CEARÁ DE MILHO E MANDIOCA - Um tributo à culinária cearense

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Coletivo Delirantes


Fortaleza - 2021 Copyright by Coletivo Delirantes TODOS OS DIREITOS RESERVADOS Organização Cupertino Freitas Fotografias Camila Chaves

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .......................................................... 5 CANJICA DE OURO ...................................................... 9 CAFÉ COM PAMONHA .............................................. 21 PORQUE LÁ NÃO TEM CUSCUZ ............................. 34 AS PAZES COM O MILHO COZIDO E CONSIGO .. 46 LOUCA POR MUGUNZÁ............................................ 61 O BOLO DOS SONHOS .............................................. 74 FAROFA DOS DEUSES .............................................. 89 A REVOLTA DO PIRÃO............................................ 102 A RAINHA DA MACAXEIRA FRITA ...................... 113 MISSÃO: BOLO DE MACAXEIRA .......................... 126 ENROLADA NA TAPIOCA ....................................... 136 A VIDA POR UM BEIJU ........................................... 146

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APRESENTAÇÃO

O historiador Luís da Câmara Cascudo afirma em sua obra “A História da Alimentação no Brasil” que a experiência humana provém do binômio estômago e sexo. O sexo pode ser adiado ou sublimado, mas o estômago é imperioso,

inadiável

desde

o

primeiro

momento

extrauterino. Logo que nasce, o homem necessita de nutrição. E essa necessidade o acompanha a vida inteira, sendo fundamental para mantê-la. Os eventos relativos ao alimentar-se envolvem rituais de obtenção do que se pretende consumir — caça, criação, plantio e coleta —, seguidos por ritos de preparação, nos quais a comida passa muitas vezes por cozimento, sobre o fogo, aquecida na água, no calor das brasas, e o ato da refeição em si, sujeito a hábitos e protocolos, formando uma liturgia sociocultural que atravessa gerações. Com a antologia “Ceará de milho e mandioca – um tributo à culinária cearense” homenageamos o ato de comer como expressão de sociabilidade, de manifestação cultural e dos costumes de nosso povo. As narrativas têm como protagonistas alimentos largamente consumidos no 5


Estado do Ceará, à base de milho e de mandioca. As comidas de milho contempladas são cuscuz, pamonha, canjica, milho cozido, mugunzá e bolo de milho. As que têm como base a mandioca são farofa, tapioca, beiju, pirão, macaxeira frita e bolo de macaxeira. A coletânea é uma verdadeira celebração da nossa culinária, de saberes e fazeres transmitidos de geração em geração, constituindo-se, assim, num valoroso tributo literário às tradições alimentares cearenses. Os autores

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CANJICA DE OURO Adriano B. Espíndola Santos

Era o ano de 2015. O relógio marcava 18h10min. Um sino incógnito fez a reverência com a bendita chegada. Deslizando sobre a pista, que mais parecia um tapete, um legítimo Rolls-Royce abriu caminho, sendo prontamente guiado para a vaga presidencial, reservada às autoridades e aos donos da emissora. Marilza Diniz aportara, nos estúdios da televisão local, com roupa de gala, grã-fina qual uma rainha inglesa, anunciada pelas mãos do requintado Alfredo Bozzi. Naquela altura, com os anos que deixava correr e não mais contava, para não se sujeitar à dúvida do amanhã, a galardoada relutara ser acessório de um adereço. Alfredo, amigo de longa data, declarava, um pouco exaltado, que ela não era adereço coisíssima nenhuma; que a roupa era que a completava, e não o contrário. O chofer fora dispensado. Alfredo mesmo se prontificou a abrir a porta e pegar a sua mão divina, como dizia. Aproveitando o instante em que Marilza acenava para os jornalistas e espectadores, Alfredo ia ajustando a 9


roupa, para que, pensava, não prejudicasse a exibição da sua obra-prima, confeccionada a dedo, por longos seis meses, desde que madame recebera o anúncio da premiação. O acompanhante Alfredo a conduzia lindamente. Mostravam-se sincrônicos, bailando num caminhar sutil, como um belo casal de cisnes. Houve, no entanto, um ligeiro descuido, quando um fotógrafo se colocou entre os dois, sendo acossado pelos seguranças com tanta brutalidade que foi preciso a madame intervir: “Deixem o rapaz; ele só está tentando cumprir o seu trabalho”. Para se ter noção da distinção da mulher, de pronto os seguranças foram colocados de lado — não se sabe se algum superior os boicotou —, para, enfim, seguir o fluxo da beleza que comoveu o lugar. Faltando trinta minutos para subir ao palco, Marilza fora assaltada por um amor incomensurável, e despencou a chorar, para o desespero dos presentes, sobretudo de Alfredo. “Madame, não faça isso, pelo amor dos deuses! Já vossa alteza estará no palco, para o delírio dos convidados. Não pode desmanchar a maquiagem e o vestido belíssimo que lhe fiz”. Marilza simplesmente o ignorou e continuou a choramingar, perdida entre sonhos e lembranças, porque provara um digno quitute regional, 10


servido aos convidados de gala: um pote de canjica gourmet. *** Naquele pedaço de terra quem ditava os comandos era Quitéria. Não por obra de atrevimento ou braveza, mas por respeito inato, angariado a muito custo, na lida do campo, dia após dia, com a pequena Marilza nos braços de mãe zelosa. Quitéria poderia se afundar nas dores naturais de quem perde uma cria. Contudo, aguerrida como era, soube suplantar as desventuras com amor. Dalva, sua única filha, perdeu a vida num acidente de carro, quando voltava de uma colheita de algodão — o pau-de-arara tombou, guiado por um irresponsável beberrão que em toda oportunidade de passar em cidade próxima de onde se fazia a dita colheita, quedava provando todo tipo de pinga; desta feita dormiu ao volante, acabando com a sua vida e de mais seis, contando com a de Dalva. Ao saber da notícia, o marido desconsolado procurou refúgio em outras bandas; nunca mais deu notícias, ficando a menina Marilza, com apenas cinco anos, na guarda da avó Quitéria. 11


Para não cair em desgraça, Quitéria arranjou reforço nos dotes culinários. Juntou os poucos dinheiros guardados e, com a ajuda de Luzia, a vizinha, amiga de todas as horas, desandou a preparar comidas tradicionais para atender ao ávido público dos festejos locais. Fartavam-se, especialmente, em tempos de quadrilha e festa junina. Já era bastante conhecida a barraca de dona Quitéria, quando o coronel Belarmino encasquetou de contratá-la para ser a sua cozinheira particular. Forçou a corda até arrebentar, alegando que, se não aceitasse, seria obrigado a cassar a autorização para o funcionamento da barraca; que falaria, hora mais, hora menos, com o padre Libório e o delegado Demirval, para impedirem a sua participação em qualquer evento, inclusive, estaria sujeita a responder civilmente por qualquer irregularidade. Aí, o coronel pegou em seu ponto fraco. Lógico, sabia que a menina Marilza era os quereres da avó, e que, por força das circunstâncias, estava, bem dizer, irregular — não possuía, expressamente, a declaração do poder público para ficar com a neta. O engano, que a fazia crer, era de que o relatado documento fosse necessário. Não o era, de forma alguma. Seria prescindível ou, melhor, irrelevante lutar por algo que já possuía — era sua neta e todos sabiam; e isso deveria lhe bastar. Mas Quitéria, 12


pelos anos na roça de trabalho duro, não tivera tempo de estudar, não discernia letra alguma. Com parcos estudos, o velho coronel levou-a para onde queria, perto de suas vistas, e, assim, a menina teve de ir junto. *** Manhã de 23 de agosto de 1961, às 6h30min, Quitéria e Marilza rumaram para a Fazenda Bom Repouso. Lá, foram recepcionadas pelo próprio, o poderoso coronel Belarmino Siqueira. Ao passar os olhos nas aquisições — sim, era como se possuísse novas cabras ou vacas para o rebanho —, demorou-se ao mirar as curvas da mocinha Marilza. Quitéria estremeceu os ossos de horror. Ela sentia que era mau presságio, mas não podia, pelo menos ali, agir de outra forma. Logo o coronel despachou-a, mandando que o capataz, um caboclo conhecido pela fama de espezinhador e matador, de alcunha Meia-Noite, as dispusesse em suas acomodações. Falar em acomodações é extrema bondade, pois que, na verdade, mais parecia com curral abandonado. Da porta mesmo se via o rebuliço: panelas jogadas com resto de comida; duas cadeiras arrebentadas, que só teriam serventia para o fogareiro; uma pia suja de sangue, com 13


pescoços de galinha entupindo a passagem de água; e uma mísera cama, que, segundo Meia-Noite, era para os forasteiros passarem uma “bela noite de sono”. Quitéria, arrepiada, sem quaisquer meios, se pôs a ajeitar o alojamento, que ficava a meio quilômetro, pelo menos, da casa grande. Meia-Noite, antes de voltar aos “serviços urgentes”, disse que a distância era proposital, para que ninguém escutasse os rumores que porventura pudessem surgir ali, e para que se exercitassem na caminhada até a casa grande “para chegarem bem dispostas ao trabalho”. Marilza, desde que chegara, não abriu a boca, a não ser para soltar os murmúrios advindos do choro. A avó prometera que fariam de tudo para sumir dali o mais depressa possível. Mas os dias foram correndo, escassos, sem que houvesse uma luz. As primeiras noites passaram em claro, com medo de serem surpreendidas pelo olhar sedento de MeiaNoite, ou o arrebatamento do patrão, que gostava de pregar surpresas indesejadas. Quitéria notara a gravidade e, por isso, não largava a menina. Pôs a seguinte condição, para o espanto do patrão, logo no segundo dia: “Coroné, ficamos aqui, contanto que não me afaste de minha menina... Se não for atendida, me mato”. O coronel se 14


zangou com o afoitamento, compreendendo que já sabiam do paradeiro das servas; o padre e o delegado, inclusive, determinaram que não comprometesse a saúde das duas, porque eram conhecidas e benquistas na região. Fato bastante controverso, e que Quitéria usara a seu favor, era possuir à disposição, para qualquer hora do dia ou da noite, os ingredientes para preparar as melhores comidas. O patrão recomendara, com tenacidade, que Quitéria estivesse pronta para produzir o que precisasse para o consumo seu, de Marilza, e das pessoas de casa, principalmente para a soberba senhorinha Adalgisa Siqueira, a esposa do homem. Contando dois meses de trabalhos forçados, Quitéria recebeu ordens expressas e diretas de Adalgisa para que aprontasse um banquete, pois em uma semana receberiam as mais importantes figuras políticas da região. Nesse ínterim, além de alimentos tradicionais como arroz, feijão e carne seca, elaborou bastante canjica e mugunzá, aproveitando o excesso da colheita. Os chefes da região lambiam os beiços, como se estivessem num banquete em

casa real.

Elogiaram

tantas vezes,

notadamente a canjica, feita com milho novo, graúdo, apanhado na fazenda. Havia um modo diferencial no 15


preparo: Quitéria raspava o milho deixando uma textura leve do grão cozido e mole para que desmanchasse na boca. Marilza, que revezava com a avó nos tratos, se empanturrava com as sobras do caldo, ainda prestes a ir para o forno — ela sabia, como ninguém, o ponto, e indicava o momento exato de seguir para o cozimento. Nem mesmo Quitéria era capaz de adivinhar o abençoado ponto e confiava cegamente nos propósitos da astuta menina. Com a saída dos poderosos, Quitéria começou a limpar a cozinha, ágil, com receio de ter de varar a noite naquilo que durara já quase um dia. O coronel adentrou o recinto, com ares de animal que fareja a caça. Quitéria, que era de sentir avisos sobrenaturais, agarrou a menina. O coronel determinou que Marilza fosse ajudar a velha copeira na limpeza da sala. Marilza se agarrou mais à avó. O velho fez sugestão de puxá-la, quando Quitéria, por impulso, sacou a faca que limpava e colocou-a rente à garganta do sujeito. Ele se assombrou, jamais esperaria tal reação de uma subalterna franzina. Logo, revidou com um murro na faca, que a fez parar do outro lado da cozinha. “Se atreva, sinhá... Pensa que estou de brincadeira?! Não invente gracejos fora de hora, porque poderá sobrar para o seu bibelô!”. 16


Na mesma madrugada, aproveitando o ensejo da festança, Quitéria aprumou o burrinho desconjuntado e moribundo que dormia, invariavelmente, ao relento, perto do alojamento, catou as poucas roupas que tinham, preparou comidas, fez uma trouxa e rumou com a neta para a cidade, especificamente para a casa de Luzia. Esconderam-se lá durante a noite, Quitéria e Marilza, em meio à aflição da amiga, que temia uma rebordosa do coronel. “Se avexe não, minha amiga, não deixarei rastro. Pela manhã, cedinho, antes do galo cantar, eu e Marilza vamos pegar nosso rumo”. Dito e feito. Com os tostões guardados, arrumaram-se num velho pau-de-arara, tentando olvidar os prejuízos do passado que vitimaram a filha e mãe Dalva, e partiram para a cidade grande, Fortaleza. Bem chegaram, em que pese a admiração com a opulência e o medo de serem engolidas pelo concreto, conseguiram se arranjar com as irmãs de caridade, num convento que ficava próximo à conhecida Avenida Treze de Maio. Não tardou para Quitéria ser efetivada como cozinheira do lugar. Com o tempo, ganhou a confiança da madre superiora e refez a vida, completando a renda com a venda de canjica, de porta em porta. E, como era de se

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esperar, a canjica caiu nas graças dos vizinhos; depois, de clientes de outras freguesias. Com três anos morando em Fortaleza, teve a ajuda das irmãs para conseguir uma casinha no bairro do Benfica, estabelecendo-se ali, sem se desligar dos afazeres do convento. E Marilza, a mais querida, menina de fino trato, alcançou, com boas notas, uma vaga na prestigiada Escola Nossa Senhora das Graças, onde concluiu os estudos ginasiais. Enquanto estudava para o vestibular de Medicina da Universidade Federal do Ceará, vendia as canjicas na porta de escolas e faculdades, passando a ser conhecida nas redondezas como a menina da canjica de ouro. De fato, a massa e a pitada generosa de canela reluziam ao sol, dando a impressão, a quem a visse, de ser uma porção de ouro. Por insistência de Marilza a avó abriu um comércio no bairro, suprindo, de início, as famílias tradicionais que saíam de seus bairros para comer a iguaria – comparada aos famosos pastéis de Belém, o que rendera o incremento da marca Canjica de Ouro; nada mais digno. O sustento através da Canjica de Ouro possibilitou a formatura de Marilza, para, em seguida, com o estímulo da bonança e dos bons ventos, ser aprovada como médica

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em um hospital de referência para crianças em estado de desnutrição. *** As lágrimas de gratidão foram aplacadas ao subir as escadas para o palco principal. Marilza, sendo ovacionada de pé pelo público extasiado, lembrou-se do passado e, em suas palavras, ao receber o prêmio Sereia de Ouro, pelos serviços prestados às instituições carentes do sertão, declarou o seu amor às causas sociais; que não teria feito nada se não fosse pelo amor de dona Quitéria, sua avó; que em sua jornada nela se espelhou, pela determinação de não ceder às aventuras de nenhum senhorzinho nem se acomodar à casta irascível do coronelismo que há séculos oprime o Nordeste; que a ela dedicava o prêmio.

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CAFÉ COM PAMONHA Ana May Brasil

Ela chegou ao condomínio um ano depois da moradora ao lado e foi recebida amistosamente por esta. Ambas beiravam os 70 anos, moravam sozinhas e... nada mais em comum. Suas vidas foram diferentes desde o nascimento, continuavam sendo, e, certamente, seriam até suas mortes. Mas a vizinhança de andar em um edifício de apartamentos aproxima as mais diferentes personalidades e foi o que aconteceu. — A senhora é a nova moradora do 1902? — Exatamente. Meu nome é Sara. E o seu? — Arminda Maria de Sousa Barros, viúva do desembargador Barros. A senhora devia conhecê-lo de nome, foi presidente do Tribunal de Contas do Estado durante muitos anos. — Ah! Minha memória anda ruim. E pode tirar essa senhora antes do meu nome, viu? — Com sua licença, sim, e pode fazer o mesmo comigo. Bem, estou vendo que sua mudança ainda se completa. Seja bem-vinda e conte com meus préstimos. 21


Arminda entrou em casa apressada porque estava na hora do seu café da tarde. Não era mulher de vícios, mas este ela tinha, e fazia dele um momento especial. Deixou-se cair na poltrona em frente à televisão — sua companheira de todas as horas — e sorveu o café-feito-nahora acompanhado da pamonha que aprendera a fazer com sua avó. Estava impressionada com a nova moradora. Como podia uma senhora de idade daquele jeito? Calça legging justa demais, blusa regata, sandália havaiana e boné?! E a intimidade com os carregadores da mudança? Queria tanto ter uma vizinha amiga... Ia ficar atenta aos seus movimentos para saber se a amizade poderia surgir. Sara virou a chave do apartamento ensaiando um sorriso; havia achado a vizinha uma figura. Vestido de modelo antigo, porém chique para quem não pretendia sair de casa, calçados formais, bobs nos cabelos tingidos, pó compacto excessivo nas faces e batom vermelho nos lábios já afinados pelo tempo. Também observou sua voz pomposa, o olhar de cima para baixo que dirigiu aos operários que carregavam os móveis, e a menção desnecessária à importância que tivera o marido. Nos dias que se seguiram as novas vizinhas não se encontraram, porém ouviram sons característicos vindos 22


de cada moradia. Sara escutou a voz alta e empostada da vizinha

declamando

um

longo

poema

sobre

a

maternidade. Conseguiu captar essas características por causa de suas inúmeras repetições. Sem dúvida a vizinha era uma declamadora abnegada. Por sua vez, Arminda escutou, sem nenhum esforço, uma série de músicas de mesmo estilo, mas com intérpretes variados. O condomínio tinha como uma de suas regras de funcionamento que os zeladores diariamente, às 15 horas, começassem a recolher o lixo das moradias. Dessa forma os ocupantes de cada andar geralmente se encontravam, quando ouvindo o chamado do encarregado da coleta, abriam suas portas para a entrega do respectivo material. Em uma dessas ocasiões Arminda e Sara se avistaram e a conversação se estabeleceu: — Tenho percebido que você gosta muito de música, não é? — Puxa! Estou lhe incomodado com o som muito alto, né? — Absolutamente, ouço somente se estiver na minha cozinha, e vou pouco lá. Minha filha manda deixar minha alimentação diária desde que dispensei a criada, quando meu santo marido morreu.

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— Vou abaixar meu som. Achei legal você dizer santo marido, isso me surpreende porque já tive quatro e nenhum eu chamaria de santo. E deu uma gargalhada gostosa. A

vizinha

não

conseguiu

esconder

o

constrangimento com a íntima declaração e disse: —

Mas

o

meu

Arnoldo

era

um

homem

extraordinário. Quem sabe lhe conto toda a nossa história de amor... É belíssima! Sara até ficou curiosa sobre o que ela chamaria de belíssima história de amor, porém estava no horário de sua aula online de literatura e abreviou o papo. — Então vamos combinar um cafezinho e aí desfilamos nossos passados. Antes de encarar sua aula, Sara começou a lembrar dos parceiros mais duradouros que tivera: Cássio, o primeiríssimo, com quem se casara aos 16 anos e tivera seus dois filhos. Os irmãos Jânio e Jamil, que se tornaram inimigos por causa dela. Até hoje se sentia culpada por ter largado o Jânio, fugindo com o Jamil. E o Célio? Não queria pensar nele. Ainda lhe doía relembrar seu amor sexagenário. Ele era tudo de bom. Nem um pouquinho santo.

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A viúva, muito rígida com seus afazeres, reparou que estava na hora de listar os ingredientes que precisava comprar para as pamonhas que faria no dia seguinte. No supermercado pegava o básico: açúcar, sal, óleo, mas os demais componentes tinham que ser adquiridos no Mercado São Sebastião. Aprendera que a qualidade desses produtos era fundamental para sua receita exclusiva. Exigia o milho nem muito mole nem muito duro, e entre branquinho e amarelo; o coco raspado na hora para dali ser extraído o leite; e a manteiga da terra vinda do sertão onde nascera. Considerava-se uma autoridade em matéria de pamonha e desprezava as demais atividades de cozinha. Com o correr do tempo ela se habituou a levar pamonhas feitas na hora para a sua vizinha. Nessas ocasiões Sara a convidava a entrar para um papinho. Arminda não se sentia bem no ambiente. Primeiro, pelo odor esquisito (de fumaça?) que não sabia identificar. Segundo, porque achava o apartamento desarrumado e se incomodava com a decoração estapafúrdia: sofá, mesa e cadeiras de estilos diferentes, quadros de homens e mulheres despidos, cortinas horríveis de palhinha, livros espalhados por todo canto. Para completar, havia um cão, desses sem raça definida, sempre a querer cheirá-la. 25


Um dia foi a vez de seu apartamento ser visitado. De início Sara se assustou com a atmosfera da sala, porém foi se ligando no singular e se deleitou. Móveis antigos e ocupando todos os espaços, cortinas típicas de décadas atrás, de sedas finas, quiçá importadas, quadros horrendos que, depois soube, haviam sido pintados pelo falecido esposo e, incrível, bonecas de todos os tipos dispostas com esmero nos muitos assentos.

Não se

conteve e perguntou a razão daquele excesso. Todas presenteadas pelo ex-marido nos muitos aniversários dela em que estiveram juntos. Eram 49 bonecas! A moradora do 1901 levava uma vida muito sem gracinha. Sua única filha vinha vê-la uma vez por semana, porém se limitava a entregar as quentinhas com as refeições da mãe; às vezes nem entrava no apartamento. Nenhuma outra pessoa a visitava, a não ser alguns parentes do interior quando visitavam Fortaleza. Sua única saída certa de casa ocorria nas reuniões mensais do Rotary Club, que se acostumara a frequentar na companhia do consorte. Foram nesses encontros que ela desenvolvera seus dotes de declamadora. Desde que enviuvou dispensara uma antiga diarista e ela mesma cuidava do seu dia a dia. Contava com a ajuda da filha para compras e pagamentos e, uma vez por mês, 26


recebia uma faxineira. Ocupava seu tempo de forma organizada. Era viciada na programação televisiva, fazia treinamentos de declamação, rezava o terço diariamente e produzia suas pamonhas. Estas tinham uma feitura trabalhosa desde o descascar das espigas de milho, a quase fervura das palhas para garantir que não rachassem ao servirem de invólucros; a raspagem e moagem dos caroços; a separação e mistura dos ingredientes, medidos com o maior rigor. Acompanhar a fervura da massa já enrolada nas palhas também se fazia necessário, para não passarem do ponto. Em sua receita se recusava a acrescentar novos materiais como linguiça, queijos especiais e ovos, nas salgadas; e tipos variados de doces naquelas de viés adocicado. Entretanto, o passatempo preferido da viúva era com suas bonecas, os mimos de Arnoldo no passar do casamento. Não admitia que suas queridinhas usassem muito tempo a mesma vestimenta. Caprichava na confecção de roupas para elas. Começava pela primeira que ganhara, depois a segunda, e percorria todas elas, não se permitindo consumir mais que duas semanas em cada roupinha. Dessa maneira ficava garantido que todas elas trocassem de traje de três em três meses, mais ou menos.

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No apartamento ao lado o cotidiano mudava por completo. Para começar, sua residente não tinha nenhuma

disciplina

e

seus

compromissos

eram

comumente abandonados desde que algo a interessasse mais. Contava com uma auxiliar duas vezes por semana e graças a esta sua habitação se conservava aceitável de arrumação e limpeza. Mantinha uma alimentação vegana, que aprendera com Célio, sua última paixão, e ela mesma a preparava. Era a única atividade doméstica que executava. Fora isso, só leituras de ficção, cursos online, grupos de estudos de psicologia e um rol imenso de comunicação virtual: Facebook, Instagram, Youtube. Tudo isso sempre com o som nas alturas, ouvindo MPB. Arminda entrava em casa quando ouviu saírem do elevador Sara e um homem, de seus 40 anos, cabeludo e com fala atrapalhada. Não se conteve e ajustou seu olho direito no olho mágico. Não era a primeira vez que abelhudava entradas e saídas dos elevadores. Até se culpava por fazê-lo, mas agora se permitiu visualizar o final do bate-boca que acontecia. — Quer dizer que você não me quer morando aqui? — Só acho que precisa assumir sua vida. — Isso só funciona pra mim, né? Já amparou tantos machos... 28


Sara concentrou-se em virar a chave e empurrar o tal para dentro do apartamento. Adveio, então, uma completa ausência de sons. O suficiente para Arminda levantar as mais diversas hipóteses do que se passava no 1902. Será que ele a dopara? Ou a danada era quem havia conseguido a façanha? Também podiam estar embolados em práticas bem mais dóceis. Devia ser isso, não se admiraria com mais essa da vizinha. Depois de conduzido até o sofá da sala o homem foi se apagando e logo dormiu. Sara era acostumada àquelas cenas, ainda mais com cerveja na parada. Estava cansada de procurar solucionar a vida de Bráulio. Ele rodava e rodava, mas acabava lhe procurando. Desde que se mudara ainda não havia aparecido, mas encontrara o caminho. Não existia saída: tinha que suportar seus desatinos. Ela própria reconhecia ter tido uma vida muito doida: infância incomum — se comportava como um menino;

adolescência

revoltada

com

tantos

impedimentos; existência adulta conturbada por entregas a encantamentos de pouca duração. Examinava o passado e se perguntava o porquê daquela escravidão aos sentimentos que algumas pessoas lhe despertaram. Afinal, se casara quatro vezes, acompanhara seus maridos 29


aos mais esdrúxulos locais e, ainda mais, conduzindo os filhos como se fossem acessórios. Por fim, ainda se apaixonara aos 65 anos! Com os ritmos de vida totalmente diferentes, o encontro das vizinhas esperando o elevador foi exaltado por ambas. E Arminda foi logo dando um jeito de saber quem tinha sido aquele homem que dera um show no hall comum às duas. — Sabe que cheguei a me afligir na semana passada quando você recebeu aquele moço? — Foi mesmo? — Ele parecia muito abusado, insinuando-se na sua vida... — Ah! Mas filho é assim mesmo, basta crescer um pouquinho que já quer dar pitaco na gente. E ainda mais quando aparece de porre. Arminda se surpreendeu com a confissão, mas se condoeu também. Lembrou que na semana anterior não havia lhe mandado suas preciosas pamonhas, seu modo quase único de demonstrar apreço, e logo disse: — Venha lá em casa pegar umas pamonhas, passei duas semanas sem fazê-las porque estive gripada. Sara não tinha intenção de papear, mas quando deu por si ouvia uma “belíssima história de amor”. 30


Arminda tinha dez anos quando seu pai levou um colega, com prestigiada bancada de advocacia em Sobral, para almoçar com a família. O bacharel encantou-se com a menina e disse ao amigo que viria buscá-la para casarse com ela quando completasse 16 anos. E assim o fez. Não houve namoro, o noivado foi rápido, e a cerimônia de casamento um prenúncio do conto de fadas que Arnoldo soube cultivar por todo o matrimônio. Tratava a inocente esposa como uma verdadeira princesa, tomava a frente de tudo, e até a filha do casal teve sua educação cuidada primordialmente por ele. Enquanto ouvia os detalhes da história da vizinha, chegavam à mente de Sara muitos flashes da própria vida. A fugida da casa dos pais com Cássio, de quem estava grávida; a tentativa de uma vida ajuizada com o pastor Jânio, no Alto Xingu; a louca paixão que a levou para a Europa com Jamil, o artista de rua irmão de Jânio; Célio, o adeus da comunhão de corpo e alma. Tivera uma trajetória atribulada em todos os aspectos, mas gostava dela, tinha muito o que recordar. Um dos zeladores mais antigos do prédio, o Tonho, se indispôs com Sara porque esta chamara sua atenção ao surpreendê-lo gastando horrores de água na lavagem de 31


carros dos moradores. Ela era engajadíssima nos movimentos

ambientalistas,

e

o

mau

uso

do

imprescindível líquido estava entre suas bandeiras de atuação. O regimento interno do condomínio proibia desperdício de água, porém muitos moradores infringiam tais normas por pura comodidade. A animosidade de Tonho e Sara acabou interferindo na relação entre as vizinhas. E de uma maneira bastante inesperada.

Recolhendo

diariamente

o

lixo

do

apartamento 1902, o zelador percebeu que, muitas vezes, nele encontrava pamonhas intactas. Foi fácil concluir que eram as que D. Arminda ofertava à vizinha. Ele não perdeu tempo em fazer uma intriguinha com sabor de vingança. O fato é que Sara jamais gostara dessa iguaria e a simples visão dela a deixava enjoada. Estava arranjando um jeito de comunicar isso a quem considerava suas pamonhas as melhores do mundo. Mas a reação de Arminda foi decepcionante para Tonho. Fez de conta que não soubera de nada e continuou ofertando sua prenda. Não queria renunciar aos encontros com quem alimentava sua imaginação.

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PORQUE LÁ NÃO TEM CUSCUZ Cupertino Freitas

Na pré-escola formavam uma dupla inseparável, viviam na casa uma da outra. Em tardes calorentas lavavam os cabelos das bonecas, riscavam as paredes e faziam de peteca as almofadas. Dois pequenos demônios com nomes de santas: Isabel e Clara. Era na casa desta última que brincavam mais; havia espaço de sobra e ausência de meninos, território perfeito para se danarem sem serem importunadas pelos endiabrados irmãos de Isabel. Três da tarde era a hora da merenda. A mãe de Clara, mulher à antiga, das lides domésticas, adorava se enfurnar na cozinha para preparar guloseimas para a filhota e a coleguinha: bolos, pudins, biscoitinhos, pasteizinhos, o que a inspiração lhe soprasse. Clara devorava o que encontrasse à mesa, mas Isabel comia com hesitação, quase à força. A senhora, percebendo que a garotinha não era grande fã de sua culinária, arriscou um dia:

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— Isabel, amanhã quero fazer uma merenda que você goste muito, o que você quer comer? — Cuscuz! Com manteiga e queijo assado, do jeitinho que mamãe faz. Ah, era uma comedorazinha de cuscuz, cearense da gema, por isso o tédio diante de suas iguarias, não dava a mínima para belle cuisine, a pequena Isabel! A partir daí, cuscuz não faltaria quando viesse passar a tarde em sua casa, pensou a zelosa mulher. A amizade entre Isabel e Clara continuou forte por toda a infância e adolescência. Falavam sobre os seus crushes — ainda nem eram chamados assim, naquela época, eram paqueras —, torciam uma pela outra, lamentavam as paixões não correspondidas — como a que Clara nutria por Arturzinho, filho do vice-prefeito — e riam da frieza de Isabel ao dar o fora nos incontáveis pretendentes que se jogavam aos seus pés. Por esse tempo alimentavam sonhos de desbravar as terras além do sertão central. Clara se perguntava como seria morar em Fortaleza, uma metrópole com muitas opções de lazer, cultura e comida. — Imagine São Paulo! — comentou Isabel. — Ah, eu adoraria morar em São Paulo. — Eu jamais moraria lá. 35


— E eu sei por quê. — Sabe? — Ora, porque lá não tem cuscuz! — disse Clara, e as duas se acabaram de rir. — Por falar em cuscuz, vamos tirar o par ou ímpar? — propôs Isabel. Agora as duas já se aventuravam na cozinha para preparar a merenda da tarde. A cada encontro para pôr a fofoca em dia, a prerrogativa de decidir o que fariam para comer era resolvida numa mão de par ou ímpar. Quando Clara ganhava, folheava os cadernos bem desenhados da mãe à procura de uma receita mais elaborada, de terras estrangeiras tanto melhor. Se fosse Isabel, não tinha muito o que pensar. Tinha que ter cuscuz: só com manteiga; com ovo e requeijão; com queijo coalho; com carne moída, coentro e cebolinha; com frango desfiado; ou refogado com azeite, tomate, cebola e pimentão. E café preto, queimando a língua, para acompanhar. Os anos não macularam a afeição, o grude e a precisão que tinham uma da outra. A sintonia entre as amigas era tamanha que escolheram fazer a mesma faculdade, sem que uma tivesse revelado à outra sua opção. Numa tarde, enquanto a cuscuzeira estava no fogo, escreveram num pedaço de papel o nome do curso que 36


pretendiam fazer e entregaram para a mãe de Clara adivinhar quem iria estudar o quê. A senhora leu os papeizinhos, nos dois estava escrito: “Geografia”. Isabel e Clara iniciaram e concluíram a faculdade como um velho par de jarras. Mas um concurso para professores da Prefeitura que ofertava uma única vaga para a sua área de formação pôs em xeque a relação das duas. Prometeram a si mesmas que nada mudaria caso uma delas fosse aprovada; eram, acima de tudo, amigas. Embora fossem igualmente capazes de passar no concurso, Clara levava uma vantagem em relação a Isabel: escrevia muito bem, e a questão dissertativa tinha um peso grande na contagem de pontos. O resultado, contudo, surpreendeu: Isabel foi aprovada em primeiro lugar e Clara não atingiu o perfil mínimo na redação; fugiu do tema e foi eliminada do certame. Clara só não ficou mais arrasada com o fracasso no concurso porque Arthurzinho, como por encanto, começou a vê-la com novos olhos. Talvez fosse o corte moderno no cabelo ou o jeans de cós baixo, mas o certo era que ele agora a conferia de cima a baixo quando se cruzavam pelos bares da cidade. Seguindo o conselho de sua mãe, Clara recorreu da correção da prova e sua nota foi revisada, de modo que seu 37


número de pontos ficou exatamente igual ao de Isabel. O edital da seleção não era claro quanto a critérios de desempate e a Prefeitura achou por bem contratar as duas. Isabel soube da novidade antes de Clara e foi em sua casa para dar-lhe as boas novas: — Você também passou no concurso, criatura! — disse, e as duas se deram aquele abraço. — Ah, Bel, eu tava com o coração partido! Obrigada por me trazer essa notícia tão maravilhosa. Eu ia tomar café com sequilhos, mas a ocasião merece algo especial. Vamos fazer cuscuz com leite de coco e leite condensado? — Só se for agora! Clara despejou os flocos de milho numa tigela, adicionou água e uma pitada de sal e misturou bem com as mãos. Isabel juntou os leites de coco e condensado com o coco ralado. Quando Clara tirou a massa cozida da cuscuzeira, Isabel despejou a mistura dos leites por cima e polvilhou com canela em pó. Sorriram e se abraçaram mais uma vez. Comeram o prato ainda quente, risonhas, satisfeitas porque continuariam a caminhada juntas, agora como professoras. No entanto, uma vez contratadas pela Prefeitura, uma tênue competição na escola arranhou a sólida amizade. Competiam não só pela predileção dos alunos, 38


mas também pelos melhores horários de aula, as melhores salas, o melhor material didático. A relação foi, aos poucos, estremecendo. Por último, resumia-se a um bom dia, um até amanhã, e uma promessa de tomarem um café e conversarem como nos bons tempos. Enquanto Isabel trocava de namorado a cada quadra chuvosa, Clara iniciou um namoro sério com Arturzinho. No almoço de noivado, ganhou do futuro sogro um cargo comissionado na escola onde lecionavam. A inimizade declarada começou quando Clara foi oficializada como coordenadora pedagógica. Tomada por uma incontrolável raiva, Isabel tentou cooptar as professoras contra a velha companheira. Espalhou, a boca miúda, que ela não havia logrado êxito de verdade no concurso para professores, foi tudo um cambalacho do vice-prefeito para “colocar a nora pra dentro da escola”. Clara ficou sabendo que era Isabel a espalhadora de fake news — naquela época, o velho e bom boato — e semeou um pé de cá-te-espero. Mais ou menos por essa época, Isabel resolveu dar uma chance ao jovem Murilo, advogado local que rodava o Brasil prestando concursos na área jurídica, e aceitou seu pedido de namoro. E Clara, recém-casada com Arturzinho, agora filho do prefeito, virou secretária de 39


educação do município. Um de seus primeiros atos foi convocar Isabel para uma reunião: — Não quero saber de tititi em sua nova escola — disse, entregando-lhe um ofício de transferência para um colégio municipal na periferia, bem nos cafundós do Judas. Isabel não acreditou no que estava no papel. — Isso é uma retaliação? — Entenda como quiser. — Era de pedra o rosto de Clara. — Tudo bem, vou dar aula nessa escola onde o cão perdeu as botas. Quanto menos eu cruzar com você, melhor. — Ótimo, agora pode se retirar que eu tenho mais o que fazer... Por que você espalhou mentiras a meu respeito, Bel? Nós crescemos juntas, somos praticamente irmãs. — Porque não achei justo você virar coordenadora só por ser nora do vice-prefeito. Eu, ou qualquer professor dessa escola, tinha tanta competência para o cargo quanto você. Por que foi você a escolhida? Por que não houve um concurso? E agora, nora do prefeito, já é secretária de educação do município!

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— É um cargo político e eu estou preparada para exercê-lo. Assim é que as coisas funcionam na vida, minha cara. Você tem que aceitar. — Não aceitei e não aceito. Não concordei e não concordo. — Então se jogue da ponte do trem! Eu sou a secretária de educação e você vai ter que me engolir. — Ou não! E realmente Isabel não engoliu. Entregou sua carta de demissão semanas depois da altercação com a chefe e ex-amiga. Calhou de Murilo passar em um concurso para promotor de uma cidade do interior de São Paulo e ela se mudou para terras sudestinas. Casaram-se por lá. Isabel ficou muitos anos sem voltar ao Ceará. Vinte e dois, para ser mais exato. Eram já quarentonas quando se reencontraram no velório do irmão mais velho de Isabel — morreu de infarto fulminante aos 53 anos. — Meus pêsames! — disse Clara, consternada. — Obrigada — respondeu Isabel, olhos em brasa. — Você vai passar muitos dias aqui? — Não, vou embora amanhã. Como vai sua mãe?

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— Tá com as mazelas típicas da idade, mas faz questão de cozinhar pros netos todo domingo. Ela iria gostar de lhe ver. — Eu também gostaria de revê-la. Passo na casa de sua mãe hoje à tarde. Pouco antes das três, Isabel apertou a campainha da casa da prendada mãe de Clara. Tinha envelhecido bem, a senhora, estava só com os cabelos de algodão e mais cheinha. — Minha filha, sinto pela sua perda. Seu irmão, tão novo, meu Deus. Não fui ao enterro porque não aguento mais ficar muito tempo em pé. — Não tem problema, eu entendo. — Mas que bom revê-la. Tá tão bonita. Sempre foi, desde menina, mas está mais, acho que é o frio de São Paulo, né? — Ah, bondade sua. Como vai a senhora? — Do mesmo jeitinho, a minha vidinha. — Ainda tem os cadernos de receitas? — Estão aposentados, tá tudo no computador. Vamos entrar direto pra cozinha, tá quase na hora da merenda. A velha senhora levou Isabel à cozinha, pediu que se sentasse à mesa e desapareceu. Sozinha, Isabel foi ao 42


passado ao ver a cuscuzeira cintilante sobre o balcão. Tomada por uma onda de nostalgia, sentiu o coração derreter. Clara chegou de mansinho, e por alguns instantes ficou a observá-la a contemplar a velha fôrma de alumínio. — Ah, não sabia que você tava aqui — Isabel disse, ao notar a presença da outra. — Vim pra cá depois do almoço. Não queria perder a oportunidade de conversarmos a sós, aqui na casa de mamãe. Talvez não faça mais sentido pra você, pois já faz uma eternidade, mas eu queria pedir desculpas, Bel, pelo que eu lhe fiz. Se arrependimento matasse… — Você não tem que me pedir desculpas! Eu que preciso lhe pedir perdão porque inventei uma mentira terrível. Você passou no concurso honestamente. — Ainda assim eu não podia ter usado meu cargo pra me vingar. O poder me subiu à cabeça, eu era imatura e estava muito magoada. — Sabe, Clara, por muito tempo eu me questionei por que fiz aquilo, por que fiquei tão mordida. No começo eu pensei que era inveja. Mas depois percebi que era frustração. Porque não seríamos mais parceiras, você tinha virado minha chefe, era como se tivesse rasgado um contrato que assinamos no jardim de infância. Me senti 43


traída. Coisa de gente perturbada do juízo, mas foi isso que aconteceu. Você ainda é secretária de educação? — Que nada! Voltei para a sala de aula há muitos anos. Depois que meu sogro se foi, meu marido não quis se envolver com política, o que foi uma bênção nas nossas vidas. E você, ainda ensina? — Sim, dou aulas num colégio particular. Fiz um concurso uma vez, mas não fui bem na prova de redação. Nunca escrevi bem como você. — Gosta da vida em São Paulo? Uma vez você disse que jamais moraria lá. — “Porque lá não tem cuscuz” — Isabel ensaiou um sorriso. — E o pior é que tem, o tal do cuscuz paulista. — Eu vi a receita na internet. Leva ovo cozido, sardinha, ervilha, milho, azeitona, palmito, pimentão, não sei o quê, não sei o quê… quer que eu faça pra você? — Tá doida? Quero comer é o nosso cuscuz, tradicional, só com uma manteiguinha por cima. — É pra já! — disse Clara. E levou a cuscuzeira ao fogo.

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AS PAZES COM O MILHO COZIDO E CONSIGO Ésulo Maia

Um menino inteligente e esperto, aluno dedicado, parceiro da mãe nos afazeres domésticos, como qualquer outro, exceto por um detalhe. O nome. Milho. Isso mesmo. Como a espiga. O motivo? Para começar, a importância do alimento para as populações sertanejas. Podendo ser usado de diversas maneiras na alimentação, com uma boa resistência em relação ao tempo e sendo um fornecedor de nutrição, o principal complemento na mesa de muitas famílias, com algumas dispondo somente dele em certos dias para ter o que comer. A mãe de Milho, uma mulher solteira, de meiaidade, sem muito estudo, na maior parte do ano sustentava a si e aos filhos por meio de serviços de costura, mas também aguardava com ansiedade a chegada da melhor época do ano para cultivar o gênero alimentício fácil e barato no terreno lateral da casa. A mulher amava o gosto tropical refrescante que a transportava ao período que ia até o fim da adolescência, na companhia dos pais, 46


já falecidos, de amigos e de uma vida sem tantas obrigações. Mas, para além disso, havia a questão econômica. O que apanhava no milharal não servia apenas para consumo, mas para venda também. Com uma placa na porta da casa, garantia a saída do cereal colhido e cozido para vizinhos e viajantes. A comercialização do produto permitia

uma

renda

extra

para

a

família

e,

consequentemente, alguns meses de menos dificuldades. Quando grávida do filho, a mulher teve a ideia de colocar o nome do alimento de que tanto gostava e que era tão importante para a família. Um nome bonito, diferente, curto, fácil e que combinava com um menino, pelo menos em sua visão. Mas ao crescer e entender um pouco do mundo — e em uma família pobre, do interior do Nordeste, esse amadurecimento comumente vem cedo —, o garoto Milho percebeu que não fazia sentido pensar como a mãe. Ao contrário, para ele, a suposta homenagem ou presente materno que havia recebido era um fardo para carregar pelo resto da vida. A mãe e os dois irmãos, um mais velho e outro mais novo, tinham nomes comuns, o que fazia o nome do menino se destacar ainda mais nas situações cotidianas. 47


Até próximo do fim da infância, Milho já havia passado por dezenas de situações desagraváveis, para dizer o mínimo, por causa do nome. A começar pelo ambiente que lhe era mais comum, a casa. Em todas as situações tentava convencer os familiares a chamarem-no pelo apelido de Mil. Sua esperança era de que as demais pessoas vissem e seguissem o costume. Mas era em vão. Na menor das oportunidades, seus irmãos eram os primeiros a revelar o verdadeiro nome e zombar do garoto. Perguntavam se Milho estava com fome e sugeriam que desse uma ou duas mordidas em si mesmo para saciar-se. Às vezes, até ameaçavam mordê-lo com a desculpa de que não tinham nada para comer. Quando demorava a entrar no banheiro para tomar banho, os dois afirmavam que ele estava começando a cheirar mal porque estava apodrecendo e logo ia atrair os pássaros e outros animais. Durante o banho, os irmãos ficavam na porta dizendo que não deveria demorar ou começariam a brotar galhos. Quando procurava a defesa da mãe, apenas recebia como resposta que tudo não passava de brincadeiras inocentes entre irmãos. Mas, para ele, não eram tão inocentes, já que o machucavam.

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Quando as pessoas, em geral, chegavam para comprar o milho cozido, começavam a conversar e, inevitavelmente, perguntavam os nomes dos filhos. A mãe, orgulhosa da própria criatividade, fazia questão de dizer. Milho guarda na memória uma coleção de expressões admiradas após a revelação inusitada. Ao depararem com os estranhos os irmãos não perdiam tempo em descarregar todo o arsenal de piadas que possuíam, deixando o irmão do meio vermelho de vergonha e de raiva. Não seria preciso dizer que a escola não era o lugar onde o menino se sentia mais à vontade. Mas a timidez de chegar e ter que se apresentar a alguém, atitude que nem sequer cogitava, era o menor dos problemas. Mesmo ficando distante, muitos o usavam como fonte de piadas. Chamavam-no de vegetal, amarelinho, frutinha, fruta podre, espiga, entre outras tantas zombarias que vinham na cabeça dos alunos, dos meninos, na grande maioria. Por isso, tanto antes de iniciar a primeira aula de cada dia como na hora do recreio estava sempre em algum canto, sozinho, desejando e fazendo o que pudesse para não ser notado. Entretanto, isso não surtia muito efeito. A escola era tão pequena que, mesmo tentando se esconder,

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estava sempre aos olhos de uma boa parcela dos estudantes. Mesmo os que discordavam das brincadeiras tinham receio de também virarem alvo e por isso preferiam permanecer afastados. Quanto às garotas, que poderiam querer algo mais, nenhuma tinha coragem de se aproximar. Sabiam que também virariam objetos das chacotas. Quantas vezes, de alguns brincalhões, nos últimos tempos, ouviu a maliciosa pergunta: “Quem será a primeira a provar o sabugo dele?”. Mesmo não considerando algo importante, diante das muitas súplicas do filho, a mãe de Milho perdeu a conta de quantas vezes foi ao colégio falar com a coordenadora e as professoras para tentar fazer as brincadeiras pararem. Mas as reclamações também não surtiam resultado expressivo algum. No máximo, tudo que conseguia era que a coordenadora desse uma bronca em menos de meia dúzia de alunos. Isso fazia com que deixassem o filho em paz por um dia ou dois. Depois disso, tudo reiniciava. No horário de saída dos alunos, todo dia era a mesma situação. Demorava a começar a copiar algo no quadro ou a terminar alguma tarefa de propósito para ficar um pouco mais na sala depois do horário, só o tempo 50


suficiente para não ter que sair junto com os outros. Se por acaso precisasse, fingia. Era a única opção que dispunha, já que dificilmente as professoras o deixariam sair antes. A não ser em algum dia específico, por ocasião de alguma reclamação de saúde. Mas todos os dias? Nem pensar. Tudo isso, além de furioso, deixava Milho triste. Triste pelas situações de humilhação em si, triste por sua incapacidade de fazer algo para ser respeitado e acabar com isso, e mais triste ainda por ter que carregar esse nome aonde quer que fosse. A ideia de ir morar em outro lugar nada resolveria. O nome sempre o acompanharia. Por isso mesmo formou uma raiva tal de milho que, mesmo ajudando a mãe a cozinhar as espigas para vender quando estava em casa sem outra tarefa, recusava-se a comê-lo, mesmo quando não dispunham de muita comida. Afinal, para ele, o milho cozido era a razão de todos os seus problemas. Um dia, na escola, tendo Milho já completado dez anos, uma colega de classe, Laura, que não gostava nada das piadas que faziam com o garoto, chamou-o em um canto do pátio, no horário do recreio, e lhe disse que talvez houvesse uma possibilidade de ele se ver livre de todas aquelas situações para sempre. 51


Tentando disfarçar a curiosidade, Milho ouviu que, no dia seguinte, Laura levaria seu irmão mais novo, que tinha um elevado grau de surdez, até o velho Vajé. Milho não tinha a menor ideia de quem a menina estava falando. Laura explicou que o velho Vajé era um homem que diziam ter o poder de realizar um único desejo para qualquer pessoa. Disse também que, se quisesse, Milho poderia ir com eles e pedir para ajudá-lo a mudar de nome ou para fazer com que ninguém mais o ridicularizasse por causa dele. A princípio, Milho não acreditou na menina. Mesmo nunca tendo recebido nenhum deboche por parte dela, pelo menos não que soubesse, pensou ser mais uma brincadeira. Afinal, nunca ouvira falar nesse homem, e essa história parecia tão fantasiosa quanto a do bichopapão e outras mais que sempre escutava por entre as brenhas do sertão. Laura então o desafiou a ver com seus próprios olhos e disse que ela e o irmão iam esperar, na manhã do dia seguinte, até o horário de início da aula, em frente a uma casa vazia que ficava a alguns metros antes da escola. Milho pensou se devia acreditar na conversa da menina durante o resto do dia. Se fosse verdade poderia ter a chance de finalmente resolver seu problema, mas se 52


fosse mentira poderia cair em mais uma brincadeira e sabe-se lá o que aprontariam com ele longe da escola. No dia seguinte, ainda desconfiado, resolveu ir ao local indicado como sendo o ponto de encontro, mas sem dizer nada a ninguém, pois sua mãe jamais permitiria e seus irmãos o delatariam. Quando chegou, Laura e o irmão já estavam saindo. A menina avisou a Milho que eles deveriam se apressar para fazer o trajeto de ida e volta de alguns quilômetros até o fim do horário da aula, a fim de que ninguém em suas casas desconfiasse que faltariam o colégio. Segundo rumores, o velho Vajé morava sozinho, distante de qualquer outra casa. Mas toda essa distância não era um desafio tão incomum, ao contrário. A população do sertão, inclusive as crianças, estava acostumada a ter que andar durante muito tempo sob o sol escaldante, em busca de um pouco de água para as tarefas diárias; em períodos de seca não tinham outra escolha. No longo caminho, de solo e vegetação ressequidos, onde não passava ninguém, os dois colegas conversaram sobre vários assuntos enquanto Laura compartilhava parte da água que trouxera na mochila, guardando um pouco para a volta. Durante o trajeto, o irmão da menina não participava muito, por sua dificuldade em ouvir, 53


preferindo se distrair com brincadeiras solitárias, como lançar pedrinhas nas laterais da estrada de terra. Em relação aos pedidos, segundo ouviu, Laura disse que só havia uma proibição. O velho Vajé não realizava desejos que tinham por finalidade conseguir dinheiro, objetos materiais e fazer mal aos outros. Ainda não totalmente convencido da história, Milho perguntou à menina o que ela aspirava pedir para o homem e ela disse que não queria nada para ela, apenas queria que ele curasse o irmão. Alguns metros seguindo pela lateral e distanciandose da estrada de terra principal, por fim, eles chegaram à suposta casa. Era uma morada de taipa, pequena, com uma janela ao lado da porta. Apesar de a porta estar aberta, nenhum dos três conseguiu ver nada por causa do sol forte, que já se fazia bem alto. Quando bateram palmas, uma voz masculina calma e forte disse para entrarem. Um pouco receosos, entraram devagar e viram um homem magro, aparentando uns cinquenta anos, de pele castigada pelo sol, mexendo uma panela que exalava um aprazível aroma de peixe cozido, sobre um fogão a lenha. No centro, uma velha e retangular mesa de madeira, coberta por um tecido branco, tendo apenas um prato com 54


dois pães, outro com dois milhos cozidos e uma jarra de água. Em princípio, os jovens apenas olharam sem nada falar. Ele também não interrompeu sua tarefa de mexer a panela. Finalmente, Laura quis saber se ele era o homem que realizava as súplicas. Diante do retorno positivo, a menina perguntou se eles podiam fazer pedidos. O homem respondeu que sim, mas questionou se tinham certeza se o que queriam era algo com o que realmente valia a pena gastar seus únicos desejos. Ela assegurou que sim, mas que não queria nada para si. Tudo o que precisava era que seu irmão ficasse curado da doença do ouvido que o impedia de ouvir bem. O homem então falou que o que ela estava fazendo pelo irmão era uma verdadeira prova de amor, por isso garantiu que assim que cruzassem outra vez a porta, o garoto ficaria livre da doença para sempre. Os dois irmãos se entreolharam e sorriram esperançosos. Ambos caminharam para sair da casa quando o homem os advertiu. Disse que se ela, um dia, qualquer que fosse, o procurasse novamente com a intenção de fazer outro pedido, seu irmão ficaria inteiramente surdo para sempre. Laura apenas moveu a

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cabeça de forma positiva e os dois andaram, de mãos dadas, para fora da casa. De dentro da habitação, Milho e o homem viram e ouviram as risadas dos dois irmãos alegres com a nova condição do garoto. Prontamente, o homem indagou qual era o desejo do outro menino. Antes de responder, Milho perguntou como ele conseguia fazer essas ações. O velho Vajé falou que essa era a sua missão. Tentar realizar um pouco o bem na vida das pessoas. Um bem que não ocasionasse,

pelo

menos

não

diretamente,

uma

transformação no caráter, nas escolhas ou no caminho dos agraciados. Porque essas mudanças deveriam acontecer por meio das atitudes tomadas diante da vida pelas próprias pessoas. E que estava preso a esse destino. O menino disse que não entendia como ele era capaz de concretizar desejos e vivia sozinho, em uma casa tão simples. O homem explicou que não podia realizar nada para si. Mas confessou que, se pudesse, gostaria muito de um único desejo em benefício próprio. Curioso, tanto com a condição mágica do velho quanto com o que podia querer alguém que conseguia materializar a vontade dos outros, Milho perguntou o que ele gostaria. O homem afirmou que não gostava nem um pouco do nome popular pelo qual todos o conheciam. Mas 56


esclareceu que Vajé era o nome que precisava usar para manter o dom de realizar os desejos das pessoas, e que se voltasse a usar seu nome verdadeiro por vontade própria, perderia

essa

capacidade.

Por

isso,

diante

da

impossibilidade de usar o nome verdadeiro, gostaria de mudar de apelido. O menino percebeu uma tristeza mal disfarçada vindo daquelas palavras. Milho se viu comparando sua vida, sua família, que mesmo humilde era feliz, apesar de seu problema com o nome, que naquele momento não parecia mais tão importante, com a vida daquele senhor, aparentemente sem parentes ou amigos, vivendo sozinho em uma casa tão distante de tudo e que não tinha quase nada, vendo todos saindo felizes, com frequência, graças às vontades alcançadas, enquanto ele mesmo não podia realizar o simples desejo de usar o seu nome real. Sem hesitar, Milho pediu para que o homem voltasse a usar o nome de nascença sem perder seu dom. O homem perguntou por que ele estava desperdiçando seu único desejo com um velho desconhecido. O garoto afirmou que aquilo que veio pedir não importava tanto quanto ele ter o direito de realizar um desejo simples como o de usar o verdadeiro nome sem ter que perder o dom de fazer o bem aos outros. 57


Agradecido, Vajé disse que ele o libertou. Que agora poderia fazer o bem de forma plena, de espírito. Milho sorriu de volta e, realizado e sentindo-se bem, despediuse e encaminhou-se para encontrar seus amigos fora da casa. Antes de sair, o homem o chamou e disse para não se preocupar porque garantia que ele e sua família seriam felizes. Milho sorriu outra vez e saiu correndo para seus amigos. Eles deram os primeiros passos para a estrada, de volta para casa, quando o menino disse aos irmãos para esperarem um pouco porque se esquecera de algo. Milho

entrou

correndo

de

volta

na

casa

perguntando qual o verdadeiro nome do velho, mas, para sua surpresa, a casa estava vazia. A panela que estava sobre o fogão, agora apagado, havia sumido. O prato sobre a mesa, onde havia dois pães, curiosamente agora possuía quatro, assim como o prato com dois milhos cozidos também apresentava o dobro da quantidade. No chão de terra batida, Milho agora também lia as letras riscadas do nome do velho rearranjadas: Javé. Antes de sair da casa, acreditando que o velho não se importaria, já que agora tudo estava multiplicado, o menino pegou dois dos quatro pães e dois dos milhos cozidos que estavam sobre os pratos para dividir com os outros no regresso, em retribuição à água compartilhada. 58


Felizes, os três tomaram a direção de volta com um singular laço de amizade formado. Conseguiram retornar para casa no horário rotineiro, como se apenas estivessem chegando de mais um término de dia de aula. Nenhum dos três contou a ninguém aonde foram. Mas o garoto Milho sentiu que algo mudara, não em relação às pessoas, mas dentro de si. Começou a comer milho cozido com grande prazer. As piadas que os irmãos e os outros alunos do colégio faziam com o seu nome não o magoavam mais. Ele até passou a achar algumas engraçadas e a fazer outras brincadeiras a partir das que faziam com ele. Em menos de uma semana o menino já havia feito belas amizades com alguns dos que o zoavam por causa do nome. Em pouco tempo, a maior parte das zombarias deixou de acontecer. O velho Vajé nunca mais foi visto por aqueles lados, pelo menos não na mesma forma.

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LOUCA POR MUGUNZÁ Nazaré Fraga

Era uma oportunidade maravilhosa fazer aquela viagem. Desde adolescente sonhava atravessar as fronteiras do país, ver outros mundos. E aquilo lhe apareceu de mão beijada, e para conhecer mais sobre música, sua paixão. Mas tinha dúvidas se deveria se arriscar. Para além dos importantes problemas de saúde, tinha certeza de que não aguentaria tanto tempo sem esbanjar-se na sua preferência, mugunzá salgado e com feijão, complementado por carne, mocotó de porco e cheiro verde. — Acho que não vou ter coragem de embarcar nessa aventura linda. É uma merda, porque sempre quis tanto viajar pra outro país, ainda mais com vocês. — Por quê? Vamos! O roteiro é a sua cara. Você vai tirar de letra. — Tenho medo de me acabar de dor de barriga, diarreia e desidratação. Posso ter muitas complicações de saúde. Não vou aguentar!

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Era impossível se conformar com o que lhe acontecera com o passar do tempo, tendo que mudar inteiramente seus hábitos alimentares. Uma

infância

simples,

mas

cheia

de

contentamentos. Era caçula e alvo de pequenos mimos que pareciam grandes naquele tempo. Com seu vestido vermelho de saia rodada de bolinhas brancas e lá se ia toda faceira. Fantasias de montão. Aos domingos acompanhava Maria dos Anjos pra visitar os pais dela. Era uma opção segura de passeio. Um caminho de muitas veredas, alguns quilômetros, mas não reclamava. Na maioria das vezes usando uma toalha na cabeça para se protegerem, faziam várias paradas para pedir água. No meio da tarde, um copo d’água era um refrigério bemvindo, mesmo natural, porque não havia geladeira no sertão, naquele tempo. Parar também servia de desculpa para uma prosa com conhecidos, quem sabe tomar um refresco, um café ou receber outro agrado. Se esbaldava em qualquer merenda que lhe ofereciam. Mas num dia só passou duas vergonhas. Recusou a água que ofereceram. Não teve coragem de beber aquela gosma escura. Não houve insistência que a fizesse mudar de ideia. Envergonhada com sua recusa incomum, Dos Anjos deixou escapar que 62


ela já sabia ler. De pronto, a dona da casa entrou no quarto e reapareceu com uma carta. — Destrincha pra nós. Chegou da Maricota que tá trabalhando na Fortaleza. A gente num sabe o que tá dito aí porque nós num conhece letra. Atordoada pelo vexame de ter refugado a água, viuse tomada pela timidez maior do mundo, o coração palpitando. Olhou o papel e disse, do seu jeito, as notícias de Maricota, mas não lendo as palavras exatas da carta. De prêmio, a dona da casa ofereceu uma porção de mugunzá feito no capricho, cujo cheiro do preparo dominava toda a casa. Quando retomaram o caminho, Dos Anjos perguntou os motivos de não ter bebido a água. Respondeu que estava com uma cor arroxeada, a mesma da sombrinha que mantivera aberta sobre sua cabeça na hora que pegou no copo cheio. Na volta daqueles passeios embevecia-se numa coleção de lembranças, nos muitos elogios que recebia. Que menina calma e bonita, tão forte e bem nutrida! E que cachinhos lindos! Até colecionava, como se preciosos fossem, os papéis de bombons que ganhava, coloridos e brilhosos, cada um mais lindo que o outro. Crescia a olhos vistos e no tempo certo. As diversões já incluíam as festas da padroeira e os jogos das 63


quermesses. Esbaldava-se nos bolos de milho, de macaxeira, de carimã, pé-de-moleque, participava das disputas entre o partido azul e o encarnado, brincadeira do anel e quanta coisa houvesse. Foi numa dessas festas, ainda em criança, que foi deliciosamente surpreendida com a descoberta do chiclete de bola Ploc, um dos primeiros produtos industrializados que lhe chegou às mãos. Aquilo era uma invenção que jamais tinha imaginado existir. Tudo de bom fazer bolinhas de ar com a boca que demoravam a explodir e não amargavam como as feitas de espuma de sabão. Único inconveniente era não saber o quanto soprar. Quando exagerava ela explodia em sua cara e grudava nos cabelos que era uma desgraceira. Boa pra comer, era aquela menina! Frescura nenhuma. Amamentada até mais de três anos, aos poucos foi caindo de boca nos quitutes do semiárido, naquele tempo tudo vindo do cultivo nos roçados. Arroz roxo, milho, feijão, fava, jerimum, mandioca, batata doce, melancia, quiabo, maxixe e muito mais. Só o café em caroço e o sal em pedra eram comprados em sacas de 60 quilos na cidade. Milho processado no moinho para todo tipo de uso. Paçoca feita no pilão pela mãe e a tia Bilica. Pão, só de milho. De padaria e bolachas só via duas vezes por mês quando o pai trazia de Baturité. 64


Crescida, mudou para Fortaleza para continuar os estudos. A despeito da estranheza da cidade grande, tudo correu bem durante o ginásio e o normal. Morava na casa de sua tia Inácia, vinda também do sertão. Vida quase interiorana, inclusive no tipo de alimentos. Era um bairro distante, onde até fogueiras se acendiam no meio da rua nas noites de São João. Nos primeiros dias de janeiro ainda passavam grupos de reisados com sua tão conhecida cantoria: Meu senhor dono da casa, abra a porta, acenda a luz... Apesar de ranzinza, a tia não era má. Mas vivia pensando consigo mesma que ia dar uma guinada de vida quando fizesse vestibular. Queria ir para a residência universitária, ter mais liberdade, deixar de dar satisfação sobre suas saídas e o que fazia. Foi uma medição de forças entre ela e os pais. No modo de ver dos dois sertanejos, era um perigo a filha, que já vivia longe das vistas deles, sair da casa da tia e ir morar sabe-se lá com quem. O

serviço

social

da

universidade

tinha

sacramentado a vaga na residência estudantil, mas nada da bênção dos velhos. O prazo se expirando, ela correndo o risco de perder a vaga e a aflição de não conseguir se mudar sem rompimento. Afinal, ainda ia precisar de 65


algum suporte material dos pais. Foi quando a tia morreu atropelada, coitada, mas graças a isso tudo se precipitou. Mudar foi mesmo a saída. Nos primeiros meses a vida foi uma farra. Novas amizades, novos hábitos, luaus, acampamento nas praias, festinhas na residência feminina e nas masculinas regadas a bebida e muita paquera. Café da manhã bem corrido em casa, geralmente acompanhado só de pão e manteiga, refeições no restaurante universitário. Uma ressaca aqui e outra acolá, sensação de enchimento, diarreias que iam e voltavam. Achava que os desconfortos se deviam à sua recente iniciação em bebidas alcoólicas. No geral ia se saindo bem no curso de História, mas com grande interesse no efervescente movimento musical da cidade. Cada vez mais magra, pálida e sem coragem, vivia num empachamento danado que se revezava com vômitos e desconforto intestinal. No final do primeiro semestre já estava com a saúde em frangalhos e a situação ficou séria. Nos meses seguintes piorou a ponto de precisar se hospitalizar várias vezes. A casa antiga da tia Inácia foi de novo seu pouso e a mãe veio ficar para acompanhá-la na peregrinação de sucessivas consultas e exames. Os médicos pareciam cegos em tiroteio, alguns até diziam 66


que nunca tinham visto problema igual. Como os exames não eram precisos como hoje, foi grande a demora até chegar ao diagnóstico. A doença então pouco reconhecida no Brasil era quase um nome de mulher: celíaca. Já esquelética de tanto sofrer com os problemas gástricos, veio o soco final na boca do estômago: tinha que deixar de comer macarrão, torrada, pão, rosca, biscoitos em geral, bolos, tortas, pudins, carnes empanadas e muito mais. Cerveja e whisky também não podia mais beber. Doença desgraçada, aquela! No primeiro momento achou que ia morrer mesmo era de fome. Os perrengues desde então a fizeram voltar quase inteiramente para os pratos da infância. Depois que a mãe voltou para o sertão, arriscou ir novamente para a residência universitária, passou a se virar sozinha e se tornou uma especialista no preparo do que podia comer. Agora realçando e consumindo frequentemente o prato que mais a agradava, o mugunzá salgado. Terminado o preparo,

estava

completa

a

refeição,

nenhum

complemento era necessário. Algumas vezes quase botou tudo a perder ao arriscar voltar a comer no restaurante universitário ou em outros locais. Com as opções de bebida restringidas, sair com os amigos ficou sem graça.

67


Entrou no Conservatório de Música e foi levando os dois cursos. Depois abandonou História e terminou se dedicando a tocar flautas, por sua versatilidade incomparável

e

pelas

emoções

que

seus

sons

despertavam. Em um sarau de sua residência teve o primeiro contato com o grupo Tarancon, que na década de 1970 gravava ritmos e canções latino-americanas. Tão encantada ficou com o efeito das zamponas que renovou sua jura de um dia atravessar as fronteiras do Brasil para conhecer de perto a verdadeira música dos Andes. Em junho daquele ano Carlene e Pedro organizaram uma ida à Argentina para um festival de música em Buenos Aires e outro no povoado nativo Purmamarca, ao norte daquele país. Com o tio militar a amiga garantiu as passagens de avião. Teriam hospedagem em um seminário na primeira cidade. Daí em diante teriam que mochilar e contar com o suporte daquele amigo argentino que trouxe o Tarancon para o sarau. Dominou o medo e embarcou no avião da FAB com o coração aos saltos. Eram seis pessoas na aventura. Voo pingado, três escalas, oito horas de duração até chegar a Foz do Iguaçu, no fim da tarde. Depois atravessaram a ponte para o lado paraguaio até Ciudad del Leste, e dali até Posadas, já na Argentina. Na travessia até Posadas o 68


velho ônibus levava tanta gente sentada quanto em pé. Comércio de todo tipo rolando solto. Comprou um grande depósito de azeitonas em conserva e acomodou no bagageiro acima da cabeça. Pensou que as azeitonas incrementariam seus lanches. Com os sacolejos, o depósito vazou e ela seguiu cheirando a salmoura até o próximo destino. Passaram o dia circulando pelas ruas da cidade. No fim da tarde compraram alimentos e jantaram num banco de praça. Dispensou o salame e os pães e resignou-se a comer só azeitonas, queijo e vinho. De Posadas seguiram de trem durante uma noite inteira até Buenos Aires. Foram três dias de festival, farra e frio. No seminário a opção matinal era café com leite, media luna e alguma fruta. Escapava dispensando a media luna. No almoço e jantar também era uma alquimia fugir dos alimentos preparados com trigo. Hector, um estudante portenho, tocador de bandoneón com quem começou uma paquera, observou que ela comia pouco e quase não bebia. A essas alturas ela já se arriscava no portunhol. Disse que era celíaca e o que isso significava. Ele adiantou que na próxima cidade para onde iriam, Purmamarca, certamente ela comeria melhor, porque era uma região de gastronomia mais nativa, onde vivem os quechuas. 69


Foram de avião até Jujuy e de lá em ônibus para Purmamarca. Percorrendo o longo trecho montanhoso, pouco aproveitou da paisagem e da vista deslumbrante do Cerro de Sete Cores, devido à fome e às náuseas. O grupo era esperado por Rolando, um amigo local de Hector. De muito boa vontade ele foi se adiantando para mostrar a arquitetura colonial do povoado, o mercado de artesanato, a seiscentista igreja de Santa Rosa, construída em adobe, bem no meio da praça central minúscula.

Não podia deixar de se chocar com as

características daquele povo de pele morena, olhos negros, rosto arredondado, baixa estatura e roupas típicas andinas, nada convencionais aos seus olhos de cearense até então virgem de viagens internacionais. As pessoas eram em tudo distintas dos europeizados e desbotados moradores de Buenos Aires. A fome ia se tornando insuportável. Enquanto corria os olhos nas poucas ruas de terra com casas de adobe, tentava ver onde poderiam comer. Finalmente chegaram numa via estreita, onde havia casinhas enfileiradas com placas de menu do lado de fora. Eram os pequenos restaurantes típicos. Hector foi informando sobre o cardápio. — Acá vas a matar tu hambre de buena comida. 70


— Me fale o que devo pedir. — Bueno, hay de tudo que uno desea comer. Carnes, empanadas de queso de cabra, humitas, tamales y mucho más. Pero indico el locro que es lo mas tipico y pienso lo que más te vas a gustar. Es muy rico. Uma pessoa veio para recolher o pedido e ela se adiantou com a palavra mágica. — Locro. — No hay más. — Como? Ficou imóvel com a resposta. Não era possível que sua esperança de comer algo como o mugunzá fosse se desfazer no meio daquela poeira, naquele fim de mundo, depois de ter vencido milhares de quilômetros. Já não se aguentava de não poder saborear o típico milho triturado com feijão e complementos de carne, o campeão em tudo e por tudo de sua dieta. De olhos úmidos não conseguia dizer palavra. O silêncio tomou conta da mesa porque todos sabiam das dificuldades que vinha passando para comer desde a saída do Brasil. Hector argumentava com o garçom enquanto buscava uma solução para o impasse. — La chica es enferma, no puede comer de tudo. Necessitamos locro, aunque solo sea para ella. 71


— Si. Lo que queda es suficiente para uma persona. — Tráelo a ella. O prato mais parecia uma sopa feita de jerimum, muito milho, alguns caroços de feijão, uma batata de sabor desconhecido, um pouco de carne e outros vegetais. Muito diferente do que esperava. Uma decepção que tratou de esconder. Diante da penúria que vinha passando, até se sentiu agradecida com a descoberta. Comeu de bom grado. Foi um festival puxado a locro, mas sonhando com o retorno ao Brasil para saciar sua vontade de pessoa louca por mugunzá.

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O BOLO DOS SONHOS Tania Sales

Ela olhou para a imagem de madeira, pequenina, em suas mãos. — Chega. Estou farta de você. Todo dia rezo, faço promessas, simpatias e nada. Continuo solteira e só. Você atende a todo mundo, menos a mim, que tenho tanta fé em você — Aracélia estava furiosa. Pegou o rolo de barbante e amarrou a estatueta de madeira, apertando fortemente da cabeça aos pés. Depois colocou-a num copo com água e a guardou na geladeira. — Vai ficar aí dentro até responder às minhas preces. Também sou filha de Deus. Até a zarolha filha do farmacêutico arranjou um marido, menos eu. Diacho, o que tem de errado comigo, não arranjo nada. Não pego nem gripe, que merda! A culpa é sua, que escuta a reza de todo mundo, menos a minha. A moça olhava raivosa para a imagem de Santo Antônio, que a encarava de volta, olhos sem vida, afundada na água do copo, de cabeça para baixo.

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— Mulher, tu tá doida?! — a amiga entrou na cozinha na hora exata em que ela fechava a porta do refrigerador. — Se nem com a ajuda do santo tu consegue arrumar um marido, imagina afrontando ele desse jeito! — Minha irmã usou essa simpatia e foi tiro e queda. — Mas teu cunhado é uma porcaria de marido. O santo só queria se livrar da situação. Arranjou pra ela o primeiro estrupício que apareceu. As duas haviam passado dos trinta anos e estavam já perdendo as esperanças de conseguir um bom casamento. — Eu tive uma ideia, esse ano podemos ir na festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio, em Barbalha. Precisamos ir, mulher, tamos quase dando o último pulo da macaca! — Mas é muito longe, a bem dizer um dia de viagem — Aracélia não parecia animada. — E quem pode garantir que vamos arranjar alguma coisa por lá? — Não tem erro, é batata. Se acompanhar a procissão, sentar no pau e depois assistir à missa do santo, com certeza vamos conseguir sair do caritó — os olhos de Benvinda brilhavam. Era a última cartada, as duas solteironas já haviam tentado tudo, mas não perdiam o desejo de casar. 75


Aracélia estava pessimista, não partilhava do otimismo da amiga. O último namorado que arranjara tinha sido mais uma decepção. Ela estava começando a desistir daquela peleja inglória contra a solidão. Porém, pensou duas vezes e decidiu: — Vamos tentar de novo, então! Quem sabe dessa vez as coisas mudam, né? As amigas combinaram de sair, juntas, para comprar as passagens de ônibus para Barbalha. — Não precisamos nos preocupar com despesa de hospedagem, podemos ficar na casa da tia Ritinha, irmã de meu pai, ela mora lá. Vou avisar que irei pra festa e levarei uma amiga junto. — Aracélia ficou eufórica com a sugestão da amiga. Não tinha dinheiro sobrando para gastar numa nova empreitada sentimental. — Quanto menor a despesa, melhor — suspirou. — Ainda temos que gastar com roupa e sapato novo para o dia da procissão, né? — Pois é, tem razão. A sua irmã bem que podia nos emprestar alguma coisa, afinal ela vive viajando com o marido pra capital. Deve ter roupa de sobra. — Esquece, com aquela ali não se pode contar pra nada — falou aborrecida.

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Despediram-se, combinando de se encontrarem para acertar os últimos detalhes da viagem, que seria no dia seguinte. Antes de dormir, Aracélia rezou o Responsório de Santo Antônio e resolveu tentar mais uma simpatia que a irmã havia lhe ensinado. Pegou um santinho de papel com a imagem de Antônio, colocou-a numa pequena caixa de papelão, cobriu com bastante papel picado, tampou, depois amarrou bem amarrado com barbante e escondeu debaixo da cama, confiante que o santo responderia às suas preces. Durante a noite teve um sonho estranho. Uma imagem do santo com ar irritado, apontava para um caminho que levava a uma igreja. Ela entrava num longo corredor, ao fim do qual havia um homem, de costas, como se estivesse rezando ao pé do altar. Acordou assustada, molhada de suor. — Meu Deus! O santo deve tá furioso comigo. Será que o noivo que vai arranjar pra mim é um padre?! Mas isso é um sacrilégio! Não posso dar um desgosto desse pra minha mãe, ela é capaz de morrer de vergonha! Resolveu rezar um rosário para Santo Antônio e, ainda bastante agitada, conseguiu voltar a dormir. Tornou

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a sonhar com ele, dessa vez tinha algo nas mãos, parecia um bolo. — Que bolo é esse? Pra que é? — De milho verde, você deve fazer um para levar na viagem. — Meu santinho, e aquele padre, quem é ele, pelo amor de Deus?! Não conseguiu obter resposta, pois foi acordada bruscamente pelo ronco do cunhado que dormia no quarto ao lado. — Deus me livre dum cabra roncador desses, égua! — levantou da cama se benzendo, irritada. Lembrou-se de que era preciso providenciar o bolo imediatamente, pois partiriam para Barbalha no final da tarde. A festa começaria no dia seguinte. Resolveu pedir a ajuda da mãe, que era a melhor doceira da cidade. Contou-lhe o sonho que tivera na noite anterior. — Eu lhe ajudo, mas só depois que você desmanchar todas aquelas macumbas que vive fazendo com as imagens do santo! — Não é macumba, mãe! É simpatia, entendeu? Simpatia! — respondeu, indignada. — Seja lá o que for, é uma grande falta de respeito com um santinho tão bom como Santo Antônio, que 78


carrega Nosso Senhor nos braços! Por isso que você não consegue arranjar marido, afrontando o santo desse jeito, um sacrilégio! — Quem aqui tá procurando arranjar marido? — o irmão mais novo acabara de entrar na cozinha, rindo. — Ninguém! Sai daqui, peste — a moça estava começando a perder a paciência. — Bota pó, vitalina, tira pó, que moça velha não sai mais do caritó! — O menino saiu correndo, aos gritos. — Tá vendo, mãe, ninguém me respeita nessa casa! A senhora precisa me ajudar — Aracélia estava furiosa. — Já lhe disse, vá primeiro desmanchar suas macumbas, depois podemos começar a fazer o bolo de milho verde. A

moça

concordou

e,

em

silêncio,

saiu

desamarrando e libertando as pequenas imagens do santo espalhadas pela casa. — Deixa eu ver, tem a da geladeira, a outra debaixo da cama, a que está no forno, a que tá pendurada no teto... Será que esqueci alguma, meu Deus? Voltou à cozinha e a mãe já estava com o caderno de receitas na mão, pronta para começar.

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— Eu vou lhe dizendo o que fazer e você vai misturando a massa enquanto reza em voz alta; é assim que se faz, entendeu? — Como é que a senhora sabe, mãe? — Ora, como é que você acha que eu peguei o seu pai? — as duas caíram na risada, cúmplices. — Vá colocando aí, uma xícara de milho verde… — Meu glorioso Santo Antônio, grande amigo do menino Jesus. — Uma xícara de açúcar, uma xícara de óleo… — Escutai nosso pedido — a moça ia mexendo com fé. — Quatro ovos, uma lata de fubá. — Sede nosso protetor. — Duas colheres de sopa de farinha de trigo. — Eu confio em Vós, santinho poderoso! — Uma colher de chá de fermento em pó, uma xícara de coco ralado. — Bem-Aventurado Antônio, que tivestes a sublime dita de abraçar e afagar o Menino Jesus, alcançai deste mesmo Jesus, a graça que Vos peço e Vos imploro do fundo do meu coração. — Aracélia misturava a massa com força e fé.

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— Agora misture mais ainda para obter uma consistência cremosa e depois despeje a massa numa assadeira untada e coloque no forno. — Protegei a nossa vida e livrai-nos do mal, amém. — Meu querido e glorioso Santo Antônio, eu lhe prometo que se me alcançar essa graça, vou ser Sua fiel devota até a morte, vou dar o nome de Antônio ao meu primeiro filho — a mãe a olhava, aprovando. — Vou me manter casta e pura até o dia que encontrar minha alma gêmea. — Não prometa o que não pode cumprir. Também não precisa exagerar. O bolo ficou belo e dourado, com uma aparência irresistível. A moça o embalou cuidadosamente em papel alumínio e guardou num Tupperware para levar na viagem. Ao final do dia as duas amigas embarcaram no ônibus que as levaria ao tão sonhado destino. Estavam eufóricas, planejando cada detalhe da temporada na cidade. — Nesses três dias que passaremos lá vamos ter tempo de ir na procissão do Pau da Bandeira, na quermesse e na missa de encerramento da festa. — Benvinda estava agitada, ansiosa para contar à amiga 81


todos os pormenores do evento que ela já conhecia. — De manhã cedo os homens vão pros matos procurar um tronco para servir de mastro pra bandeira de Santo Antônio. Você precisa ver a animação, é muito homem junto, uma festa para os olhos! Tem que ser um tronco grande e forte, por isso é preciso muita força para transportar. Durante o trajeto tem comida e bebida, muita música para animar. Os homens bebem muito e as mulheres fazem de tudo para tocar no tronco ou se sentar nele pra arranjar marido, sabe? É muito importante também tomar o chá da entrecasca do Pau de Santo Antônio; dizem que é tiro e queda! Aracélia escutava a amiga, encantada. — Nossa, que maravilha. Vou fazer tudo como manda o figurino, tomar o chá, pegar no tronco e sentar no pau. Dessa vez tem que dar certo. — Mulher, não tem erro, vai dar certo! Oxente, claro que vai. Nós vamos conseguir, tu vai ver. Ao amanhecer, o veículo entrou na rodovia que conduzia ao centro de Barbalha. De longe a moça avistou a nave da matriz: — Valha! É a igreja que eu vi no sonho! — Ôxe, é mesmo?!

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— Igualzinha. Assim que chegar na casa de tua tia, vou só trocar de roupa e partir pra lá. Tô morta de curiosa. — Eu também, mas ainda é muito cedo, mulher, a igreja nem abriu. Dá tempo da gente tomar café antes de ir. — A gente não. Eu vou só. — A amiga a olhou, frustrada. — Foi assim no sonho que tive, eu entrava sozinha. Não quero estragar nada fazendo diferente. Depois lhe conto tudinho. Seguindo as recomendações da amiga, Aracélia arrumou-se cuidadosamente, tomou o bolo nas mãos e partiu para a igreja matriz. Entrou pela porta lateral, a única que estava aberta naquele horário, e seguiu pelo corredor. A moça ficou pasma. Era exatamente igual ao que vira no sonho. Avançou com as pernas trêmulas até o lugar onde havia um altar com um homem de costas ao lado. Ele virou-se ao sentir sua presença. Olhou-a surpreso, sorrindo de leve: — Olá! A missa só começa às sete e meia. — Você não é padre, é?! — Não, eu sou o sacristão — ela respirou aliviada. — Trouxe esse bolo pra você.

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— Pra mim?! Que maravilha, ainda não tomei café da manhã. Aceita tomar um café comigo? Ele a encaminhou para a sacristia, pegou uma garrafa térmica e serviu duas xícaras, depois partiu o bolo e o provou. — Nossa, que delícia! Meu Deus, parece o bolo que mamãe fazia! Como adivinhou que eu adoro bolo de milho?! Ela ia começar a contar quando foi interrompida pela chegada do padre. — Hum, que cheirinho gostoso de café! Depois de comer várias fatias do bolo com café, o padre não se conteve: — A mulher que faz um bolo delicioso desses vai dar uma ótima esposa! O sacristão olhou para Aracélia, interessado. — Ela trouxe pra mim. — Parabéns, Salomão! Você soube escolher. Depois que o padre se retirou ele a olhou, dizendo, — Podemos ir juntos pra quermesse hoje, se você quiser. — Sim, quero — tudo estava acontecendo rápido demais, pensou um pouco atordoada.

84


Despediram-se, combinando se encontrar mais tarde na praça da Matriz. Os dois estavam conversando há horas, sentados num banco da praça. Tão absortos estavam na conversa que nem notaram a chegada de Benvinda, toda esbaforida, segurando algo nas mãos. A moça tinha um ar aborrecido: — Mulher, tu sumiu! Te procurei por toda parte, onde tu se meteu, criatura de Deus?! — Eu tava aqui o tempo todo, conversando com o Salomão... — Mas tá quase na hora da procissão, tu não vai se arrumar? Depois da missa na matriz vai ter o show da dupla sertaneja. Avia, mulher, se não num vai dar tempo, tem muita gente na cidade, a maior animação! Ela falava tão agitada que nem permitia à amiga responder, balançando o saquinho de plástico na mão. — Já comprei o nosso kit casamenteiro! Aqui tem o chá, as ervas para os banhos e o perfume afrodisíaco pra colocar nos cabelos — falava quase sem tomar fôlego. — Ainda temos que nos arrumar antes de ir pra procissão e tentar sentar no pau da bandeira, lembra?! Salomão olhou para ela, surpreso. 85


— Mas esse ritual é pra mulher que tá caçando marido, sabia? — Claro! E ela está! Aliás, nós duas estamos. — Ela não. Ela estava, não está mais — ele passou o braço

sobre

os

ombros

de

Aracélia,

puxando-a

suavemente para si. — Ela já encontrou.

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88


FAROFA DOS DEUSES Adriano B. Espíndola Santos

Acordou com os galos, às cinco da manhã, recomposta e disposta; fez o sinal da cruz e seguiu para a cozinha, intuindo o que iria fazer, muito mais atenta ao preparo tradicional do prato que na conquista — esta, para ela, se tivesse de ser, seria uma consequência natural. Colheu a lenha para o fogão e acendeu o fogo. Caçou uma galinha de capoeira graúda no quintal, tratou e entornou na panela já aquecida. O prato seria a célebre galinha à cabidela, com o caldo que só sua mãe e ela sabiam fazer; para desmanchar na boca e despertar prazer divinal. Mas não podia se esquecer, jamais, da bendita porção de farofa, de farinha nova, colhida no dia anterior, na farinhada. É preciso dizer que a farinha era crocante, caroçuda, como dizem, porque, conforme a prevenção de sua mãe, “tem de estalar na boca e embeber o sumo da galinha”. Aí, entregou-se ao processo, com a vontade viva, primeiro, de dar orgulho à mãe; com a saudade de arder o peito da mulher que a criou e que partira, anos atrás, para os 89


braços do Pai. Tudo a fazia ser envolvida pelo mais puro amor. Às onze já estava a postos, com a roupa que separara para o festejo e que assentara muito bem à situação. Rumou, serelepe, cedendo sorrisos por onde passava; despertando alegria nas vizinhas, que não a viam assim há tempos. “Onde vai essa moça tão bonita?”, disse Lourdes; pelo que, como resposta, Neuza suspirou, um pouco desconcertada, e afirmou que iria encontrar o amigo César. Lourdes sorriu de volta e liberou o singelo sinal, como se compreendesse o sucedido: “Hummmm... Pois minha, filha vá com Deus e Nossa Senhora!”. *** Na tarde anterior, Neuza havia saído, meio errante, para caminhar pelos confins da cidade. Lógico, tendo dois mil habitantes, não poderia ir muito longe. Pensava em passar na paróquia, ao menos para se benzer, quando foi cooptada por Maria, sua amiga de infância, para lhe contar o de sempre — que ela jurava ser novidade, para incitar a atenção da cabreira Neuza. Pararam, como de costume, embaixo de um pé de juazeiro, pois que, frondoso, encobriria os ruídos 90


incessantes de Maria. Desta feita, era verdade: a novidade era César. O filho da cidade havia retornado à casa dos pais, para uma breve temporada; para espairecer, já que, a notícia que corria, agora era doutor e não tinha tempo, na cidade grande, nem mesmo de tomar um ar. Maria desembestou a falar, ansiosa: que teria pouco tempo para encantar o rapaz; que tinha certeza de que ele tinha vindo buscá-la; que prepararia os melhores quitutes para envolver o moço bonito pelo estômago. Neuza, claro, não acreditava em nada daquilo. Virava a cabeça, por vezes enfastiada do bodejo; ao passo que era cutucada pela amiga, porque não gostava de “falar com as paredes”. Foi com espanto que escutou as seguintes palavras: “Eu prendo o homem, boto um cabresto que ninguém duvida... Sinhá sabe do que sou capaz”. De fato, Maria, mais conhecida como Maria Espevitada, era mulher determinada; mais que isso, passasse um que a desvirtuasse do caminho, seria capaz de fazer o inferno. E o inferno, para descrever aqui, era pouco. Antônio, homem simples e da lida, foi o seu “primeiro amor”; um romance acanhado, mas vigoroso, por parte dela. A pressão foi tão grande, de querer controlar os seus passos, literalmente, que não sobrou

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nem rastro do sujeito. Conjeturam um sumiço forçado. Mas, pensa Neuza, isso são as más línguas que dizem. Na prosa atarantada, Neuza deu indícios de sair; não aguentava ouvir tanta bobagem. Foi, então, cerrada pelas garras da besta suçuarana; deveria escutar tintim por tintim. O que Maria queria, na verdade, era bolar um plano que contava com a “ajuda” inestimável de Neuza. Assim despachou: “Você, que era mais chegada ao César, ficará responsável por chamar ele à minha residência. Lá, conversaremos umas besteiras sobre a vida e os planos que tenho de deixar, de vez, essa cidade mixuruca. Depois, agarro o homem pela barriga e aplico o bote: com um beijo meu, ele não vai me largar mais é nunca!”. Neuza, veemente, afirmou que não teria tempo e não se prestaria a isso; que estava ocupada, preparando as fazendas e as roupas, inclusive da dona Felisberta, a mãe do dito cujo. Num pulo, Maria se embolou com as palavras e suplicou que Neuza não fizesse o trabalho; que ela mesma teria prazer em cumprir com a obrigação, que, julgava, seria uma artimanha para ir entrando na família — sem saber sequer colocar uma linha no buraco da agulha. Neuza, fazendo pouco caso, perguntou se estaria doida ou algo do tipo; que não contasse com o ovo dentro

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da galinha; e que uma coisa não tinha nada a ver com a outra; que esse era o seu trabalho. Ambas, como num passe de mágica, quedaram paralisadas com a imagem que vislumbraram no horizonte. Era César, um legítimo príncipe do sertão, garboso, muito bem pronto, com camisa de linho, da melhor qualidade; calça jeans boca de sino; um chicote trançado a tiracolo, e um chapéu estilo cowboy; um homem e tanto para aquelas paragens. Maria, intrépida como de costume, não esboçara reação, enquanto Neuza, recomposta do abalo, olhou fixamente para o moço bonito, levantou-se de onde estava — e parecia estar em transe —, jogou algumas palavras inaudíveis das quais se poderia pinçar “tudo bem”, “vamos conversar”. Decerto, para não ficar por baixo, acordada da catatonia, Maria repetia a mesmíssima ladainha,

aguardando

ser

atendida

quase

se

engasgando de paixão febril. Não era de se esperar – claro, César teria mais o que fazer do que jogar conversa fora com duas desocupadas – Neuza pensou,

mas

ele atiçou o cavalo com leves

cutucões, para que marchasse, da maneira mais sutil e bela, em direção às afortunadas moças. Aperreada, Maria tentava, em vão, aprumar os cachos desgrenhados. Neuza, 93


no entanto, continuava a olhá-lo firmemente, passando as mãos, de forma ordenada, na roupa puída, que, em sonho, pensou ser um vestido de princesa. E olhou para os pés, supondo estar calçada em sapatinhos de cristais; quando, a bem da verdade, eram japonesas bem gastas, as mesmas que usava há cinco anos — com um prego, imperceptível, no cabresto de uma delas. “Olá, moças, lembram de mim? Sou Augusto César, filho de Dr. Nicanor, o farmacêutico”. “Ah, sim, como não?!”, tratou Neuza, enleada pela beleza reluzente. “O que fazes por aqui?”. “Vim tirar uns dias de folga. A jornada estava me acabando. Me formei em Odontologia; sou dentista, agora, e pretendo vir trabalhar por essas bandas”. Como um raio, vendo-se enjeitada na prosa, Maria acordou e liberou, sem tomar fôlego, o que tinha engasgado: “Será um imenso prazer ser sua primeira paciente, meu amor!”. César olhou-a com um ligeiro assombro, mas, logo, veio à mente a imagem da menina fantasiosa, desmiolada. Era assim que visualizava a referida figura medonha — e mal ela sabia. Havia, em alguma medida, repulsa e receio. Gostava, mesmo, de conversar com Neuza, sua amiga de velhos tempos, dos bons tempos de escola.

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César, além do mais, ficara incomodado com o tal do “meu amor”. Como assim? Não a via há anos, e quando eram crianças e adolescentes nunca foram tão próximos. De certa forma, para desespero de Maria, ele a ignorou, contemplando as frases compassadas, bem articuladas, de Neuza. Aproveitando o instante, para não passar batido, César foi quem se prontificou a convidar Neuza para um almoço em sua residência e, para não ser indelicado, teve de chamar Maria também. Mas advertiu, teriam de levar algum prato, porque queria apurar os sentidos; relembrar as comidas gostosas do lugar. Pronto, a deixa que Maria esperava. Logo determinou-se a dizer que era a melhor cozinheira da redondeza, e que fazia questão de levar algo surreal, comparado a um manjar etc. e tal. Neuza, acanhada com a ferocidade da amiga, disse que prepararia uma comidinha caseira, das boas, com o tempero de mãinha — ora, mãinha, dona Deusa, foi cozinheira no Bucho por Acolá, único restaurante da cidade, de beira de estrada, por muitos anos; e era conhecida pelos dotes culinários. Despediram-se e marcaram o encontro dali a dois dias, uma quinta-feira, dia de Santo Antônio, padroeiro da cidade, com o intuito de combinar a reunião com os 95


festejos. Maria não cansava de acenar para o príncipe do sertão. Neuza, por sua vez, olhava para o céu, rogando a Deus, pedindo uma luz para que não passasse vergonha nos preparos. Maria se enclausurou; estava certa de que participava de uma competição gastronômica. Neuza chegou a bater na porta de sua casa, querendo dividir os pensamentos, para que, inclusive, não fizessem pratos iguais. Maria não deu confiança. Neuza entendeu que a colega levava o caso muito a sério; era situação de vida ou morte, para ela. Neuza se lembrou da farinhada, no sítio do tio Genésio, e partiu, como se não houvesse amanhã; agora era sua vez de espairecer. Lá, esquecera até do almoço, porque havia uma linda comunhão de gente amorosa, com cânticos, bebidas e animação. O processo estava avançado e tia Luziane, esposa de Genésio, a incumbiu de se juntar às descascadoras de mandioca — era uma de muitas mãos irmanadas. Os tratamentos, como chamam, eram intercaladas por danças e gracejos; ninguém ficava parado. Assim foram até o começo da noite, felicitando-se pelo primoroso trabalho. A farinha abundava; estava torrada e

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em ordem para o dia do padroeiro da cidade. A festança, pelo menos por essas bandas, começa é cedo. À noitinha, cansada e feliz, Neuza recordou do compromisso, que não teria o peso cogitado pela, agora, adversária. Entoou as rezas habituais, consagrando-se a Maria Mãe, e deitou-se na rede que, muito a propósito, quedava aos pés da janela, para, por uma fresta, ver as estrelas e começar a sonhar. *** Aportou pontual, sendo recebida por César, que a esperava na porta. “Entre, entre. Sinta-se em casa, Neuzinha!”. Ora, o diminutivo em seu nome tinha muito a dizer; mas, na hora, ela alcançou somente a gentileza de um cavalheiro nato. Ao atravessar a antessala, enorme, avistou Maria e se tremeu toda; um calafrio quis imobilizá-la, mas somente por um instante, pois que foi amparada pelo digníssimo homem, para deixá-la à vontade

numa

poltrona

na

sala.

Maria

não

a

cumprimentou. Estava pronta para a disputa. Era nítido, até para César, que Maria demonstrava despeito e enfado com a chegada de Neuza.

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Mesmo sendo interrompido constantemente por Maria, com as histórias mais fingidas, de louvores à própria pessoa, César conseguiu liberar a ansiedade de Neuza, e conversaram sobre a cidade, a profissão da distinta e afamada costureira, e acerca dos prognósticos de fartura, visto que, naquele momento, caía uma esplêndida chuva, de varrer a calçada. A chuva, ainda mais, dispersava as imprecações dos olhares enviesados de Maria, que não se conformava com a atenção dispensada por César a Neuza. Maria, então, falava, com grande deslumbre, que ganhara o prêmio cobiçado da região, de rainha do milho. César não deu bola, fez cara de dúvida, porque os causos de Maria já andavam pela estratosfera; ele queria saber de outros agrados. Levou-as à sala de janta. Sentaram-se, sem formalidades, nas cadeiras acolchoadas da mesa de madeira de lei. Tudo muito bonito; ofuscante, até, aos olhos das visitas, acostumadas à vida comezinha de mulheres do campo. Maria, no entanto, se colocava em alto pedestal, como para se equiparar ao requinte, vertendo mais um de seus embustes, que iria cursar Enfermagem para cuidar dos pobres — era perceptível para os demais a inclinação para a mentira.

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Quando os pratos foram distribuídos à mesa, Maria fez questão de destrinchar o cuidado e o amor quanto à sua elaboração. Era carne de sol com macaxeira, nada mais simplório e comum por aquelas bandas. Neuza, cabisbaixa, ouviu de César que seu prato dava água na boca; e, assim, acreditou que seria bem-sucedida em seus desígnios. Foi só César experimentar a comida de Neuza, com gosto desmedido, dar uma colherada na farofa e decretar: “Que farofa dos deuses!”, para Maria se aperrear. Levantou-se de seu assento, fez sugestão de ir embora; mas, logo, não sendo mulher de deixar barato, pegou a tigela da farofa e derramou inteira na cabeça de Neuza, que, por conseguinte, vendo-se assustada e agredida, desandou a chorar. César, com um grito, mandou que Maria se retirasse imediatamente do recinto. Maria, ainda por cima, pegou o que tinha levado e jogou no chão: “Pronto, não faço empenho! Nem queria mesmo... Vão comer nos infernos...”; e saiu humilhada, devastada, prometendo se vingar dos dois. César acolheu Neuza em seus braços. Disse que não esperava tamanha calhordice da imunda da Maria; pensava que, depois de tantos anos, havia se aprumado.

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Pediu desculpas a Neuza e continuou abraçando-a, até que o soluço e o choro cessassem. Logo mais, terminaram de comer, lado a lado. E Neuza, aí, sentiu um calor diferente, como se César a quisesse aliviar de todos os males — e era exatamente isso. Convidou-a para irem, juntos, ao festejo. De lá, engataram no amor, ingênuo, sincero. Não se desgrudaram mais na estada de César, que durou além do previsto. César se decidiu, acalmando o coração da amada: “Vou trabalhar aqui, custe o que custar. Quero ficar com você, Neuzinha”. Prometeu que os dias, dali em diante, seriam de luz; e Neuza, por seu turno, assegurou que todos os dias teriam a “farofa dos deuses... E tanto, até para meu bem se banhar, se quiser...”; e riram-se, completos.

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A REVOLTA DO PIRÃO Ana May Brasil

Com as pálpebras fechadas, porém já acordada, tentou ouvir os sons da casa. Gritos da mãe tentando obrigar os irmãos maiores a largar seus cantos de dormir. Latido do cão que já fora seu e agora morava com o vizinho. Barulho dos carros passando no viaduto bem ao lado do barraco. E aquela dorzinha de quem acorda com fome. Sua última refeição, que sua mãe chamava de pirão, se dera há mais de dez horas. Será que hoje ela iria pedir esmola no semáforo? Só ia quando a quantidade de carros no caminho da praia aumentava bastante. Nesses dias sua mãe levava os três filhos e não arredava o pé de ficar olhando, da esquina seguinte, os garotos se virando entre os veículos que esperavam o sinal abrir. Eles permaneciam estendendo as esquálidas mãos aos motoristas até conseguirem algum dinheiro para o almoço ou então serem enxotados por guardas de trânsito.

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— Fingindo que está dormindo, né, danada? Venha logo. Tem que ir à padaria. Ritinha se sentia importante de ser ela a garantir o complemento diário do ralo café da manhã. A mãe designou-a após constatar que causava mais dó e, por isso, abiscoitava sempre alguma coisa: pão dormido, pedaços refugados de outros produtos e, às vezes, até caixas de leite com validade recém-vencida. A preguiça e o receio de ir sozinha ao local, duas quadras distante, retardava a menina.

Ela

contava

apenas

seis

anos,

todavia

apresentava aquela maturidade precoce das crianças muito exigidas pelo meio em que vivem, cheio de perigos e onde os adultos não têm tempo de lhes dar a devida atenção. Depois que tomaram o café, com o que trouxera a caçula, a mãe anunciou que ia visitar sua comadre, e antiga patroa, junto com Rita. Os outros dois filhos deveriam ir à chácara onde o pai trabalhava. — Aquele cachorro precisa ser atacado logo no começo do mês, se deixar pra depois bebe o salário todo e vocês sobram. Não mora com a gente, mas continua pai de vocês, oxente! — Mas mãe, da última vez que a gente foi lá levou a maior bronca do pai e ele disse que vinha aqui trazer o 103


dinheiro todo mês. Falou até que sabia cumprir ordem de autoridade. — Vamos ver... Sei de vários casos de homens que começaram pianinho com o juiz e depois largaram a mão. Quero nem pensar no trabalhão de conseguir essa pensão de novo. Madá aparentava ter mais do que seus trinta anos, o que se justificava plenamente pela vida desgastante que sempre teve. A pobreza dos pais, agricultores no interior do Ceará, lhe obrigou a vir, com apenas treze anos, se empregar como doméstica em Fortaleza. Depois de passar por duas famílias fixou-se numa terceira de onde só saiu para se casar com o cuidador do sítio dos seus patrões. Teve três filhos e os desentendimentos com o marido começaram quando ela se negou a interromper sua terceira gravidez, pela qual ele dizia não ser responsável. Acabaram se separando e ela assumiu sozinha os filhos. Com as crianças muito pequenas sob sua inteira responsabilidade se virava com o bolsa família e as incertas

ajudas

do

ex-marido.

Aprendeu

vários

expedientes com as novas vizinhas do bairro para onde se mudou. Treinou a molecada a angariar dinheiro de qualquer jeito e em todo lugar. Regularmente ia, com

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Ritinha, pedir restos de comida em feiras livres e restaurantes. A grande batalha diária deles se fixava na alimentação, mais fácil de arranjar nos horários de almoço quando se realizavam as feiras e o movimento de veículos e pessoas se fazia intenso no bairro. Ao anoitecer tornava-se quase nefasto: mal iluminado, sem circulação de carros e com pouca frequência das pessoas que apareciam durante o dia. Chegava a hora da prostituição, do tráfico e das batidas policiais que só aumentavam a tensão nas ruas. De noite, trancada em casa, a família, muitas vezes, só comia um caldo de resto de feijão com farinha (um pobre pirão) que a mãe fazia para os moleques comerem antes de irem dormir. Aos sábados, arranjava o impossível para encher a barriga dos filhos garantindo que adormecessem logo. Então, pedia a uma vizinha de parede pra ficar atenta a qualquer coisa e saía, se escondendo, para um programa só seu. Um raro momento em que se permitia tirar os olhos dos filhos. Tinha como diversão participar de uma quase-feira numa beira de praia, na zona pobre em que morava. O ajuntamento começou reunindo pescadores para troca de produtos do trabalho do dia e arrumação das pescarias do 105


próximo amanhecer. Porém a coisa foi crescendo e se tornou um verdadeiro ponto de encontro dos moradores das imediações. Havia troca, compra, empréstimos e até combinações frequentadores.

de

compartilhamento

entre

seus

Acabaram surgindo as bebidas e um

forrozinho — estava estabelecido o lazer do arrabalde. Foi nesse ambiente que Madá fez amizade com a auxiliar de cozinha Cidona, que também se virava sozinha com os filhos, e tinha muita dificuldade de conciliar o cuidado deles com o horário do trabalho. Ela viera de longe fugindo do homem que se julgava seu dono e de quem cansou de apanhar. O apelido que ganhou na vizinhança foi o reconhecimento pela força que demonstrou ao escorraçar o ex-companheiro que pretendia levá-la de volta pra casa. As duas mulheres possuíam muita coisa em comum e depois de descobrirem que moravam pertinho estabeleceram um proveitoso intercâmbio de favores, com a disponibilidade de Madá em cuidar das crianças da amiga, quando ela precisava ficar mais tempo no restaurante, e a possibilidade de Cidona lhe arranjar sobras de comida quando voltava de lá.

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O caldo de feijão com farinha que mãe e filhos costumavam comer à noite passou a ser enriquecido com as sobras trazidas. — Mulher, tu agora já começa a ter um pirão, mas o bom mesmo é o de peixe. Vou te trazer umas cabeças e te ensinar uma receita que rola na minha família faz tempo. Depois que seguiu a receita da colega seus meninos passaram a dar o maior valor à comida da noite. A essas alturas, em sua feitura, ela levava farinha de mandioca, coentro, cebola, alho, colorau, pimenta-do-reino e — o essencial — cabeça de peixe. Foi a partir da super aceitação dos filhos que as duas mulheres tiveram a ideia de vender, no forró da praia, algumas quentinhas de pirão. E a coisa deu certo demais. Quando começou a ser comercializado suas produtoras não contavam com nenhuma experiência e isso levou-as a ganhar muito menos do que seria possível. A receita inicialmente usada contava com produtos bem naturais, contudo custavam muito porque adquiridos em pequenas

quantidades.

Também

compravam

as

embalagens nos supermercados próximos onde moravam e ainda chegaram a contar com um auxiliar nas vendas que as ludibriava com facilidade.

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Felizmente Madá contou a história do negócio para a sua ex-patroa, e o marido dela que trabalhava no Sebrae sugeriu que fosse procurá-lo no trabalho. Sendo mais despachada, foi Cidona quem obteve dicas fundamentais para levar à frente o empreendimento. Passaram a fazer compras de material a granel, conseguiram uma auxiliar de vendas honesta e acertaram, com os próprios pescadores, a aquisição das cabeças de peixe, mesmo porque a auxiliar de cozinha deixou o restaurante. O comércio ia de bem a melhor, as vidas das famílias se ajeitando, quando surgiu um fiscal da prefeitura implicando com a venda das quentinhas. Num sábado, ele chegou no forró com dois comparsas e, antes que o pessoal amigo percebesse o que estava acontecendo, confiscaram as quentinhas que encontraram expostas. O prejuízo foi grande, mas o pior ainda estava por vir. O funcionário do município, na verdade, estava prestando serviço ao dono do restaurante onde Cidona trabalhara, o véi Venâncio, como era conhecido.

O

homem queria descobrir como as parceiras preparavam o prato, pois soubera do seu sucesso. Imaginava servir a comida no seu estabelecimento e ainda comercializá-lo, em larga escala, pela badalada orla marítima de Fortaleza.

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A receita que passou a ser feita no estabelecimento de Venâncio levava praticamente os mesmos ingredientes do “Pirão da praia”, entretanto recebia acréscimos em demasia, tais como azeite de dendê, leite de coco, óleo de urucum e outros produtos industrializados. Tudo isso nem sempre bem dosado. Também havia a vaidade de Venâncio que deixava de dar seu toque ao alimento. As duas mulheres estavam cada vez mais afiadas em tudo que dizia respeito ao trabalho que passou a sustentálas. Dedicavam-se de corpo e alma sobretudo ao preparo do alimento. Quase todo dia as duas acordavam às quatro e meia da manhã. Uma ia para a CEASA e a outra para a praia onde aguardava a chegada dos peixes, em frente ao entreposto de pesca que recebia o produto das zonas pesqueiras de Fortaleza e proximidades. A primeira escolhia os mais frescos e melhores componentes do prato, a segunda garantia as fundamentais cabeças dos peixes antes que elas sofressem qualquer refrigeração. E assim asseguravam a qualidade e o mais baixo preço. O dia a dia (ou a noite a noite) dos frequentadores da ponta de praia onde se dava o forró continuava sem muitas alterações, no entanto, do outro lado da vida tudo evoluía. O velho Venâncio tinha filhos, cobras criadas, que peitaram inteiramente a ideia do pai de vender 109


quentinhas

nas

praias

fortalezenses.

Começaram

atingindo as zonas mais lucrativas, porém chegaram até as mais insignificantes. O sol mal havia partido do cenário quando os vendedores habituais do forró perceberam que o local separado para Cidona e Madá estava tomado. Dois rapazes corpulentos e uma sirigaita, vestidos com camisas estampando “Pirão Gostoso” e cercados por várias caixas de isopor, ocupavam o território. A notícia se espalhou, tão rapidamente como nas redes sociais, e seu efeito causou uma catarse coletiva. As duas nem tinham visto a trinca usurpadora, quando foram envolvidas, assim que se aproximavam, por um monte de gente que partiu pra cima dos invasores colocando-os pra correr e espatifando todo o material que trouxeram. Tudo aconteceu espontaneamente, mas teve o efeito de despertar um sentimento de solidariedade que garantiu a posse popular daquele espaço, pois a grande arruaça chamou a atenção da mídia e foi aproveitada como mote de campanha de um candidato a vereador. O danado batizou o evento de “A revolta do pirão” e tirou dela o maior proveito possível junto aos moradores e frequentadores do local. Bom foi que a barafunda pressionou a prefeitura a conceder uma licença de 110


funcionamento para as festas de sรกbado do jรก famoso forrรณ da praia.

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A RAINHA DA MACAXEIRA FRITA Cupertino Freitas

Marilda saiu da casa dos pais, num vilarejo de péde-serra, pra trabalhar como babá numa cidade praiana. Por conta da má influência das novas amizades, em pouco tempo deixou de ser a ingênua do sertão. Virou presepeira. Toda noite, depois do expediente, se maquiava, saía a bater perna e voltava de madrugada, corpo esgotado de tanto deleite. Numa dessas saídas, bebeu mais do que devia e pernoitou na casa de uma amiga. Só apareceu no serviço às

dez

da

manhã,

de

ressaca.

Foi

despedida

sumariamente. Sem querer retornar à casa dos pais, se ofereceu para ajudar na preparação do banquete de aniversário do patrão de uma de suas companheiras de farra. Se tudo desse certo, poderia até ficar em definitivo, pensou. Na divisão das tarefas, a amiga pediu para que se encarregasse da macaxeira.

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— Sabe fazer, né? O patrão é alucinado por macaxeira frita. — Claro, é como quem faz batata frita, é só descascar, cortar os pedaços e colocar no óleo quente. — Não, mulher, primeiro tem que colocar na água e ferver pra ficar mole. Mas não pode deixar desmanchar. Tem que ficar um pouquinho dura senão quando for fritar não fica crocante. — É, pode fazer assim também… se quiser. Enquanto papeava com a amiga, que preparava um assado de panela, além de arroz e salada, Marilda cortou os pedaços de macaxeira de qualquer jeito, uns pequenos, outros grandes demais, a coisa toda não estava nada apresentável. Até virou o corpo assim meio de banda, pra que a outra não visse que a qualidade do seu serviço não era lá das melhores. Depois jogou os pedaços na panela com água fervente e desandou a falar das estripulias na festa da noite anterior, às gargalhadas. Conversa vai, conversa vem, deixou passar o ponto da macaxeira. — Essa macaxeira tá mole demais! — Tá não, vai ficar ótima, confie que eu sou a rainha da macaxeira frita! — disse, pegando um pedaço todo se desmanchando e quente demais pra ser manuseado.

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— Mulher, tenho que ir ao banheiro urgentemente. Olhe aí o assado e o arroz, por favor! — Pode ir sossegada. Marilda pôs óleo e um palito de fósforo numa panela, checou o assado, deu uma baixada no fogo, ou achou que deu, experimentou o arroz, ainda estava duro, acrescentou água quente. O fósforo acendeu dentro do óleo, temperatura boa para fritura. Ela despejou a macaxeira na panela, tampou. Cinco minutos até que ficasse douradinha; dava tempo. Bisbilhoteira irrecuperável, aproveitou para ir ao quarto da dona da casa ver o que havia sobre a penteadeira. Distraiu-se com a quantidade de perfumes da mulher, testou as fragrâncias, as adocicadas, as cítricas, as amadeiradas, demorou a se dar conta do cheiro de queimado; o assado, esturricando no fundo da panela. O que se sucedeu seria cena de comédia pastelão se não tivesse um triste fim: ela pegou na panela do assado sem atentar para o fato de que estava pegando fogo, queimouse e jogou-a contra a que estava fritando a macaxeira, que despencou do fogão, esparramando óleo quente e macaxeira frita pelo assoalho, atingindo a amiga que voltava desesperada do banheiro, arruinando o jantar e as canelas desta. 115


A amiga foi hospitalizada, demitida e virou-lhe as costas. Sem ter pra onde ir nem a quem recorrer, Marilda juntou suas roupinhas em duas sacolas e subiu no ônibus, era o jeito voltar para a casa dos pais. Foi se espremendo pelo corredor até chegar a seu assento, ao lado de uma passageira com a maquiagem exagerada a disfarçar uma cara cansada. — Linda a cor do seu batom! — comentou. — Estou indo visitar mamãe e faço questão de ir toda pintada — disse a senhora, que falava como se a mandíbula estivesse prestes a se despregar do crânio. — Pra ela ver como estou bem de vida. — Onde ela mora? — No campo santo. Morreu quando eu era pequena. E você está indo pra onde? — Pra qualquer lugar onde possa arrumar um serviço. Meu nome é Marilda. — O meu é Liduína. Trabalha de quê, Marilda? — De babá, de cozinheira, de arrumadeira, de engomadeira, de costureira; tudo eu sei fazer. — Valha, como tu é talentosa! Eu só sei fazer comida, e assim mesmo eu deixei esse negócio de cozinha pra lá que minha vida tomou outro rumo.

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A conversa engrenou. Em pouco tempo Liduína arrematou: — Vou te passar um bizu, pois gostei do teu jeito. Desce aí nessa rodoviária e procura Soledade Chaves. Ela é dona de uma marmitaria e tá precisando de gente pra cozinhar. Patroa boa, já trabalhei pra ela. Diga que fui eu que indiquei. Marilda estava decidida a se comportar e não causar destroços, mas a moça era mesmo atrapalhada. Quando desceu do ônibus com as sacolas, uma em cada mão, levou uma topada e foi tudo pelos ares. Ficou no chão gemendo e fazendo caretas, esperando ajuda, mas era Dia de Finados e as pessoas partiam ou chegavam para visitar seus mortos sem se importar com a dor dos vivos. Levantou-se com alguma dificuldade e ficou sentada num banco tentando estancar o sangue no joelho. De repente, o estômago reclamou carinho e ela sentiu saudade do cozido de carne, com caldo grosso, a macaxeira molinha, quase se desmanchando. E se lembrou da última presepada, por que diabos foi dizer que sabia fritar macaxeira? Algum tempo se passou até aparecer uma alma boa, o pipoqueiro, que lhe ofereceu água e guardanapos. Depois de fazer uma rápida limpeza no arranhão, Marilda 117


comprou um saco de pipoca pra enganar a fome e perguntou ao homem onde ficava a casa de Soledade Chaves. Disse que se empregaria na casa da mulher como cozinheira. — Vá reto, reto toda vida, até encontrar uma farmácia, dobre no rumo da praça da matriz, de lá dá pra ver a torre, e na praça, quando chegar, pergunte ao Zé pipoqueiro, meu irmão caçula, que ele sabe informar; Zé conhece só Deus e todo mundo na cidade. Marilda seguiu as instruções, ou achou que seguiu, pois não viu a farmácia, lesada como era, e foi bater na beira do rio. Depois de muito anda-anda, muito topatopa, chegou à praça da matriz e perguntou ao pipoqueiro, irmão do primeiro, onde ficava a casa de Soledade Chaves. Este levou a mão ao queixo, matutou, olhou pra um lado, pra outro, franziu a testa e desistiu: — Aqui mesmo não tem ninguém com esse nome não! — Mas Liduína disse que ela mora aqui. — Liduína? Liduína que tem um sestro na vista? Ou a da boca mole? — Acho que é a da boca mole. — Marilda moveu o maxilar inferior pra frente, imitando o jeito de falar da outra. 118


— Ah, é ela mesma! Cê fez direitim o jeito de Liduína boca mole… vai querer uma pipoquinha? — Quero! Eu tava doida mesmo era pra comer um cozido de carne com macaxeira, igual ao que minha mãe prepara. — Tem lá no mercado. — Agora vou de pipoca mesmo, é o jeito. Marilda pagou a pipoca e o homem continuou: — É de dona Sol que cê tá atrás, viúva do finado coletor, ela usa umas tranças bem grandes desde que enviuvou, o povo diz que é promessa. Mora num sobrado na rua da Cruz, que vai dar na beirada do rio. É só voltar por onde cê veio, aí na farmácia vira pra direita… não, pra esquerda, como quem vai pro rumo do rio, e segue nesse beco que vai bater lá. O sobrado fica mesmo de frente de um pé de nim. Com o bucho cheio de pipoca, Marilda finalmente chegou ao seu destino. Soledade Chaves, a dona Sol, tinha acabado de chegar do cemitério e tomou um susto ao ver aquela moça de aparência inocente entrando pelo portão logo atrás de si, com duas sacolas, mancando e, sem cerimônia, apresentando-se como sua nova empregada.

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— Liduína, a da boca mole, falou que a senhora tava atrás de gente pra trabalhar. E eu tô precisando arrumar um serviço. Olhe que coincidência! — Liduína com aquela mania de ajeitar as coisas sem falar comigo. Qual sua idade? — Vou fazer 20, já. — Marilda tinha acabado de completar 18. — E a senhora tem uns 40, né? — mentiu, descaradamente. — Bote mais 15 em cima! — Pois não parece, acho que é por causa dessas tranças. Lindas suas tranças! É promessa? — Esperou pela reposta à pergunta inconveniente, que não lhe foi concedida, e tratou de remendar: — Eu usava tranças até um dia desses e era promessa… pra arrumar um serviço. Aí me empreguei e cortei; me deixava com uma aparência mais velha… quer dizer, em mim eu acho que me deixa mais velha, nos outros acho que remoça. Na senhora remoça. — Sei… e já tá desempregada de novo? — A patroa teve que me dispensar. O marido ficou desempregado. Coitada, ficou muito chateada quando teve que me mandar embora… a senhora tem marido? — Sou viúva.

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— Ah, que pena. E não quis mais casar não? — Sem obter a resposta de mais uma pergunta intrusiva, Marilda tentou consertar: — É bom ser dona das próprias ventas, sem ter que depender de diabo de marido. Queria que minha mãe fosse assim. — Sabe cozinhar tudo? — Tudo! E ninguém nunca reclamou da minha comida. Eu tenho a mão boa, eu! Dona Sol hesitou, mas resolveu dar uma chance à moça; se era indicada por Liduína devia cozinhar bem. Liduína, sim, é que era boa, de forno e fogão, mas depois que cismou de ser dançarina de banda de forró só queria viver saracoteando feito uma maluca pra cima e pra baixo por aqueles interiores todos. — Olhe, aqui na marmitaria é o seguinte: o fogão é de seis bocas, dá pra trabalhar duas pessoas. Eu cuido da mistura, faço duas qualidades de carne e uma de frango, e quem me ajuda faz o arroz, o feijão, o macarrão, o baião, uma farofa, de cuscuz ou de farinha, a salada de batata com cenoura e chuchu. No sábado eu ofereço batata frita, pode ser doce ou inglesa, ou macaxeira frita, que os clientes adoram.

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— Eita, então a senhora tá com sorte, eu faço um baião que é uma delícia, de lamber os beiços; e sou a rainha da macaxeira frita! — Ah, que bom, não é todo mundo que sabe fazer macaxeira. — Com certeza! A senhora me acredita que tinha outra empregada na casa que eu trabalhava que achava que era só colocar a macaxeira pra fritar, sem dar uma fervura? Abestada, né, uma mulher dessa? — Muito. Marilda começou o trabalho enganando até bem, o básico ela dominava, e a comida não tinha diferencial nenhum, era temperada só com alho, sal, cebola e colorau. Todo dia a própria dona Sol tomava a iniciativa de jogar uma ervilha no arroz, ou uns pedaços de charque no feijão, um torresmo na farofa, uns ovos no macarrão, algo que

cativasse

os

clientes;

a

concorrência

tinha

aumentado. Chegou o sábado e dona Sol trouxe do mercantil um saco abarrotado de macaxeiras: — Hoje é seu dia, rainha da macaxeira frita! Marilda sorriu amarelo, traumatizada pelo desastre na casa da amiga. Não queria provocar outro. Teve uma ideia: 122


— E se a gente fizesse assada, pra variar? — Não, faz frita mesmo, o povo tá acostumado. — Mas o óleo tá pouco. — Tem outra lata aí. Marilda revirou os olhos nas órbitas e pegou a lata na despensa. Que mais podia inventar pra dissuadir a patroa? — Mas esse óleo é de milho! — Sim, e o que é que tem? — O outro é de soja. Todo mundo sabe que não se pode juntar óleo de dois tipos na mesma panela. — Que história é essa, menina? — Ah, pode não, dá piriri! Dona Sol não se convenceu, mas deu a solução: — Então use só o óleo de milho pra fritar, ora! Marilda revirou os olhos mais uma vez com uma expressão de derrota, não tinha jeito. Depois de ferver a macaxeira, abriu a lata de óleo, as mãos trêmulas, suadas, o coração a mil, despejou metade na panela. — O resto do óleo de soja você usa pra refogar o arroz! — determinou dona Sol enquanto engrossava o molho do frango com maizena. — Ah, sim, o arroz — disse Marilda, tirando um palito da caixa de fósforo pra testar se a temperatura já 123


estava boa pra fritura. Estava tão nervosa que ao invés de jogar o palito na panela, jogou a caixa inteira. Em questão de segundos as chamas tostaram as belas tranças de dona Sol. Meia hora depois, Marilda subiu num ônibus com duas sacolas, toda chamuscada. Foi reinar noutra cidade.

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MISSÃO: BOLO DE MACAXEIRA Ésulo Maia

Roberto sabia que esse momento chegaria mais cedo ou mais tarde. Sua esperança era que chegasse mais cedo. Mas a lei de Murphy não costumava falhar. Às duas horas e dezessete da madrugada foi acordado pela mulher, Amanda, grávida de quatro meses e meio do primeiro filho do casal, com um imenso desejo de comer bolo de macaxeira, um prato típico do período de São João, em pleno mês de outubro. Era fácil entender de onde vinha tal vontade. A sogra de Roberto era uma cozinheira de forno e fogão. Uma das atividades de que mais gostava era passar horas na cozinha fazendo e testando receitas que via na tevê e outras que vinham à sua cabeça. A filha não herdara o mesmo talento e atração pela cozinha, entretanto, desde criança adorava servir de cobaia para as invenções gastronômicas da mãe, sabendo que era mais fácil encontrar a estátua da índia Iracema feita de aço, com doze metros de altura e dezesseis toneladas, depois de 126


adquirir vida, dentro da piscina da casa lhe dizendo que só estava ali porque precisava mudar de ares em um domingo enquanto estava acontecendo o clássico jogo entre Ceará e Fortaleza, do que a genitora errar a mão. E uma das iguarias da querida sogrinha era um bolo de macaxeira com caramelo que só ela sabia fazer. Ao contrário do que alguém pudesse pensar, não ficava muito doce, ficava perfeito. A textura macia, levemente úmida, e a calda açucarada eram de lamber os beiços. Resultado do bom-senso e da larga experiência de anos fazendo da cozinha o laboratório de disseminação do seu amor a todos. Sempre fazia na época das festas juninas e na ceia de Natal, quando reunia toda a família. Até porque, se não fizesse, sabia que a comunhão não faria os presentes inteiramente satisfeitos. Ela criou a receita do bolo de macaxeira nos tempos em que fazia parte de uma das maiores tradições da região, um grupo de quadrilha junina. A equipe chegou a participar algumas vezes do Festival de Quadrilhas Juninas do Nordeste, que ocorre todo ano, tendo uma vez ficado em segundo lugar. Era um período muito animado. As coreografias, a montagem das fogueiras, os balões e bandeiras coloridas, os fogos de artifício, as brincadeiras e, claro, toda a gama de comidas típicas. 127


Enquanto a sogra, junto a outras mulheres, cuidava da

parte

culinária,

os

jovens

participavam

das

apresentações. A adolescente Amanda era uma delas. Chegou a fazer o papel de noiva em um dos anos, um sonho realizado. Ganhando ou não, a recompensa depois de um árduo trabalho de meses era se fartar com todas as delícias amarelas e nutritivas postas sobre as mesas bem organizadas. E o que mais a mulher de Roberto gostava era o bolo de macaxeira feito pela mãe. Daí vinha o desejo de gravidez. Mas, naquele ano, o sogro ficou doente, teve um infarto, foi internado e depois, mesmo de volta a casa, precisou de semanas de cuidados para se recuperar. Por isso, o encontro junino foi cancelado. Ou seja, a última vez que Amanda comera a iguaria foi no Natal passado, há quase um ano. Sem dúvida, o desejo era resultado dessa abstinência. Era óbvio que também estava com saudade do tradicional bolo de família, mas jamais, em sã consciência, acordaria durante a madrugada para tentar dar um jeito nisso. Mas não tinha jeito. Desejo de grávida do primeiro filho era uma ordem real. Com os olhos ainda apertados, Roberto levantou-se devagar, foi até a pia do banheiro e passou a escova com creme dental rapidamente nos 128


dentes. Na volta, enquanto se vestia, discutiu com a mulher onde poderia encontrar um bolo de macaxeira àquela hora da madrugada. Supermercados, confeitarias e docerias vinte e quatro horas eram as opções. No meio da conversa, Amanda ligou a luz, o que fez com que Fred, o travesso cachorro de sete anos que dormia ao lado da cama do casal, e que já havia acordado com a movimentação, levantasse e começasse a andar pelo quarto. Enquanto o cão erguia as patas dianteiras tentando pendurar-se no corpo do dono, Roberto pegou a carteira e a chave do carro, passou a mão na cabeça do animal de estimação e disse que protegesse a casa. Antes de o marido sair, Amanda pediu que se esforçasse para achar o bolo e, se possível, não demorasse. Ele respondeu que não se preocupasse, pois essa era sua missão. Pela noite fria e por vários bairros, com ruas de trânsito quase inexistente, o engenheiro percorreu todos os estabelecimentos abertos onde tivesse alguma chance de ter um bolo de macaxeira, sem sucesso. Lembrou que outro dia uma amiga da mulher, que foi visitá-los para felicitar o casal pela gravidez, falara de uma confeitaria bastante charmosa que havia sido aberta recentemente e que funcionava por toda a madrugada porque realizava eventos no espaço. 129


Roberto chegou ao local, que estava aberto e cheio. No grande salão, muita conversa animada, música alta e até pessoas dançando. O futuro pai se aproximou do balcão e cada um de seus olhos se iluminou tão forte quanto dois sóis do Nordeste. Três convidativos bolos de macaxeira estavam expostos atrás do vidro, um deles até se assemelhava ao que a sogra fazia, com uma fina cobertura caramelizada brilhante. Uma senhora atrás do balcão avizinhou-se e perguntou o que o homem procurava. Roberto apontou o bolo parecido com o da família. Teve a certificação de que era de macaxeira. Pagou, acompanhou a animação do lugar por uns segundos esperando a vendedora pôr uma cobertura de plástico, separar, dar-lhe o troco e a compra. Indo para a saída, um desentendimento de um homem notoriamente alcoolizado, falando alto porque esbarrara em outro, chamou-lhe a atenção fazendo-o parar. O bêbado, não querendo conversa, puxou um revólver de dentro da calça e fez todo mundo ficar assustado e alerta. Com o primeiro tiro a correria tomou conta do salão. Ao som dos disparos seguintes, tomando cuidado para não derrubar o bolo e abaixado, recebendo inúmeros empurrões em meio à multidão, Roberto, como muitos outros, conseguiu sair açodado pela porta. Ao entrar no 130


carro jogou o bolo no banco traseiro e saiu apressado. Quando foi atravessar o primeiro cruzamento, precisou frear bruscamente para não bater em um jovem de bicicleta que

avançou a

preferencial

em grande

velocidade. Após a imprudência, seu primeiro impulso foi examinar o bolo de macaxeira. Mas, apesar de ter sofrido um ligeiro impulso para a frente, estava intacto. De volta para casa Roberto tomou o caminho da Avenida José Bastos. Devido à hora avançada, a via estava quase inteiramente livre, com apenas um ou outro veículo circulando. Mas precisou parar em um sinal vermelho, em um dos lados, com um carro na outra extremidade. Como acontecia nas madrugadas de Fortaleza, às vezes, um grande grupo de ciclistas, que combinava de rodar por aquelas horas, formou um paredão à frente, de muitos metros de extensão, preenchendo toda a via. Roberto escutou uma batida no vidro do banco do carona. Viu um homem jovem, de camisa regata esportiva, alto e forte, sentado em uma bicicleta, segurando um revólver e mandando destravar as portas. Assustado, tentou ganhar tempo, mas, diante da arma apontada para ele, sabia que não tinha quase nenhum. Mexeu-se no banco, devagar, mais para passar a ideia de que estava seguindo a ordem do que estava de fato, ao 131


mesmo tempo em que rezava fervorosamente para o sinal mudar logo para verde. Mas o semáforo parecia congelado. Todas as possibilidades se desenharam na mente de Roberto. Sabia que se demorasse mais levaria um tiro. O mesmo poderia acontecer se arriscasse sair velozmente, além do que atropelaria vários ciclistas. Mas se abrisse as portas, o melhor que poderia acontecer era ter o carro, o telefone e a carteira roubados e ficar sem dinheiro, sem ter como voltar para casa, e sozinho na madrugada. Sua mulher ficaria muito preocupada com a demora e isso poderia fazer mal ao bebê. Na pior das hipóteses seria levado para esvaziar as contas bancárias em algum caixa eletrônico e depois seria morto para que não identificasse o assaltante. Ele nunca conheceria o filho e Amanda teria de criar a criança sozinha. Diante da irritação crescente e das ameaças do homem na bicicleta, e sabendo que a qualquer momento levaria um tiro, Roberto destravou as portas do veículo. Para abrir a porta do carona o homem na bicicleta precisou ir um pouco para trás. Uma loucura nada recomendável passou pela cabeça do motorista. Mas, como dizia a máxima, situações extremas pedem medidas extremas. 132


Roberto botou parte do corpo apoiado sobre o assento do banco do carona para esperar pelo indesejado convidado. O sinal fechou para os ciclistas e ele viu a avenida se abrir à sua frente. Mas não tinha mais tempo de voltar para trás do volante. Esperou-o largar a bicicleta no chão, no meio da avenida, moveu o corpo até o limite da janela e desferiu um soco com uma força que sequer sabia que possuía. O assaltante caiu sobre a roda dianteira e o guidão da bicicleta, meio sentado, meio deitado, notoriamente tonto. Roberto fechou a porta do carro mais que depressa e saiu em disparada. Com dois metros percorridos, outro homem aparentando ter em torno da mesma idade do primeiro, mas o oposto na aparência, baixinho e magro, ergueu-se do banco de trás, circundou com o braço direito o pescoço de Roberto e passou a enforcá-lo. Dirigindo por vários metros quase às cegas pela avenida, o motorista parou o carro bruscamente, mesmo sem poder ver se havia outro veículo atrás, levantou os braços, puxou o homenzinho para a frente, deu-lhe alguns socos sem que ele conseguisse se defender devido à condição física inferior, abriu a porta do carona e jogou o segundo assaltante para fora, seguindo o seu caminho com a adrenalina nas alturas. 133


Finalmente, de volta à residência, Roberto entrou segurando o bolo de macaxeira com uma das mãos quase com o mesmo orgulho de um capitão do time que erguia alto uma reluzente taça de campeão do futebol cearense. Encontrou a mulher sentada no sofá da sala assistindo a um filme com o cachorro ao lado. Feliz por ver o dono outra vez, Fred saltou para ele, batendo no braço, fazendo o alimento se chocar contra o chão e quebrar em vários pedaços. Para tentar amenizar a raiva do marido, Amanda lhe disse que não havia problema, já que o desejo de grávida havia passado.

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ENROLADA NA TAPIOCA Nazaré Fraga

No dia da viagem era preciso inventar uma comida de sustança e que não estragasse com facilidade, uma forma de não passar fome durante o percurso. Minha mãe entrou logo em cena. — Criatura, o que você vai levar pra comer nessa tua viagem sem futuro? — Então, tinha pensado em pedir isso pra senhora. Foi ligeiro que ela se animou. A cozinha era a área de lazer dela, uma dona de casa ao estilo sertanejo, de bom tempero. Embora morando há anos na capital, tudo que ela preparava ainda me fazia lembrar de quando morávamos no interior. Eu subia na parte livre do fogão a lenha quando ela se levantava junto com meu pai, que madrugava para tirar leite das poucas vacas do curral. Eu era a primeira a tomar o café com leite. De mistura, num dia cuscuz, no outro mugunzá, batata-doce, tapioca. Esta, a campeã do meu paladar sem frescuras. 136


— Mãe, acredita que ainda me lembro do tempo das farinhadas lá no sertão que duravam vários dias e noites? — Tu era pequena ainda, mas eu te levava. Lá pelas tantas armava uma rede e te deitava no alpendre da casa de farinha, longe do forno e do converseiro. — Eita que era bom demais! Saía tanta coisa gostosa naqueles dias. Fico com a boca cheia d’água só de pensar nas tapiocas de goma fresca com coco. — Se saía! Uns namoros começavam, outros viravam noivado. Saíam também umas coisas que amargavam como umas mãos de chifres, de gente que nem se imaginava. Nossas cabeças de sertanejas encontraram a solução que me pareceu perfeita. Não era uma galinha frita com farofa acondicionada em lata, comumente levada nas viagens de trem naquele tempo, mas algo inspirado nisso. Nosso namoro não era muito avançado, mas bem que tinha uns amassos de jeito. A gente se conheceu num encontro de jovens da igreja. Naquele começo de noite, as freiras organizaram uma festa de fim de ano que incluía dança. Bati o olho no castanho dos olhos do Abel quando ele me chamou para uma dança e já senti uma coisa diferente. Ele também se agradou de mim. Dançamos

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quase a festa toda. A gente não tinha nem telefone, mas ele me perguntou onde eu morava. Uns dias depois ele me apareceu. Não foi fácil convencer meu pai a me deixar namorar. Minhas paqueras anteriores eram coisas de encontros durante o recreio na escola ou de mão pegada na volta para casa. Nada que tivesse chegado aos ouvidos de meus pais. Daquela vez eu já tinha idade e queria namorar firme. Depois de umas perguntas enviesadas sobre de quem ele era filho, o que fazia e se tinha boas intenções comigo, a gente não se desgrudou mais. Mesmo assim, havia um ranço doméstico com aquele namoro. Minha mãe costumava debochar dos presentes que recebia de Abel, que o queijo do Piauí era estranho e coisas assim. Mas a gente se queria muito e relevava aquelas pendengas. No nosso querer cabia o céu. Até que eu fiquei só. Abel teve de voltar para sua cidadezinha no interior do Piauí. Era arrimo de família. A mãe ficou paralítica depois de ter sofrido um derrame e tivemos que viver à distância. O namoro de mais de dois anos foi abalado. A saudade me roía e a minha vida se encheu de ausência. O tempo ia passando e a coisa ficava cada vez mais difícil. As cartas demoravam a chegar. Passado mais de um ano de penúria, começamos a pensar na possibilidade 138


de uma ida minha até a longínqua Simplício Mendes. Nosso plano era aproveitar minha viagem e assuntar a possibilidade de um emprego para mim, para quando a gente decidisse se casar. Mesmo motivada pelo desejo de encontrar o amor da minha vida, em meados da década de 1970 aquela viagem era uma verdadeira odisseia. As distâncias eram grandes, as estradas ruins, os ônibus precários. Não era um tempo de conforto nem de segurança. Eu tinha apenas 23 anos, nunca tinha feito uma viagem demorada que não fosse as do tempo de criança, de trem, entre Fortaleza e meu interior. Foi preciso tomar certas medidas, algumas não muito honestas. Nem tudo podia ou devia estar muito claro. Aos meus pais disse que ia com uma prima de Abel porque não me deixariam viajar sozinha. Escondi que seria necessário tomar mais de um transporte até chegar ao destino. Uma colega ficou me substituindo no trabalho pelo prazo de dez dias. Iniciante nas estradas, não sabia se e onde o ônibus pararia no percurso até Teresina. Havia previsão do horário de chegada. Daí em diante não era possível antever muito. Comecei a viagem pela Expresso de Luxo, partindo da Rua Senador Pompeu, às dez da noite. Duas paradas 139


para uso de banheiro e lanche, higiene em tudo precária. Não me animei a comer. Apenas ataquei meu pacote de bulim trazido de casa. Poucos cochilos. Um vizinho de poltrona usava chapéu que não tirou a noite toda, me incomodava com suas abas largas e tentativas de entabular conversas que não me interessavam. A chegada a Teresina, após mais de doze horas, foi no começo da tarde em calor abrasador. Muita pressa na tentativa de baldeação. Como tinha pouco mais de uma semana de folga não podia arriscar perder o próximo ônibus. Com minha valise e o matulão, corri até o balcão de vendas de passagem de outra empresa. Não havia ônibus naquele dia para Simplício Mendes. Era uma segunda-feira e a linha tinha passado a funcionar para aquele destino só nas terças, quintas, sábados e domingos. Abel não tinha avisado da mudança recente. A notícia de supetão não podia me deixar menos atordoada. Foi preciso encarar uma solução diferente. Caso contrário seria melhor voltar para casa dali mesmo. Outros passageiros que precisavam seguir na mesma rota também foram surpreendidos. Os que tinham parentes na cidade resolveram pernoitar e continuar no dia seguinte. Só um rapaz vindo de São Paulo tinha a mesma pressa que eu. E, pergunta aqui, pergunta ali, 140


descobrimos como opção um rapaz que fazia a tal viagem em sua própria lata-velha. Combinamos preço e fechamos a corrida. Senti medo de viajar só com o dono do carro e o outro passageiro, ambos desconhecidos, mas não tinha outro jeito. O tempo roía meu período de folga. De antemão fomos informados que talvez tivéssemos que pernoitar em algum lugar. Mais aflição. Não era seguro varar a noite em estrada de terra, também não me sentia tranquila com o pernoite, sabe-se lá onde. Tudo para encontrar Abel. O percurso no novo transporte foi pior do que o anterior. Estrada de terra esburacada, poeira, vento abrasador, carro sacolejando o tempo todo. Eu ia vestida de modo simples, até porque era o que eu dispunha. De todo modo, estava com roupas adequadas para me entregar ao mormaço da caatinga piauiense num mês de agosto. Cícero, meu companheiro de viagem, era uma figura estranha na paisagem. O cabelo curto e bem penteado, rescendia a brilhantina. Vestia terno completo de cor cinza, camisa branca e gravata laranja. Tinha ido embora de seu povoado há quase dez anos para trabalhar em São Paulo e só naquele momento voltava para rever os familiares. Suou em bicas naquela tarde poeirenta que nem o entardecer aliviou. Não folgou a gravata, tirou o 141


paletó ou fez qualquer menção para se aliviar da quentura naquela travessia. Ao anoitecer, dos cabelos aos sapatos tudo era da cor da gravata. Esforçava-se para fugir à fala cantada da região, buscava palavras menos comuns, que usava de um jeito que não combinava. Não parecia uma pessoa má, mas não chegava a ser agradável. O desejo de cair nos braços de Abel justificava qualquer desconforto. Um pneu furou e foi trocado. Há algumas horas o breu já tinha tomado conta do que era chamado de estrada, e o motorista seguia enfrentando buracos incontáveis. Por volta de onze da noite um clarão apareceu ao longe. Era Oeiras. Entramos por vias de casas antigas, passamos em frente a uma igreja esparramada com um cruzeiro simplório. Não havia um pé de gente circulando nas ruas. Paramos diante de uma casa sem placa ou letreiro que lhe servisse de distintivo. O motorista tinha dito que ia parar na pensão de uma amiga. Era uma casa humilde que cedia três pequenos quartos de meia parede para pernoite dos passantes menos previdentes como nós. Cheguei com muita sede, fome intensa e cansaço. Não teve como jantar. A dona da pensão não se dispôs a cozinhar e mostrava pressa em voltar a se deitar. Mostrou o filtro de água para beber, o banheiro de uso comum e apontou apenas dois 142


quartos, um para o motorista e o outro para o casal, segundo ela. Três gatos trançavam nas pernas dela enquanto tomava as poucas providências. Um cachorro magro nos olhava curioso, mas quieto. Ante meu susto e explicação imediata de que viajava para encontrar meu namorado, a dona da pensão não disfarçou sua surpresa. Uma mulher nova que viajava sozinha

por

aqueles caminhos

ermos,

quase

de

madrugada e dizia não ser de um dos homens... Enquanto a dona preparava outro quarto para meu uso, já sabedora de que não havia chance de comer algo preparado na hora, dava graças a Deus por ter trazido comida de casa, até então embalada e intacta. No quarto sem privacidade, o mobiliário era uma rede, uma vela, uma caixa de fósforo e só. Troquei de roupa e, na luz penumbrosa da vela, me preparei para comer antes de dormir. Abri meu matulão. De repente os gatos miavam e arranhavam a porta do meu quarto. O cachorro uivava, os outros dois hóspedes e a dona da pensão começaram a pigarrear para mostrar que estavam acordados e atentos. Todos ligados no cheiro que exalava da minha embalagem. Tive vontade de desistir. Mas, aberto o matulão, àquela hora não havia como recolher o cheiro 143


que tomou conta da casa. Mesmo envergonhada fiz menção de comer sozinha, ignorando o apetite e a salivação dos demais. A comida resistiu ao meu ataque. Em poucos minutos estávamos todos numa mesa dividindo o meu manjar sertanejo que só se rendeu ao ataque de uma faca afiada e à força do motorista. Uma porção avantajada de carne de sol frita inteira na cebola, enrolada numa grande tapioca fez a festa de todos os famintos naquela madrugada. A dona da pensão também se achegou à mesa. Até os de quatro patas tiveram um agrado. De acompanhamento a mulher se animou a fazer um refresco de limão adoçado com raspas de rapadura. Ainda não tinha havido a gourmetização da tapioca acompanhada de carne de sol desfiada e de todo tipo de recheio. Certamente sou uma precursora da nova onda que estava por vir.

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A VIDA POR UM BEIJU Tânia Sales

As melhores lembranças da minha infância são da época de farinhada na fazenda. Fui uma criança muito amada, disso tenho certeza. Eram muitas mulheres cuidando de mim, todas me adotaram e me deram tanto carinho que as lembranças me vêm em ondas mornas na memória, me aquecendo o coração. Dizem que meus primeiros anos de vida foram muito tristes. Minhas mães adotivas me contavam, pesarosas, a história da mulher que morreu ao dar à luz, e de um homem que nunca retornou para resgatar a família. Não me sensibilizo com um drama que parece muito distante da minha realidade. A piedade que inspirei nessas pessoas foi transformada num excesso de cuidados e mimos que me deixaram, desde cedo, muito birrenta e cheia de vontades. Eu sempre tive tudo o que quis. Minha mãe principal era a funcionária mais antiga da Fazenda Malhada e mandava em tudo na casa. Depois do coronel, 146


era quem tinha mais poder. Ninguém mexia num alfinete ali sem as ordens dela. — Você sempre foi linda, parecia um bibelô — ela repetia —, ninguém tinha coragem de negar nada para aquela carinha triste. Sabendo disso, me aproveitei muito bem. Aquelas mulheres faziam tudo por mim. Na festa da farinhada o primeiro beiju sempre era meu. As raspadeiras faziam um círculo e contavam histórias

maravilhosas

enquanto

descascavam

a

mandioca. Eu ficava hipnotizada com a habilidade e rapidez com que executavam o serviço. As festas da Malhada eram algo mágico, muita gente, música, animação, um clima só quebrado pela presença desagradável do coronel Antônio Bento, que sempre estragava tudo. O velho era uma eterna fonte de rispidez e mau humor. Vivia reclamando e exercendo seu despotismo sobre as pessoas mais fracas. Acho que fui a única naquela fazenda a ter coragem de enfrentá-lo. — Essa cabrita tá ficando muito atrevida — dizia quando eu sustentava seu olhar, em vez de baixar os olhos como todos faziam. Mas logo se desmanchava, ao primeiro sorriso que eu dava em sua direção.

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— Você tem sorte do coronel gostar tanto de você. Se fosse outra ele já tinha mandado castigar — minha mãe da cozinha me alertava. Mas eu não dava a menor atenção. Sabia que ele nunca teria coragem de fazer nada comigo, ele me amava, eu tinha certeza. O coronel era um viúvo velho e rabugento, pai de dois filhos homens, Eduardo e Frederico. O primeiro morrera muito jovem, aos dezoito anos. Mulherengo e farrista como o pai, sofreu um acidente fatal ao voltar de uma festa, dirigindo embriagado. O pai, que já era um homem amargo e ranzinza, piorou bastante após a morte do filho preferido. Ele não suportava o segundo filho. Frederico era doce e agradável como a falecida mãe que, diziam, morreu de desgosto com as traições e grosserias do marido. Eu adorava o Frederico. Apesar de ser alguns anos mais velho do que eu, éramos inseparáveis. Minhas melhores memórias da infância são ao lado dele. Passávamos tardes inteiras brincando. Ele fazia vestidos maravilhosos para minhas bonecas, que pareciam rainhas prontas para os bailes do castelo. Devo a ele todas as cores e fantasias que povoaram os primeiros anos da minha vida. Também me ensinou a ler e a realizar as quatro operações. 148


— Você é muito linda, bibelô — dizia. — Não pode ter o mesmo destino das mulheres daqui. Você pode ir muito mais longe. Vou lhe ensinar tudo que eu aprendo na escola e um dia você vai sair daqui. Vou lhe ajudar, você vai ver. Mais tarde, já entrando na adolescência, quando estava estudando na capital, ele me trazia pilhas de livros, que eu devorava escondida no meu quarto, longe das vistas do coronel, que achava que leitura e estudos não era coisa para mulheres. Tudo que aprendi sobre o mundo devo a Frederico, e foi um golpe muito duro para mim quando o velho o expulsou de casa, no tapa, após haver flagrado o filho aos beijos com o filho do vaqueiro. — Miserável, você é minha vergonha! Nunca mais ponha os pés nessa casa! — O pai estava possesso e só não matou o filho de pancadas porque foi impedido pelos empregados da fazenda. Ao se despedir de mim, prometeu que mandaria notícias e que um dia voltaria para me buscar. — Vou vencer na vida, bibelô! Juro que nunca vou precisar do dinheiro desse velho amaldiçoado. Você sabe que ele jamais gostou de mim, nem me suportava perto dele. Pra ele vai ser um alívio me ver pelas costas — 149


soluçava, abraçado a mim. Eu estava devastada, me sentia perdendo o maior amigo que tive na vida. — Me leva com você, Fred. Vou sentir muita falta de você. — Agora eu não posso, mas um dia volto, você vai ver. Ainda vou ficar famoso, esse velho vai ter que me engolir, o desgraçado. Preste muita atenção, bibelô, nunca deixe esse miserável encostar a mão em você. Nunca, entendeu?! Lembre das histórias que lhe contei, o bode velho gosta de se aproveitar das cabritas. Por isso que ele inventa de fazer caridade para as meninas pobres da fazenda. Um pedófilo filho da puta, é o que ele é. Se ele tentar alguma coisa com você, ameace denunciar à polícia, pois eu não estarei aqui pra lhe defender. Despediu-se de mim rapidamente, os dois aos prantos. Ajudei-o a fugir antes que o coronel descobrisse que ainda estava na fazenda. Aquele monstro era capaz de tudo, inclusive de fazer mal ao próprio filho, eu tinha certeza. *** Alguns anos após a partida de Frederico percebi a mudança de atitude do coronel em relação a mim. Eram 150


pequenos gestos, olhares furtivos. Eu me sentia observada de forma diferente, como se fosse uma mercadoria à venda. Escrevi ao meu amigo e contei-lhe o que estava acontecendo. Ele foi taxativo: “Não é imaginação sua, eu te avisei, bibelô! Esse velho não presta. Não deixe que ele encoste a mão em você. Só casando, de papel passado, entendeu?! E mesmo depois de casada, fuja dele. Você é esperta, sabe o que deve fazer, né?”. A vida tinha mudado bastante para Frederico. Foi para São Paulo, e lá chegando arranjou um trabalho como ajudante no atelier de um estilista famoso. Seu talento logo foi reconhecido e num curto espaço de tempo tornouse um nome conhecido no mundo da moda. “Rico e famoso como eu lhe disse que seria, lembra?” Como eu poderia esquecer daqueles vestidos maravilhosos que ele fazia para minhas bonecas? Querido Fred... tudo nele era chique e refinado. Um irmão amado que a vida me concedeu. Resolvi seguir seus conselhos e de forma meio dissimulada passei a corresponder e encorajar os avanços do coronel. Eu tinha completado dezesseis anos, e sem falsa modéstia, sabia pelos olhares masculinos que havia me tornado uma bela mulher. O velho não conseguia disfarçar a paixão que sentia por mim. Não seria difícil 151


realizar o que eu tinha planejado. Frederico estava coberto de razão, aquela enorme fortuna não poderia ficar sem um destinatário. Uma noite, à hora do jantar, enquanto esperávamos que a mesa fosse servida, eu lia o jornal e discretamente observava os gestos do velho, sentado à minha frente com os olhos fixos em minhas pernas. Como por acaso, num movimento em direção à jarra de água que estava na mesinha ao meu lado, ele esticou o braço com o copo vazio para que eu o enchesse, a pele flácida roçando de forma obscena as minhas coxas. Enchi o copo e entreguei-o de volta, fingindo que nada havia percebido. Voltei ao jornal, agora lendo em voz alta: — P.E.D.O.F.I.L.I.A. — O quê?! — ele gritou, quase morrendo engasgado. — Do que você está falando aí?! — Olhei-o fixamente e ele não segurou o meu olhar. — Nada de mais, uma reportagem falando sobre uma investigação da polícia federal. Homens velhos fazendo sexo com menores de dezoito anos. Dá cadeia, sabia? A não ser casando, com tudo dentro da lei. Aí é diferente. Ele levantou-se abruptamente.

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— Perdi o apetite — e saiu da sala. Mas tive certeza de que entendera o meu recado. Dali em diante as coisas aconteceram muito rápido. O velho estava perto de completar noventa anos e sabia que não tinha tempo a perder. A situação ficou bem clara depois daquela cena. Havia uma única saída para aquele impasse: a satisfação de seu desejo teria que passar pela porta do cartório. E assim aconteceu. O casamento foi devidamente oficializado pelo juiz da comarca, num Domingo de Ramos, eu de véu e grinalda. O coronel estava radiante e nem percebia que no meio do banquete eu já estava planejando como haveria de fazer para colocar em sua bebida algumas gotas daquele chá milagroso feito da entrecasca da mandioca. Aquelas queridas raspadeiras me ensinaram tudo que sei sobre os mistérios do sexo e do feminino. Pequenina, sentada no círculo junto a elas, eu

observava

fascinada

a

habilidade

com

que

descascavam, raspavam e contavam histórias deliciosas. Ali aprendi que para qualquer problema humano existe um chá para a sua cura. — Esse aqui é tiro e queda, acaba com toda vontade. Deixa o cabra quase morto da cintura pra baixo! — falavam baixo, às gargalhadas, para os homens não 153


escutarem. Eu torcia para que funcionasse realmente, pois o velho gastava uma fortuna com seu urologista da capital. Tomava injeções de hormônios importados da Europa, que ele dizia fazerem milagres. Antes de a festa terminar ele me chamou num canto, fazendo sinal que queria ir embora: — Não tô me sentindo bem, acho que exagerei na comida. Acho melhor ir descansar um pouco. Vamos? — Sim, claro — falei, um pouco amuada. — Tem certeza que não quer ficar mais um pouquinho? A festa tá tão animada... — Se quiser ficar mais um pouco não tem problema, afinal você sonhou tanto com essa festa, né? Eu vou agora porque preciso descansar, foi um dia muito puxado, hoje. — Sim, vá descansar. Eu vou daqui a pouco, não se preocupe. Descanse, viu? — falei beijando-o no rosto. Ele partiu e eu bebi e dancei até o amanhecer. Afinal de contas era minha festa de casamento, eu tinha todo o direito de me divertir. Ele nem percebeu quando cheguei em casa. Estava profundamente adormecido e só acordou após o meio-dia. Todos acharam normal, estávamos em lua de mel. Quando levantei da cama ofereci-lhe um chá de capimsanto para não correr o risco de sofrer algum assédio 154


durante o dia. O velho passou a tarde inteira descansando na cadeira de balanço. *** Minha estratégia vinha funcionando de forma perfeita. Após três meses de casados, continuava virgem como nascera. Ele viajou várias vezes para consultas com o urologista, comprou uma pilha de remédios, nenhum com o poder de superar o efeito dos meus chás miraculosos. Ouvi que o médico havia feito um comentário desanimador: “Coronel, o senhor é um homem de quase noventa anos. A testosterona é boa, mas não obra milagres, é preciso aceitar os fatos como eles são, entende?”. Acho que ele entendeu, pois parou de tomar as injeções

de

hormônios

e

passou

a

se

dedicar

integralmente ao gado e às plantações de mandioca. Por via das dúvidas, continuei colocando as gotinhas no seu chá para ajudá-lo a ter um sono tranquilo. E ele ficava feliz com os meus cuidados. Com a chegada do mês de julho aproxima-se a colheita da mandioca. É a época mais feliz do ano. A farinhada da Fazenda Malhada é a mais famosa da região, 155


tem uma casa de farinha construída ao lado direito do açude, com capacidade para cerca de trinta funcionários, que são contratados exclusivamente para a ocasião. Somados aos moradores da propriedade formam um pequeno exército de colhedores, prenseiros, forneiros e raspadeiras que trazem um clima de festa ao local. Eu gosto muito de circular entre as pessoas, conversar, rir e ouvir suas histórias. O velho rabugento detestava me ver misturada com os trabalhadores, estava sempre resmungando: — Maria Rita, você não se dá ao respeito. Fica andando no meio desse povo como se fosse uma igual. Vou acabar te proibindo de sair de casa durante a farinhada. — Se proibir eu saio escondida — murmurava, me afastando dele. Impressionante como sua presença me fazia mal. Chegava quase a adoecer fisicamente. A minha sorte era que ele saía cedo para supervisionar as roças e os arrancadores, que tratava como escravos, e isso me deixava livre para aproveitar a alegria que reinava na casa de farinha. A energia das raspadeiras, sentadas em círculo no chão, suas risadas barulhentas, seus olhares afetuosos e cúmplices me aqueciam o coração. Eu amava aquele ambiente e aquelas pessoas. Seus cheiros e sons 156


conseguiam me transportar para lugares longínquos, onde tudo parecia perfeito. *** Ao amanhecer, após a saída do coronel, aproveitei a companhia de minha mãe principal, a que faz quitutes divinos, para dar uma passada na casa de farinha e saber das novidades. Ela precisava de goma para seus sequilhos, e eu, de arejar a cabeça depois de uma noite respirando o mesmo ar daquele ogro. O lugar estava fervilhante de energia. Cheio de caras novas, principalmente masculinas. Senti meu espírito se animar. As mulheres acenavam para mim e fui ao encontro delas, sentadas no chão. Dali tinha uma visão privilegiada de tudo que acontecia no vão principal. Um rapaz desconhecido me chamou a atenção. — Quem é aquele bonitão sentado perto da prensa? Ele é novo por aqui? — perguntei no ouvido de Janaína, sentada ao meu lado esquerdo. — Um gato, né? — ela riu, me dando uma cutucada cúmplice. — Você conhece ele? — Não, nunca andou por aqui antes. 157


Permaneci

por

alguns

minutos

sentada,

observando-o enquanto colocava cuidadosamente a massa

nos

pequenos

compartimentos

da prensa,

acomodando os resíduos que sobravam como se executasse uma obra de arte. Depois, com as duas mãos, ele girava a maçaneta apertando, apertando, até que a água ainda existente escorresse devagar para a enorme bacia. Aquela espécie de dança, um misto de flexibilidade e força, fazia ressaltar a perfeição da musculatura do seu torso nu. Mal conseguia tirar os olhos da pele firme, queimada de sol. O suor, que escorria lento, ia desenhando belos relevos. De repente senti sede. — Vou tomar água — falei para Janaína, apoiandome em suas costas para me levantar do chão. Ele continuava seu movimento, completamente absorto no trabalho. Aproximei-me fingindo desinteresse: — Você é novo aqui? Nunca te vi antes. — Sim, moro na fazenda do coronel Augusto, vizinho daqui. — Vai trabalhar como prenseiro todos os dias? — Sim. Fui contratado para trabalhar no forno. Vou fazer a farinha e os beijus.

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— Verdade? Sou louca por beiju. Dou a vida por um beiju. — Ele virou o rosto sorrindo, divertido. Pude sentir o cheiro forte de seu suor e meu corpo reagiu como uma descarga elétrica. Achei melhor sair dali. — Até amanhã — falei, sem olhar para trás. — Você volta amanhã? — Sim — senti que me acompanhava com o olhar. No dia seguinte acordei cedo e tomei um banho demorado. Vesti-me sem pressa, escolhendo as peças de roupa com cuidado. Nem percebi que o coronel ainda não havia saído. Ele me olhou desconfiado. — Para onde vai assim tão cedo? — Vou dar um pulo na vila com a mãe. — Precisa ir tão arrumada assim? — Besteira, essa roupa é velha — desconversei, já saindo. Após o café, depois que ele saiu com o vaqueiro, fui em passo rápido para a casa de farinha. Conseguia ouvir as batidas do meu coração, que acelerou ao avistá-lo de longe, sem camisa, o suor refletindo o dourado da pele queimada de sol. O brilho dos olhos denunciou o entusiasmo dele ao me ver chegar.

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— Você tá linda. — Senti vontade de beijá-lo. Tinha uns dentes lindos. “Que droga ter tanta gente aqui” — pensei, me aproximando sem falar. — Então você gosta de beiju, precisa provar o meu — riu malicioso, passando os olhos pelo meu corpo. Desejei que fossem suas mãos calosas passeando, corpo acima, corpo abaixo. — Sabe — ele continuava, e eu mal conseguia escutálo —, eu faço beiju bem molhado com leite morno de babaçu, uma delícia. — Deve ser uma delícia, tenho certeza — respondi. Ele agora parecia sentir o que eu estava sentindo. — Primeiro misturo a massa com o coco triturado e vou amassando devagarinho, assim, até ficarem bem unidos, os dois, a massa e o coco, agarradinhos assim — fazia com as mãos uns movimentos lentos, lindos, quase obscenos. — Sou louca por beiju — falei, num ímpeto. Ele sorriu, carinhoso. — Quando vai querer que eu faça pra você? — Hoje. Pode ser? — Sim, depois que terminarem, no final da tarde. Podemos nos encontrar aqui mesmo, ao lado do forno.

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Saí dali ainda de pernas bambas, sem entender direito o que estava acontecendo comigo. Nunca havia sentido nada parecido. Mal podia esperar que o dia terminasse. Nem esperei que o coronel chegasse e inventei para a mãe uma desculpa que ia levar Janaína na farmácia, pois estava doente e ficaria em casa até que melhorasse. Ela me olhou meio de lado, eu havia colocado meu vestido florido de saia rodada e exagerado no perfume. Saí da cozinha antes que ela pudesse falar alguma coisa. Não queria perder tempo, meu corpo tinha pressa. Ele já estava me esperando num canto da casa de farinha, ao lado do forno. Todos já tinham saído e ele fechara quase todas as portas de modo que não pudéssemos ser vistos de fora. — Estamos seguros aqui — falou em voz baixa me puxando pela mão. O forno estava apagado, mas ainda conservava o calor da farinha. — Olha que lugarzinho morno e macio só pra nós dois — sussurrou no meu ouvido, me arrastando para o leito improvisado. Ficamos abraçados, agarradinhos, empanados de farinha e desejo, naquele lugar quente e acolhedor que fazia lembrar o paraíso. Em silencio, só sentindo a presença um do outro, em paz. 161


Até que fomos despertados bruscamente por um grito de ódio: — Seus desgraçad... — o homem caiu fulminado no chão, a mão em cima da arma que não teve tempo de puxar. — Corra, vá buscar ajuda, diga que o coronel teve um ataque do coração! — empurrei-o em direção à saída, não sem antes limpar seu corpo e as roupas do pó branco que os cobria. Rapidamente limpei também minha própria roupa e tentei colocar um pouco de ordem no local antes que os outros chegassem. Olhei sem culpa para o corpo sem vida. Ele teve o que merecia, pensei. E eu finalmente vou ter o que mereço. A enorme propriedade se estendia a perder de vista, diante dos meus olhos, banhada pela luz da lua que surgia no alto do céu.

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AGRADECIMENTOS

Agradecemos à amiga Camila Chaves por capturar com lentes sensíveis, em meio à pandemia de 2020, as belas imagens que ilustram este livro.

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