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MOMO. O MUSEU NA LOUSÃ ONDE O CIRCO DEIXOU DE SER ITINERANTE PARA AFIRMAR A SUA HISTÓRIA

FLÁVIA BRITO

Nos arredores da vila da Lousã, na antiga escola primária da Foz do Arouce, nasceu, em 2019, o Momo. Este museu do circo é o concretizar do sonho de um palhaço alemão, que se apaixonou por aquela região, e que, ao lado de uma atriz portuguesa, criou um espaço de vida e memória que procura dignificar as artes circenses – um património, para Detlef Schaff e Eva Cabral, muitas vezes, marginalizado. Palhaços, ilusionistas, malabaristas… aqui só não se recordam “os homens cinzentos.” Na antiga escola, encontram-se agora peças que chegaram um pouco de todo o mundo. Os objetos que ajudam a contar a história desta arte já estavam a ser colecionados por Detlef Schaff, fundador da Companhia Marimbondo, há mais de 30 anos, e muitos foram doados. Chapéus, instrumentos musicais, bolas, rodas de equilíbrio, roupas e documentos diversos ocupam as várias salas de exposição deste museu, que pretende ser um local de memória, mas também um “um projeto vivo” promotor da disseminação das artes. “Momo foi a Deusa da Sátira na Grécia”, conta Detlef, sobre um dos motivos que levou à escolha daquele nome. “Da sátira e da poesia, não é verdade? Tinha uma particularidade, porque dizia tudo o que lhe passava pela cabeça”, interrompe Eva Cabral. “Os romanos pegaram nesta Momo, que era uma mulher, misturaram com outro deus que já havia – parece assim uma história transgénero da

atualidade – e transformaram esta mulher num homem”, acrescenta, referindo-se à figura da mitológica que personifica a sátira e o sarcasmo e que, na atualidade, é coroada como rei do Carnaval em diversos locais, como o Brasil e Nova Orleães. Também o livro Momo, do escritor alemão Michael Ende, foi uma referência. “É a história de uma miúda, que é órfã, e que vive nas ruínas de um anfiteatro, em Roma. Ela tem duas qualidades muito grandes: sabe ouvir muito bem as pessoas, e tem muita paciência, e imagina muitas histórias e brincadeiras”, desvenda-nos o compatriota, sobre A História Interminável (título na versão portuguesa). A alegoria literária, de 1973 – “mais atual agora”, comenta a atriz – aborda o poder o ilimitável da imaginação, mas também a falta de tempo na sociedade moderna. “Um dia, ela descobre que as pessoas já não vêm, já ninguém quer falar, já ninguém quer desabafar. E descobre que, na cidade, uns homens muito esquisitos que são ‘os homens cinzentos’ tentam convencer as pessoas a pôr o tempo livre numa caixa económica do tempo”, para trocá-lo por dinheiro, revela o companheiro. Mas há ainda uma terceira razão para a eleição do nome, que se prende com uma expressão portuguesa que caiu em desuso. “Momices” que significa “fazer disparates, palhaçadas, trapalhadas”, esclarece Eva, lisboeta formada em artes performativas. Discreto por fora, colorido por dentro. Entramos no Momo, acompanhados pelos anfitriões da companhia Marimbondo, que nos contam que “há registos de circo desde o Antigo Egito, desde a Mesopotâmia”. “Foi andando historicamente – os saltimbancos na Idade Média, os fulanos das cordas bambas no século XVII – até que há cerca de 252 anos, um senhor inglês, que era cavaleiro militar e se chamava Philip Astley, teve a sorte de acabarem as guerras”, relata Eva, sobre aquele que é considerado o pai do circo como o conhecemos hoje. “Ele estava um bocadinho sem ter o que fazer e percebeu que as pessoas gostavam de ver números com gente a cavalo. Então montou o primeiro hipódromo.” A pista, hoje facilmente identificável, tem as dimensões estabelecidas ainda nessa altura: “São 13 metros de diâmetro, e o circo, ainda hoje, respeita isso porque tem a ver com o volteio dos cavalos. Aliás, no início do século XX, dizíamos em Portugal “vamos ver os cavalinhos”, que era ir ao circo”, refere. Mais tarde, para quebrar a seriedade das apresentações, o ex-militar inglês introduziu acrobacias e palhaços, num espetáculo que acontecia originalmente em luxuosos teatros. “A tenda é uma invenção americana”, nota Detlef, relembrando que, na altura, em que não havia luz elétrica, os teatros “incendiavam a toda a hora.”

“O circo é um mundo” O primeiro e único Museu do Circo em Portugal faz homenagem ao país que o acolhe, com fatos da família Cardinali, Chen ou dos Batatoon, numa sala dedicada ao circo português. “Portugal, apesar de ser um país muito pequenininho, tem neste momento, de circos tradicionais – portanto, aqueles de tenda ou das famílias – cerca de 30

DETLEF SCHAFF E EVA CABRAL, DA COMPANHIA MARIMBONDO

a funcionar, o que é uma monteira de circos para o país que a gente tem”, comenta Eva. “Isto era antes de Covid, agora não sei. Muitos deles vão seguramente à falência”, ressalva. Do circo tradicional ao contemporâneo, lembrando companhias e artistas que se destacaram em países dos cinco continentes, os 450 m2 da antiga escola primária revelaram-se pequenos para tantos séculos de história. “O circo é um mundo, e é um mundo muito grande. Precisaríamos, para o expor, decentemente acho que trinta museus iguais a este ou assim. Portanto aqui, no fundo, o que queremos dar é uma pequena ideia do que é que se passa e das contextualizações, porque acho que a maior parte das pessoas não sabe. De todo”, diz Eva, na cafetaria do museu, dedicada a Grock, o palhaço suíço que, “por volta de 1920, foi o artista mais bem pago da altura” e que “recebia em ouro a meio do espetáculo.” Mas escolher o que incluir não foi o único desafio. A ideia de criar um Museu do Circo, naquele concelho, já fervilhava há mais de uma década na cabeça de Detlef. “Já propus isto há 15 anos para a Lousã. A recetividade foi grande, como podem imaginar, senão não teria demorado mais de 15 anos para a realização”, ironiza. O palhaço, músico, ator e malabarista, mudou-se para Portugal há quarenta anos, onde fundou “o grupo itinerante de animação e teatro infantil mais antigo” do país. Chegou a ser convidado para abrir o museu em Évora, no espaço de uma associação cultural, mas a sua vontade sempre foi que o equipamento se erguesse na Lousã, no distrito de Coimbra. O alemão conta que, quando chegou ao país, tinha três contactos. “Queria já, na altura, fazer uma horta com ervas medicinais e aromáticas. Só que Melides, que era giro, à beira mar, me parecia muito seco e, depois, no Zêzere, encontrei um espaço, mas as partilhas eram ainda mais complicadas que hoje, então nunca consegui nada”, relembra. “Depois tinha um amigo aqui, que é da minha terra. Fiquei em casa dele um mês e, quando encontrei a minha, fiquei por cá. E olha, é belo!” Detlef ficou até hoje e partilha, há vários anos, com Eva, as tarefas que importa assegurar para garantir a continuidade da Companhia Marimbondo, instalada há quase três décadas na aldeia de Vale de Sancho. “Para mim e para a companhia do circo foi genial, porque estamos no centro. Em duas horas estou em Lisboa, em duas horas estou no Porto. A única coisa de que estou longe é do Algarve. Mas lá não se passa nada”, brinca. O Momo foi inaugurado, em fevereiro de 2019, ao abrigo de um protocolo da Câmara Municipal da Lousã, que vincula a companhia de circo à organização dos festivais de Malabaristas e de Marionetas que o concelho tem acolhido nos últimos anos. “Lutámos também nestes anos contra os homens cinzentos que andam por aí a envenenar a nossa vida”, dizia Detlef, à data, aos meios de comunicação social. Com uma programação cultural relacionada com as artes circenses e não só, o espaço recebeu, no primeiro ano, cerca de 2 000 pessoas, 600 das quais alunos das escolas da Lousã. O museu conta com dois palcos, um interior e outro exterior, uma pequena biblioteca com livros para consulta, um ecrã de cinema ao ar livre e, claro, uma tenda na rua, para que ninguém se esqueça que o circo chegou à Lousã. l

Nota: Este texto foi realizado para o site Gerador (https://gerador.eu/) e publicado a 6 de Agosto de 2021.

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