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GRAÇA FONSECA, EX-MINISTRA DA CULTURA “O CONTRIBUTO DO SECTOR CULTURAL E CRIATIVO
SAI DO MINISTÉRIO DA CULTURA COM A NOÇÃO DO TRABALHO FEITO. ACREDITA QUE DEU FORMA ÀS REFORMAS MAIS URGENTES, DO ESTATUTO PROFISSIONAL DO ARTISTA A TODA A POLÍTICA DA ARTE
CONTEMPORÂNEA, PASSANDO PELA REDE PORTUGUESA DE TEATROS E CINETEATROS. CONSIDERA
QUE A CULTURA É FUNDAMENTAL PARA AQUILO QUE É A COMPETITIVIDADE ECONÓMICA DO PAÍS
E PARA A COESÃO ECONÓMICA E SOCIAL. DEPOIS DE QUASE QUATRO ANOS À FRENTE DA PASTA,
GRAÇA FONSECA OLHA PARA O SECTOR COM OUTROS OLHOS. MAIS ATENTA ENQUANTO CIDADÃ, TEM O DESEJO DE QUE OS PORTUGUESES TENHAM CONSCIÊNCIA DAQUELES QUE TRABALHAM PARA
QUE A CULTURA EXISTA.
Com que estado de espírito deixou o Ministério da Cultura, saiu aliviada, com o sentido do dever cumprido, a contragosto, satisfeita? Saí por decisão própria. Acho que estes lugares ganham com novos protagonistas, as políticas públicas ganham com novos protagonistas. Saí com a consciência de que devia haver uma mudança, com a consciência plena de que era o momento para o fazer. E com a noção do trabalho feito também. Nunca saímos com a sensação de termos feito tudo o que queríamos fazer. No entanto, deixámos feito um conjunto de reformas, o estatuto profissional do artista, a rede portuguesa de cineteatros, toda a política da arte contemporânea, o novo modelo de apoio sustentado. Era um conjunto de reformas que para nós era muito importante que ficassem aprovadas, consolidadas, os concursos abertos e a decorrer. Deixámos isso estruturado e de uma forma, julgo eu, diferente do que encontrámos. Sendo que tudo se fez durante um tempo em que também tivemos que acorrer a necessidades absolutamente imediatas. No fundo, o que tentei sempre fazer foi olhar para o passado para perceber quais eram as reformas necessárias para o futuro, mas nunca deixar de dar resposta no tempo presente.
Qual foi o seu maior cavalo de batalha? Terá sido o estatuto profissional do artista? Diria que houve vários. Mas sim, o estatuto profissional do artista foi um cavalo de batalha. É daquelas reformas que sabemos sempre que se não tivéssemos feito teríamos mantido uma situação que já há muitos anos podia ter sido alterada. Tínhamos mesmo que a fazer, portanto. Foi difícil, atravessou a pandemia,
ALEXANDRA CARITA
e decidimos abrir um processo complicado que foi trazer muitos interlocutores e muitas associações para a mesa de trabalhos. Foi arriscado, mas não estou de todo arrependida. Aprendi em políticas públicas uma coisa fundamental, a melhor garantia que temos de que aquilo que estamos a fazer agora manterse-á no futuro independentemente dos ciclos políticos ou das pessoas, é conseguirmos que externamente ao Governo hajam entidades e pessoas que absorvam a importância do que está a acontecer. São elas os guardadores para o futuro daquilo que
GRAÇA FONSECA,
EX-MINISTRA DA CULTURA
foi feito. Por isso, procurei sempre a participação de todos. Com os riscos inerentes, claro, não é possível que todos estejam contentes, mas isso faz parte. Outro cavalo de batalha muito importante foi a arte contemporânea.
Chamar-lhe-ia mesmo a sua bandeira, ou até a vitória da Colecção de Arte Contemporânea do Estado. Foi um bocadinho, sim. A Arte Contemporânea e a colecção foi daquelas áreas que quando comecei a fazer uma avaliação aos campos que necessitavam de uma intervenção mais profunda e mais estruturada, até “de um abanão”, vamos dizer assim, era claramente uma delas. Há anos que havia a questão do inventário, não se conseguia determinar onde é que estavam as obras que há não sei quantos anos se dizia que estavam em local incerto quando não estavam ou tinham desaparecido. Quando cheguei pedi o processo integral, são dezenas de dossiês que estão lá no Ministério da Cultura, e fui ver até aos primórdios do processo. É muito impressionante porque percebe-se que a evolução ao longo de décadas, começa numa altura em que ainda não havia tecnologia, tudo se anotava à mão com os cartões que existiam para classificar cada obra, e que à medida que as ferramentas foram evoluindo, que as técnicas foram aparecendo, que as possibilidades foram surgindo não acompanhou os tempos e não acompanhou a possibilidade do que era possível fazer. Foi importante fazer o inventário com verificação, o que nos permitiu perceber que muitas das obras cujos paradeiros não estavam identificados estavam em museus. Depois, remeter para o Ministério Público aqueles casos que nós, Ministério da Cultura, não tínhamos qualquer condição de fazer averiguações a esse nível, mas também não podíamos deixar que não fosse averiguado, se é que isso ainda é possível fazer, para saber o que aconteceu ao longo dos anos para que as obras desaparecessem. Depois então, preparar o futuro. Passámos do ponto zero de aquisições públicas para o caminhar para um milhão de euros em aquisições por ano. Era esse o nosso compromisso. Além disso, deixámos uma dinâmica de uma Comissão de Aquisições que é independente do Governo e da Direção-Geral das Artes e que todos os anos tem esta tarefa de, não só ir colocando obras na colecção dos artistas dos hiatos temporais que existem, uma vez que não houve aquisições durante muitos anos, mas também ir preparando para o futuro o acervo e ir comprando obras dos artistas mais novos. E isso vai ficar. Foi um cavalo de batalha que chegou ao seu destino.
Qual foi a sua grande decepção? O facto de as obras no Museu Nacional de Arte Antiga não terem começado, as vagas nos museus não terem sido preenchidas… sentiu-se desiludida por não ter conseguido avançar com estes dossiês? Não por uma razão: conseguimos com o PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) deixar isso preparado para o futuro. Uma das coisas que sempre me fez muita confusão, e se calhar foi pelo facto de ter sido autarca em Lisboa e conhecer bem a realidade dos equipamentos culturais e sociais da cidade, foi aquilo que foram anos e anos de não investimento nesses equipamentos. Sei que isto suscita questões a Norte, mas a verdade é que se nós olharmos para a evolução do que tem sido o investimento público ao longo dos anos, fundamentalmente focado nos programas comunitários de apoios e o compararmos com o que foi feito nesse âmbito a Sul, há uma disparidade enorme em relação ao que foi feito e bem na região Norte. Para mim era importante que para o futuro os museus e
os monumentos da cidade de Lisboa, que não sofreram intervenções pelo menos desde o 25 de Abril, tivessem uma intervenção estruturada. Porque é que o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA) não avança na ampliação e, por exemplo, o Museu Nacional de Arqueologia avança? Porque o PRR tem um prazo de execução muito curto, quatro anos, e a diferença era que o Museu de Arqueologia já tinha um projecto de arquitectura pronto, ou seja, uma etapa já foi ultrapassada. No caso do MNAA esse projecto não existia e tinha que ser feito. De qualquer maneira, a intervenção pensada para o MNAA vai permitir responder a inúmeras questões com que o museu se bate há anos, nomeadamente em relação a toda a parte de infraestrutura interna e reorganização de espaços expositivos. Não é a ampliação de que há muito se fala, porque a ampliação na nossa avaliação ultrapassava o período temporal que o Estado tem para executar aquele projecto. Agora, não posso dizer que tive decepções. Mas quem exerce funções políticas, e já as exerço há mais de 20 anos, sabe sempre que há coisas que correm extraordinariamente bem e há outras que correm menos bem. Isso faz parte. Penso que, de alguma maneira, conseguimos deixar marcas nas diferentes áreas. Temos que arranjar forma de preparar isto para o futuro, com os investimentos, com programas como o emprego científico nos museus, como a arte contemporânea de que já falámos, como o estatuto profissional do artista. Fazer ver que o sector da Cultura não funciona só à volta dos financiamentos e dos apoios às artes. O público em geral acha que o Ministério da Cultura só serve para apoiar o teatro, a dança, o cinema e por aí fora. Sim. Acho que há uma dimensão importante, e voltando à sua pergunta da decepção. Não é uma decepção mas é o caminho onde eu gostava de ter avançado mais. A importância da Cultura para aquilo que é a competitividade económica do país e para a coesão económica e social. Acredito profundamente que o sector cultural e criativo tem um potencial enorme naquilo que é o modelo de competitividade do país e da atratividade que temos como país. A atractividade para o talento, para o investimento, para turismo, como factor de coesão territorial. Isso é um caminho que iniciámos, o de procurar cada vez mais que as empresas tenham também um papel mais ativo neste sector, mais condições para mecenato através de regimes de benefícios fiscais, estar cada vez mais presente em certos fóruns e certas discussões que falam precisamente sobre o papel de determinadas áreas para a economia. Isso foi fundamental. Vou dar um exemplo, a questão do fundo de turismo e do cinema, a Portuguese Film Comission, são instrumentos fundamentais e vários países os utilizam de forma altamente competitiva hoje em dia, para conseguir colocar o país como destino de grandes produções e de filmagens. Isso é algo que no início enfrentou alguma resistência, mas hoje em dia é relativamente consensual que o mecanismo “cash rebate” tenha sido e seja algo importante para atrair produções cinematográficas e que dê trabalho a técnicos, a profissionais, a atores, a realizadores, a produtores, ou seja, que, na verdade, faça com que toda a área do cinema mexa. E isso é talvez uma das áreas em que eu diria
que Portugal deve investir. E as pessoas percebem isso. Como percebem e perceberam bem, durante a pandemia, que quando encerra um monumento nacional, toda a economia à volta para. Em Lisboa não é tão notório, como é evidente, mas se formos à Batalha percebemos bem o impacto que tem para toda a economia à volta encerrar aquele mosteiro. É preciso fazer este caminho, é preciso perceber que o contributo que o sector cultural e criativo tem para a economia é enorme.
O mítico 1% do Orçamento de Estado para a Cultura é uma meta legítima de se exigir? Sim, totalmente legítima. Uma questão é o investimento público na área da Cultura tem que crescer progressivamente, tendo partido de uma base extraordinariamente baixa. Todos os anos tem crescido e todos os anos tem que crescer. Isso é importante do ponto de vista relativo, porque queremos mais investimento e sabemos para quê. Quando defendemos uma posição de maior investimento, compete-nos também dizer onde é que o vamos colocar. Isso para mim era muito evidente. Sabia que queria aumentar a cotação da DGArtes, era fundamental e aumentámos muito a sua cotação, para além dos concursos ainda foi criada a Rede de Teatros e Cineteatros, e foi aberto um concurso à parte para as Artes Visuais, que não existia. Depois, para além do aumento de investimento, a questão do 1% não é apenas simbólica, é também importante pelo que significa do ponto de vista de políticas públicas, daquilo que é a afectação orçamental do dinheiro dos contribuintes para determinada área. Mais do que simbólico é importante que se destine o dinheiro dos contribuintes a uma área que depois de alguma maneira o devolve à nossa vida. Agora, quando se fala do 1% está a falar-se de um valor face a um bolo de 100%, o que acontece é que se o bolo crescer, mesmo que desça muito o investimento na Cultura a percentagem também diminui, ou seja, em anos em que houve um investimento enorme na área da saúde, o global do OE cresceu muito e ao crescer muito naturalmente que aquilo que é afecto às
diferentes áreas, neste caso à Cultura, mesmo que tenha duplicado, pode ter menos percentualmente do que no ano anterior. Isto eu sei que nem sempre é fácil de explicar. Dito isto, acho que é importante todos os anos haver aumento de investimento na Cultura. Acho que é importante termos uma meta que é de todos, o 1%, representando esse 1% mais ou menos aquilo que naquele ano for o montante global do OE.
Sentiu alguma vez o tapete a fugir-lhe debaixo dos pés? Estou a lembrar-me por exemplo, durante a pandemia, quando se falava muito dos subsídios e dos apoios que eram urgentes e que parecia que o dinheiro não vinha… Sim. O tempo das necessidades imediatas das pessoas em especial num tempo como aquele não é o mesmo tempo dos processos internos de uma direcção-geral ou dos circuitos orçamentais e financeiros de um governo. E este desajustamento dos tempos, dos tempos burocráticos e dos tempos das pessoas, foi uma realidade, tenho perfeita noção disso. Isso é algo que para quem está do lado público é angustiante muitas vezes, porque queremos de alguma maneira saltar etapas, mas não é possível. Sei que as pessoas não percebem e percebo que não o percebam, não é fácil de explicar. Mas o tapete não fugiu debaixo dos pés. Em tempos difíceis temos que fazer exatamente o oposto que é ter os pés bem assentes na terra e perceber que, aconteça o que acontecer, temos de sair dali com uma solução e com uma resposta.
Ainda falando desse período da pandemia que pôs a descoberto uma grande fragilidade económica e de carácter social do sector da Cultura. Estava à espera de encontrar esse tecido profissional tão debilitado? De alguma maneira sim. Durante seis anos fui vereadora em Lisboa e a experiência que temos quando estamos numa câmara municipal, especialmente numa como esta, ensina-nos imenso para o futuro, porque a proximidade que temos com a realidade dá-nos um conhecimento muito particular sobre as realidades sociais. Tinha a noção de que é um sector com fragilidades estruturais. Repare que durante a pandemia surgiram muitas associações novas. Houve uma resposta de estruturação e de organização que considero muito importante do ponto de vista de futuro. É diferente haver um diálogo entre o Governo e duas, três, cinco associações ou entre o Governo e 150 pessoas. A verdade é que anteriormente era um diálogo com 150 pessoas. Por outro lado, como diz, a questão da fragilidade individual era menos conhecida. Eu conhecia bastante bem a fragilidade económica, mas a pessoal e individual foi uma surpresa para muita gente. Sabíamos que no sector da Cultura há uma cobertura pela Segurança Social muito baixa. Os estudos com que trabalhámos demonstram isso muito bem, ao longo dos anos, pessoas com carreiras profissionais muito longas com carreiras contributivas muito curtas. Isto é algo que caracteriza o sector. Não é só em Portugal, na verdade é algo transversal à Europa. Mas no caso de Portugal a diferença é enorme, o que faz com que as pessoas tenham uma desproteção social muito elevada. Se isso em situações normais já é mau, em momentos de crise piora muito. Sabemos que quando as pessoas chegam a uma idade mais avançada entram numa situação de desprotecção social crítica, mas ao observarmos a situação de pessoas mais novas, no activo, e que tinham tido muito trabalho houve de facto um nível de surpresa muito elevado.
PARA MIM ERA IMPORTANTE QUE PARA O FUTURO OS MUSEUS E OS MONUMENTOS DA CIDADE DE LISBOA, QUE NÃO SOFRERAM INTERVENÇÕES PELO MENOS DESDE O 25 DE ABRIL, TIVESSEM UMA INTERVENÇÃO ESTRUTURADA.
Houve um alerta para a sociedade em geral sobre a condição dos profissionais da Cultura. Também acho. As pessoas têm que ter consciência do papel que a Cultura tem nas suas vidas. Damos isso por adquirido ou não pensamos sobre o tema. Quando vamos ao cinema, quando lemos um livro ou quando ouvimos música nem pensamos que há artistas por trás, técnicos… Ter essa consciência é importante. Por detrás de um livro estão inúmeras pessoas, está quem escreve, quem edita, quem vende, quem revê, quem traduz… De alguma maneira, acho que as pessoas olharam para o sector de uma forma um pouco diferente daquela com que olhavam antes.
O que é que aprendeu com os profissionais da Cultura? Muita coisa. Durante aqueles três anos e meio viajei imenso pelo país, visitei praticamente todas as zonas de Portugal e várias estruturas e acho que há uma coisa muito interessante que é o facto de que em cada local onde vamos encontramos sempre um grupo ou uma associação, um colectivo que na área da Cultura e daquilo que é o trabalho artístico é feito com uma extraordinária dedicação e ligação ao local. Encontrei projectos extraordinários sobre os quais em Lisboa nunca ninguém ouviu falar, que nunca saíram nos jornais nem nunca sairão, mas que são muito reveladores de como os profissionais do sector se entregam à sua arte e a forma como, no fundo, dão àquelas comunidades grande parte de si. Isso é algo que aprendi e que levo comigo. São pessoas com uma total entrega a tornar muitos daqueles territórios melhores para as pessoas que lá vivem e para quem queira ir lá. Acho que há uma dimensão de entrega ao outro e de entrega daquilo que somos e fazemos que não existe nos outros sectores.
Em relação àquilo que gostava de ter finalizado, mas para o que não houve tempo inclui-se a compra da Colecção Ellipse e da Colecção Berardo? Sim. Demos passos nesse sentido e espero que agora em 2022 se desenvolva. Em relação à Colecção Ellipse as coisas foram sendo construídas, uma parte diz respeito ao Ministério da Cultura, outra ao Ministério das Finanças e uma terceira parte que envolve o veículo jurídico que lhe está inerente. Estou convencida que se resolverá em breve, espero. A Colecção Berardo tem toda uma outra complexidade, porque já é uma questão judicial, tem um arresto judicial, tem bancos envolvidos. Mas o caminho que fizemos foi o caminho para que em 2022, até mesmo pela própria duração do protocolo, tudo se irá resolver. Mas em 2022 já não sou eu a ministra da Cultura. Fui abrindo caminho.
Depois desta experiência governativa olha de uma forma diferente para o sector da Cultura. Como caracteriza o sector? Acho que é importante que haja uma maior presença e consciência do papel da Cultura naquilo que é o modelo que queremos para o país. Friso a importância da estruturação, uma área em que há já um caminho que foi feito, mas que é importante continuar. Tenho uma consciência diferente do que tinha antes. Vilhes as caras e conheci as pessoas. Olho para a Cultura de uma forma mais atenta. E gostava que as pessoas em Portugal tivessem também um pouco este olhar. l