O jardim de Itatira

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O jardim de Itatira

Cupertino Freitas


Descendentes de quilombolas, os pouquíssimos e paupérrimos negros amontoavam-se em casebres de pau-a-pique nas franjas da cidade. A exceção era a família de Chaguinha, que embora pobre, morava num quarteirão de casas ajardinadas na Rua da Paz, onde residiam as famílias abastadas de Dilermândia. Última remanescente dos tempos em que a rua era ainda um caminho de terra em direção ao cemitério, a casa resistira bravamente ao cerco de moradias suntuosas que ali se ergueram depois que a via foi pavimentada com pedras de paralelepípedo. Era modesta, mas tinha um jardim com flores vistosas e bem cuidadas que em nada deixava a desejar em relação aos jardins da vizinhança. Chaguinha e a irmã mais nova, Ceiça, lidavam cada uma a seu modo com o fato de serem as únicas negras naquela região nobre da cidade. Sabendo-se distintas das pessoas que as circundavam, encaravam a diferença com comportamentos opostos. Introspectiva, Ceiça falava pouco, raramente sorria e andava sempre olhando para baixo, sem tentar disfarçar a amargura. Tornara-se ainda mais pesarosa depois de um período trabalhando como doméstica em Fortaleza. Voltara de repente, alojando-se num quartinho de terra batida nos fundos da casa da irmã, ficando lá, arredia, quase sem por os pés na rua. Já Chaguinha, faxineira da clínica que ficava no quarteirão vizinho à sua casa, aparentava contentamento e até certa altivez, um mecanismo de defesa que a ajudava, não só a manter uma aura de pertencimento, como a disfarçar os maus tratos diários do marido, um mulato truculento e alcoólatra. Todos os dias, bem cedo, Chaguinha aguava as plantas e ia para a clínica de cabeça erguida, mesmo estando toda dolorida por ter sido mais uma vez açoitada pelo marido, que limpava fossas durante o dia, bebia à tardinha e arrumava confusão em casa à noite. Chaguinha sofria abusos de toda sorte. A violência meramente verbal ficara restrita aos primeiros anos de casamento. Há tempos levava empurrões, pontapés, cuspe na cara e bofetões. Quando a bebedeira era muita, o marido ficava completamente fora de si e começava a riscar as paredes da sala com um facão, 4


dizendo que daria sua alma ao cão se ele lhe desse muita riqueza. Depois partia para cima de Chaguinha e do filho mais velho, Benedito, com sangue nos olhos. Ceiça testemunhava silente o infortúnio da irmã e do sobrinho. Embora vivesse em conflito ferrenho com Benedito, o marido de Chaguinha nunca levantou a mão para Francisco, o filho mais novo. Francisco cresceu sendo poupado das cenas bárbaras de violência doméstica. Quando irrompiam as brigas, Chaguinha mandava-o para o quartinho da tia, onde ele se aninhava numa rede e enrolava a cabeça num lençol para abafar os gritos. De madrugada, quando as coisas se acalmavam, Francisco voltava para o seu canto, tendo cuidado para ver se pai, mãe e irmão estavam em suas redes. À medida que Benedito foi crescendo e ficando mais forte e atrevido, começou a defender a mãe, a se defender e a revidar as agressões do pai. O conflito familiar chegou ao ápice no dia em que Benedito fez treze anos: pai e filho atracaram-se de maneira brutal na hora do jantar e o menino só não foi esfaqueado porque conseguiu se desvencilhar e se esconder no banheiro, que ficava nos fundos, separado da casa, ao lado do quartinho de Ceiça. De manhã, Francisco soube pela mãe que Benedito tinha ido embora. Cinco casas adiante moravam um médico recém-chegado à cidade, com a esposa e Jeremias, o filho único do casal, garoto excêntrico e amedrontado, dois anos mais novo que Francisco. Ao contrário de Francisco, que mesmo com todo o desacerto familiar conseguia se divertir brincando com os outros meninos na rua, Jeremias vivia isolado, absorto em brincadeiras solitárias e esquisitas, fruto de uma imaginação fértil em meio a uma tranquilidade e silêncio perturbadores — depois de dois abortos espontâneos, sua mãe enfrentava uma gravidez de risco praticamente deitada, dormindo ou lendo, dando pouca atenção ao menino. Imerso em um ambiente sorumbático, restava a Jeremias ir para o quintal conversar com seu carneiro de estimação, ou empurrar caixas de creme dental vazias pela casa; caixas que ele preferia à vasta coleção de carrinhos de brinquedo. Em sua cabeça, eram ônibus que transportavam passageiros pelas ruas de Dilermândia, caminhos que ele traçara em sua mente e seguia à risca no assoalho da casa. Jeremias tinha vontade de levar seus ônibus até outras cidades, mas as caixas de papelão poderiam se rasgar pelas calçadas. O menino tentava explicar ao pai o

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mundo que criara: a pensão das estudantes da Escola Normal era Tauá, a clínica onde o pai trabalhava era Quixadá, a casa do prefeito era Icó, e assim por diante. Mesmo sem entender bem o que se passava na cabeça de Jeremias, o pai viu na vontade do filho uma oportunidade para ele se aventurar um pouco e finalmente ter contato com a vizinhança. Tanto que resolveu encomendar para o menino um ônibus de flandres para presenteá-lo no seu aniversário de seis anos. Maravilhado com o presente, Jeremias criou coragem de ir além das fronteiras de sua Dilermândia imaginária. Sem pedir licença, passou a adentrar as casas vizinhas empurrando o ônibus de flandres. Ficava especialmente à vontade na pensão das normalistas, todas muito simpáticas e atenciosas. Foi uma das moradoras da pensão que lhe disse que Fortaleza era uma cidade enorme, com muito burburinho e ônibus trafegando pra lá e pra cá. Jeremias concluiu que nenhuma casa poderia representar a capital — não havia casa assim tão grande. Depois de matutar um bocado, escolheu o prédio que seria a capital do estado: a igreja matriz! Pena que fosse tão longe — não tinha coragem de levar seu ônibus até lá. Jeremias se aventurava por todas as casas do quarteirão, só não ousava entrar na casa de Chaguinha; em sua imaginação, a cidade de Itatira. Não entrava, não por achar que era uma cidade pequena e sem atrativos, mas porque se pelava de medo dos moradores. Eram muito diferentes dos outros vizinhos. Uma vez ouviu o pai dizer que Benedito, filho mais velho de Chaguinha, havia fugido de casa porque apanhava muito do pai. Tinha receio que o mulato truculento lhe desse umas chineladas. Seu medo maior, porém, era de Francisco. Jeremias o via sempre perambulando pela rua com meninos mais velhos rodando pião, jogando bila e se danando. Achava que Francisco ia lhe bater e roubar seu ônibus, por isso quando estava empurrando o brinquedo pela calçada e via Francisco se aproximando, dava meia volta e se apressava para entrar em casa. Cada vez mais impossibilitada de cuidar do filho, a mãe de Jeremias disse ao marido que achava melhor contratarem uma babá. Agora que o menino ia estudar, precisava que alguém o levasse e trouxesse da escola, e que supervisionasse essas andanças dele pela vizinhança. Com seu jeito contemporizador, o pai de Jeremias aceitou a sugestão da esposa e perguntou à Chaguinha, na clínica, se ela não conhecia

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alguém que quisesse ser babá do seu filho. Chaguinha lhe disse que sua irmã Ceiça estava desempregada. Em sua conversa com a mãe de Jeremias, Ceiça foi taxativa: — Eu sempre trabalhei de cozinheira em casa de família. Cozinhei para várias autoridades em Fortaleza, na Canuto de Aguiar. Nunca fui babá, mas sei cuidar de criança porque ajudei minha irmã a criar os meninos dela. Eu dou conta de cuidar do Jeremias. O período de adaptação foi difícil. Claramente contrariado com a presença de uma estranha em casa, Jeremias não queria que Ceiça penteasse seus cabelos, vestisse o uniforme da escola, preparasse seu lanche e, principalmente, observasse suas brincadeiras. Ceiça ignorava os achaques do menino, imune às suas tentativas de intimidá-la. Só se irritou quando Jeremias descobriu seu ponto fraco: a cor da sua pele. Jeremias começou a implicar com a negritude da babá, chegando a arranhá-la com as unhas para saber se derramaria chocolate de seu corpo. Ceiça puxou o braço, visivelmente incomodada. — Menino ruim, eu vou arrancar essa sua pele branca para fazer um sutiã pra mim — disse, com olhar severo, enquanto fazia um gesto com os dedos indicadores em forma de cruz. Jeremias arregalou os olhos e se aquietou. Desde esse dia, toda vez que Ceiça se aproximava e fazia o gesto com os dedos, Jeremias corria alarmado. Empurrando seu ônibus de flandres pela sala da pensão das normalistas, Jeremias falou que não gostava da babá; ela queria fazer um sutiã com a sua pele. As moças acharam muita graça da conversa absurda do menino. Uma delas disse para ele parar de implicar com Ceiça. Ela era uma negra meio esdrúxula sim, mas estava tomando conta dele porque a mãe estava adoentada, então ele tinha que se comportar. — Ceiça, você é uma esdrúxula — passou a dizer Jeremias, toda vez que a babá o forçava a fazer algo que ele não queria. Ceiça respondia fazendo a cruz com os dedos e Jeremias saia correndo. De tanto ser usado, o gesto com os dedos foi perdendo o tom ameaçador e passou a funcionar mais como um sinal para Jeremias ficar quieto. Aos poucos o

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menino foi se acostumando e se abrindo à presença daquela intrusa que cuidava de todas as suas necessidades. — Ceiça, por que o Francisco não vai pra escola? — perguntou Jeremias, enquanto Ceiça abotoava a blusa do seu uniforme. — Porque lá só tem gente branca e ruim como você. — Ruim é você, sua esdrúxula! — É você! — retrucou Ceiça, fazendo cócegas no menino e em seguida o gesto com os dedos, sorrindo. Um feijão com sal além do ponto foi o estopim para mais uma noite de violência na casa de Chaguinha. Ceiça tratou logo de tirar Francisco da sala; ele não chegou a ver o soco certeiro que o pai desferiu contra o rosto da mãe, quebrando-lhe dois dentes. Sangrando e se contorcendo de dor, Chaguinha foi para seu quarto, deixando o marido sozinho na sala falando impropérios. Quando finalmente cessaram os gritos, Ceiça pegou a cópia da chave da clínica, que ficava em poder da irmã, e saiu de casa. Voltou com um frasco de éter e uma pedra de paralelepípedo. Primeiro foi ao seu quartinho. Francisco estava lá, todo encolhido, dormindo com um lençol cobrindo a cabeça. Ceiça umedeceu o lençol com éter e colocou sobre o nariz do sobrinho. Depois trancou a porta pelo lado de fora e entrou na casa da irmã pelos fundos. Abriu a porta do quarto do casal e viu Chaguinha ressonando dentro da rede manchada de sangue. Fechou a porta e ficou parada na sala, olhando o cunhado roncando no sofá encardido, repleta de ódio. De manhã bem cedo, Jeremias saiu empurrando seu ônibus pela calçada e de longe, viu Ceiça ajeitando o jardim da casa de Chaguinha com uma enxada e conversando com Francisco, que comia um pedaço de pão encostado à porta de entrada. — Tia, a mãe vai trabalhar hoje não? — perguntou Francisco. — Deixe sua mãe dormir que ela está com muita dor de dente. Francisco, você acabou com as plantas de sua mãe, rapaz. Como é que você vem brincar de bila logo no jardim? — Eu mesmo não, tia, nem nesse jardim eu brinco — retrucou Francisco, entrando em casa. De onde estava Jeremias gritou: 8


— Ei, Ceiça, não esqueça que você tem que me levar para cortar o cabelo. Ceiça revirou os olhos e gritou de volta. — Eu já sei! Volte pra sua casa que eu vou já, vou só terminar de ajeitar esse jardim porque andaram chafurdando tudo por aqui. Ceiça levou Jeremias para cortar o cabelo e na volta o menino foi conversar com seu carneiro. Passou o resto da manhã entretido no quintal. Depois do almoço Ceiça levou Jeremias para a escola, como de costume. Os dois cruzaram com Francisco, que estava na rua jogando bila com um amigo. — Tia, a boca da mãe está muito inchada — disse Francisco. — Depois que eu deixar o Jeremias eu vou ver como ela está. — E cadê o pai, tia? Eu não vi o pai hoje. — Seu pai foi pra Fortaleza atrás do Benedito. — E o pai viajou sem me avisar? — questionou Francisco, visivelmente magoado. Ceiça e Jeremias seguiram caminho. Alguns passos adiante, Jeremias olhou para trás e viu Francisco chorando. Aquela imagem ficou em sua cabeça o resto do dia. Na manhã seguinte Jeremias tomou seu mingau e foi ao quintal conversar com o carneiro: — Eu vou com meu ônibus até Fortaleza. Vou pelo fio-de-pedra até Icó, depois dobro e vou reto até chegar lá. Não tem como eu errar. Mas olhe, não diga pra ninguém. Ofegante e determinado, Jeremias pegou seu ônibus e saiu pela calçada até a esquina da Rua da Paz com a Rua da Matriz. Hesitou e olhou para trás. Viu ao longe o pai saindo de casa para dar expediente na clínica. Ficou a observá-lo; queria tanto que o pai o visse ali, corajoso, pronto para ir sozinho a um lugar tão longe. Depois que o pai entrou na clínica, Jeremias respirou fundo e seguiu caminho pela beira da calçada. Os transeuntes não tinham noção do tamanho de sua aventura. Era apenas mais um menino brincando na rua como tantos outros. Quanto mais distante de casa, mais o medo de se afastar do pai e da mãe era vencido. De repente estava lá, diante da torre da igreja, imponente, a exercer seu poder sobre a cidade.

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Jeremias anunciou aos passageiros do ônibus que haviam chegado à capital, lugar de muito trânsito e novidades. Agachado, empurrando seu brinquedo, adentrou a igreja de forma pausada, como que seguindo o ritmo de um trânsito pesado. Olhando sempre mais para o chão do que em volta, Jeremias viu um par de sapatos desgastados e depois as pernas negras de uma mulher ajoelhada com as mãos para cima em posição de súplica. Ficou a observar aquela senhora, extasiado. Era Chaguinha, aos pés de uma imagem, os olhos marejados, a boca inchada, a expressão de puro sofrimento. Jeremias tocou a canela de Chaguinha, que afastou a perna num reflexo. — Jeremias? O que você está fazendo aqui? — perguntou a mulher, aflita. — Quem é esse? — perguntou o menino, apontando para a imagem do santo. — É São Benedito — respondeu Chaguinha. — E o que você está conversando com ele? — Estou pedindo que ele ilumine meus passos. Pode pedir o que quiser que ele atende o pedido. Jeremias ficou quieto observando a imagem do santo e o olhar da mulher. Era um olhar bondoso como o de sua mãe, admirando a imagem do filho que tinha ido embora. Ficou com muita pena por ele estar parado ali no altar, sem dizer uma palavra, só olhando para ela, com um semblante abatido. Chaguinha terminou sua oração, pegou Jeremias pela mão e disse que sua mãe devia estar preocupada. Ela ia para a clínica e o deixaria em casa. No caminho encontraram Francisco com uns amigos. Jeremias apertou a mão de Chaguinha mais forte. — Mãe, eu vou pescar no açude. Peguei um punhado de farinha — disse Francisco. — Traga uma traíra ou um curimatã pra gente almoçar amanhã — disse Chaguinha, laconicamente. Chaguinha bateu palmas diante da casa de Jeremias. Ceiça veio ao portão. As irmãs apenas se entreolharam; não trocaram palavra. Ceiça pegou o menino pelo braço, enfurecida, e entrou em casa. — Onde é que você se meteu? Sua mãe andou perguntando por você e eu disse que você estava no quintal brincando com o carneiro. Não faça mais isso, Jeremias!

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Ceiça levou o menino à presença da mãe acamada. Disse que ele estava ficando muito afoito, não parava mais quieto, vivia nas casas alheias. A mãe pediu ao menino para não dar trabalho à babá, acariciou sua cabeça e tornou a dormir. Ceiça levou Jeremias para a cozinha e lhe deu um copo de laranjada. — Não suma que daqui a pouco você tem que tomar banho e almoçar para ir pra escola. Jeremias fez uma careta para a babá, que respondeu com o gesto da cruz com os dedos. Jeremias tomou dois goles do refresco e saiu em disparada com seu ônibus. Orgulhoso de si mesmo por ter tido coragem de ir sozinho até a igreja matriz, estava resoluto a levar o ônibus a outro lugar que nunca tinha ido: Itatira. Ao aproximar-se da casa de Chaguinha, porém, Jeremias titubeou, com receio de que Francisco voltasse da pescaria e lhe encontrasse dentro de casa. Resolveu então dar uma volta só na entrada da cidade, o jardim. — Estamos entrando em Itatira. Hoje vamos fazer um passeio pelo parque florestal da cidade. Excitado, Jeremias começou a empurrar o ônibus pela terra úmida do jardim como se estivesse atravessando uma perigosa estrada carroçável. De repente, o ônibus ficou preso na areia fofa. Jeremias anunciou aos passageiros imaginários: — Senhoras e senhores, vamos descer. O ônibus atolou; vamos ter que desatolar. Escavando com as mãos, o menino tocou no que achou ser uma pedra. Tirou um pouco mais de areia ao redor para ver o tamanho e arregalou os olhos de pavor ao perceber que não era uma pedra, era a cabeça de um homem enterrado, um homem que ele conhecia e temia. Jeremias tirou a mão e ficou olhando, em completo estado de choque, aquele rosto desfigurado. De repente, foi violentamente puxado pelo braço. — Eu falei para você não sumir! — disse Ceiça, enfurecida. As horas naquele quartinho foram intermináveis. À medida que o sol da tarde baixava e ia deixando de iluminar os tijolos da parede, o ambiente tornava-se mais ameaçador. Amordaçado e amarrado num canto do quarto a tarde toda, período em que deveria estar na escola, Jeremias começou a se tremer e a entrar em estado de torpor. As sensações que o envolviam, a falta da mãe e do pai, o medo de nunca ser achado e a confusão mental eram reais. Não tinha como fugir dali. Ninguém ia lhe 11


ouvir, ninguém sabia que ele tinha desaparecido, ele ia morrer. Estava com fome, com sede, com vontade de fazer xixi. Sem conseguir mais segurar o xixi, Jeremias urinou nas calças. E chorou muito. Até que caiu no sono de novo. Acordou assustado com Ceiça abrindo a porta do quartinho. — Você estragou tudo metendo o bedelho onde não devia — disse Ceiça, enquanto tirava a mordaça da boca do menino e lhe dava um copo d’água. — Eu estou dodói — disse Jeremias, choramingando. Ceiça tocou em seu pescoço e percebeu que o menino estava febril. — Não chore! Se você chorar eu juro que arranco mesmo sua pele para fazer um sutiã. Ceiça fez o gesto da cruz com os dedos e deixou o menino sozinho no quartinho. Completamente atordoada, ficou zanzando pelo jardim sem saber o que fazer. — Como é que eu vou resolver isso, meu Deus? Enquanto guardava uns peixes na velha geladeira, Francisco percebeu a inquietação da tia no jardim. Ouviu uma tosse abafada e instintivamente foi até o quartinho dos fundos. A porta estava trancada. Ouviu os passos da tia entrando em casa e se escondeu no banheiro. Ceiça entrou no quartinho e umedeceu um lençol com éter. — Vou dizer pra sua mãe que você sumiu brincando com o ônibus. — Eu estou com medo, Ceiça — disse Jeremias, choramingando. — Você fique bem quietinho aí! Não chore e não tente escapar senão você vai me deixar nervosa e aí eu arranco mesmo a sua pele. Ceiça amordaçou Jeremias, colocou o lençol umedecido com éter em seu nariz e o menino desfaleceu. Depois que a tia partiu, Francisco saiu do banheiro, arrombou a porta do quartinho e viu Jeremias desacordado. — Acorde Jeremias! — disse Francisco, enquanto tirava a mordaça do menino. Jeremias acordou atordoado. — Seu pai está debaixo da terra, no jardim de Itatira — disse, antes de desabar no choro.

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Dias depois, Jeremias saiu empurrando seu ônibus pela calçada com destino expresso: Itatira. Francisco estava sentado na mureta da casa, com expressão desolada. — Francisco, vamos comigo até Fortaleza? — O quê? — Vamos! Deixo você ir empurrando o ônibus. Os dois partiram acelerados, rumo à igreja matriz, revezando-se com o brinquedo. Uma vez na igreja, Jeremias apontou para a imagem de São Benedito. — Benedito agora é santo. Pode pedir o que quiser. Os meninos ficaram a olhar para a imagem por alguns instantes, pensativos, mas o pároco da igreja aproximou-se com cara de poucos amigos e eles meteram o pé na carreira. Quando já estavam longe, Jeremias percebeu que tinha deixado o ônibus para trás. — Eu mesmo que não vou voltar lá pra pegar — disse. — Nem eu — disse Francisco, soltando uma gargalhada. Quando dobraram a esquina da Rua da Paz, Jeremias perguntou, em tom solene: — Você pediu alguma coisa para o santo? — Pedi que tia Ceiça saia logo da cadeia — disse Francisco discretamente, como se sentisse culpado pelo que havia pedido. — Ele vai atender seu pedido. O resto do caminho foi percorrido em silêncio. Quando Jeremias já ia abrindo o portão para entrar em casa, Francisco perguntou: — Você sabe jogar bila, Jeremias? — Não. — Pois vou lhe ensinar.

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