Estações
Coletivo Delirantes
Sumário
Apresentação...........................................................................................................................2 Urubus.....................................................................................................................................3 Abayomi..................................................................................................................................6 Da fazenda à Padaria.............................................................................................................11 A flor da pele.........................................................................................................................13 Açude de saudades................................................................................................................16 Restos de nada.......................................................................................................................20 Os dois lados da glória..........................................................................................................24 Um destino melhor................................................................................................................27 Estação do abandono.............................................................................................................31 Vesperal.................................................................................................................................38 As viagens de Biu..................................................................................................................41 Fim de linha...........................................................................................................................45 Trilhos da memória...............................................................................................................52 Terra de índio ou um ensaio sobre a liberdade......................................................................58 Disparate................................................................................................................................61 Estação final..........................................................................................................................66
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Apresentação
A primeira estrada de ferro do Estado do Ceará começou a operar em 1873, inicialmente para facilitar o escoamento da produção serrana de Pacatuba e Maranguape para o porto de Fortaleza. A ferrovia seguiu rumo ao Maciço de Baturité, depois ao sertão central e chegou até o Cariri, atingindo seu ponto final na cidade do Crato, em 1926. Através das décadas, até 1988, milhares de passageiros circularam anualmente nos trens que conectavam a capital ao Sul do Estado. Em mais de um século de operação, os comboios de ferro e suas estações de embarque e desembarque testemunharam partidas, tristezas, lutas, conquistas e chegadas em épocas de seca ou enchente, paz ou distúrbio, crise ou boas novas. Em seus dezesseis contos, “Estações” percorre eventos relevantes, traz o trem do Ceará para o centro dos acontecimentos e fala de sonhos e tribulações de cearenses. Como estações ao longo de uma ferrovia, a coletânea atravessa e revisita o passado, de forma a ressignificá-lo, e resgata a importância do transporte ferroviário, fundamental para o desenvolvimento do Estado a partir de fins do século XIX. Nas narrativas, reflexões sobre o tempo, a História, o lugar que habitamos, e suas transformações. Coletivo Delirantes
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Urubus Cupertino Freitas Dizem que quem trouxe essa gripe foi um vapor que veio do Sul. Para ela, não há remédio nem vacina. Alguns morrem em horas, asfixiados. Há anos não testemunhava tamanha catástrofe, pessoas tossindo, agonizando nas calçadas, o vaivém das carroças com caixões de defunto, é muita dor. Já vi mortes demais nessa vida, e bem perto de mim. Entre seis irmãos, sou o único que atingiu a vida adulta, os outros se foram durante o flagelo de 1862. Não lembro tanto das mortes, mas dos bandos de urubus sobre o céu de Maranguape, nunca me esqueci. Havia oportunidades de trabalho para meu pai na capital, estavam construindo a ferrovia para Baturité e ele era um exímio ferreiro. Sob a proteção da Virgem do Rosário, deixamos a cidadezinha ao pé da serra e nos mudamos para uma maior, à beira-mar, onde aprendi o ofício de meu pai. Quinze anos depois, a proteção da Virgem não foi mais suficiente. Seca e fome trouxeram para Fortaleza uma legião de sertanejos que zanzavam pelas ruas pedindo um prato de comida. Começou uma epidemia de varíola, tão terrível quanto a do cólera, que havia dizimado quase um terço dos seis mil habitantes de Maranguape. A calamidade piorou no ano seguinte. Num só dia, a varíola levou mais de mil pessoas em Fortaleza, inclusive meu pai e minha mãe. Dezenas de retirantes foram chamados para abrirem covas rasas, mas havia cadáveres demais para um dia de trabalho. Vi quando enterraram minha mãe. O corpo de meu pai ficou numa pilha ao ar livre a noite toda. De manhã cedo, depois do café preto com tapioca preparada pelas mãos de Assunção, retornei ao cemitério. Urubus disputavam com cachorros os nacos de carne em decomposição. Os coveiros, inebriados de cachaça para não sentirem tanto o odor pútrido, afugentavam os animais a pedradas e pauladas. O que sobrou da carnificina foi jogado numa vala comum. Assim como aconteceu com as vítimas do cólera, muitos dos que morreram de varíola não tiveram enterro digno. Eu tinha certeza de que também morreria da doença maldita e meu corpo logo teria o mesmo destino do de meu pai. Porém, Deus não quis que fosse assim. A varíola continuou a matar nos anos que se seguiram, embora não em proporções gigantescas. Nenhum de meus filhos foi levado pela doença, nem por outra que mata aos 3
montes. O mais velho virou homem, arranjou um serviço. Meu pai havia tirado o sustento curvado sobre os trilhos, debaixo de sol, mas meu filho, trabalhando para o mesmo patrão, ganharia dinheiro na sombra. Um dos momentos mais felizes de minha vida foi quando o vi pela primeira vez na bilheteria da Estação Central. Às vezes, eu tirava um dia de folga e levava Assunção para passear na Praça do Ferreira, e ela sempre me pedia para irmos até a estação só pra ver nosso menino atendendo no balcão daquele prédio bonito. A bonança terminou com a chegada de mais uma seca terrível no Ceará. Uma nova onda de migrantes invadiu Fortaleza e, com ela, retornou a desdita, que levou o maior tesouro de minha vida, minha netinha Aurora. Tão linda, se foi com o corpo tomado por pústulas. Meu filho bilheteiro, o pai dela, adoeceu e se curou, mas com tantas marcas da enfermidade, deixou de ser bem-vindo no guichê da estação. Semanas depois da morte de Aurora, recebi em minha oficina um senhor distinto que queria comprar ferraduras. Apresentou-se como Rodolfo Teófilo, farmacêutico, e disse que tinha uma missão a cumprir na cidade. Enquanto escolhia os ferros, me contou que era baiano de nascença, mas cearense de coração. Em cinco minutos de conversa tive a certeza de que ele era o homem que havia iniciado uma cruzada para vacinar a população de Fortaleza contra a varíola. Perguntei ao senhor Rodolfo como funcionava essa vacina e ele me explicou que a injeção fazia com que nosso corpo criasse uma barreira contra o mal. Decidi que queria me proteger. Não só a mim, mas a todos de minha família. Pelas ferraduras novas e por meu serviço, nada cobrei. E disse que, caso ele precisasse ajustar os ferros nas patas do cavalo, podia voltar à minha oficina que eu teria o maior prazer em atendê-lo. Eu, minha mulher, nossos filhos, noras e netos nos vacinamos contra a varíola em 2 de novembro de 1901. Engajei-me no convencimento de meus vizinhos, que acabaram também se vacinando. Vi o senhor Rodolfo outras vezes pela periferia de Fortaleza, obstinado sobre seu cavalo. Enchi-me de orgulho por ter lhe dado as ferraduras. Um homem bom, que lutou para que os pobres se vacinassem, sem o apoio do poder público. Provou sua capacidade e acabou com a varíola no Ceará. Escapei do cólera e da varíola, mas, já idoso, da gripe não escapo. Os acometidos pela doença são aconselhados a repousar, se alimentar e ingerir líquidos. É o que tenho feito. Rede armada na varanda, dois ovos cozidos e um copo de leite quente pela manhã e, na hora do
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almoço, laranjada. Assunção me dá chá de mastruz à tardinha e de casca de limão depois do jantar. Apesar dos seus cuidados extremosos, já vejo os urubus sobrevoando mais baixo.
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Abayomi Nazaré Fraga Era um quadro desolador o embarque desses desgraçados. Todos uniformizados de fazenda azul de algodão, acompanhados pelo corretor, espécie de hiena domesticada, seguiam para o ponto de embarque. Não havia nenhuma dessas vítimas da barbaridade humana que, ao pôr o pé na jangada, não olhasse com os olhos úmidos de pranto para o azul do céu de sua terra. Todos choravam, mas suas lágrimas corriam despercebidas: eram lágrimas de escravos. Ninguém tinha dó deles! Quem podia ouvir eram os desgraçados também agrilhoados nas senzalas dos grandes da terra (Rodolfo Teófilo).
Quando desembarquei no Ceará naquele dia, em princípio, foi para produzir uma matéria jornalística como free lancer sobre a abolição dos escravos no estado, que completaria noventa anos em breve. Embora a viagem fosse mais de cunho profissional, me moviam outras curiosidades. Tendo nascido e me criado no Recôncavo Baiano, eu tinha pouco conhecimento sobre meus familiares que vieram escravizados ou libertos do Ceará. Sabia que meu idioma ancestral era o banto e que meu avô tinha vindo do Ceará para a Bahia, em 1875, vendido por um traficante de escravos. Constatei um discurso ufanista por parte das autoridades locais que realçavam o papel pioneiro do Ceará, exemplo para o Brasil inteiro, que se antecipou em cinco anos à assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel. Destaque maior era dado ao Acarape, depois à Redenção, o primeiro município cearense a libertar todos os seus escravos. Quase nada mais me disseram de relevante. Sendo assim, rumei para lá. Fiz, então, minhas incursões em Redenção. Perambulei pelas ruas da cidade, visitei testemunhos arquitetônicos, conversei com moradores antigos. Praticamente não encontrei negros residindo na cidade. Não havia um só museu que documentasse os fatos que desembocaram na libertação dos escravos no município. Numa praça encontrei um busto da Princesa Isabel, representada com vestes e adornos nobres. Em destaque na entrada da cidade, o monumento Negra Nua. Era para ressaltar a pioneira abolição dos cativos ali ocorrida. Mas na negra despida, sexualizada, o que mais estava ressaltada era sua postura ajoelhada com 6
olhar suplicante, submissa. Os moradores da cidade, afora um orgulho sem consistência, chegavam a se declarar admirados de tamanho interesse de minha parte, vindo lá da Bahia para especular um fato tão antigo. Vendo que as fontes para a matéria que deveria produzir eram insuficientes, decidi buscar maior aprofundamento em Fortaleza, onde, de fato, encontrei informações relevantes. Revirei o acervo do Arquivo Público do Ceará composto de jornais da época, escrituras, testamentos, peças judiciais e muitos outros documentos. Anúncios de venda de escravos em lotes ou magotes, procurações de compra e venda, negros que recorriam à justiça porque seus donos queriam vendê-los antes que comprovassem já dispor da quantia para comprar sua liberdade, ações outras impetradas por cativos que não aceitavam ser vendidos para longe dos de seu convívio, cartas de liberdade concedidas a alguns deles por terem se tornado bastante insolentes e atrevidos, alforriados que se integraram ao movimento abolicionista. Em meio a tudo o que li, me chamou a atenção um relato que encontrei num jornal abolicionista. Dizia que na manhã do dia 30 de agosto de 1881 iriam ser embarcados 38 cativos no porto de Fortaleza. Mas muitos deles fugiram, entre eles um preto de nome Marcolino, que era posse de um senhor do Acarape. Antes de desaparecer, ele jogou um embrulho de teor ignorado, nas mãos de um preto anônimo que se achava no meio da multidão que tinha acorrido à praia. Fui constatando o que os cearenses não tinham me revelado. A abolição dos cativos no Ceará não tinha sido um ato benevolente dos brancos. Durante o processo teve muita fuga, castigo, compra de alforrias, negociação e outros tipos de empenho da parte dos escravizados e dos seus familiares antes alforriados. Houve resistência dos escravos, e isso não aparecia claramente nos jornais do movimento abolicionista. Concluí que tiveram sua colaboração na extinção pioneira do regime. Na viagem de volta a Salvador, a descrição do embarque abortado e da fuga do preto Marcolino esteve martelando em minha cabeça. O nome Marcolino era o mesmo de um tio meu, irmão do meu pai. Tentei lembrar outros detalhes de nossa vida em família. Meu pai só se casou alguns anos depois de chegar na Bahia, já com certa idade. Ele e minha mãe tiveram 10 filhos. Fui o último. Embora minha mãe fosse mais jovem, quando nasci ele já tinha idade de ser meu avô. Eu perguntava por que tinha demorado tanto a se casar. Respondia que teve os motivos dele. Mesmo tendo um ofício, o de cocheiro, a vida de escravizado lhe trouxe sofrimentos sobre os quais sempre se recusou a falar.
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Em minha vida havia uma zona cinzenta que eu estava decidido a esclarecer. Dois dias depois da chegada, procurei meu irmão mais velho em outra cidade, em companhia do qual meu pai morava quando morreu. Reviramos a casa dele em busca de algum guardado deixado por meu pai. Comecei a abrir um pacote. Envolta em papel pardo manchado encontrei uma pequena e velha caixa de madeira. Sobre a tampa, em baixo relevo a inscrição Suerdieck CharutosBahia-Brasil. Aquela caixa não me era estranha. Ainda pequeno eu via meu pai usá-la como cofre. Ali ele guardava suas mirradas economias. Dentro dela, um tecido de algodão, que, amarelado e manchado protegia um pacote menor. Sobre ele, um papel já se esgarçando continha a letra de meu pai. Aqui tem um pedaço de nós, de nossa terra na África. É a raiz da gente que não pode se perder. Tem umas histórias que eram contadas por meus pais, quando a gente ainda vivia juntos no Ceará. E foi da minha vontade também fazer meus filhos saberem que só aguentei viver cativo para obter um dia meu aforramento e dos da minha casa, fosse de que jeito fosse. Peço que me perdoem por não ter conseguido falar sobre essas coisas quando ainda vivia. Assinado: Cazuza Dentro de um envelope com bordas em verde e amarelo: Meu pai Jacintho tinha vindo traficado de São Luiz. Uns anos mais tarde foi vendido pro Rio de Janeiro. Minha mãe Beliza ficou no Acarape. Ela tinha muitas crias. Era quase tudo só homem. Isso era uma vantagem pro nosso dono, poder vender gente de braço forte, por preço muito bom. E foi acontecendo. De um em um, minha mãe foi vendo os filhos irem embora para a Bahia, Rio e Minas. Nosso dono ia vendendo os meus irmãos ainda bem novos pra senhores com mais dinheiro e mais terra. Ou recebia dinheiro do governo em troca da alforria de outros cativos. O meu irmão mais velho, ele alforriou e mandou para a Guerra do Paraguai, no lugar dele. Deve ter morrido por lá. Nunca mais ninguém teve notícia dele. Eu sempre fui esperto, aprendi a ler, escrever e fazer conta porque ainda pequeno ficava perto do filho do senhor que tinha um professor só pra ele. Já perto da abolição eu fui vendido para outro senhor, e fui morar com ele na Fortaleza. Os donos de escravos ganhavam muito dinheiro quando vendiam cativos ladinos, que sabiam ler e escrever. Na Fortaleza eu era cocheiro. A vida ainda era difícil. Cativo nunca teve vida boa. Mas viver na cidade me acudia 8
com o ganho de uns trocados. Juntei tudo o que pude e consegui comprar a alforria de Rufina, minha irmã mais nova. Foi assim que minha mãe quis. Rufina tinha a vida toda pra viver. O destino podia até ser bom com ela. Mãe dizia que tava velha e cansada, morrendo um pouco mais com cada nova saudade. Dos meus três irmãos que restavam no Acarape, uma foi alforriada em troca de continuar como criada na casa da senhora enquanto ela não morresse. Eu usava de ficar por perto do porto na Fortaleza. Era melhor de conseguir qualquer ganho. Mas passava muito abalo e amargura quando dava de ver a saída de cativos para outras terras. Não conto as vezes que assisti o embarque de conhecidos e parentes lá do Acarape. Eles iam sem esperança. Eram obrigados a subir nas catraias, com as vistas molhadas. Os corretores e capatazes não arredavam o pé. Era grande a agonia de ir pra outro destino. Talvez nunca mais pudessem ver de novo a família. Tinha uns que não se controlavam, não se sujeitavam, tentavam fugir. Outros saíam no braço e até esfaqueavam os capatazes. No final de tudo iam parar na cadeia e apanhavam com mais crueldade do que nunca. No porto corria uma conversa que estava perto dos cativos do Ceará ficarem forros para sempre. Crescia muito as fugas, compras de alforria pelos escravizados e por umas sociedades libertadoras que tinha naquele tempo. Tinha umas pessoas que escondiam os escravos que fugiam. Os abolicionistas faziam quermesses, festas e espetáculos e com o ganho compravam mais alforrias. No fim alcançaram envolver ex-cativos naquela causa e até os catraieiros. No agosto de 1881 os grandes quiseram embarcar muitos cativos. Os catraieiros não deixaram. Isso já tinha se passado noutras vezes. Os chefes Antônio José Napoleão e Chico da Matilde fecharam o porto de novo. A maioria dos infelizes foi levada para outros pontos de embarque do Ceará. Uns fugiram, como meu irmão Marcolino. Meu outro irmão, Simão, conseguiu voltar pro Acarape. Encontrou nossa mãe enforcada. Ela não aguentou o peso da saudade de mais dois filhos que já dava como perdidos. Na primeira manhã de 1883, o trem levado pela locomotiva Sinimbu chegou na Estação de Cala Boca. Trazia os abolicionistas de Fortaleza. Ia acontecer a libertação dos últimos escravos do Acarape. Meu irmão Simão foi quem levou para a estação o ginete que carregou o abolicionista José do Patrocínio até o local do acontecimento, num salão em frente da Igreja Matriz. Muitas outras pessoas que chegaram no trem também foram para lá de montaria ou em carro de boi. Simão e foi alforriado naquele dia. 9
A abolição foi uma alegria que durou pouco. Os libertos ficaram sem terra, sem trabalho e sem ter onde dormir. Os que sabiam do destino de seus parentes passavam meses e até anos juntando tostões para irem se encontrar com eles. Foi o que eu fiz. Junto com meus irmãos Simão e Brígida vim encontrar outros parentes que antes tinham sido vendidos para a Bahia. Rufina, de quem comprei a alforria muito antes, estava casada e com filhos, preferiu ficar no Ceará. Sobre o último pacote um pequeno bilhete: Guardei este pacote com muito cuidado, com muito amor e toda a saudade que coube no meu coração sofrido. Recebi de meu irmão Marcolino, em 1881. Ele jogou nas minhas mãos, quando fugiu do porto de Fortaleza para nunca mais nos vermos. Dentro tem uma abayomi, boneca de pano que minha bisavó fez com tiras de sua roupa, embarcada no navio odioso. Era pra aplacar o choro e a fome de suas crias pequenas durante a viagem horrenda da África para o Brasil. Ela foi capturada junto com as crianças e meu bisavô em uma praia. Este pacote foi achado por meu irmão Simão, perto de minha mãe no dia em que ela se enforcou. O fio de algodão grosso se desfez quando tentei desamarrar o nó. Dentro, a singela boneca. Tinha sido um vestido colorido, como os secularmente usados pelas mulheres africanas, embora muito desbotado. Não havia um só ponto ou costura. Em lugar da cabeça, dos braços e dos pés, nozinhos feitos em tiras de tecido preto. Sobre o corpo o vestido estava moldado por outra tira amarrada na cintura. O turbante quase só de fiapos que envolvia a cabeça com as pontas laterais soltas, davam-lhe um ar de nobreza. Era a raiz de minha vida. O que me ligava à Africa ainda existia, mas era intocável. Ao menor gesto de pegá-la, ameaçava se desfazer.
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Da fazenda à Padaria Angela Vasconcelos Em 1894 as notícias chegavam atrasadas em Quixeramobim. E tudo mais era um atraso, pelo menos na perspectiva de Otávio, desde que ele chegou de uma viagem ao Rio de Janeiro. Naquele ano, ao voltar de viagem, se deu conta de que Quixeramobim era o lugar mais longe do mundo. Na temporada que passou na então capital do país, Otávio quis ver in loco os cenários que já visitava em sonhos na leitura de Machado de Assis. Passou pela rua do Ouvidor, foi ao Largo da Ajuda, à rua dos Ciganos e à Livraria Garnier. Foi na livraria que viveu seu delírio maior: tornar-se um escritor. Ao voltar para a fazenda, seu hábito de leitura se intensificou, bem como aumentaram as tentativas de rabiscar em cadernos roteiros confusos para histórias que nunca desenvolveu. A referência machadiana era alta demais para suas habilidades e o lugar já cativo de José de Alencar na literatura cearense o inibia. Confuso entre o desejo e a interdição, caiu no caminho do adiamento. E como não suportou sua própria escolha, apontar a culpa para os atrasos de sua cidade se tornou o seu álibi. Otávio passava os dias a ler, escrever e esperar. Esperava os jornais que lhe chegavam atrasados, a visita dos amigos letrados de seu pai e a inauguração da estação do trem que diminuiria a distância entre a fazenda da família e a capital do estado. Naquele ano, ao menos uma notícia chegou em boa hora na vida de Otávio. Numa conversa de seu pai com o doutor Horácio, médico em Fortaleza e próximo dos políticos da capital, soube que em breve seria a inauguração do Liceu. Fazia pouco tempo que o pai tinha se conformado com a pouca aptidão do único filho homem para os negócios com agropecuária e resolveu seguir os conselhos de um tio padre que o fizesse estudar. Por aquela época, a expectativa de uma faculdade em Fortaleza se fortalecia cada vez mais e a ideia de ter filho doutor já agradava o fazendeiro Adolpho. Mas não era doutor que Otávio queria ser. Queria escrever romances, criar mundos improváveis, amores impossíveis. Queria sair da fazenda, ir embora de Quixeramobim. Frequentar cafés, livrarias, teatros. Viver de um jeito que naquela cidade não era possível. E foi justamente doutor Horácio que compreendeu a inadequação de Otávio naquela fazenda. Tendo a medicina como ofício e os livros como prazer, foi o médico que teve a ideia de apresentar o jovem ao poeta e romancista Antônio Sales, seu amigo de longa data. 11
Doutor Horácio falou para Otávio sobre a Padaria Espiritual e sobre os “padeiros” que havia conhecido por meio de Antônio Sales. O médico não economizou nos elogios àquele grupo de escritores que, acrescentando um pouco de humor à proposta de uma academia de escritores, deu à literatura o lugar que lhe faltava no Ceará. Um lugar de criação, de talento e de produção literária que dava destaque a romances e poesias de alto nível. O jovem se animou com a possibilidade de pertencer ao grupo de escritores, de aprender a escrever com eles e de se tornar um grande romancista. E passou a sonhar com isso e a adiar esse encontro, como costumava fazer com tudo que queria. Não ia porque a estrada estava ruim depois da chuva, porque estava indisposto depois de um alimento estragado, porque a mãe tinha adoecido. Era por isso que, da mesma forma que o filho se incomodava com os atrasos de sua cidade, o pai se aborrecia com a lentidão do filho. Fosse nos assuntos da fazenda, no interesse por política ou nos encaminhamentos das paixões, coronel Adolpho identificava em Otávio um fastio que lhe irritava. Até para um negócio de seu interesse, o jovem criava dificuldade. A novidade da estação Uruquê e os comentários sobre a viagem de trem de Quixeramobim a Fortaleza voltou a animar Otávio e ele voltou a sonhar com a viagem e com a visita ao Café Java, onde os “padeiros” se encontravam para os encontros da academia de leitura. Esperar e adiar eram o grande talento de Otávio. Doutor Horácio havia preparado o terreno para a chegada de Otávio. Antônio Sales, Lívio Barreto e Adolfo Caminha aceitaram receber o jovem no mesmo café onde faziam suas reuniões, queriam conhecer seus escritos, conversar com ele e orientá-lo sobre por onde começar a carreira de escritor. A Padaria Espiritual era uma academia fechada, por enquanto, mas quem sabe poderiam produzir naquele jovem o desejo por um novo clube literário, uma nova safra de escritores. Otávio não se apressou na saída da fazenda. Seguiu o passo de sempre, no ritmo de seu desejo hesitante. A caminho de Uruquê, construiu paisagens e histórias de amor, tragédias, dramas e finais felizes. Imaginou seus textos primeiro em jornais e revistas, pensou em livros volumosos. Tropeçou em sonhos, vacilou no querer. Olhando ao redor, pensou no atraso daquele lugar onde vivia, no atraso da vida que levava até ali. Otávio perdeu o trem, a reunião, a oportunidade.
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A flor da pele Marília Lovatel
A flor pontilha de branco a paisagem, a flor do café. As primeiras mudas foram plantadas em pleno sol. Até o dia em que o sol esquentou demais e as plantações subiram a serra. Na rota do café, seguiram um caminho de ferro — a travessia do Maciço de Baturité —, para a salvação das safras à sombra das ingazeiras em Guaramiranga. A vila fria deveria ser o meu destino, se a parada na estação de Antônio Diogo não tivesse mudado o meu destino. Cresci ouvindo as histórias dos barões do café paulista — deles eu descendia e fora preparado para sucedê-los — em outras terras, outra realidade, em que as sementes chegadas do Cariri e do Pará deram origem a uma sequência intercalada de sucessos e exaustão. Grandes colheitas, seguidas do esgotamento do solo, a terra fatigada incapaz de responder aos apelos das raízes, a fragilidade da vida sem conseguir se fixar. Assim, o plantio nas montanhas foi precedido da derrubada da mata nativa, da natureza alterada. O milagre se deu à sombra das ingazeiras, em 1904, e também dentro de casa: nasci no ano da ressureição do café na serra. E cresci com a vida traçada, feito a linha férrea. Antes de assumir o negócio da família, a educação na capital, as histórias de um império que eu herdaria, as fábulas sobre o ouro negro e todas as fantasias que desfiz ao receber a notícia de que meu pai, cansado de existir sem minha mãe, fora ao encontro dela. Aos 24 anos, eu me entendi herdeiro das dívidas resultantes das inúmeras tentativas de repetir o milagre do ano de meu nascimento. Após a primeira florada, também aquele chão se recusou. Dividi com os demais donos de cafezais falidos um outro prejuízo, a mudança no clima, que esquentou a serra. Décadas de dinheiro enterrado no adubo, no estrume comprado aos que desistiram do café na serra pelo gado no sertão. Quantias irrecuperáveis foram sorvidas pelo chão, como meu pai sorvia o café na caneca de ágata esmaltada, durante a torra dos grãos no quintal de tempos passados. Um cheiro morno e fresco, que dava vontade de morder. Pensamentos, à janela do trem, misturavam lembranças e planos. Guaramiranga deveria ter sido o meu destino, mas a parada na estação de Antônio Diogo mudou tudo. Uma parada para um café — ironia do destino? — foi a oportunidade para conhecer a estação que, desde a inauguração, oito anos antes da Abolição da Escravatura, não vivia tanta agitação. Havia um burburinho, uma expectativa, um temor nas falas sussurradas aos ouvidos, um medo nos olhos curiosos, voltados para um vagão, o último do trem quase vazio em que eu desavisadamente viajava. O vapor subia da minha xícara em um balé 13
ascendente, sinuoso e fantasmagórico, quando eles desceram, todos juntos, enrolados em seus panos dos pés às cabeças. Estrangeiros, minha hipótese desmanchada pelo idioma reconhecível nas vozes baixas. Ajudavam-se uns aos outros, diziam “por aqui, esperemos, logo virão nos buscar”. Uma religião talvez. Apontavam aos passageiros desembarcados — “são eles, vão para a Colônia Canafístula” —, veio-me a imagem de uma casta, uma tribo de beduínos vivendo entre árvores de Chuva-de-ouro, Cássias-imperiais, as Canafístulas incendiaram a minha imaginação. Quem seria aquela gente quieta, coberta, inacessível, indo a um lugar com nome de árvore? A colônia fora construída para eles – eu soube depois – os primeiros a chegar para povoá-la. E no meio dos panos vi os olhos dela. Nem precisei ver a sua boca para saber que ela sorria. Eu, perdido entre a cidade e a serra, me encontrei naqueles olhos, no sorriso oculto, neles eu estava em casa, não em uma estação vazia. Todos sumiram tão logo a porta do último vagão foi aberta. Não apareceu uma viva alma para recebê-los. Então, foram a pé. Nem me dei conta de que, ao seguir com a procissão, perdia o trem, mas como viver sem saber a cor do seu cabelo, sem ouvir a sua voz, sem tocar a sua pele? A caminhada, longa e silenciosa, terminou no portão, acima do qual eu li Colônia Leprosária Canafístula — 1928. Busquei seus olhos entre os que entravam resignados e achei as lágrimas que desciam deles, molhando o pano que lhe escondia a face. A decisão de me hospedar em Antônio Diogo foi necessária, eu precisava de um tempo para me recompor e conseguir partir. Quando me refiz, veio a ideia de me despedir, antes de embarcar, tinha que vê-la uma última vez. “O senhor quer que eu guarde a mala?”, a pergunta do enfermeiro na travessia do portal, o portal de acesso ao Malebolge, oitavo círculo infernal, das chagas e dos sofrimentos, reservado aos corruptos, aos sedutores, aos ladrões de toda a espécie, por cujos pecados padecem, tendo seus corpos roubados pelo resto da eternidade. Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança. Ele me conduziu ao andar superior onde um largo balcão se debruça sobre o pátio interno. Visitas, amigos, parentes — eu não sei o que sou — todos aguardamos que viessem. A distância era uma exigência, norma de segurança. Apresentaram-se no centro daquele Coliseu, os cristãos expostos ao público presente para assistir aos leões invisíveis a devorá-los, arrancando-lhe, aos poucos, os pedaços de carne. Ao meu lado, uma senhora subiu nas pontas dos pés e agitou as mãos para ser vista. Uns mandavam beijos pelo ar, comunicavam-se por olhares, na impossibilidade de chegar perto. Não havia intimidade ali, embora o sofrimento fosse coletivo. Ao me perceber, ela sorriu, sei que sorriu, e levantou o braço no aceno que retribuí. Vi as manchas claras, que se espalhavam dos dedos ao pulso na pele até o limite da manga. Foi muito rápido. Precisava ser. “O senhor não esqueça a mala”, o 14
lembrete do enfermeiro interrompeu a minha solidão diante do pátio vazio. À janela do trem, resolvi continuar o sonho de meu pai, o legado de minha família, reencontrar a minha história de lida com a natureza alterada. Era época da floração nos cafezais. A flor espalhou o branco, reticulando a paisagem. Em minha mão, a flor, a mancha clara, o meu destino, minha natureza alterada.
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Açude de saudades Nazaré Fraga Meu pai falava de secas medonhas, pessoas morrendo de fome e de doenças que dizimavam famílias inteiras. Milhares tentavam fugir do infortúnio e familiares se viam separados involuntariamente por aquele destino de penúria e de muitas mortes. Eu sabia de cor aquela história, embora inicialmente não localizasse os fatos no tempo. Contava que antes de chegar àquele canteiro de obras e de miséria, junto com meu avô, teve de andar muitos quilômetros a pé, com fome e sede. Tinham subido no trem há algumas horas. Na maior parte da viagem estiveram como clandestinos no banheiro do vagão de segunda classe. Ali se escondiam várias pessoas toda vez que o fiscal passava verificando e perfurando os bilhetes de papelão. Antes de chegar ao destino não houve como fugir. O fiscal retornou para dar uma incerta, depois de ter passado umas tantas vezes fazendo o mesmo trabalho de inspeção. Pediu os bilhetes que meu avô não tinha. — Para onde vão? — Pro Quixadá. Vou me alistar no serviço de construção daquele açudão que vão fazer lá. — Venham comigo. Vão ter que descer na Estação do Junco. — Não me faça uma desgraça dessa! É muito longe! De que jeito vou chegar no Quixadá, a pé, junto com esse menino? Desceram do trem quase empurrados, ele e meu pai ainda com doze anos, que mais pareciam oito. Sem um vintém no bolso, só com a roupa puída e suja que traziam no corpo. Tiveram que vencer as mais de três léguas que faltavam para o destino, dependendo da caridade de algum cristão para pedir um copo d’água ou alguma esmola. Ao meu avô tinha restado meu pai, porque se viu obrigado a seguir em busca de serviço, deixando para trás minha avó e suas duas primeiras filhas. Era o ano de 1900, o sertão nordestino ainda sob o pleno efeito de mais uma grande seca que durou dois anos. O abarracamento aonde os dois chegaram para se alistar era um formigueiro de tanta gente maltrapilha e esquelética. Por ser menor, meu pai não conseguiu se alistar no serviço. Havias milhares de pais de família que também não conseguiam. O número de vagas estava sempre bem longe de atender a tantos necessitados.
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O que meu avô recebia como paga na obra do açude mal dava para ele. Depois de mais de um ano no abarracamento, meu pai se desgarrou. Em dois dias, acompanhado da fome e de outros meninos desvalidos, venceu a distância entre o canteiro de obras e chegou às ruas de Quixadá. Pedia esmolas de porta em porta e nos arremedos de feira. Havia famílias inteiras de pedintes que cumpriam o único percurso que lhes restava. Meu pai costumava se acercar de um cego que cantava na feira, achava bonito o improviso de seus versos e o toque de sua rabeca. Um dia o cego pediu que ele o levasse até onde morava. Depois de certo tempo, meu pai já era o guia do cego cantador. Era um sustento magro. Quando o cego se viu tocando e cantando melhor, arribava para tudo que era lugar. Pisaram em poeira de muitas veredas, vararam caatingas, atravessaram brejos, subiram chapadões e serras. Pelos olhos e mãos do meu pai o cego viajou até para fora do Ceará. Na seca de 1915 eles pegaram um navio e foram aportar em Belém. Por vários anos o cego cantou e enfrentou pelejas com outros cantadores em muitas cidades. Ficou até famoso. Meu pai já tinha virado homem e se engraçado de uma índia, minha mãe Iriri, com quem passou a viver. Mesmo quando nasci, continuamos na companhia do cego, que se ressentia da morte precoce dos de sua própria família. Como ele tinha o hábito de criar meninos desamparados, já viviam conosco outros três. Meu pai não era mais seu guia em Belém. Eu era ainda bem pequeno e não acompanhava as andanças e cantorias daquele avô cego que o acaso me deu. Mas o ouvia desde pouca idade tirando acordes de sua rabeca. Mesmo mergulhado na escuridão, ele pressentia minha presença e cantarolava coisas só para mim. Como era carinhoso aquele avô! Quando ele resolveu voltar para o Ceará, meu pai o levou até o navio e se despediram com o coração apertado. Choraram ambos, me contava. Os olhos do cego ficaram mais tristes naquele dia e deles rolaram pequenas cachoeiras. Meu pai continuou no Pará, mas depois de uns anos passamos a morar nas proximidades de Altamira, numa terra indígena onde ainda hoje vive o povo Xikrin, de minha mãe. Foi onde nasceram meus irmãos. Tivemos uma vida tipicamente indígena, integrados com a floresta e os rios imensos. Tal como recomendava meu avô cego, meu pai também achava importante termos instrução. Me formei professor de crianças e meu maior gosto era ensinar História. Sempre escutei os relatos de meu pai sobre sua vida antes de unir-se com minha mãe. Em seu jeito de sertanejo desenraizado, na velhice era um ser quase encantado, amante das florestas e das águas fartas do lugar onde passou a viver. Embrenhado na aldeia, jamais voltou a ter notícias de seus entes queridos, o pai e duas irmãs. Mas sempre se manteve saudoso. 17
Fugi com medo da seca, Do pesadelo voraz Que alarmou todo o sertão Da cidade aos arraiais. Inúmeras vezes eu o surpreendi de olhos marejados, mergulhado em saudades, à beira dos igarapés, essas e outras rimas de uma cantoria ancestral. Ao vê-lo naqueles transes nostálgicos eu também ficava dominado pela emoção e me transportava para outros anos, entregue à maviosa voz do nosso herói cantador. Muitas vezes ele tinha me embalado em seu colo, cantarolando versos. Em seus últimos momentos de vida meu pai renovou o pedido de tantas outras vezes. Aposentado, resolvi cumprir a promessa feita. Fiz uma longa jornada, depois de pegar barco, ônibus e avião até Fortaleza. Preferi seguir dali em diante de trem. Mas meu percurso foi nada comparado com o que tinham trilhado meus antepassados do Ceará. Era como se eu tivesse mergulhado em outro mundo, em outro tempo. Pela janela passavam árvores que pareciam esqueletos. Estariam mortas? No percurso do trem quase não vi água acumulada, nenhum rio corrente. Era chocante para mim. O balanço do trem era um misto de desconforto e de aconchego. Eu me sentia atordoado por pensar no sofrimento de meu avô e de meu pai ainda menino, percorrendo aquele mesmo trecho, num tempo de penúria. Ao mesmo tempo sentia o alento por estar realizando um sonho que não era só meu. Era dezembro de 1988. Nas conversas que escutei no vagão identifiquei perplexidade e revolta entre os passageiros. Dali a uma semana os trens deixariam definitivamente de transportar pessoas entre os municípios do interior do Ceará. Circulariam apenas para o transporte de cargas. Quando desembarquei do trem em Quixadá fui para uma pequena pensão bem perto da rodoviária, a meio caminho para o açude onde meu avô tinha trabalhado, um dos meus focos de interesse. Após acomodar minha pequena valise na pensão, dirigi-me à rodoviária com pressa de fazer minhas primeiras indagações, na tentativa de localizar meus parentes cearenses. Me apontaram para o vão livre da praça. De repente, me vi em choro convulsivo, ajoelhado no meio do tempo, naquele cimento grosseiro e quente. Várias pessoas se aproximaram de mim, com pena, sem entender as razões de tamanha emoção. Lá estava ele. Em concreto, medindo mais de dois metros, de óculos, imponente em seu paletó e segurando uma viola. Na placa, seu nome e uma frase elogiosa. Era o meu avô 18
Cego Aderaldo. A estátua tinha sido inaugurada há sete anos. Um filme de variadas cores e cantorias passou em minha cabeça. Me vi de novo criança. Uma homenagem da cidade a um ídolo que antes de tudo era um herói só meu e do meu pai. Ainda na tarde daquele dia fui até o Açude do Cedro. Uma magnífica obra de engenharia. Localização paradisíaca, com pedras monumentais em seu redor, uma delas chamada Galinha Choca pelos moradores de Quixadá. O reservatório não tinha tanta água, e isso me chocou, acostumado que estava aos caudalosos rios da Amazônia. Pensei em meu pai, que dali se desgarrou. E chorei naquele pôr do sol indescritivelmente belo ao imaginar o meu avô trabalhando ali, quebrando pedras, empurrando-as em carros de mão, socando-as, abrindo clarões e picadas. Não soube qualquer notícia do paradeiro dele. Restou-me afogar ali minha imensidão de saudades.
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Restos de nada Barbie Furtado O mugido da vaca mais parecia um grito de agonia. O bicho estava tão desnutrido, só “pele e osso”, como diziam naquelas bandas, que Emanuel olhou para a escopeta e, por um momento, considerou acabar com o sofrimento do pobre coitado. Debaixo do sol, empurrava o gado magrelo quase nas mãos, juntando os que ainda não haviam morrido mais perto da casa que, em outros tempos, havia tido uma bela grama verde, mais do que suficiente para que todos pudessem se alimentar. Bateu de leve com a ponta da arma num bezerro, que tremeu e esvaiu-se sobre as pernas magras. Agora mais essa. Outro bezerro caído. Olhou bem para o animal e chutou sua barriga sem força. Ainda havia alguma carne ali, apesar de pouca. — Serafim! — o homem gritou e o menino magrelo apareceu do meio do gado. — Ajuda aqui a levantar esse bicho. Ainda tem comida dentro dele. Serafim obedeceu ao pai, usando toda a força de seus dez anos, um metro e quarenta centímetros e trinta e dois quilos, para ajudar a levantar o animal. Com muito esforço, botaram o bezerro de pé, e Serafim foi andando a seu lado, empurrando com as mãos sujas e ralas. Ao chegarem à porta do curral, Emanuel contou as cabeças. Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis com o bezerro. Havia perdido duas. Nenhuma delas estava para dar leite. Duas no máximo serviriam de refeição. E depois disso, o que seria deles? Emanuel não sabia. Mas não tinham mais opções. Para onde olhava, via os raios de sol refletindo no chão, quase como uma miragem, e com eles, a dor e o sofrimento da realidade em que vivia. O cheiro de morte estava por toda parte. Era gente, bicho, uma mistura dos dois. Nada era capaz de sobreviver por muito tempo naquele ambiente completamente inóspito. E ele sabia muito bem que isso incluía ele e sua família. — O menino dormiu? — perguntou a Leonor, sentados na mesa, em frente aos pratos vazios. O sorriso que uma vez fora a marca registrada de Leonor, quando se conheceram anos antes, havia desaparecido por completo, assim como suas bochechas cheias e sua pele cor-derosa. Rugas de preocupação tomavam de conta de seu rosto, marcado pelos ossos de sua face. 20
Quando se conheceram, há quase 15 anos, fora amor à primeira vista. Leonor, filha de um dos grandes fazendeiros da região. E Emanuel, trabalhador da fazenda vizinha, pegado para criar e ajudar nos trabalhos depois que seu pai morrera em um acidente de trabalho. Encontravam-se escondidos, à noite, nos currais, para que ninguém pudesse vê-los. A sorte de Leonor foi que seu pai morrera antes de descobrir que estava carregando criança. Ficaram na fazenda de seu pai, e enquanto Emanuel trabalhava todos os dias, Leonor ficava em casa com as crianças. E tudo estava indo muito bem, até a maldita seca atingir o sertão e os bichos começarem a morrer. E as terras. E as pessoas. — Ele está muito fraco para ficar acordado — Leonor respondeu. Bentinho estava deitado no canto da sala, em cima de almofadas velhas. A seu lado, Serafim deitava-se também, com a mão no peito do irmão, sentindo o bater de seu coração. — O seu Dorival veio aqui de novo — Leonor respirou fundo. — Talvez nós devêssemos... — O quê? — a voz de Emanuel foi tão alta que Serafim olhou para os pais, só com o canto do olho. — Calma — ela segurou sua mão. Mesmo no desespero, o toque de Leonor sempre o fazia se acalmar. — Talvez seja melhor a gente ir embora daqui. — E deixar nossa casa? Nossos bichos? — Emanuel jogou as mãos para cima. — A casa era do seu pai, Leonor! — Que bichos, Manel? Já tão tudo morto, só falta enterrar. E se a gente não for embora daqui, a gente vai morrer também. Olha pros teus filhos. O Bento nem se levanta mais. Serafim faz dois dias que não come. Não tem comida aqui. Não tem água. Não tem mais vida nesse sertão não, Manel. Só morte. Papai amava a fazenda, mas acredito que me amava mais. — Vou falar com Dorival — Emanuel balançou a cabeça. Quando Dorival chegou à casa, Leonor o esperava na porta. Emanuel o convidou para entrar. Homem da cidade, vinha com uma proposta: levaria toda a família para um acampamento ali perto, onde poderiam começar a vida novamente, assim como várias outras famílias que já havia levado. Em troca, ficaria com a fazenda e tudo que estivesse nela. Olhando para Bento, Leonor respirou fundo. Não. Eram dos últimos a resistirem naquelas bandas do sertão seco, a lutarem contra a falta d´água e de vida. Sabia que sua casa, que sua fazenda, valia mais que um acampamento. Além disso, nunca tinha visto ninguém 21
voltar de lá para contar como era. Não. Se Dorival quisesse sua casa, sua vida, teria que pagar bem por elas. — Não — Leonor falou, decidida. Até Emanuel ficou sem entender. Na noite anterior, haviam conversado sobre os planos de mudança, e decidido que qualquer lugar seria melhor que ali. — Como assim, ‘não’? — o tom de Dorival era quase desafiador. — Nós queremos ir para a capital. Nós e os meninos. Emanuel olhou para a esposa com espanto e orgulho. — Mas Leonor, os trens estão lotados, eu não tenho como... Leonor o interrompeu. — Nada de “Mas Leonor”! Nosso lar por quatro lugares no trem para a capital. — Verei o que posso fazer. E foi no dia vinte e quatro de outubro de 1915 que Leonor embarcou com a família rumo à Estação do Mondubim, perto da capital. Bento estava tão fraco que teve de ser carregado pelo pai. Serafim também não andava muito bem, havia notado, mas tentava se manter forte pelos pais. Ela percebeu que tentava segurar a tosse que não passava há umas semanas. Não reclamava de nada. Ficava o tempo todo ao lado do irmão, mesmo quando o trem estava tão lotado de pessoas fugindo da seca, que se deitou no chão, aos pés dos pais, ao lado do irmão, segurando sua mão. Olhando pela janela, corpos. Animais. Humanos, jogados no meio do caminho como restos. O cheiro nem a incomodava mais. Os olhos não ardiam tanto do cansaço. Olhou para os filhos. Serafim havia dormido também. Na cidade, haveria médicos para cuidar de seus meninos. Haveria escolas. Leonor suspirou fundo. Estavam cada vez mais perto. Sabia que não seria fácil. Levavam apenas algumas roupas e poucos pertences. A cidade deveria estar lotada por aqueles que fugiam da seca. Mas ela e Emanuel sempre davam seu jeito. Ela poderia trabalhar, sabia mexer com roupas, tecidos, trabalhar na cozinha. Emanuel era muito bom com trabalhos braçais. Haveria de ter algo que pudessem fazer, para que arranjassem uma casa. Talvez até voltasse a ter um jardim. Quando finalmente chegaram à Estação do Mondubim, vida. Empurra, empurra. Puxa, sai. Esperou que a maioria das pessoas desocupassem o vagão para saírem. Cutucou Bento e Serafim, para que se levantassem e vissem a esperança, mas os meninos apenas gemeram. 22
Coitados. Estavam há dias sem comer ou beber água. Leonor deu um beijo na cabeça de cada um, e pegou Bento nos braços, enquanto Emanuel levava Serafim, que suspirou fundo. Sorriu. A morte havia ficado para trás, na beira da estrada, no caminho dos trilhos, juntos com os corpos, restos de nada.
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Os dois lados da glória Adriano Espíndola Santos A história de que Lampião irromperia a cidade, com seu bando, era notícia antiga. Já no ano do falecimento de meu pai se falava nisso, com bastante convicção. Todo mundo parece que se entendia no olhar, e boa parte se entocava em suas casinhas humildes, sob a suspeita de alguma ameaça velada. Uns por medo, outros por covardia. O povo mais para o centro e perto da matriz se escondia por pura covardia. Ouviam-se conversas de que Lampião queria comer vivo uns dois ou três, inclusive o padrinho. Será? Eu nunca acreditei naquilo. Padrinho — que de fato foi meu padrinho de batismo — era uma espécie de santo venerável na terra. Mexer com gente de Deus era um pecado mortal, irrecuperável — e, por acaso, Lampião se preocupava com isso? Não sei. Mas beatas rezavam de um lado e de outro; casas em completo luto e desolação. Via-se até pedaços de pano preto pendurados nas janelas de vários casebres. O prenúncio da destruição? A morte havia calhado antecipadamente e de supetão nas nossas fuças. Mãe, que era uma mulher cismada, dizia que o cheiro de rosas que impregnava o lugar era indício certo de que um desastre sem precedentes estava a ponto de acontecer. Na época, veja bem, eu tinha quatorze anos e o temor de mãe era de que eu entrasse para o bando para vingar a morte de pai. A regra era assim. Havia algum fundamento nisso, pois meu amado pai teria sido morto por macacos, pela suspeita de que seria um coiteiro de Corisco. Tínhamos uma vida boa, tranquila, com o comércio de variedades de pai, que nos abastecia de tudo. A desgraça veio com o fuxico de um vizinho, o Alaor, um militar qualquer, de patente baixa, que não tinha se projetado na vida e, por isso, amargava um despeito medonho por meu pai. Mãe disse que não se pode levantar falso testemunho abaixo de Deus, Nosso Senhor. Pois eu respondia, ainda que acanhado e respeitoso, que várias línguas falaram e confirmaram que a culpa era de Alaor, que encomendou a emboscada. Resultado: meu pai, um homem digno e trabalhador, que não foi coiteiro coisa nenhuma, pois sei do que falo, foi pego numa tocaia lá para as bandas de Missão Velha, antes de fechar uma grande transação. Na polícia, estava assentado nos papéis que a morte se deu por latrocínio, roubo seguido de morte. Meu pai não andava com muito dinheiro nem mercadoria. O relato era falso, montado para livrar os usurpadores do sertão. Inveja e calúnia, essa é a minha conclusão. Não adiantava entrar na peleja contra a polícia; todos sabiam que era causa perdida. Então, o que restava era estar na cola do mestre do caos, Lampião, que para mim se tornara um ser de adoração. Passei noites em claro. Rondava as ruas desertas, na madrugada, para adquirir coragem, porque, no 24
primeiro aviso de sua chegada, eu me apresentaria para ser mais um membro disposto do bando. O ano era 1926. Havia uma nuvem que adensava o ar; pairava sobre nós, inclemente. Falavam que havia uma negociação entre doutor Floro Bartolomeu, por intermédio de Padre Cícero, para que o bando de Lampião depusesse as armas e se engajassem ao que se intitulava “Batalhão Patriótico”, para combater um mal maior: o comunismo, a Coluna Prestes. E a promessa era que, numa cidade próspera, Juazeiro, com uma ferrovia novinha, podiam dar guarida ao bando, sendo, portanto, membros acolhidos pelo Estado Maior; e Lampião, com a mercê de capitão. Escutava-se o burburinho de que Lampião havia aportado, numa dessas madrugadas. Na cidade, uma palha não se moveu, seja para o bem, seja para o mal, ainda que houvesse o dito cheiro de rosas conclamando a premente depuração dos corpos corrompidos. Floro Bartolomeu, o mediador, foi levado às pressas para o Rio de Janeiro, para um tratamento de saúde. Ficou Padre Cícero para resolver a encrenca. Uma ruma de gente estava alojada no sobrado do poeta João Mendes de Oliveira, inclusive Lampião. Por sorte — pura sorte mesmo —, eu estava substituindo o meu tio no comércio que era de meu pai. A minha função, naquele bendito dia, era fazer entregas. Corri para levar as encomendas o mais rápido possível, de um ponto a outro da cidade, e me ver livre da obrigação, para tentar uma prosinha com Lampião. As pessoas atravessavam o caminho, ou viravam o quarteirão, só para não passarem pelo sobrado. Eu, pelo contrário, me pus escondidinho numa coluna do lado direito, do qual supunha que ouviria a conversa do Padre Cícero com o meu futuro líder. O milagre: as vozes, ainda que entrecortadas por risadas e conversas à toa, eram nitidamente do padrinho e de Lampião. Padre Cícero se dobrava em muitos caprichos para enaltecer Juazeiro, cidade do novo tempo — quiçá, a maior da região, do estado e do Brasil, em termos de crescimento econômico e visível fortuna. Para o meu espanto, o padrinho dissimulava uma voz suave e muitas palavras difíceis, para, decerto, impressionar o recém-ingresso e distinto membro da cidade. Disse a Lampião que ele teria as portas abertas; que aí podia viver em paz com os seus, recebendo, por oportuno, as bênçãos e a absolvição da igreja. Nessa hora, ouviu-se um riso assustador de Lampião, que não era besta nem nada. Entendi algo como: — Quero saber, padrinho, do que vamos viver aqui. De vento? — Ah não, meu caro capitão, esteja certo de que nessa nova via férrea que chega em Juazeiro, Vossa Senhoria terá meios para escoar os seus produtos e para trazê-los, sob a minha escolta e dos poderes constituídos dessa nação. E bem aproveitando o ensejo, essa obra faraônica foi elaborada e terminada a tempo para que Vossa Senhoria pudesse desfrutar de suas benesses, que serão muitas. A prosa mudou de rumo. Ouviu-se um uníssono: — Ohhhh! — Houve, por um tempo, um silêncio sepulcral. 25
Intuo que o regente do caos estava pensando; deveria apurar o raciocínio ante tantas ofertas. Titubeou e perguntou mais um bocado de coisas ao padrinho, do qual não se podia mais discernir — estavam falando em códigos ou em tom propriamente baixo, para disfarçar. — Lógico, o título é seu, capitão! Quando assinar esse papelzinho, será automaticamente Capitão Virgulino Ferreira da Silva, ou melhor dizendo, Capitão Lampião. É assim que será, como Vossa Senhoria gosta de ser chamado e é por todos conhecido. Era a deixa para amansar o couro do homem bruto. Não foi. Lampião se alvoroçou. — Padrinho quer me fazer de besta? Olhe lá com quem o senhor está falando… Sei que é autoridade no céu, mas quem manda aqui sou eu… Troço sem pé nem cabeça, né não, Jararaca?! — dirigiu-se a um comparsa sabidão. Os esforços do padrinho não o convenciam. O falatório era geral. Uma algazarra se fez e padrinho despachou-se colado a um homem muito pronto, que depois vim a saber ser o tal do agrônomo, funcionário público, doutor Pedro Uchoa. De tal modo cogitei que o negócio estava desfeito. Padre Cícero saiu de cabeça baixa, sem atender aos fiéis. Nem me reconheceu, quando gritei o seu nome — todas as vezes que o encontrava, ele liberava um sorriso e uma bênção, ainda que de longe. Certos cidadãos que aguardavam alguma novidade, evacuaram-se do local — claro, por medo da reação intempestiva de Lampião. Eu sabia que essa era a minha derradeira oportunidade. Sofri ainda três quartos de hora esperando para ver o grande homem. Lampião deu o ar da graça, acompanhado por um séquito sequioso de guardas, com olhos de rapina, para eliminar qualquer infortúnio. Naquela hora, mantive-me quietinho no meu lugar, como se catasse coquinho ou enfiasse prego em sabão, muito concentrado. — Menino, você! — apontou Lampião para mim. —Vá na estação férrea e veja a movimentação… Vá e volte ligeiro, que nem bala! Oxe, saí correndo atropelando uma meia dúzia de gente no caminho. Eu não sabia, mas seria o bode expiatório, a cobaia, porque Lampião queria conferir a situação antes de se aventurar pelo lugar. Fotografei na mente de cabo a rabo a situação. Pelo meu conhecimento, havia operadores, e nada de transeuntes e macacos. O que era para ser feito em trinta minutos, fiz, entre chegada, olhada e partida, em quinze minutos. Relatei o acontecimento a Lampião, que me olhou torto, reflexivo, balançou a cabeça em sinal negativo, mas seguiu em frente — quando eu pensava que ele iria me matar. Daí em diante me tornei um frouxo, como os que relatei acima, e me contive com a vidinha de comerciante. Meu tio me fez promessa de me meter uma coça se eu inventasse de me aliar a Lampião. As coisas progrediram, depois da partida de Lampião, e me formei como gente a partir da vivência no comércio que era de meu pai. Lampião não sabe o que perdeu com a
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falta de confiança nas palavras de padrinho. Ele tinha razão. Foi uma época de prosperidade sem fim.
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Um destino melhor Ana May Brasil Finalmente entrou no trem para Aracoiaba depois de quase dois meses viajando num pequeno navio, vindo de Manaus pra Fortaleza. No andar do trem, afastando-se do litoral, foi sentindo a diferença do clima tropical úmido para o semiárido, da exuberância amazônica para a carência nordestina, o que não abateu a ansiedade que lhe dominava. Estava chegando na sua terra, encontrando sua gente. Admirou-se do mau estado da composição. Achava-se por demais desgastada comparado com o que observara quando fez a viagem de ida. Lembrou das condições especiais que desfrutou naquela ocasião, pois graças ao interesse dos Estados Unidos pela borracha brasileira, o governo de Getúlio Vargas criou um serviço de apoio à migração de trabalhadores para a Amazônia. Começou a rememorar seu estado de espírito naquela ocasião, quando teve que se afastar de sua terra buscando um destino melhor. Não foi fácil abandonar a noiva Neném, a mãe, suas irmãs menores, a terra em que nasceu. Mas era o jeito, pois não aguentava mais prolongar seu noivado. Necessitava de dinheiro para mudar seu destino. Aproveitou o convite de dois de seus irmãos, que moravam há anos na capital amazonense e lhe garantiram que lá encontraria emprego. Partiu esperançoso. Planejou passar dois anos e voltar com economias para poder se casar. Depois resolveria se levava Neném pra Manaus ou se ficariam em Aracoiaba. Estava voltando como jamais imaginara, sem futuro nenhum e com uma condição humilhante. Será que ela ainda desejaria casar-se com ele? Estava resolvido a dispensá-la de qualquer compromisso, contudo, dentro de seu coração, ansiava que ela o quisesse de qualquer jeito. Pronto. Acabava de ver o serrote de Pedra Aguda. Agora bastava o trem parar. Estava na sua terra e com pressa de encontrar todo mundo. Dirigiu-se à casa da mãe e das irmãs, embora seu coração pedisse para ir primeiro ao encontro da mulher amada. Na verdade, se encontrava dividido, entre a urgência de ver, falar, tocar em Neném e o receio de enfrentá-la. Pretendia lhe contar tudo. Começaria pela sua decepção com o primeiro trabalho, a aventura com a extração da borracha, o sequestro pelos selvícolas. *** 28
No segundo semestre do ano de 1942 ele chegou à capital do Amazonas. Os irmãos o receberam lhe indicando um emprego de vigia numa marcenaria. Ele trabalhou um tempo, mas ouviu falar que se ganhava dinheiro era extraindo borracha nos seringais E assim contrariou os manos partindo, com uma turma de conterrâneos, para um lugarejo no interior da selva, muito mais longe do que afirmara o agenciador. O trabalho no seringal, apesar de muito estafante, estava lhe proporcionando juntar dinheiro e, após três meses de trabalho, foi convidado a mudar de cargo passando a ganhar mais. Entrou para a turma do desbravamento, trabalhadores cuja função era descobrir novas áreas apropriadas à extração do látex das seringueiras. Entusiasmado e incentivado pelos empreiteiros, cada vez mais adentrava na floresta. Uma tarde distanciou-se em demasia de dois companheiros e, de repente, viu-se cercado de indígenas, que logo o dominaram. Chegou a gritar pelos colegas, não obtendo resposta. Foi arrastado por algum tempo, depois o deixaram caminhar livremente na direção que indicavam. A noite se assentara quando chegaram no que ele considerou um povoado. Já havia sido examinado detidamente pelos que o trouxeram, agora foi colocado no meio do que seria uma praça e todos vinham admirá-lo. Entre os espectadores alguns demonstravam atrevimento chegando a tocar em sua face mal barbeada, nos cabelos curtos da cabeça, nos olhos de cor azul. Nunca se sentira tão alto, e o era na realidade, pois seus examinadores tinham baixa estatura e isso, por si só, chamava a atenção geral. Por último quiseram vê-lo despido, porém um indígena, que parecia ter ascendência sobre os demais, ordenou que lhe tirassem apenas a camisa e as botas. Perdera a noção de tempo, contudo, pelo número de vezes em que aparara sua barba, alcançando o peito, sabia que estava vivendo como prisioneiro por muito tempo. Foi se acostumando com o jeito de viver daquele povo que já não o consideravam um inimigo. Começou a se comunicar com a linguagem deles, aprendeu a pescar e caçar, procurando sempre cumprir as obrigações impostas pelo cacique. Sua existência na aldeia era muito diferente de tudo a que se habituara até então. Levavam uma vida tranquila, cada um desempenhando determinadas tarefas, sempre no interesse da comunidade. Ninguém trabalhava pra si mesmo e o que cada um pescava, plantava ou caçava pertencia a todos. A inexistência do espírito de competição cativou o coração do novo morador, embora fosse de encontro à sua educação e, especialmente, ao seu
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modo de viver desde que chegara à região amazônica. Afinal, viera com o intuito de juntar dinheiro. Seria fácil contar essa parte à noiva, duro seria o restante da história. Evitava relembrar o que lhe aconteceu quando o filho do cacique, chamado Arirana, cismou que ele andava interessado em sua mulher. E ela não perdia chance de se aproximar dele. Um dia simulou um quase afogamento, ao seu lado, durante uma pescaria. Na ânsia de salvá-la, acabou carregando-a nos braços da margem do rio ao centro da taba. Depois desse acontecimento, Arirana procurou, de todas as formas, arranjar confusão com o imaginado rival. Os dois acabaram se enfrentando violentamente e, então, Silvério teve o pênis parcialmente amputado. Seu sofrimento foi terrível em todos os sentidos. Como sobreviveu a tudo aquilo não conseguia explicar. O fato é que estava vivo. E como a natureza se adapta a tudo, ele acabou superando as dificuldades decorrentes do terrível luta. Entretanto, dali em diante, começou a passar por sua cabeça desfazer o compromisso assumido com a noiva distante. Carecia voltar pra Aracoiaba, tinha que dizer tudo à Neném. Olhando nos seus olhos. A determinação de fugir de onde se encontrava foi facilitada pela chegada de uma missão religiosa na tribo. Soube exatamente sua localização e ainda contou com o auxílio de membros do grupo visitante. Os conhecimentos adquiridos na selva foram fundamentais e assim, menos de um ano após sua desafortunada briga, conseguiu chegar a Manaus. O encontro com os irmãos foi emocionante, principalmente porque ambos o consideravam morto. Sentiram-se um pouco culpados por não terem cuidado melhor do caçula e logo lhe arranjaram um trabalho de estoquista numa chapelaria conceituada da capital. Mas Silvério não era mais homem de viver confinado, precisava de espaço, de movimentos amplos, do contato com a natureza. E queria resolver seu futuro. Os irmãos ajudaram e tomou a decisão de voltar para o Ceará: com a cara e pouca coragem. *** As primeiras estrelas começavam a ser vistas, depois do desaparecer do sol, quando Silvério se encaminhou para o encontro adiado. Ia devagar e absorto em ponderações. Pelos anos que conhecia Neném, seu jeito de ser, sua lealdade, sua aceitação das pessoas como elas eram, achava que iria acolhê-lo e juntos enfrentariam tudo. Teria ele esse direito? Não seria
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arrastá-la para uma vida abaixo do que merecia? Tinha que admitir que poderia ter um destino mais completo sem ele. Agora, com seu olhar fugindo dos olhos dela, arranjava forças para lhe contar tudo. Depois abriria os braços para ela. — E então Silvério, você decidiu sobre o nosso futuro? — Ele não existe mais, meu sentimento por você acabou. Seja feliz com outro homem. Não abriu seus braços, e saiu da casa dela com passos sem caminhos.
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Estação do abandono Tânia Sales Quem a visse caminhando pesadamente, com olhar vago e expressão carregada, quase arrastando a sacola marrom, não adivinharia jamais que ela estava indo ao encontro do amor de sua vida. A cada passo em direção à estação, Rita reconstruía, angustiada, todos os fios daquela teia de fatos que a trouxeram até ali. — A culpa disso tudo é do Aldenor, ele que o trouxe para dentro de nossas vidas. Levavam uma vida sossegada, dentro dos limites da mediocridade e sem grandes emoções, é verdade. Também é verdade que ela vivia remoendo seus sonhos de se tornar uma chef de cuisine famosa, um dia, sem saber como tornar isso possível. Eles estavam casados há cinco anos e tinham um casal de filhos. O casamento tinha entrado naquela zona morta entre a rotina e a apatia, quando os defeitos do outro aparecem com toda a crueza do cotidiano, não deixando mais espaço para a fantasia. Estavam na farmácia do marido, conversando sobre a saúde das crianças quando ele apareceu. — Aldenor, meu amigo! Como vão as coisas com você? Há quanto tempo, hein?! Não nos vemos desde a época do colégio! Aldenor, meio surpreso, não o reconheceu a princípio. Depois, piscando os olhos, estendeu a mão para o amigo. — Walter, que prazer! Essa é minha mulher, Rita. — Parabéns, sempre teve um gosto apurado e agora se superou! Uma bela mulher, sem dúvida. Muito prazer em conhecer você, Rita. Ela era muito intuitiva e percebeu, num relance, a arrogância disfarçada sob o ar de autoconfiança e o ar libidinoso quando ele beijou sua mão. O marido como sempre, não percebeu nada. — Aldenor, preciso de um favor seu. Tenho sentido umas dores musculares ultimamente, o que você me aconselha? Enquanto fingia escutar as orientações do farmacêutico, ele não tirava os olhos de Rita, avaliando o corpo dela dos pés à cabeça, sem disfarçar o interesse. Sentindo-se
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incomodada, ela retirou-se para o interior da farmácia, esperando até que ele saísse. O marido, chateado, reclamou da indelicadeza dela. — Ele queria se despedir de você, e você sumiu. — Fui ao banheiro, só isso. — “Que idiota”, pensou, caminhando em direção da saída, sem se despedir do marido. — Estarei em casa na hora do almoço — ele grita, sem obter resposta. A partir daí, as visitas de Walter ao casal se tornaram frequentes. Assim como os convites para festas e jantares com seu grupo de casais amigos. Aldenor estava deslumbrado com as novas amizades. Walter era um empresário muito rico de família influente na pequena cidade de interior e o marido de Rita, apesar de bom caráter, era muito impressionado com a possibilidade de entrar para a dita alta sociedade. Ela, ao contrário, mostrou-se resistente desde o início, achava muito estranho aquele teatro de sedução que Walter montava ao seu redor. Não entendia como ninguém percebia. Aldenor, ela sabia que era meio desligado, vivia no mundo da lua. Mas a mulher de Walter ela não conseguia entender, parecia ter medo do marido, tamanha a submissão. Será que não percebe a solicitude exagerada com as outras, ela se perguntava. Com a esposa parecia muito frio. Aquilo destoava um pouco do cavalheirismo que o marido exibia diante das mulheres, mesmo ela estando presente. Como um homem tão gentil poderia intimidar assim a própria esposa, Rita não conseguia entender. Walter era insistente e não desistia facilmente. Acabou acertando em cheio quando descobriu o sonho de Rita de estudar na Cordon Bleu de Paris. Ela era muito talentosa na cozinha, desde menina adorava os temperos, aquele mundo mágico dos cheiros e sabores. As mulheres da família eram mestras na cozinha, as estrelas que faziam a festa dos maridos e dos filhos. Mas ela queria ir além, se profissionalizar, ganhar dinheiro, ficar famosa. Sabia que era boa naquilo que fazia, só precisava de uma oportunidade, que no momento parecia inalcançável, estando casada com Aldenor, vivendo uma vidinha miserável. Conhecera o marido quando ele fazia faculdade em Salvador, não conseguira aprovação em medicina e acabou cursando farmácia, para desgosto da família que sonhava em vê-lo médico. Na ocasião Rita mal havia saído da adolescência, e ele foi seu primeiro namorado. Apaixonou-se, e quando ele terminou a faculdade, casaram-se e vieram morar no Crato, a cidade natal do marido.
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Os filhos vieram logo, Rita não tinha tempo para sonhos. Fernando e Sandra eram crianças doentias, que demandavam muita atenção da mãe. Agora que estavam mais crescidos, ela sentia que poderia pensar um pouco na própria vida. Walter era um jogador habilidoso, não dava ponto sem nó. — Rita você é muito talentosa, só não vê quem não quer! Seus pratos são originais, diferentes. Você só precisa de uma chance. Ele falou-lhe de um evento grandioso que ele e um grupo de políticos e empresários estavam planejando para o final do ano de 1944, seria uma grande feira agropecuária que iria reunir a elite dos produtores locais. Seus olhos brilhavam de entusiasmo e Rita ficou encantada. Como era empreendedor aquele homem e que espírito de liderança, tão diferente do marido. — A festa de lançamento vai reunir a nata da sociedade do Cariri, precisamos de um chef que possa organizar um jantar digno de reis, você acha que seria capaz de liderar uma equipe para isso? Com certeza vai render um bom dinheiro, talvez o suficiente para pagar um curso na Cordon Bleu, o que lhe parece? O coração de Rita estava quase a sair pela boca, contou até dez intimamente, para esconder a emoção. — Sim, acho que sim. — Acha que sim? Não tem certeza, então? Puxa, pensei que ia ficar mais entusiasmada com a proposta. — Ele parecia decepcionado com o silencio dela, esperava que se atirasse aos seus braços, mas a mulher parecia paralisada. — Preciso falar com meu marido, tenho que ter o consentimento dele, não sei como vai reagir. — Espero que da forma mais racional possível, feliz com o sucesso da esposa, como qualquer marido bom faria — continuou Walter, já plantando a semente da discórdia. — Infelizmente não tenho tanta certeza assim, Aldenor é muito ciumento. — Uma pena, gostaria muito de ver você realizar seus sonhos, uma mulher tão linda, tão especial. Merece toda a felicidade do mundo. — Acariciou a mão de Rita de uma forma diferente, deslizando a ponta dos dedos, pressionando a palma. Ela sentiu as pernas dormentes, fechou os olhos e desejou beijá-lo muito. Saiu da sala sem olhar para trás, com a respiração ofegante, temendo que o homem percebesse o que estava acontecendo. Sentia-se levitar, oscilando entre a alegria e a culpa, aquilo parecia um sonho. 34
Ao chegar em casa, como temia, o marido foi contra sua participação no evento promovido por Walter. — Isso não é coisa para uma mulher casada decente, o que as pessoas vão pensar de você? Uma mulher trabalhando, chefiando uma equipe de homens, um absurdo. Não posso aceitar uma coisa dessas, não posso consentir. Ela não retrucou, sentindo ganas de matá-lo. “Como se eu precisasse da autorização desse idiota para viver minha própria vida”, pensou furiosa. Ao ouvir de Rita o que ocorrera na conversa com o marido, Walter mostrou-se indignado com o que chamou de “machismo exagerado” do amigo e garantiu que seria capaz e fazê-lo mudar de ideia. Ela duvidava. No dia seguinte, como prometera, ele procurou Aldenor para uma conversa prolongada, depois da qual conseguiu a aprovação do amigo para que a esposa trabalhasse como chef no jantar de inauguração da exposição agropecuária. — Isso vai ser um evento histórico, meu amigo. Toda a elite política e empresarial vai comparecer, todos têm que colaborar para o sucesso dessa feira, você vai ver as consequências positivas para a nossa região. — A mulher estava completamente encantada com a habilidade de Walter em conduzir a situação, com sua gentileza, um verdadeiro gentleman, pensava ela. Como Walter previa, a exposição foi um estrondoso sucesso. O evento contou com a presença do governador do estado dentre vários outros convidados ilustres. Aconteceu no período de 4 a 7 de dezembro e a partir de então passou a acontecer anualmente no mês de julho. Além de empresário, Walter era um importante criador de gado da região, como tal, era o líder da comissão organizadora da feira. A comissão comprou um vagão de animais de raça que saiu de trem de Minas para o Rio de Janeiro, de lá veio de navio até Fortaleza e chegou ao Crato de trem. A imprensa da capital deu grande destaque aos eventos gastronômicos organizados por Rita que, escolhida por Walter, também fez parte da comissão organizadora. Ela era realmente talentosa e suas habilidades culinárias deram um toque de requinte e sofisticação aos famosos pratos regionais que se sobressaíram nos banquetes, sua famosa galinha à cabidela com pequi virou um hit gourmet para os participantes da exposição. A partir daí o envolvimento entre os dois evoluiu rapidamente. A paixão crescia num vórtice desenfreado. Walter era um sedutor nato. Rita estava deslumbrada. Encontravam-se no escurinho do cinema, clandestinos. Entravam separados para não chamar a atenção, aquilo era
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muito arriscado, mas a paixão superava o bom senso. Na tela, Audrey Hepburn e Fred Astaire rodopiavam harmoniosamente às margens do Sena. — Poderia ser nós dois, ali abraçadinhos num jantar à luz de velas no bateau mouche. — Walter a puxou para si, beijando-a com paixão. — Vamos a Paris, meu amor. Vamos partir daqui, não suporto mais a vida sem você. — Rita escutava, embevecida, de olhos fechados. O homem a beijava com uma sofreguidão que a fazia sentir-se próxima da morte. — Rita, você não tem ideia de como a cidade é linda na primavera. April in Paris, conhece a música? Podemos ir no próximo mês, no início de abril. Passear de mãos dadas no Jardin de Louxembourg, tomar champagne sob as estrelas, só nós dois e mais ninguém — ele agora sussurrava, mordiscando a orelha dela. — Isso é impossível, meu amor, não posso abandonar minha família — ela retrucava fracamente, tentando resistir. — Se me amasse de verdade, deixaria tudo por mim, por nós. Pegamos o trem para Fortaleza e de lá um voo para São Paulo, em seguida Paris. Lá você faria seu tão sonhado curso de gastronomia. Quero realizar todos os seus sonhos, o mais importante pra mim é fazer você feliz. — E nossas famílias, como faremos em relação a eles? — Na volta pensaremos sobre isso, vamos viver nosso momento, nossa lua de mel, isso é o que importa agora. Passaram a planejar cuidadosamente todos os detalhes da viagem sonhada. Rita estava nas nuvens, não cabia em si. Ao contar os planos para a comadre e confidente, recebeu um banho de água fria: — Amiga, não destrua sua família por causa de um conquistador como o Walter. Aquilo é um sedutor incorrigível, você não é a primeira e não será a última, ele tem o costume de seduzir mulher casada, depois abandona quando enjoa delas. Acaba com a reputação delas e depois vira as costas como se nada tivesse acontecido. É um canalha e um péssimo marido. A pobre da esposa dele já se conformou com o sofrimento, você já notou que ela morre de medo dele? Parece um bichinho assustado. Dizem que a maltrata muito, é um cavalo batizado. Além de tudo, um tremendo raparigueiro, vive no cabaré da Glorinha. — Tenho certeza que comigo é diferente. — É a natureza dele, amiga. A família toda é assim, um bando de mulherengos, ele não pode ver rabo de saia. Jamais vai se separar da mulher pra não dividir a fortuna. Você vai deixar de ser uma mulher casada, respeitada, pra virar rapariga de homem rico?! 36
— Tenho certeza que ele me ama, não pode estar mentindo, não acredito que possa fingir assim. — Você se lembra da Amália, a mulher do tabelião de Juazeiro? — Acho que sim, aquela história do suicídio na estação do Crato, há alguns anos atrás? — Pouca gente sabe, o escândalo foi abafado, mas a culpa foi do Walter. — Como assim, do Walter? O que ele teve a ver com isso? — Ela engravidou dele, ele a iludiu, prometendo que iria fugir com ela e deixar a família, mas não cumpriu a promessa, nem apareceu na estação. A coitada, desesperada e morta de vergonha, acabou com a própria vida. Rita sentiu-se gelar por dentro. Lembrava bem daquela mulher jovem e linda que se jogara nos trilhos do trem, aquilo foi terrível, um choque para a cidade inteira. “Meu Deus”, respirou fundo indo em direção à saída. A amiga ainda insistiu, segurando-a pelo braço. — Por favor pense muito bem antes de tomar qualquer decisão, você tem um marido bom, dois filhos lindos. Não destrua sua vida, sua reputação, por uma ilusão. A conversa com a vizinha foi um duro golpe, sentia-se estraçalhada ao pensar nos filhos, no marido, no escândalo na cidade. Estava destruída, mas Rita era uma mulher de fé. “Meu Orixá fala comigo”, ela costumava dizer para as amigas. Embora tentando manter serenidade, naquela noite não conseguiu dormir, mal fechava os olhos e era uma sucessão de pesadelos horríveis, mulheres ensanguentadas sob os trilhos, crianças abandonadas na estação, homens furiosos se enfrentando em duelos mortais. Mas a decisão já estava tomada. Combinara tudo com o amante, na manhã seguinte iria encontrá-lo na estação, entrariam separados para não chamar atenção, levariam pouca bagagem. “Compraremos tudo novo em Paris, tem lojas espetaculares no Champs-Élisées”, ele dissera. Com o coração em frangalhos deixou os filhos na escola, apanhou a pequena sacola marrom e esquivou-se de falar com o marido. Caminhava como quem ia para a guilhotina. “Por que não consigo me sentir feliz?” À medida que se aproximava da estação, o peito ia ficando mais apertado. As imagens sombrias da noite anterior se alternavam com sentimentos de culpa e vergonha. “Meu Santo, por favor fale comigo, não me deixe só nesse desespero. Me dê um sinal.” Percebeu que na calçada oposta vinha uma mulher jovem, segurando, impaciente, uma
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criança pela mão. De repente a criança se solta da mãe e atravessa a rua correndo. A mulher corre atrás da pequena, gritando alto, irritada. — Pare, volte aqui! Já disse, volte! — Continuou correndo, aos berros, tentando pegar a filha. — Volte aqui, não vá! — Ao passar por Rita, continuou gritando, mas não olhava mais para a criança, embora chamasse por ela. Olhou fixamente para ela: — Não vá! Rita ficou paralisada. Girou nos calcanhares e como um autômato, morta por dentro, tomou o caminho de volta para casa.
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Vesperal Ana May Brasil — Mas, pai, temos que ir morar em Baturité? Todo mundo deixar Fortaleza? — Já expliquei que a companhia agora é subsidiária da Rede Ferroviária Federal e tudo mudou. Meu cargo é melhor, sou agente de estação, da primeira classe, e tenho que começar lá essa semana. — Isso pode até ser bom pro senhor, mas não pra mim. Sair da minha escola, me separar dos meus amigos e ainda morar numa cidadezinha de interior... — Não fale do que desconhece. Baturité é um importante produtor agrícola, o progresso está chegando por lá. — Chega de discurso, pai! Quero saber é se lá tem escola pra mim. — Claro que sim. Você vai estudar no Instituto Nossa Senhora Auxiliadora, o Colégio Salesiano de Baturité. Essa conversa entre pai e filha aconteceu nas férias de janeiro, pouco antes da renovação da matrícula da jovem no Liceu do Ceará, em Fortaleza. A adolescente ficou arrasada com a mudança da família para Baturité e não adiantou o pai discorrer sobre a excelência da futura escola. Quando ela contou a novidade para seus colegas-amigos Roberto, Lauro e Marília, a tristeza tomou conta de todos, pois perceberam que seus planos poderiam ir por água abaixo. A preocupação maior deles era o fato dela não estar mais morando em Fortaleza quando acontecesse a inauguração do cinema São Luís, marcada para o dia 26 de março daquele ano de 1958. Os quatro haviam concluído o segundo ano do curso científico juntos e um elo forte do relacionamento deles era a paixão que mantinham pela sétima arte. Desde que, em outubro do ano anterior, correra a notícia da inauguração do cinema, haviam planejado várias atividades conjuntamente, tudo se relacionando com o grande dia. Os colegas vinham sonhando com a oportunidade de verem seus ídolos cinematográficos em um local tecnicamente apropriado e elegante! Basta dizer que os rapazes só poderiam frequentá-lo se estivessem de paletó! As conversas no colégio não possuíam outro tema. Os professores mais didáticos aproveitaram o interesse geral para incrementar
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suas aulas com informações ligadas ao assunto, de forma que a estudantada tomou conhecimento de muitas particularidades. A construção do prédio, onde o cinema funcionaria no andar térreo, levou dezenove anos para ser concluída; no local, anteriormente, funcionava o Cine Polytheama, vizinho à antiga moradia da família Severiano Ribeiro, que foi parcialmente destruída para abrigar o novo prédio. Agora Gilda estaria morando em outra cidade por ocasião do acontecimento. Isso complicava tudo. Os quatro adolescentes tinham combinado de irem juntos à primeira vesperal do cinema que seria numa sexta-feira, em pleno período de aulas. A estudante teria que vir de Baturité para Fortaleza no trem da véspera, pois esse era o melhor meio de transporte disponível ligando as duas cidades. O percurso do trem começava no Crato, às quatro horas da matina, passando por Baturité, para chegar em Fortaleza às 20h. Os horários de passagem do trem pelas cidades eram obedecidos de forma tão rigorosa que serviam de relógio, marcando as atividades cotidianas das populações por onde trafegavam. *** Foi complicado a mocinha ter o consentimento familiar para perder dois dias de aula, fazer as viagens de ida e volta para Fortaleza no trem, e sozinha. Ainda bem que seus avós maternos puderam se responsabilizar por ela na capital, inclusive indo apanhá-la na estação. — Gildinha, não consigo entender você fazer essa viagem toda só para ir a um cinema... — Vovô, é uma inauguração espetacular! Estou doidinha pra conversar com meus colegas e combinar como iremos. No dia seguinte logo cedo foi ao Liceu para encontrar a turma. Tinham que acertar os detalhes para a grande vesperal. Os rapazes já eram habituados a saírem de casa sem a companhia de adultos. Para as moças, entretanto, a história mudava: nunca haviam feito um programa apenas com colegas e, ainda mais, só com rapazes, mesmo de famílias conhecidas. Foi difícil obterem a licença dos seus pais, mas conseguiram, uma vez que seriam conduzidas, na ida e vinda ao local, pela mãe de Marília. As meninas gastaram um tempão para combinar os trajes que usariam na grande ocasião, e, na última hora, tiveram de mudá-los, porque souberam que as mulheres estavam se 40
apresentando muito bem-vestidas no cinema, como se estivessem indo a algum acontecimento social chique. Por outro lado, os meninos só tiveram um problema: arranjar paletós que lhes servissem. Ambos tinham apenas dezesseis anos e ainda estavam naquela fase do estirão adolescente, portanto, os ternos dos adultos lhes sobravam e os que haviam usado na primeira comunhão ficavam pequenos. Mas tudo se acertou e os quatro marcaram o encontro na Pastelaria Leão do Sul, de onde sairiam para a bilheteria do cinema. O filme era “Anastácia, a princesa esquecida”, que tinha como protagonistas Ingrid Bergman e Yul Brynner. A solenidade de inauguração oficial havia sido há dois dias, com a presença de autoridades, personalidades da sociedade local e do Senhor Luiz Severiano Ribeiro, idealizador e proprietário do Cinema São Luiz. Quando os quatro estudantes adentraram ao saguão do cinema ficaram maravilhados com sua suntuosidade e beleza. Os lustres, de cristal, importados da Tchecoslováquia, enormes e reluzentes, e as escadarias em curva, com degraus bem largos, revestidos pelo famoso mármore de Carrara, formavam um conjunto de encher os olhos de qualquer pessoa. Os rapazes logo quiseram subir as escadas e as moças não contestaram. Novo deslumbramento quando chegaram ao andar superior do salão, de onde se via grande parte do piso inferior, com uma quantidade infindável de elegantes poltronas estofadas. Que espetáculo! De fato, existiam mil e quinhentos lugares e eles jamais haviam visto um espaço de cinema tão grande. E a parte de baixo estava lotada, pois muitos espectadores desconheciam a existência de um nível superior. Mal principiou a sessão, as garotas começaram a sentir frio, enquanto os rapazes eram protegidos por seus ternos. O ambiente possuía ar-condicionado, uma tela bem mais ampla do que a comum e o recurso do som estereofônico! Eram inovações sensacionais em termos de conforto e técnicas de projeção. No escurinho do cinema, os pares Lauro-Marília e Roberto-Gilda ficaram de mãos dadas pela primeira vez e isso tornou aquele dia mais especial ainda.
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As viagens de Biu Dauana Vale — Corre, Gaudêncio. Corre! Disparou o menino. Fazia poeira. Sem cela, nem nada. No couro e no osso. — Lá vem ele — disse e segurou firme para não despencar do espinhaço do jumento. — Mais rápido. Lá se vinha o trem. Menineira correndo, cachorros latindo, gatos assustados, passarinhos alvoroçados. O apito anunciando sua passagem. — Agora, vai! — gritou e gargalhou. Correram lado a lado do trem. Numa alegria medonha. Dois ou três passageiros acenaram com as mãos. O trem era ligeiro o suficiente para seguir à estação da vila de SalvaVidas e deixar os olhos do menino em segundos pra trás. Gaudêncio quicava, não tinha mais fôlego. Recebeu condecorações de cipó. — Viu o que você fez? — disse abraçando seu pescoço. — Vamos pra casa. Tá com sede? Menino a pé, passos lentos. O jumento parou quando passaram por uma sombra de juazeiro. Fincou as patas no chão e não tinha reza que o fizesse sair de lá. Foi teimosia grande. Menino pediu, fez graça, implorou, caminhou sozinho, voltou, ameaçou deixá-lo sem mochila de milho por uma semana e o único movimento de Gaudêncio foi um galope, pra trás. — Mais será o Benedito! Ande. Deixa de marmota. Ande, vamos! — insistiu foi muito. Gaudêncio arriou de vez. Morto. O menino sentou ao seu lado, aguardando a boa vontade do jumento. Contou pra ele um tanto de história, inclusive uma que Gaudêncio adorava, do banho de rio, dos pulos da pedra, foi então que o jumento se levantou e danou-se a trotar. Ligeirinho que só ele. Menino teve que correr pra acompanhar. Pegaram atalho e deram de cara com o açude Velho. Menino fez carreira, arrancou a camisa do corpo e abraçou a água morna. Juntou-se a mais duas crianças que aprendiam a nadar com suas cabaças. Banho farreado. Gaudêncio ficou na beira, bebeu água até dizer chega. Chamou pelo menino, que saiu do açude sem a pressa da chegada. — Eita, Biu! Por onde você andou, menino? — perguntou a mãe, que lavava o arroz.
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— Estava numa missão com Gaudêncio, Dona França, coisa muito importante — disse, puxando duas bananas do cacho que estava pendurado na despensa. — Sei. Amanhã cedo, nada de sumir. Vamos pra colheita do algodão. — Vai dar uma arrouba, mãe. — Tomara, meu filho. Tomara. Arroz, feijão e um ovo estrelado para cada um. Tomate e cheiro-verde por cima dos pratos. Edmundo trabalhava no curral do seu Firmino e antes das onze chegava para almoçar com a mãe e o irmão. — Mazé viu suas doidice com Gaudêncio, Biu. — Que doidice? — perguntou Dona França. — Ah, Gaudêncio é arretado! De pareia com o trem — disse Biu, comendo com a fome do mundo todo. — Meu filho, você é impressionado com esse trem. — Um dia a gente poderia descobrir onde ele vai dá. — É Quixeramobim, mano — falou Edmundo, colocando molho de pimenta no prato. Depois da estação de Salva-Vidas ele para em Quixeramobim. — É mesmo? Vamos um dia, mãe? Na feira de Quixeramobim. Vamos? Sua mãe não disse nem que sim, nem que não, mas sorriu. Daquele almoço até o cair da noite foi suado. As tarefas em outubro eram ainda mais puxadas, o calor, a distância de idas e vindas em busca da água pra beber. Biu pastorava as poucas galinhas, ovos e pintos, havia sempre um gato-do-mato à espreita. França torrou café e passou roupas naquela tarde. As famílias do vilarejo se apegavam à plantação de algodão para garantir muito do sustento. Era um dinheiro pouco, mas dava pra comprar querosene e outras coisas de comer na mercearia. O galo cantou a primeira vez. França virou para o outro lado da cama. O galo cantou a segunda vez. Ela se levantou, usou o penico e voltou a dormir. Na terceira vez, França sentou, pegou o terço e rezou. Fez o sinal da cruz. Acendeu a lamparina, passou pela sala e balançou os punhos da rede de Biu e de Edmundo. Voltou ao quarto, prendeu o cabelo, trocou de roupa e foi à cozinha. Arrumou a lenha no fogão e o acendeu. O café cheirou. Os meninos pegaram suas xícaras e se encostaram no quentinho do fogão. França e seus filhos dividiram a plantação de algodão com a família do seu Moreira. Semearam um mar. Queriam colher sonhos. Precisavam ser ágeis. O que colhessem seria 43
deles. Saíram de casa antes mesmo de verem o sol. Na trouxa de França, beiju, torresmo e rapadura. Edmundo levou uma trouxa maior com os lençóis que serviram de suporte para o algodão colhido, Biu carregou as duas cabaças de água. Arrancharam-se próximos à cerca. Seu Moreira deu as ordens, o que colhessem, poderiam pesar no final e seriam remunerados. Haja algodão para dar uma arrouba. O dono da terra disse ainda para o pequeno Biu, o que colhesse seria dele, pra comprar uma bala, ou um caderno. O menino não tinha outros planos senão pegar o trem e conhecer a feira de Quixeramobim. Colheu algodão como quem cata os pedaços da vida. As famílias só pararam um pouco para comer por volta das dez horas e depois das quatorze. Seu Moreira estava acompanhado da esposa, três filhos e duas filhas. O sol obrigava todos a usarem mangas compridas e chapéus. Não tinha como ver o final dos pés de algodão. Eram filas e filas da planta com flor desabrochada. Os pontos brancos tornaram a roça um palco para Biu, que no vai e vem de deixar a colheita lá no pé da cerca, corria e girava entre as plantas, num compasso que foi celebrado com o pôr-do-sol alaranjado daquele sertão. *** Biu acordou cedo, junto com Edmundo que se levantou com escuro para tirar o leite das vacas do seu Firmino. Sua mãe lhe pediu por tudo o que era de mais sagrado pra ele não fazer carreira com Gaudêncio atrás do trem, brincasse de outra coisa, sentasse pra ver o trem passar e tudo bem. Não teve jura, Biu combinou a corrida com seu jumento e partiu para a espera. Encontrou Mazé no caminho, que disse quase a mesma coisa de sua mãe. Ficou na sombra do juazeiro, junto com outras crianças, ouviram o apito. Lá vinha ele. Biu se alinhou com Gaudêncio, preparou a partida, ouvia o barulho do maquinário ainda mais forte. O apito parou. Um estrondo fez tremer a terra e a fumaça subiu. O trem parou. E o povo todo correu pra ver o que tinha acontecido. O maquinista estava furioso, xingando tudo. Os passageiros desceram e foram acolhidos pelos moradores. Biu foi em casa chamar a mãe. O dia foi longo para tanta confusão. Ofereceram dormida para um casal, que seguiria viagem no dia seguinte, à cavalo emprestado por seu Moreira. O trem ficou ali parado muitos dias. Demorou mais de três noites enluaradas pra chegar um mecânico e dar defeito numa peça. Duas semanas para a tal peça chegar. O povo cuidava do trem, varria, cantava pra ele. Biu ia lá duas a três vezes por dia. Pra brincar de 44
esconde-esconde, inventar história, criar cantoria na companhia de Edmundo que comprou um violão com o dinheiro do algodão colhido de uma semana. Biu guardou seu dinheiro da colheita. Numa noite, combinado ou não, muita gente fez companhia pro trem. Era tanta estrela cadente que Biu não deu conta, dividiu com a mãe e outras crianças. Seu Moreira ascendeu uma fogueira próxima, teve prosa e teve verso. Teve casal se encontrando onde as vistas não alcançavam. E teve até promessa pro trem não sair mais da vila. O mecânico passou dias por lá. Houve quem dissesse que ele não queria consertar o trem porque se engraçou por Mazé. Biu, em sua rede, rezou o contrário do povo. Pediu aos céus, com as duas mãos cruzadas, que o trem voltasse aos trilhos. E numa manhã de domingo foi despertado pelo apito. Pulou da rede feito gente atrasada. Correu no quintal, lavou o rosto, escovou os dentes, avistou sua mãe dando milho às galinhas. No quarto, abriu a mala de Edmundo, catou uma calça e uma camisa de botão, um pouco maior que o seu tamanho. Dobrou as mangas, calçou suas alpargatas de couro. Pegou um saquinho de tecido com moedas e uma nota de dez cruzeiros. Saiu pela porta da sala. Ouviu novamente o apito. Se despediu de Gaudêncio. — Na volta, te conto tudo o que vi na feira de Quixeramobim.
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Fim de linha Marcelo Lettieri Se o mundo fosse um trem; se a vida fosse uma passagem, se Deus existisse e eu me encontrasse com Ele, eu devolveria o bilhete. (Fiódor Dostoiévski)
Está vendo aquele homem? Espere, não olhe agora, continue olhando pra mim. Agora sim, pode olhar. Aquele ali, ao lado esquerdo da porta. Não. O outro, de barba e boné vermelho. Sim, deve ter uns cinquenta anos agora. Já percebeu que é um comunistazinho de merda? Ele não esconde isso. Barba malcuidada, roupa desgastada e aquele boné vermelho. Eu os reconheço a quilômetros de distância. Não é preconceito nada. É fato, minha filha. Tudo bem. Vou me conter. Mas essa é a vantagem da velhice. Não precisamos medir as palavras para falar a verdade. De onde eu o conheço? Lembra daquela Audiência Pública que o tal Comitê da Verdade, Memória e Justiça do Ceará promoveu em 2012 e que eu a convidei para assistir? Você não entendia o porquê do meu interesse, mas me acompanhou apenas por solidariedade de filha e por achar que um velho demente precisava de companhia. Ficamos ali na última fileira de cadeiras, ouvimos todo aquele teatrinho de horrores e saímos em silêncio. Você me deixou em casa e nunca me perguntou nada a respeito. Sei que não se lembra, mas esse homem aí foi um dos que se manifestou ao microfone naquele dia, vomitando palavras desgastadas de ordem e de justiça, denunciando o desaparecimento de seu pai, em 1973, no período em que eles insistem chamar de ditadura militar. Criaram essa fantasia de ditadura para esconder o que realmente aconteceu. A revolução de 64 foi uma salvação para este pobre país. Eu vivi esse momento e sou testemunha do que foi preciso fazer. E eu precisava estar ali naquela audiência, só para ter certeza de que tinha feito as escolhas certas. E fiz. Saí de lá convencido disso. Mas foram necessários mais seis anos para eu poder estar aqui falando disso pra você. Fiquei em silêncio esse tempo todo, porque era muito perigoso falar sobre isso com os comunistas no poder. Os militares acabaram por entregar nosso país aos comunistas novamente com essa história de democracia. FHC, Lula, Dilma, um bando de comunistazinhos de merda. Não, não vou me calar. Agora que temos um Presidente que nos 46
defende, que fala a verdade sobre o que realmente ocorreu, eu posso falar sem medo. Sem receio de que um esquerdinha que nem estava lá venha me criticar. Voltamos ao poder novamente. E, dessa vez, viemos para ficar. E não vamos errar mais. Não preciso mais esconder nada. Posso lhe revelar o que de mais importante fiz na vida. Você tem tempo, minha filha? Eu agora tenho muito, infelizmente. Espere um minuto. “Moça, pode me trazer um expresso mogiana e um pão de queijo, por favor? Sim, ambos pequenos.” Você precisa provar esse café mogiana daqui, filha. O melhor da cidade. E não me olhe com essa cara. Não estou demente. E não tenho medo de seu julgamento. Sei que você vai entender o que estava em jogo. Acho que vai até ter mais orgulho do seu pai. Não, não é isso. Eu sei que você reconhece meu valor como médico. Salvei muitas vidas nesse Ceará. E já fui condecorado por isso muitas vezes. Mas não dou nenhum valor a esses falsos troféus. São apenas migalhas. Era respeitado por eles apenas porque tinha seus corações doentes nas mãos. E eu tive muitos. E salvei vários. Mas eu fui mais importante para esse país do que um simples cirurgiãozinho de coração. Eu ajudei a salvar nossa nação, minha filha. E é disso que quero falar hoje. Sim, vou falar mais baixo. Estou meio surdo e perco a noção da altura da minha voz. Mas o Café está cheio. Cada um com seus problemas e suas telinhas brilhantes. Ninguém mais olha para os que estão ao lado; muito menos prestam atenção no que falam seus vizinhos de mesa. Não quer mesmo provar o café? Tudo bem. Não vou insistir. “Mais um mogiana curto pra mim, moça. Sim. Obrigado!” O café é hoje meu único vício. Está bem. Não estou enrolando nada. Os velhos precisam de tempo para acessar suas memórias, ok? Não ria. Não é uma piada. Vou falar apenas do ano de 1973. Embora a revolução tenha se iniciado em 64 e tenhamos trabalhado muito até 1977, aquele ano é que foi importante para nós aqui no Ceará. Sim. Revolução. É esse o termo correto, minha filha. Vou me limitar a contar apenas a história do pai daquele comunistazinho ali. Não. Não fique olhando para ele. Concentre-se no que vou lhe contar. É uma amostra suficiente do que foi meu trabalho para esse país ingrato. Em fevereiro de 1973, fui convocado para uma missão especial. Havia acabado minha residência em cardiologia e fui prestar o serviço militar como médico do Exército. O comandante da minha unidade era da mesma Loja Maçônica do meu pai, seu avô, e conhecia nossa família há muito tempo. Embora recém-chegado, em função dessa confiança de família, ele me chamou em seu gabinete e disse que me colocaria na missão mais importante do Exército Brasileiro naquele momento. Eu estava sendo indicado a acompanhar as atividades de um grupo especial de militares que cuidava de ações de inteligência e combate aos 47
comunistas no estado. Ele fazia questão de ressaltar a todo momento que era uma missão importante e apenas os melhores haviam sido recrutados. E ainda receberíamos uma gratificação extra para participar dessa operação. Sim, foi o ano em que você nasceu e precisávamos de algum dinheiro extra para as despesas adicionais. Mas o dinheiro era o que menos importava. Eu estava ganhando a chance de servir ao meu país e agarrei aquela oportunidade com toda a minha força, embora ainda sem muita convicção. Mas a convicção se forja rápido, quando se está do lado certo da história, minha filha. Qual era minha missão? Era a mais nobre de todas. Prolongar vidas, mesmo as medíocres. Sim. Há vidas medíocres que vale a pena salvar, se for para um bem maior, claro. E esse era o caso. Não me olhe assim. Tudo bem, vou pedir o café para você. “Moça, um mogiana pequeno pra ela, por favor.” Assim que me recrutaram, fui apresentado ao Doutor Xavier, Delegado da Polícia Federal que comandava as operações no Ceará. Era um cara justo. Se você era um cidadão de bem, não tinha problemas com ele. Foi sob o comando do Delegado Xavier que fui enviado para a Casa dos Horrores. Eu sabia que esse nome lhe assustaria. Mas era apenas um nome que inventamos para a unidade de tratamento intensivo da operação, como forma de assustar os que seriam tratados e, assim, tentar abreviar o tratamento. Qual o tratamento? Simplesmente libertá-los do comunismo e deixá-los falar. Para o bem deles. Praticamente uma terapia. Entendeu o porquê do nome? Era uma piada, minha filha. Fazíamos piadas o tempo todo, para descontrair o ambiente. Se o paciente sentia dor durante o tratamento, gritávamos que era de prazer, para que ele não se desesperasse. Uma piada inofensiva. Ríamos muito. E isso ajudava a aliviar a nossa tensão. Não. Não vá embora. Fique. Precisamos conversar. Quer mais um café? Não? Tudo bem. Mas fique. Sim. Parte do que contaram naquela Audiência Pública é verdade, principalmente sobre o que acontecia na Casa dos Horrores. Espere. Fique. Não. Não torturei ninguém. E o que meus colegas faziam não era tortura. Eles utilizavam técnicas de interrogatório desenvolvidas pelos americanos para interrogar terroristas. Técnicas de "manipulação ambiental" ou "manipulação sensorial", como eram conhecidas. Já ouviu falar do Projeto X? Obviamente, não. Mas não vamos desviar o foco. O pai daquele comunista era um dos líderes, no Brasil, do Movimento Comunista Internacionalista, o MCI. No final de 70, ele rompeu com o MCI e entrou para o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o PCBR, um grupo de terroristas que matou inocentes. Só por isso, aquele desgraçado já merecia ser torturado até a morte, mas as ordens do comando central eram bem objetivas: façam ele falar, mas não o deixem morrer. E aquele grupo especial sabia como bem cumprir 48
essas ordens. “Moça, por favor, pode me trazer uma garrafa de água mineral? Sim, pode ser de 500 ml. E traga dois copos, por favor. Obrigado.” Espere, filha. Só vou tomar mais alguns minutos de seu tempo. Depois você pode ir pra casa daquele inútil do seu namorado. Desculpe. Tudo bem. Não vamos trazer seu namorado pra essa conversa. Você sabe o que penso dele. Não. Não é pela idade dele. Você pode ficar com quem você quiser. A vida é sua. Sua mãe não iria gostar de ver você com um menino, mas... Certo. Vamos deixar sua mãe também fora disso. Pois bem. O pai desse indivíduo ali. Não olhe, por favor. Certo. Me desculpe. Não vou mais me referir a ele. O pai terrorista... Tudo bem, filha. O indivíduo. O indivíduo foi preso pelo pessoal do Dops na tarde do dia 11 de fevereiro, um domingo ensolarado na nossa capital. Foi preso no centro da cidade, ali perto do Passeio Público. Ele foi levado para o prédio da Polícia Federal. Como ele era um elemento importante na cadeia de comando do PCBR, tínhamos a oportunidade de desmantelar aquele grupo e salvar vidas que estariam na mira deles. Naquela mesma noite, fui acordado em casa por um soldado do Décimo Grupo de Obuses e fui conduzido até o quartel, onde estava sendo planejada toda a nossa atuação. De lá, partimos para Maranguape. Não. Não fomos direto para a Casa dos Horrores. Havia um outro lugar que servia de apoio para essas operações. E esse lugar foi uma contribuição minha. Fico até arrepiado de ter sido quem revelou esse importante local para o pessoal da missão. Você lembra onde seu avô trabalhou até se aposentar? Sim. A Estação de Maranguape. Ele não cansava de falar daquele lugar, não era? Tinha dezenas de histórias. Que bom vê-la sorrir, minha filha. Seu semblante estava muito tenso. Tudo bem. Como seu avô não cansava de relatar, a Estação de Maranguape foi inaugurada em janeiro de 1875, quando nem os trilhos haviam sido colocados ainda. Certo, filha. Você já está cansada de saber dessa história. Tudo bem. Você se lembra quando ela foi fechada? Eu imaginei que não. Era uma parte da história que seu avô não gostava muito de contar. Pois bem. Ela foi fechada em 1963 e os trilhos que ligavam Maracanaú a Maranguape foram retirados no mesmo ano. A partir de então, abandonaram a estação. Em 1968, alguns dias antes de seu avô morrer, ele me levou até a estação abandonada, abriu uma das portas laterais — ele ainda tinha as chaves — e me mostrou um pequeno segredo daquele lugar. A estação possuía um porão com paredes totalmente ladeada por grandes pedras, provavelmente construído para outro fim, mas que na época servia de depósito de algumas tralhas velhas da Rede Ferroviária Federal. O acesso a esse porão era por meio de um alçapão de madeira, escondido sob um piso falso, e uma escada espiral. O lugar era grande, mas escuro, sujo e pouco arejado. Seu avô passou uns 49
trinta minutos me mostrando alguns objetos, nitidamente emocionado. Eu, insensível como sempre, me limitei a dizer que aquele lugar era um esconderijo perfeito. Ao sair da estação, seu avô me deu um molho de chaves, que incluía a do cadeado daquele alçapão, e me pediu para não entregá-las a ninguém. Desculpe, minha filha. Fico emocionado quando lembro desse último encontro com seu avô. Quando o comandante das operações de interrogatório nos apresentou a Casa dos Horrores, vimos que o local só serviria para as atividades de manipulação ambiental e sensorial. O local era pequeno para a instalação de um ambulatório médico, como eles queriam. Por que queriam um ambulatório? Como já lhe disse, a ordem era fazer os terroristas falarem, mas não podiam morrer nesse processo. Por isso precisavam de um médico por perto, para acompanhar os sinais vitais daqueles desgraçados. Esse era o meu papel no início. Mas se eles não fossem fortes o suficiente, e insistissem em não falar, as coisas poderiam complicar e poderia ser necessário tratá-los numa pequena unidade médica, antes de devolvêlos à cela na PF. Foi aí que me lembrei daquele porão da estação. Levei meus superiores até lá. A estação estava mais abandonada ainda. Telhados quebrados, buracos na parede. Mas não haviam descoberto o porão. O alçapão permanecia intacto. E depois de jogarmos um óleo de máquina no cadeado, foi fácil abri-lo. Meus superiores me congratularam pelo achado. Em pouco menos de uma semana, montaram naquele porão um pequeno ambulatório médico. Conseguiram puxar um cabo clandestino de energia elétrica de um poste próximo e encheram o local de equipamentos para um atendimento de emergência. Eram equipamentos precários, eu sei, mas o suficiente para tratar um moribundo que não aguentasse o interrogatório. Na madrugada do dia 12 de fevereiro, o pai daquele ali chegou à Casa dos Horrores. A equipe que foi designada para interrogá-lo era considerada a mais experiente do Exército. Eram do Rio de Janeiro. Haviam sido enviados para cá assim que souberam que o elemento estava na cidade e que estava prestes a ser capturado. Eles chegaram de helicóptero, e foram direto para o piso superior da casa, local dos interrogatórios. Eu subi em seguida e fui apresentado a eles. Nos cumprimentamos e o chefe deles, que eles chamavam apenas de Capitão, só me dirigiu a palavra para dizer, apontando, que eu deveria ficar no canto oposto ao local do interrogatório e só deveria chegar perto do indivíduo quando chamado, e unicamente para medir seus sinais vitais. Concordei com a cabeça. Enquanto me dirigia a meu lugar, o terrorista foi trazido pela escada espiral, ainda encapuzado. Foi despido, suas mãos amarradas com cordas de nylon numa argola de ferro presa ao teto. Preciso sim entrar nesses detalhes, minha filha. Eles são parte importante da história. Não. Não tem nada de cruel. 50
Aquele desgraçado havia arruinado a vida de muitas famílias de bem. E nós só queríamos informações que nos levassem à sua organização criminosa. Somente isso. Nesse caso, minha filha, os fins mais do que justificam os meios. Vou pedir mais uma água pra gente. “Moça, por favor. Traga mais um café e outra água. Obrigado. Não. Ela está bem, obrigado.” Tome mais um gole d’água, filha. O terrorista foi amarrado e seus pés colocados sobre duas latas. Isso era necessário porque... Tudo bem. Sem detalhes. Vamos em frente. O Capitão deu a ordem para colocar os eletrodos nos lóbulos da orelha do terrorista. Isso é necessário sim, filha. O cara era durão. Gritava enquanto a corrente contínua atravessava sua cabeça, chorava, babava. O Capitão esbravejava suas perguntas. Mas o elemento não confessava. Os eletrodos começavam a passear pelo seu corpo. Mamilos, ponta da língua e, por fim, seu pênis. Ele estrebuchava, gritando, vomitou, urinou. Os outros agentes riam, zombavam dele. Mas ele era forte e não se entregava. Fui chamado a conferir seu estado de saúde. Ele estava bem. Pressão estável, batimentos cardíacos acelerados, mas sem anormalidade. Na avaliação da alteração do diâmetro das pupilas e resposta ao reflexo à luz, não houve nenhuma indicação de dano cerebral. Dei o diagnóstico ao Capitão. O tenente que o auxiliava berrava: “Esse filho da puta aguenta mais! O coração dele é bom!” Retornei ao meu canto. Os agentes o soltaram do teto e o colocaram deitado sobre uma esteira de vime. Recolocaram o capuz, amarraram suas mãos esticadas para trás e cada um dos pés numa corda esticada até os cantos do quarto, de forma a deixá-lo de pernas abertas. Trouxeram um saco de gelo e derramaram sobre seus testículos. O Capitão, rindo, berrava, enquanto segurava o pênis do cara: “vamos lhe dar uma última chance, vagabundo. Você se casou há pouco tempo, não foi? Acho que sua esposa não vai gostar de ver você sem isso aqui, não é? Então, só vou perguntar uma única vez: onde estão seus comparsas e o que estavam planejando fazer aqui em Fortaleza? Estou aguardando sua resposta. Não vai falar? Tenente, traga o tesourão! Pode cortar! Isso. Com testículos e tudo. Não deixe nada. Doutor, prepare-se para dar os pontos e deixar uma vagina no lugar desse pinto!” O tenente retirou o capuz do cara e encostou a lâmina da tesoura de jardinagem enferrujada no seu rosto. “Por favor, Não!”, e gritou. O tenente arrastou a tesoura por seu corpo até chegar aos testículos dele e simulou a castração. Foi demais para o desgraçado. Ele não era tão forte assim. Começou a entrar em convulsão e desmaiou. Quando medi seus sinais vitais, alertei que ele estava em choque e poderia morrer. Foi quando acionamos o plano de emergência. Você está apertando demais meu pulso, minha filha. Assim você arranca meu braço. Não! Fique aqui. Sente-se. Por favor. Acalme-se. Já estou acabando. 51
Colocamos o interrogado no jipe e partimos para o ambulatório. Eram mais ou menos uns 17 km até a estação. Fui acompanhado apenas pelo motorista. Os agentes do Exército subiram no helicóptero e partiram. O caso estava comigo agora. Minha missão era devolver o desgraçado vivo ao prédio da PF. O motorista me ajudou a colocá-lo na maca improvisada no porão e nos deixou a sós. Disse que pela manhã uma equipe viria para nos levar a Fortaleza. Agradeci e retornei ao paciente. Ele estava estabilizado, mas seu estado ainda era grave. Passei horas tentando salvá-lo. Mas não consegui. Não diga isso. Não! Não o matei. A vida desistiu dele. Talvez meu único crime tenha sido o de tirar dele o que os meus colegas não tinham conseguido na Casa dos Horrores: sua esperança. Naquela madrugada, ele abriu os olhos e me encarou assustado. Seus olhos perguntavam se ele tinha alguma chance. Meus olhos responderam que não. Seus olhos se fecharam e não abriram mais. Não me olhe assim. Ao rever as lembranças daquela época, encontro a consciência tranquila do dever cumprido. Cumpríamos nossas tarefas com responsabilidade, sem piedade nem sentimentos, que só atrapalham nossos objetivos. Sim. Fiz o que foi preciso. Nossa vida é atuação, filha, não ensaio. Talvez você queira perguntar se valeu a pena. Não se trata de valer ou não a pena, mas de cumprirmos a nossa sina. A minha foi salvar esse país da praga comunista. E estamos salvando pela segunda vez agora. Fim de linha pra eles. “Moça, por favor. Me ajude aqui. Sim. Ela se engasgou com o café e vomitou”.
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Trilhos da memória Tânia Sales As lembranças me tomaram de assalto hoje à tarde, enquanto assisto o sol morrer mais uma vez. Sentado na varanda da velha casa que pertenceu a meu avô, fico matutando sobre quantos crepúsculos ainda terei que assistir até conseguir esquecer completamente tudo que aconteceu naqueles dias loucos de março, no final dos anos setenta. Pedaços de crepúsculo, é verdade. As árvores enormes que margeiam o jardim em frente à varanda me impedem de ver o espetáculo do sol por inteiro. Assim como em pedaços são as reminiscências que habitam minha mente e me impedem de esquecer o único e grande amor de minha vida. — Ei, você está aí? — Minha mulher definitivamente não consegue respeitar a solidão dos outros. É inacreditável o poder que ela tem de chegar no momento errado. Finjo que não escuto para ver se desiste e vai embora, mas a criatura é insistente. — Alberto, sei que está aí. Por que não responde? — O que você quer? — Nada, saber se tá tudo bem com você. — Está tudo bem, não se preocupe. Vou entrar daqui a pouco. Sou Alberto, músico por vocação, atualmente trabalhando a contragosto, nos negócios que herdei de meu pai. Infelizmente sou filho único e não tenho com quem dividir esse fardo. Entre os aborrecimentos da fazenda e a presença invasiva de minha mulher, busco refúgio na memória de um tempo em que acredito, fui feliz. O momento em que vi, sentada na terceira fila das cadeiras do teatro, a figura frágil, magra, olhos grandes, expressivos e muito tristes. Um olhar de procura desesperançada, que me atraiu como um ímã. Estávamos ensaiando há dias para o festival que pretendia balançar as estruturas do cenário artístico do Ceará, a Massafeira Livre. Era a oportunidade que nós, músicos iniciantes, precisávamos para apresentar nosso trabalho ao público. O ambiente era fervilhante de novos projetos e expectativas. Eu estava feliz e também cansado. Há muito vínhamos nos reunindo, a geração de músicos mais jovens com os mais experientes. Eram reuniões em bares, em casas de amigos. Todos nós bastante animados com a proximidade desse evento artístico que poderia mudar nossas vidas para sempre. As atividades musicais ocorriam em vários pontos da cidade, na 53
Praia de Iracema, na faculdade de Arquitetura da UFC, concertos de rock na Escola Técnica. Estávamos ainda inebriados com a mística de Woodstock. Naquele dia eu havia bebido e fumado bastante, as ideias um pouco turvas, mas me encantei de imediato quando pousei os olhos naquela figurinha linda, muito vintage, com seu chapeuzinho de feltro lilás. Era linda, o ar de desamparo, a roupa fora de época, as mãos, com luvinhas de crochê brancas, rodavam nervosamente a pequena bolsa de veludo azul na qual não caberia nem um batom, se a dona o quisesse carregar. — Você tá procurando alguém? Ela olhou ao redor, inquieta, como se não soubesse o que responder. Depois pousou em mim os belos olhos cansados. — Estou esperando meu noivo, nós marcamos de nos encontrar, mas ele não apareceu — falou, com ar desconsolado. — Eu tinha algo importante para falar com ele. — Bom, talvez esteja a caminho, quer tomar um café? — falei, já caminhando em direção à saída. Sem responder, ela me acompanhou, hesitante, como alguém que não tem alternativa. — Como você se chama? — Elvira, e você? — Alberto. Está aqui pra participar da Massafeira? — O que é isso? — A princípio não entendi, achando que esses artistas de teatro em geral, são bastante excêntricos. “Deixa pra lá”, pensei. — Bom, você vai apresentar o que, no festival? — Estou esperando meu noivo. Nós combinamos de nos encontrar hoje. — Mas ele não veio. Posso lhe fazer companhia, se você quiser. Mais tarde vamos ao Bar do Anísio. Você topa ir também? Ela continuava me olhando como se eu falasse uma língua estrangeira. — Elvira, se você quiser, posso lhe levar comigo pra jantar com meus amigos, vamos fazer um show lá. Mais tarde vão fechar o teatro e você não pode ficar sozinha aqui. E aí, quer sair com a gente? — insisti, torcendo para que aceitasse. Fez que sim com a cabeça e meu coração bateu forte. De repente, tive uma vontade enorme de apertar aquela cabecinha contra meu peito. Percebo agora que a amei desde o primeiro minuto. Parecia haver saído das páginas de um livro antigo.
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Ela me acompanhou sem fazer perguntas. Apesar de estar um pouco alto, eu me sentia feliz com sua companhia. Envaidecido até. Ela era linda e muito estilosa com aqueles trajes do século passado. “Deve ser atriz”, pensei. O teatro se encontrava sempre lotado naqueles dias, eram muitas manifestações artísticas, muitas exposições no pátio em frente ao foyer. Era muita gente, artistas, intelectuais. Estávamos sempre juntos nos dias que antecederam o show. Ela sumia, às vezes, mas como não gostava de responder perguntas, desisti de tentar descobrir onde morava, com quem vivia. Suas ausências me deixavam tão ansioso, que quando ela reaparecia eu só queria tê-la junto a mim, sem questionar. A presença dela me bastava. Eu não precisava de mais nada. Apesar de estar sempre ao meu lado em todos os lugares, me causava uma certa estranheza o fato de meus amigos não fazerem nenhum comentário ou perguntas sobre ela. Eu estava muito apaixonado e supunha que ela também estivesse interessada em mim, pois me acompanhava para toda parte, embora não me permitisse nenhuma intimidade. — Sou comprometida com outro homem, Alberto, nunca lhe escondi isso. Um dia, depois de mais uma recusa dela em se deixar beijar, sacudi-a pelos ombros, exasperado: — Que diabo de noivo é esse que não aparece nunca e deixa uma garota linda como você esperando em vão esse tempo todo?! — gritei. Imediatamente me arrependi. Ela me olhava apavorada, prestes a fugir. — Ele não me abandonou, tenho certeza que não faria isso — gemia baixinho, entre soluços. Abracei-a, desolado, me sentindo um bruto. — Me perdoe, Elvira, juro que não quis machucar você. É que não consigo entender essa história. Por que não me explica direito o que aconteceu? Eu quero ajudar, não sei por que não confia em mim. Com voz embargada, escondida em meu abraço, ela me contou baixinho que ele se chamava Richard Gartland. Ela o conhecera em Londres, durante uma viagem que fizera com os pais. Era engenheiro de uma empresa chamada Brazil North Eastern Railway, que foi responsável pela construção da ponte ferroviária metálica sobre o rio Jaguaribe, em Iguatu. As peças vinham prontas da Inglaterra e a montagem da ponte durou quase seis anos. Durante esse tempo se reencontraram e começaram a namorar. Richard era o supervisor chefe da equipe de técnicos brasileiros que trabalhava na obra e, depois de terminada a ponte, estavam fazendo as instalações finais da estação de 55
Suassurana, um vilarejo vizinho. Eles tinham combinado que após a inauguração, ele viria a Fortaleza para pedir a mão dela em casamento. Na data acertada ela foi esperá-lo na estação, mas ele não apareceu. — Fiquei arrasada, não havia explicação para ele faltar ao nosso encontro, alguma coisa aconteceu, tenho certeza. Mas ninguém soube informar nada, não sei o que fazer. — Calma, meu amor. Eu vou ajudar você a descobrir, confie em mim. — Eu acho que estou grávida, como vou fazer se ele não aparecer, o que vou dizer aos meus pais?! — Abracei-a ainda mais forte, queria frear aquela aflição. Estava mortificado por vê-la naquele desespero. — Estou aqui com você. Não se desespere, procure se acalmar. Eu te prometo que depois que o festival terminar, iremos juntos investigar essa história. Vamos descobrir o paradeiro do Richard, tenho certeza. — Sim, sim, eu confio em você. — Enquanto falava, percebi que seu corpinho se tornava menos rígido, cedendo ao meu abraço. Então a beijei com a delicadeza com que se toca uma coisa muito frágil que pode se quebrar a qualquer instante. Seus lábios estavam frios, mas pensei que seu estado emocional explicaria aquilo e não me preocupei mais. Depois de nossa conversa notei que ela passou a demonstrar mais tranquilidade e a participar ativamente ao meu lado, me apoiando em todos os momentos que antecederam o show. Eu estava muito ansioso com a aproximação do grande dia. O Festival Massafeira Livre iria reunir uma diversidade de estilos artísticos e não somente cantores. Reunindo cinema, literatura, artes plásticas, fotografia e, claro, a música, o evento conseguiu englobar todos os campos da arte, envolvendo, assim, vários artistas dessas áreas. Elvira estava eufórica por estar fazendo parte daquele movimento todo. Em alguns momentos cheguei a pensar que havia superado o trauma do desaparecimento de Richard, o que me causou alívio. Estava muito envolvido nos ensaios do show e não tinha tempo disponível para me preocupar com ela. Cheguei a esquecer da gravidez. Foram três dias de atividade intensa, impossível de esquecer. Minha euforia contagiava Elvira, companhia inseparável. O festival teve uma estrutura grandiosa, o público presente era tão numeroso a ponto de lotar todos os espaços do Teatro José de Alencar. Um sucesso que nos deixou a todos, músicos e organizadores, completamente inebriados. 56
Passada a turbulência do festival, voltei minha atenção para as questões de Elvira e seu noivo inglês desaparecido. Ela também era um enigma. Aparecia e desaparecia do nada e jamais respondia minhas perguntas. E eu, por medo de perdê-la, não insistia. Resolvi investigar por conta própria e percebi que a versão de Elvira era cheia de lacunas inexplicáveis, os detalhes e datas não batiam. A tal ponte ferroviária metálica de Iguatu fora inaugurada em 1910. Realmente foi construída por engenheiros ingleses, que realizaram a montagem da obra com peças que vieram prontas da Inglaterra. Mas nós estávamos no final dos anos setenta. Não havia como explicar essa lacuna. — Acho que devemos ir juntos a Suassurana, investigar por lá pra tentar descobrir o que aconteceu, você não acha, Elvira? Ela me encarou, surpresa. — Mas é muito longe para irmos até lá. — Não é não, vamos de carro. Eu vou dirigindo, sei que não fica muito distante de Iguatu. Ela acabou concordando. Eu estava decidido e resolvi não dar margem para discussão, aquilo precisava ser esclarecido de uma vez por todas. A viagem foi longa e cansativa. As estradas péssimas e o calor escaldante contribuíram para aumentar nosso enfado. Ao chegarmos finalmente ao nosso destino, encontramos alguém que poderia responder às nossas perguntas. Era um senhor muito idoso, que parecia conhecer bem os fatos da época da inauguração da estação de Suassurana. Um fato que me chamou a atenção foi que ele demonstrou ser a primeira pessoa a perceber a presença de Elvira. As pessoas, de um modo geral, não reagiam à existência dela. Agiam como se não a enxergassem, eu não conseguia entender isso, pois ela tinha uma beleza fora do comum. O velhinho nos olhou com uma mistura de curiosidade e pena. — Por quem vocês estão procurando? Contei a história do encontro marcado que não aconteceu. — Isso foi há muito tempo atrás — falou, olhando diretamente para Elvira como se compreendesse perfeitamente o sofrimento dela. — Lembro que houve um acidente aqui nessa data, um vagão descarrilhou. Alguns caíram no rio Trussu, teve uns dois que escaparam. Mas teve um que desapareceu e nunca foi encontrado. Era estrangeiro, não tinha família por aqui.
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Elvira estava pálida como morta. Olhava para o homem como se ele falasse uma língua impossível de entender. — Minha fia, você já sofreu demais, tá na hora de descansar. — Ele continuava olhando diretamente para ela, com ar de compaixão. — Você vem sofrendo há tempo demais. — Eu vou cuidar dela, pode deixar. Ela vai ficar comigo, vai ficar bem, não se preocupe — retruquei um pouco aborrecido. — Não, você não pode cuidar dela. Deve deixar ela ir, ela precisa descansar. Você não deve mais segurar ela aqui. Deixe ela ir. Eu estava irritadíssimo com o velho. “Como se atreve, um matuto desconhecido falar com a gente desse jeito.” Tive vontade de matá-lo, mas precisava voltar para casa com Elvira e cuidar dela, tirá-la daquele sofrimento. O velho pareceu ler meus pensamentos. — “Você não pode fazer mais nada por ela, já se foi, não está mais aqui. Ele entrou em casa e eu fiquei sozinho, no escuro da noite sem estrelas. Tantos anos depois ainda revivo esse momento, sentindo o chão se abrir sob meus pés. E me descubro aqui, um velho, um violão, um baseado e uma enorme solidão. Devo entrar e enfrentar a realidade do meu casamento decadente, mais um jantar insalubre como tantos outros. — Alberto, a mesa tá servida! Mais um olhar ao redor. Lá estão meus tesouros escondidos. No fundo, bem protegido, o precioso chapeuzinho de feltro lilás. “Descanse em paz, meu amor.”
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Terra de índio ou um ensaio sobre a liberdade Malu Aquino Justo na hora da partida, eu perco meu lugar na janela. Eram sussurros quando me sentei, mas agora virou queixume em alto e bom som, a ponto de me fazer corar. Aqui, senhora. Por nada. Bolsa pesada? Incomoda não. Melhor ela que o varapau de bengala acolá. Essa imagem, a onda de mato verde coberta de branco, sempre me encantou. Lá em cima, mergulhado nesse oceano de folhas, troncos e cipós, tinha tanto para ver, um mundo de coisas em movimento, que feriam e cheiravam como elas só. Eu quase não percebia a névoa quando estava embrenhado na Aratanha. Só de manhãzinha, mesmo sem uma réstia de luz que se aproveitasse, dava para enxergar. Eu sentia a friagem por debaixo das roupas. Vou congelar, brincava com a rapaziada aos berros, porque era exatamente isso, a nossa neve de fantasia. Reparando bem, posso vê-la de qualquer canto deste trem. Ele vai andando, barulhento e tremelicado, e ela vai aparecendo, grandiosa e sem fim, às vezes baixa, invadindo toda a vista como se quisesse me engolir para guardar dentro dela. Medo de comunista? Tenho não, senhor. Parece até que ouviu minha mãe falar, esse daí. Ela tagarelava sobre violência, comunista, fome, pouca vergonha no meio da rua, e se enraivecia quando eu contava as verdades que me explicaram na escola. Tudo conversa para enganar o povo, eu dizia. E, nesta hora, se maldizia por ter me colocado na escola da cidade e não na do distrito, porque foi o mesmo que abrir o galinheiro para as onças. Bastou ouvir um pouco das histórias para que eu embarcasse na conversa dos vermelhos e desandar na vida, ela rebatia. Com todo o respeito, senhora, mas o que está acontecendo é que agora vamos poder escolher o nosso governante. Você tem razão, esse que escolheram morreu e foi triste de ver. Mas vão colocar o vice dele no seu lugar. E o resto é conversa. Falei isto para acabar com o zum-zum-zum, mas eu não estou acreditando muito que o vice vai ser igual ao número um. Unzinho que já foi compincha dos milicos, igual àquele lá, é difícil de engolir. Como é que vira mocinho assim de repente? Mas não podia ceder depois de tanta confusão. Melhor ir lá mais para frente. Cuidado, senhor. Pronto, pode passar. Essa mala é grande demais, mas só nela cabiam todas as minhas coisas. Até excessivas, disse meu pai, mas indispensáveis, penso. Minha 59
bagagem é grande, a da mala e a da minha cabeça. Preciso esvaziá-las pra encher de coisas novas, que só vão chegar se o que é velho se for. Não gosto de olhar para o passado como essas pessoas, moço. Por quê? Porque eu prefiro ser feliz e não deixo a tristeza desacreditar. Eu acho que deve ser assim, por isso sempre penso que pode ser bom. Para você, para o país, para mim. Creia. Sentado aqui na frente, enxergo um tanto da estrada numas vezes, mas vem uma curva e só consigo ver um pedaço pequeno do caminho. É desta maneira que me sinto agora, sem saber direito o que virá. E é assim que estamos todos nos sentindo com esta história de democracia. Agora você pegou no meu ponto fraco, amigo. O cheiro daqui. Basta bater um vento que já sinto o verde do mato como se estivesse enfurnado no meio da Serra. O impregnado da poeira nas canelas, o frio da água da chuva na minha cabeça e nos ombros. Não é cheiro. Eu sinto a Aratanha com o meu corpo todo. Meu professor falava muito que os milicos maltrataram gente boa, que eles tiravam a liberdade do povo, e que o país estava de mal a pior nas finanças, mas essa gente pobre e desletrada tem condição de escolher coisa que preste? Vai saber andar sozinha sem ninguém para dizer o que é certo ou errado? Também tenho todas essas dúvidas, moça. Eu também não sei de mim, mas penso que posso aprender. Senti-me um metido a besta, como o pessoal que foi para a rua, cheio de cartazes e gritando palavras de ordem, e soube que esta é a minha hora. Sim, tenho consciência da derrota deles. Pensaram que podiam resolver tudo com um pouco de tinta na cara e vontade no corpo todo, mas foram derrotados pelos políticos. Uma raça em que não dá pra confiar. A vitória veio depois, e foi a ela que me apeguei. Embora todos fossem contra, eu enxerguei como um sinal e decidi sair de casa assim que meu país resolveu que era hora de mudar as coisas. Eu e minha pátria nos tornando livres juntas, na mesma época. Não é fácil não, senhor. Eu vou sentir falta de muita coisa. Das festas de Nosso Senhor, de subir sozinho a Aratanha, e por um caminho que só eu conhecia, do movimento da feira, desse cheiro de mato que a gente sente da cabeça aos pés. O pessoal fica me ouvindo com uma cara de zombaria. Já devem ter ouvido muita história como esta e a minha é só mais uma: um rapaz que nasceu e cresceu de um jeito, mas que sempre soube que tem outros modos de viver, um dia resolve ir atrás, sem saber direito do quê. 60
Essa é a minha história, mas não é só minha. É a história do meu país também. Por isso tanto bafafá aqui nos corredores. Gente que viveu dentro de um buraco, chamou o escuro de lar, e tem medo da luz porque não consegue enxergar direito na presença dela. É sim, moço. Sou estudado, o único da minha casa, e isso é um peso grande. Não se engane. Difícil sair diferente dos seus. Só me resta aceitar minha sina e ir onde ninguém pensou em ir porque nem imaginou que existia. A liberdade é uma coisa que a gente deseja, mesmo quando é mais seguro que ela não exista. Bem lembrado, moça. Pacatuba é terra de índio, dos que vagam por sua terra e se confundem com a paisagem. Talvez seja isso que você está dizendo, tenho sangue de liberdade. Não aguento que me segurem. E você falando isto me faz pensar que todos deste país são assim, filhos de índio. Foi o que meus professores disseram. Faz sentido que a gente queira se livrar de quem acha que a liberdade não é boa para nós. Praça da Estação. Ponto final. Todos já desceram e eu continuo aqui sentado. Meus pés vão me levar para um lugar desejado, mas desconhecido, e isso deixa meu coração inseguro. Qual vida vai se apresentar nesse percurso? Desejo confiar no futuro, mas a incerteza sobre o que vou encontrar enfraquece minhas pernas e meu ânimo, faz pesado o sonho que acalentei. Todos me deram razão. Não é possível ser feliz estando preso, limitado, encaixotado em um lar que não suporta crescimento, que se destrói com algumas gotas a mais de consciência, que voa pelos ares com sopros de renovação. Eles disseram que eu deveria procurar ser professor, já que gosto tanto de pensar. Pois vou dizer no que estou pensando: são novos tempos, estes de agora. Antes, não se podia falar sobre ou mesmo querer enxergar a verdade. Mas agora podemos, e isto é uma boa maneira de viver.
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Disparate Stênio Gardel Quando ela chegou. A Velha Jaguaribara no rastro, resto de passado, chão morto, enterrado, enterrado não, afundado, pelo grande mar do sertão. Promessa grande, açude daquele tamanho a seca também não vence, não vence. Vem a seca, seca, e a Cidade Velha ressurge, ela ressurgiu, e os tijolos do chão voltaram para as paredes, as malhas dos telhados estavam cobertas de novo, as ruas perderam o matagal e se alargaram, o rio voltou a ser rio, que de uma margem se via a outra, e uma nadava até encontrar a outra, para saber quem tinha nadado mais. Linda, toda vez. Mesmo que estar vendo ela, o rosto redondo e branco, as sardas, respingo de quando Deus pintou os olhos. Aqui é a casa da dona Joana e seu Mariano? Nem a voz não era outra, mas ela estava jovem, como não estavam mais ele e a mulher. Era outro tempo, do cai-no-poço. Eu sei quem é a pessoa, mesmo de olhos fechados, Linda dizia. Os outros perguntavam, para saber da vantagem na hora de escolher aperto de mão, uva, beijo no rosto ou salada mista no escolhido às cegas. Invenção ou verdade, verdade era que ela nunca quis beijo na boca. Escolha para uma pessoa que ela não tirava. Joana soube e guardou, nas raízes do seio. De noite, enquanto as mulheres da rua debulhavam um lençol de feijão, as meninas e os meninos fastavam da calçada alta da casa de Joana, para onde a luz do poste caía no chão. É esse? É esse? É esse? Mariano queria Joana, beijou a bochecha de Anita, Anita abraçou o Zé Maria, Zé Maria abraçou Natália, Natália deu aperto de mão no Jeová, Jeová abraçou Joana, Joana pensou nas maçãs do rosto de Linda, abraçou Timóteo, Timóteo foi quem deu abraço em Linda, e Linda, Linda pensou no pescoço moreno de Joana, molhado da água do rio, escorrendo pano fino e transparente, de um fio quase inexistente, quando ela surgia. Voltou a respirar e beijou Mariano no rosto, sabia que ele gostava de Joana. Meu nome é Lindalva, minha avó morou na Jaguaribara Antiga e me falava muito de vocês, ele ouvia espantado. Sim, a Linda, a moça me desculpe o jeito, mas tu é igualzinha ela, eu me assombrei um pouco, com a visagem sua, chegando aqui na minha venda. Vim conhecer a terra da minha avó, prometi a ela, isso também, fui ver a cidade desafundada, que estão chamando, muita tristeza, e dona Joana? Não chegou do trabalho ainda, a Casa da Memória só fecha de tardezinha. Ficou de passar mais tarde ou amanhã cedo antes de voltar para Fortaleza. Quem? A neta da Linda, que chama Lindalva também, e dá muita parença da avó. E ela queria o quê? Joana passou pelo balcão, andando devagar, sentindo os passos. Parou e 62
escorou os braços nas paredes opostas do corredor, como se estivessem em tempo de desabar, não ela. Mariano viu. Joana voltou a caminhar, abriu a geladeira e tomou um copo d’água. Cliente pediu uma dose com um quarto de tangerina, Mariano se virou. Da cozinha, o arrastado de uma cadeira e silêncio. Silêncio, levantem as carteiras ao invés de arrastar, mandava a professora na divisão da turma em grupos. Anita, Mariano, Linda e Joana, tinham que escrever uma redação sobre a ida embora para a Cidade Nova. Preencheu meu disparate, Joana? Vamos fazer o dever, Linda. Obrigação, o dever, a mudança. Faço nada, expulsar nós daqui para inundar? A cidade nova vai ser boa, Linda, a mãe e o pai vão ganhar casa nossa. Pois eu penso que não é bom deixar a terra assim. Meu pai e minha mãe também não querem ir, Mariano disse, mas fazer o quê? O povo deles contra um povo maior e de maior poder. A cidade que vai se sacrificar para salvar o sertão da ira da seca. Jaguaribara, afogada heroína! Os marcos seriam as ruínas, até do monumento ao outro herói, Tristão, profecia da tristeza grande de um povo encurralado a viver em outro canto, plano planejado e executado. Morreu-se um pouco, cada um habitante. O que que a gente pode fazer?, Anita disse. Só falta você preencher, traz amanhã, Joana? O Castanhão vai trazer água para não faltar, Joana começou a escrever. A gente não vai ter mais o rio passando bem dizer atrás de casa, vou sentir falta do banho no rio, tu não? No outro dia de manhã, Linda disse para Joana e Mariano, o pai tinha decidido ir embora, mas não era para a Cidade Nova, era para mais longe, logo de uma vez, a Capital, se era para sair. Os três se deram as mãos, Joana chorou, Mariano segurou o choro. Linda abaixou a cabeça e viu as sombras dos três formarem uma só figura, os pés descalços no chão. Soltou a mão deles e carregou sua parte da sombra. É como Jaguaribara pode não morrer de uma vez, no meu contar, ela dizia, e qualquer dia você vai lá, Lindalva, dizem que a cidade aparece quando tem seca, vai lá e essas histórias que te conto, elas viram um pouco suas também. Por que que ela nunca quis voltar? Leite escumoso no xicrão de Joana, café fumegava dos outros dois. Ela tinha vontade, Lindalva disse. Joana olhava toda hora para a porta da cozinha, estranhando o arranjo da manhã. Mariano tomou um gole do café, quente demais. Bateram na porta da venda. A moça me dá licença. Ficaram as duas, e Lindalva observava curiosa as escapadelas do olhar de dona Joana. Eu trouxe uma coisa para a senhora, prometi a minha avó, isso também. E tirou da bolsa de tecido um caderno pequeno de arame desemcapado e entortado, capa de papelão mole. Joana viu o caderno na mão de Linda, ou, de Lindalva, se levantou de repente e foi para o quarto. Mariano ouviu as duas bandas da porta bater.
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Mariano ouviu as duas bandas da porta bater. A viagem para ver a estação de Juatama tinha que ficar segredo. Mariano leva nós duas na mobilete do pai dele, Linda inventou. Mas é perigoso e longe, Joana e Mariano disseram. Desculpa foi de passar o domingo no Velame e depois do banho no açude iam para um aniversário no Poço Comprido. De uma colega da escola, a Anita, pai, posso pegar a mobilete? Convenceram Anita a entrar na roda, com promessa de levá-la na próxima vez. Juntaram moedas um mês, para a gasolina. Joana levou bolacha d’água e mariola de lanche, Linda levou uma garrafa d’água. Isso vai acabar em pisa grande, Joana disse. Tu nem trouxe meu disparate? Joana não tinha esquecido, é que não tinha preenchido. Só falta você, número 15. Ou tinha, faltavam as perguntas 8, 9 e 10, as últimas, Você gosta de alguém? Diga uma característica da pessoa que você gosta, Você acha que essa pessoa gosta de você também? Até eu já respondi, Mariano disse. Sim, rosto moreno, sim, Joana lembrava as respostas dele e sabia. Olhou para ele, depois para Linda. Ainda dá tempo de voltar. Linda se desentalou da bolacha com um gole direto da boca da garrafa, pegou Joana pelo pulso, e montaram na mobilete. Mariano não via graça em ver estação sem trem, mas Joana estava com ele, encostando as pernas nele, os braços arrodeando a cintura. Linda vinha na ponta da garupa, os cabelos de Joana chuviscando no seu rosto. Os três se equilibravam na moto magrela, que bambeava sem jeito na estrada, querendo, parecia, sair do prumo. Era perto de meio-dia quando chegaram em Juatama. Mariano cuidou de procurar um lugar para botar gasolina. Joana e Linda caminharam devagar para a estação, percorrendo o trilho que fazia tempo o trem passava rareado e nem gente levava mais. Prédio miúdo, de pouco vão, rosa desbotado da meia altura para cima. Para baixo, uma faixa cinza de reboco, mordaça no rosto de que as duas janelas eram os olhos tristes. O telhado transbordava bem depois das paredes e derramava boa sombra sobre o lado virado para o trilho. Cacos de telhas e de sol no piso de cimento trincado. Nossa casa vai ficar sozinha desse jeito quando a gente sair, Linda disse, ou pior, se derrubarem como estão dizendo. Linda, Joana disse, mas Linda empurrava as portas. Uma fechada, uma aberta. Um quartinho, duas janelinhas altas com buracos na madeira. Linda entrou, Joana seguiu, fechando a porta, mas uma folha rangeu de volta. Devia ser nesse banco que o povo esperava o trem chegar ou partir, Joana disse e se sentou. Não havia mais espera, tinha passado o tempo do trem. A estação, as estações ficaram contas de um terço perdido no solo duro, tronco abandonado de norte ao sul do Ceará. Férrea é a fé do sertanejo. Lindalva entrou, fechando a porta, mas uma folha rangeu de volta. Você devolveu esse disparate no dia que minha avó partiu, só no dia que minha avó partiu, Lindalva disse. Joana sentada na beirada da cama. Linda sentou no banco ao lado de Joana. Não queria ir para 64
Fortaleza, ela disse, mas meu pai falou que crescer era saber por barragem nas vontades, sabe quando tem o cai-no-poço? Virou-se para ficar de frente para Joana e pediu que ela fizesse o mesmo. Vamos brincar, nós duas? Não dá certo só nós duas, Joana disse. A gente fecha os olhos com as mãos, conta até três e fala o que escolheu, ao mesmo tempo, e sem abrir os olhos a gente faz o que escolheu. Sim, pingos dourados na pele, a última deixou em branco. Um abraço que não queria fim. Linda!, chamou o pai. Ela entrou no carro, ficou de joelhos no banco de trás para ver Joana além do vidro, até a poeira cobrir tudo. Sentou-se no banco, o rosto contra o caderno. Ela abriu o disparate, ao lado do 15, Joana. Virou as páginas sem se importar para as primeiras perguntas, 8, sim, 9, pingos dourados na pele, 10, em branco. Virou a folha para ter certeza que não tinha a resposta, não tinha. Você deixou a última em branco para minha avó responder? Ela respondeu? Quando a poeira assentou, o carro tinha sumido. Joana correu para o rio, mergulhou e nadou até a outra margem. Linda não estava mais no meio da travessia. Nadou de volta e correu para casa, chorando o rio. A mãe pediu ajuda, para empacotar as coisas. No outro dia, a mesa estava na frente de casa com as cadeiras em cima, Joana na porta. O caminhão carregado, chegou o ônibus e entraram os vizinhos, Joana na porta. Ia ser bom, ela queria pensar, mas era um passo pesado, sem saber se as lembranças iam trazer ou levar saudade. Esperando uma resposta de Lindalva, ela ainda não sabia. Podia ser as duas coisas, um indo e vindo, feito as ruínas, feito as águas. Lindalva sentou na beirada da cama. Mariano foi até a cozinha buscar a xícara inacabada de café, as cadeiras vazias, voltou pelo corredor. Ela respondeu, Lindalva disse. Mariano ouviu e parou. Mariano encostou a mobilete no oitão, as duas janelas, uma porta, Joana entrava na outra. Um, dois, Mariano ouviu e parou. Três, beijo na boca, sussurrados. Descobriram os olhos, uma esperando que a outra trouxesse para mais perto o rosto. E o coração. Joana fechou os olhos e sentiu Linda colher suas mãos. Joana olhou para Lindalva, o caderno nas mãos sobre as pernas. Ela me pediu para te entregar, tem uma resposta aqui. Joana abriu o caderno e disparou até a última pergunta, segurava na mão de Lindalva. Uma sombra cruzou a fresta da porta da estação, Linda soltou as mãos de Joana e se levantou. Você acha que a pessoa que eu gosto gosta de mim? Invenção de Linda ou verdade de Linda? Sim. Joana e Lindalva se olharam. Mariano viu pela fresta o beijo. As duas saíram do quarto da estação e logo os três estavam no caminho de volta para casa. Linda foi embora. Joana entrou no ônibus e Jaguaribara era uma cidade velha. Na Cidade Nova, cresceram as distâncias, entre as casas, entre as pessoas, menos entre Joana e Mariano. Primeiro beijo, sem cai-no-poço, namoro, casamento, filhos, netos. De manhã, 65
deixavam as cadeiras da mesa vazias e merendavam no batente da porta dos fundos. Vislumbravam muito longe a Velha Jaguaribara. As duas saíram do quarto, encontraram Mariano sentado no batente da porta da cozinha. Lindalva se despediu, percorreu o corredor e saiu pela frente. Joana sentou no chão ao lado de Mariano. Parece que vai chover, ele disse.
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Estação final Barbie Furtado — Moço! — Balancei os braços o mais alto que consegui, quase na cara do senhor que passava, mas ele não estava nem aí. A maioria das pessoas que corriam de um lado para o outro, no sol quente do meio dia, não se importavam com alguém como eu. Passavam direto, como se não me vissem ali, como faziam com a maioria dos pedintes. Não tinham coragem de olhar nos olhos. Talvez pela vergonha, lá no fundo, de não fazer nada para ajudar. Talvez porque sabiam que, fosse por um infortúnio, uma virada na vida, poderiam ser eles naquele lugar. Mas tudo que eu queria era informação. Eu nem sabia há quanto tempo estava andando, às vezes pareciam horas, outras, séculos, tentando fazer com que alguém simplesmente falasse comigo. De vez em quando, uma criança batia o olho, sorria para mim, e seguia seu caminho. Os adultos raramente faziam o mesmo. Era como se eu nem existisse. — Senhora, pode me ajudar? — Tentei mais uma vez, com uma velha que já estava mais para lá do que para cá. Nem sei como ela ainda se mantinha de pé, com todos os anos em suas costas, mas andava com a pressa de todos. Continuei meu caminho, olhando por todos os lados. Onde eles estavam? Com certeza, mamãe estaria preocupada. Papai estaria fora de si, não só de preocupação, mas porque eu o ajudava tanto, sem falar em... Notei quando os olhos da jovem encontraram os meus. Seus cabelos cacheados, sua saia longa e o sorriso no rosto me disseram que era diferente dos outros. Ela se aproximou de mim, e acho que o que senti foi o coração bater mais forte. Há quanto tempo não falavam comigo? Há quanto tempo eu não era ninguém? Acho que desde que tinha chegado, descido do trem e logo me perdido da minha família. — Você pode me ajudar? — perguntei, assim que ela chegou perto o suficiente. — O que você precisa? — Ela se abaixou para me olhar nos olhos. Minha mãe costumava fazer isso também, mas quando ia brigar comigo. — Achar minha família. Desci do trem e me perdi deles. Acho que eu saí andando — falei, meio envergonhado. Eu sabia que não devia sair de perto dos meus pais, mas tinha feito isso mesmo assim. — Devem estar procurando por mim.
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— Você andou da estação até aqui? — Ela pareceu surpresa. — Não tem estação aqui por perto — ela disse. — Sabe qual era o nome? — Eu... — Fechei os olhos, tentando lembrar, mas não conseguia. — Eu esqueci. Desculpa. — Deve ser a da Parangaba — ela falou. — É a mais perto daqui. Perto assim, né? — Ela balançou a cabeça. — Você tem o quê? Oito anos? — Tenho dez — falei com orgulho. — Eu sou mais forte do que pareço. — Se ela soubesse tudo que eu conseguia fazer, mesmo sendo meio magrelo. — Ai, menino, eu não sei o que fazer. — Ela suspirou. — Eu tenho uma prova agora, não posso ir te deixar lá. — Eu posso ir sozinho. Eu tô andando por aqui faz é tempo. — Certo, certo — ela estava tentando se acalmar. — Você faz assim, você vai naquela avenida ali. — Ela apontou para uma rua bem grande, de umas quatro faixas. — Atravessa ela e pega o ônibus “Parangaba/Papicu”. Aí você vai até o fim da linha. Entendeu? — Eu vou até o fim da linha — repeti. — Isso — a garota falou. — E aí? — perguntei. — Aí você vai chegar no terminal e a estação é bem do lado. Você disse que seus pais tão lá, né? — Sim — falei, mas na verdade, eu não tinha tanta certeza assim. Talvez eles tivessem cansado de me esperar e ido embora. A menina tinha dito que eu havia andado bastante. Talvez já fizesse muito tempo que eu tinha sumido. Senti frio na espinha só de pensar, e acho que ela também, porque a vi tremendo junto comigo. — Tá bom, tá bom. — Ela respirou fundo. — Eu não gosto de te deixar aqui sozinho. Faz assim, quando tu chegar no ônibus, tu senta do lado do cobrador, tá bom? Aí lá tu pede pra um dos guardas te levar na estação, pode ser? Mas tem que ser a estação do trem, não a do VLT, entendeu? Se tu falar só estação, eles podem te levar pro lugar errado. — Tá — falei —, mas o que é VLT? — Ah, sim. São esses negócios que andam nesses trilhos, ó. — Ela apontou pra uma ponte do outro lado da rua. — São meio ônibus e meio trem. Mas ainda estão em fase de teste. Não dá pra confiar. — Entendi. — Mas eu não tinha entendido muito bem.
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— É melhor pegar o ônibus mesmo pra garantir que tu chegue bem e o mais rápido possível. Eu nem lembrava a última vez que haviam se preocupado comigo desse jeito, mesmo em casa. Com tantas dificuldades, eu sempre tinha que ajudar, não podia parecer menino fraco, que precisa de ajuda. Meus pais achavam que eu era tão forte quanto eu fingia ser. — Certo — falei. — Não precisa se preocupar comigo não. Eu sempre dou um jeito. — Ai, criatura. — Ela olhou para o relógio, pelo que parecia ser a décima vez. Eu sabia que ela não queria me deixar sozinho. — Vou fazer assim. Eu vou te levar na parada de ônibus, pelo menos, pode ser? — Não precisa não, você já ajudou bastante! — falei. — É melhor assim — ela disse, balançando a cabeça. — Você já tem o cartão? — Que cartão? — Deve ficar com seus pais, né? — Ela sorriu. — Acho que você não tem costume de andar de ônibus sozinho. — Tenho não — falei. — Mas que cartão? — Ah, é que a maioria dos ônibus agora não aceita mais dinheiro, só cartão, acredita? Quem ainda não tem, às vezes tem que esperar por horas até que passe um que aceite moeda. Eles dizem que é pra deixar as coisas mais simples, mas nessa brincadeira eu já perdi uma prova. — Não me parece mais simples — concordei. — E eu não quero que você falte outra prova por minha causa. Eu confesso que estava feliz de alguém estar me dando atenção e me ajudando pela primeira vez em não sei quanto tempo. Mas eu não queria atrapalhar a vida de ninguém. Eu só queria voltar até a estação e achar minha família. A menina tentou pegar a minha mão, mas eu não deixei. Eu não era mais nem criança para andar carregado por aí. Quando eu falei isso para ela, ela sorriu. — A gente faz assim — ela disse. — Na banquinha lá do lado vende o cartão. Eu compro, te dou, e tu promete ficar quietinho na parada até o ônibus passar, tá certo? — Tá bom — falei, atravessando a rua um pouco atrás dela. — Lembra o nome do ônibus? — ela checou comigo. — Parangaba/Papicu. — Eu lembrava sim. — E quando você entrar no ônibus, vai fazer o que? — ela perguntou, olhando novamente para o relógio, andando mais apressada. 69
— Vou sentar perto do cobrador. — Isso. Chegamos do outro lado da rua e fomos direto para uma banquinha de revistas. Ela conversou com o rapaz um momento, e depois pegou um cartão. — Tá aqui o seu cartão — ela disse. — Depois de sentar perto do cobrador, você vai fazer o quê? Parei um minuto para pensar. — Vou até o fim da linha. Aí eu vou achar meus pais. — Dei um sorriso, e ela sorriu de volta. — E quando chegar lá? — Vou pedir para o guarda me levar até a estação — confirmei. — Exato. — E se ele me levar para o lugar errado? — fiquei um pouco preocupado. — Essa é a estação final, não tem mais para onde ir. Só tem que dizer a ele que é a estação do trem e não a do... — VLT — eu completei, bem animado. — Tudo bem, acho que você está pronto. — Ela me entregou o cartão, mas, quando fui pegar, ele caiu no chão. — Desculpa — falei, tentando apanhar o negócio, mas parecia que estava grudado. Parei por um momento, e quando vi, ela estava abaixada, junto comigo, olhando nos meus olhos, seu olhar um pouco triste e muito confuso. — Desculpa — repeti. Eu não sabia o que eu tinha feito de errado, mas alguma coisa não estava direita. — Não... — ela gaguejou. Não tem problema. — Olha... acho... — Ela respirou fundo. Pode deixar o cartão comigo. Basta entrar no ônibus e ir. Você não precisa de cartão. — Porque eu sou criança? — perguntei. Ela parou por um bom momento. E depois fez que sim com a cabeça. — É. Não vai incomodar as pessoas. — Ah, tudo bem. Muito obrigado pela sua ajuda, viu? Eu vou fazer tudo direitinho como a gente combinou. — Eu sorri para ela, mas ela tinha o olhar distante, e quando sorriu de volta, seu sorriso era triste. Acho que ela já tinha perdido a prova. — Obrigado de verdade... como é seu nome mesmo? — Carol — ela disse. 70
— Desculpa ter atrapalhado a sua prova, Carol — falei, e ela balançou a cabeça. — Não tem problema. — O sorriso foi um pouco mais verdadeiro dessa vez. — E o seu? — O meu o quê? — O seu nome? Qual é? — Carol perguntou. — Ah. Serafim.
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