O Tesouro do Imortal Desconhecido

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O tesouro do imortal desconhecido, 2010 Registrado

no

Escritório

de

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Autorais,

Fundação

Biblioteca Nacional. Proibida a reprodução total ou parcial para fins lucrativos sem a autorização do autor. Foto da capa: Acervo do Museu Histórico Municipal Tuany Toledo

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À minha mãe, Lourdes.

À memória de Amadeu de Queiroz.

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A emoção não se transmite. O escritor não deve apresentar a sua obra integralmente realizada, nem dar um sentido definitivo às suas palavras, mas incitar, com a sua arte, a arte dissimulada dos leitores, realizada só por eles, conforme a cultura e a sensibilidade de cada um. Sejam o que forem os escritores, talentosos ou geniais, só conseguirão, com a sua arte, despertar emoções dormentes. O livro é fonte de emoções sempre novas. Passem as gerações, e os leitores continuarão criando os seus mundos, inspirados no mesmo livro, no livro que não morre nem envelhece. Amadeu de Queiroz

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PRÓLOGO

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Numa tarde de inverno, o Sr. Alexandre de Araújo me levou até uma das salas que havia dentro do Museu de Pouso Alegre. Segurando a chave da porta na mão direita, ele caminhava compenetrado à minha frente, com ar de quem foi incumbido de revelar um segredo. Enquanto seguia o Sr. Alexandre, eu não conseguia disfarçar a ansiedade que havia tomado conta de mim. Olhando para os fios de cabelo branco que ele orgulhosamente ostentava acima da nuca, eu pressentia que estava prestes a descobrir um tesouro. Quando ele abriu a porta, um forte cheiro de naftalina penetrou em minhas narinas, e, embora esse odor não me agradasse, nem me importei com isso. Continuei seguindo o Sr. Alexandre pela sala adentro, até que ele parou diante de um grande armário de aço. Ele ergueu o braço e tateou o topo do armário, até que sua mão esbarrou na chave. Novamente de chave em punho, o Sr. Alexandre voltou a realizar a principal tarefa que lhe foi 6


predestinada neste mundo: abrir portas. Novo cheiro de naftalina tomou conta de meu nariz, dessa vez, porém, mais forte. De dentro do armário, o Sr. Alexandre retirou um grande baú e o colocou sobre uma mesa que estava próxima. Com a confiança que ele aprendera a me devotar durante os anos, ele passou a mão sobre a tampa do baú para remover a poeira e me disse em tom solene: – Tome cuidado, pois este baú guarda uma porção de raridades. Em sinal de obediência a ele e de respeito pelo que eu estava por descobrir, balancei a cabeça afirmativamente, sentindo que ele estava confiando também a mim a missão de preservar aquele tesouro. Depois disso, o Sr. Alexandre me deixou sozinho na sala. Com bastante cuidado, abri lentamente o baú e, antes mesmo que eu pudesse acreditar no que meus olhos viam, concluí que realmente se tratava de um tesouro...

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POUSO ALEGRE, 1916

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A velha porta de madeira rangeu quando uma de suas duas folhas foi aberta. Do lado de dentro, surgiu um homem magro e de estatura mediana, que fisicamente aparentava ter perto dos cinquenta anos. Vestia um modesto terno que há algum tempo deixara de ser negro. Seu rosto dispunha de um respeitável bigode e de algumas marcas do tempo: a calvície já começava a vitimar sua fronte e alguns fios de cabelo branco podiam ser facilmente notados entre os que restavam. No entanto, apesar de poucos, os cabelos estavam cuidadosamente penteados. O olhar do homem era sério, de alguém que realiza automaticamente o mesmo dever de todos os dias. Como de costume, naquela manhã, Amadeu abria as portas de seu estabelecimento, a Farmácia Queiroz, como indicava uma placa colocada acima das duas portas e de uma das três janelas que davam para a rua. Por alguns minutos, Amadeu ficou parado na soleira, olhando para o lado de fora. Deteve-se um pouco admirando a lateral esquerda da velha catedral 9


que ficava defronte para a sua drogaria. Desde que conhecera as famosas catedrais da Europa através dos livros, a de sua terra havia se tornado uma construção bastante simplória. Mas, naquele momento, o acanhado edifício lhe pareceu mais bonito do que nunca. Teve a sensação de que em breve teria que se despedir não só da rústica igreja, mas também da bucólica cidadezinha onde nascera e se tornara homem. Respirou fundo e continuou a abrir as portas. Aberta a farmácia, Amadeu foi para trás do balcão e pegou uma vassoura feita com galhos de arbusto e começou a varrer o chão. Embora fosse o proprietário e tivesse um ajudante, nunca se esquivava de realizar tarefas duras como aquela – as ruas de Pouso Alegre eram de terra e a poeira era abundante. Aliás, Amadeu sentia grande satisfação ao varrer o chão e, para quem se admirava desse curioso gosto, costumava dizer: “Quem varre o chão, varre também as ideias”. Mas, naquela manhã, enquanto varria o poeirento chão da Farmácia Queiroz, Amadeu tentava varrer da mente uma preocupação que o atormentava há dias. De repente, parou de varrer ao notar que havia um pequeno envelope no chão. Amadeu hesitou, seu coração batia acelerado. Certamente, alguém deve ter colocado aquele papel por debaixo da porta durante a noite, pensou. Seria mais uma daquelas cartas? 10


Ele abaixou e pegou o envelope. Do lado de fora estava escrito apenas “Ao Sr. Amadeu de Queiroz”, com aquela caligrafia de sempre. Antes mesmo de abrir, Amadeu já sabia do que se tratava. Entretanto, apesar da familiaridade com aquele tipo de correspondência, desta vez ele se assustou diante da concisão da ameaça. De dentro do envelope, ele retirou um pequeno bilhete que dizia:

Sr. Amadeu de Queiroz, Se o senhor preza sua vida e a de sua família, deixe a cidade nos próximos dias. O seu tempo está se esgotando. Essa última ameaça, por ser mais breve que as outras que recebera, pareceu-lhe também a mais enfática, e Amadeu a sentiu como um ultimato. Suas pernas começaram a tremer e sua cabeça começou a girar confusamente. Estava prestes a ceder quando sentiu uma mão lhe tocar o braço. – Sr. Amadeu, o senhor está bem? Era Sebastião, o seu jovem ajudante da farmácia, que acabava de chegar ao trabalho. Amadeu sentiu-se cair em si diante da pergunta do rapaz. Ali não era o local apropriado para pensar sobre a ameaça. Precisava ficar sozinho. 11


– Bom dia, Sebastião. Não se preocupe, estou bem. Por favor, termine de varrer pra mim. Eu já volto. Enquanto falava, Amadeu guardou o bilhete no bolso do paletó, entregou a vassoura ao rapaz e foi para o fundo da farmácia, onde havia uma porta que levava à casa da família Queiroz. Amadeu atravessou o corredor da casa, entrou apressadamente no quarto e trancou a porta. Parecia querer fugir de tudo e de todos. Nem ao menos se deteve diante do olhar perturbado de Vicentina que lhe pedia respostas. Mas nem mesmo ele sabia ao certo o que dizer. Estava confuso diante dos últimos acontecimentos. Antes, sua mente não era capaz de imaginar que seus conterrâneos fossem capazes de tamanha barbaridade. Aquela gente, que ele julgou ser tão pacífica, aos poucos se afigurou perversa. No quarto, começou a andar ansioso de um lado para o outro, exigindo de si mesmo que decidisse o que fazer. Por um instante, lembrou-se do Senador José Bento, que fora assassinado, e sentiu que estava vivendo a mesma história vivida por ele há tanto tempo. Temia por sua vida, é certo. Mas temia principalmente pela segurança de sua família. Sabia que Vicentina e os filhos corriam o mesmo perigo. Aquele povo ignorante se mostrara capaz de tudo nos últimos dias e não pouparia ninguém. Sentiu-se 12


arrependido de ter se envolvido tanto com a política. Mas onde estava a tão prometida liberdade de expressão? Certamente, ela não fazia parte do vocabulário da gente de Pouso Alegre. Se ele morasse no Rio ou em São Paulo, talvez não tivesse que passar por isso; talvez não precisasse ser ameaçado apenas por dizer o que pensa e por defender suas posições. Mas ali estava ele, naquela pequena cidade dominada pelo interesse de coronéis, onde a liberdade era apenas ilusória. Amadeu parou de andar sobre o gasto assoalho de madeira, tirou do bolso o bilhete anônimo e leu mais uma vez a ameaça. Sentia o gosto amargo da morte que aquelas palavras possuíam. Tinha ímpeto de ficar e esperar pra ver o que acontecia. Mas estaria sendo egoísta demais, não seria atitude digna de um homem deixar a esposa e os filhos nas mãos daquela gente mesquinha apenas por uma questão de orgulho. Não queria fugir e ser tido por covarde, mas, ao mesmo tempo, não queria ficar e arriscar a vida da família. Amadeu sentou-se na larga cama de casal e, atormentado por aquele dilema, tampou o rosto com as mãos. Do lado de fora do quarto, Vicentina chegou silenciosamente até a porta. Ergueu o punho fechado para bater, mas hesitou. Sabia que o marido, quando se fechava no quarto, não gostava que ninguém o 13


interrompesse. Conhecia o dilema que Amadeu estava vivendo, queria ajudá-lo, oferecer seu ombro, dizer a ele que o melhor era sair de Pouso Alegre, ir para outra cidade e recomeçar a vida. Mas não podia interromper aqueles instantes de solidão do marido. Como ela bem o sabia, era um momento sagrado. Além de tudo, ele era o chefe da família e a decisão cabia somente a ele. Vicentina abaixou o braço e, cabisbaixa, deu meia-volta e voltou em silêncio para a cozinha. Dentro do quarto, Amadeu se envolvia cada vez mais em suposições. Estava angustiado. Teve vontade de sair e abraçar Vicentina, dizer-lhe o quanto a amava e pedir que ela fizesse as malas e arrumasse as crianças para que imediatamente saíssem daquele lugar. Mas não era tão simples assim. E a farmácia? E os seus negócios? E a pobre gente da roça que precisava de sua proteção e de seus cuidados médicos? E a sua terra tão amada? Aqueles vales e montanhas que o seduziam tanto? O lugar onde nascera e vivera por quase toda a vida? O seu tão agradável bosque, onde desde pequeno ficava sozinho horas e horas, contemplando o céu e ouvindo o canto dos pássaros, e que ultimamente havia abandonado por falta de tempo? Como deixar tudo para trás? Amadeu sabia que teria boas condições de emprego em São Paulo. Humberto, seu irmão mais velho que morava na capital paulista, ciente do perigo 14


que Amadeu corria, havia lhe falado sobre o posto vago de farmacêutico numa drogaria da cidade. Entretanto, abandonar sua tão querida terra parecia um castigo bastante doloroso para Amadeu. Na verdade, Amadeu nem mesmo o havia cogitado anteriormente. Julgava que a raiva de seus inimigos políticos não chegaria a tanto. Ele não tinha feito nada de errado! Pelo contrário, sempre agiu dentro da lei, ao invés de muitos de seus conterrâneos; era injusto que logo ele tivesse que partir e não os outros! Amadeu sentia medo. Desde que seu pai falecera, há quase dezesseis anos, Amadeu havia se tornado o chefe da família. Tinha assumido todas as responsabilidades domésticas, inclusive tomado frente da Farmácia Queiroz. Não tinha sido uma tarefa fácil. Logo ele, que sempre gostava de se entregar à literatura, fora obrigado a abandonar a caneta e o papel para se dedicar inteiramente à luta pela subsistência. Há muito já havia deixado de escrever e publicar seus contos nos jornais de Pouso Alegre e região. Só existia para trabalhar e sustentar a família. Por fim, lembrou-se da mãe e da forma como ela sempre cuidou dele e de seus irmãos. Ela também partira há três anos, mas deixara uma marca profunda no caráter de Amadeu. Sempre fora uma mãe abnegada e zelosa pelos filhos e pelo marido. Amadeu sentia a lembrança dela pulsar vívida em seu peito. 15


Para ele, ela não havia morrido, mas pelo contrário, estava mais viva do que nunca dentro dele. Após evocar as mais doces lembranças de sua mãe, ele concluiu, afinal, qual era o seu maior dever: cuidar da família. Depois de quase uma hora fechado no quarto, ele sabia o que era preciso fazer. Levantou-se da cama, ajeitou o terno gasto pelo uso, ergueu a cabeça e abriu a porta. Ao ouvir o barulho da fechadura se abrindo, Vicentina imediatamente assomou ao corredor e viu Amadeu encará-la, por um momento, nos olhos. Em seguida, ele baixou o olhar e caminhou até ela. – Vamos para São Paulo na próxima semana – disse Amadeu, em tom solene. – Amanhã vou até a casa do Dr. Olavo Gomes e vou lhe dizer que aceito a proposta de lhe vender a farmácia. Surpresa com a súbita decisão do marido, Vicentina não disse nada, apenas consentiu balançando a cabeça. Amadeu virou-se e voltou para os afazeres da farmácia. Vicentina tentou dizer algo, mas não conseguiu. Queria poder falar que estava triste e, ao mesmo tempo, aliviada pela decisão do marido e que sabia que isso doía mais nele do que nela. Mas Vicentina possuía 16


um temperamento conformado, pois crescera aprendendo a aceitar tudo com resignação. Como as mulheres de sua terra, não era de se rebelar. Apoiava o marido em tudo o que ele fizesse, afinal julgava não ter outra escolha. Assim tinha sido em todos os momentos de sua vida: quando pequena, sujeitava-se à vontade dos pais, que inclusive negociaram o casamento com Amadeu; depois de casada, continuava sendo submissa, porém em relação ao marido. Foi por causa de Amadeu que Vicentina havia perdido o contato com a família, desde que ele decidira enfrentar o irmão dela numa contenda política. Há meses ela não frequentava a casa de seus parentes, que estavam profundamente ressentidos com a atitude de Amadeu. Embora desconfiasse que aquelas cartas ameaçadoras partissem dos próprios irmãos e que o marido também tivesse essa desconfiança, ela não ousava manifestar suas suspeitas, e Amadeu também não o fazia em respeito a ela. Depois de meditar longamente, Vicentina voltou para a cozinha. Ao voltar à farmácia, Amadeu se manteve hirto por alguns instantes diante da visão do seu estabelecimento. Percorreu com o olhar cada canto da drogaria. Antigas estantes feitas em vidro e madeira 17


cobriam as paredes que ficavam atrás do balcão. Elas abrigavam centenas de potes com remédios e eram do tempo em que seu pai havia fundado a farmácia, pelos idos de 1870. Sobre o balcão de madeira, havia alguns artefatos utilizados para a manipulação de medicamentos, como a balança para pesagem das substâncias que Amadeu misturava para dar origem às fórmulas que mantinham viva e saudável a gente de Pouso Alegre. Tudo aquilo Amadeu havia aprendido com o pai através da prática, sem ter cursado nenhuma faculdade. Desde a adolescência, convivera com todos aqueles nomes de remédios e aparatos, vendo o pai exercer o ofício de boticário da cidade. Amadeu sentiuse sufocar ao pensar em ter que entregar tudo nas mãos de outra pessoa. Sentia que o trabalho começado pelo pai parecia terminar ali. Diante dessas ideias que lhe roubavam o ar, decidiu sair para espairecer. Lembrou-se da consulta que estava devendo à esposa do amigo Xavier. Enquanto pegava o chapéu e o embornal pendurados na arara que ficava no canto do fundo da loja, disse ao ajudante que tirava o pó de uma prateleira: – Sebastião, vou visitar uma paciente lá pelas bandas da Fazenda Grande. Se Vicentina lhe perguntar, diga-lhe que volto para a janta. 18


– Sim, senhor. – Respondeu Sebastião, voltandose para Amadeu, enquanto este lhe dava as costas a caminho da rua. Sebastião ficou perturbado pela atitude do chefe que sempre o tratava com cortesia. O rapaz estava intrigado com comportamento do patrão nos últimos dias. Amadeu costumava chamá-lo pelo apelido de “Tiãozinho”, mas naquela manhã o tratara polidamente pelo nome de batismo. Sebastião sabia muito pouco sobre o que estava acontecendo com o patrão. A maior parte das informações ele ouvira da boca do povo. Diziam que Amadeu estava sendo ameaçado de morte, além de assegurarem que o caráter dele era duvidoso. Mesmo assim, o jovem não acreditava em tudo o que lhe diziam. Via Amadeu como um homem extremamente íntegro, ao contrário do que muitos apregoavam. Admirava-o por vê-lo muitas vezes não cobrar pelas consultas que fazia ou pelos remédios que receitava. Sebastião tinha convicção de que toda aquela gente julgava mal as atitudes de Amadeu, estavam enganados a respeito da conduta do patrão. Sebastião sentiu pena de Amadeu e continuou fazendo o seu serviço. Ao sair da farmácia, Amadeu virou à direita, dobrou a esquina da farmácia e caminhou ao longo do muro de sua residência. Juntas, a casa de Amadeu e a Farmácia Queiroz ocupavam uma das extremidades do 19


quarteirão, estendendo-se ao longo da esquina da Praça Senador José Bento com a Rua Bom Jesus. Amadeu foi até os fundos da casa, abriu um pequeno portão de madeira e de lá saiu puxando um cavalo pelo arreio. Como ele mesmo dizia, aquele era o seu amigo Espada. Fez-lhe alguns afagos na crina e ajustou a fivela que prendia a sela ao corpo do cavalo. A sela já havia sido previamente colocada por Amadeu logo que ele acordara naquela manhã. Bem cedo, ele mesmo ia até sua chácara, que ficava não muito distante dali, alimentava o Espada e deixava-o pronto para a montaria. Depois, trazia-o para o quintal de casa, uma vez que precisava dele para visitar alguns doentes logo no começo do dia. Amadeu trancou o portão e montou no cavalo. Guiou-o pela Rua Bom Jesus até chegar à praça, virou à esquerda, passou em frente à farmácia e cavalgou até o fim da Senador José Bento. Diante da praça, estendia-se a Avenida Doutor Lisboa, principal via da cidade. Descendo pela avenida, Amadeu cumprimentava quem encontrasse pelo caminho, recebendo saudações de uns e a indiferença e desconfiança de outros. Ao término da avenida, atravessou os trilhos da estrada de ferro e continuou descendo até chegar à ponte de zinco sobre o rio Mandu. 20


No compasso vagaroso do Espada, Amadeu atravessou a ponte e foi se afastando cada vez mais da vista dos moradores da cidade, atĂŠ que desapareceu em meio Ă poeira do estradĂŁo.

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Em cima de seu cavalo e sob o sol daquela manhã de outono, Amadeu vagou pela estrada de terra. A estrada se estendia sobre a várzea do Rio Mandu, conhecida como Aterrado pelos moradores da cidade. Na época da cheia, quando o rio transbordava por causa das intermináveis chuvas de janeiro, quase todo aquele vale se inundava e muitas vezes só se conseguia atravessá-lo de canoa. Contudo, no tempo da seca ali se podia andar a cavalo com facilidade. Há dias não chovia e a poeira da estrada era abundante, mesmo de manhã. Aquele era um dos muitos caminhos que Amadeu tomara ao longo dos últimos anos, quando ia visitar seus pacientes que viviam pelas redondezas da cidadezinha de Pouso Alegre. Ele enfrentava horas de sol forte e de muita poeira para chegar até os doentes incapazes de irem até a cidade. Muitos deles habitavam em lugares distantes e nem mesmo chegavam a existir oficialmente, vivendo apartados do povo da cidade. 22


No entanto, apesar da dificuldade para atender a essa gente, Amadeu gostava de seu ofício. Sentia imenso prazer em cavalgar sozinho por aqueles caminhos ignorados, contemplando a monótona paisagem que o rodeava, mesmo que ao final da jornada encontrasse um paciente que lhe causasse bastante preocupação. Enquanto o amigo Espada caminhava lentamente pela estrada do Aterrado, Amadeu avistou ao longe uma comitiva de carro de bois que se aproximava. Mesmo forçando a vista, ele não conseguia enxergar o que vinha ao seu encontro, pois estavam separados por uma longa distância. Porém, era possível ouvir facilmente o estridente barulho feito pelas rodas do carro em movimento. A comitiva veio vindo e Amadeu se sentia cada vez mais ansioso para vê-la de perto. Um sentimento pueril apossou-se dele, por causa da proximidade daquele encontro. Quando era pequeno, Amadeu ficava extasiado diante do desfile dos carros de bois que tomava a Avenida Doutor Lisboa, e, ao longo dos anos, aquele divertimento cresceu com ele. A imagem do carro de bois lhe causava imensa euforia, mesmo depois de adulto. Era capaz de passar horas admirando a estrutura de um carro, identificando todas as peças que o compunham e suas respectivas funções. Quando o cortejo se aproximou, Amadeu parou à 23


beira do caminho, hipnotizado pela visão que se lhe apresentava. Ele observou que a comitiva era formada por três carros, todos com duas juntas de boi cada: a guia, que corresponde à parelha de bois da frente, e os bois de coice, os dois últimos que vão logo em seguida. Diante dessa observação, Amadeu notou que não deviam vir de tão longe, afinal eram necessárias pelo menos três juntas para que um carro conseguisse vencer sem muitos obstáculos a severidade das serras da região. Aquela comitiva poderia vir da freguesia de Estiva, ponderou de si para si. Os bois, brancos e robustos, marchavam lentamente. Como Amadeu notara, cada parelha de bois era unida pela canga, uma peça curva de madeira colocada sobre a nuca dos animais. As cangas, por sua vez, eram fixas ao pescoço dos animais através dos canzis, dois paus que ladeavam a cabeça de cada boi. Cada canzil era unido abaixo do pescoço do boi pela brocha, uma correia feita de couro cru torcido que mantinha presa a cabeça do animal entre os canzis. O que juntava a canga dos bois da guia à dos bois do coice era uma peça conhecida como tiradeira, uma correia também feita de couro, porém maior que a brocha. Todos esses nomes e utilidades foram vindo à tona na mente de Amadeu, à medida que os carros avançavam, em meio ao barulho ensurdecedor que eles 24


faziam. A canga dos bois de coice vinha presa ao cabeçalho do carro, a comprida parte de madeira que se parecia com um engate. Formando o carro propriamente dito, o cabeçalho se unia à mesa, onde o carreiro ou condutor costumava ficar e também onde a carga era colocada. Nas laterais do veículo ficavam as rodas, feitas em madeira maciça, e, junto às extremidades do eixo que unia as rodas, sobre o qual era apoiada a mesa, estavam as cantadeiras, responsáveis pelo som emitido pelo carro. Por fim, viam-se os fueiros, os vários paus fincados nas beiras da mesa que impediam a carga de cair. Tudo isso Amadeu havia aprendido durante anos de admiração por esse meio de transporte cujas origens se confundem com a da própria civilização. Cada vez que ele via um carro de bois, ficava a notar cada um desses detalhes, perdido em pensamentos. À frente da comitiva, saltitando pela estrada, vinha um garotinho que parecia ter uns dez anos. Com sua pequena varinha, ele tangia os carros com grande seriedade, como um maestro conduz uma orquestra. Aquele era o “candieiro”, pensou Amadeu. Contudo, por alguns instantes, o menino parecia esquecer sua responsabilidade e, de modo involuntário, dançava alegremente ao som do carro de bois. Amadeu chegou mesmo a pensar o que aconteceria se aquela criança se 25


descuidasse por um momento e fosse atropelada pela comitiva. Parecia ser uma tarefa arriscada para um menino, mas aquele “candieiro” demonstrava possuir grande habilidade para conduzir a comitiva. Ainda fascinado por aquela visão, Amadeu acenou para os homens que conduziam os carros, segurando a aba do chapéu e levantando-a um pouco. Os caboclos responderam ao cumprimento do mesmo modo e seguiram adiante. Amadeu ainda se manteve parado por algum tempo, observando a comitiva se afastar até que ela sumisse em direção a Pouso Alegre.

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Era quase meio-dia quando Amadeu avistou a pequena e velha casa do amigo Xavier. Situada à margem esquerda da estrada, num lugar mais alto, era uma casinha de grandes janelas de madeira, feita de adobe, como se podia observar em algumas partes onde o reboco havia caído. Logo abaixo da moradia, à beira do estradão, interrompendo a cerca de arame farpado, havia uma porteira feita de pau. Na última vez que estivera ali, uma fatalidade tinha acontecido, pensou Amadeu enquanto se aproximava da casa na garupa de seu cavalo. Assim que avistara a propriedade, Amadeu viu que uma pessoa imediatamente assomou ao alpendre e depois desceu até a porteira para recebê-lo. Era o Xavier. Chapéu de palha, roupas gastas pela labuta, pés descalços sobre a poeira vermelha, o homem parecia esperar ansiosamente por aquela visita. Quando, enfim, o Espada cessou o passo e Amadeu apeou, a porteira já estava aberta para acolhê-los, como de costume. 27


– Bom dia, doutor. – Disse o Xavier erguendo o chapéu. – Bom dia, amigo Xavier. – Respondeu Amadeu com um aperto de mão. – Desculpe-me pela demora, mas, como o senhor deve imaginar, lá na cidade as coisas não estão boas para o meu lado. – O senhor continua recebendo ameaças? – Sim, inclusive recebi uma ainda agora de manhã. Mas não se preocupe comigo, estou bem. Quero saber do amigo e de sua esposa como estão. Lembrando-se dos próprios problemas, o Xavier ergueu o braço, enfiou a mão por baixo do chapéu e coçou a cabeça, franzindo a testa. – Eu vou levando, o que se há de fazer? A Ana é que não vai nada bem. Desde que aquilo nos aconteceu... – As palavras do Xavier pareciam não querer sair – ela só fica na cama o dia todo. Quando levanta, fica chorando pelos cantos e não come há dias. Já falei pra ela se aprumar senão vou acabar perdendo também a mulher, mas parece que ela não escuta o que eu digo! Amadeu prontamente:

se

condoeu

pelo

amigo

e

disse

– Leve-me até ela, vou examiná-la. Mas primeiro 28


gostaria que o amigo me servisse um pouco d’água. Xavier convidou Amadeu para entrar na propriedade. O caboclo gritou o nome de um dos filhos e, assim que este apareceu, pediu-lhe que levasse o cavalo para o estábulo. Os dois homens foram para dentro da casa. Assim que entrou no humilde casebre, Amadeu se manteve de pé esperando num rústico cômodo que deveria ser a sala de estar, enquanto o amigo foi buscar água na cozinha. Era ali que, da última vez, Amadeu vira um bode descansando sobre a palha. Xavier veio da cozinha com uma bilha e uma caneca esmaltada e serviu água ao visitante. Depois de saciar a sede, Amadeu pediu que Xavier o levasse até o quarto onde a esposa deste repousava. A casa toda era um ambiente semelhante àquele com que Amadeu se deparou logo na chegada. A esposa do Xavier estava deitada sobre um catre forrado com palha e coberto por um lençol. O Xavier entrou antes e acordou a esposa, dizendo que o doutor estava ali para vê-la, mas ela apenas respondeu com um gemido. Amadeu entrou, aproximou-se e sentou-se à beira da cama onde a doente jazia com o ventre para cima. – Bom dia, Dona Ana. Desculpe-me por 29


incomodar seu sono, mas vou apenas examiná-la rapidamente. A mulher nem sequer respondeu. Amadeu tomou-lhe o pulso, segurando um dos braços que pendia para fora do catre. – O coração está bom, dona Ana. Agora preciso ver suas pálpebras. Depois de outro gemido da paciente, Amadeu puxou uma das pálpebras com o polegar e, em seguida, repetiu o procedimento com a outra. Em seguida, retirou do embornal um pequeno objeto, parecido com uma corneta, e pediu ao Xavier que virasse a esposa de bruços. Amadeu então colocou a boca do aparelho sobre as costas da enferma e na extremidade menor encostou o ouvido. Assim fez em alguns pontos das costas da paciente. Depois, pediu ao Xavier que deixasse a esposa com o ventre para cima novamente e passou a auscultar o tórax e o abdômen de dona Ana. – E então, doutor? O que ela tem? Enquanto guardava o estetoscópio, Amadeu suspirou e respondeu: – Meu amigo, sua esposa não sofre de nenhum mal físico. Talvez esteja com um pouco de anemia. 30


Nada que uma boa panela de ferro não resolva. A doença dela é interior. – Como assim, doutor? O carimbamba – como Amadeu era também conhecido por causa de seu ofício – chamou o Xavier para fora do quarto e lhe contou quase que em segredo: – Certamente, como o próprio amigo me disse, a causa do mal de sua esposa foi a perda do filho. – Mas como curá-la, doutor? Amadeu suspirou mais uma vez e disse: – É preciso ter paciência, amigo Xavier. Neste caso a medicina ainda não pode nos ajudar suficientemente. Talvez isso dependa muito mais dela do que de um impulso ou vontade exterior. – Mas, doutor, sinto muita pena de vê-la nesse estado, logo ela que era tão trabalhadeira. Tenho medo de que ela não se recupere dessa tristeza. – Por isso mesmo é que o amigo precisa cuidar dela, dar-lhe força e motivá-la constantemente a sair desse estado. Procure alimentá-la bem. Quando puder, leve-a para passear pelas redondezas, a fim de respirar ar fresco, e faça ela retomar aos poucos as atividades da casa. Enfim, faça ela se lembrar de que ainda tem filhos e um marido de quem ela precisa cuidar. 31


Xavier assentiu com a cabeça, como se as advertências de Amadeu fossem uma ordem. O caboclo reconhecia a autoridade médica daquele homem que sempre cuidara de sua família. Depois disso, convidou Amadeu para que almoçasse com ele e os filhos. Como sempre, Amadeu consentiu. Depois do almoço, o Xavier chamou Amadeu para que dessem uma volta pelo pasto que ficava atrás da casa. Os dois caminhavam vagarosamente e conversavam. Falavam sobre a plantação, a colheita, a criação, assuntos comuns à gente do campo. Na verdade, Amadeu entrara naqueles assuntos para que pudesse encontrar uma brecha de contar que ia embora para São Paulo. – Xavier. – Disse Amadeu em um tom sério, olhando para o chão. – Pois não, doutor. – Devo me mudar para São Paulo na próxima semana. O Xavier estacou surpreso diante daquela revelação. – Como, doutor? O senhor vai nos deixar? – É contra a minha vontade, amigo! Acredite! – Amadeu escolhia as palavras. – Mas eu não tenho 32


outra escolha. Eu e minha família corremos risco morando em Pouso Alegre. – Mas eu e alguns amigos podemos cuidar disso para o senhor. Podemos defendê-lo de quem tentar qualquer coisa contra o senhor e sua família. – Eu sei disso, meu amigo, e agradeço muito por esse gesto de coragem e de reconhecimento. Mas não posso aceitar. – Mas se o senhor for embora, quem é que vai nos amparar em nossas doenças? Amadeu não tinha o que dizer diante daquele apelo. Sabia que se fosse embora, não haveria ninguém para cuidar daquela gente. Mesmo assim, tentou demonstrar otimismo. – O doutor Olavo Gomes vai assumir a farmácia, ele é um homem bom e vai cuidar de você e de sua família tão bem quanto eu. Mas eu preciso partir, o futuro dos meus filhos depende disso. Xavier abanou a cabeça em sinal de consentimento, depois de se lembrar do filho que morrera ainda pequeno há alguns meses. – O doutor tem razão. Deve cuidar de sua família em primeiro lugar, fazer de tudo para que fiquem em segurança. Eu não tenho mais o meu 33


pequeno, mas se ele estivesse aqui comigo eu cuidaria dele com todas as minhas forças e não deixaria que nada de mal lhe acontecesse. Mas, infelizmente, o mal que o atingiu foi uma fatalidade, talvez Deus quisesse assim. A conversa terminou e, durante o caminho de volta à casa, os dois caminharam em silêncio: o Xavier pensando no filho e Amadeu pensando em que Deus era esse que queria a morte de um inocente. O sol ainda estava a pino quando Amadeu deixou a casa do Xavier. Despediu-se do amigo como das outras vezes que ali estivera, porém sem o mesmo sorriso de sempre. O Xavier também preferiu se esquivar de uma emotiva despedida e apenas respondeu: – Até logo, doutor. Amadeu montou no cavalo e partiu sem olhar para trás. O Xavier ficou parado na porteira, olhando Amadeu se afastar até sumir atrás do morro. Os dois não poderiam imaginar que nunca mais se veriam novamente. Depois de ter certeza de que estava fora do alcance da vista do Xavier, Amadeu caiu em uma profunda tristeza. Voltando para a cidade, não conseguiu contemplar as paisagens ao seu redor com 34


os mesmos olhos de antes. Aquele passeio possuía um melancólico tom de despedida. Olhando os campos cobertos de cupim e de barba-de-bode, Amadeu sentiu uma grande angústia lhe tomar o espírito. Tinha a sensação de que nunca mais voltaria a ver novamente aqueles pastos, onde bois e vacas preguiçosos pastavam ininterruptamente. Aquelas paragens não eram simplesmente um lugar com que ele estava habituado; para ele, eram como se fosse alguém com quem ele pudesse desabafar nos momentos de dor. Foi por isso que, ao chegar ao cimo de um morro, Amadeu parou, fitou o distante horizonte que encerrava todas aquelas belezas e chorou. Seu choro silencioso escorreu pelo rosto e lhe molhou o colarinho da camisa. Ficou ali parado por alguns minutos, meio que indagando a terra que estava ao seu redor. Por que ele tinha que ir embora? Por que justo ele, que amava tão egoisticamente aquele lugar, era obrigado a deixá-lo para sempre? Mas a terra nada lhe respondeu, apenas se manteve imóvel como sempre, a não ser pelo belo canto de um canário que pousou em uma árvore próxima. Amadeu observou-o e lhe perguntou: – Por que, meu amigo canário? 35


O pássaro fitou-o também e depois continuou seu voo. Então, Amadeu enxugou o rosto com a manga do terno puído e retomou seu caminho de volta para casa.

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Uma pequena e indecisa chama desafiava a escuridão do quarto. Colocada sobre a tampa levemente inclinada da escrivaninha, a lamparina iluminava precariamente algumas folhas de papel. Nelas, podiam-se ver várias linhas escritas com uma caligrafia um pouco inclinada para a direita que enfrentava o branco amarelado do papel. Deixados de lado, a pena, o tinteiro e o berço para mata-borrão se revelavam através daquela luz tremeluzente, junto a algumas gotas negras de tinta que denunciavam o que ali havia ocorrido. Parecia que todas aquelas cartas tinham sido escritas desesperadamente, conforme a letra frenética revelava. Uma delas, porém, fora feita com bastante cuidado e morosidade. Amadeu sabia que quando escrevia algo para o irmão, a escrita tinha que ser impecável. Joaquim era um dos homens mais cultos da família e havia publicado diversos poemas em jornais da região. Foi com ele que Amadeu havia aprendido muito sobre a gramática oficial, além de noções de francês. Joaquim 37


demonstrava ser um legítimo membro dos Queiroz, uma família conhecida pela tradição de produzir homens letrados. Os dois irmãos traziam nas veias o sangue de uma linhagem de escritores, mas, ao contrário de Joaquim, que sempre obtivera o reconhecimento da família como um escritor de talento, Amadeu não possuía o mesmo prestígio. Agora que havia acabado de escrever, Amadeu relia pacientemente cada trecho da carta destinada ao irmão. No entanto, o cuidado de Amadeu não era apenas em relação à norma culta da língua, mas ele tinha a inquietação de contar a Joaquim sobre a mudança para São Paulo. Era preciso admitir que Joaquim estava certo sobre tudo. Amadeu não era íntimo o bastante de seu segundo irmão mais velho. Tinha muito respeito por Joaquim e o tratava com muita reserva. Ao escrever aquela carta, teve vontade de se abrir, de revelar seus sentimentos, mas um instinto de prudência lhe tomou conta da mente. Sabia que o irmão Joaquim não era dado a sentimentalismos e que este herdara mais do temperamento metódico do pai, ao contrário de Amadeu que adquirira o caráter lírico da mãe. Joaquim era, pois, homem sério e reservado. Além disso, não agradava a Joaquim o tipo de literatura que Amadeu havia cultivado nos últimos anos antes de se dedicar à farmácia. Aquelas histórias 38


sobre homens do campo, levando uma vida anônima e sem grandes acontecimentos, entediavam a sensibilidade literária de Joaquim, aguçada por anos de leitura dos clássicos da literatura universal. Amadeu releu várias vezes o rascunho que acabara de escrever antes de finalizar a carta. Tinha o costume de rascunhar as cartas para depois passá-las a limpo em outra folha de papel. Era rigoroso com a própria escrita e, na maioria das vezes, se mostrava incerto quanto ao que escrevia, ainda que fosse apenas uma carta. Por isso passava horas relendo e reformulando as frases. Depois de pronta, a carta dizia o seguinte:

Pouso Alegre, 8 de abril de 1916. Querido irmão Joaquim, Sinto muito por não poder lhe dizer pessoalmente estas palavras, mas a necessidade me obrigou a escrever esta carta. Gostaria de esperar sua chegada de Belo Horizonte, contudo acredito que eu estaria arriscando a vida de meus filhos inutilmente. Como você bem sabe, eu já não sou mais bem quisto por muita gente em Pouso Alegre. Creio que tudo isso começou quando decidi apoiar a campanha do Rui para presidente, em 1910. 39


Reconheço que, desde aquela ocasião, você me alertou para não tomar parte dessa contenda, embora você mesmo concordasse com minhas opiniões políticas. Naquela época afirmei e hoje reafirmo que precisamos de homens civis e esclarecidos como Rui Barbosa na direção de nosso país. Infelizmente, porém, temos sido conduzidos pelos interesses de alguns coronéis insensatos, que impedem o Brasil de abrir os braços para a democracia. Foi por discordar dessa política malévola, que abracei a causa civilista levantada pelo Rui, embora o conforto e a segurança me dissessem para não fazê-lo. Por conta disso, muitos amigos e conhecidos, de quem antes eu era partidário, se viraram contra mim, inclusive a família de Vicentina, e eles nunca mais me perdoaram por ser contrário às opiniões deles. Não somente os enfrentei, mas todo o Estado de Minas Gerais que apoiava o marechal Hermes da Fonseca de modo unânime. Nós não vencemos, afinal, como sempre afiancei, aquelas eleições não passaram de uma grande fraude. Você deve se lembrar de como foram escandalosos os meios que os partidários do marechal Hermes utilizaram para vencer a disputa. Além disso, nosso sistema eleitoral precário favoreceu a vitória deles, que não se mostraram nenhum pouco escrupulosos em adulterar os resultados da votação. 40


A partir de então, diante de tanta injustiça, percebi que já não poderia voltar atrás e me entreguei à agitada vida política, impulsionado pela memória de nosso falecido pai. Foi com esse espírito que, em 1914, tive a intenção de sair candidato a presidente da Câmara. Porém, meu amigo Josino de Araújo me persuadiu a desistir da candidatura através de um acordo. No entanto, exigi como condições a não candidatura de meu cunhado Octávio Meyer, além de ter o direito de assumir o cargo de vereador juntamente com três de meus companheiros de luta. Com a mesma conduta, eu vinha desempenhado a função de vereador há quase dois anos e sinto que minha atuação incomodou demais meus adversários políticos. Tanto é que recebi várias ameaças de morte, como aquelas que lhe mostrei ainda outro dia. É por isso que não é sensato continuar aqui. Hoje, fui até a sede da Câmara e entreguei minha carta de renúncia ao Sr. Eduardo Amaral. Faço você saber que vendi a Farmácia Queiroz, bem como a casa onde nasci e fomos criados, ao Dr. Olavo Gomes de Oliveira, que me havia feito tal proposta anteriormente. Minhas demais propriedades foram vendidas a vizinhos cujas terras se limitavam com as minhas, conforme eles mesmos me haviam proposto. Enfim, me desfiz de meus bens imóveis e 41


paguei minhas dívidas, segundo você e Humberto sempre me aconselharam a fazer. Amanhã cedo, eu, Vicentina e as crianças partimos de trem para São Paulo. Por enquanto, vamos ficar na Pensão Brasileira, que fica na Rua da Liberdade, mas espero adquirir uma casa própria próxima à Farmácia Palmeiras, onde devo assumir o posto de farmacêutico. Creio que devo me manter distante de Pouso Alegre por algum tempo, talvez por alguns anos. Assim, não poderei visitá-lo brevemente, mas aguardo sua visita em minha casa. Peço-lhe desculpas pelos desgostos que lhe causei, como daquela vez em que, ainda jovem e imaturo, me arrisquei a escrever versos decassílabos. Contudo, estou convencido de que fiz o que pude para honrar a memória de nossos pais e a dignidade de nossa família nesta terra, onde agora sou recompensado com desprezo e chantagens. Como você bem sabe, não tenho espírito de vingança, embora acredite que o tempo irá se encarregar de me pagar com uma justa moeda. Com saudades, Amadeu 42


Por algum tempo, a carta descansou na escrivaninha diante de Amadeu. Mesmo depois de passar o mata-borrão para eliminar o excesso de tinta que a pena não fora capaz de conter, Amadeu achou prudente esperar um pouco a tinta secar. Recostou-se no espaldar, apoiou o cotovelo direito no braço da cadeira e com a mão sustentava o queixo. Sua tarefa estava cumprida: aquela era a última carta que ele tinha que escrever antes de partir. Logo pela manhã, ele a deixaria na casa do irmão Joaquim, que estava ausente, antes de se dirigir com a família para a estação. Amadeu ficou parado naquela posição por alguns minutos, com o olhar fixo na carta, que o fez evocar fatos da infância. Recordou as aulas na casa do avô Policarpo, onde aprendeu a ler e a escrever. Lembrou-se das brincadeiras com os irmãos, que eram também seus únicos amigos, uma vez que o pai os impedia de conviver com as outras crianças da cidade. Viu também a imagem da mãe cuidando das rosas no jardim e fazendo o bolo de fubá que ele esperava ansiosamente sair do forno para comer ainda quente, acompanhado de um gole de café na sua velha canequinha esmaltada. Uma lembrança foi conduzindo Amadeu à outra, até que ele se perdeu em meio às divagações e caiu no sono. 43


Teve um pesadelo. Sonhou que caminhava sozinho pelas ruas movimentadas de São Paulo. Depois de muito tempo andando sem rumo, notou que estava perdido em meio a uma multidão de desconhecidos, que iam e vinham interminavelmente. Atordoado por aquele tumulto, tropeçou no pé de alguém, perdeu o equilíbrio e caiu. Tentou chamar por socorro, mas seu grito foi abafado pelo alvoroço, e as pessoas continuavam seu caminho sem se dar conta de que o estavam pisoteando. Num sobressalto, Amadeu acordou ofegante. Olhou ao redor de si e, aliviado, percebeu que estava na casa onde vivia desde que nascera e que já não era mais sua. Seu alívio durou até que ele viu a carta em cima da escrivaninha. Como a tinta já havia secado, pegou a carta, dobrou-a horizontalmente em três partes e colocou-a em um envelope, onde escreveu apenas: A Joaquim Queiroz. Depois, tirou da gaveta um sinete, objeto parecido com um carimbo, e a goma, uma fina pastilha vermelha. Amadeu segurou o sinete pelo cabo e esquentou a parte inferior da peça na chama da lamparina. Em seguida, pôs a goma sobre a aba do envelope e cravou-lhe o sinete aquecido. A goma derreteu, lacrando o envelope, onde ficou impresso o brasão da família Queiroz. Sentindo-se exausto, Amadeu foi para a cama, onde Vicentina parecia dormir tranquilamente. 44


Naquela noite, ele teve outro pesadelo.

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Sテグ PAULO, 1916

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Debaixo de um sol forte e de um calor infernal, o trem que vinha do Sul de Minas chegou à estação da Luz. Assim que a pesada locomotiva parou, como um grande monstro soltando fumaça pelo nariz, um turbilhão de pessoas se achegou junto ao trem. Querendo embarcar, eles enfrentavam num empurraempurra os outros que procuravam descer, num tumulto sufocante. Em meio àquela fervilhante multidão, Amadeu, a esposa e os dois filhos desceram com dificuldade do vagão em que viajaram. Amadeu desembarcou primeiro, seguido de Vicentina, da filha Margarida e do filho Vicente, que vinha por último. Margarida era uma jovem de treze anos e Vicente um rapazola de quinze. Os quatro pareciam assustados diante daquele alvoroço. Não estavam acostumados com tanta gente junta, nem mesmo quando o trem desembarcava em Pouso Alegre e a pequena estação ficava lotada. Amadeu, porém, era o menos apavorado diante daquela cena. Embora trouxesse dentro de si inúmeras incertezas quanto à vida na cidade grande, já estivera 47


em São Paulo outras vezes. Com as bagagens nas mãos, os quatro caminhavam desajeitados por entre a multidão, procurando sair daquele tumulto. Vicente e Margarida pararam por um momento, admirando uma das torres da estação, que se assemelhava à torre de uma igreja. Estavam extasiados, pois tudo lhes parecia infinitamente grande. Ao vê-los ficando para trás, Amadeu voltou até onde eles estavam e repreendeu-os para que não ficassem ali parados. Temendo a expressão rude do pai, os dois prontamente obedeceram e continuaram a tentar sair do meio daquele povo. Desde que chegara, ao ver toda aquela movimentação, Amadeu se lembrou dos últimos pesadelos que tivera: todos sobre a vinda para São Paulo. Enfim, estava ele ali, diante da temida cidade grande. Sentia-se sufocado pelo cansaço e por não saber direito aonde ir. Mas, apesar de estar tão atordoado, não demonstrava seus sentimentos para a esposa e os filhos, fingindo-se de forte. Durante toda a viagem, que durara mais de treze horas, Amadeu veio pensando no que deixara para trás e no que o esperava pela frente. Sabia que o emprego estava garantido; ao menos, tinha um ganhapão assegurado, pensava. Entretanto, atemorizava-o a 48


vida na capital, que se apresentava ameaçadora. Como seus conterrâneos de Pouso Alegre, ouvira falar de ladrões e falsários que viviam à procura por gente desavisada para cometer crimes. Amadeu também temia pela educação e pelo futuro dos filhos, embora soubesse que em São Paulo eles poderiam ter melhores condições de estudo. Sentia-se aliviado por estar a salvo das ameaças de seus inimigos de Pouso Alegre, mas, ao mesmo tempo, sentia-se angustiado por estar longe da terra que tanto amava. Diante daquela confusão de pessoas que iam e vinham, Vicentina e os filhos se acercavam dele, como que procurando um abrigo onde se esconder. Amadeu pediu-lhes que o esperassem próximos a uma larga coluna da estação e se dirigiu a um dos funcionários que ali trabalhavam. – Por favor, senhor, onde pego o bonde para a Rua da Liberdade? Ao pronunciar estas palavras, Amadeu se deu conta da ironia que elas representavam. Não sentia que estava indo rumo à liberdade, mas tinha a sensação de que estava cada vez mais preso a um destino indesejado. O homem, parecendo irritado pela interpelação, 49


apontou com o indicador uma direção e gritou a Amadeu para que procurasse pela Rua Mauá. Mesmo insatisfeito com a resposta do homem, Amadeu voltou para junto da família e eles foram em direção ao local indicado, onde deveriam esperar pelo bonde que os levaria até a Pensão Brasileira. Depois de confirmar com um transeunte qual era o local onde o bonde parava, Amadeu e sua família se juntaram a um grupo de pessoas que esperava de pé na calçada. – Aqui estamos. – disse Amadeu e em seguida deu um longo suspiro. Eles o miraram com ar de assustados e, então, Amadeu quis consolá-los: – Não se preocupem, vamos ficar bem. Ele, porém, procurava esconder a descrença em relação às próprias palavras.

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Enquanto o bonde atravessava a cidade, a família Queiroz percorria com o olhar as avenidas lotadas e os sobrados opulentos da metrópole. De vez em quando, espantavam-se diante de algum barulhento calhambeque que ziguezagueava pelas ruas. Ao se depararem com essas e outras novidades, olhavam imediatamente uns para os outros com ar de incredulidade. Depois de quinze minutos, o cobrador anunciou em alta voz que o lugar por onde passavam era a Rua da Liberdade. Assim que o bonde parou, Amadeu e sua família desceram. Embora não soubessem ao certo onde ficava a Pensão Brasileira, não foi preciso muito esforço para encontrá-la. Depois de andarem alguns metros, eles viram um grande sobrado, cujo número no alto da fachada identificava o local que procuravam. Receosos de entrar naquele prédio desconhecido, ficaram estacados diante da porta de entrada, olhando para uma longa escada que levava para o andar de cima. 51


Amadeu desafiou o medo e foi o primeiro a começar a subir os degraus. Diante da coragem dele, os outros também iniciaram a subida. Amadeu tinha receio do que iria encontrar pela frente. O instinto montanhês lhe dizia que ali poderia não ser um local respeitável para a sua família. Desde que chegara a São Paulo, cada passo aumentava-lhe a tensão pelo que os aguardava. No topo da escada, Amadeu pode certificar-se, ao menos aparentemente, de que o lugar era de respeito. Uma senhora os recebeu com grande delicadeza, o que os fez se sentirem um pouco menos desconfortáveis. Era a dona da pensão, que lhes apresentou a sala de jantar e os banheiros e os levou até os quartos. Amadeu e Vicente se estabeleceram em um quarto, que ficava ao lado de outro, onde Vicentina e Margarida se acomodaram. Cada um dos quartos tinha duas camas de solteiro, um pequeno guarda-roupa de duas portas e uma modesta mesa com uma cadeira. Ao entrar, Amadeu deixou a bagagem ao pé da cama e caminhou pelo quarto, examinando cada canto daquele lugar que ele dividiria com o filho pelas próximas semanas. Tudo ali era estranho para ele, bem diferente do quarto onde, na noite anterior, tinha escrito a carta a seu irmão Joaquim. Caminhou até a pequena mesa, passou a mão direita sobre a superfície áspera e empoeirada e isso o fez pensar em como a 52


vida estava sendo dura com ele. Finalmente, depois de tanta desavença política, estava ele ali em segurança, embora ainda se sentisse desprotegido. Agora, porém, ele não tinha para onde fugir. Era preciso enfrentar as consequências de uma vida distante de sua terra natal. Assim como aquela mesa, a vida lhe pareceu também áspera e poeirenta. Do bolso do paletó, Amadeu retirou um pequeno frasco de vidro, parecido com uma ampola. Aproximouo dos olhos e dentro dele havia um punhado de terra vermelha que se movimentava à medida que Amadeu girava o tubo de vidro. No final da tarde anterior, antes de se recolher, ele havia pegado um pouco de terra da rua em frente à Farmácia Queiroz. Aquela era a terra que havia ficado para trás, a terra vermelha que cobria as estradas que ele percorria para chegar até os seus pacientes. Era também poeirenta, mas tinha algo diferente. Amadeu descochou a tampa do frasco e o levou para perto do nariz. Como se experimentasse um perfume, cheirou o conteúdo do vidro, de olhos fechados. Ao sentir o cheiro da terra, começou a recordar cada canto de Pouso Alegre que ele conhecia. Parecia que ele estava lá, caminhando por aquelas ruas e estradas de terra, contemplando a velha catedral e o casario que se ajuntou ao redor dela durante os anos. 53


Ao abrir os olhos, Amadeu notou que o sol já começava a declinar e uma profunda tristeza tomoulhe conta da alma. Quando morava em Pouso Alegre, todos os dias, naquela hora, quando o sol estava prestes a se pôr no horizonte, ele sentia uma espécie de melancolia que se apoderava dele. Era um sentimento estranho, como se fosse a saudade de algo que ele nunca conheceu. Era uma tristeza pela vida, como se naquele momento, olhando para o espetáculo de luzes e cores que se formava por detrás dos montes, ele buscasse entender as razões da existência. Mas ali, naquele lugar desconhecido, a melancolia lhe pareceu ainda maior e a vida parecia destituída de qualquer sentido. Amadeu guardou o frasco no bolso, olhou para o quarto e viu que Vicente tinha deitado em uma das camas e agora cochilava, cansado pela viagem. Amadeu sentiu pena do filho e pensou em Vicentina e Margarida que deveriam estar ali do lado, também desanimadas pelo êxodo repentino para um lugar tão inexpressivo. Era preciso ser forte, ou pelo menos, fazer-se de forte mais uma vez. Amadeu foi até a cabeceira da cama e acordou Vicente, dizendo-lhe que era preciso desfazer as malas. O rapaz acordou contrariado, mas obedeceu às ordens do pai. Os dois começaram então a retirar as roupas e demais pertences de dentro dos 54


pesados baús e a colocar tudo no guarda-roupa. Enquanto faziam isso silenciosamente, Amadeu começou a pensar que sua tarefa agora era providenciar tudo para que a família vivesse novamente em conforto. No outro dia cedo, seu irmão Humberto estaria ali para levá-lo até a farmácia onde Amadeu deveria trabalhar. Era preciso retomar o ganha-pão, matricular os filhos em uma boa escola e encontrar uma boa casa, que logo tudo se arranjaria. Assim, Amadeu se deixou levar pela preocupação com o futuro e acabou se esquecendo aos poucos da saudade que sentia de Pouso Alegre. De vez em quando, alguma lembrança insistia em voltar à sua mente, mas antes de se entregar aos devaneios de que gostava tanto, imediatamente concentrava-se na ideia de que precisava levar em frente a sua existência. Foi assim que, aos poucos, Pouso Alegre foi se tornando apenas uma boa lembrança, à qual Amadeu se dedicava cada vez menos para se votar ao destino da esposa e dos filhos.

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1918

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Amadeu entrou no quarto, acendeu a luz e trancou a porta como se quisesse esconder algum segredo. Tirou o paletó desajeitadamente e jogou-o em cima da cama, desprezando a arara onde costumava pendurá-lo religiosamente todos os dias. Apressado, retirou de dentro da gaveta da escrivaninha a caneta, o tinteiro e algumas folhas de papel em branco. Não perdeu tempo pensando que seria prudente pegar também o mata-borrão. Deixou-o dentro da gaveta. Sentado na ponta da cadeira, Amadeu começou a escrever desesperadamente, como se tivesse pouco tempo para fazê-lo. Parecia que havia algo que ele precisava passar para o papel imediatamente, antes que fosse esquecido. A mão direita segurava a pena e tremia, na ânsia de obedecer aos caprichos da mente. De vez em quando, ao molhar a ponta da caneta no tinteiro, sem perceber, Amadeu espalhava algumas gotas de tinta sobre a superfície da escrivaninha. De fato, ao contrário do que costumava fazer, ele não estava nem um pouco preocupado se estava ou não manchando a mobília nova. Nas noites anteriores em 57


que ali estivera para contabilizar suas receitas e despesas, enquanto escrevia, Amadeu tinha o constante cuidado de não pingar tinta no móvel, que há poucos meses ele havia mandado fazer para lhe servir de escrivaninha. Aquela era a última peça da mobília que ele e Vicentina haviam comprado para a casa no bairro Santa Cecília, onde viviam há quase dois anos. Depois de algumas semanas de trabalho na Farmácia Palmeiras, Amadeu encontrou uma bela casa nas proximidades de seu novo emprego e deixou a Pensão Brasileira. Era simples, não acompanhava outras do bairro que se destacavam pela suntuosidade, mas servia para a família de Amadeu que estava acostumada com a vida rústica em Pouso Alegre. Além do mais, qualquer casa, por menor e menos confortável que fosse, era melhor para eles do que as acomodações da Pensão Brasileira, onde tiveram que dividir espaço com desconhecidos. Em seu quarto, na nova casa, Amadeu escrevia com voracidade. Era como se ele tivesse tudo pronto na mente e sua mão apenas transferisse automaticamente os pensamentos para o papel. Ele, porém, sentia que tudo aquilo que escrevia pulsava, como se estivesse ganhando vida própria. Não eram apenas ideias que nas últimas horas brotaram da imaginação dele, mas aquelas linhas escritas com desespero eram como um 58


ser vivo que ansiava por nascer. Apesar do cansaço das últimas semanas, Amadeu não interrompia a escrita, a menos que lhe faltasse alguma palavra mais apropriada ou que a tinta da pena acabasse. Nos últimos dias, ele trabalhara incessantemente para combater a epidemia de gripe que assolava a capital paulista. Por falta de funcionários, tinha fechado provisoriamente a farmácia e se dedicava a cuidar pessoalmente dos doentes do bairro Santa Cecília. Ele voltara a fazer um trabalho parecido com aquele que fazia em Pouso Alegre, indo de casa em casa para visitar os pacientes das redondezas que precisavam de assistência médica. Foi por causa da necessidade de retomar o ofício de carimbamba, que Amadeu voltou a pensar cada vez mais em sua terra natal. Embora as condições nas quais ele agora cuidava dos doentes paulistanos fossem diferentes da situação em que se encontrava a gente enferma de Pouso Alegre, elas o fizeram lembrar de quando ele cavalgava à garupa do amigo Espada pelas distantes e poeirentas estradas de terra. Durante as consultas no bairro Santa Cecília, um semblante ou uma fala o levavam a se lembrar do povo da roça de Pouso Alegre, ao qual ele se dedicara desde que seu pai falecera. As frases continuavam brotando do papel. Por mais que Amadeu se preocupasse em se manter dentro 59


dos limites da norma culta, não se abstinha de expressar na fala dos personagens uma ou outra expressão coloquial dos caboclos de sua terra. Essas falas vinham até ele naturalmente, como se ele ouvisse as vozes dos homens e mulheres que habitavam na zona rural de Pouso Alegre. Era como se eles estivessem ali, segredando alguma palavra ao pé do ouvido de Amadeu. Durante uma consulta na tarde daquele dia, um paciente excêntrico se lamentou a Amadeu por não poder ir ao Cine Royal, que naquela noite voltaria a fazer exibições depois de alguns meses fechado por causa da epidemia de gripe. Esse paciente era um amante da cinematografia, que por sua vez não agradava muito a Amadeu. No entanto, Amadeu sentiu-se tocado pelo entusiasmo do homem, impossibilitado de comparecer à sessão, e decidiu ir ao cinema naquela noite. Convidou Vicentina e os filhos para irem com ele ao Cine Royal, que ficava a poucos quarteirões de sua casa. Aconteceu que, enquanto assistia ao filme, Amadeu se emocionou ao ver em uma cena o carro de bois, que não via há mais de dois anos. Lembrou-se imediatamente da última vez que o vira, poucos dias antes de se mudar para São Paulo. A cena mostrava um carro de bois andando por uma longa estrada de terra, assim como a que Amadeu presenciou naquele 60


dia em que fora visitar pela última vez o amigo Xavier. A imagem vista no cinema fez Amadeu recordar de forma vívida a outra cena que vira em Pouso Alegre. Seus olhos estavam fixos na tela, admirando cada detalhe do carro, relembrando o nome de cada peça que o compunha, como naquele dia na estrada do Aterrado. Nesse instante, o mesmo sentimento que arrebatava as fantasias de Amadeu quando ele era apenas um menino foi responsável por levá-lo a um estado de êxtase, impulsionado pela bucólica imagem do carro de bois, que não ficou na tela mais do que trinta segundos. Antes mesmo de acabar o filme, Amadeu já não conseguia nem sequer contemplar a locomotiva a vapor que dominava a tela e nem os novos calhambeques que eram a sensação da época. Ele só conseguia pensar no carro de bois e no que faria ao chegar a casa. Em sua mente, fervilhavam inúmeras ideias impulsionadas pela emoção que havia tomado conta dele. Em princípio, eram desordenadas, caóticas; mas à medida que elas fluíam, Amadeu começou a ordená-las sob a vontade de escrever um conto que falasse sobre o carro de bois. Amadeu esforçou-se por se lembrar de cada detalhe da cena daquele dia em Pouso Alegre, em que viu um menino, que ia à frente do carro de bois, 61


guiando a comitiva. Recordou-se da agilidade do garoto, que mesmo frágil se enfiava inclusive debaixo do carro para exercer sua função de “candieiro”. Então, Amadeu lembrou também que, naquele dia, havia tido um mau pensamento: a ideia de o menino ser esmagado pelo carro de bois. Foi com base nessa ideia que ele começou a estruturar a trama. – Será uma história triste. – Ponderou Amadeu para si mesmo, enquanto Vicentina e os filhos estavam entretidos pelo filme. – A vida da gente do campo não é fácil, não é feita de fantasias. É dura e áspera, como tem sido a minha. E muitas outras coisas de sua terra Amadeu foi ajuntando e colocando na história. Terminada a sessão, Amadeu e sua família voltaram a pé para casa. Margarida e Vicente estavam eufóricos e comentavam um com o outro sobre as maravilhas que tinham visto no filme. Vicentina notou que Amadeu estava quieto e pensativo, enquanto caminhavam de volta pra casa. – Está tudo bem, querido? Vicentina com receio de perturbá-lo.

Perguntou

– Está sim, Vicentina. Como as crianças, estou apenas pensando em algumas coisas que vi naquele filme. 62


Depois de dizer isso, Amadeu tornou a pensar no conto. Há mais de vinte anos, ele não escrevia suas histórias, desde que assumira a direção da Farmácia Queiroz em Pouso Alegre. Por isso, naquele momento, ele experimentava algo diferente, que há muito tempo não sentia. Era como se através daquele conto, que ainda estava por nascer, ele pudesse voltar a Pouso Alegre e reviver as lembranças de sua amada terra que ficara para trás no espaço e no tempo. Quando chegou a casa, Amadeu foi imediatamente para o quarto e fechou-se, deixando Vicentina preocupada. No quarto, ele teve somente o trabalho de colocar no papel tudo o que havia pensado enquanto estava no cinema. Não quis esperar até o outro dia. Naquela mesma noite, tratou de escrever o conto, que já existia dentro dele. No outro dia, logo pela manhã, antes de retomar o trabalho, Amadeu colocou tudo o que havia escrito dentro de um envelope e o enviou anônimo para a redação do jornal O Estado de S. Paulo.

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O sol estava nascendo quando Amadeu abriu a porta da sala de sua residência no bairro Santa Cecília e caminhou apressadamente pela varanda em direção ao portão. Nos últimos meses, durante a epidemia de gripe que tomou conta de São Paulo, ele acordava de manhãzinha e esperava pelo café de Vicentina e pelo seu jornal matinal, antes de sair para visitar os pacientes do dia. Nos últimos dias, porém, Amadeu esperava mais ansiosamente pelo jornal do que pelo cafezinho. Assim que o jornaleiro passou de bicicleta e arremessou o exemplar do dia para dentro da varanda, Amadeu assomou imediatamente à porta e correu para pegar o jornal. Recentemente, esse era o seu hábito mais apreciado. À noite, antes de dormir, ficava deitado pensando no jornal que viria no dia seguinte, trazendo talvez a notícia que ele aguardava. Assim Amadeu fazia até cair no sono. Logo de madrugada, ele acordava, avisado pelo seu relógio biológico de que o jornaleiro estava prestes a passar. Amadeu, então, se levantava ansioso e se vestia 64


para ficar esperando, como uma criança que espera pelo presente prometido. Embora já tivessem passado quase duas semanas que ele repetia essa rotina sem nenhum resultado, Amadeu não desanimava e, esperançoso, acordava todos os dias de manhã para ouvir o sininho da bicicleta do jornaleiro. Pois foi nessa manhã que Amadeu, repetindo a sua prazerosa rotina, pegou o jornal do chão e foi logo o abrindo. Desprezou as primeiras páginas que tratavam de política e das últimas notícias sobre a Grande Guerra, e foi até a seção de literatura. Ao folhear as páginas que no momento lhe interessavam, Amadeu se surpreendeu ao ver impresso em letras maiúsculas no alto de uma página o título de seu conto: O CANDIEIRO. Disposta em seis finas colunas, com uma letra miúda, a história ocupava uma página inteira do jornal. Abaixo do título, estava escrito: Autor anônimo. Ao ver que sua história fora publicada no jornal O Estado de S. Paulo, na seção conhecida como Estadinho, Amadeu abriu um largo sorriso. Suas mãos segurando o jornal começaram a tremer e ele teve vontade de soltar gargalhadas. Mas ele se conteve, como se uma espécie de sentimento autorrepressivo lhe inibisse um pouco da vaidade. 65


Ele sentiu a mesma emoção que costumava tomar conta dele quando era apenas um rapazola pouso-alegrense, que enviava suas historietas para os jornais da cidade e região. Lembrou-se do primeiro conto que escrevera e que enviara para a Gazeta de Ouro Fino, que o publicara, e do quanto se sentiu satisfeito ao ver suas palavras impressas no jornal. O conto se chamava O tutelado, e Amadeu se lembrou do quanto se sentiu orgulhoso por escrever uma história que ele julgou fiel à realidade dos caboclos de sua terra. Essa mesma satisfação o tomava agora, enquanto lia O candieiro e se admirava da própria criação. Notou que o jornal se mantivera fiel ao vocabulário regional que Amadeu tinha inserido na fala dos personagens e que apenas algumas correções ortográficas haviam sido feitas. Percebeu ainda uns dois ou três erros de impressão, provavelmente cometidos pelo funcionário da tipografia que se enganou na hora de selecionar os tipos. Isso, porém, não o chateou, pois ele estava contente o bastante para que esses pequenos detalhes não lhe roubassem o orgulho de ver um de seus contos publicado depois de mais de vinte anos. Ao ouvir a voz da esposa chamando-o da cozinha para o café, ele correu para dentro de casa com o jornal nas mãos. Quando Amadeu chegou à cozinha, 66


Vicentina estava sentada no banco de madeira, tomando café. A cozinha da família Queiroz tinha o jeito das cozinhas de Pouso Alegre. Com exceção do fogão de lenha, que na nova casa não havia, nela tinha tudo o que uma cozinha pouso-alegrense possuía: as panelas, chaleiras e caldeirões de ferro, o velho pilão, a mesa e os bancos feitos em madeira rústica, as canecas esmaltadas colocadas sobre uma prateleira, o moedor de carne. Alguns desses utensílios nem mesmo chegaram a ser usados por Vicentina em São Paulo, mas ela fazia questão de preservá-los em sua cozinha, como se mantê-los ali fizesse ela e a família não se distanciarem tanto de Pouso Alegre. Amadeu também possuía o mesmo zelo para com as coisas que eles tinham trazido de Pouso Alegre. Todos os dias, ele tomava café na mesma canequinha esmaltada que há anos o acompanhava. Ela já estava velha pelo uso e amassada em vários lugares devido a algumas quedas, mas continuava agradando ao gosto de Amadeu. Aqueles objetos faziam ele, Vicentina e os filhos se sentirem em casa. Ao ver Amadeu entrar na cozinha, Vicentina encheu com café a canequinha do marido até a boca. Ela já havia cortado algumas talhas de queijo fresco e umas fatias de bolo de fubá que ela acabara de assar. Mas Amadeu nem se deu conta de que o cheiro do seu 67


bolo preferido havia tomado conta de toda a casa. Ele ainda não havia voltado de seu êxtase. – Olhe, Vicentina! – Disse ele abrindo o jornal sobre a mesa. – Publicaram o meu conto! Surpresa com a notícia tão esperada pelo marido, Vicentina olhou para o jornal diante de si e, ao ler o título do conto no alto da página, ficou orgulhosa do marido. Não entendia muito de literatura, mas sentia-se feliz pela felicidade de Amadeu. – Parabéns, querido! – Disse ao levantar-se do banco para abraçá-lo. – Tenho certeza de que este é apenas o primeiro de muitos. – É, pode ser. – Respondeu Amadeu, que apontou para o jornal e continuou: – Aqui embaixo diz que eles querem que o autor lhes envie outros contos. – Que ótimo! Isso quer dizer que eles gostaram. E você pensa em mandar outro? – Ainda não sei. Por enquanto, não tenho nada escrito, embora eu tenha algumas ideias para amadurecer... Apesar de dizer isso a Vicentina, Amadeu, depois de ver o seu texto publicado, estava convicto de que voltaria a escrever e que continuaria a enviar seus 68


contos para a redação do jornal. Como Vicentina havia dito, Amadeu pensava que os editores deviam ter realmente gostado do conto, pois se mostraram interessados em que outros fossem enviados. Além disso, Amadeu estava consciente de que não enfrentava mais os obstáculos que em Pouso Alegre o impediam de se dedicar à literatura. Depois do casamento com Vicentina e da morte do pai, Amadeu fora obrigado a assumir as responsabilidades domésticas, além de se tornar o proprietário da Farmácia Queiroz. Como se não bastasse, o envolvimento com a política, que o levou a ser eleito juiz de paz e, posteriormente, vereador da cidade, o fez se distanciar ainda mais de seus contos. Em São Paulo, porém, ele já havia se estabilizado como gerente da Farmácia Palmeiras, que, embora estivesse de portas fechadas, logo voltaria ao funcionamento e ele teria apenas que exercer o ofício de farmacêutico. Agora, ele teria tempo de sobra para voltar a escrever para os jornais, como fazia quando era apenas um adolescente. Amadeu sentou-se ao lado de Vicentina e, enquanto tomavam café e conversavam, ele pensava no conto que havia escrito e nos outros que ainda estava por escrever. À noite, depois de visitar os pacientes do dia, 69


Amadeu fechou-se no quarto e começou a escrever seu próximo conto. Uma semana depois, enviou a história pelo correio para O Estado de S. Paulo, da mesma forma como enviara a anterior. Desta vez, porém, logo abaixo do título, ele teve o cuidado de escrever: A. de Queiroz. Alguns dias depois, o jornal publicou o conto de Amadeu, na mesma seção em que O candieiro havia figurado algumas semanas antes. A partir de então, Amadeu não parou mais de escrever. Depois que chegava do trabalho, ele jantava e ia direto para o quarto a fim de compor suas histórias, que, assim como O candieiro, se ambientavam na zona rural de Pouso Alegre. Elas eram narradas por um carimbamba pouso-alegrense, que atravessava longínquas estradas de terra para visitar e tratar de seus pacientes. O carimbamba era uma espécie de farmacêutico prático, sem formação acadêmica, que exercia a medicina com base no conhecimento adquirido através da experiência e que era diferente do curandeiro ou benzedor. Os doentes eram peões, lavradores e donas de casa, uma gente simples que, por viver distante da cidade, só dispunha desse tipo de auxílio médico. Na maioria das histórias que Amadeu escrevia, o narrador se deparava com situações de sofrimento, 70


como casos de doença e de morte. Muitas vezes, os finais eram trágicos e produziam nos contos um tom amargo, pois os personagens passavam por situações de perda, que os tornavam melancólicos. Diante da dor de perder um ente querido, eles se punham a questionar a natureza que os cercava, mas obtinham como resposta apenas o silêncio. Em seus contos, Amadeu procurava também registrar elementos da cultura de sua terra, como os costumes e as palavras e expressões que a gente de Pouso Alegre era habituada a utilizar no dia a dia. Logo que compunha alguma história, imediatamente Amadeu a enviava ao jornal O Estado de S. Paulo, que a publicava alguns dias depois. Assim aconteceu até que os contos de Amadeu se popularizaram entre os paulistanos e ele passou a enviá-los também a outros jornais e revistas da capital.

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1927

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O ar frio da manhã entrava pela janela e inundava o escritório, enquanto alguns raios de sol clareavam a escrivaninha. Antes de iniciar o expediente, Amadeu estava sentado, imóvel em sua cadeira, recostado no espaldar estofado, com os braços e pernas cruzados. Há algum tempo, seu olhar permanecia fixo na mesa diante dele. Sobre a escrivaninha, estavam dispostos um ao lado do outro, da esquerda para a direita, uma pilha de papéis, um livro e uma carta, para os quais Amadeu olhava alternadamente. Cada um desses três objetos causava em Amadeu uma emoção diferente. Dois deles, até então, o faziam se sentir bem, enquanto o outro o deixava preocupado. A pilha de papéis à esquerda era uma série de contas atrasadas a serem pagas. Há cinco anos, Amadeu deixara o bairro Santa Cecília para viver no Centro de São Paulo. Ele fora convidado pelos donos da firma Baruel, proprietária da Farmácia Palmeiras, a 73


assumir o cargo de gerente da Casa Baruel, na Rua Direita, próxima à Praça da Sé. Depois de três anos trabalhando nessa drogaria, Amadeu decidiu abrir sua própria farmácia. Ele, então, estabeleceu a Farmácia Queiroz, na Rua Vergueiro, e sua filha Margarida, que também era farmacêutica, tornou-se responsável pela botica. No início, os negócios iam bem para Amadeu na nova farmácia, mas, com o tempo, ele começou a contrair muitas dívidas com fornecedores. Foi assim que o sonho de estabelecer a Farmácia Queiroz em São Paulo foi se desfazendo aos poucos para Amadeu. Era para essas contas sobre a mesa que ele olhava com preocupação. Depois de mais de dez anos morando em São Paulo, Amadeu voltou a reviver o pesadelo de ter que se desfazer de sua farmácia. Nos últimos dias, a firma Baruel lhe havia feito a proposta de vender a Farmácia Queiroz e reassumir o posto de gerente da Casa Baruel. No entanto, Amadeu se sentia contrariado por ter que fazer isso e se mostrava relutante diante de tal proposta. Ao lado da pilha de contas a pagar, no meio da mesa, havia o exemplar de um livro. A capa, na qual não havia gravuras, era de um branco amarelado, 74


porém estava nova em folha. No centro dela, estava escrito em letras grandes e pretas: Praga do amor, e, no alto, lia-se: Amadeu de Queiroz, com uma letra um pouco menor. O formato do livro era pequeno, com uma encadernação simples, em brochura. A espessura das folhas do miolo do livro quase não se distinguia da espessura da capa. À direita do livro, havia uma carta recémescrita, que dizia o seguinte:

São Paulo, 27 de setembro de 1927. Querido Quim, Espero encontrá-lo novamente com saúde. Fiquei muito contente ao receber sua última carta datada de 11 do corrente, parabenizando-me pela publicação do meu primeiro romance, “Praga do amor”, e agradecendo-me por tê-lo dedicado a você. Na verdade, sou eu quem deve lhe ser grato pelo apoio que você tem me dado ao longo destes anos. Aquela dedicatória não é mais que uma pequena homenagem, diante do muito que você tem feito por mim. Desde aquele fatídico ano de 1924, quando concluí esse romance, que eu não tenho experimentado uma emoção como esta que sinto ao ver diante de mim um exemplar desse meu primeiro livro. Digo 75


“primeiro” não porque pretendo escrever muitos, mas porque se trata do meu primogênito e todo primogênito costuma agradar ao pai. Como eu ia dizendo, há quase três anos, esse romance ficou entalado em minha garganta, depois daquele fiasco que foi o Concurso de Romances Inéditos da Academia Brasileira de Letras. Apesar de tudo, não me arrependo de ter inscrito “Praga do amor” – que na época se chamava “Uma novela da vida” – nesse concurso. Aliás, sou muito grato a você por ter me persuadido a fazê-lo. Graças a esse concurso, eu me convenci de que não devo esperar nada da carreira literária e muito menos ainda dos literatos. Este meu primeiro romance foi também minha primeira desilusão no mundo das letras. Felizmente, porém, as desilusões não nos enfraquecem, mas nos tornam mais fortes para enfrentar os desafios da vida. Como você bem sabe, a ABL concedeu-me o prêmio do tal concurso, mas quando o meu nome foi anunciado no plenário a fim de ser confirmado como o vencedor, um célebre imortal se manifestou contra e, então, armou-se uma discussão no seio da Academia. Por fim, para apaziguar os ânimos exaltados, ficou decidido que o concurso daquele ano seria anulado e o prêmio não seria dado nem a mim nem ao meu concorrente. Depois

desse

fato, 76

foi

tanto

o

meu


descontentamento, que decidi arquivar o caso e também o romance. Ele continuaria inédito para sempre, guardado na gaveta da minha escrivaninha, se não fosse pela sua insistência e o apelo de Vicentina e de alguns amigos paulistanos para que eu o publicasse. Confesso-lhe que minha desilusão foi tão grande que, se não fosse por vocês, eu realmente não teria publicado “Praga do amor”. É, sobretudo, por isso que o livro foi dedicado a você, pois, finalmente, graças a seus esforços, decidi procurar um editor que aceitou publicá-lo. Eu devo lhe agradecer e reconhecer que, mais uma vez, você estava certo. E isso não poderia ser diferente, afinal os irmãos mais velhos sempre estão com a razão. Acredito que a crítica não cuidará de meu livro, sobretudo porque ele não segue a “moda”. Depois da Semana de Arte Moderna de 1922, boa parte dos intelectuais paulistanos de prestígio tem procurado seguir o desarranjo pregado pelo Modernismo, e tudo o mais que foge dessa regra tem sido deixado de lado por eles. Não temo em assumir que essa corrente literária não me agrada. Não aprecio o uso libertino que eles fazem da linguagem. Além disso, os modernistas pretendem revolucionar a arte brasileira, abandonando tudo o que eles acreditam não ser genuinamente “brasileiro”, mas parecem ignorar que 77


as vanguardas importadas por eles da Europa destoam desse princípio que os norteia. É por isso que eu prefiro seguir o meu próprio estilo, livre de qualquer compromisso com quem quer que seja. Não sigo ninguém e também não quero que ninguém me acompanhe, pois acredito que cada escritor deve seguir suas próprias inclinações literárias. Sei que não devo esperar da crítica bons elogios, mas, por outro lado, acredito que meus leitores e amigos esperavam que eu os presenteasse editando “Praga do amor”. A propósito, a mudança do título foi bem mais que um simples capricho; ela se deu pela necessidade de exorcizar o romance do mau agouro que o acompanhava desde o tedioso concurso. Embora eu ainda guardasse alguma mágoa dos acontecimentos de 1924, assim que o livro ficou pronto, meu editor me convenceu a submeter o romance a um novo concurso da ABL. Há poucos dias, recebi a notícia de que receberei deles uma menção honrosa. Como não sou desaforado, pretendo aceitá-la de bom grado, porém com a certeza de que não devo esperar nada de bom de alguns imortais. Não é para eles, afinal, que eu escrevo, mas sim para meus leitores, dos quais aceito, lisonjeado, as críticas que me fazem – sejam boas ou más. 78


Agora, que você tem meu livro em mãos, peço que o leia novamente – pois várias vezes você o leu quando ele era apenas um rascunho – e, novamente, faça-me suas críticas – quem sabe as páginas impressas mudem a afeição da minha história. Assim que você terminar a leitura, peço-lhe que me envie imediatamente suas anotações. Vou aguardálas ansiosamente. Com estima, Amadeu Depois de algum tempo pensando sobre a carta que acabara de escrever para o irmão Joaquim, Amadeu pegou o livro que estava diante de si e começou a folheá-lo vagarosamente. Suas mãos tocavam página por página do romance, procurando sentir a textura de cada uma delas. Ao passar os dedos sobre as letras impressas no papel, Amadeu sentiu-as em alto relevo e isso o fez pensar que suas palavras estariam gravadas para sempre. Essa sensação o encheu de contentamento, mas, logo em seguida, ao se lembrar do polêmico concurso, do qual participara há três anos, Amadeu se pôs a se questionar quanto ao valor do que escrevera. Aquele romance merecia realmente ser publicado? Era um 79


livro digno de ser lido pelo público? Um livro digno de ter sua existência protelada? Amadeu começou a pensar no destino de seu livro. Naquele momento, Praga do amor estava prestes a receber um prêmio da Academia Brasileira de Letras, que o encheria de prestígio entre os críticos e leitores. Mas, e quanto ao futuro? Quem se lembraria de Praga do amor daqui a cem anos? Todas essas perguntas se punham interminavelmente diante de Amadeu e o medo de que ninguém, nem mesmo uma única pessoa, se lembrasse de seu romance no futuro levou o escritor a mergulhar em um mar de inquietações. Embora se dissesse descrente quanto à carreira literária, Amadeu ainda alimentava o sentimento de ser reconhecido como um grande escritor. Na verdade, este embate era travado constantemente dentro de Amadeu: o receio de ser esquecido versus a descrença na literatura. Depois da publicação de seu primeiro romance, ele percebera claramente que os ganhos com a literatura jamais poderiam sustentar sua família. As dívidas estavam ali, bem diante dele, e não o deixavam mentir para si mesmo. Continuava sendo inviável para ele dedicar-se somente aos livros. No entanto, a tentação de se tornar famoso no mundo das letras ainda o atormentava. Apesar de não 80


destinar os contos e o romance aos críticos e literatos, mas a um público mais popular, Amadeu se entusiasmava quando se deparava, em algum jornal ou revista da capital, com uma crítica feita por algum entendido em literatura. Em meio a essas inquietações e ao receio de ter que vender a Farmácia Queiroz, Amadeu temia que seu primeiro livro acabasse em um porão abandonado, misturado a um monte de quinquilharias.

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1938

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A velha porta de madeira se abriu, um homem entrou vagarosamente no escritório e fechou-a novamente. O cômodo era simples, possuía apenas uma grande escrivaninha, duas pequenas estantes e duas cadeiras, tudo feito em madeira. As estantes, repletas dos mais diversos livros, dispunham desde volumes da literatura brasileira e universal a enciclopédias e almanaques de medicina. Além disso, nelas havia antiquíssimos alfarrábios, com as páginas amareladas pelo tempo, muitos deles carcomidos por traças. O homem devia ter uns sessenta anos, era magro e de estatura mediana e vestia um terno negro. A calva já o havia dominado quase que completamente, com exceção da parte posterior da cabeça, que ainda continha uns ralos fios de cabelo. Um grande bigode lhe adornava a face, porém não chegava a lhe cobrir o lábio superior. Apoiado no alto do nariz, um par de óculos redondos completava-lhe a fronte, dando ao homem uma aparência caricata. Esse homem era Amadeu de Queiroz. 83


Logo de manhã, depois de tomar o café que Vicentina lhe fazia todos os dias e antes de descer para o trabalho, ele se dirigiu ao seu escritório, um cômodo improvisado na parte de cima do sobrado onde eles moravam há quase dez anos. Assim que entrou, ele caminhou em direção a uma das estantes, como se já tivesse um rumo certo. Olhando para a única prateleira que não estava cheia de livros, mas que, ao contrário, possuía apenas poucos volumes, Amadeu pôde ver distintamente o título de um deles impresso em maiúsculas no meio da lombada: A VOZ DA TERRA. Ele retirou cuidadosamente o livro do lugar, com medo de que o manuseio fizesse mal àquele exemplar. No entanto, o livro não era velho como muitos outros que ali havia, o que dispensava o excessivo cuidado de Amadeu. Na verdade, aquele volume era novo e havia sido impresso há poucas semanas. O livro estava colocado numa prateleira especial, juntamente com os outros que Amadeu havia publicado nos últimos anos. Depois de retirá-lo da estante, tendo-o nas mãos, Amadeu fixou o olhar no título de seu terceiro romance. Sentia-se orgulhoso por ter escrito aquele livro e satisfeito por ter escolhido um nome tão forte e original para ele. De fato, aquele título traduzia a 84


experiência que Amadeu vivera em Pouso Alegre, quando se afastava de tudo e de todos, com o objetivo de contemplar a natureza de sua terra, como se ela fosse um ser com quem ele pudesse dialogar, a quem ele pudesse ouvir. Diante da dureza da vida, nos momentos em que Amadeu se encontrou sozinho e desamparado, a natureza sempre se apresentou como refúgio para as inquietações que ele trazia dentro de si. Era na paisagem, que se estendia à frente dele, que Amadeu buscava encontrar respostas para suas angústias e indagações. Amadeu se lembrou das vezes em que a terra onde nascera lhe serviu de companheira. Como naquele dia em que ele voltava da casa do amigo Xavier e a dor de ter que abandonar Pouso Alegre lhe tomara conta do coração. Sentiu imensa saudade dos vales e montanhas que o acompanharam desde menino. Essa saudade, que ele nunca deixaria de sentir, apesar de atenuada pelo tempo, foi o que o motivou a voltar a escrever depois de tantos anos de silêncio literário. Ela foi a grande responsável pelas obras que ele publicara até aquele momento e pelas que ele ainda comporia. Amadeu tinha consciência disso. Ao escrever sobre sua terra natal, era como se ele pudesse reviver e eternizar o tempo em que ele 85


vivera na bucólica Pouso Alegre que ficara no passado. Ao contrário do que Amadeu pressentira antes de publicar A voz da terra, o romance obteve grande sucesso e foi bem recebido pela crítica. A Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe uma menção honrosa, e o êxito desse livro favoreceu a publicação da segunda edição de Praga do amor. Era para a lombada do seu primeiro romance, que havia ganhado uma nova edição, que Amadeu agora olhava. Ele guardou de volta A voz da terra na estante e retirou os dois exemplares de Praga do amor que estavam na prateleira. Um deles era a primeira edição de 1927, o mesmo que ele guardara consigo desde a sua publicação. O outro se tratava da nova edição, que havia chegado no dia anterior. Em uma das primeiras páginas desse último livro, Amadeu havia escrito à mão, na noite anterior:

Saiu em 4 de julho de 1938 Amadeu segurou os dois volumes lado a lado e começou a compará-los. Enquanto o primeiro era de uma encadernação barata, o segundo fora impresso em papel de qualidade, com a capa mais espessa do que as folhas do miolo, ao contrário do primeiro. A segunda edição de Praga do amor era muito parecida com a de A voz da terra. 86


Ao fazer essas observações, Amadeu percebeu como a literatura era por vezes injusta com determinadas obras. Se não fosse pela edição de A voz da terra, Praga do amor certamente estaria entregue ao esquecimento. “No mundo das letras é assim: basta um autor se tornar conhecido por uma de suas obras, que todas as outras, antes desprezadas, ganham novo interesse”, concluiu Amadeu para si mesmo. Enquanto segurava os dois volumes, Amadeu se lembrou do dia em que ficara inseguro quanto ao destino de seu primeiro romance. Apesar de ainda ter temores quanto ao futuro, o escritor se sentiu mais seguro diante da aparente evolução que o livro havia conquistado. Ao contrário daquele outro dia, Amadeu estava um pouco mais confiante, embora não completamente. Em seguida, Amadeu pôs de volta os dois livros e pegou outro bem mais fino, que estava ao lado deles. No centro da capa azulada, estava escrito Sabina. Imediatamente, o escritor se lembrou do motivo que o levara a escrever aquela novela. Quando era jovem, Amadeu se apaixonou por uma moça de Pouso Alegre que parecia corresponder aos sentimentos dele. Ele revelou a ela todo o seu amor e ela consentiu que eles namorassem. Tudo ia muito bem para eles até que apareceu na cidade um “cometa” – como eram conhecidos os vendedores, vindos das cidades grandes, 87


que viajavam pelas cidadezinhas do interior para fazer seus negócios. A moça ficou encantada pelo tal cometa, que também se encantou por ela. A jovem, então, se entregou de amores ao desconhecido e deixou Amadeu entregue aos sofrimentos de um amor nãocorrespondido. Ao folhear o livro, Amadeu sentia que esse acontecimento ainda lhe causava uma pequena, porém incômoda dor dentro do peito. Ele sentia que amara aquela moça como nunca amaria ninguém. Todo o amor que ele sentira por ela havia se transformado em uma grande decepção, e ele percebeu que nunca mais conseguira amar ninguém com tamanha intensidade. Nem mesmo Vicentina, sua companheira há quase quarenta anos. Amadeu começou a se questionar se aquela moça, hoje uma senhora, teria, por acaso, lido aquele livro. Supondo que ela o tivesse lido, Amadeu se sentiu vingado ao pensar que havia obtido sucesso à custa dela. Ao pôr Sabina no lugar do qual a havia tirado, Amadeu também guardou todas essas emoções onde elas costumavam ficar. Logo depois, o escritor retirou da estante o livro 88


Pouso Alegre e sua imprensa. Era um estudo histórico que ele havia escrito sobre sua terra natal e o surgimento dos jornais em Pouso Alegre. Para compor esse livro, Amadeu passou anos pesquisando em antigos livros, jornais e documentos, muitos dos quais se encontravam em seu poder. Ele apreciava a pesquisa histórica e, inclusive, havia escrito, no ano anterior, um ensaio de cunho histórico chamado São Paulo e o Sul de Minas. Apesar de estar distante de Pouso Alegre, Amadeu era também um exímio estudioso da linguagem e dos costumes de sua gente, o que resultou no pequeno volume Provérbios e ditos populares, também publicado em 1937 e que estava junto com os outros na estante. Outro trabalho que ele havia publicado era O senador José Bento, livro que ele pegou da prateleira, enquanto ainda segurava Pouso Alegre e sua imprensa. Amadeu sentia grande contentamento por ter escrito esse estudo sobre a vida do senador José Bento e do modo como esse político havia proporcionado desenvolvimento à então vila de Pouso Alegre. Na verdade, mais do que admiração pela figura do Senador, Amadeu se identificava com ele, sobretudo por causa das perseguições políticas que ambos haviam sofrido, motivo que fizera o escritor se mudar para São Paulo. O senador José Bento havia sido assassinado e 89


acreditava-se que o crime possuía motivações políticas. Ao folhear as páginas do livro, Amadeu pensou que poderia ter tido o mesmo fim que teve o Senador. Quando terminou de examinar esse volume, Amadeu pegou, finalmente, o último livro que restara na prateleira. Esse, particularmente, não agradava muito ao escritor, que o julgava excessivamente romântico. Era o romance O intendente do ouro, publicado no ano anterior e que não teve nenhuma repercussão entre a crítica e os leitores. Apesar de não apreciar esse romance, Amadeu não o desprezava e fazia questão de mantê-lo junto às outras obras que havia escrito nos últimos dez anos. Amadeu colocava o livro de volta, quando ouviu três leves batidas na porta do escritório. – Entre. – ele disse. A porta se abriu e uma mulher envelhecida apareceu. Era Vicentina. A aparência dela havia envelhecido mais do que a de seu marido. Ela era mais jovem que Amadeu, mas seu semblante dizia o contrário. Tinha os cabelos presos em um coque no alto da cabeça. Muitos deles, antes negros, estavam brancos. Seus olhos claros e levemente caídos carregavam o peso de muitos anos cuidando da casa e da família. 90


– Estão chamando você na farmácia. – disse Vicentina sem entrar no escritório. – É urgente? – Amadeu perguntou sem tirar os olhos da estante. – O Fernando está irritado. Ele me disse que os rapazes da Roda estão discutindo aos berros e que isso está incomodando os clientes. Amadeu deu uma risada e disse: – Não se preocupe. Eu já vou.

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Amadeu deixou o escritório, caminhou pelo corredor da casa e desceu a escada que levava à parte de baixo do sobrado, onde estava instalada a Casa Baruel. Há quase dez anos, aquele prédio servia de moradia e de local de trabalho para o escritor. Depois de muita resistência, ele havia vendido a Farmácia Queiroz, na Rua Vergueiro, para quitar as dívidas, e foi reconduzido ao cargo de gerente da Baruel. O velho sobrado que abrigava a drogaria e a casa de Amadeu ficava numa esquina do centro de São Paulo, na trifurcação das ruas Quinze e Direita e da Praça da Sé. Quando chegara à capital paulista, Amadeu jamais poderia se imaginar vivendo num local como aquele, bem no coração da cidade, em meio à constante circulação de pessoas. Viver no centro de São Paulo era o pesadelo que atormentava o pousoalegrense. Entretanto, com o passar dos anos, o escritor foi se familiarizando com a cidade grande. São Paulo era a grande responsável por reacender em Amadeu o lume literário adormecido e lhe ofereceu a oportunidade de 92


torná-lo conhecido entre os principais intelectuais do país. Foi na capital paulista que ele encontrou o meio propício para fazer brotar aquela semente de literatura que ele trazia dentro de si como herança da terra de origem. Depois de quase vinte anos longe de Pouso Alegre, ele já havia se habituado a viver em São Paulo. Enquanto descia as escadas, Amadeu pôde ouvir o barulho de pessoas conversando que vinha da farmácia. Algumas vezes, era possível escutar alguns berros em meio àquela confusão interminável de vozes. Quando acabou de descer, Amadeu parou no último degrau e ficou olhando para o interior da farmácia, onde se viam uns poucos clientes assustados diante de tamanho alvoroço. O que causava essa bagunça era um grupo de rapazes que havia se formado próximo a um dos balcões da drogaria. Eles eram em torno de uns trinta e discutiam avidamente uns com os outros. Parecia que eles falavam todos juntos ao mesmo tempo, o que dava a impressão de que um não ouvia o que o outro dizia. Alguns se inflamavam em suas falas, outros se expressavam com menor entusiasmo, mas todos queriam expor aos outros suas ideias. Ao ver aquela cena, Amadeu soltou a mesma 93


risada que tinha dado ao ser avisado da baderna por Vicentina. Ele ficou ali parado, por alguns instantes, como que admirado pela confusão que aqueles jovens faziam. Todos os dias, aquele círculo de discussões se formava na Casa Baruel. Nem todos os dias, porém, o barulho que eles faziam chegava a incomodar os clientes e funcionários da drogaria. Às vezes, as discussões se davam em um ritmo mais calmo e, enquanto um falava, os outros pacientemente ouviam. Amadeu pôde notar que os ânimos dos rapazes estavam exaltados naquele dia porque eles debatiam sobre a iminência de uma guerra mundial. Assim que Amadeu voltara a ser gerente da Casa Baruel, aquelas reuniões começaram a acontecer. Depois da primeira publicação de Praga do amor, o escritor havia se tornado conhecido entre os paulistanos, e alguns deles vinham até a farmácia exclusivamente para conversar com Amadeu. No começo, eram apenas conversas informais sobre literatura; mas, com o tempo, um grupo começou a se reunir e a debater também outros temas, como a política. Amadeu recebia bem a todos que vinham até a farmácia, o que levou o grupo a aumentar cada vez mais. Quando as reuniões começaram a acontecer, 94


contavam-se uns 20 rapazes entre os frequentadores da Roda da Baruel, como o grupo mais tarde ficou conhecido. Depois de quase dez anos, eles eram aproximadamente uns 400, que alternavam suas visitas à velha drogaria. A agitação na Casa Baruel acontecia entre oito e meia e nove da manhã, depois ao meio-dia, novamente às cinco da tarde e, finalmente, a partir das seis e meia até a hora de a drogaria fechar. A maioria dos rapazes que ali se reunia era formada por jovens candidatos à carreira de escritor, amantes da literatura. Geralmente, eles tinham empregos modestos e aproveitavam os poucos intervalos de tempo de que dispunham para ir até a Casa Baruel e pedir conselhos ou mesmo para ouvir os causos daquele que havia se tornado o seu mestre: Amadeu de Queiroz. Embora Amadeu não gostasse de algazarras, ele ficou um bom tempo enlevado diante a cena, admirando aqueles rapazes que discutiam cheios de fibra e de entusiasmo. Ele adorava estar rodeado por jovens e dizia preferir a companhia deles a estar no meio de pessoas mais velhas. Vendo que Amadeu permanecia ali parado sem tomar nenhuma atitude, Fernando, um dos funcionários mais antigos da farmácia, foi até o 95


escritor e pediu em tom de súplica: – Por favor, senhor Amadeu, peça a eles para falarem mais baixo. Essa baderna está afugentando os nossos clientes! Amadeu caiu em si diante do apelo do funcionário, como se tivesse voltado de um transe, e assentiu balançando a cabeça. Caminhou em direção ao grupo e pigarreou, e, antes mesmo que tivesse se aproximado completamente, a confusão de vozes começou lentamente a diminuir. – Mestre Amadeu! – gritou um dos rapazes, ao passo que a roda se abria para que o escritor pudesse entrar. Enquanto Amadeu se aproximava, todos se voltaram para ele, erguendo levemente o chapéu para cumprimentá-lo ou inclinando um pouco a cabeça em sinal de reverência. Quando ele se juntou ao grupo, um solene silêncio se formou, como se eles aguardassem o pronunciamento de alguma autoridade. – Bom dia! – disse Amadeu, com simplicidade, ao que todos responderam prontamente. – Acabaram de me dizer – continuou Amadeu, com um risinho irônico no canto da boca – que os 96


senhores estão comprometendo os lucros da Casa Baruel com esta arruaça. Os senhores ainda vão nos levar à falência! Todos soltaram barulhentas risadas, desfazendo a atmosfera solene que inicialmente havia se formado, e o Fernando, de trás do balcão, balançou negativamente a cabeça em sinal de reprovação. – Mestre Amadeu, estão saindo várias críticas positivas sobre A voz da terra nos jornais da capital – disse um dos rapazes. – É verdade! – assegurou um outro – Hoje mesmo eu li duas. O romance já é um sucesso! Os moços, então, começaram a descrever a Amadeu as inúmeras críticas que haviam lido sobre o recém-publicado romance do escritor. Depois que todos falaram a respeito das últimas notícias sobre A voz da terra, Amadeu pigarreou e disse ironicamente: – Esse romance, A voz da terra, não passa de uma autêntica jabuticaba, coisa de que todo mundo gosta, mas que não passa de simples água doce. Novamente, o grupo deu risadas do gracejo feito por Amadeu, que continuou: – Eu, pessoalmente, prefiro meu primeiro, Praga do amor. 97


– E quanto ao seu próximo livro? – perguntou um dos rapazes. – Já está pensando nele? – Estou. – respondeu Amadeu. – Na verdade, penso nele há algum tempo. Pretendo reunir alguns dos meus contos já escritos e escrever outros para publicá-los em forma de livro. – E por acaso são aquelas histórias sobre um médico clandestino de Pouso Alegre? – perguntou um jovem, arrancando risadas do grupo, inclusive do próprio Amadeu. – Vocês não acreditam nas minhas histórias, não é mesmo? Mas eu digo a vocês que eu nada invento, quando estou escrevendo. O que sai da minha pena existe por aí, senão na realidade, com certeza na imaginação de muita gente. A maioria de vocês prefere os poemas simbolistas aos contos regionais que eu escrevo. Mas isso não importa. Aliás, é assim que deve ser. Cada um deve seguir seu próprio caminho e não andar atrás dos outros como fazem as ovelhas. Novas gargalhadas irromperam no interior da farmácia, para a incredulidade do Fernando e de alguns clientes perplexos. E Amadeu continuou: – Muitos me questionam por que eu não tenho seguido os romancistas nordestinos que têm publicado seus livros na última década. E eu digo a vocês que não 98


é possível a um pouso-alegrense como eu escrever um romance nos moldes desse regionalismo que tem sido difundido por eles. A realidade do Sul de Minas é bem diferente do que vivem os sertanejos. Não posso encher a alma de meus caboclos de emoções que não fazem parte da vida deles. Muito se tem falado de militância política por causa desses talentosos autores nordestinos, mas, ao caboclo sul-mineiro, esses temas se afiguram como algo distante, fora da realidade deles. O homem do campo que vive nas redondezas de Pouso Alegre procura simplesmente dar continuidade à sua vida, a exemplo do boi que vagaroso segue o compasso da existência. Os rapazes da Roda ouviam Amadeu com curiosidade e respeito, como se ele pronunciasse as palavras de um oráculo. De vez em quando, porém, diante de algum gracejo que o escritor fazia, eles voltavam a rir despreocupadamente. Depois de falar sobre o próximo livro que pretendia publicar, Amadeu contou aos moços um de seus causos que ele planejava inserir nessa obra. O escritor assegurou-lhes que se tratava de uma história verdadeira, ao que seus discípulos responderam com olhares incrédulos. Quando Amadeu acabou de falar, os rapazes começaram a se despedir apressados, pois já estavam atrasados para o início do expediente. Num instante, a 99


Casa Baruel se esvaziou e restaram apenas os poucos funcionรกrios e alguns clientes. Assim que os moรงos da Roda da Baruel foram embora, Amadeu foi para trรกs do balcรฃo da drogaria e comeรงou a atender aos fregueses que chegavam.

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1945

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Amadeu apagou a luz da pequena luminária que ficava sobre a escrivaninha, levantou-se da cadeira e, no escuro, caminhou devagar em direção à porta do escritório. Quando ele girou a maçaneta, tomando cuidado para não fazer barulho, a luz do corredor passou pela fresta e clareou o interior da sala de onde Amadeu saía. Ao sentir a luminosidade penetrar-lhe os olhos, ele contraiu as pálpebras e teve a incômoda sensação de que aquela luz iria cegá-lo. Nesse momento, ele se lembrou das constantes advertências feitas por Vicentina e Margarida para que não ficasse escrevendo de noite até muito tarde, do contrário o desgaste da vista se tornaria cada vez mais acelerado. Mas a vontade de escrever que Amadeu sentia era sempre mais forte do que qualquer repreensão da esposa ou da filha. Sob a luz fraca da luminária, ele passava horas de caneta em punho todas as noites, aproveitando o horário do dia que mais lhe garantia inspiração. 102


Naquela noite, porém, Amadeu não tinha gasto o tempo escrevendo mais uma de suas histórias, nem mesmo compondo as páginas do livro de memórias que pretendia lançar. Quando já estava do lado de fora do escritório, com a mão direita segurando a maçaneta, pronta para fechar a porta, ele parou por alguns instantes e ficou olhando para o que havia deixado sobre a escrivaninha. Em cima da mesa, havia quatro pequenas pilhas de embrulhos. Todos eles eram do mesmo formato e, dentro de cada um, havia um livro e uma carta. Os livros eram exemplares do último romance que Amadeu tinha publicado e todos estavam com uma dedicatória escrita à mão e a assinatura do escritor na primeira página. Aqueles eram volumes que, no outro dia, pela manhã, ele enviaria pelo correio a alguns de seus amigos. Cada exemplar era acompanhado de uma carta, na qual Amadeu oferecia o livro ao destinatário como cortesia e pedia que este, em troca, apenas respondesse com críticas ao romance. Amadeu tinha passado horas no escritório preparando os embrulhos. Embora costumasse sentir pouco sono e, consequentemente, dormisse poucas horas por noite, ele estava muito cansado e seus olhos pesavam sonolentos. Mesmo assim, Amadeu não conseguia deixar de pensar no conteúdo de uma das 103


cartas que estava dentro de um dos pacotes. Ele se questionava se havia escrito nela tudo o que tinha planejado nos últimos dias. Amadeu se perguntava se teria empregado as palavras mais apropriadas para exprimir tudo o que sentia. Ele, então, fechou os olhos e começou a repassar mentalmente o conteúdo da carta, parágrafo por parágrafo, frase por frase, afinal ele havia decorado praticamente tudo o que escrevera.

São Paulo, 15 de agosto de 1945. Caro amigo Sebastião, Sua carta datada de 29 de julho me encontrou em perfeita saúde. Fiquei muito contente por recebê-la e também por saber que o amigo ainda me destina tamanha amizade e apreço. Saiba que esse sentimento é recíproco, pois desde aquele tempo que você foi meu ajudante na saudosa Farmácia Queiroz, em Pouso Alegre, eu admiro o seu caráter e a sua dedicação ao trabalho. Em todos esses anos, aqui em São Paulo nunca encontrei nenhum auxiliar tão competente como você. Apesar de estar bem de saúde, tenho 72 anos e você pode imaginar o que o peso dos anos tem feito comigo. Ainda trabalho na Casa Baruel, mas acredito 104


que já não sou mais útil como funcionário e devo este posto de gerente, que ainda ocupo, à bondade e reconhecimento dos donos da firma. Sinto-me grato por saber que você adquiriu exemplares de alguns dos meus livros ao longo dos últimos anos. Eles não são grande coisa, mas fico contente que tenham servido para entreter a alma do nobre amigo. Como você deve ter reparado, quase todos eles são histórias vividas pela gente de Pouso Alegre, pois é, sobretudo, para os meus conterrâneos que eu dedico meus contos e romances. A saudade de nossa terra me fez escrever e publicar tudo isso que esta aí. Quem sabe se eu continuasse vivendo em Pouso Alegre, talvez eu nunca mais tivesse voltado a compor minhas histórias. Mas é sábio o velho ditado popular que diz que “há males que vêm para bem”, pois para mim foi um grande sacrifício ter que abandonar Pouso Alegre e me mudar para São Paulo, mas foi aqui que eu tive a chance de voltar a escrever minhas histórias. Eu me lembro muito bem que, naquela época, numa carta ao meu falecido irmão Joaquim, avisando que eu viria para São Paulo, eu disse a ele que o tempo me pagaria com uma justa moeda por eu ter que deixar Pouso Alegre como um criminoso. Eu acredito que essa dívida já esteja totalmente paga. Depois de todos esses anos me esforçando por me adaptar a essa cidade que 105


ainda me causa medo e desconfiança, sinto que os paulistanos aprenderam a gostar de mim como sou e é principalmente deles que vem o reconhecimento pelas minhas obras. Se um dia, em Pouso Alegre, eu fui tratado como um gatuno, hoje, aqui em São Paulo, eu sou tido como um escritor de talento – embora eu não concorde muito com essa definição. Além do mais, não guardo mágoa da mesquinha gente que me expulsou sob ameaças. Até mesmo porque em Pouso Alegre eu sempre tive muito mais amigos que inimigos. No entanto, há pouco tempo, estive nessa terra onde nasci e, infelizmente, pude notar que tudo está mudado. Não digo apenas quanto à feição das casas e ruas, mas, sobretudo, no que diz respeito aos meus contemporâneos. A maioria das pessoas que eu conhecia quando morava em Pouso Alegre já é falecida, de modo que quase não encontrei ninguém do meu tempo, quando aí estive. Pela primeira vez, eu tive plena consciência de que estou ficando velho. Assim, senti imensa alegria ao receber sua carta e saber sobre você, de quem há muito tempo eu não tinha notícias. Em retribuição à sua generosa carta, aproveito a 106


ocasião para enviar a você o meu último romance, recém-publicado, que recebeu o nome de “João”. Acredito que esse seja o melhor livro que eu tenha publicado até hoje, ou, pelo menos, o que mais tem me agradado dentre os que escrevi. A crítica me elogiou muito por “A voz da terra”, tanto que acabei pegando birra do livro. Não é nenhum exagero, mas não costumo gostar do que todos gostam. “Os casos do carimbamba”¸ meu único livro de contos, publicado em 1939, me agrada bem mais do que “A voz da terra”. Você deve tê-lo lido e sabe do que se trata. Sinto que é o livro que mais se parece comigo, afinal ele é resultado da minha própria experiência como carimbamba, naqueles anos em que eu e você trabalhávamos incansavelmente na Farmácia Queiroz. Mas, voltando ao meu último romance, “João”, ele foi escrito com o propósito de mostrar como é a vida dos caboclos da roça de Pouso Alegre. Você perceberá que se trata de uma narrativa sem grandes acontecimentos, afinal essa gente leva adiante uma existência ignorada, sem realizar feitos admiráveis. Nas minhas andanças pelos recantos desconhecidos de nossa terra, eu pude perceber que esse povo vive negligenciado, à margem da sociedade, que nem sabe que eles existem. Com exceção do meu romance anterior, “O quarteirão do meio”, em que procurei desenvolver uma 107


narrativa ambientada na cidade, toda a minha obra representa um esforço para falar sobre a vida anônima que esses caboclos levam. No entanto, nesse livro que estou enviando a você, busco fazer isso de um modo particular. Vendo os caboclos de Pouso Alegre, notei que a vida deles se assemelha ao passo lento dos bois que caminham pelas pastagens. Não há sobressaltos, não há nobres emoções, mas apenas o instinto de dar continuidade à sina de trabalhadores do campo que eles receberam dos pais, que, por sua vez, receberamna dos avós, e assim indefinidamente. Peço a você que, ao ler o romance, leve tudo isso em consideração e procure perceber se eu consegui realizar bem o meu intento. Durante a leitura, faça as anotações que julgar necessárias e depois me envie tudo o que você escrever. Aguardo sua resposta ansiosamente. Com estima, Amadeu Amadeu abriu os olhos e voltou a olhar para os embrulhos sobre a escrivaninha. Na verdade, era como se aquela carta destinada 108


ao Sebastião tivesse sido escrita não para o exajudante de Amadeu, mas para outro alguém. Amadeu sentia que as palavras que estavam naquele papel e também guardadas em seu coração eram dirigidas à sua amada terra de origem. Era como se ele tentasse dizer a Pouso Alegre tudo o que sentia, como das vezes em que, ainda jovem, ele se afastava da vila e ia para os bosques, na ânsia de conversar com a natureza que lhe ficava em torno. Diante dessa ideia que lhe passou pela cabeça, Amadeu abanou a cabeça negativamente ao concluir que o sono já o estava fazendo delirar. Ele fechou silenciosamente a porta do escritório e caminhou pelo corredor em direção ao quarto, onde Vicentina ressonava calmamente. Amadeu se deitou ao lado da esposa e voltou a pensar na carta. Sem perceber, ele caiu no sono e começou a sonhar que era jovem novamente e que voltara a Pouso Alegre, onde encontrara seus pais e irmãos e toda a gente de sua terra que ele conhecia e que já tinha falecido. No outro dia, logo que acordou, antes mesmo de começar o expediente da Baruel, Amadeu foi até a agência dos correios mais próxima e encaminhou os 109


pacotes que havia preparado na noite anterior. Segurando um dos embrulhos, o escritor recomendou ao funcionário da agência: – Por favor, tenha um cuidado especial com este aqui.

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1955

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Enquanto o sol seguia seu curso em direção ao horizonte, Amadeu sentia que a luz que clareava a sala ia escurecendo aos poucos. Desde as três da tarde, em pleno calor de um dia de verão, ele estava sentado num canto da sala de estar de sua casa, escrevendo algumas páginas e folheando alguns livros. Ele tinha se distraído pela leitura e não percebeu que a tarde estava chegando ao fim. Quando se deu conta, seus olhos já começavam a encontrar dificuldade para continuar lendo o livro que segurava, pois a claridade ia declinando lentamente. A sala, onde nos últimos anos Amadeu gostava de passar as tardes, era um modesto cômodo da casa que ele havia adquirido e que ficava bem distante do centro de São Paulo. Há anos, o escritor deixara de trabalhar na Casa Baruel e se recolhera da agitação da vida paulistana. Ele e Vicentina abandonaram o vistoso sobrado onde viveram por mais de vinte anos e escolheram morar em uma casa comum, cuja simplicidade se parecia com a das moradias dos caboclos que Amadeu costumava descrever em suas 112


histórias. Encostado numa parede da sala, ficava um velho sofá de três lugares que acompanhava a família Queiroz há anos e cujo forro já havia sido trocado pelo menos umas quatro vezes. Sobre o sofá, havia uma grande almofada, feita com a mesma estampa do tecido que cobria o estofado. Ao lado direito do sofá, também recostada na parede, havia uma pequena mesa de madeira. Uma toalha de crochê branca cobria toda a superfície da mesa, sobre a qual estavam um vaso de louça e um livro. Acima dela, via-se uma prateleira de madeira presa à parede, onde um prato de louça estava colocado de pé. A mesa ficava em um canto da sala, encostada nas duas paredes que se uniam, formando um ângulo de noventa graus. Do lado direito do móvel de madeira, havia uma cadeira pesada, onde Amadeu estava sentado, com os pés cruzados, folheando um livro. Deitado aos pés do escritor, estava o Biscoito, um cãozinho de pelo branco com algumas grandes manchas pretas. O Biscoito era o companheiro de Amadeu nas tardes que o escritor passava naquele canto da sala. Imóvel, o pequeno animal ficava ali deitado em roda de seu dono, apenas cochilando de vez em quando, sem perturbar os 113


afazeres literários de Amadeu. Vez ou outra, Amadeu tirava os olhos da leitura para coçar com o pé a barriga do cachorrinho, que, de contentamento, se esticava no chão revestido de tacos de madeira. Havia momentos em que o escritor se surpreendia ao ver diante de si o Biscoito, de pé, fitando-o, como se fosse gente. Quando isso acontecia, Amadeu ficava um pouco sem graça, como se estivesse sob o olhar vigilante de alguma pessoa. No entanto, a companhia do Biscoito era extremamente agradável ao escritor, que até mesmo conversava com o cão sobre as ideias que tinha para o que pretendia escrever. Assim acontecera naquela tarde, quando Amadeu recebera a notícia de que havia sido eleito para a Academia Paulista de Letras. Depois de ler o telegrama que lhe comunicava o resultado da votação, o escritor simplesmente olhou para o Biscoito, que também o mirava de volta, e disse: – Eles conseguiram me imortalizar, meu amigo. Ao dizer isso, Amadeu soltou uma risada do próprio gracejo, ao que o colega canino respondeu meneando a cabeça, como se estivesse se esforçando para entender o que o dono dizia. Há anos, alguns amigos de Amadeu insistiam 114


para que ele se candidatasse a uma vaga na Academia, ao que o escritor respondia negativamente, dizendo: – Não creio na imortalidade lá de cima, nem muito menos na daqui debaixo. E Amadeu não fazia o mínimo esforço para alcançar o título de imortal. No entanto, há alguns meses, uma cadeira da Academia Paulista de Letras estava vaga, em decorrência da morte de um imortal. Os amigos de Amadeu, cientes de que o escritor jamais se empenharia em ocupar tal vaga, tomaram a iniciativa de levantar a candidatura dele, sem que ele fizesse intervenção alguma. O resultado da votação confirmou a vontade da maioria dos imortais da Academia, que elegeram Amadeu como o mais novo membro. Ao terminar a leitura daquela tarde, Amadeu fechou o livro e retirou do miolo o telegrama que lhe comunicara o resultado da eleição e que lhe servira de marca-página. Ao examinar aquele pedaço de papel, ele começou a se lembrar de todos os acontecimentos que culminaram com a sua escolha para a Academia. Ele pensou nos livros que havia publicado e nos outros que ainda planejava publicar: dois romances, Catas e Josias do Timboré, além de suas memórias, Dos 7 aos 77, que tinham exigido dele muito esforço 115


nos últimos anos. Lembrou-se também dos numerosos contos que saíram em jornais e revistas, muitos dos quais ele havia guardado em seu acervo particular, além dos outros que tinham se perdido ao longo dos anos. O escritor recordou-se ainda do jantar que lhe fora oferecido por seus amigos, há quase dois anos, por ocasião de seu aniversário de 80 anos. O salão do Automóvel Clube de São Paulo ficara repleto de convidados, que compareceram para prestigiar a quem eles chamavam carinhosamente de “Velho Amadeu”. Amadeu sentia que aquele telegrama não apenas lhe comunicava a sua imortalidade, mas prenunciava, sobretudo, que estava quase na hora de partir. O escritor tinha o presságio de que nunca chegaria a tomar posse de sua honorável cadeira, pois acreditava que a morte viria lhe buscar antes que isso acontecesse. No entanto, essa intuição não causava medo a Amadeu, que estava plenamente lúcido de que o final da vida chegava como chega o fim da tarde. Porém, ele ainda trazia infinitas inquietações dentro de si, aquelas mesmas que o perturbavam desde que ele era apenas um adolescente, quando escrevia seus primeiros contos e os publicava nos jornais de Pouso Alegre. 116


Será que as pessoas se lembrariam dele? Será que, no futuro, ao menos um leitor perderia tempo lendo-o? Embora Amadeu dissesse que não acreditava na imortalidade, essas questões ainda embaraçavam suas convicções de cético. Ele sabia que, por mais que se perguntasse, jamais encontraria tais respostas. Ou quem sabe, depois da morte, ele teria o pleno conhecimento de todas as coisas? Se assim fosse, então ele estaria enganado quanto à sua descrença na vida eterna. Um turbilhão dessas ideias invadiu o espírito de Amadeu, que passou a mão sobre a luzidia careca. Realmente, não dava para saber como seria o futuro. Não era possível sequer saber se haveria futuro. Porém, com a tranquilidade de alguém que tinha realizado grande parte dos sonhos que havia planejado, Amadeu foi até o quarto e voltou com um pequeno caderno nas mãos. Ele sentou-se no sofá e, imediatamente, o cãozinho Biscoito subiu e se acomodou ao seu lado. Enquanto folheava o caderno, Amadeu procurou uma página, onde, há quase um ano, havia escrito o próprio epitáfio:

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Aqui jaz Porque morreu Um Amadeu Gerado de Joaquim Que plantou num lugar À vista do Itaim Lindo pomar Lindo jardim

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EPÍLOGO

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Por vários dias, voltei àquela sala para remexer no que havia dentro do baú. A cada instante dessa busca, eu encontrava novas raridades que me deixavam extasiado. No baú, havia velhos exemplares dos livros de Amadeu de Queiroz, além de fotos, documentos, recortes de jornais e revistas e uma infinidade de cartas manuscritas: objetos pessoais do escritor. Observando as fotos ou lendo as cartas, recortes e documentos, pude conhecer mais sobre como tinha sido a vida de Amadeu. Por outro lado, foi através da leitura das obras dele que eu consegui saber mais sobre mim mesmo. Até os cinco anos, vivi na roça com minha mãe e meus irmãos. Depois disso, nos mudamos para a cidade e, aos poucos, fui me distanciando cada vez mais de minhas origens. Até que, um dia, o Sr. Alexandre me revelou um dos muitos segredos que ele tem guardado, mostrando-me o tesouro de Amadeu de Queiroz que está preservado no Museu. 120


Graças a isso, tive contato com as obras do escritor que me encantaram por me fazer lembrar de coisas que eu tinha vivido na minha infância, das quais eu não me preocupava em recordar. Foi lendo Amadeu de Queiroz que eu pude reviver saudosos momentos da minha vida, como os dias em que toda a família se reunia na casa da minha querida e falecida vó Ana para matar o “capado”. Embora eu seja um amante dos livros, nunca imaginei que pudesse encontrar esse tipo de emoção na literatura; mas foi um escritor desconhecido por meus contemporâneos, ignorado pelo cânone literário, que me presenteou com a descoberta do meu próprio tesouro.

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Nota do autor

Acredito que não existam limites precisos entre realidade e ficção. Este livro foi escrito depois de três anos de pesquisa ao acervo do Museu de Pouso Alegre, mas é também fruto da imaginação do autor. Amadeu de Queiroz existiu realmente, e grande parte do que aqui se diz a respeito dele pode ser verificado no referido acervo. Alguns de seus depoimentos em entrevistas, ou mesmo trechos de obras e cartas, além de informações obtidas através de outras fontes, foram reproduzidos neste livro e os créditos são apresentados a seguir, nas Referências.

Agradeço a todos os que colaboraram para a realização deste trabalho: Lourdes, Renato, Graciele e Adriano (minha família, meus primeiros incentivadores); Giselle (amiga e também minha primeira leitora); Alexandre de Araújo e Suely Ferrer (parceiros de trabalho do Museu Histórico Municipal Tuany Toledo); Mírian dos Santos, Maria Lúcia Saponara e todos os professores do Curso de Letras da Universidade do Vale do Sapucaí; todos os professores que, ao longo da minha vida, contribuíram para a minha formação e para que eu chegasse até aqui; Andréa Vitório; Madu Macedo; e todos os meus amigos. 122


Referências

CASTRO, Paulo Roberto Moura. O carro de boi. Disponível em: <http://www.widesoft.com.br/users/pcastro1/carrodeboi.htm>. Acesso em: 19 abril 2009. FERNANDES, Francisco; LUFT, Celso Pedro; GUIMARÃES, F. Marques. Candeeiro. In: Dicionário Brasileiro Globo. 9ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 1989. p. 175. GUIMARÃES, Ruth. Amadeu de Queiroz, o moço. In: QUEIROZ, Amadeu de. Histórias quase simples: contos escolhidos. São Paulo: Cultrix, 1963. MUSEU HISTÓRICO MUNICIPAL TUANY TOLEDO. Núcleo temático Escritores Pouso-alegrenses, Amadeu de Queiroz. Pouso Alegre, MG. PEIXOTO, Silveira. Correio Literário de São Paulo. Vamos ler. Rio de Janeiro, 28 mar. 1940, p. 22. QUEIROZ, Amadeu de. Queirozes de Pouso Alegre (artigo datilografado, pertencente ao Museu Histórico Municipal Tuany Toledo de Pouso Alegre, MG). São Paulo, 1927. ______. Cartas manuscritas (13/09/1937, 12/04/1939, 19/04/1939, 03/10/1941, 09/12/1945, 27/02/1953, 20/01/1954, 18/02/1954), cedidas por Alexandre de Araújo, diretor do Museu Histórico Municipal Tuany Toledo de Pouso Alegre, MG. ______. Os casos do carimbamba: contos folclóricos. Rio de Janeiro: S.A. A Noite, 1938. ______. Autobiografia manuscrita por Amadeu de Queiroz, pertencente ao acervo do Museu Histórico Municipal Tuany Toledo, de Pouso Alegre, MG. [1954 ou 1955]. ______. Dos 7 aos 77: Memórias. Saraiva: São Paulo, 1956.

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REY, Marcos. Amadeu de Queiroz em “Close-up”. O Tempo, São Paulo, 1º ago. 1954, p. 20. SABBÁ GUIMARÃES, Newton. Relendo um romance de Amadeu de Queiroz: Solidão e angústia em A voz da terra. 1992. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Letras: Literatura Brasileira, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1992. SOUZA, Bernardino José de. Ciclo do carro de bois no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958.

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Sobre o autor

Mayke Riceli nasceu em Pouso Alegre-MG, em 1985. Viveu em Ipuiuna-MG até os 10 anos, quando voltou para sua terra natal. É licenciado em Letras pela Universidade do Vale do Sapucaí. Desde 2005, trabalha no Museu Histórico Municipal Tuany Toledo, em Pouso Alegre.

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