A Saga do Rivo

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EDUARDO

A SAGA DO

KAZE RIVO ILUSTRAÇÕES:

ANDRÉ TOBIAS

REDATORIA

GONZO -3-


K23 Kaze, Eduardo. A Saga do Rivo/ Eduardo Kaze, São Paulo: Redatoria Gonzo - 2018. 1. Reportagem. 2. Jornalismo Gonzo. I Tobias, André. II. Título. CDD 869.93

Índice para catálogo sistemático I. Jornalismo Gonzo

Capa: Redatoria Gonzo sobre ilustração de André Tobias.

1ª Edição (abril, 2018)

Redatoria Gonzo Rua Paris, 20 Vila Metalúrgica – Santo André – SP cep 09220-040 (11) 4996 1362


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ---------------------------------------------- 7 A SAGA DO RIVO -------------------------------------------- 11 RELATOS DO TESÃO ADOLESCENTE --------------------- 52 MEDO E DELÍRIO EM ALTO MAR -------------------------- 58 ONDE OS FRACOS NÃO TÊM VOZ! --------------------- --64

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APRESENTAÇÃO

De acordo com Stephen King em seu livro Sobre a Escrita, certa vez um amigo foi visitar o escritor James Joyce (1882-1941) – lendário por sua meticulosidade - e “encontrou o grande homem tombado sobre a escrivaninha, em uma postura de profundo desespero. - James, o que aconteceu – perguntou o amigo. – É o trabalho? Joyce assentiu sem ao menos levantar a cabeça para olhar o outro. É claro que era o trabalho; não era sempre? - Quantas palavras você escreveu hoje? - Insistiu o homem. Joyce (ainda desesperado, ainda com a cabeça apoiada na mesa): - Sete. - Sete? Mas, James... isso é bom. Pelo menos para você! - É – respondeu Joyce, finalmente olhando para cima. – Acho que sim... mas ainda não sei em que ordem elas ficam!” Certamente um mito, a história de Joyce retrata, entrelinhas, a dor de escrever. Escrever advém de dúvidas e frustrações que só encontram escape nas palavras. “A palavra é -7-


minha quarta dimensão”, disse Clarice Lispector em Água Viva. Escrever é fuga de si, para si mesmo. É autoterapia desgovernada. Expurgo necessário aos que captam mais do que são capazes de armazenar. Outrossim, escrever é, aliado à agonia, ofício de autogratificação. Masturbação intelectual que, segundo Rosa Montero, escritora espanhola contemporânea, é algo amoroso. “De fato, escrever romances é a coisa mais parecida com apaixonar-se que já encontrei (ou melhor, a única parecida), com apreciável vantagem de que, na escrita, não se precisa de colaboração de outra pessoa”. De um jeito, ou de outro, escrever é fazer gozar – em masoquismo ou carícias – o ego. Talvez sob influência desta necessidade egocêntrica Hunter Thompson, em 1971, publicou o texto Medo e Delírio em Las Vegas, na revista Rolling Stone, fundando o que viria a ser chamado de Gonzo Jornalismo e rompendo definitivamente a fronteira entre o jornalista e seu relato. Tornou-se personagem das reportagens e aliou, a isso, imaginação e liberdade literária. Que se dane a verdade quando ela estraga uma boa história – poderia ter dito, mas nunca disse. Da minha parte, sempre ponderei não prestar qualquer jornalista que não é, em essência, escritor: quem não sabe inventar uma boa história jamais reconhecerá uma. Assim seja. A série de reportagens desta publicação seguem tal linha: Gonzo Jornalismo em sua essência, isento de muita reconsideração dos fatos ou molde – quando possível, nem revise. Deixe aflorar em modo clariciano, “tentando captar a quarta dimensão do instante-já que de tão fugidio -8-


não é mais porque agora tornou-se um novo instante-já que também não é mais”. São verdades quando se tratam de dados, fontes e locais, mas também fruto de imaginação – portanto exageros cuja verdade foi incapaz de estragar. “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”, disse Lispector. Estamos no mesmo barco e muitas dúvidas se levantam neste livro - e a função da escrita - inclusive desta - é esse mesmo. Então deu certo. Boa leitura!

KZ

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A SAGA DO RIVO PARTE 1 São quase quatro da tarde quando encontro Valentina (nome fictício) e seguimos, de carro, para um posto de Emergência Psiquiátrica em São Bernardo do Campo. Vou pela ponte Lions e quero saber a razão dela decidir se afastar do trabalho alegando problemas psicológicos - a consulta seria pra isso. “A diretora está querendo me foder!”, diz ela. Valentina tem 32 anos e trabalha como assistente pedagógica em uma das inúmeras - mas ainda insuficientes - creches do ABC paulista. O expediente, das 9h às 18h, é dividido entre atividades que vão de trocar fraldas a aplicação de insulina em criança diabética - procedimento este realizado sem qualquer treinamento, afirma ela. O ambiente predominantemente feminino é rígido, de horários controlados e supervisão constante. “A diretora usa o pessoal da limpeza, que é inclusive de uma - 11 -


empresa terceirizada, como informante”, revela Valentina que, mais de uma vez, se viu perseguida na unidade, mantida pela Prefeitura. “Ela me perguntou o que eu tanto fazia no banheiro.. Porra, falou até que eu sujava as portas dos sanitários apoiando o pé nelas. Até no jeito que eu cago ela quis interferir. Mas isso é o de menos! Tem funcionária que já urinou sangue e ela ainda questionou a saída da coitada pra ir ao médico”, conta. Descolar uma licença que mantivesse Valentina afastada do trabalho por tempo suficiente para acabar o ano e ela poder ser transferida de creche, eis o plano. Mas o embuste não era 100% falso, de fato, Valentina sofria. A primeira baixa foi o amor pela profissão. “Era o ponto alto do meu dia, estar com as crianças e tal... A perseguição que essa mulher realiza mata a vontade estar no lugar”, descreve. Assédio moral é o nome disso e, de acordo com reportagem publicada pelo portal do G1 em 15 de junho deste ano, 52% de um total de 4,9 mil entrevistados em pesquisa afirmou já ter passado por situação semelhante. Apenas 12,5% denunciaram o abuso. Valentina está na minoria e o plano de saída seguiu na paralela. Estacionamos em frente a um imóvel que, se me perguntassem, eu diria tratar-se de uma fazenda, ocupando quase um quarteirão no coração da maior cidade da região. “Tem internação aqui também”, explicou Valentina. - 12 -


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