento é finalmente providenciado. Sei que são três porque o trio cai sobre mim ao fim do procedimento. Sou colocado na privada e o empresário joga água na minha cara. “Que é isso, campeão?!”, diz ele. “Tá doidão de morrer no meio da turnê?!” Quando a consciência se restabelece, o que pareceu alguns segundos foram algumas horas. Todos estão prontos pra partir. Estão parados na entrada do banheiro, olhando feito sonsos. Alguns estão putos por perderem tempo com um vagal que nem conhecem. A única certeza é a de que ainda estamos aqui por minha culpa. “Quer matar a gente do coração, porra?”, questiona o viking. Espero que não... Com ajuda, me coloco ereto. Parte das bandas já se foram, algumas nos encontrarão na próxima parada, outras não... A amizade que parecia perpétua, se converte, tal qual tudo na vida, num fenômeno passageiro que, por ingenuidade e estupidez da nossa parte – ou quem sabe por alguma pegadinha de nossa genealogia humana – achamos que durará pra sempre. Só os diamantes são eternos. - 97 -


“Por que você foi dar absinto pro nosso jornalista, caralho”, inquire o empresário ao viking, que dá de ombros. “Vai, mano”, continua ele, “se recompõe e vamos pra Kombi. Você morre lá. Temos umas quatro horas de estrada até Floripa!” Sou colocado na pia. Consigo me segurar e levo a cabeça ao filete de água que escorre da torneira. “Vamos carregar as paradas!”, decreta o empresário ao bando, expulsando-os da entrada do banheiro, “ele já está melhor...” Será que estou? Talvez não. Talvez a vida seja uma série de mortes, levando-nos sempre a um universo paralelo novo. Em outra realidade, sangrei até secar neste chão. Em outra, nunca estive nele. Em alguma versão, devo ser o presidente. Devo ser um criador de gado. Um domador de leões. Um travesti. Ou, quem sabe, eu seja, perdido no infinito das possibilidades, um cara feliz. A televisão está ligada e uma voz feminina está em evidência. É um desses programas de auditório que recebem convidados. “Ninguém devia se preocupar se o parceiro transa com outra pessoa”, diz a voz. “É comum alimentar a fantasia de que só controlando o outro há a garantia de não ser abandonado”, continua, “mas o amor é uma construção social. Em cada época se apresenta de uma forma. O amor romântico, que só entrou no casamento a partir do século 20, não é construído na relação com a pessoa real, que está ao lado, e sim com a que se inventa de acordo com as próprias necessidades”. - 98 -


Isso são vampiros, baby. “Acredito que, daqui a algumas décadas, menos pessoas estarão dispostas a se fechar numa relação a dois e se tornará comum ter relações estáveis com várias pessoas ao mesmo tempo”, insiste a voz. A TV é desligada. “Tá bem aí?”, pergunta, da sala, o empresário. Respondo que irei sobreviver. “Desce logo, só falta você.” Respiro. Respiro. Respiro. É um velho hábito... Busco a toalha e desenvergo. Coloco a espinha reta. Estou no espelho agora. Abro o armarinho, desfazendo o meu reflexo, e busco um enxaguante bucal. Não encontro nada nem parecido. Retorno o espelho à posição original e a hipóxia me toma. A taquipneia se estabelece e a taquicardia é inevitável: “Fico com o disco do Pixinguinha.” “Fico com o disco do Pixinguinha” está escrito no espelho e, refletindo nele, às minhas costas, lá está Ela de volta. Sheila.

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Mando uma mensagem Seguimos na Kombi e Sheila me segue. Naturalmente, ela só está ali pra mim. Só vive por intermédio de mim... “E isso não te deixa feliz?”, questiona ela. “Não é o que sempre quis, possuir todos os meus aspectos, trejeitos, sinapses e orifícios? Sugar de mim a vida que te falta, de supetão, sem esforço, sem luta...” Eu disse isso em algum momento, mais ou menos desse jeito... Aperto os olhos, até parecer que meus canais olfativos se fecharam, e volto a abrir, na esperança de fazer Sheila desaparecer, igual a um ponto ofuscado na visão, como quando olhamos para o sol. Ela sorri docemente. “Esses caras são uns nojentos, porque está viajando com eles?”, questiona. Tento a tática de ignorá-la. Uma vã esperança de que, assim, a alucinação se canse do alucinado e suma. Começo isso com a certeza de que falharei. O baseado chega em mim e recuso. Espanto geral. “O baque foi forte”, conclui o baixista, referindo-se ao meu episódio em Curitiba. Melhor limpar a mente. Arrumar a casa. Pôr ordem no galinheiro... “Trouxe uma parada pra você”, diz o empresário, pulando do banco para remexer a bagagem. Ele retorna com um notebook. - 100 -


UFA! Pensei que fosse mais heroína... “Usa minha internet”, fala, “temos um blog, e você pode ir atualizando. Já tem umas paradas boas pra você escrever sobre essa trip”. De fato. “Esse cara é um exibido medíocre!”, constata Sheila. “Ele está usando você. Seu trabalho vale mais do que isso...” Talvez isso seja uma fuga, baby, não um trabalho. “Tem umas fotos no celular que você pode usar”, continua o empresário. Agora ele está falando sozinho. Acesso o Facebook. Busco por Sheila... “E vai se preparando”, persiste ele, “em Floripa vamos tocar numa pista de skate...” Sheila ainda não me excluiu de seu grupo de amigos no Facebook. “Eu estou bem aqui, gato.” Mando uma mensagem. Não há resposta imediata. O céu dos ignorantes “Você curte samosa?”, questiona o empresário. Digo que nunca experimentei. “Mentira!”, retalia Sheila. “Fomos juntos comer, na vez que fomos ao cinema.” - 101 -


Samosa é uma espécie de pastelzinho indiano com recheio que parece mastigado. Acesso meu blog pessoal e releio a crônica referente ao dia do cinema com Sheila: A vida é boa, quando se goza com gozação – A trilha sonora jazzística ainda reverberava na mente dele e a imagem da garota surtia-lhe um efeito anestesiante. Entre ascendentes e luas, ouviu dizer que sua cobiça era fundamentada na vontade pura e simples – os astros lhe diziam que qualquer paixão o divertia, mas não podia ser, não com Ela... Entre mãos e bocas o filme terminava, e os risos soltos prometiam perenidade. “Já disse que você me faz sorrir?”, ele ouve sussurrado em seu cangote. Seu coração dispara e numa bitoca ele toma o pulso da amada buscando empate – ambos acelerados. Blue moon / You knew just what I was there for / You heard me saying a prayer for / Someone I realy could care for... Havia ali uma vida de promessas casuais, muitas sem tempo, sondagens inocentes e aproximativas... Um sofá, uma TV, um jantar e cumplicidades identificadas. Algumas lições aprendidas: jovens francesas podem te levar à loucura (quando associadas ao Xanax). Mais vale um homem que arranca o telefone da parede num acesso de raiva a um que em espasmos românticos lhe esconde a esposa. A felicidade pode estar num pedaço de pizza repartido (o qual jocosamente se disputa) e a amargura numa pretensão inatingível. “Eu mesma fiz isso comigo!”, constata a protagonista no decorrer de uma DR mais que merecida. Fica a preleção woodiana: A vida é boa, quando se goza com gozação... - 102 -


Antes, Sheila e eu comemos samosa. Beijos desajeitados por cima da mesa, mãos dadas sobre as bandejas. Promessas tácitas de possibilidades obscuras. Toda a beleza efêmera das atividades promissoras, toda a vontade como precursora do empírico. O céu dos ignorantes... Me vejo cedendo à loucura e percebo que nada sólido ocupa meu estômago desde que encontrei os caras da banda, a dezenas de quilômetros... Talvez Sheila esteja aqui por isso. Talvez meu mal seja fome! Samosa cai muito bem, aviso ao empresário. Sheila faz cara de emburrada e é tentador interagir. Suporto. São quase oito horas da noite e o restaurante é um fast food. “É a mesma rede que fomos em Sampa”, relembra Sheila. Peço um combinado de nome Beef Curry, composto por “saborosos cubos de carne acrescidos de cebola, curry, canela, leite de coco e demais temperos típicos indianos”, acompanhado de quatro unidades de samosa vegetariana. Em todos os casos, não sei bem o que são os “demais temperos típicos” e nem o conteúdo vegetariano do acompanhamento, mas que seja. Para beber, limonada. Todos pedem cerveja. “Você sabe que essa resistência é inútil, baby”, comenta minha alucinação. Entrego o cardápio ao garçom e fecho o pedido. - 103 -


Engolimos a comida rapidamente e temos que nos apresentar no hotel. O show será pela manhã. O cara que mantém o sonho ativo O empresário divide o quarto comigo. Eu o divido com ele e Sheila. “Em outros tempos”, começa o empresário, enquanto embaralha as cartas para nossa partida de tranca – o jogo mais besta da humanidade –, “trabalhei entregando panfletos no farol. Ganhava uma miséria. Pagava sapo com motorista ignorante, fechando o vidro, nem olhando na cara... Um dia, estava chovendo e o dono da oficina mecânica que me contratava para divulgar suas promoções falsas vem na maior cara de pau e diz: ‘já que não pode entregar o material, aproveite e limpe o banheiro; está um nojo’. Larguei os panfletos no chão, dei as costas e nunca mais voltei. Foi mais ou menos nessa época que comecei a acompanhar os caras da banda. O baixista trampa até hoje como bombeiro hidráulico. A empresa é de um tio dele ou algo do gênero e ele usa esse nome porque tem vergonha de dizer que é encanador. O batera tem um estúdio de tatuagem mequetrefe num bairro sujo e o guitarrista é entregador de pizza. Eu sou o cara que mantém o sonho ativo, e pra isso tiro os meus trocados em cada show que armo. Aqui, por exemplo, vai dar uma boa grana, já que é a prefeitura quem está bancando. É uma boa vida”. Ele bate e apanha o morto com a rapidez de um ladrão experiente. “Não há do que reclamar”, diz, acendendo um cigarro. “Viu como ele é um safado?”, cochicha Sheila. “Está explorando esses pobres coitados...” - 104 -


“Eu acabei na estrada porque sou orgulhoso e impaciente demais pra ficar parado”, desenvolve o empresário, “e você? O que quer despistar?” Meus demônios viajam comigo, digo, encarando Sheila. “Nosso demônio está enterrado em Santo André”, retruca ela. O empresário ri pelo nariz, dando de ombros, prestando atenção no jogo. “Boa resposta”, comenta ele, “mas não use esses chavões no blog. É um monte de bobagem e autopiedade, saca?!” Relaxa, respondo, guardo isso para os carteados chatos. “Sendo assim, seus problemas acabaram, campeão! Bati!”, diz, colocando as cartas na mesa. O puto está roubando. “Topa outra?”, pergunta. Declino. Estou um trapo, só quero tomar uma ducha e dormir. “Beleza”, responde, “fica de boas aí, vou dar uma chegada no bar. Amanhã saímos cedo”. Desabo na cama, sem banho.

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Oposição ao Figueiredo Florianópolis se chamou Desterro até 1894. Pessoas doentes eram abandonadas aqui, mas é de se esperar que todo tipo de indivíduo indesejado tenha sido mandado para cá. Deviam, oficialmente, tratar como um local decente para o acolhimento dos pouco afortunados, e, como as colônias de epiléticos na Europa do século 19, certamente foi concebida sob a estrutura da eugenia que, não demora, acaba calhando em ideias de esterilização e assassinato. O nome foi modificado após uma série de cagadas fundamentadas em um punhado de revoluções. O então presidente, recém-estabelecido, dá o próprio nome ao lugar. Nada mais apropriado: o nome Florianópolis tem origem no ego. São mais de 100 praias cercando os 430 quilômetros quadrados da ilha. Não vi nenhuma delas. Estou num bairro de casinhas coloridas, coladas umas nas outras. Deve ter nascido desta distribuição residencial específica a expressão vizinho de porta. Paramos numa praça chamada 15 de Novembro, para abastecer o cooler de cerveja antes de chegarmos à pista de skate do show. “Teve um quebra-pau fodido aqui uma vez”, diz o baixista, evocando uma erudição pouco cabível a ele. “Os estudantes entraram no cacete contra os militares. Acho que eram umas seis mil pessoas, se pans... A revolta tinha um nome relacionado a um dos meses do ano, mas sei lá qual...” “Novembrada”, complementa, Sheila, “1979, oposição ao Figueiredo!”, finaliza a alucinação convencida... - 106 -


Circunspectos por um close de seu rosto Half Pipe, Mini Ramp, Ollieair, Flip, Heelflip, Kickflip, Nouseflip, Varial... A cultura do skate é repleta de palavras em inglês. “Ele nasceu na Califórnia, baby, na década de 60. Foi um jeito de os surfistas praticarem nos períodos sem ondas. Colocaram rodinhas nos shapes e passaram a surfar em terra firme”, insiste Sheila, apelando para a intelectualidade latente de meu cérebro numa evidente estratégia para me fazer interagir. É lógico que o que ela sabe, só sabe porque eu sei, e vice-versa. Mas parece que ela tem acesso a pontos de meu subconsciente que eu não. Sou esperto o suficiente pra saber o quão atraente é isso. E se eu sei, ela sabe. Ignorar Sheila é como tentar parar de fumar, mas neste caso não posso reduzir as doses gradativamente até que elas se extingam, como diz o 0800 dos maços, é imprescindível cortar de uma vez. Acendo um cigarro para desbaratinar e vou para os bastidores, ter contato com gente de verdade. Um monólogo é desenrolado num dos camarins – elaborados como tendas, um verdadeiro acampamento de bandas. Não sei quem é o filósofo, mas sei que é o trompetista efeminado de uma banda de ska. O ponto de vista é interessante, sobre um caso de jogo de futebol... “Querem acabar com os problemas sociais por inanição transcendental”, afirma o trompetista, “como se o fato de dar as costas fosse suficientemente resolutivo ou - 107 -


eficaz. Cometem racismo num estádio, chamando o jogador negro de macaco. Uma gauchinha loira, que nunca viu a falta de um iogurte na geladeira. A solução imediata: prendam essa fascista maldita. Enjaulem a nazista fashion e deixem-na apodrecer, pois, assim, os demais fascistas malditos, os nazistas deslocados, por receio, se encapsularão em suas conchas, sumirão na neblina, serão sombras de uma ideia que, ainda oculta, cresce e se perpetua. Onde isso é progresso? Como podem chamar isso de desenvolvimento? Pra mim, o nome correto é negação. É como colocar um espantalho numa plantação de milho, ou enforcar os inimigos e deixá-los pendurados na entrada da cidade (forasteiros não são bem vindos!). É tudo baseado no medo da punição. Nesse sentido, realmente, um deus malvado e vingativo é do que necessita a humanidade. Necessita de cabrestos”. Passo por outra barraca na qual o pessoal do reggae fuma um baseado do tamanho de um salame. Adiante, os representantes do hevy metal chacoalham as cabeleiras em ensaio, mais preocupados com a performance do que com a música. Será um dia de varias etnias. Em nosso camarim, o empresário dá conselhos a uma garota de cabelos rosa. Pego o ditame já no fim: “Pense na imaginação como o logaritmo de busca do Google”, diz ele, segurando-a pela parte de trás do pescoço, aproximando-a de sua cabeça como se transmitisse a ideia via bluetooth, “se você busca sempre pela mesma coisa, seu histórico de procuras é sempre restrito e, com isso, as sugestões relacionadas são sempre as mesmas. Não é isso que está fazendo com a sua música? Buscan- 108 -


do sempre o mesmo e navegando entre as mesmas opções, amaldiçoando o que você mesma gera?”. A garota concorda, cabisbaixa. Ele a liberta, encaminhando-a para a saída da tenda. Percebo que se trata de união, mesmo que viajem separados. As bandas, dentro de seus mundos restritos e limitados, aprendem logo que devem se apoiar e transmitir o conhecimento adquirido. É uma condição de protetorado itinerante. Uma trupe circense composta por músicos, fãs e profissionais do ramo em geral. O isolamento, para esses indivíduos, é uma punição socrática. Antes tomar cicuta. Caravana é a palavra correta para descrever. Uma caravana caótica que se desprende e se reencontra de parada em parada. Se cruzam em postos de gasolina na estrada, trocam histórias e partem para destinos diferentes, com o mesmo objetivo. É uma campanha de guerra. É magnífico ver acontecer; o mais próximo que se pode chegar da mágica sem ceder ao truque. Mas me sinto um elemento estranho neste ninho. Vou prum canto e acesso a internet no notebook do empresário, com a internet do empresário. Abro o Facebook e Sheila não me respondeu. Onde estará? “Aqui, amor... já disse que amizade não chega nem perto de descrever o que temos?” Revejo suas antigas fotos. Numa, ela está num bar-café, sensualizando, batom vermelho, os olhos, semicerrados, circunspectos por um close de seu rosto ao lado de um balão de fala com os - 109 -


dizeres: “where’s my mind?”. Noutra, suas mãos estão encontradas com as de um sujeito. A imagem começa a se desfocar e estou de olhos fechados. Desligo o aparelho e tento meditar. Sem sucesso. Ligo novamente e não há mais conexão com a internet. Com quem ela está agora? “Com você, amor...” Respiro fundo... Apanho uma cerveja e me detenho antes de revogar os votos de sobriedade. Me arranjo com água. “A primeira banda vai entrar”, grita o empresário da entrada da tenda, só com a testa pra dentro. É hora do show. Pra noite entrar pelos fundos Quem abre o festival é a banda de ska do filósofo. Estou parado frente ao palco e minhas pernas bambeiam. É o viking, me acertando com seu joelho direito na traseira do meu esquerdo. Uma brincadeira idiota que já levou muita gente ao chão. “Melhorou, jornalista?”, pergunta. Estou sob controle. Um grupo de adolescentes se aproxima. Tietam o viking. Emitem gritinhos histéricos. Ele é famosinho. - 110 -


Autógrafos são dados e o grupo jovial parte saltitante. “É duro ser ilustre”, diz o viking. Concordo sem concordar. “Passa na nossa tenda depois, brow, vamos fumar um haxixe marroquino finíssimo”, revela, me dando um tapa no traseiro e saindo rumo ao backstage. Odeio isso – o tapa, não o fumo. “Pelo tamanho desse cara, deve ter uma pica monstruosa...”, provoca Sheila. Concentro-me no trabalho e passo a anotar observações num bloco de papel. Nada importante, afinal, não pretendo fazer muita firula neste blog, só o crucial. Trompetes gritam no palco e a guitarra faz tchec tchec tchec num compasso alucinado. Atrás de mim, um guri de pouco mais de quinze anos passa a mão na bunda de uma garota e começa a confusão. Bato em retirada e a briga é apartada por seguranças. Na entrada, visualizo uma comitiva política. O secretário de Cultura da cidade, pasta patrocinadora do evento, se pavoneia entre os eleitores, acompanhado de cupinchas e babadores de ovo. A cena é ridícula. Uns babacas caminhando entre seus párias achando que estão entre amigos. Faz parte do jogo abraçar as oportunidades, mas isso parece demais. Os sorrisos forçados surgem em efeito dominó por onde passa o político. Apertos de mão são praticamente arrancados dos jovens, que retribuem constrangidos. É pasmoso ver a cena, é como se o secretário caminhasse em outra realidade, num mundo no qual todos o amam e o bem é personificado em sua figura. Ele não deve ser imbecil a ponto de achar que isso é autêntico, mas na - 111 -


política aprende-se rapidamente que só as aparências valem, o resto é farofa. Uma lata voa surgida da multidão e acerta em cheio a testa do secretário. O sangue escorre e ele é cercado por guarda-costas. Sorrio. Aplausos irrompem acompanhados de uivos e vaias. A banda interrompe a apresentação e pede calma. O político é retirado às pressas e o que parece ser um agente da prefeitura sobe ao palco e pega o microfone. Dá uma ligeira lição de moral e ameaça parar o show se algo parecido voltar a acontecer. É escarnecido e percebe não ter poder sobre os espectadores. Não pode controlar a massa! Finaliza a fala com um tímido “vamos nos divertir, é para isso que estamos aqui, mas sem violência nem baderna”. A zombaria se amplia e a atitude coerente a fazer é tocar o barco. Vencido, o agente abandona o picadeiro e a banda retoma. Os demais espetáculos seguem sem nenhuma ocorrência digna de nota. O empresário, inclusive, se mostra pouco satisfeito com a banda. “Desanimado pra caralho, essa merda!”, define. Aproveito a discussão que se segue e vou para o camarim do viking. Talvez um haxixezinho não faça mal. “Claro que não, baby. Só vai ajudar. Você precisa ser um pouco menos tenso...” Sigo o conselho ao inverso, já que veio de uma alucinação. Paro num canto e escrevo psicograficamente. Esqueço das sheilas, das letras, das palavras, apenas escrevo. Esqueço das garrafas e escrevo. Esqueço da morte e escrevo. - 112 -


Só escrevo, enquanto a tarde dá passagem pra noite entrar pelos fundos. Ninguém merece Não durmo, não tomo banho, nem faço a barba. Só escrevo. Chamo isso de sangria, deixar as ideias saltarem da cabeça para o texto... Sou tomado por um vigor proficiente e pela manhã, quando partimos para Porto Alegre, rumo ao penúltimo show da turnê, tenho 68 páginas prontas e outras coisas para o blog. Conto minha história e percebo que Sheila se cala enquanto teclo. Passo a teclar sem parar. São seis horas para percorrer os 460 quilômetros até a capital gaúcha. Uma média de 20 palavras por minuto. Vezes 360 minutos, são 7.200 palavras. Não sou dos mais rápidos, mas dá pra se divertir... É melhor do que dormir e sonhar com os restos do cara da foto, espalhados em Santo André. Sonhar que eles aparecem magicamente. Magicamente quando se abre a porta do armário da cozinha pra pegar um copo. Quando se busca água na geladeira. No porta-malas... Cabeça, braços, pernas, tudo bem empacotado, muito bem escondido. Indetectável... “O blog tá bombando, mano”, diz o batera, acompanhando o número de acessos pelo celular. “Todo mundo sacou quem era aquela mina do boquete em Curitiba. FODA!”, diz o baixista. “Vários likes...”, complementa. A kombi inteira ri! - 113 -


Os caras do operacional, à frente, dividem a atenção entre o volante e meus escritos. Sou uma celebridade e o empresário finge que dorme. É uma tática. Já saquei. Ele se mantém alheio. Ataca cada integrante individualmente, mostrando-se amistoso, mas é neutro em grupo. Ele é o número um em todas as circunstâncias particulares. Cria uma intrigazinha aqui, outra ali, só para demarcar o território, mostrar o quão superior é e quanta sorte você tem por tê-lo como parceiro – ao mesmo tempo, faz parecer que você é o parceiro dele, e é aí que se cai na armadilha: quem é o melhor amigo de todos, não tem ninguém como melhor amigo. Continuo escrevendo. Escrevendo. Escrevendo. Escrevendo... O tempo voa e as coisas parecem navegar no lado de fora quando vistas da janela. O rádio passa a reproduzir uma banda que todos odeiam, vaia geral, eu sorrio e sigo. Escrevendo... Escrevendo... Escrevendo a décima terceira página e passando. Seguindo no embalo da estrada, ao som de uma banda que costuma ser apresentada ao público brasileiro pelo Fantástico. “Beutiful Day...”, grita o cara da voz boa pelo alto-falante. - 114 -


Escrevo sobre ele. si.

Ele é tão feliz com sua benevolência. Tão seguro de Feliz, feliz, feliz... “O amor é uma flor”, diz a tradução.

“Você está na estrada, mas não tem nenhum destino”, continua. Escrevo sobre isso. “Você está na lama, no labirinto da imaginação dela”, continua. Escrevo sobre... Escrevo sobre amor, sobre abandono, sobre a sorte de não nascer na merda... Mas paro. Na metade da décima quarta página, paro. Situações inevitáveis te fazem parar. Tudo para quando sé é refreado pela colisão abrupta contra um caminhão carregado de sapatos. Quando se é chutado para fora da pista, esmagado. Ninguém merece morrer ouvindo U2, mas a vida não é nada justa... O colapso de toda a estrutura do veículo O enorme monstro metálico perde a rabeira à frente na tentativa débil de entrar numa curva fechada a 110 por hora. A segunda debilidade parte do motorista de nossa kombi, desatento, torcendo o volante na direção oposta e nos jogando direto entre a cabine e a caçamba. - 115 -


O impacto, que nasce na lateral, se desloca ascendente e configura o colapso de toda a estrutura do veículo. Dentro, não vejo a vida passando diante de mim. É rápido pra caralho e de repente... BAM! Nada mais está como antes. Me vem o cara da foto de Sheila à mente quando vejo uma haste da estrutura metálica do banco dianteiro atravessada no ombro do baixista. Sheila sumiu. O empresário está estirado na pista e não posso me mover. Não vejo o guitarra nem o batera, mas ouço gritos... Os motoristas já eram, eu acho... Levanto um dos braços e ainda seguro o laptop. Economizo forças pra isso... Sobrevive o que eu menos gostava Das sete pessoas na kombi, duas estão vivas, contando comigo. Saio praticamente ileso do acidente. A enfermeira diz que foi um milagre. “Só umas escoriações e quebrados superficiais”, diz ela. Acho que a diferença entre o milagre e a tragédia é o acaso. Foi uma tragédia para o baixista. Uma tragédia para o batera. Uma tragédia para o guitarra. - 116 -


Uma tragédia para um dos motoristas e uma tragédia para o empresário. Sobrevive o que eu menos gostava. É horrível de se dizer, mas é a verdade. Todos se vão e só me sobra um laptop, roupas esfarrapadas e um companheiro de acidente com o qual jamais trocara uma única palavra. Que milagre é esse? Ouço com a passividade de um eunuco Não sei quantos dias fico internado, mas saio numa sexta-feira. Estou sozinho. Totalmente sozinho. Sheila morreu no acidente. Mentiroso! Ela está viva no laptop. Sim, agora o laptop é meu... Sheila não me respondeu no Facebook, mas suas fotos continuam na rede. É uma angústia inevitável. Sorrisos dela. Ela de batom vermelho. Ela sexy... Penso no que faria caso ela me ligasse. “Vem me ver?”, ela diria. - 117 -


E eu correria, como um cachorro. De repente, sou seu animal de estimação, provendo carinho como acessório. Um amor amigável, a escolha segura que possibilita toda sorte de aventuras periféricas. Me torno o aparelho que pode ser guardado e retirado da caixa quando se quer, que nunca reclama, apenas liga e funciona; e isso é o que se espera dele, até quebrar. Ela pode trepar o quanto e com quem quiser. Ter o sexo mais animal imaginável e, depois, buscar abrigo em outra modalidade – o indivíduo provisório, para dar as mãos e conversar; o castrado sensível, dedicado (o palerma que espera no portão a mulher terminar de transar com o entregador, pois sabe que ela é feliz assim – assim como sabe que não pode satisfazê-la plenamente de maneira nenhuma; ninguém pode). Minha droga, e não existe mais ninguém ao redor. Nenhum encanto. Nada. Só outro vício pra se reabilitar. “Seu amigo tem namorada?”, pergunta Sheila a alguém, num canto remoto de minha memória. Ouço com a passividade de um eunuco. “É casado!”, responde alguém, deixando, após uma pausa na fala, claro que isso não seria empecilho, frente à oportunidade adequada. Fica evidente que ele aplica esta regra a si mesmo, em relação a ela. Alguém se despede. Apanhamos o metrô. Voltamos pra casa. Minha cabeça parece um balão de gás hélio. - 118 -


É imperativo caminhar. Na cama, tomo uísque e adormeço. Ela se comunica com outros pelo celular. Sou um cão, estático, frente à porta, esperando o dono chegar, sonhando com os restos. Alguns calcanhares pisados adiante Testo o cartão de crédito do empresário, que acabou ficando comigo, e ele ainda funciona. 3584 é a senha, ele me disse. Confiança é um mal lamentável. Compro cigarros e um isqueiro, num posto de gasolina. Convenço o frentista a passar uma grana a mais e me voltar dinheiro, em troca de uma comissão gorda. Um saque não autorizado remunerado. A vida não existiria sem o mercado paralelo... Porto Alegre me lembra um pouco Santo André. O mesmo script social, a mesma alienação, a mesma indiferença... “Porque você não consegue andar em linha reta?”, questionou Sheila certa vez, tirando sarro por eu andar trombando nas pessoas. Sei lá, ando em zigue-zague. Vai ser útil no dia em que tentarem me balear. Estarei preparado, você não, retruquei, no mesmo tom. Volto ao presente. Alguns calcanhares pisados e caras feias adiante encontro um ponto de táxi. - 119 -


Quero um shopping, com lojas, cores e sabores. É hora de me restabelecer. Três camisetas pretas, uma jaqueta, três calças jeans, um jogo de cinco cuecas, cinco pares de meia, um óculos escuro e um chapéu confiável. Um par de sapatos de trilha, para durar... Disponho parte disso numa mala nova. É uma conta e tanto que nunca encontrará o pagamento. Tento consultar o saldo num caixa eletrônico, mas ele solicita uma senha diferente, de letras... Sacar está fora de cogitação. Preciso torrar o cartão em compras. O shopping possui mercado anexo e decido adquirir provisões. Embutidos são sempre uma boa opção e escolho salame e um queijo doido. Arranjo umas bolachas recheadas e suco de laranja. Compro uma faquinha e pão. Barbeador descartável e tesoura. O cartão funciona. Apanho um novo táxi. Acho um hotel. O cartão cobre a pernoite e emperra a partir de então. Encho a banheira e fico enrugando Pela manhã, não posso voltar a recepção e passar mais contas no hotel usando um cartão com outro nome. Seria pedir para se foder. Olá, estou usando o cartão do cara que morreu num acidente de carro comigo, mas ele estourou. Posso passar o meu agora? Deve haver algum crédito... Sem chance! Levanto cedo e inspeciono o quarto. Nada de Sheila. Encho a banheira e fico enrugando. Deixo a barba de molho e, quando está bem cozida, a extirpo. Coloco roupas novas e arrasto a mala para o mundo. - 120 -


Sábado e estou no centro de uma cidade desconhecida. Sem drama, na verdade, isso é parte do charme. A incógnita atraente das possibilidades. Uma confiança incerta e despreocupada que, por fim, é mais bem vinda que a sabedoria deslocada. São coisas boas, eu acho. Passo numa banca e compro jornais. Peço os que são produzidos nas redondezas. Repito a operação em outras quatro bancas e são quase dez da manhã quando paro numa lanchonete com oito exemplares diferentes. Escolho a mesa e me sento. Solicito o cardápio. Talvez procure emprego por aqui! Os lanches que levam queijo tem a palavra “xis” escrita na frente. Peço um “xis coração de galinha”, por indicação da atendente, cuja definição para o sanduíche foi “tri bom, tchê”. Ela traz um copo com gelo e encho com o que sobrara de meu suco de laranja. Folheio os jornais. As notícias são as mesmas do jornal no qual eu trabalhava, com personagens diferentes. “Casa noturna é interditada pela quarta vez em Porto Alegre”, “Conheça os animais de estimação do Acampamento Farroupilha”, “Abertas as inscrições para o vestibular da UFRGS”, “prefeito faz isso”, “secretário inaugura aquilo...” Vem um calafrio ao pensar em escrever essa papagaiada novamente, mas quero me restabelecer. Atualizo minhas memórias no notebook, acrescento tudo até agora. - 121 -


Meu lanche chega e pergunto para a atendente qual jornal ela costuma ler. Responde que “nenhum”, se informa pelo “Face, Twiter...” Pois é... A profissão de jornalista está falida. Segundo pesquisa, os jovens de até 19 anos costumam buscar mais informações com professores do que nos jornais impressos. É a pura verdade, e olha que o “buscar informação com professores” estava lá pela casa dos 2%. Uma vergonha para a categoria jornalística, que, em relação às redes sociais, é considerada tão obsoleta quanto o mimeógrafo. Existe a ilusão de a notícia ser o fato imediato, dependendo apenas de agentes para reproduzi-lo, independentemente da forma utilizada e do método. Assim, não há diferença entre uma peça jornalística de peso e a foto de um suposto estuprador divulgada na internet com os dizeres “maníaco sexual faz mais uma vítima”. Na maioria das vezes, nem o maníaco nem a vítima existem. Dane-se... para que apurar a informação? Melhor alastrar o mais rápido possível. Não sei se, de fato, as pessoas compartilham esse conteúdo com real sentimento de cidadania (o que é uma idiotice), ou se querem apenas fazer parte da corrente. Nem me importa saber. É uma época muito triste, na qual o jornalismo regrediu para sua transfiguração mais medonha: a fofoca. “Tu é paulista?”, pergunta a atendente. Da província de Santo André, digo. Ela conhece Santo André. Você conhece Santo André? “Todo mundo conhece Santo André.” Todo mundo? - 122 -


“Ora se não, tchê!” Então fico sabendo: Santo André apareceu no Jornal Nacional, com Bonner. Foi perscrutado na voz de Marcelo Rezende, na Record. Elucubrado e invadido, por Datena... “‘O Maníaco da Cabeça’ atacou lá”, explica a atendente. “Acharam uma cabeça. Acho que tenho o jornal com a reconstituição do rosto da guria que ele pegou, espera aí...” Guria? “Parece que a brigada de lá tá analisando as câmeras”, grita a atendente de trás do balcão, buscando a notícia. “Aqui, ó, até que era jeitosa a moça!” Agora sim, sinto o frio que devia ter sentido no acidente. Sinto o tempo devagar. A vida passar diante dos olhos. Slow motion e preparar para desencarnar. Contagem regressiva. Quatro... Três... Dois... Um... Sheila é a moça reconstituída no jornal. Sheila está morta! *** - 123 -


Publicado após os incidentes de Paris 20, no jornal Vitrine Andreense

Robsbaum Trilha? Encontro Queiroz, o fotógrafo, no bar do Bolacha, bem ao lado da delegacia de homicídios da cidade. Chego e o puto já está bêbado. “Meu editor não quer publicar nada relacionado”, diz ele, com bafo, “e como não fui convocado pra nenhum interrogatório, prefiro passar essa bola pra algum colega”. Ele me entrega um envelope. “Anotei no verso o link de onde a imagem está na internet “, explica Queiroz. A foto retrata o que parece ser o público de um show. “Que porra é essa, Queiroz?”, pergunto. Ele aponta um rosto na multidão. “Acho que esse cara aqui é ele. Como estão chamando ele mesmo? Esse show foi em Florianópolis, numa pista de skate, algumas semanas atrás.” “E que porra ele estava fazendo em Floripa, fugindo?” “Sei lá, dá seus pulo aí e descobre. Eu lavo minhas mãos dessa parada”. Morte e ressurreição Queiroz gosta de música e acompanhar blogs de bandas independentes o levaram ao que poderia ser uma pista. Um indicação de por onde andou o Jornalista. A foto foi feita durante um show patrocinado pela Prefeitura de Florianópolis. Entro em contato, mas a cooperação é restrita. “Não temos qualquer declaração a fazer - 124 -


sobre essa suposta ‘aparição’. Todas as informações sobre o evento estão disponíveis para consulta pública em nosso portal”, informa a assessoria de imprensa por e-mail, após me driblarem por telefone. A foto faz parte de um festival com oito bandas. Destas, uma sofreu um acidente fatal. Consulto o noticiário local e descubro: houve dois sobreviventes: o que dirigia e um não-identificado. O que dirigia morreu posteriormente, por complicações numa ferida na perna. Azar do caralho... No blog da banda, chamada Valas, descubro artigos assinados por Robsbaum Trilha. Não existe qualquer outro trabalho deste profissional disponível online, nenhuma referência, nenhum registro, nada... No hospital que prestou atendimento para os Valas, entretanto, o nome figura novamente: Robsbaum Trilha sobreviveu ao acidente. Peço uma cópia da ficha médica e sou informado de que não é possível. Pergunto se ele deu entrada com algum documento ou se foi apenas um nome apresentado verbalmente. “Não podemos informar”, insistem. “Mas digamos que não havia nenhum documento...” Xaveco mais um pouco e convenço uma enfermeira a cooperar. Ela concorda em receber por e-mail a foto do Jornalista e, extraoficialmente, confirmar se é o homem que fora tratado na unidade. Envio e recebo de volta: “Está rodando um memorando ameaçando de demissão quem comentar sobre isso. Por favor, não me procure. Não abri a foto e não posso te responder. Deletei.” É um beco sem saída. Robsbaum Trilha é um fantasma... - 125 -



Par te 4

Todo mundo adora mistérios de assassinato Provavelmente, numa manhã como outra manhã qualquer, uma menina sai de casa rumo à escola. Cursa o ensino médio. No caminho, um carro a aborda. Um Escort vermelho. Faz perguntas indecifráveis e a menina se aproxima. É puxada para dentro do veículo e “se gritar eu rasgo a sua buceta com a faca vadia do caralho”. O automóvel se esconde. Ela não grita... O corpo robusto da menina esconde a gestação. Ela, por sua vez, não revela nada a ninguém. Por medo, por vergonha, por asco, por ira, por raiva, por nojo, por sentir-se desde então invadida em todas as circunspecções da palavra e da ação, se cala. Na trigésima quinta semana uma enxurrada lhe vaza pelas pernas. A menina se esconde num quintal de portão baixo, num jardim e, ali, dá a luz a um menino, se enxuga, pede perdão a deus e abandona a cria. Deus finge que se importa e perdoa. Pulmões ainda fracos impedem o recém-nascido de anunciar sua localização, sua fome e seu frio. Uma realidade totalmente alheia se apresenta a ele. Os sons e - 127 -


as sensações são ao mesmo tempo reveladores e aterrorizantes. O bebê morre provisoriamente, fechando os olhos. A noite chega e o portão se abre para um Passat branco, que embica na garagem. Os faróis acesos cruzam com o garoto abandonado, despertando-o. Mais tarde, os pais por providência repetem sem parar que foi um ato dos anjos ele ter chorado mais alto que o som do motor, com pulmões subdesenvolvidos. Foi pelas mãos de Deus que ele sobreviveu no frio daquele outono. Foi, por fim, uma bênção a um casal que jamais tivera filhos e já se aproximava da impossibilidade física de fazê-lo. O amor que o garoto recebe é inversamente proporcional ao amor com o qual fora concebido e a família o tem sem medo ou preconceito. O abandonado se converte de bebê em criança, e de criança em adolescente. Aprende brincadeiras de rua e prefere a pipa. Descobre, mais tarde, do que é feito um balão e se aplica em arquitetar o seu próprio. Nem as chamas de seus quatro primeiro protótipos, que não chegaram a sair do chão, nem as recomendações preocupadas de sua mãe o impediram de, na quinta tentativa, obter sucesso. O enorme monstro de papel e arames some no céu... Balões podem voar a aproximadamente cinco mil metros de altura. Nesse nível, as aeronaves operam em velocidades de 270 a 450 quilômetros por hora. No caso de uma colisão, a força do impacto pode chegar a 2,6 toneladas. - 128 -


Mas não este balão. Não o balão do rapaz abandonado. Não, pois este balão, de quase três metros de altura, percorre milhas e milhas para, em Santo André, aterrissar num terreno abandonado. Aterrissar num terreno abandonado e atrair uma horda de baloeiros, que invade sem pudor o local em busca do prêmio: papel vegetal queimado e uma bela tocha seminova. Este balão não poderia ter atingido um avião ou caído numa indústria petroquímica resultando em explosão e milhares de mortes, porque este balão tinha de cair justamente no terreno onde meu crime, ou parte dele, repousava, incólume, perfeito... Os baloeiros saem com um prêmio a mais. Um prêmio que interessa à polícia e à mídia. Todo mundo adora mistérios de assassinato e se deparar com uma cabeça decepada tem prestígio no panteão dos enigmas detetivescos. O notebook dá sinais de que a bateria está para acabar. Salvo os últimos textos relatando minha jornada e digito meu e-mail e senha no Facebook apenas para ver a tela apagar diante de mim, antes de consultar pelo nome que me persegue como uma alma penada. Antes de procurar por Sheila. O carregador do computador se perdeu no acidente. Quero quebrar o aparelho, atirá-lo pela janela do táxi que me conduz ao aeroporto Salgado Filho no qual, com sorte, conseguirei gastar meus últimos tostões em uma - 129 -


passagem pra São Paulo. Não posso esperar quatorze horas de viagem num ônibus para descobrir o que está havendo. Abandono o notebook no banco traseiro ao desembarcar. Se Sheila está morta, nada mais importa... Mendigos não têm lugar em aeroportos Há uma fila no guichê de passagens. Paro atrás de três engravatados fuinhas, uma moça de suntuosos cabelos black-power e uma senhora gorda incapaz de compreender a razão de sua cachorrinha Milu ter de ir junto com a bagagem. “Ela é da família”!, repete a velha. “Senhora”, diz a balconista, “tenho certeza de que seu animalzinho de estimação ficará bem no compartimento de carga, nossa companhia possui o aparato necessário para transformar a experiência de viagem dos animais e de seus donos em algo único e agradável”. Alguns murmúrios de lamentação e impaciência brotam na fila e a velha não quer entender. Quando Milu tem finalmente seu destino definido, apanho meu bilhete de embarque. Despacho a mala e sou orientado a aguardar o chamado para o voo, que ainda levará duas horas para ocorrer, se eu estiver com sorte. Encontro uma cadeira e sou Johnny Castaway, isolado numa ilha, sem comunicação com o mundo, enquanto estou rodeado por tablets e smartphones que não posso usar sem ser acusado de tentativa de furto. Tento voltar aos meus jornais, mas a mente não deixa – vejo a face de Sheila por trás dos meus olhos quando leio. Chacoalho a cabeça, desmanchando a imagem, e pessoas ao - 130 -


redor me olham como se eu fosse maluco; um maluco psicopata que pretende explodir o avião sem nenhum motivo aparente. Sorrio para os olhares e eles cessam, voltando para seus amigos eletrônicos. O xis coração de galinha não figura mais no estômago. Sei disso porque meu aparelho digestivo ronca sem parar. Num aeroporto, nada é barato. É como estar numa balada, sem a balada – os preços são os mesmos. Tiro do bolso o que sobrara do salame bancado pelo cartão do finado empresário e lhe arranco lascas. Levo-as a boca, uma a uma, e vejo alguns tablets e smartphones levantarem e sair. Acho que pareço um mendigo, e mendigos não têm lugar em aeroportos. O tempo passa. Penso no que pode ter acontecido com Sheila e as evidências derrubam minha pressão sanguínea. Sinto tontura, pânico e suo... Quando penso que vou morrer, meu voo é chamado para o portão de embarque. Quero ficar um pouco sozinha, você entende? Viajando pelo ar, o trajeto leva pouco mais de uma hora e meia. Ganhamos pãozinho com manteiga e suco de caixinha – pão de cachorro quente com manteiga, que eu odeio, e suco de uva, que abomino. O estômago para de reclamar. Com os últimos vinte reais que me sobram, apanho um ônibus para a rodoviária do Tietê e acesso o sistema ferroviário, que me leva ao Centro de Santo André. Mais - 131 -


um ônibus e desembarco a duas quadras da rua Paris. Ali está a nossa padaria. Ali está o nosso mercadinho. Ali está a nossa pizzaria. Deve ser quase uma hora da manhã. Ando rápido, com minha mala de rodinhas, fazendo-a saltar por cima de buracos e dropar guias. É um rali. Lá está o nosso caixa eletrônico da madrugada. Tenho seis reais e paro no nosso posto pra comprar cigarros – não quero encarar nenhuma realidade destruidora sem eles. A balconista assiste televisão no caixa e me reconhece. “Tá sumido, hein...” Digo que estive viajando a trabalho. Ela não responde. Cobra o cigarro. “Sua amiga também não tem aparecido, aconteceu alguma coisa?” Não aconteceu nada. “Você ficou sabendo daquele negócio da cabeça que acharam? Cruz, Credo... Vi no jornal. Disseram que iam reconstituir o rosto com computador, mas ainda não vi!” A TV anuncia um boletim especial. “Ó lá! Deve ser o caso da cabeça...” Pego o troco com pressa e corro. Corro até o pulmão parecer inflamado e o coração bater na garganta. Corro como se pudesse ultrapassar a mim mesmo e me deixar para trás, com toda a dor e o remorso. Corro até chegar à casa de Sheila. Nossa casa. - 132 -


Levo a mão ao bolso. Só se percebe o quanto a vida necessita de chaves quando o portão se impõe. As chaves já eram! As grades são baixas, mas possuem um sistema de fios eletrificados sobre elas. A rua está vazia, mas, dentro das casas, pessoas assistem TV comendo Sucrilhos. Ou amenizam a tristeza com uma garrafa, na cozinha. Sei lá que porra fazem, mas sinto que estão alertas. Minha cabeça lateja. Preciso entrar. Preciso ver. Preciso saber que caralho é que está acontecendo... Arremesso a mala contra a cerca elétrica com toda a força. Ela cede, sem energia, fazendo barulho, e luzes se acendem na vizinhança. Quero que se foda! Pulo o portão e no impulso da queda arrombo a porta, deslocando o ombro. O silêncio volta a reinar. A casa está como antes. Meu cigarro queimou no cinzeiro e deixou um pequeno rolo de cinzas, intacto. Ainda há marcas de esperma no sofá. Sou tomado por uma calma revigorante. Uma esperança sem sentido. A brisa gelada que entra pela porta atinge minha nuca, fazendo arrepiar os pelos e levando meu pensamento para outra época...

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Sheila assopra meu pescoço. Estamos de braços dados, enganchados um no outro, e ela me diz: “Quero fazer um mochilão no meio do ano.” “Sozinha.” Ela diz: “Não importa o que aconteça, vou de qualquer jeito...” Ela diz: “Vou dar esse rolê. É uma parada que preciso fazer por mim, saca?” Vejo ela transando com outros caras. Um batalhão em cada nova cidade. Ela exala sexo por onde passa. “Você sabe que vou querer sair com outras pessoas”, avisa. Acato. MENTIROSO. “Sempre atraio os piores sujeitos, e eles sempre se apaixonam. Não se apaixone, por favor...”, solicita. Acato. MENTIROSO. “Gosto de você, você gosta de mim. Vamos manter assim, uma amizade colorida...” Acato. MENTIROSO. Há uma discussão. Vozes e ânimos alterados. “Melhor você ir pra sua casa”, diz Sheila. “Quero ficar um pouco sozinha, você entende?”

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Abro os olhos e o que restou da porta bate atrás de mim, impulsionada pelo vento. “Foi nesse dia que você me matou”, anuncia Sheila, postada à minha frente, ensanguentada do acidente com a banda. Do acidente? “Me atacou, me enforcou, me estrangulou, picou e distribuiu os pedaços. MENTIRA. MENTIRA. MENTIRA. Esse foi o dia de nossa melhor transa, na esteira, com o céu, estrelas... foi a melhor trepada da minha vida... O outro dia foi um Dia Perfeito... Eu lembro deste dia. “Retalhou em quinze pedaços!” Isso são vampiros, baby... “Seis cortes de braço, seis pacotes de pernas, três cortes no tronco: um abaixo do esterno e um acima da bacia.” Fiz isso com o cara da foto, baby... “Não tem cara nenhum, nunca houve, aquela foto podia ser de qualquer um! Você não tinha como saber! Podia ser um amigo doente e eu pedindo ajuda, um primo... E se fosse um cara com quem eu quisesse trepar, ou casar, isso é problema exclusivamente meu, seu bosta. Você é patético! Você não tinha nada com a minha vida. Há quanto tempo nos conhecemos? Alguns meses? Você é ridículo... nunca se achou bom o suficiente pra ninguém, porque eu deveria achar?” - 135 -


Franzino e feio. Uma figura para a qual não se olha. Do qual nada se espera. Um inerte. Um tolo. Um igual... Mas ela via! Ela via e viu! Ela gostou. Eu a achei! Ela me achou! “Você é obcecado, não apaixonado. Isso não é amor. Você tem um monte de buracos na vida e tenta preencher com qualquer coisa. Eu sou essa coisa e, se não fosse eu, seria outra! Você foi a pior pessoa que poderia aparecer, e apareceu...” Sheila não está aqui, não está... Esse sou eu, falando comigo mesmo... Talvez seja um mal-entendido. Talvez esteja viva... Está na internet... Quem morreu não está na internet. Quem morreu foi o cara da foto. Ele não queria Sheila. Eu queria Sheila. Sheila o queria e o matou. Eu o escondi. Fim da história “Você lembra o que guardou de lembrança?”, pergunta ela. Ela o matou, e eu o escondi. “Lembra o que está na geladeira?”, pergunta. Bem escondido, um bom trabalho. - 136 -


“Sabe o que tirou de mim e guardou lá?”, pergunta. Tento acender a luz, mas a energia está cortada. “LEMBRA, INFELIZ?”, grita Sheila. “Lembra o que está na geladeira?” “O que guardou lá?” Vou à cozinha e sinto cheiro de podre. “Vem do freezer”, diz Sheila. “Você lembra?”, diz. “Algo que já fui eu”, diz. “Parte de mim”, diz. “Um souvenir”, seu maldito. Um SOUVENIR, SEU MONSTRO!!!”, berra, forçando os pulmões, com o ódio do mundo na voz. Então abro a geladeira e são os seios de Sheila que estão no congelador. Seus seios, apodrecidos sobre uma bandeja de inox. Vomito o pão com manteiga e o suco de uva do avião e estou tonto. Sheila não para de falar. “Era parte de mim! Você arrancou. Um souvenir? Você é doente, precisa de ajuda, é um monstro, uma maldição. Não pode viver com pessoas. Precisa morrer. Precisa morrer! Morrer! Morrer! Morrer! Morrer! - 137 -


Morrer! NÃO!!! Isso não é real! Sei que não é real! Posso provar. “Eles vão achar as outras partes, seu bosta, sabem de você, vão te pegar. Eles vêm aí!” Corro para as escadas e subo. Há sirenes na rua. Pela janela do quarto dá pra ver o giroflex de uma viatura refletindo no quintal dos fundos. Os vizinhos chamaram a polícia? A polícia esperava que eu voltasse? Como podem determinar a identidade de alguém só pela cabeça? Eles sabem de mim? “Claro que sabem, seu animal. Eu tenho ficha dentária, um monte de gente te viu comigo.” Sigo até o banheiro. Ouço um barulho no portão. Estou no corredor O portão é arrombado. Entro no banheiro, devagar, com cautela. Penso na mensagem de Sheila no espelho. Penso que é vida real. Penso que ela ainda é real. Penso que ela está viva. Passos de coturno na escada. Passos rápidos e altos de coturno. Giro o espelho na minha direção. “Na cabeça, mão na cabeça, PORRA!” - 138 -


O espelho está à minha frente. “Mão na cabeça e virado pra parede.” Espelho à frente. “Mão na cabeça!!!” Espelho à frente e não há nada. Nada de Sheila. Nunca houve. Só o meu reflexo, como sempre foi. Meu reflexo. “Mão na cabeça, PORRA!” Na cabeça. Na cabeça. Na cabeça. Só o reflexo. “Cabeça... Parede... Atiro...” Só há o meu reflexo, e ele não reflete nada além de dor. Deixo meu corpo cair em direção aos homens da lei. Penso em reencontrar Sheila. Penso no batom vermelho. Ela é cheia de informações... A vida será diferente agora. Estou famoso... Nos noticiários... Sem Sheila, isso é inútil! Mas Sheila está viva, só preciso encontrá-la. - 139 -


“Mão na cabeça, VERME!!!” Meus joelhos dobram e vão de encontro ao chão, sinto em câmera lenta, mas sei que não é. Aterriso provocando um barulho de baque seco. Gatilhos são pressionados. Balas voam sem asas e me encontram, me encontram e a dor só vai durar um instante. A dor dura apenas o tempo de um suspiro e me leva para um lugar melhor. Um lugar com Sheila.

FIM

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Posfácio

Jota Medeiros está em sua mesa, no Vitrine Andreense, matutando uma solução para o beco sem saída em que se colocara com a série em três partes sobre Paris 20 – delírios narcóticos de um jornalista em descontrole. Havia muita polêmica, muito mistério, e nenhum desfecho. O material conseguido: insuficiente. Um punhado de coisas aleatórias e sem sentido do computador do assassino, declarações insatisfatórias da especialista e uma suposta aparição em foto. O tempo passa e Robsbaum Trilha, apesar de ser uma pista interessante, com potencial, não rendera nada. O rasto se dissipara e Medeiros trabalha sob o peso de um ultimato: ou faz um desfecho brilhante pra essa palhaçada toda que publicou, ou rua. “Que cagada seguir essa história...”, pensa. O telefone toca. “Medeiros, deixaram um pacote pra você aqui na recepção. Está sem remetente.” Ele apanha o pacote. Pesado. Abre com cuidado - 141 -


para não rasgar o papel e, do interior, saca um laptop. A fricção faz com que um envelope caia da caixa. Há um nome escrito: “Sr. Medeiros”. Ele abre e encontra um bilhete: “Não vou revelar meu nome. Este aparelho foi deixado no banco do meu táxi por um passageiro. Meu guri o ligou para mim e achamos muitas páginas assinadas pelo nome que o senhor citou na sua reportagem (Robsbaum Trilha). Ele descreve coisas que parecem também bater com o que aconteceu aí em Santo André – meu filho tem acompanhado o assunto. Li algumas coisas e acho que se realmente for o mesmo caso, aí está a confissão completa desse rapaz, que, para mim, é um demônio. Por favor, mantenha qualquer informação que me ligue a isso em sigilo, não quero me envolver.” Medeiros liga o notebook e abre o arquivo intitulado “01”. A tela se ilumina: “Abro os olhos e a conta do banco está vazia, o cartão de crédito estourado, o cigarro acaba e do baseado só resta uma ponta, o encosto da cadeira se solta, o fio do carregador de celular arrebenta, olho para o lado e todas as roupas couberam numa mala...” ***

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Abril de 2017 - 3ª Edição


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