Chuva de tamarindos

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CHUVA DE TAMARINDOS Cupertino Freitas


Sumário

Solidão 3 Rejeição 4 Ilusão 5 Privação 6 Educação 7 Aplicação 9 Alucinação 10 Afeição 12 Aflição 13 Satisfação 15 Insatisfação 17 Aproximação 19 Compreensão 21 Inserção 22 Competição 24 Emoção 27 Admiração 29 Decepção 30 Inspiração 32 Traição 34 Escuridão 36 Perdão 38 Adoção 41

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Solidão Não se via estrelas e a lua se escondia entre nuvens que anunciavam uma inesperada chuva em outubro. De vez em quando eu ouvia ruídos estranhos, sons que emanavam da escuridão. A maior parte do tempo, porém, havia apenas o som angustiante dos passos de um menino de doze anos caminhando no mais completo breu. Eu já tinha percorrido uns quinze quilômetros. Havia pelo menos outros cinco à minha frente. Estava morto de cansado, mas minhas pernas pareciam ter vontade própria. Parar era perigoso, era muito arriscado passar a noite na estrada. Não que eu fosse ser atropelado; carro circulando por ali a uma hora daquelas era tão raro quanto chuva no sertão em ano de seca, mas havia o perigo real de algum cachorro do mato me atacar. Voltar, eu não iria. Quanto mais eu andava, mais me certificava de que ninguém me queria bem, ninguém se importava comigo, ninguém iria sentir minha falta. Eu estava só nesse mundo. Só.

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Rejeição Comecei a carregar o sentimento de abandono dentro de mim desde o dia em que vi minha mãe entrar na boleia de um caminhão sem olhar para trás. Naquela tarde sem uma nuvem no céu, o motorista deu partida e eu, sem entender o que se passava, corri atrás do veículo, de pés descalços, gritando em meio a uma nuvem de poeira. A única lembrança que trago dela é a da aflição que senti naquele momento. Do resto, não guardo memória. Nem do rosto. Nem do jeito. Nem de algum carinho que porventura tenha me dado. Minha mãe se foi e deixou um homem deprimido e um rasgo imenso no coração de um menino de seis anos de idade.

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Ilusão Aos oito, eu era um fiapo humano. Dia sim, dia não, enganava o estômago com pirão escaldado, farinha fervida na água e no sal, servida em um prato de ágata pelas mãos trêmulas de meu pai, cuja saúde se deteriorou depois que minha mãe nos deixou. Além desse pirão, a única coisa que havia para comer eram tamarindos verdes, que eu tirava de um pé que ficava ao lado do nosso casebre. Eu subia na árvore, equilibrando-me com destreza, e pegava qualquer fruto que estivesse despontando nos galhos mais altos. Tinha dias que eu ficava a tarde trepado, mirando o horizonte, na ilusão de avistar alguém. Mera ilusão.

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Privação Uma vez por semana, às vezes duas, passava uma camionete

verde

transportando

passageiros

por

aquela

estradinha de terra batida que ligava o nada a lugar nenhum. O motorista desacelerava e acenava para mim, parecia ter ciência de que estávamos, eu e meu pai, isolados do resto do mundo naquele pedaço de sertão profundo. Com o tempo, os galhos do tamarindeiro ficaram quebradiços. Assim como tudo à minha volta, parecia estar em um lento processo de morte. Até a sombra estava desaparecendo. O estado de tristeza de meu pai se agravou. Vivia o tempo todo no fundo de uma rede. Quando não estava dormindo, ficava a se balançar, empurrando o pé contra a parede. Passou a andar com muita dificuldade. Por fim, deixou de se levantar para me preparar o tal pirão. Como a fome foi ficando insuportável, eu mesmo fui procurar algo o que comer, mas não havia mais farinha, só um punhado de sal. E a água também findara no pote.

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Fraco, sentei-me à porta do casebre e mastiguei cascas podres de tamarindo. Foi quando vi aproximar-se a camionete verde. Só que dessa vez o motorista parou.

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Educação Com um misto de repugnância e dó ela entrou casebre adentro, olhando do teto ao chão, como que a analisar a triste situação. Não me lembrava de tê-la visto antes: era minha madrinha, dona Alzira. — Vim buscar o menino, ele tem que estudar, não está certo um menino crescer sem ter acesso à educação — ela disse a meu pai, que nada respondeu. Não fiz perguntas, deixei que madrinha Alzira juntasse minhas poucas roupas e fizesse uma pequena trouxa. Pouco depois, eu estava viajando em sua companhia no banco de trás da camionete verde, um pouco enjoado com o balanço na estrada, mas bem entretido, devorando um pacote de bolachas água e sal que o motorista me deu. Dias depois, de tênis, calça azul-celeste e camisa branca com o escudo da escola, fui para meu primeiro dia de aula. Senti-me estranho no meio dos pirralhos. Eu era o aluno mais velho da turma. Antes que eu perguntasse se aquela era a minha classe, a professora Edna começou a fazer a chamada. Leu bem alto e compassadamente: — José Jônatas Balbino. 8


— Sou eu — respondi. — Como é que a gente te chama, menino? — ela perguntou, meio secamente. — Pode ser José. Ou Jônatas. Ou Balbino. Pode me chamar do jeito que a senhora quiser. A professora Edna me convocou a um canto no final do primeiro dia de aula e disse que eu estava muito atrasado em relação ao resto da turma; não podia perder nenhum ano. Contente por ter recebido atenção especial da professora, prometi ser um aluno aplicado.

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Aplicação As lições de casa eu fazia com muito capricho, eu não deixava pergunta sem resposta. Quando não conseguia resolver um problema, pedia ajuda a algum colega. Meu esforço e dedicação deram bons frutos, eu sei disso porque a própria professora disse estar impressionada comigo. Tornei-me um de seus alunos preferidos. Tanto que ela resolveu me levar à presença da diretora para dizer que estava surpresa com o meu desempenho. — Este é o Balbino, o menino de quem lhe falei — disse a professora. — O menino da doceira? — perguntou a diretora, com olhar intimidante. — Sim, o afilhado de dona Alzira. A diretora me olhou com um olhar sério, mas deu uma piscadinha de leve. — Excelente, Balbino! Continue aplicado. Todo contente, eu disse para madrinha Alzira que tinha sido elogiado pela diretora. Ela sequer sorriu.

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Alucinação Eu estudava à tarde, pela manhã ajudava nas tarefas do sítio. Adorava ordenhar as vacas. Bebia leite à vontade, ainda bem quente e espumante. Num instante ganhei peso. Num instante me tornei um moleque disposto e corredor. Madrinha Alzira não era rica, mas todo dia a gente tomava café da manhã, almoçava, merendava e jantava. Na despensa não faltava feijão, arroz, milho, farinha e doce de todo tipo. De leite, de banana, de mamão, de goiaba, de buriti. Tinha também doce de tamarindo, mas desse eu não comia. Eu dormia na casa de Salvador, o trabalhador da propriedade, uma casinha simples, mas incomparavelmente melhor que o casebre de meu pai. Mundica, a mulher de Salvador, cozinhava e ajudava madrinha Alzira na preparação dos doces, que eram vendidos em Caburés, a vinte minutos a pé do sítio. Era bonita e gostava de conversar comigo, de contar histórias assombradas, de narrar viagens e aventuras a lugares fantásticos que só existiam em sua cabeça. Tinha explicação para tudo. Mesmo que não entendesse absolutamente nada do assunto, Mundica falava absurdos e inventava mentiras sem nenhum pudor. Eu ouvia com atenção, 11


meio acreditando, meio fingindo acreditar. Como no dia em que falou que tinha ido a pé bater na Argentina atrás de um gato. Ou quando me falou de seu encontro com um anjo. — Um anjo, Mundica? Anjo de verdade? — Sim! Tinha asas grandes, bonitas. Todo vestido de branco. Me viu, sorriu, deu tchau e saiu voando. — Ah, Mundica, me desculpe, mas eu acho que você teve uma alucinação. Rimos os dois.

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Afeição Numa de nossas conversas, Mundica me pegou de surpresa: — Eu lhe quero muito bem, viu, José? Abri um sorriso tímido e meu coração bateu forte. Foi a primeira vez que alguém disse que gostava de mim. Eu também gostava muito de Mundica, mas meu bem querer maior era mesmo madrinha Alzira. Fazia tudo para agradá-la. Ela, no entanto, não se importava com minha afeição. Parecia ignorar minha presença. Não esperava que madrinha Alzira dissesse que me queria bem, como fazia Mundica, mas desejava que se dirigisse mais a mim, nem que fosse para brigar. No dia em que ela me deu a notícia que meu pai tinha morrido e eu desabei no choro, pensei que fosse me dar um abraço, mas apenas tocou meu ombro de leve.

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Aflição

De vez em quando a camionete verde aparecia de manhã cedo para pegar madrinha Alzira. Ela ia deixar encomendas de doces na capital e ficava o dia por lá. Uma vez ela foi e não veio no final da tarde como de costume, e eu fiquei a noite inteira sem dormir, imaginando que iria abandonar o sítio e, consequentemente, a mim. Passei a noite apreensivo, pensando num jeito de falar com Mundica e pedir para ela ficar comigo caso minha madrinha não voltasse. Quando o dia amanheceu, ordenhei as vacas e fiquei esperando Salvador sair de casa para ir aguar o roçado. Ele me deu umas ordens e disse que eu não fosse incomodar Mundica. — Que é que ela tem? — Se queimando de febre. Chega tá se tremendo. Não era um bom sinal. Lembrei-me das mãos trêmulas de meu pai. Entrei em pânico, imaginando que além de madrinha Alzira ter ido embora, como fez minha mãe, Mundica estava doente e ia ter o mesmo fim de meu pai. Salvador iria sumir, ninguém ficaria comigo e eu voltaria a ter fome.

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Comecei a chorar e tropecei no balde de leite, derramando quase tudo. No meio do choro, ouvi a buzina da camionete verde.

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Satisfação O carro parou, madrinha Alzira desceu, seguida por um menino todo limpo e arrumado. Ela tinha ido buscar o neto Olavo na serra. Por isso não tinha pernoitado em casa. Mundica ficou boa da doença e em alguns dias estava entusiasmada e falante como sempre. Já madrinha Alzira parecia mais contente do que nunca. Sei disso porque deixou de reclamar da comida. Antes vivia a dizer que o feijão estava insosso e que o arroz tinha virado papa. A presença do neto deixou-a mais leve, sorridente. Fazia todas as vontades dele. Não media esforços para agradálo. — Olavo, você prefere bolo de milho ou de batata doce, meu filho? — De milho, vó. — Mundica, faça um bolo de milho bem gostoso pra Olavo comer e lamber os beiços. — Acabou o milho, dona Alzira. — Tem nada não, eu como bolo de batata doce, vó. Madrinha Alzira não deu ouvidos ao neto e me passou uma ordem: 16


— Vá no milharal e traga umas espigas de milho verde. Se não tiver, diga ao Salvador que vá em comadre Antônia pedir seis espigas. E lá fui eu para o milharal ao pingo do meio-dia. Procurei pelas melhores espigas. Oito, ao invés de seis, para o caso de madrinha Alzira não gostar de algumas delas. Na volta, desembestado por uma vereda cheia de pedrinhas, perdi o passo e tombei. Não derrubei o milho, mas me arranhei todo na queda. Levantei-me devagar, respirei fundo, engoli o choro e voltei para casa com o senso de dever cumprido. — Que espigas boas, José! — disse minha madrinha, me dando tapinhas nas costas. Fiquei no terraço com os joelhos em chamas, mas satisfeito por vê-la contente indo em direção à cozinha.

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Insatisfação Madrinha Alzira se desdobrava, mas Olavo não parecia feliz: não ria, não conversava, não reclamava. Entrava dia e saía dia e não dizia nada. Sentava-se à mesa, comia, levantavase, ia sentar-se um pouco no alpendre, voltava para o quarto, dormia. Eu me aproximei uma vez para perguntar se ele queria milho assado e não obtive resposta. Ele me deixou com uma espiga na mão e foi para o quarto. Eu dei de ombros, comi o milho todo e evitei chegar perto dele outra vez. Passaram-se mais alguns dias e a camionete verde veio buscar madrinha Alzira e Olavo. Pedi a Mundica para perguntar se ela ia demorar a voltar. Fiquei sabendo que madrinha Alzira ia para a serra deixar o neto, que estava com saudade de casa, e que ia demorar uns dois dias por lá. Disse que Mundica cuidasse da casa e não deixasse as galinhas entrarem no quarto dela. Eu fiquei aliviado com a partida de Olavo. Ele não iria mais tomar o meu lugar. Assim que o carro passou pela porteira do sítio, Mundica olhou para mim e disse que a gente ia fazer uma comemoração pela partida daquele menino chato. 18


Ao cair da tarde, Salvador foi para o milharal e Mundica para o galinheiro. Comemos muito frango com pamonha naquela noite. Depois do jantar, Salvador abriu um litro de cachaça e começou a beber, junto com Mundica. E começaram a dançar, rir e contar estórias. Sobre a galinha desaparecida, Mundica disse para minha madrinha que uma raposa tinha entrado no galinheiro e levado.

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Aproximação Pensei que nunca mais fosse ver Olavo. Qual não foi minha surpresa ao vê-lo de volta ao sítio em questão de semanas. A má impressão que tive dele na primeira vez que nos vimos desapareceu já no segundo encontro. Ele estava bem mais acessível. A gente foi se aproximando aos poucos e eventualmente nos tornamos amigos. Apesar disso, continuei a ter ciúme da relação dele com madrinha Alzira. Queria que ela me tratasse com o mesmo zelo e carinho com que o tratava. Salvador percebeu o meu desejo e me aconselhou: — Olavo é neto da patroa. É sangue dela. Você é só um afilhado. Se dê por feliz que tem um lugar pra dormir e seu bucho tá sempre cheio. Não espere que dona Alzira vá tratar você como pessoa dela porque ela não vai. A essa altura, eu já sabia detalhes da vida de Olavo. A filha de madrinha Alzira havia saído do sítio para morar com uma tia na capital. Lá se envolveu com um rapaz, engravidou e voltou para o sítio, onde deu à luz. Assim que terminou o resguardo, resolveu ir embora, deixando o filho sob os cuidados da avó. 20


Novamente na cidade grande, a mãe de Olavo se envolveu com um homem bem mais velho, um viúvo que morava na serra e tinha idade de ser pai dela, voltando em seguida ao sítio para buscar o filho. Madrinha Alzira pediu para que deixasse Olavo consigo. Acabaram discutindo e o menino foi arrancado dos braços da avó. Alguns anos se passaram e madrinha Alzira ficou sabendo que a filha estava grávida de novo e andava cansada. Ofereceu-se para cuidar do neto e foi buscá-lo. Foi quando eu conheci Olavo no sítio, esquisito, antipático. Na época não entendi seu comportamento, mas ele viria a me dizer que agira assim porque estava triste por sua mãe não lhe querer mais por perto.

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Compreensão Nas suas vindas ao sítio, em fins de semana e em feriados prolongados, Olavo e eu brincávamos muito. Ele me ajudava com as tarefas escolares. Em troca, ensinei-o a montar a cavalo e a pescar. Uma vez, quando Olavo me ensinava a resolver uns problemas de matemática, eu lhe falei que não entendia por que minha mãe havia me abandonado. Com os olhos úmidos, ele disse: — Você não tem culpa de nada. Eu também não conheci meu pai. Meu padrasto me odeia. E minha mãe, acho que deixou de gostar de mim. — A diferença é que você tem mãe, Olavo. Ela pode até não lhe dar atenção, mas você sabe onde ela está. Você mora com ela. E tem uma avó que gosta de você mais até que sua mãe. Já eu, sou só nesse mundo. Olavo ficou me olhando, sem saber o que dizer. Levantei-me da mesa e saí correndo para o milharal. Soltei um grito exasperado e comecei a chorar. Foi um pranto longo e raivoso. Eu tinha finalmente compreendido a gravidade do que minha mãe havia feito comigo. 22


Inserção O estranhamento entre Olavo e seu padrasto foi piorando e tornou-se insustentável. O homem acabou dando um ultimato à mãe do menino: ou Olavo ia morar com a avó ou ele sairia de casa. Não foi preciso que ela fizesse a escolha. O próprio Olavo pediu para morar com madrinha Alzira. Meu coração se encheu de alegria no dia de sua chegada. Ele desceu do ônibus e foi logo me perguntando as novidades. Nesse dia conversamos até tarde. Falei que agora eu estava indo à pracinha, não era mais um bicho do mato. Antes eu só saía de casa para ir à escola e para fazer mandados: entregar encomendas de doces e ir à mercearia ou à farmácia comprar alguma coisa. Na rua, não olhava para ninguém, mantinha a cabeça baixa e desviava das pessoas, achava que iria gaguejar, trocar tudo, perder o dinheiro. Agora eu estava mais autoconfiante. Ele me perguntou se eu tinha feito novas amizades na pracinha. Eu disse que tinha. Principalmente com Zenóbia, presidente do grêmio estudantil, uma menina muito inteligente, sobrinha da professora Edna, que também frequentava a pracinha. 23


Convidei-o para ir conhecê-la logo mais à noite, mas ele disse que preferia ficar conversando com a avó ou lendo.

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Competição À noite, Edna não se portava como professora. Virava uma adolescente. Inventava jogos e competições para que a gente participasse. Dividia as equipes, explicava as regras e era a juíza. Aos poucos a coisa foi tomando uma dimensão maior e minha professora acabou por montar a “Primeira Gincana dos Estudantes de Caburés”. Eu fui designado para a equipe “Avante Caburés”, a equipe de Zenóbia. Ana Carine, filha da diretora, era líder da equipe “Esplendor de Caburés”. Excelente em conhecimentos gerais, praticamente imbatível. As duas líderes de equipe sempre foram as melhores da classe, mas o forte de Zenóbia, matemática, não era objeto da competição. Estávamos fadados a perder. Tive que implorar para que Olavo se juntasse ao nosso time. A etapa final do torneio foi emocionante: num embate acirrado, Ana Carine e Olavo responderam sobre as capitais dos países. Faltando apenas uma pergunta, estava tudo empatado. Edna perguntou a capital de Honduras. Ana Carine e Olavo pensaram, escreveram e levantaram os pedaços de cartolina 25


com as respostas. No de Ana Carine estava escrito “San Jose” e no de Olavo, “Tegucigalpa”. Silêncio total... Nenhum de nós sabia a resposta certa. Edna olhou para a plateia e anunciou: — E a campeã é... “Avante Caburés”! Pulamos de alegria e demos a volta olímpica na pracinha, abraçados. Foi ali, naquele momento, que eu senti que estava definitivamente inserido na turma. Naquela noite, Zenóbia convidou Olavo para fazer parte do grêmio estudantil, mas ele não se mostrou muito empolgado com o convite. — Jônatas, quero falar com você amanhã na hora do recreio — disse Zenóbia. Zenóbia me pediu para que eu tentasse convencer Olavo a ser diretor cultural. Ela sentia que eu exercia influência sobre ele. — Olavo, o que é que o diretor cultural de um grêmio faz? — perguntei. — É a pessoa que se encarrega de incentivar o pessoal a participar de atividades ligadas à literatura, arte, esse tipo de coisa. Mas por que está me perguntando isso, Jônatas?

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— Zenóbia quer que você seja diretor cultural. Ela acha que você é a pessoa ideal para o cargo. Eu acho que você deve topar. Olavo titubeou um pouco, mas acabou aceitando o convite.

Zenóbia

veio

me

agradecer

pela

conversa

incentivadora que tive com ele e me deu um beijo no rosto.

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Emoção Zenóbia Celeste Nepomuceno Coité. Uma líder nata. Parecia mais madura e sensata que o resto da turma, talvez por viver com sua tia, longe dos pais, que moravam na zona rural. Sempre aparecia com propostas interessantes, que acabavam por envolver alunos, professores, pais e a comunidade em geral. Organizava de homenagens a datas comemorativas como dia da árvore e dia do professor a encenações e quermesses. Na hora do recreio, tentava conseguir um trocado para bancar as atividades do grêmio. Quando não trazia cocada, trazia bolo ou pamonha para vender. A tia, além de ensinar, pintava, desenhava, decorava a escola para as festas e dava todo o apoio para as empreitadas da sobrinha, que não eram poucas. E tinha uma voz belíssima. A homenagem que as duas organizaram para o dia das mães emocionou e arrancou lágrimas de muita gente; eu fiz esforço para não chorar. Enquanto Zenóbia tirava rosas de uma cesta e entregava aos alunos para que dessem às suas mães, a professora Edna cantava “Rainha do Lar”: Ela é a dona de tudo / Ela é a rainha 28


do lar / Ela vale mais para mim / Que o céu, que a terra, que o mar / Ela é a palavra mais linda / Que um dia o poeta escreveu... Dispostos em uma fila, os alunos pegavam uma rosa e iam ao encontro de suas mães. Eu era o penúltimo e Olavo o último da fila. Peguei minha rosa e vi que não restou nenhuma no cesto. Não pensei duas vezes: dei a Olavo a minha rosa para que desse à madrinha Alzira e fui me sentar. Olavo entregou a rosa para a avó e, depois de receber um abraço e um beijo, cochichou qualquer coisa em seu ouvido. Madrinha Alzira balançou a cabeça, sorriu e acenou para mim.

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Admiração Eu não parava de pensar naquela menina de sobrancelhas grossas, de fala bem explicada e gestos largos. Sentia algo diferente por Zenóbia, mas não sabia definir exatamente o quê. Sei que tinha vontade de vê-la, de ouvi-la falando alto e tomando decisões. De noite, enquanto ela não vinha para a pracinha, eu não me aquietava. Quando ela aparecia, eu ficava animado. Procurava ficar ao seu lado e obter sua atenção nas conversas e jogos. Olavo, que depois da gincana passou a frequentar a pracinha de vez em quando, notou que eu a olhava de um jeito diferente e me perguntou se eu sentia alguma coisa por ela. Eu gaguejei, tentei disfarçar, disse que a admirava, mas acabei confessando que estava gostando de Zenóbia. Contudo, ela não tinha a menor ideia do que eu sentia e eu não queria, por hipótese alguma, que ela soubesse. Receava que se afastasse de mim.

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Decepção Zenóbia me tinha como um bom amigo. Um confidente. E eu notava que ela tinha um interesse especial por Olavo. Quando ele não ia à pracinha, ela ficava desapontada. Eu perguntei por que ela sempre queria saber se ele vinha à pracinha. — É que eu tenho muita admiração por seu amigo. Dias depois, no entanto, ela me confidenciou: — Jônatas, menti pra você. Estou gostando do Olavo. Olavo notou que eu estava diferente e perguntou se o motivo da minha cara amarrada eram as conversas misteriosas que ele estava tendo com a avó. Os dois andavam de segredinho. Trancavam-se no quarto de madrinha Alzira e ficavam a confabular quase todas as noites. —Vovó também está achando você diferente. — Não me importo com esses segredinhos de vocês. Ando calado porque Zenóbia está gostando de você e eu fico triste só de pensar que vocês vão namorar. — Namorar? Eu não tenho idade para namorar. Nem Zenóbia, nem você, nem ninguém da turma. Isso é pra quando a gente tiver com uns 15 anos, pelo menos. — Eu não vou esperar até 15 anos pra namorar! 31


— Tudo bem, você é alto, mas quem vai se interessar por mim, Jônatas? — disse Olavo, cabisbaixo. — Eu sou mais baixo que todas as meninas da nossa idade. — Isso é uma tolice sua. Se Zenóbia gosta de você, é porque ser baixinho não importa. — Eu admiro Zenóbia, Jônatas. Mas gosto mesmo é da Ana Carine, só que ela nem sabe que eu existo. E já que ela me ignora, vou me concentrar nos meus deveres e leituras. E você devia fazia o mesmo; nós somos muito novos pra pensar em negócio de namoro.

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Inspiração Zenóbia estava entusiasmada com um momento especial que iria acontecer na festa de comemoração do Dia das Crianças: a apresentação de um grupo de teatro de bonecos que se apresentava por diversas localidades do interior. Depois de muitas ligações, tinha convencido o diretor do tal grupo a passar por Caburés para abrilhantar nossa festa. No dia da confraternização, de manhã cedo, Zenóbia recebeu uma ligação do homem: — Aconteceu um imprevisto. O caminhão que vai levar nosso grupo quebrou. Estou esperando uma peça de reposição, mas só chega amanhã. A gente não vai conseguir chegar em Caburés hoje. Zenóbia ficou desesperada e correu para avisar à tia na escola que precisavam urgentemente inventar algo para substituir a apresentação do grupo teatral. Mundica vinha no sentido contrário com quatro potes de doce de leite nas mãos para fazer uma entrega na mercearia. Vendo que Zenóbia vinha em sua direção em desabalada carreira, saiu da frente e tropeçou num banco da praça, esparramando doce e caco de vidro para todo lado. 33


Zenóbia parou, voltou, estendeu-lhe a mão: foi seu momento de inspiração! Chegando à escola, falou sobre o problema com o caminhão e sobre o incidente com a cozinheira, que acabou por lhe servir de mote para o número que iria substituir a apresentação dos bonecos. Ela sugeriu fazermos uma encenação baseada na personagem de uma famosa cantiga: “Teresinha de Jesus”.

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Traição O roteiro da encenação ficou pronto em pouco mais de uma hora. A escalação do elenco foi feita rapidamente. Olavo, que fazia parte da comissão organizadora da festa, aceitou atuar. E me chamou para participar. Eu topei na hora, pois era algo que tinha Zenóbia no meio. O professor de Matemática concordou em fazer o papel do pai. Zenóbia iria ser Teresinha de Jesus. Zenóbia sugeriu que eu representasse seu irmão e Olavo o pretendente. Olavo, tentando me jogar para ela, disse que preferia fazer o irmão. Eu tinha muitas falas. Olavo, umas poucas. O professor de Matemática, nenhuma. Foi a condição que impôs para atuar: seu personagem iria apenas gesticular. Dali a pouco estávamos ensaiando, com Edna e sua voz afinada cantando a famosa canção Teresinha de Jesus, que introduzia a estória: Terezinha de Jesus / De uma queda, foi ao chão / Acudiram três cavalheiros... Só que eu não consegui decorar as minhas falas. E quando conseguia lembrar o texto, gaguejava ou caía na risada. Foi o jeito ficar com o papel menor, o do irmão. Aí Zenóbia 35


ficou contente, teria a oportunidade de fazer par romântico com Olavo. A encenação terminava com um beijo entre Teresinha e o pretendente. Foi assim que aconteceu o primeiro beijo entre Olavo e Zenóbia. De mentirinha. O segundo, naquela mesma noite, na hora da apresentação, também. Mas o terceiro, depois da confraternização, não. A caminho de casa, Olavo me contou que Zenóbia e ele haviam se beijado. — Você já tem tudo e ainda vai ficar com a menina de quem eu gosto? Nunca pensei que você fosse fazer uma traição dessa comigo! Se quer namorar com ela, pode namorar, mas não é mais meu amigo. O sangue me subiu à cabeça e eu o empurrei com força. Olavo caiu e ralou os braços no calçamento. — Ninguém gosta de você! — disse ele, furioso. — Até sua mãe lhe abandonou! Saí correndo, aos prantos. Quando cansei de correr, andei a passos largos no meio da noite, decidido a chegar logo ao lugar de onde nunca deveria ter saído. 36


Escuridão Andando pela beira da estrada, cansado, com sede e faminto, fui tomado por um súbito temor de chegar ao meu destino e não encontrar mais nada. Voltar, contudo, estava fora de cogitação. Voltar para quê? Para quem? Por isso, andava resoluto, mesmo com as pernas já doendo muito. O sentimento de revolta me puxava para frente e me enchia de energia para chegar logo ao espaço miserável de onde eu nunca devia ter saído. Cheguei ao ponto final de minha jornada no meio da madrugada, sob uma rajada de vento forte e úmido. Era uma dessas ventanias que costumam anteceder uma boa chuvarada. O lugar estava deplorável, mas ainda estava lá: o casebre de onde minha mãe fugiu e onde meu pai se esvaiu. E ao lado dele, o velho pé de tamarindo. Empurrei a porta. A rede dele ainda estava armada. Era lá que eu ia ficar deitado, sem beber e sem comer. Até minguar, como meu pai. Tão logo me deitei, o aguaceiro começou a jorrar pelas imensas goteiras do casebre, inundando o velho pote de barro, que transbordou. E começou também uma chuva de 37


tamarindos, arrancados do pé pela força do vento e trazidos para dentro do casebre pelas aberturas das telhas. Caíam sobre mim, caíam dentro da rede, esparramavam-se pelo chão. De repente, estava cercado de água e comida. Como é que eu ia morrer? Pensaria numa solução no dia seguinte. Agora eu estava completamente exausto. Quem sabe Deus teria pena de mim e me levaria durante o sono, antes de raiar o dia?

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Perdão Acordei num sobressalto, com um estrondo e a luz do sol inundando o ambiente triste do casebre. A frágil porta de entrada tinha ido ao chão. Madrinha Alzira estava diante de mim: — José, se levante já dessa rede fedida. — Eu vou ficar aqui mesmo, madrinha. — Não vai. Você vai embora comigo, nem que seja à força. — Pra quê? A senhora nem gostar de mim, gosta. Nunca gostou. — Que história é essa? Eu trato você como uma pessoa da família. — O Olavo a senhora trata como pessoa da família, porque ele é seu neto. Mas eu? A senhora me trata como empregado. Porque é o que eu sou. Seu empregado. Madrinha Alzira respirou fundo. Era como se reconhecesse que, de certa forma, eu tinha razão. Ficou calada por uns segundos. Seus olhos marejaram. — Eu levei você desse casebre quando era pequeno por pena. Levei por obrigação. Mas fiquei sentida por levar um menino estranho para morar comigo, enquanto meu neto eu não 39


podia nem ver, pois minha filha não deixava. Demorou para eu aceitar a situação. Mas com o tempo, eu… eu gosto muito de você, José. Você acha que se eu não gostasse de você, se não me preocupasse com você, estaria feito doida à sua procura de madrugada, no meio da chuva? Madrinha Alzira caminhou até a rede e me estendeu a mão. Eu a segurei, titubeante. Ela me puxou e me acolheu num forte abraço, o primeiro em anos de convivência. Desabei no choro. — Ande, vamos embora. Olavo estava esperando encostado na camionete verde. — Você e Olavo são tão amigos. Não quero mais saber de briga entre os dois. Quero ver um abraço. Agora! Eu e Olavo obedecemos a ordem de madrinha Alzira, mas não um gesto vindo do coração. Não trocamos palavra. Viajamos os três calados até Caburés. Assim que o carro nos deixou no sítio, madrinha Alzira falou: — José, vá escovar os dentes e tomar banho que eu vou preparar um lanche. Você deve estar morrendo de fome. — Tô não, madrinha. Comi um bocado de tamarindo essa noite. — Capaz de ter é uma caganeira. 40


Caímos na risada, mas logo minha madrinha fechou a cara. — É bom que não tenha, pois você começa a aula de catecismo hoje à tarde. — Catecismo? — Você vai fazer primeira comunhão. Antes tarde do que nunca. Fui para a aula de catecismo à força, meio abatido. A primeira aula foi sobre o perdão. Gostei do que ouvi. Me fez pensar. Não tanto sobre o que Olavo me fez, mas principalmente sobre o que minha mãe havia feito comigo anos antes.

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Adoção À noitinha, me arrumei para ir à pracinha. Olavo me seguiu. — Jônatas, espere por mim. Fizemos o percurso até a pracinha em silêncio. Quando já estávamos chegando, eu perguntei: — Você gostou? — De quê? — De beijar Zenóbia. Você gostou? — Acho que… — Pode dizer a verdade! — Achei meio estranho. — Como assim? — Sei lá, molhado demais. — Entendi… lá vem Zenóbia, quer ficar sozinho com ela? — Não. E quero dizer uma coisa antes que ela chegue. Vovó vai dar entrada nos papéis para regularizar sua situação. — Que situação? — Ela vai lhe adotar. É isso que a gente tem conversado no quarto quase toda noite. Ontem eu falei que a gente tinha brigado e ela disse que ia tratar disso o mais rápido possível. Aí 42


você acaba com essa coisa de se sentir rejeitado. Porque vovó e eu, Jônatas, a gente não vai lhe abandonar nunca. Nesse instante o tempo pareceu estancar e eu fui tomado por uma onda morna, uma imensa sensação de paz tomou conta de mim.

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