Fragmento de história futura, de Gabriel Tarde

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Fragmento de hist贸ria futura Gabriel Tarde



pseudocoleção de literatura

Fragmento de história futura Gabriel Tarde com prefácio de H.G. Wells [ Tradução de Fernando Scheibe ]

Cultura e Barbárie Desterro, 2013


Título original Fragment d’histoire future Tradução Fernando Scheibe Revisão Felipe Vicari de Carli e Alexandre Nodari Ilustração da capa Christiano Balz Diagramação Alexandre Nodari pseudo- coleção de literatura Coordenação editorial: Alexandre Nodari e Flávia Cera Conselho Editorial da Cultura e Barbárie Alexandre Nodari, Diego Cervelin, Flávia Cera, Leonardo D’Ávila e Rodrigo Lopes de Barros

T181f Tarde, Gabriel, 1843-1904 Fragmento de história futura / Gabriel Tarde; com prefácio de H. G. Wells; tradução de Fernando Scheibe. – Desterro [Florianópolis] : Cultura e Barbárie, 2013. 76p. – (pseudo- coleção de literatura) Tradução de: Fragment d’histoire future ISBN: 978-85-63003-11-9 1. Literatura francesa. 2. Previsões – Filosofia. 3. Filosofia – História. I. Título. II. Série. CDU: 840 Catalogação na publicação por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071

Editora Cultura e Barbárie www.culturaebarbarie.org | editora@culturaebarbarie.org Caixa Postal 5015 - 88040-970 - Florianópolis/SC


Prefácio à edição inglesa H. G. Wells [1905] ...................................................................... 7

Fragmento de história futura Gabriel Tarde [1896] .............................................................

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I | A Prosperidade ..............................................................

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II | A Catástrofe ..................................................................

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III | A Luta ............................................................................... 30 IV | A Salvação .......................................................................

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V | A Regeneração ..............................................................

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VI | O Amor .............................................................................

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VII | A vida estética ..............................................................

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Nota dos editores: O Fragmento de história futura começou a ser escrito no final da década de 1870. Uma primeira versão foi concluída em 1884, tendo sido publicada apenas em 1896, com algumas alterações, na Revue internationale de sociologie, mesmo ano em que saiu em livro pela V. Giard & E. Brière, de Paris. Uma segunda edição (que utilizamos para a presente tradução) foi publicada pela A. Storck, de Lyon, em 1904, meses após a morte do escritor. No ano seguinte, apareceu a tradução ao inglês (realizada por Cloudesley Brereton), sob o título de Underground man (Londres: Duckworth & Co), e com o prefácio de H. G. Wells.


FRAGMENTO DE HISTÓRIA FUTURA Gabriel Tarde

Foi no final do século XXV da era pré-histórica, outrora chamada era cristã, que aconteceu, como se sabe, a inesperada catástrofe de que procedem os novos tempos, o feliz desastre que forçou o rio transbordado da civilização a engolir a si mesmo para o bem do homem. Pretendo contar brevemente esse grande naufrágio e esse salvamento inesperado, tão rapidamente realizado em alguns séculos de esforços heroicos e triunfantes. Naturalmente, silenciarei os fatos particulares que são conhecidos de todos e me aterei apenas às grandes linhas dessa história. Mas, antes, convém recordar em poucas palavras o grau de progresso relativo a que a humanidade já chegara, em seu período exterior e superficial, às vésperas desse grave acontecimento.


I A Prosperidade

O apogeu da prosperidade humana, no sentido superficial e frívolo da palavra, parecia ter sido atingido. Havia cinquenta anos, o estabelecimento definitivo da grande federação asiático-americano-europeia, e sua dominação inconteste sobre o que restava ainda, aqui e ali, na Oceania ou na África central, de barbárie inassimilável, habituara todos os povos, convertidos em províncias, às delícias de uma paz universal e, desde então, imperturbável. Haviam sido necessários não menos do que cento e cinquenta anos de guerras para chegar a esse desenlace maravilhoso. Mas todos esses horrores estavam esquecidos; e, de tantas batalhas pavorosas entre exércitos de 3 ou 4 milhões de homens, entre trens de vagões couraçados, lançados a todo vapor e fazendo fogo por todos os lados uns contra os outros, entre esquadras submarinas que se fulminavam eletricamente, entre frotas de balões blindados, arpoados, furados por torpedos aéreos, precipitados das nuvens com milhares de paraquedas bruscamente abertos que se metralhavam mesmo quando estavam caindo juntos; de todo esse delírio belicoso, não restava mais do que uma poética e confusa lembrança. O esquecimento é o começo da felicidade, assim como o temor é o começo da sabedoria. Por uma exceção única, os povos, depois dessa gigantesca hemorragia, degustavam não o torpor do esgotamento, mas a calma da força aumentada. Isso pode ser explicado. Havia cerca de um século que as juntas de serviço militar, rompendo com a rotina cega do passado, triavam cuidadosamente os jovens mais valorosos e mais bem formados para exonerá-los do serviço militar, que se tornara totalmente automatizado, e enviavam para o quartel apenas os inválidos, mais do que suficientes para a função extremamente reduzida do soldado e mesmo do oficial inferior. Estava aí uma seleção


inteligente, e o historiador não pode se furtar ao dever de louvar com gratidão essa inovação, graças à qual, a longo prazo, formou-se a incomparável beleza do gênero humano atual. Com efeito, quando olhamos, hoje, atrás das vitrines de nossos museus de antiguidades, essas singulares coleções de caricaturas que nossos avós chamavam de álbuns fotográficos, podemos constatar a imensidade do progresso realizado dessa forma, se é que realmente descendemos desses feiosos e desses homúnculos, o que é, no entanto, atestado por uma tradição respeitável. Data dessa época a descoberta dos últimos micróbios ainda não analisados pela escola neopastoriana. A causa de todas as doenças sendo conhecida, o remédio não tardou a sê-lo também, e, a partir de então, um tísico, um reumático, um doente qualquer se tornou um fenômeno tão raro quanto eram outrora um monstro de duas cabeças ou um vendedor de vinhos honesto; foi a partir dessa época que caíram em desuso estas ridículas questões sanitárias que atulhavam as conversas de nossos ancestrais: “Como vai? Tem passado bem?”. Só a miopia continuava sua marcha lamentável, estimulada pela difusão extraordinária dos jornais; não havia uma mulher, uma criança, que não fizesse uso do pince-nez. Esse inconveniente, aliás momentâneo, foi amplamente compensado pelos progressos que acarretou à arte dos oculistas. Com a unidade política, que suprimia as hostilidades entre os povos, tinha-se a unidade linguística, que apagava rapidamente suas últimas diversidades. Já desde o século XX, a necessidade de uma língua única e comum, comparável ao latim da idade média, tornarase tão intensa entre os sábios do mundo inteiro que estes decidiram usar em todos seus escritos um idioma internacional. Após uma longa disputa com o inglês e o espanhol, foi o grego que, em seguimento à queda do Império inglês e à retomada de Constantinopla pelo Império heleno-russo, se impôs definitivamente. Pouco a pouco, ou antes com a celeridade própria a todos os progressos modernos, seu emprego foi se difundindo, de camada em camada, até os níveis mais humildes da sociedade e, desde a metade do século XXII, não houve mais uma criança, do Loire ao Amur, que não se exprimisse com I | A Prosperidade

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facilidade na língua de Demóstenes. Aqui e ali, algumas aldeias perdidas entre as montanhas se obstinavam ainda, apesar da proibição de seus professores, a estropiar os velhos patoás chamados outrora francês, alemão, italiano; mas seria risível escutar essas algaravias nas grandes cidades. Todos os documentos da época atestam unanimemente a rapidez, a profundidade, a universalidade da mudança que se operou então nos costumes, nas ideias, nas necessidades, em todas as formas da vida social, niveladas de um polo ao outro, em seguimento a essa unificação da linguagem. Parecia que até então o progresso da civilização fora represado e que, pela primeira vez, com todos os diques rompidos, ele se espalhava livremente pelo globo. O menor aperfeiçoamento industrial descoberto valia a seu inventor não mais milhões, e sim bilhões; pois nada mais detinha em sua expansão radiante a voga de uma ideia qualquer nascida onde quer que fosse. Pela mesma razão, as edições de livros, ainda que pouco apreciados pelo público, não se contavam mais por centenas, e sim por milhares, assim como as representações de peças, ainda que pouco aplaudidas. A rivalidade entre os autores subira assim a um diapasão altíssimo. Sua verve, aliás, podia ter livre curso, pois o primeiro efeito desse dilúvio de neo-helenismo universalizado tinha sido o de submergir para sempre todas as pretensas literaturas de nossos grosseiros avós, tornadas ininteligíveis. Não se compreendiam mais nem os títulos do que eles chamavam suas obras primas clássicas, nem esses nomes bárbaros, como Shakespeare, Goethe, Hugo, hoje esquecidos e cujos versos pedregosos nossos eruditos decifram com tanta dificuldade. Pilhar essas pessoas, que quase ninguém mais lia, era lhes prestar um grande favor e uma grande honra. Os escritores não se fizeram de rogados; e o sucesso desses pastiches, que se passavam por criações, foi prodigioso. A matéria a ser explorada dessa forma era abundante, inesgotável. Para a infelicidade dos jovens escritores, antigos poetas, mortos havia séculos, como Homero, Sófocles, Eurípides, tinham voltado à vida, cem vezes mais exuberantes do que no próprio tempo de

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Péricles; e essa concorrência inesperada perturbava singularmente os recém chegados. Gênios originais podiam, com efeito, representar novidades sensacionais, como Atalias, Hernanias, Macbétias, o público as negligenciava e acorria em massa a peças como Édipo Rei ou As Aves. E Nanais, pintura entretanto vigorosa de um romancista inovador, fracassou completamente diante do sucesso frenético de uma edição popular da Odisseia. Para os ouvidos saturados de alexandrinos clássicos, românticos ou outros, cansados dos jogos pueris da cesura e da rima, ora brincando de gangorra e se empobrecendo e enriquecendo alternadamente, ora brincando de esconde-esconde e desaparecendo para se fazer procurar, o belo hexâmetro livre e abundante de Homero, a estrofe de Safo, o iambo de Sófocles vieram trazer delícias inefáveis, que causaram grande prejuízo à música de um certo Wagner. A música em geral foi rebaixada a seu posto secundário na hierarquia das belas artes, e a renovação filológica do espírito humano ocasionou um florescimento literário que permitiu à poesia retomar sua posição legítima, ou seja, a primeira. Ela nunca deixa de florescer de novo, com efeito, quando a língua reverdeja, e com mais forte razão quando muda totalmente e volta-se a sentir prazer em exprimir de novo as banalidades eternas. Esse não era um simples passatempo de almas delicadas. O povo participava com paixão. Certamente, então, ele tinha a possibilidade de ler e de saborear as obras de arte. A transmissão da força à distância pela eletricidade, e sua mobilização sob mil formas, por exemplo, em garrafas de ar comprimido, facilmente transportáveis, tinham reduzido a nada a mão de obra. As cascatas, os ventos, as marés tinham se tornado os servidores do homem, como, nas eras remotas – e numa proporção infinitamente menor –, o tinha sido o vapor. Distribuída e utilizada inteligentemente por máquinas aperfeiçoadas, tão simples quanto engenhosas, essa imensa energia gratuita da natureza havia muito tempo tornara supérfluos todos os empregados domésticos e a maior parte dos operários. Os trabalhadores voluntários que ainda existiam não passavam mais do que três horas nos ateliês internacionais, grandiosos falanstérios onde a potência I | A Prosperidade

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de produção do trabalho humano, decuplicada, centuplicada, ultrapassava todas as esperanças de seus fundadores. Não que a questão social estivesse resolvida; não havendo mais miséria, é verdade, ninguém mais disputava a riqueza e a abastança, disponível para todos e que quase ninguém mais apreciava; não havendo mais feiura também, ninguém mais apreciava ou invejava o amor, que a abundância extraordinária de mulheres bonitas e de belos homens tornava tão comum e fácil, ao menos em aparência. Expulso assim de suas duas grandes antigas vias, o desejo humano se precipitou inteiramente sobre o único campo que lhe permaneceu aberto, e que aumentava a cada dia graças aos progressos da centralização socialista, o poder político a conquistar; e a ambição transbordante, subitamente engrossada por todas as cobiças que confluíram apenas nela, pela cupidez, pela luxúria, pela fome invejosa, pela inveja esfaimada das eras precedentes, atingiu então alturas apavorantes. A única grande cobiça era a de apoderar-se desse bem supremo, o Estado; servir-se da onipotência e da onisciência do Estado universal para realizar seu programa pessoal e seu sonho humanitário. Não foi, como anunciado, uma vasta república democrática que saiu daí. Tanto orgulho em erupção não podia deixar de erguer um novo trono, o mais alto, o mais forte, o mais radiante que já existira. Além disso, como o Estado único contava bilhões de súditos, o sufrágio universal se tornara impraticável e ilusório. Para contornar o inconveniente de assembleias legislativas inimaginavelmente numerosas, teve-se que ampliar tanto os distritos eleitorais que cada deputado representava no mínimo dez milhões de eleitores. Isso não era surpreendente se pensarmos que, pela primeira vez, tivera-se então a ideia tão simples de estender às mulheres e às crianças o direito de voto, exercido em seu nome, entenda-se, por seu pai ou marido legítimo ou natural. Entre parênteses, essa salutar e necessária reforma, conforme ao bom senso e à lógica, exigida a um só tempo pelo princípio da soberania nacional e pela necessidade de estabilidade social, quase fracassou, coisa inacreditável, diante da coalizão dos eleitores solteiros.

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A tradição relata que a proposta de lei relativa a essa extensão indispensável do sufrágio teria sido infalivelmente rejeitada se, por felicidade, a eleição recente de um bilionário suspeito de tendências cesarianas não tivesse pressionado a assembleia. Ela acreditou prejudicar a popularidade desse ambicioso apressando-se em acolher esse projeto em que via apenas uma coisa: que os pais e os maridos ultrajados ou alarmados pelas galanterias do novo César ficariam mais fortes para obstar sua marcha triunfal. Mas essa expectativa, ao que parece, foi frustrada. Seja qual for a veracidade dessa lenda, o certo é que, por consequência da ampliação dos distritos eleitorais, combinada com a supressão do privilégio eleitoral, a eleição de um deputado se tornou um verdadeiro coroamento, dando geralmente ao eleito a vertigem das grandezas. Esse feudalismo reconstituído só podia culminar na reconstituição da monarquia. Por um instante, os sábios cingiram essa coroa cósmica, de acordo com a profecia de um antigo filósofo, mas não a mantiveram. A ciência, vulgarizada por inumeráveis escolas, se tornara algo tão comum quanto uma mulher encantadora ou uma mobília elegante; e, extremamente simplificada por sua própria perfeição, concluída em suas grandes linhas imutáveis, em seus quadros desde então rígidos e preenchidos de fatos, progredindo apenas num passo imperceptível, ela ocupava pouco espaço no fundo dos cérebros, onde substituía simplesmente o catecismo de outrora. A maior parte da força intelectual ia portanto para outros lados, assim como a glória e o prestígio. As corporações científicas, veneráveis por sua antiguidade, já começavam, infelizmente, a se cobrir de uma ligeira pátina de ridículo, que fazia sorrir e pensar nos sínodos de bonzos e nas conferências eclesiásticas tais como representadas em antigos desenhos. Não é de surpreender, portanto, que a essa primeira dinastia de imperadores físicos e geômetras, pastiches complacentes dos Antoninos, tenha logo sucedido uma dinastia de artistas fugidos da arte e que manejavam o cetro como antes o arco, o formão ou o pincel. O mais glorioso de todos, homem de uma imaginação exuberante, controlada e servida por uma energia sem igual, foi um arquiteto I | A Prosperidade

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que, entre outros projetos gigantescos, resolveu demolir sua capital, Constantinopla, para a reconstruir alhures, no lugar, deserto havia três mil anos, da antiga Babilônia. Ideia verdadeiramente luminosa. Nessa planície incomparável da Caldeia, regada por um outro Nilo, havia um outro Egito, ainda mais fértil e belo, a ressuscitar, a transfigurar, uma extensão horizontal infinita a cobrir de monumentos ousados uns ao lado dos outros, de populações densas e febris, de searas douradas sob um céu sempre azul, de estradas de ferro que se irradiavam numa rede férrea da cidade de Nabucodonosor às extremidades da Europa, da África e da Ásia, através do Himalaia, do Cáucaso e do Saara. Tudo isso foi feito em alguns anos. A força armazenada e eletricamente transmitida de cem cascatas abissínias e de não sei quantos ciclones bastou tranquilamente para transportar, dos montes da Armênia, a pedra, a madeira e o ferro necessários a tantas construções. Um dia, um trem de excursão composto de mil e um carros, tendo passado perto demais de um cabo transmissor no momento de sua carga mais forte, foi fulminado num piscar de olhos e pulverizado. Mas, assim, Babilônia, a fastuosa cidade de barro, de miseráveis esplendores de tijolo cru e pintado, foi reconstruída de mármore e de granito, para grande humilhação dos Nabopalassares e dos Baltazares, dos Ciros e dos Alexandres. Desnecessário acrescentar que os arqueólogos fizeram, nessa ocasião, inapreciáveis descobertas, em diversas camadas superpostas, de antiguidades babilônicas e assírias. A febre de assiriologia foi tão longe que todos os ateliês de escultores, os palácios, e mesmo os brasões dos soberanos, se encheram de touros alados com cabeças humanas – como outrora os museus viviam cheios de cupidos ou de querubins “engravatados com suas asas” – , e que até se fizeram imprimir alguns manuais de escola primária em caracteres cuneiformes, para aumentar sua autoridade sobre as jovens imaginações. Tendo essa farra imperial de obras ocasionado infelizmente a sétima, a oitava e a nona bancarrotas do Estado e várias inundações consecutivas de papel-moeda, a grande maioria se regozijou, após esse brilhante reinado, em ver a coroa na cabeça de um financista filósofo. Assim que reestabeleceu a ordem nas finanças, ele pôde 22

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aplicar em grande escala seu ideal governamental que era de uma natureza bastante singular. Logo se notou, com efeito, após seu advento, que todas as damas de honra escolhidas, muito inteligentes, aliás, mas sem o menor espírito, brilhavam, antes de tudo, por sua estrondosa feiura; que as librés da corte eram de uma cor cinza e morna; que os bailes da corte, reproduzidos pela cinematografia instantânea em milhões de exemplares, forneciam a coleção dos mais honestos e insípidos rostos e das formas menos apetitosas que se pudessem ver; que os candidatos, recentemente nomeados, após o envio de seus retratos, às mais altas dignidades do Império, se distinguiam essencialmente pela vulgaridade de seus traços; enfim, que as comemorações e festas públicas (cujo dia era designado antecipadamente pelos despachos secretos que previam a chegada de um ciclone americano) costumavam, nove a cada dez vezes, acontecer em dias de nevoeiro espesso ou de chuva torrencial, o que os transformava num imenso desfraldar de impermeáveis e guarda-chuvas. Em matéria de projetos, assim como em matéria de pessoas, a escolha do príncipe era sempre esta: o mais útil ou o melhor entre os mais feios. Uma insuportável monocronia, uma monotonia esmagadora, uma nauseabunda insipidez, eram a marca distintiva de todas as obras do governo. O povo riu, o povo se agitou, o povo se indignou, o povo se habituou. O resultado foi que, ao final de certo tempo, já não se encontravam mais um ambicioso, um político, ou seja, um artista ou literato extraviado buscando o belo fora de seu domínio, que não se afastasse da disputa pelas honras para voltar a rimar, esculpir e pintar; e desde então ganhou crédito o aforismo que diz que a superioridade dos homens de Estado não é mais do que a mediocridade elevada à mais alta potência. É muito o que se deve a esse monarca eminente. O alto pensamento de seu reinado foi revelado pela publicação póstuma de suas memórias. Desse escrito inestimável só nos restou este fragmento, que nos faz lamentar intensamente a perda do resto: “Quem é o verdadeiro fundador da Sociologia? Augusto Comte? Não, Menenius Agrippa. Esse grande homem compreendeu que o governo era o estômago, não a cabeça do corpo social. Ora, o mérito de um estômago I | A Prosperidade

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é o de ser bom e feio, útil e repugnante à vista, pois se esse órgão indispensável fosse agradável aos olhos, seria de temer que quiséssemos tocá-lo, e a natureza não teria se preocupado tanto em escondê-lo e defendê-lo. Que homem sensato se gaba de ter um belo aparelho digestivo, um fígado gracioso, pulmões elegantes? Essa pretensão, no entanto, não seria mais ridícula do que a mania de fazer grande e bonito em política. É preciso ser sólido e simples. Meus pobres predecessores...” Aqui, uma lacuna. Um pouco mais adiante lê-se: “O melhor governo é aquele que se dedica a ser tão perfeitamente burguês, correto, neutro e castrado, que ninguém possa se apaixonar nem por ele nem contra ele.” Assim era esse último sucessor de Semíramis. Bem no lugar, encontrado havia pouco, dos jardins suspensos, ele mandara erguer, às custas do Estado, uma estátua de Luís Filipe em alumínio fundido, no meio de um jardim público plantado com louros e couves-flores. O universo respirava. Bocejava um pouco, sem dúvida, mas desabrochava pela primeira vez na plenitude da paz, na abundância quase gratuita de todos os bens e mesmo na mais brilhante floração, ou antes exposição de poesia e de arte, mas sobretudo de luxo, que a terra já tinha visto. Foi então que um alarme extraordinário e de um novo gênero, provocado a justo título por observações astronômicas feitas sobre a torre de Babel, reconstruída como uma torre Eiffel muito ampliada, começou a se espalhar entre as populações apavoradas.

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